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INSTITUTO DE PESQUISA E MEMÓRIA PRETOS NOVOS

Pós-Graduação Lato Sensu em História do Rio de Janeiro

NÁDIA SALVIANO LAMAS

RACISMO NO RIO DE JANEIRO: UM OLHAR A PARTIR DOS DADOS DO


CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E CIDADANIA (CESeC)

Trabalho de Conclusão do Curso de Pós-graduação Lato


Sensu em História do Rio de Janeiro do Instituto de
Pesquisa e Memória Pretos Novos, apresentado como
requisito parcial para a obtenção do certificado.

Orientador: Prof. Me. Pedro Henrique N. de Oliveira

Rio de Janeiro
2022
INSTITUTO DE PESQUISA E MEMÓRIA PRETOS NOVOS
Pós-Graduação Lato Sensu em História do Rio de Janeiro

FOLHA DE APROVAÇÃO

NÁDIA SALVIANO LAMAS

RACISMO NO RIO DE JANEIRO: UM OLHAR A PARTIR DOS DADOS DO


CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E CIDADANIA (CESeC)

Trabalho de conclusão de curso apresentado como


requisito parcial para obtenção do certificado.

Aprovado em: de de 202 .

Banca Examinadora

_________________________________________
Prof. Me. Pedro Henrique Nascimento de Oliveira

_________________________________________
Prof. Dr. Thiago Mantuano
RESUMO

Um olhar atento sobre os acontecimentos diários nos mostra que o Rio de Janeiro é
uma cidade racista. Pesquisas do CESeC – Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania – mostram que o preconceito racial, além de ser um fenômeno ideológico,
está entranhado na base da sociedade e nas instituições, que tratam negros e brancos
de forma desigual em suas abordagens rotineiras. Quando a polícia demonstra
violência e discriminação contra uma pessoa negra, o que vemos é apenas a
extremidade de um sistema cujo racismo se estende pelo judiciário e pelas
penitenciárias, todas lotadas de indivíduos negros. Este trabalho sugere ações
afirmativas e outras medidas que possam alterar as relações sociais e nos livrar dessa
herança nefasta deixada por séculos de escravismo.

Palavras-chave: Racismo. Desigualdade. Instituições. Polícia. Ações afirmativas.


ABSTRACT

A close look at daily events shows us that Rio de Janeiro is a racist city. Research by
CESeC – Center for Studies on Security and Citizenship – shows that racial prejudice,
in addition to being an ideological phenomenon, is ingrained at the base of society and
institutions, which treat blacks and whites unequally in their routine approaches. When
the police demonstrate violence and discrimination against a black person, what we
see is just the extremity of a system whose racism extends through the judiciary and
penitentiaries, all crowded with black individuals. This work suggests affirmative
actions and other measures that can alter social relations and rid us of this harmful
legacy left by centuries of slavery.

Keywords: Racism. Inequality. Institutions. Police. Affirmative actions.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ............................................................................................................. 12
Figura 2 ............................................................................................................. 13
Figura 3 ............................................................................................................. 13
Figura 4 ............................................................................................................. 14
Figura 5 ............................................................................................................. 23
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................... 7
2. A SITUAÇÃO DO NEGRO HOJE ............................................................. 10
2.1. EXCLUSÃO SOCIAL E TERRITORIAL NO RIO DE JANEIRO ........... 10
2.2. VIOLÊNCIA ............................................................................................. 14
2.3. A “DEMOCRACIA RACIAL” DÁ LUGAR À PERCEPÇÃO DE
RACISMO ........................................................................................... 15
3. O RACISMO NOS DADOS DO CENTRO DE ESTUDOS DE
SEGURANÇA E CIDADANIA ................................................................ 17
3.1. RACISMO INSTITUCIONAL .................................................................... 17
3.2. RACISMO ESTRUTURAL ....................................................................... 23
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 24
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 26
7

1. INTRODUÇÃO
“As fazendas de café do Vale do
Paraíba, o coração escravista do Brasil no
século XIX, testemunharam um grande êxodo
nos dias seguintes à Lei Áurea de 1888.
Foram cenas de proporções bíblicas.
Milhares de homens, mulheres e crianças se
puseram em marcha, sem destino algum.
Eram os novos “libertos” brasileiros. (...) Aos
poucos, porém, a dura realidade foi se
impondo. Passadas as noites de festas e
danças, os ex-escravos perceberam que não
havia para onde ir. Ninguém lhes daria
trabalho. Grupos famintos e esfarrapados
continuaram a perambular, a esmolar de casa
em casa, de fazenda em fazenda, em busca
de comida e amparo. Outros se dirigiam aos
centros de cidades e vilarejos, tentando
encontrar algum amparo das autoridades – o
que não aconteceu em lugar algum.”
(Laurentino Gomes, 2022)

Como manter a indiferença quando o noticiário nos confronta diariamente com


demonstrações de racismo muitas vezes fatais? Em condomínios, universidades,
shoppings ou clubes, tais manifestações indicam que boa parte da população acredita
que, apesar das ações afirmativas adotadas pelo governo nas últimas décadas, o
lugar do negro ainda é o de servir, não o de usufruir. Mesmo pessoas autodeclaradas
“não racistas” estranham ver o negro em posições de liderança e exercendo, ou
mesmo almejando, determinadas profissões.
Para além da indignação, convido o leitor a refletir sobre os caminhos que nos
trouxeram até aqui, a este novo milênio que supúnhamos progressista e inclusivo,
mas no qual os ambientes mais distintos permanecem implicitamente vedados
àqueles que nascem com a pele escura. Com esta finalidade, proponho um exame
das circunstâncias em que se deu a libertação dos negros escravizados no país.
8

O fim da escravidão no Brasil, ocorrido no Império, não foi seguido por uma
política que inserisse os negros recém-libertos na sociedade, nem que lhes garantisse
trabalho ou condições sociais e culturais. O processo histórico que resultou na
abolição da escravatura não foi um ato benevolente da princesa Isabel, mas o
resultado das correntes que transformavam a sociedade brasileira.
Para os intelectuais da época, a escravidão representava um atraso, enquanto
a abolição abria uma porta para a modernização capitalista que se expandia
rapidamente no Brasil. A abolição por parte do Estado Imperial, portanto, não foi
pensada para melhorar as condições de vida, nem vislumbrava um projeto pós-
abolição para o sujeito negro. Ao contrário, a República recém-implantada ignorou a
população negra, invisibilizando-a, de modo a justificar sua exclusão.
A Lei Áurea, marco da abolição da escravidão no Brasil, tinha só dois artigos:
“Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2°:
Revogam-se as disposições em contrário.” E não contemplava políticas públicas sobre
saúde, educação, trabalho, emprego ou qualquer outro direito básico.
A Constituição do Império de 1824 determinava que a educação era um direito
de todos os cidadãos, mas a escola era vetada para pessoas negras escravizadas. A
cidadania se estendia aos portugueses e aos nascidos em solo brasileiro, inclusive
negros libertos, porém esses direitos estavam condicionados a posses e a
rendimentos, impossibilitando desse modo aos libertos o acesso à educação.
(RIBEIRO, 2019)
Os incentivos para imigrantes compunham uma política oficial de
branqueamento da população baseada na crença do racismo biológico de que negros
representavam o atraso. Essa perspectiva marcou nossa história com a valorização
de culturas europeias em detrimento da cultura negra, segregando os negros de
diversas formas. Tais dispositivos legais, estabelecidos durante e após a escravidão,
contribuíram para a manutenção da mentalidade “casa-grande e senzala”. (RIBEIRO,
2019)
O racismo no Brasil difere de experiências como o nazismo, o apartheid sul-
africano ou a situação da população negra nos EUA na primeira metade do século
XX, nas quais o racismo era explícito e institucionalizado por leis e práticas oficiais.
Talvez em decorrência disso, o Brasil não reconhece as violências ocorridas durante
o período escravista, e prevalece a ideia de que a escravidão aqui foi mais branda que
9

em outros lugares, ideia já refutada por Lilia Schwarcz e outros historiadores, que
alegam que ela não passa de um mito desmentido por vários fatos históricos.
A abolição não pôs fim à exploração do negro e nem ofereceu condições para
que os ex-escravizados pudessem ser inseridos na esfera produtiva que se criava
com a expansão do capitalismo e a consequente urbanização que modificaram de
forma profunda as relações sociais e raciais.
O pensamento corrente era que o negro não combinava com a sociedade de
modelo europeu que se formava. O decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, outro
dispositivo legal da época, regularizava a entrada de imigrantes no país, concedendo
entrada nos portos da República aos indivíduos aptos ao trabalho livre, desde que a
origem dos estrangeiros não fosse a Ásia ou a África (CURY, 2018). Ao excluir o negro
dos processos de trabalho, a política imigratória visava a erradicar a raça negra da
população brasileira.
A República associava o progresso ao branqueamento da população. As
críticas à escravidão não diziam respeito ao absurdo e à crueldade em si, mas à ideia
de que ela representava um obstáculo à modernização econômica e ao incentivo da
imigração europeia. (CURY, 2018)
Os 388 anos de escravismo fizeram de nossa sociedade uma poderosa fábrica
de preconceitos de todos os tipos, com destaque para o racial. A construção da
desigualdade racial originada no contexto colonial instaurou-se em todas as esferas
da sociedade notadamente no Estado brasileiro.
Outro entrave para qualquer avanço foi o surgimento do mito da democracia
racial (conceito que nega a existência de racismo no Brasil) que durante muito tempo
vigorou no país, ressaltando como qualidade nacional a miscigenação, a convivência
cordial e a paz social entre os povos que aqui habitavam, como vemos em “Casa
Grande & Senzala” publicado por Gilberto Freyre em 1933, uma das obras que ajudou
a disseminar a ideia da miscigenação e do convívio harmônico entre as raças. O
problema dessa ideologia era que, não havendo preconceito e discriminação raciais,
deveriam existir oportunidades econômicas e sociais iguais para negros e brancos, o
que não acontecia. E, uma vez que as desigualdades raciais não eram percebidas
como uma questão a ser enfrentada pelo Estado, as políticas públicas não
incorporavam o fator racial em suas elaborações.
A naturalização da desigualdade entre brancos e negros promovida pela
República resultou num projeto de nação que aprofundou ainda mais o racismo no
10

Brasil, levando ao acirramento da pobreza, marginalização e violência contra a


população negra. A falsa crença de uma democracia racial na qual negros, brancos e
as demais etnias que formam a nossa população vivessem em plena harmonia
possibilitou que o Brasil escapasse dos problemas raciais que os outros países
enfrentavam.
Como ressalta CURY (2018), o Estado foi omisso diante das teorias racistas e
da desigualdade que se desenvolviam, não criou políticas de inserção para os libertos
e ainda reforçou as ideias racistas ao tentar promover o branqueamento da população.
O período pós-abolição coincidiu com a entrada de imigrantes europeus, e a
população de cor ficou marginalizada em relação à economia capitalista emergente.
A abolição, assim, longe de ser uma solução para os antigos escravizados, inseriu o
negro numa profunda desigualdade que persiste até hoje, resultando em ataques
diários a seus direitos e sua liberdade, e em injustiças que nos afrontam diariamente.

2. A SITUAÇÃO DO NEGRO HOJE

2.1. EXCLUSÃO SOCIAL E TERRITORIAL NO RIO DE JANEIRO

As campanhas sanitaristas governamentais que deram origem à derrubada dos


cortiços no início do século XX, além de “limpar” a cidade de doenças, pretendiam
controlar uma parcela específica da população que habitava aqueles locais. Havia
uma associação entre pobreza, doenças e supostas vadiagens e promiscuidades, o
que tornava aquela população “perigosa”. A população pobre recebia mais um
estigma, e seu local de moradia, fosse ele cortiço ou favela, passava a ser visto como
um lugar perigoso, uma ameaça à ordem urbana. O objetivo era civilizar os indivíduos
e modernizar o espaço público da cidade europeizada, o que implicava a
territorialização da pobreza, ou a construção da segregação social por meio da
segregação territorial. (TOLEDO, 2017)
O fato de o poder público achar que todo indivíduo pobre era um malfeitor em
potencial resultou em desmandos na atuação da polícia que se reproduzem pelo
menos desde o início do século XX. Devido ao contexto histórico, os negros eram os
principais suspeitos. Agora livres dos antigos senhores, tornavam-se alvo de
suspeição generalizada e de consequente repressão com o intuito de “manter a
11

ordem”. Por trás desse comportamento havia teorias racistas que atribuíam aos
negros “defeitos” inerentes à sua “natureza”. (CHALLOUB, 1996)
No fim da década de 1870, o poder público proibiu a construção de cortiços nas
freguesias centrais da cidade, assim como a reconstrução dos que já existiam, numa
política de expulsão das “classes pobres/perigosas” para a periferia. O pensamento
reinante buscava separar o passado colonial do futuro de civilização, aproximando o
país da prosperidade de outros países considerados mais evoluídos. A desigualdade
na formação do espaço urbano da Cidade afetou as classes mais pobres, e essas
classes têm predominantemente a cor negra. (VEIGA, 2015)
Em 1948 o primeiro censo de favelas no Rio de Janeiro revelou
estatisticamente 105 favelas, quase metade delas situadas nos subúrbios, com
predominância de negros e migrantes vindos de outros estados. De acordo com o
IBGE, o último censo (2010), identificou a população total do estado do Rio de Janeiro
como 15.989.929 habitantes, sendo que 12,6% moravam em favelas. Comparado a
outras grandes cidades brasileiras, o município do Rio de Janeiro tem os maiores
crescimentos populacionais de moradores de favelas, segundo aquele instituto.
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2015 apontam que o
Brasil tem o quarto maior índice de desigualdade da América Latina e o décimo do
mundo, sendo o Coeficiente de Gini de 0,56. A desigualdade está presente em todas
as regiões em diferentes escalas, sendo que no Rio de Janeiro o Coeficiente de Gini
passou de 0,60 em 1991 para 0,62 em 2010. Esses dados sobre a evolução da
desigualdade de renda num município considerado desenvolvido mostra o
desinteresse do Estado em buscar soluções para esses problemas. (TOLEDO, 2017)
As favelas concentram grande parte da população da cidade, apresentando
contrastes e riscos sociais, sem contar a desigualdade no acesso a bens e aos
serviços por parte dessa população privada de condições materiais básicas. É uma
massa de excluídos, marginalizados, sem participação no sistema econômico e com
acesso somente a subempregos. Tantas privações fazem com que essa população
acredite que suas vidas possam valer menos que as outras.
Há uma violência que vem de cima, praticada pela elite por meio do Estado. A
polícia protege a classe dominante e a afasta das classes perigosas, ou seja, das
classes pobres. Somada à segregação racial, essa política promove a dualização da
cidade e a marginalização do pobre. Nesse contexto, a representação social que
vincula a negritude e a pobreza à criminalidade faz nascerem políticas racistas de
12

criminalização e extermínio vindas do aparelho de justiça e segurança estatal,


marcado pela repressão e pelo autoritarismo. (WACQUANT, 2007, apud TOLEDO,
2017).
O Estado, assim, se anula enquanto garantidor de direitos e, ao invés de tratar
as expressões da questão social por meio de políticas sociais, concentra sua atuação
nas práticas de intervenção punitiva. Ao agir com violência, a polícia torna-se incapaz
de cumprir outro papel que não seja o repressivo. WACQUANT (2007, apud TOLEDO,
2017) afirma que as periferias e as prisões pertencem ao mesmo tipo de organização,
sendo ambas criadas para aprisionar o sujeito pobre e conferir-lhe um confinamento
forçado. As ilustrações a seguir apresentam dados de composição racial e localização
da população na cidade do Rio de Janeiro:

Figura 1: Distribuição racial na capital do estado do Rio de Janeiro: 52% de brancos, 37% de pardos
e 11% de pretos (fonte: site da BBC Brasil. 2015)
13

Figura 2: Distribuição racial no Morro do Cantagalo, favela situada na zona sul da capital carioca: 32%
de brancos, 49% de pardos e 19% de pretos (fonte: site da BBC Brasil. 2015)

Figura 3: Distribuição racial em bairros da zona sul da cidade do RJ (Copacabana, Leme, Ipanema,
Leblon, Gávea, Jardim Botânico e Lagoa): brancos são 83% da população, pardos, 13% e pretos, 4%
(fonte: site da BBC Brasil. 2015)
14

Figura 4: No bairro da Lagoa, um dos mais elitistas da zona sul carioca: brancos são 91%, pardos, 7%
e pretos, 2% da população (fonte: site da BBC Brasil. 2015)

2.2. VIOLÊNCIA
“Todo camburão tem um pouco de navio
negreiro.”
(Marcelo Yuka)
Segundo CURY (2018), os dados do ISP-RJ (Instituto de Segurança Pública do
Rio de Janeiro), autarquia vinculada diretamente à Secretaria de Estado de Segurança
Pública, revelam a guerra social que vive o estado do Rio de Janeiro e quem são as
maiores vítimas. Segundo os dados de 2016, em todo o estado do Rio de Janeiro
foram registradas 5.337 mortes violentas. A missão do ISP-RJ é produzir informações
e disseminar pesquisas e análises para subsidiar a implementação de políticas
públicas de segurança, assegurando a participação social na construção dessas
políticas. Ainda de acordo com o ISP-RJ (2016), os homicídios registrados como
consequência da oposição à intervenção policial foram maiores na Capital (463 casos)
do que em qualquer outra região do estado.
Quando buscamos no site o perfil das vítimas que morrem por se opor à
intervenção policial, observamos que são pretos e pardos, do gênero masculino, faixa
etária entre 18 e 29 anos. A pesquisa mostra que jovens negros do sexo masculino
são exterminados diariamente por ações violentas da polícia. De acordo com Simas
15

(2013, apud CURY, 2018) a cidade do Rio de Janeiro “possui uma das polícias que
mais mata no mundo, com cifras superiores a muitos países em guerra ”.
Na maior parte das vezes, o Judiciário é uma extensão da viatura policial: não
se exige uma investigação detalhada nem se admite o contraditório para quem é
acusado pela seletividade do sistema. No entanto, mesmo com tantos casos
comprovados de abuso policial, que resultam em prisões injustas, a naturalização
dessa violência levou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a ter como súmula —
isto é, uma decisão que de tantas vezes proferida se torna um entendimento
cristalizado — admitir como elemento suficiente para a condenação apenas a palavra
dos policiais que efetuaram a prisão (RIBEIRO, 2019).
Segundo um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e da Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça, entre março de
2016 e janeiro de 2018 os policiais foram as únicas testemunhas em 71,14% dos
processos envolvendo tráfico. Não que nenhum policial seja digno de crédito, mas um
julgamento não pode se pautar única e exclusivamente pela palavra de quem prendeu.
(RIBEIRO, 2019)
Historicamente, o sistema penal foi usado para promover um controle social,
marginalizando grupos considerados “indesejados” por aqueles que definem o que é
crime e quem é o criminoso. No Brasil, tivemos várias leis com o intuito de criminalizar
a população negra, como a Lei de Vadiagem, de 1941, que perseguia quem estivesse
na rua sem uma ocupação clara justamente numa época de alta taxa de desemprego
entre homens negros. (RIBEIRO, 2019)

2.3. A “DEMOCRACIA RACIAL” DÁ LUGAR À PERCEPÇÃO DE RACISMO

Na década de 1950, após o holocausto e a reflexão sobre o que o ódio racial


pode causar numa sociedade, pesquisadores passaram a se preocupar não só em
mensurar o preconceito racial, mas em combatê-lo. O Brasil era um objeto de estudo
interessante – diferentemente dos Estados Unidos, da África do Sul e de alguns países
europeus, era visto como um "paraíso racial". Durante as décadas de 1940, 1950 e
1960 realizaram-se no Brasil os primeiros estudos sobre preconceito racial.
Os estudiosos observaram a distância social entre brancos e negros e
documentaram as dificuldades de ascensão social experimentadas pelos negros. Os
resultados das pesquisas evidenciaram que havia um abismo entre os valores
16

igualitários aceitos pela maioria dos entrevistados e a aplicação prática desses


princípios. A maioria dos entrevistados afirmou que não se casaria com um negro ou
mulato, por exemplo. Este conjunto de investigações contribuiu para a maior
percepção do preconceito racial e forneceu subsídios para denunciar a democracia
racial brasileira como um mito. (OLIVEIRA;BARRETO, 2003)
OLIVEIRA;BARRETO (2003) mencionam perguntas de uma pesquisa realizada
em 2000 pelo CEAP-DATAUFF no Rio de Janeiro que tinha por objetivo testar a
adesão dos entrevistados às definições estereotipadas dos negros e o desejo de
manutenção de distância social. As respostas a essas perguntas permitem analisar a
admissão de preconceito racial por parte dos indivíduos, bem como identificar o grau
de preconceito racial na população pesquisada.
Quanto aos estereótipos, os resultados mostraram que a maioria dos
entrevistados discordou das afirmações que revelavam associações explicitamente
negativas aos negros, como “os negros são menos esforçados do que os brancos”.
No que diz respeito à distância social o resultado foi semelhante: a maioria dos
entrevistados mostrou-se favorável à aproximação social com os negros, como se
pode ver na resposta à pergunta “Você se importaria de ter um chefe negro?”, à qual
96,7% responderam não.
A admissão do preconceito racial foi testada na pergunta “Você se considera
uma pessoa que tem preconceito de cor?”, à qual 87,5% dos entrevistados
responderam “não”. A maioria dos entrevistados se considerou, portanto, isenta de
preconceito racial, resultado coerente com as respostas que foram oferecidas às
perguntas sobre estereótipos e distância social. Como interpretar esse resultado, se
levarmos em conta que as desigualdades raciais existem e têm aumentado nas duas
últimas décadas, e que a estigmatização racial, seja através de insultos, piadas ou
representações negativamente estereotipadas, continua presente no cotidiano dos
brasileiros?
Sabemos que a etiqueta de relações raciais vigente na sociedade desaprova
as manifestações flagrantes de estigmatização com base em distinções de cor e seria,
portanto, de se esperar que a maior parte da população discordasse de frases
explicitamente racistas como as que foram incluídas no questionário da pesquisa.
Os afrodescendentes não deixaram de ser vistos e representados de modo
negativamente estereotipado, mas a população demonstra ter conhecimento de que
é socialmente reprovável fazê-lo. Os entrevistados mostram-se alinhados com os
17

valores antirracistas difundidos na sociedade, tentando evitar parecer que são


racistas, o que não ocorria algumas décadas atrás.
Existe ainda uma relação inversa entre idade e percepção do racismo, o que
provavelmente reflete o fato de as gerações mais jovens estarem sendo socializadas
em ambientes mais democráticos, com acesso a um nível de escolaridade mais
elevado e demonstrando menor tolerância à existência de relações desiguais
cristalizadas na sociedade.
Ainda segundo OLIVEIRA e BARRETO (2003), os brasileiros se consideram
livres de preconceito racial, mas confirmam a existência de racismo na sociedade, o
que torna verdadeiras as palavras da historiadora Lilia Schwarcz: "todo brasileiro se
sente como uma ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados".
Embora seja sociologicamente importante que os brasileiros evitem expressar
verbalmente o que entendem ser preconceito racial, o fato de os brancos continuarem
tendo acesso privilegiado às oportunidades sociais deve nos levar a refletir sobre os
limites das concepções que veem o racismo apenas como resultado de atitudes e atos
individuais, sem atentar para a dinâmica estrutural que extrapola essa dimensão
individual. Em termos de políticas, a questão que se coloca é que, embora seja
necessário o compromisso individual com a recusa do preconceito e da discriminação,
esse compromisso não é suficiente para alterar a estrutura racialmente desigual da
sociedade brasileira.
O fato de os brasileiros negarem que sejam "racistas" e de mesmo os negros
negarem que sofrem discriminação racial não é novo. A novidade é o reconhecimento
público, pela maioria da população, de que o racismo é um problema presente na
nossa sociedade.

3. O RACISMO NOS DADOS DO CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E


CIDADANIA

3.1. RACISMO INSTITUCIONAL


“80 tiros te lembram que existe pele alva e pele-
alvo” (rapper Emicida1),

1
Frase de Emicida sobre o caso do músico Evaldo Rosa, fuzilado por soldados do Exército na Zona
Norte do Rio no fim da intervenção militar no estado, em abril de 2019.
18

Nem sempre o racismo é só um fenômeno ideológico, às vezes ele é também


institucionalizado, exibindo um padrão de tratamento desigual que privilegia os
indivíduos brancos nas operações cotidianas (KILOMBA, 2019). Em 2003, o Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) conduziu a pesquisa “Elemento
suspeito, abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro” com apoio
de ativistas do AfroReggae, da CUFA e de alunos do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais (IFCS) da UFRJ. Os resultados revelaram que cerca de 38% dos entrevistados
tinham sido parados alguma vez, mas as revistas corporais ocorriam em 77% das
pessoas paradas a pé, e em 20% das paradas em carros particulares. Brancos só
foram revistados em 33% das abordagens; ao passo que, pretos, em 55%. Em 2021
a pesquisa foi repetida e os resultados comparados. Os resultados confirmavam o
fato de que jovens do gênero masculino, negros e pessoas de menor renda eram
desproporcionalmente mais abordadas pela polícia (CESeC, 2022).
Na pesquisa de 2003, o CESeC teve acesso a documentos internos, entrevistou
oficiais e praças e visitou batalhões nas Zona Sul, Norte e Oeste. A descrição desses
encontros e dados está registrada num livro publicado em 20052. Nos últimos anos,
aumentou a dificuldade de acesso a informações das polícias e de entrevistas com
membros da corporação. Não é uma dificuldade exclusiva do CESeC, outros projetos
de pesquisa foram cancelados por falta de autorizações. Tal retrocesso pode ser
decorrente da pandemia de covid-19, mas também da menor transparência e do
desinteresse do governo atual em levantar dados para a elaboração de políticas
públicas, o que acabou atrasando até a realização do Censo do IBGE, que deveria ter
sido efetivado em 2020.
A análise dos fenômenos sociais impõe vários desafios, e um deles está no fato
de que as sociedades se transformam. Nas duas décadas que separam as duas
pesquisas, muitas transformações ocorreram não apenas na cidade, mas também no
Brasil. No Rio de Janeiro, depois do impacto da implantação de Unidades de Polícia
Pacificadora (UPP’s) em favelas da Zona Sul e da Zona Norte, vivenciamos a falência
desse projeto, uma Intervenção Federal na secretaria de segurança em 2018 e a
expansão das milícias.

2
RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. (Coleção Segurança e Cidadania,
2)
19

Nessas duas décadas, graças às políticas de ação afirmativa (cotas raciais),


uma nova geração de estudantes chegou às universidades e impulsionou as
pesquisas em todas as áreas de conhecimento, ampliando o debate sobre racismo. A
internet possibilitou denúncias de violações de direitos e compartilhamento de
vivências da população negra. Enquanto a primeira pesquisa produziu dados para
discussão da segurança pública, agora podemos mostrar os impactos persistentes de
um fenômeno que se aprofunda e se intensifica.
Os pesquisadores do CESeC concordam que a violência do Estado brasileiro
exercida pelas polícias é mais comum contra pessoas negras, mas alguns atribuem o
fato a um “viés racial”, ou seja, um desvio do propósito democrático das polícias, que
pode ser solucionado por intervenções técnicas. Esse argumento marginaliza o
racismo do debate, sendo inclusive uma expressão do próprio racismo. Os números
de mortes e execuções pela ação da polícia não deixam dúvidas sobre quem morre
sob a mira dos que portam armas e agem em nome do Estado.
A continuidade da política de enfrentamento e combate às drogas, marcas da
política de segurança pública do Rio de Janeiro, contribui para alimentar no imaginário
da cidade a falsa convicção de que a “semente do mal” está nas favelas, e de que é
necessário exterminá-la. Esse pacto faz com que as mortes pelas mãos da polícia nas
favelas não produzam a comoção social capaz de alterar os procedimentos das
operações policiais (SILVA, 2021).
Por outro lado, os movimentos negros nunca foram tão fortes no Brasil como
hoje e nunca houve tantos pesquisadores negros, obrigando as organizações de
pesquisa e de ativismo a se dedicarem à temática racial. Influenciadores abraçam a
questão da violência policial, enquanto a mídia enfatiza evidências de que a polícia se
estrutura como uma corporação racista.
Em 2021, duas décadas depois da primeira pesquisa, os pesquisadores do
CESeC acrescentaram novas perguntas sobre a frequência das abordagens policiais
nas ruas da cidade, a qualidade das abordagens, as diferenças no tratamento a
negros e a brancos nas abordagens e as diferenças quando as interações se dão em
áreas próximas a favelas, além de solicitar a avaliação da população sobre as polícias.
A polícia em 2003 matou 1.195 pessoas e, em 2021, 1.345. Em 2018, houve a
intervenção federal no estado do Rio de Janeiro e a segurança ficou sob o comando
de generais, com aquisição e uso intensivo de helicópteros blindados e a compra de
armas de guerra com recursos da intervenção. Naquele ano, houve 1.535 mortes
20

decorrentes de ação policial no estado, recorde superado no ano seguinte, com Jair
Bolsonaro na Presidência da República e Wilson Witzel no governo do Estado.
Policiais do estado mataram 1.814 pessoas em 2019.
Em 2020, ano do início da pandemia do coronavírus, o STF decretou nova
intervenção na segurança do Rio, determinando o controle e a redução de operações
policiais em favelas durante a pandemia, medida que não foi respeitada. O governo
de Cláudio Castro, sucessor de Witzel, retomou a política de operações violentas e
alta letalidade com as chacinas do Jacarezinho e do Salgueiro, em maio e outubro de
2021, respectivamente.
Observando o perfil dos abordados pela polícia, vemos que existe uma
discrepância em termos de representatividade da população: são mais homens que
mulheres, mais negros que brancos, mais pobres, mais jovens e mais moradores de
favelas e bairros de periferia do que a média da cidade. A distribuição de idade, cor,
gênero e local de moradia de quem foi parado mais de 10 vezes revela claramente as
características do “elemento suspeito” do ponto de vista policial: 94% eram homens,
66% negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, 33% moravam em
bairros da periferia e 58% ganhavam menos de três salários mínimos.
Esses dados dizem ainda mais sobre o racismo policial quando vemos a
distribuição de cor dos abordados segundo as modalidades de abordagem: a
população carioca é formada por 48% de negros. Apesar disso, eram negros 74% dos
indivíduos parados em vans ou Kombis, 71% dos parados no transporte público, e
68% dos parados a pé ou dirigindo moto. Tal discrepância confirma que muitas
pessoas nunca foram paradas e algumas foram paradas uma ou poucas vezes.
Enquanto isso, os jovens negros do gênero masculino são abordados inúmeras vezes
quando circulam a pé na rua, em transporte público ou em motos.
Dentre as pessoas abordadas nas ruas do Rio, 50% foram revistadas na última
abordagem - destas, 84% eram homens, 69% eram negros (lembrando que apenas
48% da população são negros), e 70% eram moradoras de favelas e bairros da
periferia. Uma experiência comum é ter uma arma apontada para si. Vários jovens
relatam já terem sido tratados com agressões verbais pelos policiais, com o uso de
termos desrespeitosos e humilhantes: “Neguinho”, “Negão”, “Meliante”, “Elemento”,
“Escurinho”, “Favelado” e “Moleque”, entre outros. Também relatam ter tido o celular
invadido em busca de fotos e mensagens de WhatsApp com eventual conteúdo ligado
21

às facções. No grupo de autodeclarados “pretos”, 50% avaliam a Polícia Militar como


muito racista e 56%, como muito violenta (RAMOS, 2022).
As operações policiais são danosas aos moradores e ineficientes no combate
à criminalidade. No lugar de desarticular quadrilhas, aquecem o mercado de armas e
são inócuas contra grupos ilegais como as milícias, que disputam hoje com as facções
de drogas o controle de vastos territórios urbanos. Vinte anos depois, as abordagens
se intensificaram em modalidades como motos, por exemplo; focalizaram ainda mais
a população negra e se tornaram mais violentas, com mais relatos de ameaças,
intimidações e armas apontadas para o abordado, além de mais revistas corporais.
Pessoas negras continuam sendo mais abordadas que pessoas brancas, embora
sejam minoria na cidade, o que evidencia que a polícia é uma instituição racista que
utiliza esse critério para basear suas ações.
A cor da pele, o cabelo, a largura do nariz ou dos lábios, embora não
signifiquem nada em si mesmos, receberam durante o colonialismo uma conotação
de inferioridade, e aqueles que possuíam tais características foram construídos como
uma raça, ou seja, foram racializados por meio desses aspectos biológicos. Assim, a
ideia de “negro” emerge historicamente como um objeto de pele escura, cabelo
crespo, nariz e boca largos e que, por ter essas características, difere-se da raça
humana caracterizada pelo europeu/branco. O “negro” seria, então, uma figura
desumanizada, o que justificava a invasão, a ocupação e a exploração de territórios e
o escravismo (SILVA, 2022).
Durante o colonialismo, outras formas de policiamento, como feitores e capitães
do mato, mantinham os escravizados sob controle. Na época, o escravismo justificava
o policiamento, não era necessário produzir narrativas raciais para esse propósito.
Dessa forma, antes da institucionalização da polícia, no século XIX, já havia
policiamento e a necessidade de controlar o negro como ameaça à sociedade.
A cidade tem um grande número de favelas com acesso precário à cultura, ao
lazer e até ao emprego, mesmo quando localizadas em bairros nobres. Essa condição
geográfica evidencia as questões raciais e mascara os efeitos do racismo na vida dos
indivíduos.
Durante a realização da pesquisa observou-se a dimensão traumática causada
pela repetição dos padrões de abordagem e a manutenção dessa experiência ao
longo de gerações que a compartilham como parte de sua vivência na cidade,
moldando seu comportamento a partir da possibilidade de serem parados pela polícia.
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Ficou evidente também que as abordagens têm um efeito prolongado sobre a


vida dos entrevistados, provocando mudanças no comportamento, na escolha dos
trajetos, nos horários de trabalho e de lazer, na forma como se vestem ou utilizam
seus cabelos e acessórios. Atividades comuns para qualquer pessoa não negra
tornam-se motivo de preocupação para pessoas negras (FRANCISCO, 2022).
A escritora Grada Kilomba, em seu livro “Memórias da Plantação” (2019), ao
definir o racismo cotidiano e suas implicações na subjetividade dos indivíduos, afirma
que
o termo ‘cotidiano’ refere-se ao fato de que essas experiências não são
pontuais. O racismo cotidiano não é um ‘ataque único’ ou um ‘evento
discreto’, mas sim uma ‘constelação de experiências de vida’, uma
‘exposição constante ao perigo’, um ‘padrão contínuo de abuso’ que se
repete incessantemente ao longo da biografia de alguém. (KILOMBA,
2019).

A experiência de jovens moradores em territórios favelados do Rio de Janeiro


dá a dimensão do sofrimento causado pelas abordagens ou pelo medo delas. Seguem
abaixo alguns exemplos de afirmações dos jovens pesquisados:
“Eu tenho que sair de casa pensando que documentos vou levar, que
declaração de alguma coisa tenho de ter no bolso. Eu já saio com medo.”
“Saber que aquela não é a última vez... A angústia de saber que você tá
propenso a sofrer aquilo todo dia...”
“Qual é o critério? Por que só revistam as pessoas negras? E você nem
pode questionar a polícia porque eles engrossam logo...”

A convivência com o medo não deve ser naturalizada sem pensarmos na


sociedade que produz essas experiências, que descaracteriza os sujeitos ou os
conforma nesse ciclo traumático, abusivo e cotidiano. A necessidade de portar os
documentos representa para esse grupo a possibilidade de se livrar mais facilmente
de uma abordagem, ou de garantir a própria vida. Esses efeitos tornam-se mais nítidos
se observarmos as abordagens de indivíduos brancos. Um dos jovens entrevistados
conta que foi escolhido para a revista e seu amigo branco não: “eles quiseram ver
meu telefone, saber o que eu estava fazendo, me revistaram, perguntaram se eu tinha
dinheiro e o porquê de eu estar indo ao banco, e ainda disseram que eles eram a lei”.
(FRANCISCO, 2022).
No relato de outro jovem, que afirma “eles fazem perguntas agressivas,
gritando. Depois que vão embora, a sensação é muito ruim, de lixo. E os olhares das
pessoas em volta da gente, na rua, são de reprovação”. Notamos que nesses olhares
de reprovação estão as marcas mais identificáveis do racismo: a transformação do
23

sujeito em um ser reprovável e a manutenção da ideia de suspeição. É aí que reside,


também, a construção do trauma, do aprisionamento, do grande ataque à autoestima
dessas pessoas.
As abordagens policiais são vistas como uma prática capaz de produzir
segurança para sujeitos brancos numa sociedade estruturada no racismo. É
necessário elaborar políticas públicas que ajudem a suportar os efeitos de uma vida
marcada pelo medo das abordagens e pelas humilhações decorrentes dessa prática.
Pensar no lugar que os afrodescendentes ocupam na sociedade brasileira, 134 anos
depois da Abolição, causa indignação e revela a urgência de acelerar o processo de
inclusão e acesso desse grupo a direitos, na perspectiva de uma sociedade
antirracista. É como se alguns espaços da cidade estivessem reservados para um
determinado perfil de gente no qual a população negra não se enquadra. Logo, é vista
como suspeita (SILVA, 2022).

3.2. RACISMO ESTRUTURAL

Figura 5: Racismo, fotografia de Maré de Matos exposta na ArtRio 2022

Além das abordagens policiais, há os olhares fiscalizadores dos seguranças de


shoppings e supermercados. Várias gerações são igualmente marcadas por
comportamentos e práticas que reproduzem uma lógica que vem de séculos. A mídia
diariamente divulga casos como esses:
Na segunda-feira, 9 de maio de 2022, o sargento-bombeiro Paulo César
de Albuquerque pediu um sanduíche em um fastfood drive-thru da zona
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oeste do Rio. Após o registro da compra, informou ter um cupom de


desconto. Contrariado por não obter o desconto, invadiu a loja e
disparou quatro tiros contra o funcionário Matheus, um jovem negro de
21 anos. O rapaz perdeu um rim e parte do intestino.
Na noite de 2 de fevereiro de 2022, Durval Teófilo Filho voltava para
casa quando foi atingido por quatro tiros disparados pelo sargento da
Marinha Aurélio Bezerra na porta do condomínio em que ambos
moravam, em São Gonçalo. O atirador alegou ter confundido o homem
com um assaltante. Negro, funcionário de um supermercado, Durval
faleceu no hospital, deixando mulher e uma filha de seis anos.

Os discursos de ódio encontram nas redes sociais um canal para exposição.


Como se indivíduos comuns mimetizassem as práticas discursivas violentas de
agentes do Estado em relação a esta população. Mais ou menos, e em sentido
inverso, como fizeram os nazistas ao se apropriarem da naturalização dos pogroms 3
contra judeus durante séculos e, sobretudo, nas décadas que antecederam o
terceiro Reich (PIRES, 2022).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados nos levam a concluir que o racismo está presente na estrutura social
brasileira, particularmente no Rio de Janeiro. As evidências apontam que, apesar de
algumas conquistas e do posicionamento mais forte da nova geração, o corpo negro
segue sendo o elemento suspeito. Apesar da luta pela redemocratização do país a
partir dos anos 1980, da elaboração da nova Constituição que afirma em seu texto
que racismo é crime inafiançável, as marcas do processo de escravização
permanecem até os dias de hoje. Nas palavras de um dos entrevistados, “o negro
nunca deixou de ser escravo. A liberdade só acontece para quem conhece seus
direitos e deveres”.
Vivemos um momento em que o debate do racismo estrutural ganha visibilidade, mas
o preconceito racial entranhado nas estruturas brasileiras não cede com facilidade. A
polícia é a parte visível do sistema que sustenta o racismo, a ponta da engrenagem
do sistema de justiça criminal, formado por policiais, defensoria, ministério público,
justiça e sistema penitenciário. Os agentes policiais que atuam nas ruas exercendo a
prática fardada e armada da produção de suspeição, acusação e condenação

3
palavra russa que significa "causar estragos, destruir violentamente". Historicamente, o termo refere-
se aos violentos ataques físicos da população em geral contra os judeus, tanto na Rússia como em
outros países.
25

camuflam os papéis igualmente decisivos de delegados, promotores, juízes e agentes


penais na manutenção e reprodução cotidiana do racismo (RAMOS, 2022).
Com frequência, comandos de policiais militares estaduais usam o argumento
de que não há racismo nas suas fileiras, já que a maioria dos policiais que compõe
sua base é negra. Sabemos que racismo, misoginia, machismo, homofobia,
preconceitos contra pobres e outras doenças brasileiras estão profundamente
incorporados entre todos os segmentos da sociedade, e são reproduzidos por todos
os setores, inclusive por negros, mulheres, população LGBTQIA+, pobres etc.
A pesquisa realizada pelo CESeC em 2021 procurou corrigir alguns pontos da
pesquisa de 2003. As perguntas foram alteradas e o foco recaiu sobre os temas
raciais. Em 2003, dizíamos que a pesquisa era sobre policiamento e racismo. Em
2020, dizemos que policiamento é racismo, e que não é possível pensar as relações
entre polícia e sociedade sem entender que o racismo é constitutivo e estruturante do
policiamento e da formação policial (RAMOS, 2022).
Os órgãos de supervisão da polícia falham sistematicamente e vivem
demonstrando seu interesse em manter o sistema de justiça criminal nos atuais
moldes elitistas e classistas, em que a reprodução do racismo e da demofobia é a
essência mais preciosa. O controle externo da polícia é o celular do morador da favela
que filma a abordagem, do jovem que controla a agressão do policial mostrando que
está gravando e ameaçando mostrar na mídia. O controle externo é a postagem nas
redes sociais, a pressão política sobre os poderes executivo e legislativo para que
controlem as polícias.
Séculos de escravismo ilustram o fato de certas heranças permanecerem vivas,
explicando assim o número absurdo de negros assassinados pela polícia, o
encarceramento em massa da juventude negra, a perseguição e a violência contra
religiões de matriz africana e tantas amostras cruéis de como o racismo aparece na
vida de milhões de negros (SHAKUR, 2020).
Dados estatísticos de instituições governamentais confirmam que nunca existiu
democracia racial no Brasil; o que existe é desigualdade entre negros e não negros,
e um Estado que compactua com ela e com a violência contra os povos negros
(CURY, 2018). Por meio das pesquisas é possível confirmar que a desigualdade racial
não acontece por acaso, mas resulta do racismo que está na base da sociedade. A
questão racial sempre esteve – e continua – presente na história da formação social
do Brasil.
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Há muito a fazer para mudar isso, como discutir relações raciais em sala de
aula (GOMES, 2012), implementar ações afirmativas voltadas para o povo negro
(GOMES, 2005) e adotar um ensino de pluralidade cultural, que valorize as várias
existências e que referencie positivamente a população negra.
Com esse propósito foi promulgada em 2003 a lei 10.639, que tornou
obrigatória a inclusão da história e da cultura afro-brasileiras na grade curricular do
ensino fundamental e médio. Ao permitir o conhecimento de histórias africanas e
promover outra construção da subjetividade de pessoas negras, o que se pretende é
beneficiar toda a sociedade, rompendo a visão hierarquizada que pessoas brancas
têm da cultura negra (RIBEIRO, 2019).
Abdias do Nascimento, em O genocídio do negro brasileiro, afirma que
genocídio é toda forma de aniquilação de um povo, seja moral, cultural ou
epistemológica, sendo epistemicídio o apagamento sistemático de produções e
saberes produzidos por grupos oprimidos. O privilégio social resulta no privilégio
epistêmico, que deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas
pelo ponto de vista do poder.

REFERÊNCIAS

CHALLOUB, S. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. 2ª. ed.


Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2018. p. 15-35.

COSTA, C. 5 mapas e 4 gráficos que ilustram segregação racial no Rio de


Janeiro.2015. Disponível em
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151109_mapa_desigualdade_rio_
cc (acesso em: 14 out. 2022).

CURY, A.C.N. da S. A desigualdade racial e a violência contra a população


negra: implicações de um processo histórico no Brasil. Rio das Ostras: UFF, 2018.

FRANCISCO, D. Um trauma negro: abordagem policial e racismo. Negro trauma:


racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro: CESeC, 2022.

GOMES, N. L. Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias


de atuação. Brasília: MEC, 2005.

GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações


raciais no Brasil: uma breve discussão. Brasília: MEC, 2005.
27

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2019.

OLIVEIRA, C.L.P.;BARRETO, P.C.S., Percepção do racismo no Rio de Janeiro.


Estudos Afro-asiáticos. Rio de Janeiro: ano 25, no. 2, 2003, p. 183-213.

PIRES, L. O fasci-racismo a partir do Rio de Janeiro. Le Monde Diplomatique.


Disponível em https://diplomatique.org.br/o-fasci-racismo-a-partir-do-rio-de-janeiro/.
(Acesso em: 14 out 2022)

RAMOS, S. et al. Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro.


Rio de Janeiro: CESEC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), 2022.

RIBEIRO, D. Pequeno manual antirracista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,


2019.

SHAKUR, R. Dossiê 13 de maio: Abolição da Escravidão | Abolição e pós-Abolição:


a dinâmica das classes no Brasil de abolição tardia. Esquerdadiario.com.br.
Disponível em https://www.esquerdadiario.com.br/Abolicao-e-pos-Abolicao-a-
dinamica-das-classes-no-Brasil-de-abolicao-tardia, 2020. (Acesso em 14 out. de
2022)

SILVA, P.P. da. Não debater raça é racismo. Racismo e abordagem policial no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC, 2021.

SILVA, P.P. da. Sem desvio: notas sobre a polícia como instituição racista. Negro
trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC,
2022.

TOLEDO, B.B. A formação das favelas no Rio de Janeiro: uma análise baseada
na segregação populacional e exclusão social. Vitória, UFES, 2018.

VEIGA, L.A. Segregação Residencial e Racial no Rio de Janeiro: Um Estudo


Sobre Suas Origens e Atualidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.

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