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Copyright © by Verônica Toste Daflon, 2017
Projeto Gráfico:
Núcleo de Arte/Mauad Editora
Revisão:
Mauad Editora
Imagem da Capa:
La mulâtresse [Mulata]
Autor: Biard, Auguste François, 1798-1882
Colaborador: Riou, Edouard, 1833-1900 (il.)
Apoio:
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
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“Mulato é negro? Os números do mercado de trabalho
indicam que quase é, como já se referiu; diante da este-
reotipia e da discriminação é igualmente insignificante a
distância que o separa do preto. Este, no entanto, é ape-
nas um dos termos da equação do mulato no quadro das
relações raciais brasileiras sobre a qual se debruçam, sem
aparente sucesso, os movimentos negros. Numa socieda-
de multirracial como a nossa, em que a autodefinição é
importante critério classificatório (respeitados certos li-
mites, naturalmente), o mulato é efetivamente algo di-
ferente do preto e do branco. Ou, como já observou al-
guém, é uma coisa ou outra conforme lhe interesse. Eis
um enigma que ameaça devorar a luta organizada contra
o racismo no país da democracia racial.”
Apresentação 9
Agradecimentos 13
Introdução 15
PARTE I
Capítulo I — Mestiçagem, cores e “raças” 25
A mestiçagem como união de desiguais 26
A mestiçagem no mundo ibérico 28
A mestiçagem no Brasil: racialização e resistência 30
PARTE II
Capítulo IV — Discriminação racial estatística e percepção da discriminação 77
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Discriminação racial 80
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Autorrelatos de discriminação e as identidades raciais 82
As categorias de cor 83
A consistência das percepções 86
A discriminação mensurada e a discriminação relatada: uma discussão 89
Capítulo V — Características socioculturais, identitárias e de sociabilidade 97
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10 APRESENTAÇÃO
passou com muitos pretos. Do mesmo modo, as tradições de luta política
e de expressão cultural afro-brasileira sempre mantiveram próximos os dois
grupos. O “pardo” – enquanto heterodesignação - sempre uniu mais coletiva-
mente que a autodesignação de ‘moreno’, me arrisco a dizer. Mas, como muito
bem nos mostra o livro de Verônica Toste Daflon, ideias como essa precisam
de elaborado processo de pesquisa e de cuidadoso exame histórico.
O leitor tem em mãos um desses livros que desafia o universo do que já
conhecemos e alimenta a nossa vontade de saber mais.
Este livro não teria se tornado possível sem a ajuda, a colaboração e a ge-
nerosidade de várias pessoas e instituições. Primeiramente, gostaria de agra-
decer, pelo apoio institucional, ao Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Antropologia (PPGSA) do IFCS-UFRJ, em cujas dependências concluí este
estudo durante meu estágio pós-doutoral. Agradeço também à CAPES, cujos
recursos financiaram esta publicação, e a André Botelho e Ângela Rocha, por
viabilizarem todo o processo com agilidade e entusiasmo. À Claudia Senra, da
Mauad Editora, pelo interesse pelo projeto e enorme incentivo. Quero expres-
sar minha gratidão ainda a João Feres Júnior, que orientou a tese de Doutora-
do que originou esta obra, e a Luiz Augusto Campos e demais pesquisadores
de Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), que
estiveram comigo durante muitos anos. Agradeço também ao Núcleo Inter-
disciplinar de Estudos Sobre a Desigualdade (NIED) e, particularmente, aos
coordenadores Elisa Reis, Graziella Silva e Flávio Carvalhaes, pela acolhida
e oportunidades valiosas de interlocução e pesquisa. À colega Bila Sorj, com
quem dividi a sala de aula e tive muitos debates estimulantes sobre gênero
e identidades. À Fundação Ford, que financiou inúmeras pesquisas de que
tomei parte. Agradeço também aos professores e funcionários do IESP, em
particular a Carlos Antônio Ribeiro e Nelson do Valle Silva, por cederem al-
gumas das bases de dados utilizadas neste livro. Registro ainda meus agra-
decimentos aos professores Seth Racusen e William Darity, que, mesmo a
distância, foram excelentes interlocutores acadêmicos. Por fim, registro meu
imenso agradecimento à minha banca examinadora de Doutorado, composta
por André Lázaro, Antonio Sérgio Guimarães, Carlos Antônio Ribeiro e Gra-
ziella Moraes Silva, cujos comentários e sugestões até mais críticos mostraram
imenso respeito e generosidade, estimulando-me a publicar os resultados da
minha pesquisa.
Agradeço a Ana Paula Carvalho, Betina Fresneda, Frederico Abraham,
Marcia Rangel Candido e Renato Alvarenga, pela amizade sempre presente e
constante. Registro também minha enorme gratidão à minha família. Minha
14 AGRADECIMENTOS
Introdução
Em julho de 2014 André Luiz Ribeiro fazia uma corrida com seu fone de
ouvido no Balneário São José, na periferia de São Paulo, quando foi confundi-
do com um dos três assaltantes que haviam acabado de cometer um assalto
em um bar nas proximidades. O dono do estabelecimento e seu filho o agar-
raram, o acorrentaram no chão e cerca de vinte pessoas começaram a linchá-
-lo. Bombeiros, que passavam pelo local, interromperam o linchamento. Para
garantir sua integridade física, André fez o que muitos pretos e pardos fazem
cotidianamente para escapar da violência popular ou estatal no Brasil: falou
sua profissão. Contudo, isso não foi suficiente. Ainda suspeitando de sua ino-
cência, um dos bombeiros exigiu que a vítima provasse ser o que alegara –
um professor de História –, dando “uma aula” sobre a Revolução Francesa.
Aturdido, André improvisou uma explicação de três minutos sobre o evento
histórico, até, enfim, convencer o bombeiro de ser quem alegara e ser final-
mente conduzido a um hospital. Mesmo assim, André ainda ficou preso por
dois dias, pois o dono do bar assaltado continuou a sustentar em depoimento
que ele era a pessoa que roubara seu estabelecimento.
Descrito pela reportagem do jornal O Globo (2014) como “um mulato de
27 anos”, André é um dos muitos brasileiros entendidos como “pardos” ou
“mulatos” prejulgados como criminosos e associados à marginalidade e ao
desvio social. Se o discurso de brasilidade mestiça, afetuosa e cordial coloca o
“mulato” e a “mulata” no centro da representação de povo e de nação brasi-
leiras, os indivíduos reais, racializados como pardos ou mestiços, sofrem for-
mas severas de discriminação – e, como testemunhou André, frequentemente
correm risco de vida. De fato, o caráter relativamente contextual e elástico
dos códigos raciais faz com que, a depender das diferentes situações, círculos
e classes sociais, os mesmos indivíduos possam ser vistos como pretos ou
pardos e, em muitos casos, sejam alvos indistintos de discriminação racial. A
presunção comum no Brasil de que a cor da pele é um marcador de perten-
cimento de classe, por sua vez, ativa contra essas pessoas mais uma série de
preconceitos e formas de discriminação.
16 INTRODUÇÃO
gatoriamente ligada a uma percepção aguda das discriminações raciais no Bra-
sil. De fato, a despeito das evidências de discriminação e desigualdade, quando
perguntada se alguma vez já passou por discriminação racial, a maior parte dos
pardos demonstra persistentemente uma percepção do preconceito mais baixa
que aquela reconhecida pelos pretos (Silva e Leão, 2012). Daí os pardos estarem
“tão longe, tão perto”, como sugere o título deste livro: muito próximos dos
pretos, no que toca aos seus índices socioeconômicos, chances de mobilidade
social e vitimização por diversas formas discriminação, e muito distantes em
sua percepção do preconceito e da discriminação de que são vítimas. Para esse
grupo, o nexo entre a cor e a discriminação não é óbvio ou autoevidente.
Uma explicação comum para esse fenômeno consiste em dizer que o pardo
nega sofrer discriminação racial porque isso implicaria admitir-se como negro
e, assim, abrir mão de uma identidade social embranquecida. A ideia de atribuir
uma “falsa consciência” aos brasileiros que se autoclassificam como pardos é
hoje bastante popular em meios políticos e também acadêmicos, guardando pa-
rentesco com a noção marxista de consciência de classe (Wade, 1997). Para al-
guns dos que enxergam as identidades raciais sob essa ótica, pardos nem sequer
“existem”: são “negros envergonhados”, iludidos pelo ideário da “democracia
racial” e mistificados pelas ideologias do embranquecimento e da mestiçagem.
Entretanto, se como retórica em prol da construção de uma identidade políti-
ca comum a pretos e pardos essa visão é válida e legítima, do ponto de vista
da análise social a ideia de “falsa consciência” é demasiadamente insensível a
processos sociais mais complexos e que envolvem também outros marcadores
de diferença, como classe social, origem, gênero, dentre outras, assim como a
multidimensionalidade das identidades. Ademais, ela se apoia em uma ideia,
hoje insustentável nas ciências sociais, de que existem identidades falsas ou
inautênticas – em contraste com identidades verdadeiras ou essenciais.
Por fim, as acusações cada vez mais frequentes que pairam sobre os pardos
acabam ainda por deslocar a responsabilidade pelo racismo para as próprias ví-
timas. Deixa-se assim de se considerar, por exemplo, de que modo a construção
das identidades brancas no Brasil contribuem para a racialização dos outros gru-
pos sociais, bem como de que maneira classes médias e elites majoritariamente
brancas erigem fronteiras e regulam as aspirações de ascensão social das popu-
lações não-brancas brasileiras (Sovik, 2009; Garner, 2007). Neste livro, procuro
demonstrar que a ideia de os pardos ou mestiços serem os supostos responsáveis
pela desmobilização histórica da população negra no Brasil tem a sua própria his-
tória, tendo emergido como explicação para o padrão de relações raciais no Brasil
apenas a partir de meados da década de 1970, um momento crítico de revisão
da ideologia da democracia racial no país. Pouco habituados a olhar para a cons-
trução das identidades brancas no Brasil, um tema que só tem ganhado espaço
18 INTRODUÇÃO
As diferentes dimensões do preconceito, estereótipos e discriminações ex-
ploradas neste livro apontam de que maneiras determinados processos sociais e
discursos organizados em torno da mestiçagem oportunizam formas complexas
e sofisticadas de racismo e preconceito de classe que contribuem para a sua pró-
pria invisibilidade. Ao longo dos próximos capítulos, examinarei dimensões das
desigualdades, discriminação, sociabilidade, cultura, identidade, estereótipos e a
relação entre as percepções de formas de discriminação cotidiana, a cor e a clas-
se social. O livro divide-se em duas partes. No capítulo I, introduzo a discussão
acerca da mestiçagem, entendida aqui como um processo cultural, social e político,
e a relação que ela assumiu, em diferentes tempos e espaços, com formas de hie-
rarquização de grupos humanos. Sustento que o fenômeno social da mestiçagem
presume diferença e desigualdade e que a emergência de uma camada social de
mestiços no Brasil esteve ligada a formas de gestão colonial e disputas de poder.
Contudo, longe de ser visto como agente democratizador ou apaziguador das ten-
sões raciais no Brasil, como viria a ser encarado no discurso nacionalista do século
XX, o mestiço era encarado por frações significativas das elites brasileiras no sécu-
lo XIX como uma ameaça à estrutura social, à integridade racial da nação, o que fez
com que fosse alvo de caracterizações e estereótipos negativos. Ao mesmo tempo,
os próprios sujeitos não-brancos buscaram se opor a essa visão, procurando na
mestiçagem meios de positivar suas identidades e de escapar de demarcações de
fronteiras raciais rígidas. Assim, não foram meros espectadores passivos da formu-
lação de uma ideologia nacional, mas também coparticiparam na formação social
de uma camada de pessoas pardas no Brasil e na constituição dos discursos de
nacionalidade que aludem à mestiçagem. Esses movimentos devem ser postos em
perspectiva histórica, em meio às disputas políticas que se sucederam no século
XIX, e entendidos como uma forma de recusa dos brasileiros de ascendência afri-
cana às marcas hierarquizantes que se buscava impor sobre eles.
Ao discutir a trajetória do pardo nas ciências sociais no segundo capítulo,
reexamino o lugar em que ele foi colocado em diferentes interpretações de na-
ção e da natureza das relações raciais no Brasil. Ao revisitar autores clássicos,
é possível retraçar a genealogia de algumas ideias que hoje comparecem nos
debates sobre o papel dos brasileiros mestiços em uma ordem social racializa-
da e desigual. Se no pensamento social brasileiro o pardo figurou inicialmente
como um pacificador ou assimilador de diferenças, ou mesmo como agente
de democratização racial do país, ele passou a ser apontado pelas ciências
sociais, nas décadas de 1940 a 1960, como alguém que lutava para transpor
fronteiras raciais e, ao fazê-lo, esbarrava nas contradições de uma nação que
se autoproclamava racialmente democrática, mas que erigia barreiras e dirigia
estereótipos contra pessoas não-brancas. A despeito de produzirem interpre-
tações por vezes distintas, esses autores apontaram de modo geral as reações
20 INTRODUÇÃO
dados, busco fundamentos para revisitar e rediscutir teorias clássicas acerca dos
padrões de recepção e assimilação dos pretos e pardos em diferentes pontos do
espectro socioeconômico brasileiro, tais como as teorias do “embranquecimen-
to” (Cardoso e Ianni, 1960) e da “válvula de escape do mulato” (Degler, 1971),
procurando, assim, uma sintetização das discussões feitas ao longo do livro.
O capítulo IV apresenta o acúmulo de evidências de discriminação estatísti-
ca contra pretos e pardos em âmbitos como educação, ocupação e mobilidade
social, que apontam, de modo global, que padrões parecidos de discriminação
os atingem. Ao mesmo tempo, aponto que as pesquisas de opinião mostram
diferenças entre esses dois grupos no que se refere à percepção da discrimina-
ção e adesão aos repertórios identitários da morenidade e da negritude. Trato
também das linguagens racista e antirracista e das maneiras como elas tendem
a silenciar sobre o pardo e contribuir para a ideia de que eles não são um grupo
racialmente discriminado. No capítulo V, discuto as identidades e formas de
sociabilidade inter-racial no Brasil, demonstrando que existe relativa coerência
entre as maneiras como as pessoas se classificam e são classificadas em termos
de cor no país e que a maior fluidez na classificação se dá entre pretos e par-
dos, e não entre pardos e brancos. Em outras palavras, mostro que, se há mais
dúvida a respeito de quem é preto ou pardo no Brasil, há relativamente pouca
controvérsia em torno de quem é branco. Aponto ainda que os pardos são mais
aceitos em interações sociais e relações de intimidade com os brancos do que os
pretos, o que pode ser um dentre os fatores que explicam uma percepção mais
baixa do preconceito racial entre pessoas desse grupo.
O capítulo VI analisa estereótipos raciais dirigidos contra pretos e pardos.
Além de olhar para a esfera da cultura e da representação, recupero pesquisas
sobre estereótipos realizadas no Brasil entre as décadas de 1950 e 1960, que
apontaram algumas especificidades das caracterizações negativas dirigidas con-
tra indivíduos pardos. Através de dados de um survey conduzido em 2002, busco
atualizar essa discussão, apontando a tendência de associação dos pardos aos
estigmas da criminalidade e malandragem. Noto ainda que, a despeito de serem
associados à pobreza e a profissões de baixo status ocupacional, os pardos não
são vistos, de modo geral, como um grupo que enfrenta falta de oportunidades.
Isso me leva a sugerir que os pardos costumam ser mais diretamente responsa-
bilizados pela sua condição social do que os pretos, despertando menos senti-
mentos de simpatia por sua situação desprivilegiada. Ao mesmo tempo, homens
e mulheres pardos são associados aos arquétipos culturais do malandro simpá-
tico e da “mulata” sexualizada, representações sociais extremamente ambíguas.
Proponho como modelo interpretativo para tal conjunto de evidências a ideia
de “racismo ambivalente”, um tipo de racismo que se baseia em estereótipos de
qualidade dúbia e que guardam em si tanto elementos de hostilidade quanto de
22 INTRODUÇÃO