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Diretor Geral: Wilon Mazalla Jr.

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Coordenação de Revisão e Copydesk: Alice A. Gomes
Revisão de Textos: Bruna Oliveira Gonçalves e Lilian Moreira Mendes
Arquivo ePub: Tatiane de Lima
Capa: Paloma Leslie

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Políticas públicas de lazer / organizador Nelson
Carvalho Marcellino. - - Campinas, SP: Editora
Alínea, 2015. - - (Coleção estudos do lazer)
Vários autores.
Bibliografia.
1. Educação física 2. Esportes - Brasil
3. Lazer - Brasil I. Marcellino, Nelson Carvalho.
II. Série.

07-9835 CDD-306.480981

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Esportes e lazer: Políticas
públicas: Sociologia 306.480981
2. Brasil: Lazer e esportes Políticas
públicas: Sociologia 306.480981

ISBN 978-85-7516-538-6

Todos os direitos reservados ao

Grupo Átomo e Alínea


Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP
CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.0047

www.atomoealinea.com.br
Conselho Editorial

Prof. Dr. Edmur Antonio Stoppa - USP


Prof. Dr. Helder Ferreira Isayama - UFMG
Profa. Dra. Maria Cristina Rosa - UFOP
Prof. Dr. Nelson Carvalho Marcellino - UNIMEP
Prof. Dr. Ricardo Ricci Uvinha - USP
Prof. Dr. Victor Andrade de Melo - UFRJ
Sumário

Apresentação

Capítulo 1
Subsídios para uma Política de Lazer: o papel da administração municipal
Nelson Carvalho Marcellino

Capítulo 2
Pressupostos de Ação Comunitária: estruturas e canais de participação
Nelson Carvalho Marcellino

Primeira fase
Segunda fase
Terceira fase

Capítulo 3
Políticas de Lazer: mercadores ou educadores? Os cínicos bobos da corte
Nelson Carvalho Marcellino

Lazer: necessidade e manifestação humana


Necessidade de políticas municipais
Política de formação e desenvolvimento de quadros
Concluindo

Capítulo 4
Estado e Sociedade na Construção de Inovações nas Políticas Sociais de Lazer no Brasil
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto

Quanto à institucionalidade
Quanto ao objetivo principal
Quanto ao enfoque
Quanto à lógica de tomadas de decisões
Descentralização da administração pública e de decisões
Intersetorialidade
Gestão em rede
Quanto ao financiamento

Capítulo 5
Políticas Públicas de Lazer no Brasil: uma história a contar
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto

A legalização do “tempo livre” na política assistencialista de bem-estar social dos anos 30


e 40
O lazer no contexto da consolidação da política social brasileira dos anos 60 e 70 – política
baseada no mérito, na seletividade e na ação burocrática
O lazer nos anos 80 conquista espaços sociais e ganha força nas políticas econômicas
Reconhecimento do lazer como direito social nas políticas sociais democráticas dos anos
90 aos dias atuais

Capítulo 6
Territórios do Lazer: panoramas e reflexões sobre a animação sociocultural
Débora Alice Machado da Silva

A démarche francesa: ação e formação profissional


A démarche brasileira: ação e formação profissional
Considerações finais

Capítulo 7
Formação dos Agentes Sociais de Esporte e Lazer: história, limites e desafios
Andréa Nascimento Ewerton e Marcelo Pereira de Almeida Ferreira

A formação de agentes sociais


Limites a serem superados e em superação

Capítulo 8
Espaços e Equipamentos de Lazer: apontamentos para uma política pública
Nelson Carvalho Marcellino, Felipe Soligo Barbosa e Stephanie Helena Mariano

Capítulo 9
Controle Social das Políticas de Esporte e Lazer
Cláudia Regina Bonalume

O controle social no processo histórico mais recente


A relação entre o estado e a sociedade civil
Refletindo acerca da democracia
Controle e emancipação social
Conferências
Orçamento participativo
Plenárias temáticas
Congressos da cidade ou congressos constituintes
O controle social nas políticas públicas de esporte e lazer
Considerações finais

Capítulo 10
O Papel do Estado nas Políticas Sociais: elementos para discussão sobre a gestãodas
Políticas Públicas de Lazer no Brasil
Rejane Penna Rodrigues

Influências mundiais na política pública brasileira


Desafios atuais para a política nacional de esporte e lazer no Brasil

Sobre os Autores
Apresentação

A partir da Constituição de 1988, o lazer passou a ser considerado direito social de todos
os cidadãos brasileiros. Sendo assegurado, também, praticamente em todas as constituições
estaduais e em todas as leis orgânicas de municípios de nosso país.
No entanto, a política de hierarquização de necessidades, a pouca difusão de pesquisas
e de sistematização (advindas de discussões e experiências concretas vivenciadas em
políticas públicas inovadoras, diferentes daquelas do evento por si só) e os poucos recursos
disponíveis, fazem com que esta área ainda careça de ações que abranjam, de forma
efetiva, os municípios, os estados e a esfera federal.
Qual seria o lugar do direito ao lazer nos órgãos de governo? A confusão é gritante, com
secretarias e departamentos de cultura, esporte, turismo, arte... Quais as estratégias mais
adequadas para a formulação de políticas? Que itens devem compô-las?
A apresentação de novos estudos na área, em Congressos, como o ENAREL – Encontro
Nacional de Recreação e Lazer, abrigando em suas edições o Encontro de Gestores Públicos
de Esporte e Lazer e; o Seminário Nacional de Políticas Públicas em Esporte e Lazer; tem
ganhado força em eventos mais amplos, como o Congresso Brasileiro de Ciências do
Esporte, – com o desenvolvimento de dois grupos de trabalho temático, um em Recreação e
Lazer e outro em Políticas Públicas em Educação Física, Esportes e Lazer, – entre outros
eventos significativos nas áreas de Educação Física, Turismo e Ciências Humanas etc. O que
vem mudando, pouco a pouco, o panorama quanto à pesquisa.
O número de grupos de pesquisa sobre a temática, por sua vez, cresceu muito, nos
últimos anos, principalmente no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. A organização
dos gestores públicos na ASMEL – Associação de Gestores Municipais de Esporte e Lazer [1]
e no Fórum Nacional de Secretários e Gestores Estaduais de Esporte e Lazer [2] contribuiu,
de forma semelhante, para a troca de experiências e organização do setor.
Uma importante contribuição foi dada à área pelo Governo Federal, mediante o
Ministério do Esporte [3], ao se realizar a I Conferência Nacional do Esporte, em 2004, com
a temática “Esporte, Lazer e Desenvolvimento Humano”. A I Conferência indicou, ainda, a
necessidade de criação do Sistema Nacional de Esporte e Lazer tema da II Conferência –
realizada em 2006 – e discutida em quatro eixos:
1. Estrutura: organização, agentes e competências;
2. Recursos humanos e formação;
3. Gestão e controle social;
4. Financiamento.

Alguns setores ligados ao Esporte, presentes na II Conferência Nacional, defenderam a


retirada do termo ‘lazer’ da nomenclatura do sistema. Tal atitude, por um lado, mostra
avanço no âmbito do lazer e o seu caráter transversal em termos de políticas públicas, mas
por outro, ignora que – mesmo com as políticas governamentais formuladas de forma
departamentalizada – dissociar o lazer do esporte, agora, diferentemente do que
estabelecem a Constituição Federal, as estaduais e as leis orgânicas dos municípios, seria
retirá-lo da esfera das políticas públicas.
Precisa-se, ainda, que muito seja feito antes que o lazer seja vivido plenamente como
um direito social pela nossa população, para que o Sistema Nacional de Esporte e Lazer se
consolide e funcione, ou, até mesmo, para que o lazer se torne um programa de governo,
ligado a uma Secretaria Especial, por exemplo.
Este livro surge para contribuir na reflexão da complexa tarefa de formulação de
políticas públicas setoriais na área de lazer. Além disso, procura oferecer material para
discussão aos muitos cursos de Educação Física, Turismo, Administração e outros, que vêm
adotando, em seus currículos, a disciplina Políticas Públicas.
Esta publicação, de certa forma, substitui dois outros livros organizados por nós:
Políticas públicas setoriais de lazer: o papel das prefeituras [4] e; Lazer & esporte: políticas
públicas [5], ambos esgotados. Tais obras continham textos de importância histórica, uma
vez que relatavam e refletiam sobre experiências inovadoras no campo do esporte e do
lazer, mas cujo valor já foi incorporado à discussão que se desenvolve na área. Retiramos
desses livros alguns textos mais gerais e, aqui, publicamos-nos novamente, pela demanda
que vínhamos sentindo e por julgarmos que ainda podem colaborar para os objetivos desta
coletânea. São eles: Subsídios para uma política de lazer: o papel da administração
municipal; Pressupostos de ação comunitária: estruturas e canais de participação; Políticas
de Lazer: mercadores ou educadores? Esses textos tratam de formas de viabilizar a
construção de políticas do lazer, competências, formação e desenvolvimento de pessoal e
estratégias de atuação.
Os demais textos, entretanto, são todos inéditos e abordam aspectos mais abrangentes
da situação brasileira na área, de uma perspectiva histórica, e componentes específicos da
Política Pública de Lazer, embasados em pesquisa e reflexão.
Finalizando, cabe destacar, como já feito várias vezes nos textos integrantes do livro,
que o lazer é, aqui, visto como política setorial, em sua especificidade, sem perder de vista
sua inter-relação com os demais componentes do setor cultural e da vida social como um
todo.
O organizador

Notas
1. asmel@uol.com.br

2. http://www.sejel.sp.gov.br/sejel/ContentBuilder.do?open=subforum
secretarios&pagina=estatutosecretario. Acesso em 15 maio 2006.

3. http://portal.esporte.gov.br/. Acesso em 15 maio 2006.

4. MARCELLINO, N. C. (Org.). Políticas públicas setoriais de lazer: o papel das prefeituras.


Campinas, Autores Associados, 1996.

5. MARCELLINO, N. C. (Org.) Lazer & esporte: políticas públicas. Campinas, Autores


Associados, 2001.
CAPÍTULO 1
Subsídios para uma Política de Lazer:
o papel da administração municipal [1]
Nelson Carvalho Marcellino

A questão do lazer, quando enfocada, quase sempre se restringe a um dos seus


conteúdos culturais (Dumazedier, 1980a), como, por exemplo, o esporte, o turismo e as
artes, não contemplando, assim, as discussões nas diferentes esferas do fazer cultural.
Dessa forma, quando se aborda a questão do lazer, principalmente relacionada à
formulação de políticas de atuação, um primeiro aspecto a se considerar é, exatamente, a
abrangência do lazer e seu entendimento parcial e limitado, que pode ser destacado na
ação de órgãos públicos, na pesquisa, na legislação etc. (Marcellino, 1987).
Nunca é demais repetir que a incorporação do termo “lazer” ao vocabulário comum é
relativamente recente, em termos históricos, e marcada por diferenças acentuadas quanto
ao seu significado. O que se verifica, com maior frequência, é a simples associação com
experiências individuais vivenciadas que, muitas vezes, implica a redução do conceito a
visões parciais, restritas aos conteúdos de determinadas atividades. Essa tendência restrita,
que pode ser constatada na linguagem popular pela simples observação assistemática, é
alimentada pelos meios de comunicação de massas na veiculação da programação de
atividades, via de regra ligadas ao esporte e à arte e, só mais recentemente, distinguindo o
lazer, quase sempre associado a manifestações de massa, ao ar livre, com conteúdo
recreativo. Nem mesmo na denominação dada pelos órgãos públicos, a definição do campo
abrangido pelo lazer fica evidenciada. A partir da década de 1970, no entanto, incorporou-
se o tema para denominar repartições de prestação de serviços públicos, geralmente
associando-o restritivamente a setores específicos. Não são poucas, por sua vez, nos
âmbitos federal, estadual e principalmente municipal, as Secretarias e Divisões de Esportes
de Lazer, Recreação e Lazer, Cultura e Lazer, Turismo e Lazer (Marcellino, 1987).
Esse caráter parcial e limitado que se observa quanto ao conteúdo, dificulta o
estabelecimento de ações específicas, e é verificado também quando se procura detectar os
valores associados ao lazer. No senso comum, os mais relacionados são o descanso e o
divertimento, deixando de lado os de desenvolvimento pessoal e social, que podem ser
propiciados pelo lazer.
Um segundo aspecto a se abordar é a necessidade de "procurar o entendimento da
totalidade das relações sociais, nas quais o trabalho ocupa posição fundamental, mas sem
excluir uma compreensão articulada com as dimensões do não-trabalho" (Oliveira, 1986, p.
35-37). E, se essa abordagem for efetuada não com base no pensamento liberal, mas em
uma economia política do tempo disponível, é preciso se questionar as afirmações correntes
de que o brasileiro trabalha pouco.
Na Constituição de 1988, o lazer consta do Título II, Capítulo II, Artigo 6º, como um dos
direitos sociais: o termo aparece em outras ocasiões, mas só é tratado, quanto à formulação
de ações, no Título VIII, Capítulo III, Seção III, Do Desporto, no Artigo 217, no 3º e último
parágrafo do item IV: "O Poder Público incentivaráo lazer como forma de promoção social.
Nota-se, ainda, a vinculação restritiva a um único conteúdo (esporte), conforme abordado
no aspecto já analisado.
Tudo isso contribui para se dificultar o entendimento do lazer como objeto de estudo,
campo de atuação profissional e esfera de atuação do poder público.
Pretendendo-se que o lazer não se constitua apenas na oportunidade de recuperação da
força de trabalho ou que possa ser caracterizado como instância de consumo alienado ou
“válvula de escape”, que ajude a manter o quadro social injusto, o âmbito municipal é
apenas um dos que deve ser considerado, na esfera da administração pública: é preciso que
seja levado em conta, mas é fundamental que diferencie sua atuação das demais iniciativas,
desde as espontâneas até as da chamada “indústria cultural”.
Aqui, a administração pública é identificada, essencialmente, como uma função, como
atividade fim (condicionada a um objetivo) e como organização, isto é, como uma atividade
voltada para assegurar a distribuição e a coordenação do trabalho dentro de um escopo
coletivo (Bobbio, 1986, p. 11).
Um terceiro e último aspecto a se considerar é a relevância da problemática do lazer nos
grandes centros urbanos e sua ressonância (Magnani, 1984); merecendo destaque a
questão do espaço para o lazer a ser considerado numa política urbana.
É interessante observar que as pesquisas de opinião realizadas pelos veículos de
comunicação, e não destinadas a enfocar diretamente o lazer como tema principal, acabam
revelando, de forma indireta, a importância que ele representa na vida das pessoas das
grandes cidades (Marcellino, 1990).
Mas a ressonância social do lazer é diferente da dos chamados “temas sérios”. Magnani
somente pôde constatar a importância do lazer na cidade e, mais propriamente, na
periferia, baseando sua pesquisa na observação: dessa forma, convivendo com a população
no seu cotidiano, verificou-se uma diferença acentuada no peso dado à questão,
comparativamente aos relatórios de pesquisa baseados em instrumentos formais do tipo
questionário, por exemplo (Magnani, 1984; Marcellino, 1990).
Apesar de tudo, e embora não de modo exclusivo, é no tempo de lazer que são
vivenciadas situações geradoras de valores que poderiam ser chamadas de
“revolucionárias”. São reivindicadas formas de relacionamento social mais espontâneas, a
afirmação da individualidade, a convivência com, ao invés do domínio sobre, a natureza.
Falar no caráter “revolucionário” do lazer implica sublinhar mudanças ou questionamento
de valores que vêm ocorrendo pelo “revolver” de uma estrutura temporal e espacialmente
coercitiva no cotidiano das pessoas. Gente comum, bem distante do que se poderia
caracterizar como classe ociosa, que trabalha, luta para trabalhar, mas que também faz
questão de preservar a alegria, na maioria das vezes impossível no ambiente de trabalho,
pela rotina, pela exploração etc.
O lazer do trabalhador – as pequenas parcelas de alegria permitidas aos que trabalham –
não pode ser entendido, inspirado no modelo da Antiguidade, como finalidade da existência
de privilegiados apoiados na exploração da maioria. Ao contrário, é fruto da sociedade
urbano-industrial, e dialeticamente incide sobre ela, como gerador de novos valores que a
contestam (Marcellino, 1990).
É uma questão de cidadania, de participação cultural. Entende-se por participação
cultural a atividade não conformista, mas crítica e criativa, de sujeitos historicamente
situados. Entende-se, ainda, a participação cultural como uma das bases para a renovação
democrática e humanista da cultura e da sociedade, tendo em vista não só a instauração de
uma nova ordem social, mas de uma nova cultura. Isso não significa o isolamento do plano
cultural, do social e do econômico mas, tão somente, que não cabe justificar o imobilismo
pela existência de uma ordem social adversa.
Tudo isso amplia ainda mais o leque das discussões do papel da administração pública,
com relação à formulação de políticas de lazer, e que vem se manifestando, na grande
maioria de nossas cidades, pela ausência de explicitação, ou falta de identidade, sendo
substituídas pelos “Calendários de eventos” ou “pacotes baixados dos gabinetes técnicos”.
Assim, propõe-se que a discussão passe:
1. Pelo entendimento amplo do lazer, em termos de conteúdo sociocultural; pela
consideração de seu duplo aspecto educativo, levando em conta, além de suas
possibilidades de descanso e divertimento, também as de desenvolvimento pessoal
e social e as de instrumento de mobilização e participação cultural; pelas barreiras
socioculturais verificadas para seu acesso;
2. Por outro lado, pelos limites da Administração Pública Gover​namental Municipal e
pela necessidade de fixação de prioridades, a partir da análise de situação.

Levemos em conta cada um desses aspectos levantados, separadamente:


Considerar o entendimento amplo em termos de conteúdo significa levar em conta a
abrangência dos diferentes interesses (analisados por Dumazedier, 1980a), todos inter-
relacionados, o que requer, no âmbito público governamental municipal, observar as
interfaces com os demais departamentos da própria Secretaria ou Órgão em que esteja
centralizada a ação relativa à política de lazer.
Considerar o seu duplo aspecto educativo – objeto e instrumento de educação
(Marcellino, 1987) – significa entender o lazer para além do descanso e do divertimento
(fundamentais) nas suas possibilidades de desenvolvimento pessoal e social, o que requer,
no âmbito público governamental municipal, observar a interface com as políticas públicas
de Educação, Saúde, Promoção Social etc.
Considerar a possibilidade do lazer enquanto instrumento de mobilização e participação
cultural, requer:
1. De um lado, integrar esforços de grupos populares da cidade, atuando a partir de
suas manifestações culturais, considerando os níveis de participação e procurando,
através de uma política de animação sociocultural, superar esses níveis, de
conformistas para críticos e criativos, sem descaracterizar a participação;
2. De outro lado, a atuação conjunta, com grupos e organizações ligados ao setor
cultural e ao setor público não governamental. Considerar as barreiras socioculturais
verificadas.

Como sabemos, tendo como pano de fundo a questão econômica, existe uma série de
barreiras de gênero, faixa etária, espaços e equipamentos, estereótipos etc., portanto, intra
e inter-classes sociais, que limitam o lazer qualitativa e quantitativamente (Marcellino,
1983), o que requer, no âmbito municipal, que se enfatize a atuação, objetivando minimizar
seus efeitos, priorizando ações que facilitem o acesso às camadas da população que,
normalmente, não são atendidas;
Considerar os limites da Administração Pública Governamental Municipal significa levar
em conta que a questão do lazer só pode ser entendida na totalidade da ação humana,
abrangendo questões que transcendem os executivos municipais, como jornada de
trabalho, ocupação do solo urbano, por exemplo, o que requer, no âmbito municipal,
incentivar e participar das discussões e ações que envolvam a questão de modo amplo,
junto aos órgãos de classe, ao poder legislativo, ao setor público não governamental e
outros setores constituídos da sociedade civil. Se considerarmos o lazer de uma perspectiva
ampla, como cultura vivenciada no tempo disponível, com determinadas características
próprias (Marcellino, 1987), as diretrizes gerais de uma política municipal de lazer não
podem se restringir apenas a uma política de atividades, mas devem contemplar, também,
questões relativas à formação e desenvolvimento de quadros para atuação, aos espaços e
equipamentos e critérios de reordenação do tempo (Requixa, 1980; Carvalho, s/d.);
Finalmente, no âmbito público governamental municipal existe a necessidade de fixação
de prioridades, baseadas na análise de situação, confrontadas com os valores que orientam
a Política Geral da Administração, o que envolve a resposta a algumas questões, dentre elas:
Há equipamentos específicos subutilizados?
Como os equipamentos estão distribuídos?
Como são gerenciados?
Há possibilidade de adaptação e utilização de equipamentos não específicos?
Existe uma estrutura de animação capacitada e atuante?

É importante que o assunto seja examinado a partir da problemática da política pública


em países da periferia do capitalismo, vista em seu “movimento pendular” (Freitag, 1987).
Para Freitag, a problemática da política pública em países do capitalismo, deve ser vista
"em seu movimento pendular entre a intenção original e básica de disciplinar as
mentes, treinar a força de trabalho e reproduzir as estruturas, de um lado, e a sua
capacidade de dinamizar os potenciais emancipatórios implícitos na realidade social,
de outro" (Freitag, 1987, p. 33).
Assim, se por um lado é preciso considerar que a questão do lazer não pode ser
enfrentada de modo isolado da questão sociocultural na sua totalidade, por outro, é preciso
considerar as possibilidades de ações específicas na área, que considerem o lazer na
totalidade das relações sociais e os limites e possibilidades de políticas públicas setoriais.

Notas
1. Publicado em Marcellino, N. C. (Org.). Políticas públicas setoriais de lazer: o papel das
prefeituras. Campinas: Autores Associados, 1996. (Esgotado)

Referências
BOBBIO, B. Dicionário de Política. Brasília: UNB, 1986.

CARVALHO, A. M. Cultura física e desenvolvimento. Lisboa: Compendium, s/d.


DUMAZEDIER, J. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: SESC, 1980a.
______. Planejamento de lazer no Brasil – a teoria sociológica da decisão. São Paulo,
SESC, 1980b.
FREITAG, B. Política educacional e indústria cultural. São Paulo: Cortez, 1987.

MAGNANI, J. G. C. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984.


MARCELLINO, N. C. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1983.

______. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1987.


______. Pedagogia da animação. Campinas: Papirus, 1990.
OLIVEIRA, P. S. Tempo livre, trabalho e lutas sociais. Reflexão, Campinas, v. 35, 1986, p. 7-
14.

REQUIXA, R. Sugestões de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: SESC,
1980.
CAPÍTULO 2
Pressupostos de Ação Comunitária:
estruturas e canais de participação [1]
Nelson Carvalho Marcellino

A ação comunitária pode ser considerada uma alternativa operacional dentro de


políticas de ação social, de modo geral, e em especial e de forma privilegiada no campo do
lazer, quando a organização que formula a política não quer ver sua ação confundida ou
reduzida à chamada “indústria cultural”, devendo, portanto, revesti-la de características
próprias.
Essa alternativa, em qualquer área do social em que seja desenvolvida, leva em conta a
necessidade do conhecimento da situação, ou seja, da realidade, interesses e aspirações de
determinada clientela. Além de sua participação efetiva no planejamento, organização e
avaliação das ações e a integração com órgãos e instituições locais, quer em busca de apoio
político ou de recursos para manutenção e/ou ampliação da ação.
Tudo isso é fundamental quando se atua com o lazer, visto como componente da cultura
historicamente situada, atendendo a valores não apenas de descanso e de divertimento,
mas também de desenvolvimento pessoal e social, o que significa levar em conta seu duplo
aspecto educativo; assim, a alternativa operacional caracteriza-se como ação
socioeducativa.
Situa-se, ainda, como uma tentativa de minimizar os riscos da atuação de especialistas,
como o direcionamento de programações, o oferecimento dos chamados “pacotes de
lazer”, sua ação como “censores” e a tendência de valorização de suas preferências.
Outros riscos que podem ser minimizados pela Ação Comunitária são aqueles
decorrentes da ação institucionalizada. Nesse caso, disfarçado na ideia de participação,
pode estar camuflado o cumprimento dos objetivos não dos grupos envolvidos, mas tão
somente da instituição orientadora da ação. Não são apresentadas alternativas e a
“participação” se dá pela persuasão, em atividades ou projetos de interesse institucional.
A ação comunitária é entendida, assim, operacionalmente, como
"um trabalho sócio-educativo que consiste numa intervenção deliberada em
determinada comunidade, através de atividades programadas em conjunto com
pessoas e instituições locais, objetivando despertar e ampliar sua consciência para os
problemas da comunidade, sensibilizá-las para a mobilização e coordenação de
lideranças e predispô-las para a ação que vise o encaminhamento de soluções
daqueles problemas, ou a tentativa de realização de aspirações relacionadas com a
comunidade como um todo" (Requixa, 1973).
Podemos distinguir, nesse processo de intervenção, um plano geral de ação composto
por três fases interligadas, consideradas em separado apenas para efeito de análise.
Primeira fase
É a da deflagração propriamente dita, caracterizando-se pela ação sensibilizadora,
levantamento de necessidades e possibilidades de intervenção, definição de objetivos
condutores da ação, seleção de instrumentos de intervenção e realização de atividades-
impacto. A ação dos técnicos está presente com muita intensidade no planejamento, na
organização e na execução, buscando estimular e coordenar as iniciativas detectadas na
análise da situação.

Segunda fase
É marcada pela avaliação dos resultados da ação, geralmente ocorridos no que pode ser
denominado de período de carência. Aqui, a intensidade da ação dos técnicos já é menor,
mas continua presente através, de contatos, buscando a efetivação de resultados latentes.
Podem ser considerados dois grupos de resultados:
Respostas – que estão intrinsecamente ligadas aos objetivos da ação, previstas no
projeto e, geralmente, necessitando de acompanhamento técnico para a
continuidade do processo;
Reflexos – que independem de acompanhamento, uma vez que são assumidos por
grupos ou pessoas, ou podem nem mesmo estar previstos no planejamento da ação.

Terceira fase
Caracteriza-se como continuidade da ação, com a retomada dos resultados dependentes
de acompanhamento, num período de sedimentação, durante o qual é exigido
acompanhamento direto, necessário à consolidação do processo, tendo em vista o alcance
do estágio de autonomia, em que o acompanhamento será levado a efeito a título de
reciclagem.
Observa-se, portanto, que o acompanhamento técnico está presente em todas as fases
do processo, variando em intensidade.

Notas
1. Texto publicado em Marcellino, N. C. (Org.). Políticas públicas setoriais de lazer: o papel
das prefeituras. Campinas: Autores Associados, 1996. (Esgotado)

Referência
REQUIXA, R. Lazer e ação comunitária. São Paulo: SESC, 1973.
CAPÍTULO 3
Políticas de Lazer:
mercadores ou educadores? Os cínicos bobos
da corte [1]
Nelson Carvalho Marcellino

Lazer: necessidade e manifestação humana


A necessidade do lazer, ou melhor, dos valores do lazer, sempre esteve presente na vida
do ser humano, ainda que varie de significado de acordo com os momentos históricos.
Desde o advento do modo de produção atual, o lazer se apresenta com significados
próprios. O que verificamos não é o surgimento de uma nova dimensão, mas a exacerbação
de duas correntes antagônicas: uma que enxerga o lazer cada vez mais como mercadoria e
como mero entretenimento a ser consumido, ajudando a suportar, a conviver com uma
sociedade injusta e de insatisfação crescente; outra que o vê como gerado historicamente
na nossa sociedade e que dela emerge, podendo na sua vivência gerar também, no plano
cultural, valores questionadores da própria ordem estabelecida.
Os fatores que influenciam a exacerbação dessas tendências são, de um lado, o
crescimento das possibilidades de consumo de bens e serviços e, de outro, a organização da
sociedade civil (terceiro setor) e do poder público (com o surgimento de administrações
populares e progressistas), que passam a ver a necessidade de assegurar o direito
constitucional ao lazer e suas possibilidades de atuação no plano cultural.
Esses vícios assistencialistas têm, digamos, raízes históricas. Quando começaram, as
“políticas embrionárias de lazer”, vinham dos gabinetes das primeiras damas, ainda na
época da Ditadura Militar, quase sempre de cunho assistencialista, e esse ranço permanece
até os dias atuais, em menor ou maior grau.
Lazer e promoção social, lazer e violência, lazer e segurança, lazer e saúde, lazer e bem-
estar, lazer e etc. A colocação da palavra “lazer” junto a outras, ligadas pelo conectivo “e”,
entre outras ideias, dá a impressão de coisas diferenciadas e que, quando agrupadas,
podem levar à superação de um estado considerado indesejável.
Primeiro, é preciso lembrar que, embora tendo suas especificidades, tais palavras não
designam coisas à parte, separadas, que se bastam a si próprias. Pelo contrário, fazem parte
de um todo social tecido com fibras umas das outras. Segundo, mas não menos importante,
nos levam à consideração de que o lazer só é justificado, infelizmente, em nossa sociedade,
se agregado a um outro conceito que sirva para amenizá-lo, suavizá-lo, ou, mesmo,
“resolvê-lo”.
Já se fala até em “ócio produtivo”, como se o ócio precisasse de adjetivos, inclusive, ser
produtivo. E como se o adjetivo “produtivo”, pelo menos como é colocado nos últimos
tempos, não tirasse a sua característica de ócio. Já se começa discordando da ideia perversa
de “ócio criativo”. Criativo para quem? Para a produção voltada para o lucro de quem o
“concede”? Não é de estranhar o sucesso de ideias que pregam o “ócio criativo para a
produção”, principalmente junto a parte de alguns setores do empresariado, numa
sociedade de negócio, ou de negação do ócio, nas possibilidades de encontro das pessoas
consigo mesmas, de contemplação e de opção pela atividade ou pela não atividade, em seu
tempo disponível? [2]
Chega de “lazer e”. Falemos de lazer e pronto. A felicidade, o prazer, não precisam de
justificativas. Bastam-se a si mesmos. A produtividade, o caráter educativo, não são
justificativas para o investimento na área. São consequências. E não buscas a priori. Buscá-
las a priori significa matar suas possibilidades.
O caráter parcial e restrito de como se vê a questão do lazer também é um problema
muito grande. Nunca é demais lembrar que a palavra ‘cultura’, com o significado restrito de
artes e espetáculos, abarca uma série de manifestações que estariam incluídas no rol do
lazer. Confunde-se, mais uma vez, trabalho e lazer. Para o escultor, sua atividade é trabalho,
para quem frequenta uma mostra é lazer. E assim, poderíamos falar do ator, do pintor etc.,
se nos focássemos no terreno da arte. Há uma produção cultural profissional, que é
trabalho, e uma produção “amadora”, assistência à informação, que se caracteriza como
lazer. Dessa forma, o público faz lazer sem saber que o está fazendo, o profissional trabalha
com lazer, muitas vezes não sabendo disso, ou, tendo vergonha de dizer etc.
Pensemos em um exemplo: o cinema. É cultura, certo? Nunca vai deixar de sê-lo
totalmente. Mas uma parte dele, a produção cultural, deveria estar atrelada a uma política
cultural. O cinema assistir a um filme, faz parte do lazer das pessoas e, portanto, deveria
estar incluído dentro de uma política de lazer. Construção e localização de salas,
programação etc. são elementos de políticas de lazer, uma vez que o trabalho cultural é a
realização do filme. O diretor de um cineclube, portanto, é um animador sociocultural, um
trabalhador da área do lazer.
Mas a questão da abrangência, como já manifestada em outros escritos, é ainda mais
grave. O próprio conceito de cultura é restrito, como já dissemos, quase sempre a artes e
espetáculos. Artesanato, esporte, turismo etc. normalmente não são denominados cultura
e, efetivamente, o são. Sendo, ainda, por conseguinte, lazer. Podemos dizer que todo lazer é
cultura, embora nem toda cultura seja lazer. O trabalho do artista, do artesão, do atleta,
está no terreno da produção cultural profissional e, portanto, é classificado como trabalho,
na nossa sociedade. Mas a difusão desse bem está na esfera do lazer das pessoas e deveria
estar incluída como parte de uma política de lazer.
Isso contribui para a divulgação equivocada das atividades, nos meios de comunicação, e
para o mau entendimento na pesquisa, na universidade e na formação do profissional em
cursos médios e superiores nos quais, geralmente, Educação Física e Turismo ditam as
regras, áreas com certa vocação para o “tarefismo” com relação ao lazer e, de modo mais
direto, no nosso caso, na denominação de órgãos públicos. Aí, o lazer ora é serviço, ora
departamento, ora setor, ora secretaria etc., dividindo espaço, ou melhor, sobrepondo
espaço, o que é muito mais grave, ora com Educação, Cultura, Turismo, Esporte, Recreação
etc.
Esses, contudo, não são os únicos problemas. O entendimento de Políticas Públicas, de
modo geral é bastante equivocado, principalmente quando se analisa a questão de políticas
setoriais e, mais ainda, quando essa política setorial é de lazer. A tendência hegemônica é
não a consideração setorial, mas o isolamento, puro e simples, não o entendendo na
totalidade das relações sociais.
De um lado, temos os defensores da situação, que pregam a total não interferência do
Estado, colocando o absurdo de políticas setoriais em área e, devendo-se levar em conta,
fundamentalmente, as atitudes individuais das pessoas, em âmbito íntimo, como às
questões do lazer. Pergunta-se como o Estado, que já interfere tanto nas nossas vidas, pode
interferir também no tempo livre de nossas famílias? Talvez perguntas “ingênuas” como
essa sejam um dos fatores para que os investimentos em “cultura” no nosso país estejam
obedecendo às leis do mercado, mesmo quando se beneficiam das Leis de Incentivo, quase
sempre restritas a grandes nomes, não permitindo o “aparecimento” de gente nova, nem de
ideias novas. “Mecenas”, subsidiados pelo Estado, que acaba “lavando as mãos” [3].
E, se voltarmos para o exemplo do cinema, percebemos que temos, ainda, muito a
percorrer. As últimas pesquisas afirmam que, nos Estados Unidos, há um cinema para cada
5000 habitantes, com noventa por cento de filmes nacionais; na França, um para cada 30
mil, com trinta por cento de filmes nacionais; e, no Brasil, um para cada 120 mil habitantes,
com sete por cento de filmes nacionais. Isso significa a nossa realidade, a nossa gente, a
nossa terra, os nossos problemas, muito longe da “telona”.
Ora, o lazer não é um oásis a que todos têm acesso. Pelo contrário, conforme já
abordado em outros escritos (Marcellino, 2002), existem barreiras inter e intraclasses
sociais formando um todo inibidor que dificulta o acesso ao lazer, não só quantitativas, mas
sobretudo qualitativamente. Deixar o âmbito tão íntimo das pessoas falar, por si só, sem
interferência de políticas públicas, corresponderia a deixar uma grande parcela da
população calada no que se refere ao lazer, ou, pelo menos, não colocar em prática o seu
desejo, a não ser que tivessem como pagar por isso, no cada vez mais rentável e sofisticado
mercado do entretenimento.
Entretenimento. Esse deveria ser um dos componentes do lazer, ligado ao divertimento
e compondo com o descanso e o desenvolvimento pessoal e social os três pilares de
sustentação do lazer, tal como proposto por Dumazedier (s/d.). O que se percebe, hoje, é
que ganhou vida própria, independente, uma clara alusão ao “lazer mercadoria”. Não
atividades populares ligadas à alma da população, mas “popularescas”, no sentido de
nivelamento “por baixo”, com o único objetivo de “desviar a atenção de”, e esse “de”, quase
sempre, pode ser entendido como a triste realidade pessoal e social dos seres humanos. É a
distração, significando alheamento e não, como propõe o educador Rubem Alves (1986),
“atração por um outro mundo”. Um mundo diferente, de sonho e invenção, de uma
sociedade mais justa, de um ser mais humano.
De outro lado, estão os que defendem a participação do Estado, colocando uma
hierarquização de necessidades ou procurando atender às demandas verbalizadas das
classes populares e há, ainda, os que são adeptos do entendimento de que as Políticas de
Lazer devam ser diretrizes para que o Estado atenda apenas às demandas de uma parcela da
população que se encontra alijada do consumo de “bens culturais”.
Entendemos que a cidade deve ser administrada para todos. Ainda que se acredite em
uma hierarquia de necessidades, que coloca a “felicidade” lá em baixo, e “enche” de rubor
determinado tipo de senhorinhas caridosas que ficam escandalizadas com antenas de TV em
favelas ou, “chefes de família” gastando dinheiro com ingressos de futebol aos domingos, se
existisse, a hierarquia variaria muito de segmento para segmento social e de pessoa para
pessoa.
Recentemente, os jornais publicaram em manchete Dinheiro é mais valorizado que
tempo livre [4]. O corpo da notícia, que comentava uma pesquisa do instituto americano
Roper Starch Worldwide, feita em 30 países, abordava a ideia de que a grande maioria das
pessoas prefere o dinheiro. Especificamente quanto ao Brasil, um percentual de 62%
prefere dinheiro, enquanto 41%, prefere tempo livre. Discordo da manchete do jornal. Num
país com as dificuldades de sobrevivência da população, com forte mentalidade de
hierarquização de necessidades, com um preconceito forte pelo ócio etc., o percentual de
preferência pelo tempo livre é bastante elevado, uma vez que se refere à pergunta “Se
pudesse escolher, você gostaria de ter mais tempo ou mais dinheiro do que tem?”
O lazer é valorizado pela população, ainda que isso não seja verbalizado por uma série
de motivos. Tem importância na vida e na qualidade de vida das pessoas. Se perguntarmos
diretamente às pessoas qual a importância do lazer nas suas vidas, obter-se-á um sétimo a
décimo lugar numa escala de prioridade. Isso se deve à pouca “ressonância social do lazer”,
ainda não visto como um direito social, e também à hierarquia de necessidades. Mas, se
convivermos diretamente com as pessoas, veremos a importância do lazer como busca de
significado para as suas vidas. Os exemplos estão por aí. É só olhar. Mas as pessoas têm
vergonha de reivindicar lazer, porque ele ainda é considerado “coisa de vagabundo”, e só
conseguem verbalizar a sua necessidade como justificativa para temas “sérios”.
Além disso, muitas pessoas “fazem lazer” sem saber que o estão fazendo, porque, via de
regra, o que é chamado de lazer é, para a população, é o que é veiculado pela mídia como
lazer.
Muito se fala da péssima qualidade de vida das grandes metrópoles. A mudança na
percepção da importância do lazer na vida das pessoas poderia, sem dúvidas, trazer
mudanças nesse aspecto. Seria uma mudança de valores. Porém, ela não acontece per si. É
preciso que se tenha condições objetivas.
Aliás, as autoridades vêm alardeando que o mapa da violência urbana sugere que as
áreas com maior índice de criminalidade são aquelas nas quais a “juventude não tem
ocupação de lazer sadio”. E dizem: “É tão barato construir uma quadra de esportes etc.”
Que venham as quadras de esportes e outros equipamentos, com a necessária verba para
manutenção e animação. Sim, porque disso não se fala. Saibamos, todavia, que a violência
urbana é algo muito mais profundo e complexo do que “falta de lazer”, pura e
simplesmente.
Falar numa política de lazer significa falar não só de uma política de atividades, as quais,
na maioria das vezes, acabam por se constituir em eventos isolados, não em política de
animação como processo. Significa falar em redução de jornada de trabalho – sem redução
de salários – e, portanto, numa política de reordenação do tempo, numa política de
transporte urbano etc.; significa, também, falar numa política de reordenação do solo
urbano, com os espaços e equipamentos de lazer, o que inclui a moradia e seu entorno; e,
finalmente, numa política de formação de quadros, profissionais e voluntários, para
trabalharem de forma eficiente e atualizada. Resumindo: o lazer tem sua especificidade,
inclusive enquanto política pública, mas não pode ser tratado de forma isolada de outras
questões sociais.
Necessidade de políticas municipais
Tudo o que já dissemos aponta para a necessidade de o poder público municipal
estabelecer – em conjunto com os executivos estaduais e federais – políticas setoriais de
lazer, valendo-se da ampla discussão com setores representativos da população, convivendo
com e valorizando iniciativas espontâneas, privadas e de setores públicos não
governamentais. Conviver e valorizar não significam institucionalizar, o que, na maioria das
vezes, representa a assinatura de seus atestados de óbito.
O entendimento amplo de lazer – em termos de conteúdos culturais e da ação de
difusão e participação nesses conteúdos – requer a necessidade de interdisciplinaridade, ou,
pelo menos, a de pluridisciplinaridade caminhando em busca da interdisciplinaridade, nas
equipes que desenvolvem ações no setor, em razão de suas interfaces com o esporte, o
turismo, as manifestações artísticas etc.
Assim, é necessário um trabalho integrado intrassecretarias (depar​tamentos, serviços),
mas também interssecretarias, uma vez que o lazer está ligado à educação, à saúde, à
habitação, ao transporte e ao serviço social.
Para que o trabalho seja levado a efeito é necessário o funcionamento do que
Dumazedier chama de estrutura de animação, de forma piramidal, incluindo, no seu vértice,
animadores de competência geral, profissionais que dominem a área e suas interfaces; o
meio dessa estrutura seria formada por animadores profissionais de competência específica,
dominando, pelo menos, um dos seis conteúdos culturais do lazer. Mas, se desejamos que o
trabalho a ser desenvolvido respeite o conceito do lazer e conjugue difusão e participação
culturais é necessário que, além do trabalho profissional, sejam preparados/capacitados
animadores voluntários, que formariam a base da pirâmide.
Quando se fala nos animadores voluntários, o profissional mal-informado e o dirigente
mal-intencionado pensam, ou, em concorrência profissional, ou em mão de obra gratuita.
Não é isso o que entendemos, mas sim, que o trabalho voluntário é participação efetiva no
planejamento, execução e avaliação dos programas e dos equipamentos de lazer da cidade,
garantindo o estabelecimento das ações a partir das aspirações da comunidade.
Mas só isso ainda não basta.
Há a necessidade de se enxergar o lazer para além de uma política de atividades, o que
remete à questão urbana do uso do solo, a construção de equipamentos, o
reaproveitamento de equipamentos, a otimização dos já existentes, e que demanda um
trabalho conjunto com as secretarias de obras, planejamento, parques e jardins etc.
Envolve, também, discussões sobre a reordenação do tempo na cidade e a necessidade
de se minimizar as barreiras que contribuem para o “todo inibidor” da prática do lazer,
sobretudo, as existentes intraclasses sociais, como faixa etária, sexo, estereótipos, violência.
No entanto, as existentes interclasses sociais devem ser consideradas, priorizando o
atendimento à classe trabalhadora.
E isso vai desde coisas extremamente simples – como o funcionamento dos serviços de
lazer, aos fins de semana, feriados, à noite, ou seja, quando a clientela tem tempo
disponível, e não apenas quando o profissional tem tempo para o atendimento entre um e
outro emprego, fazendo bicos – até questões que transcendem o executivo municipal, como
jornada de trabalho, uso do solo urbano etc., mas que o executivo municipal pode e deve
estar oportunizando: discussões com as câmaras, sindicatos, entidades de classe etc.
Quando tais questões são tratadas, e raramente isso ocorre, o são da ótica
“funcionalista” a que nos referíamos. Reordenação do tempo restringindo-se à flexibilização
de horários não é a única alternativa; redução de jornada com redução de salários (como se
fosse possível reduzir ainda mais os salários) ou mesmo plano de redução de jornada de
trabalho sem medidas efetivas porque é um problema econômico e não de opção, de
proibição de horas-extras, tão ou mais violentas no impacto no lazer dos trabalhadores e
mesmo no desemprego.
Infelizmente, de modo geral, a importância que o lazer vem ganhando nas últimas
décadas, como problema social e como objeto de reivindicação, ligada à qualidade de vida
nas cidades, não vem sendo acompanhada pela ação do poder público, com o
estabelecimento de políticas setoriais, na área, devidamente articuladas com outras esferas
de atuação, vinculadas com as iniciativas espontâneas da população e com parcerias junto à
iniciativa privada.
Muito pouco tem sido feito no setor, o que, em alguns casos, não significa ausência de
recursos, mas má utilização, devido à ausência de parâmetros norteadores da ação. O que
se verifica, na maioria das vezes, é uma mistura do preconceito, ainda existente em algumas
áreas, com a incompetência, muitas vezes mascaradora de discursos até ditos
“transformadores”.
Vez por outra são lançadas campanhas nacionais, algumas inspiradas em movimentos
internacionais, como o Mexa-se, O Esporte para Todos, o Programa de Centros Sociais
Urbanos etc., de polêmica base e duvidosa eficácia. Todas elas, no entanto, acabam dando
frutos, muitos dos quais não previstos e, até mesmo, contrários à “filosofia” dos programas
que os geraram. Felizmente, impera a teoria do “movimento pendular” tão bem explicada
por Bárbara Freitag (1987).
É preciso se considerar, ainda, que as propostas de trabalho não podem ficar restritas à
elaboração de documentos, muitos deles até com boas intenções na fixação de princípios,
mas que acabam se transformando em discursos vazios, por não levarem em consideração a
realidade dos executivos municipais, no nosso país, a começar pelos quadros para atuação,
muitas vezes hostis a qualquer tipo de mudança de orientação das ações desenvolvidas,
passando pelas dificuldades do setor se impor, na administração como um todo e
esbarrando em questões relativas ao orçamento etc.
É preciso ampliar essa conscientização, o que vem se verificando em algumas cidades de
administrações “coincidentemente” populares e progressistas, primeiro entre nós mesmos,
os profissionais, depois, entre os dirigentes do executivo municipal, entre os vários
departamentos das secretarias em que o lazer está locado, entre as várias Secretarias, ao
Executivo como um todo e também ao Legislativo, porque, como já dissemos, a questão do
lazer extrapola o âmbito do executivo municipal. É preciso que tal discussão seja levada a
sindicatos, ONGs, grêmios de escolas, grêmios de empresas, grupos religiosos, à imprensa
etc.
Em um lugar, no entanto, apesar de toda a manipulação ideológica, uma simples reunião
de sensibilização, ou o desenvolvimento vivenciado de um projeto em outros moldes, faz
com que a questão seja prontamente entendida. Esse lugar é junto à população, nos bairros,
próximo aos seus locais de moradia, na comunidade onde vive. Falamos não sobre aquela
população que busca o ideal grego de ócio, de lazer, destinado aos cidadãos da sociedade
escravocrata, mas sobre a população de hoje, historicamente situada, que trabalha, luta
para sobreviver e para participar, porque, como nos lembra Pedro Demo (1993), é na
participação que está a qualidade de vida, e diria mais, o exercício da cidadania tem que
passar pelo exercício da felicidade, do prazer – hoje, para muitos, restrito a muito pouco
lazer. É possível, contudo, que a partir dele, da sua vivência, tenhamos a denúncia da
realidade injusta e o anúncio de uma nova ordem social possível de construção coletiva,
também alegre e prazerosa.

O lugar do lazer – programa de governo


Diante do exposto anteriormente, pode surgir a pergunta: Onde o lazer deve ficar? Em
que departamento, serviço, assessoria, secretaria? Do nosso ponto de vista, no atual estágio
em que nos encontramos, isso não tem a menor importância. A experiência tem
demonstrado que o status de Secretaria é mais adequado do ponto de vista de estrutura. E
aí a vinculação se dá com o esporte, até por um preceito constitucional, como já vimos: a
Secretaria de Esporte e Lazer. Quando o lazer é vinculado à cultura, o ranço que a palavra
carrega tende a valorizar apenas artes e espetáculos e o lazer acaba sendo relegado à quinta
categoria. Nesse ponto, o pessoal do esporte e mesmo o do turismo, talvez por sofrer o
mesmo tipo de preconceito, é mais aberto.
Onde deve ficar o lazer, agora, é o menos importante. Como deve ficar é o ‘x da
questão’. O ponto de vista que defendo é que o lazer seja um programa de governo, não só
contemplado nas propostas de campanha, mas integrante do governo mesmo, com as
interfaces que requer.
Tratar o lazer como programa de governo requer uma mudança de mentalidade. O seu
não isolamento num “feudo”, geralmente das “festinhas”, do “pessoal alegre”, mas ganhos
e facilidades de trabalho para cada órgão que compõe o governo, em suas várias temáticas,
do transporte à promoção social, passando pela educação e a saúde, incluindo a habitação
etc.
Há a necessidade de um trabalho integrado em Políticas Setoriais de Lazer, pela
transversalidade do tema e, por isso, um programa de governo se justifica a partir da
consideração de, pelo menos, quatro eixos:
1. A partir dos conteúdos culturais – requer trabalho integrado interssecretarias ou
órgãos da chamada área cultural (artes, cultura, esporte, meio ambiente, turismo,
patrimônio etc.);
2. A partir dos valores associados ao lazer – requer trabalho integrado
interssecretarias ou órgãos que extrapolem a questão cultural (Educação, Saúde);
3. A partir das barreiras para a sua prática – requer trabalho integrado
interssecretarias ou órgãos que também extrapolem a questão cultural (Promoção
Social, Transporte, Parques e Jardins);
4. A partir das circunstâncias que o cercam – política de reordenação do solo urbano,
do tempo (necessidade de relação com o legislativo).

Esse programa de governo deverá ser pautado, num primeiro momento, pela ação numa
dupla frente:
Ampliar a visão restrita do lazer;
Buscar superar o conformismo, pela crítica e pela criatividade, ou seja, entre outras
coisas, continuar com os programas de difusão cultural, mas acrescentar programas
de participação e criação culturais.

E deve ser respaldado por uma necessidade imperiosa e urgente: a quebra da política de
hierarquia de necessidades da população, que seja colocada pelas ações e não só pelo
discurso.
Os pilares básicos em que uma política de lazer, nesses moldes, precisa se assentar são,
entre outros:
1. Respeito e incentivo às manifestações espontâneas da população, partindo delas, e
junto a elas, tendo o devido cuidado para que o respeito não signifique “purismos”
ou, para usar uma expressão gramsciana, partir do “húmus” da cultura do povo,
“húmus” que é seiva, que alimenta, que faz crescer e florescer, mas que vem da
impureza;
2. Trabalho conjunto com grupos organizados (parcerias), buscando sua autonomia e
respeitando-a;
3. Trabalho conjunto com a iniciativa privada, sem abrir mão da participação no
processo decisório (parcerias atentas, digamos assim);
4. Trabalho conjunto com outros setores públicos (ONGs) e corporativos (Sistema S,
clubes) etc.;
5. Trabalhar na perspectiva de regiões metropolitanas-consórcios. É impossível ficar
restrito aos âmbitos municipais, inclusive com a série de impactos que políticas de
lazer podem trazer para regiões inteiras;
6. Trabalhar com o Estado (plano estadual e federal), o que não significa, de forma
alguma, contribuir para perpetuá-lo, termos modelos alternativos fixados “a priori”
e, menos ainda, acreditar que não seja possível a construção de novos modelos,
inclusive com a nossa ação no plano cultural.

Quando a ação extrapolar os municípios e a política for de um estado, é ainda mais


impossível trabalhar-se unicamente com projetos de atividades, a menos que com objetivos
bem-definidos em termos de processo e respeitando as características de cada região.
Recomenda-se, aí, a montagem de “redes”, por regiões ou por municípios, ainda que no
início possam parecer precárias, mas contribuindo para um trabalho de construção coletiva,
de levantamento de lideranças, formais e não formais, desenvolvendo encontros em cada
região para eleição de representantes, fixando valores e filosofias de trabalho e adotando
critérios para uma política de qualificação de demandas. O investimento na formação e
desenvolvimento de quadros talvez seja um dos tópicos mais importantes de uma política
estadual.
Quer no âmbito municipal, quer no estadual, quando se “herdam” políticas equivocadas,
recomenda-se um cuidado muito grande na alteração das mesmas. Isso porque a área ainda
carece de força, de tradição, de discussão séria dentro dos programas de governo e uma
“má repercussão”, e pouca visibilidade, ainda que parecesse absurdo, poderia gerar a queda
de responsáveis por serviços ou mesmo de secretários.
Assim, é recomendável, num primeiro momento, continuar com os projetos de
atividades desenvolvidos, inserindo-os dentro de processos, e também da rede, procurando
repassá-los aos municípios, no caso dos Estados. Paralelamente, recomenda-se promover a
discussão ampla entre os vários setores daqueles projetos mais problemáticos e polêmicos.
Iniciar projetos de lazer de cunho socioeducativo, mas não abandonar, de imediato e sem
discussão que possa implicar uma ressignificação com base em reestruturações, projetos
que tenham contornos de “visibilidade”.

Tirar as aspas do “tempo livre”


Mas, falar de transporte, saúde, educação etc., ligados a lazer, não soa estranho para
quem dizia há pouco que o lazer se bastava?
E se basta!
Contudo, devemos nos reportar, novamente, a Lazer e educação, quando me referia a
possíveis críticas sobre os aspectos educativos do lazer. E dizia:
"Só tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, se esse for considerado [...]
como um dos canais possíveis de atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir
para uma nova ordem moral e intelectual, favorecedora de mudanças no plano social.
Em outras palavras: só tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, ao
considerá-lo como um dos campos possíveis de contra-hegemonia. A
instrumentalização, mesmo educacional, do tempo disponível das pessoas, onde se
busca, ou se deveria buscar, fundamentalmente o prazer, só tem sentido na medida
em que possa contribuir para que essas mesmas pessoas tenham mais prazer de
viver, sejam menos pressionadas por uma estrutura socioeconômica sufocante, em
que uma minoria tem excesso de recursos, de espaço e de tempo, pela exploração da
grande maioria, cujo tempo quando não é desocupado, pela incapacidade do modelo
econômico imposto gerar trabalho, é livre – entre aspas. Só tem sentido, na medida
que contribuir para eliminar essas aspas" (Marcellino, 2000, p. 63-64).

Muito além do “funcionalismo”...


Também em Lazer e educação o autor (Marcellino, 2000) fazia, pela primeira vez, uma
análise, retomada em outras ocasiões, da visão “funcionalista” do lazer e de sua crítica.
Naquela ocasião, destacava-se que
"em todas essas abordagens – romântica, moralista, compensatória, ou utilitarista –
pode-se depreender uma visão “funcionalista” do lazer, altamente conservadora, que
busca a “paz social”, a manutenção da “ordem”, instrumentalizando o lazer como
fator que ajuda [...] a suportar a disciplina e as imposições obrigatórias da vida social,
pela ocupação do tempo livre em atividades equilibradas socialmente aceitas e
moralmente corretas" (Marcellino, 2000, p. 25).
Não é preciso muita perspicácia para se perceber que é essa a concepção de lazer,
muitas vezes oculta, que orienta a formulação de políticas na área, ou a não formulação
explícita que, ao final, acaba dando o mesmo resultado. E avultam-se as políticas de
eventos: dia disso, dia daquilo, do desafio, de ações globais, de lazer, de recreação etc.
Na mesma ocasião, em Lazer e educação, chamava a atenção para a contraposição
daquela visão de lazer que o concebe como instrumento de dominação, diferentemente da
que
"o entende como gerado historicamente e do qual emergem valores questionadores
da sociedade como um todo e sobre o qual são exercidas influências da estrutura
social vigente. Assim, a admissão da importância do lazer, na vida moderna, significa
considerá-lo um tempo privilegiado para a vivência de valores que contribuam para
mudanças de ordem moral e cultural. Mudanças necessárias para a implantação de
uma nova ordem social" (Marcellino, 2000, p. 25).
Mas, é preciso que se fale de uma visão crítica “míope”, também, que contribui para a
manutenção do status quo que tenta criticar, uma vez que leva ao imobilismo. Trata-se de
uma visão crítica fechada e cínica, como alguns estudiosos pregam: “Lazer e capitalismo são
incompatíveis”, “A felicidade não está nem no trabalho, nem no lazer, no nosso modo de
produção” etc. E daí? Vivemos aqui e agora. O que fazer? Esperar a situação ideal para agir?
E enquanto ela não ocorre?
A psicanalista Maria Rita Kel (2000), analisando o filme Croni​camente inviável, de Sérgio
Bianchi, faz uma interessante reflexão sobre o pacto do cinismo da sociedade brasileira
contemporânea. O raciocínio caminha pela geração da cumplicidade, devida ao excesso de
compreensão. Maria Rita conclui que há uma passagem quase imediata da realidade ao
cinismo. Em seguida, e completando seu belo raciocínio, contrapõe o filme de Bianchi à
montagem de Marco Antonio Braz de Bonitinha, mas ordinária e, especificamente, à
"demonstração genial de Nelson Rodrigues de que o efeito de um discurso crítico
fechado sobre si mesmo pode ser a socialização do que ele pretende demolir [...]
desautoriza qualquer aposta em outra dimensão que não seja a canalhice" (p. 30-31).
Que a análise da realidade e a tomada de conhecimento de sua mísera crueza não nos
sirvam de álibis para cinismo e canalhice.
Não que a crítica não deva existir, muito pelo contrário. É por ela que as construções do
novo começam. Ou deveriam começar. E não dá para querer que se tenham soluções
prontas, acabadas, principalmente em questões macro. Trabalhamos com a cultura, com a
superestrutura, e seria um absurdo irmos “para a luta” com modelos no plano cultural,
estabelecidos a priori. Isso deve ser uma construção coletiva.
O sonho precisa virar utopia. Mas parece-me que criticidade não deva ser desespero. E,
muitas vezes, as críticas estão levando ao imobilismo, ao invés de mobilizarem.
O lazer abre múltiplas possibilidades. É preciso ações que se contraponham às da
indústria cultural, na maioria das vezes, exploradora do lazer mercadoria, do
entretenimento na sua pior conotação. Uma política setorial de lazer, nos moldes aqui
propostos, leva em conta as limitações estruturais, mas crê na especificidade da ação no
plano cultural como um dos instrumentos de mudança.
Lazer sim, mas não qualquer lazer. Não o mero entretenimento, não o “lazer-
mercadoria”. Cada vez mais precisamos do lazer que leve à convivencialidade, mesmo, por
paradoxal que isso possa parecer, sendo fruído individualmente. Convites à convivência
significam, do meu ponto de vista, minimizar os riscos da exacerbação dos próprios
componentes do jogo, tão bem colocados por Callois (1990) e aqui por mim retomados, em
interpretação livre: a competição, que não leve à violência; a vertigem, que não leve ao risco
não calculado de vida; a imitação, que não promova o fazer de conta imobilizante da pior
fantasia; sorte/azar, que não provoque alheamento. E não se trata de censura, ou coisa que
o valha, sobre o que fazer, mas posições, ou proposições, do como fazer.

Política de formação e desenvolvimento de quadros


Um dos pilares de uma política de lazer deve ser a política de formação de quadros para
a atuação. E, aqui, ficamos ainda com a estrutura de animação proposta por Dumazedier
(Callois, 1190), em várias ocasiões e já colocada no início deste texto. De forma piramidal, a
estrutura é composta por animadores de competência geral, no vértice; animadores de
competência específica, no centro; e animadores voluntários, na base. Os primeiros
encarregados do gerenciamento, digamos assim, da coordenação de políticas e da
supervisão dos planos e projetos. Os de competência específica, planejadores também, mas,
basicamente, executores e avaliadores das ações em cada um dos conteúdos culturais do
lazer e suas consequências socioculturais. E, finalmente, a base, encarregada da ligação da
ação com a cultura vivida, nas comunidades nas quais está inserida.
Vou centrar minhas atenções, no âmbito deste escrito, na formação e desenvolvimento
de quadros profissionais para a ação na área. É frequente a queixa dos responsáveis pelos
executivos, nos vários âmbitos, da falta de pessoal qualificado para o desenvolvimento das
ações na área, mas é importante destacar o papel dos animadores voluntários nessa
“estrutura de animação”.
A colocação desses cargos dentro do esquema funcional é bastante complicada.
Geralmente, são professores, ou outros funcionários, que os assumem, por não existirem
denominações para pessoal “de carreira”. Surgem, então, disputas entre os funcionários “de
carreira” e os “indicados”, geralmente, vindos “de fora”, mostrando, logo de início, que não
está se procurando “valorizar os da casa” e outras queixas, que, na maioria das vezes,
servem como desculpa para a não adesão a programas com filosofias de trabalho diferentes.
O fato é, na verdade, que a não existência de cargos definidos, com clara definição de
funções e de pessoal preparado para assumi-los nos quadros regulares, é um entrave sério à
implantação de políticas, logo no seu início, quando o grau de adesão à filosofia de trabalho,
deveria ser bastante elevado.
O divertimento, na perspectiva do “desviar a atenção de”, está cada vez mais
corporificado na chamada “indústria do entretenimento”. Nossos cursos, mesmo em
universidades consideradas “sérias”, estão cada vez mais preocupados com a gestão, de
uma perspectiva de entendimento extremamente pobre, das questões da Administração,
que vêm abarcando, cada vez mais, os esforços de formação profissional em nossa área, de
modo geral, ou entendida nos seus conteúdos culturais, como é o caso do Turismo, do
Esporte e da Cultura, vista, fundamentalmente, como Artes e Espetáculos.
Nesses últimos tempos, tive ocasião de ver mais de perto, e de um outro ângulo, a
atuação dos profissionais de lazer em diferentes espaços de atuação, como hotéis, SPAS,
prefeituras municipais, parques temáticos etc.
Poder-se-ia dizer que esta é uma crise do trabalho em geral, ou do emprego, se
preferirem, mas, quando se fala de prestação de serviços e sobretudo do lazer, os dados de
situação, infelizmente, têm que ser pintados com cores mais fortes.
Vejamos a questão da alienação. Ou melhor, da dupla alienação, ou autoalienação, tão
bem explicitada por Mills (1969, p. 243), quando coloca que o trabalhador que vende não
apenas a sua força de trabalho, mas também a sua personalidade, vive um duplo processo
de alienação. Cada vez mais, o profissional de lazer vende sua personalidade. Em muitos
casos, deixa de ser profissional para se tornar uma “personalidade profissionalizada”.
A venda da personalidade é tanta que alguns profissionais da área de lazer, chegam a
pregar, nas suas próprias organizações de trabalho, talvez inspirados em manuais de
autoajuda de quinta categoria, que bom humor é mais importante que competência. O
argumento é que bom humor não se aprende e competência se adquire. Como se bom
humor fosse algo postiço que se coloca no rosto, como os dedos digitam. Enorme confusão.
O bom humor, é importante não confundir com bobo-alegrismo, do sorriso e solicitude
artificiais estampados nos lábios e nos gestos, é fruto de situações geral e profissional
adequadas, que tornam o trabalho escolhido, quando o é, prazeroso. É do prazer do
trabalho que deve nascer o bom humor, e não do bom humor estabelecido a priori, como
mais uma peça do vestuário colocada, que deve nascer o prazer do trabalho.
É preciso se considerar que trabalhamos com o público e, por essa razão, a sisudez torna
as coisas muito difíceis. Mas isso não significa ausência de seriedade, competência e
compromisso político. E são esses três elementos que tornam o exercício da profissão digno.
Sobre este último aspecto colocado, então, “nem se fala”: compromisso político. Numa
época em que tudo é terceirizado como já se disse, “terceiriza-se a cidadania”, pensar em
compromisso político com o trabalho, principalmente do profissional do lazer é totalmente
fora de moda. Participação [5], ao contrário do que demonstra Pedro Demo, não é
qualidade de vida e, por extensão, de trabalho, e não deve ser conquistada. Participação é
coisa para outro tipo de profissional especialista e a qualidade do meu trabalho é “agradar”
o cliente.
E, no agradar o cliente, solícito, riso fácil, corpo bonito o profissional do lazer, muitas
vezes, disfarça a falta de condições de trabalho e de equipamentos não só do seu setor, mas
de toda a organização, seja ela pública ou privada.
Para o gerente do Acampamento, do Hotel, do SPA, ou de qualquer outro local, e muitas
vezes para os próprios executivos municipais, as equipes de lazer têm, via de regra, a função
de “tampar o sol com a peneira”. Disfarçar, com sua amabilidade e empatia, muitas vezes
forçada, as deficiências de serviço. Isso, via de regra, ocorre também com o profissional do
lazer, para suprir a sua falta de preparação profissional. Por exemplo, ao invés de se
organizar uma festa adequadamente, com as estratégias inclusive de participação, quando é
o caso, passa a “animar” (no sentido pejorativo) o evento, procurando mascarar sua falta de
qualidade.
Cada vez mais, o profissional vem sendo requerido por uma habilidade, muitas vezes já
desenvolvida, antes de sua formação profissional.

A busca de alternativas
O profissional do lazer precisa ser respeitado, reclamar a sua dignidade profissional,
sendo chamado para opinar em equipes de planejamento, em projetos de equipamentos,
de atividades e até onde, aparentemente, extrapolem sua área de intervenção, como em
projetos de transporte urbano, por exemplo.
Isso, entretanto, requer que ele mesmo se respeite, estude, se aprofunde, percebendo a
interseção de suas áreas com as demais e não reforçando os estereótipos do sujeito
simpático, bom camarada, que sabe “agitar”, pura e simplesmente .
Enfim, se quisermos entender o lazer como questão contemporânea, em toda a
grandeza dessa problemática, já está na hora, ou melhor, já passou há muito tempo da hora,
dos executivos municipais deixarem de contar com o trabalho muitas vezes gracioso e
solícito de profissionais mal-remunerados e mal-formados, repetindo pacotes de atividades
de duvidoso gosto e, ainda assim, de forma bastante esporádica, em bairros da cidade; ou
de formarem equipes, cuja principal característica é o sorriso forçado nos lábios,
promotores de atividades que não são mais do que pacotes de “festinhas” para passar o
tempo ou entreter o povo antes das autoridades chegarem para inaugurações de obras.
Às vezes, quando a qualidade de trabalho se verifica com relação ao lazer, no poder
público, em administrações populares e progressistas, isso é feito com verba ínfima, quadro
de pessoal reduzido e com grande dose de sacrifício individual da vida particular dos
técnicos envolvidos, que confundem militância política com atuação profissional e que
vivem o dilema de pregarem qualidade de vida para as pessoas sacrificando a sua própria
qualidade de vida por falta de estruturas adequadas, que suavizariam, em muito, o trabalho
desenvolvido.
Já está na hora de os discursos de campanha de um lazer emancipador serem
acompanhados de verbas e infraestrutura e de atuação profissional, compromissada
politicamente sim, mas com competência e profissionalismo. E já está na hora do setor
privado perceber que é com competência que se faz “lucro”, que se atende bem ao cliente,
e não “dourando a pílula”, com o comportamento estereotipado de “bobos da corte”.
É preciso considerar ainda que, quando se quiser que o trabalho a ser desenvolvido
respeite o conceito do lazer e conjugue difusão e participação culturais, se tornará
necessário que, além do trabalho profissional, sejam preparados/capacitados animadores
voluntários. Quando se fala neles, o profissional mal-informado e o dirigente mal-
intencionado pensa ou em concorrência profissional, ou em mão de obra gratuita. Não é
isso o que entendemos, mas sim colocamos o trabalho voluntário como participação efetiva
no planejamento, execução e avaliação dos programas e dos equipamentos de lazer da
cidade, garantindo o estabelecimento das ações a partir das aspirações da comunidade.
Os executivos municipais diretamente ligados à questão precisam de um esforço
constante de formação e desenvolvimento de capacitação de quadros.
Mas isso não basta.
É preciso que nossas faculdades que mais se encontram na “ponta” na pesquisa dos
estudos do lazer deem atenção, pelo menos, a treze itens, que elencamos a seguir:
1. Deem a atenção devida aos cursos de graduação;
2. Enfatizem a pesquisa na área;
3. Atuem com projetos de extensão não extensionista (Saviani, 1995), funcionando
como verdadeiros laboratórios de pesquisa “quase experimental” (Bruyne et al.,
1977);
4. Estimulem o intercâmbio com as outras universidades e faculdades, que anualmente
jogam no mercado um número de profissionais muito grande;
5. Promovam o intercâmbio com empresas e poder público governamental e não
governamental e setores corporativos (clubes-sistema etc.), procurando saber suas
expectativas de profissional, trabalhando com, mas não ficando restritas a elas, e
mostrando como vem se organizando a formação profissional;
6. Não tenham pudores, na quase totalidade preconceituosos, de locais de trabalho. É
possível desenvolver uma ação profissional competente e consequente em qualquer
âmbito de trabalho. Um dos meus projetos editoriais trata exatamente sobre os
múltiplos olhares que podem ser lançados sobre uma relação vista com extrema
reserva por alguns setores da área: Lazer e Empresa (Marcellino, 1999);
7. Não forneçam, como se diz no jargão, “receitas” de atividades, mas propiciem a
formação de um repertório de atividades, vivenciadas e refletidas, que possa servir
de base para o início das atividades profissionais, com constante aprimoramento. É
um elemento neutralizador aos profissionais que só leram “Manuais de atividades”
ou, o que é pior, compilações desses manuais;
8. Equilibrem, na formação dos profissionais, pelo menos quatro eixos
complementares: teoria do lazer, relatos de experiência refletidas de profissionais,
vivências dos conteúdos culturais e políticas e diretrizes gerais no campo. Isso
permitirá que se estude a especificidade do lazer, sua “disciplinaridade”;
9. Mostrem, repetidamente, que o lúdico e o prazer podem se manifestar em outros
tempos, fora do lazer, mesmo na nossa sociedade. Isso significa entender o lazer
"como ‘especificidade concreta’ e, na sua especificidade, com possibilidades de gerar
valores que ampliem o universo das manifestações do brinquedo, do jogo, da festa,
da recreação, para além do próprio lazer" (Marcellino, 2000, p. 35), o que poderá
estimular a participação em equipes que busquem a interdisciplinaridade, sem a qual
a questão do lazer fica muito empobrecida;
10. Deem condições do “alicerçamento” de uma sólida cultura geral, necessária para o
trabalho interdisciplinar em todas as áreas e, de modo específico, no lazer, aliado ao
exercício constante de reflexão (Marcelino, 1995, p. 21);
11. Privilegiem em seus currículos a formação geral, voltada para a especificidade da
área, e não a específica descontextualizada;
12. Não estabeleçam o “perfil do profissional” a ser formado a priori. Esse perfil deve ser
construído ao longo do curso, principalmente em uma fase de aceleradíssimas
transformações, em que o que é atual no início de um curso, por exemplo, em
termos de habilidades específicas, pode-se tornar obsoleto rapidamente. É preciso
que se prepare o aluno para o desenvolvimento de quadros. É preciso atualizar, ou
mesmo formar, quem já trabalha na área e é preciso, também, formar os voluntários
[6];
13. Incutam nos alunos a necessidade de desenvolvimento profissional constante para
que, como já foi dito anteriormente, não se tornem presas fáceis de discursos de
manuais de “autoajuda” de baixa categoria, em situações adversas do mercado de
trabalho, vendendo a “alma” e o “corpo”.

É importante, também, que estudantes e profissionais juntem-se às sociedades


científicas buscando atualização, intercâmbio de experiências, discussão política sobre o
trabalho; procurando resgatar esse espaço que, muitas vezes, por uma série de motivos,
não é possível em seus ambientes de trabalho. Listas de discussão via Internet também são
muito bem-vindas nesse sentido.
E o poder público, nos vários âmbitos de atuação, não pode se omitir desse processo.
Muito pelo contrário, deve ser atuante e parceiro.

Concluindo
A não fixação e implementação de políticas de lazer sérias significa a ausência de
contraponto aos desmandos do lazer mercadoria colocado no “mercado” pela esmagadora
maioria da indústria cultural. Serviços públicos culturais são elementos de hegemonia, como
dizia Gramsci [7], e uma política de lazer deve ser uma política para todos, e da melhor
qualidade. O que é público não é gratuito, como nos querem fazer acreditar e, mesmo que
fosse gratuito, não justificaria a baixa qualidade dos serviços.
Profissionais de lazer devem ser educadores, no sentido amplo da palavra, e não
mercadores, como habitualmente vem ocorrendo.
Não é possível ignorar a necessidade de políticas de lazer, apesar dos discursos “cínicos”,
e não é possível tê-las apenas para fazer constar ou, o que é pior ainda, como o “circo”,
quando o pão é escasso.

Notas
1. Originalmente publicado em Marcellino, N. C. Lazer & esporte: políticas públicas. 2. ed.,
Campinas: Autores Associados, 2001. (Esgotado)

2. Vide artigo: Marcellino, N. C.; GPL. Lazer e trabalho, no cotidiano da sociedade pós
industrial, a partir da obra de Domenico de Masi publicada no Brasil. Licere, Belo
Horizonte, v. 7, n. 2, p. 1-37, dez. 2004.
3. O assunto é muito bem analisado na opinião de Raul Cortez, em Muito além das cifras,
publicado na Folha de São Paulo, 6 jun. 2000, A 3.

4. Folha de São Paulo, 7 jun. 2000, A14. Reportagem de Rogério Wassermann.

5. Para Demo (1991, 1994), qualidade de vida é participação.

6. O trabalho voluntário é previsto na Lei nº 9608, de 18.2.98, no Diário Oficial da União,


de 19.2.98.

7. Os intelectuais e a organização da cultura, Concepção dialética da história, 1981.

Referências
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BRUYNE, P.; NERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinâmica da pesquisa em ciências sociais. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
CALLOIS, R. Os jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990.
DEMO, P. Avaliação qualitativa. 3. ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991.

______. Participação é conquista. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993.

______. Pobreza política. 4. ed. São Paulo: Autores Associados, 1994.


DUMAZEDIER, J. Questionamento teórico do lazer. Porto Alegre: CELAR, s/d.

FREITAG, B. Política educacional e indústria cultural. São Paulo: Cortez, 1987.


GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
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______. Concepção dialética da história. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

KEL, M. R. O pacto do cinismo. Folha de São Paulo, 4 jun. 2000. Mais, 30 e 31.

MARCELLINO, N. C. (Org.). Lazer: formação e atuação profissional. Campinas: Papirus,


1995.

______. Lazer e empresa: múltiplos olhares. Campinas: Papirus, 1999.

______. Lazer e educação. 6. ed. Campinas: Papirus, 2000.


______. Estudos do Lazer:uma introdução. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2002.

______.; GPL. Lazer e trabalho, no cotidiano da sociedade pós industrial, a partir da obra
de Domenico de Masi publicada no Brasil. Licere, Belo Horizonte, v. 7, n. 2, p. 1-37, dez.
2004.

MILLS, C. W. A nova classe média-white collar. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

SAVIANI, D. Ensino público e algumas falas sobre Universidade. 2. ed. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, 1995.
CAPÍTULO 4
Estado e Sociedade na Construção de
Inovações nas Políticas Sociais de Lazer no
Brasil
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto

As políticas sociais no Brasil estão mudando, ainda que muitas administrações


continuem a “empurrar” suas gestões como se nada de diferente acontecesse. Vários
municípios, por sua vez, estão, gradualmente, percebendo que a dinâmica e a complexidade
dos sistemas sociais modernos exigem outras respostas e caminhos.
Já vivemos processos que não perdem de vista o princípio básico da política, experiência
que se constrói nos acordos e conflitos diários, vividos no interior de relações sociais
historicamente situadas, que impactam nas vidas dos indivíduos e das coletividades. Aos
poucos, muitos entendem que política não é um contrato a ser cumprido pelo Estado. É,
sim, processo estatal de alocação e distribuição de recursos, que envolve um conjunto de
contradições de interesses regulados por várias instituições e condicionados por mediações
que tornam possível se reduzir antagonismos e se construir movimentos positivos voltados
ao interesse público.
Quando falamos em políticas sociais estamos tratando, pois, de ações que garantam os
direitos dos cidadãos. Dallari (1983), com base na origem etimológica grega da palavra,
afirma que política é arte (implica sensibilidade para conhecer os sujeitos, suas necessidades
e demandas para a promoção do bem comum) e ciência (fundamenta-se em estudos sobre
o comportamento humano) de governar (trata de relações de poder) e de cuidar das
decisões sobre problemas de interesse da coletividade (refere-se, pois, à vida na polis, ou
seja, à vida em comum nas cidades).
Nesse sentido, o Estado cumpre vários papéis. Um deles é ligado ao exercício de
cidadania das pessoas. Lembrando que, segundo o cientista político Theodore Marshall
(1967), ser cidadão é gozar de três tipos de direitos: sociais, civis e políticos, que devem ser
garantidos pelo Estado. Os direitos civis (conquistados no século XVIII) correspondem aos
direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, ir e vir, segurança, expressão de
ideias, crenças, escolhas e culturas. Os políticos (século XIX) são relativos à participação
coletiva, à liberdade de associação e reunião, à organização política e sindical, à participação
eleitoral e democrática. E os direitos sociais (século XX) se referem ao direito mínimo de
bem-estar econômico e de “levar a vida de um ser civilizado” com direito ao trabalho, à
saúde, à educação, à aposentadoria, ao lazer, ou seja, ao bem-estar social previsto pela
Constituição.
Mas, se ser cidadão é gozar de direitos sociais, civis e cívicos, em nossa realidade nem
todos são cidadãos plenos. Nem todos usufruem de seus direitos, na mesma medida. Por
isso, os estudiosos do assunto sempre enfatizam que a cidadania, embora seja de direito,
não é dada, é algo a ser conquistado, em condições diferentes de conquista – considerando
ações que influem na qualidade de vida, protagonizadas por atores, grupos sociais e
instituições diferentes; considerando, também, que os contextos sócio-históricos são
diferentes, de país para país, de região para região.
Mas, o que tem sido feito nas políticas sociais para se concretizar os direitos dos
cidadãos?
No Brasil, as políticas sociais vêm apresentando mudanças significativas iniciadas com a
(re)democratização do país e consolidadas a partir da promulgação da Constituição
brasileira de 1988, que, dentre os direitos sociais, considera lazer como direito de todos os
cidadãos, contexto que instigou inovações na gestão das políticas sociais brasileiras.
No âmbito das políticas, a inovação é uma discussão que vem sendo balizada nos
debates sobre racionalidades aplicadas às gestões privada e pública. Humberto Marques
Filho (2001) lembra que o tema reacendeu-se nos anos 70, dadas as profundas
transformações nos processos produtivos em escala mundial. Naquelas circunstâncias, a
inovação foi considerada como um processo que envolve o uso, a aplicação e a
transformação de conhecimentos técnico-científicos em problemas relacionados com
produção e lucro. Seu caráter comercial ligava-se às transformações tecnológicas, de
mercado e de fomento de novos hábitos de consumo. Posteriormente, mudanças nas
formas de gestão privada dão origem à “inovação organizacional”. Com a globalização e as
exigências do mercado quanto a racionalidades na produção, esse debate transferiu-se para
a esfera de serviços e, nesta, para o serviço público e o âmbito do Estado. A “Reforma do
Estado” e a emergência de um “Estado em ação” – consequentes da (re)democratização do
país – consolidaram a importância de mudanças na prestação dos serviços públicos.
Segundo Edna Castro (2001), à medida que a inovação passou a se constituir em
preocupação da gestão pública, algo novo foi introduzido nesse contexto pelas forças
associativas dos movimentos sociais em prol do incremento da cidadania. O debate sobre a
construção de direitos dá ao conceito de cidadania uma posição central e, ao conceito de
inovação, novos sentidos. O direito, enquanto exercício de possibilidade, requer que seja
visto como fruto da dinâmica de uma sociedade que busca a cidadania e, nessa dinâmica,
surgem (ou reascendem) novos direitos.
Estudos realizados (Pinto, 2002a) mostram que as lutas pela democracia potencializaram
uma ampliação dos limites da política, provocando alterações nos procedimentos políticos,
com a institucionalização de práticas sociais em políticas públicas, incorporando demandas
pelos direitos coletivos e pela revitalização do campo ético, da participação associativa no
nível de poder local. Esse movimento provoca alterações especialmente no papel do Estado,
mas também no mercado.
No entanto, essas inovações enfrentam barreiras nos municípios historicamente
governados pelas oligarquias locais e interesses particulares. Além disso, a urbanização
acelerada agrega novos problemas aos já existentes, deslocando as esferas de decisão para
os meios urbanos, aumentando demandas quanto aos vários setores urbanos e, no interior
de cada um deles, acentuando diferenças de oportunidade para as camadas da população.
Mais ainda: em décadas de ditadura e governos “democráticos”, a modernização e a
eficiência foram enfatizadas com significados neoliberais.
Dos desejos e lutas para se superar os dilemas crescentes no contexto da
redemocratização do país, a ideia de inovação, implícita ou explicitamente, passou a
recorrer ao significado de “novo” como algo oposto ao “antigo” ou “presente”, nas formas
de gestão pública paternalista, populista e assistencialista, discussão que nos fez refletir
sobre os vários e distintos projetos de sociedade e Estado, que são referencial teórico,
político e ideológico das transformações sociais.
Mas a inovação não é apenas ruptura em relação às práticas anteriores e ao conteúdo
das políticas. Pode, também, ocorrer a partir de pequenos avanços. Nisso, há diferenças
entre inovação e melhorias. Algumas políticas podem ser consideradas importantes
melhorias na localidade, sem significar uma inovação propriamente dita. A crítica à gestão
pública que predominou, no Brasil, até a década de 1980, pode contribuir para a
identificação de inovações nas políticas públicas como, por exemplo, quanto aos pontos
críticos do padrão burocrático de intervenção. É importante, contudo, lembrarmos que
dificilmente uma política inova em relação a muitos aspectos. Alguns passos em direção
mais significativa para a população, por sua vez, são relevantes.
Algumas mudanças, ainda, podem ser tidas como inovação mesmo que não sejam
objetivamente novas, desde que sejam assim percebidas pelos agentes envolvidos no
processo da experiência analisada. Esse aspecto é importante, pois, quando explicitado,
contribui para destacar a pluralidade de significados de inovação e valorizar a compreensão
do vivido. Nesse sentido, a inovação constitui-se em um novo olhar sobre limites
enfrentados e alternativas construídas.
Esse entendimento de inovação me remete à avaliação de nossas políticas públicas de
lazer com um olhar atento aos modos como a gestão pública tem concretizado seus
objetivos e atendido o interesse público; interesse que, sendo construção histórica, é
distinto em cada época.
Como mostram os estudos de Souto, Bava e Paulics (2001), o interesse público pode ser
definido como resultado, sempre precário e provisório, da garantia de condições mínimas
de qualidade de vida e cidadania para uma dada população. Resulta de negociações que
envolvem os atores sociais e políticos de determinada localidade, seus conflitos e tensões e,
ao mesmo tempo, o desenvolvimento de alternativas criativas para problemas de diversas
ordens.
A discussão sobre a gestão pública dos interesses coletivos sinaliza para desafios
instigadores de mudanças efetivas no modelo de gestão pública de interesses, atualmente,
em desenvolvimento. Isso implica mudanças em relação ao estilo gerencial dominante em
nossas práticas políticas. Estes, na maioria das vezes, têm sido orientados mais para a
execução de planos de trabalho predefinidos, cujas atividades têm fim em si mesmas,
focalizando a administração de objetivos programáticos e operacionais dos projetos e o
cumprimento das atividades e processos determinados pela equipe gestora, e menos para
uma construção mais coletiva, fruto de negociações de interesses junto aos cidadãos
diretamente interessados.
Implica, também, novas formas de pensar e articular os segmentos sociais/setores,
reunindo elementos de mudança em relação a experiências passadas. Nisso, há uma
dimensão de tempo importante: um passado que nos mostra limites a serem superados no
futuro por meio de ações efetivas no presente.
Boaventura Santos (1998) lembra que a História nos ensina que não há mudanças
políticas sem movimentos sociais capazes de pressionar a favor das inovações desejadas. A
pressão da sociedade organizada impulsiona a democratização dos governos locais e uma
reforma de Estado orientada para a defesa dos interesses públicos. O reflexo de mudanças
decorrentes da recepção coletiva de redefinição de práticas, da necessidade de
democratizar a gestão com participação da comunidade, de pressões sociais provocadas por
demandas quantitativas e/ou qualitativas face às transformações na esfera social,
econômica e política são elementos favoráveis às inovações.
A inovação na gestão pública trata, pois, de processos de várias dimensões e desenhos,
sempre se referindo à necessidade de mudar algo importante para certo contexto. Uma
questão fundamental para essa nossa reflexão é: o que inovar nas políticas públicas de lazer
em nossa realidade?
O curso da história das políticas de lazer, no Brasil, nos aponta dois aspectos que
precisam ser inovados. O primeiro deles enfatiza as dimensões da justiça social e da
cidadania. Vide o conjunto de iniciativas que têm como objetivo central a democratização
da gestão pública, buscando superar as barreiras postas ao processo democrático,
promovendo a participação, a inclusão com equidade e a acessibilidade a diversificadas
oportunidades de lazer.
O segundo enfatiza o compromisso político com a inovação. Isso porque as políticas
estão sujeitas aos determinantes que interagem no contexto, que configuram o tipo de
mudança adotada, o seu tempo de implantação e suas particularidades. A potencialização
da inovação está sempre associada à existência de ambientes favoráveis a ela, ou seja, ao
desejo e à ação dos dirigentes, servidores e população beneficiária a fim de romper com
práticas tradicionais da cultura política e concretizar mudanças efetivas. Implica assumir o
campo de tensão entre o discurso racional, a realidade que se quer mudar e a realidade
institucional na qual se produz.
Esses dois desafios mostram que a inovação deve estar associada aos valores e objetivos
do sistema e não apenas à mudança em relação a uma situação prévia. Não pode ser
analisada como um processo espontâneo, mas sim associada a certa orientação e sua
permanência no tempo. Por isso, é importante o estudo do modelo vigente, buscando
identificar os mecanismos facilitadores e inibidores das inovações, bem como a capacidade
de sua estrutura e ação de estabelecer mudanças, tanto nos processos quanto nos
resultados das intervenções políticas em exercício.
Embora esse seja um dos nossos desafios no campo do lazer há algumas décadas, muito
ainda devemos fazer para que essa conquista seja garantida no Brasil, especialmente se
considerarmos que esse não é um processo automático e nem fácil, pois implica mudanças
culturais, políticas, de mentalidade, conceitos e valores atribuídos ao lazer e às práticas
políticas e, principalmente, implica na capacidade organizativa daqueles que defendem essa
mudança.
O Brasil, como a América Latina, durante séculos, projetou políticas das potências
coloniais, gestando históricas experiências de violência e exploração das populações
indígenas, dos trabalhadores negros, de crianças, jovens, mulheres, idosos e outros sujeitos
e grupos. Nesse contexto, herdamos modos de fazer política centrados em trocas de
vantagens pessoais ou pressões de grupos que administram interesses culturais difundidos
pelo mercado, ou grupos isolados, e não a partir das necessidades socioculturais da
população.
Essa é a história de uma sociedade desigual, que vive muitas contradições, como pode
ser visto nos grandes centros urbanos. Neles podemos observar, por exemplo, como
milhões de pessoas em condições de alto índice de pobreza e vulnerabilidade convivem,
lado a lado, com os grupos de maior poder aquisitivo e oportunidade sociocultural. Isso sem
considerar as dimensões continentais de nosso território, com diferenças regionais incríveis
em todos os aspectos: econômico, ambiental, educacional, social e cultural. Mas nosso país,
ao mesmo tempo, reúne pessoas com extraordinária capacidade de produção cultural e de
solidariedade.
Sendo assim, a superação das desigualdades com as quais lidamos exige a leitura e a
compreensão dos modos de intervir politicamente nessa realidade que alavanquem
experiências centradas nas pessoas e no pacto social ético necessário à garantia dos direitos
de todos.
Esse desafio motivou-nos a, no presente texto, analisar um paradigma emergente na
atual política social brasileira – políticas participativas –, procurando captar seus aspectos
fundamentais e experiências inovadoras nas políticas de lazer.
Para isso, aliamos pesquisa bibliográfica e entrevistas com sete gestores de lazer que
têm construído experiências em políticas públicas e corporativas de lazer, desenvolvidas em
diferentes regiões brasileiras, experiências identificadas em publicações difundidas no país.
[1]
Esperamos que as experiências narradas por esses gestores contribuam para instigar
reflexões e análises das práticas vividas pelos depoentes. É importante lembrar que, ao
iniciarmos tais entrevistas, prestamo-nos a ouvir ações coletivas, construídas por muitos
atores sociais, em dadas circunstâncias históricas, que propiciaram ressignificações das
práticas políticas vividas. Experiências que misturam permanências e mudanças, mesmo que
as falas deem ênfase às novas descobertas. O contexto vivido é dialético e, nele, convivem
pessoas com experiências, opiniões, valores, finalidades, sentidos e significados diferentes. É
bom esclarecer, também, que, com a citação, na íntegra, não queremos apenas descrever
experiências. Ao contrário, nosso foco está na indagação sobre o contexto mais amplo em
que essas experiências acontecem e o que geram de possibilidades em termos de qualidade
de vida, cultura, política e lazer.
Tais observações se traduzem num importante aspecto da nossa reflexão: o projeto
político deve ter um rumo claro, definido, mesmo que a prática política conviva com
antagonismos diversos, variando de acordo com os projetos de cada sociedade e seus
momentos históricos.
Daí se destaca uma questão orientadora da nossa conversa nesse momento: o que
muda no modo dominante das políticas sociais para que possamos considerá-las
inovadoras?
Ainda há muito a se discutir para avançarmos na construção de respostas para essa
pergunta tão abrangente, porém, alguns aspectos ressaltaram-se no estudo realizado sobre
o assunto [2]. Analisando-se as inovações percebidas em experiências emergentes vividas
no campo das políticas sociais de lazer, no Brasil, atualmente, destacam-se os seguintes
aspectos:
1. À institucionalidade;
2. Ao objetivo principal;
3. À prioridade;
4. Ao enfoque;
5. À lógica de tomadas de decisões e
6. Ao financiamento.

Quanto à institucionalidade
Iniciamos a discussão pelo aspecto da institucionalidade, pois as mudanças observadas
nas políticas sociais brasileiras são gestadas, especialmente, com base em mudanças do
sentido dominante de institucionalidade, segundo o qual o Estado exerce monopólio nas
políticas sociais: desenhando, implementando, unificando funções, financiando e
controlando suas ações. Propostas emergentes mudam esse quadro, assumindo a
pluralidade de setores corresponsáveis pelas políticas sociais.
Para Bresser Pereira e Grau (1998), a construção das políticas sociais envolve, além de
setores informais como a família, quatro setores sociais formais, considerando as esferas e
formas de propriedade relevantes no capitalismo contemporâneo. São eles: o setor público
estatal (detém o poder de Estado e/ou é subordinado ao aparato do Estado); o público não
estatal (conhecido por terceiro setor, ou setor não governamental, que se volta ao interesse
público e não tem fins lucrativos, mesmo regido pelo direito privado); o corporativo
(também sem fins lucrativos, é orientado pelos interesses setoriais de um grupo ou
corporação como, por exemplo, os sindicatos, associações clubísticas, sistema S e outros) e
o privado, voltado ao lucro ou consumo privado.
A mudança do paradigma da institucionalidade das políticas sociais brasileiras se tornou
mais visível no Brasil dos anos 90, a partir da crise do Estado de Bem-estar Social que
colocou “em cheque” a capacidade de o setor público estatal prover o bem-estar de
maneira universal. Essa crise colocou em debate os papéis do Estado, mercado e família na
garantia do bem-estar individual e coletivo. Tais discussões trataram da crise financeira e da
suposta insuficiência do Estado, propagada pelo pensamento neoliberal, que enalteceu as
virtudes da autorregulamentação do mercado, do associativismo civil e do setor privado.
Sílvio Bava (2002) lembra que é importante não esquecermos que o reconhecimento de
vários setores com interesse público não quer dizer que estes tenham papéis substitutivos
das políticas públicas. Às vezes, de certa forma, suas ações começam “tapando buracos” nos
quais o Estado não dá resposta adequada, mas a tendência está na função mais significativa
da organização da sociedade civil: articular diversas forças sociais para melhor construir
respostas aos problemas que atingem a todos.
Esse contexto nos faz pensar também que os direitos não são, portanto, garantidos
apenas pela promulgação de leis. Valendo-nos delas, precisamos descruzar os braços e unir
pessoas, grupos e organizações no cumprimento das nossas responsabilidades. A cidadania
organizada delega ao Estado funções importantes para a sedimentação de canais de
participação. O espaço coletivo, porém, revela que uma política social não pode ser
desenvolvida somente na esfera pública, requer pactos entre os setores sociais e a
sociedade civil na elaboração e gestão das políticas, de modo organizado e consciente dos
problemas prioritários a serem tratados e opções possíveis para a conquista do “direito a ter
direito”, como discutido por Hannah Arendt (apud Telles, 1999).
Segundo Azevedo e Prates (1991), as políticas orientadas pela participação coletiva
implicam mudanças nas práticas individuais, grupais e institucionais, operadas no plano
interpessoal e no das organizações. Requerem, pois, mudanças na gestão que orienta as
relações interpessoais formais e de poder entre os atores envolvidos no processo: a
população beneficiária, gestores, provedores, financiadores e parceiros dos vários setores
sociais. Implicam, pois, inovações diversas quanto à gestão das políticas sociais, como
discutimos a seguir.

Quanto ao objetivo principal


O paradigma dominante no campo das políticas sociais tem como objetivo principal o
universalismo da oferta de serviços sociais, ou seja, a oferta homogênea, pretensamente
aberta a todos, e de alto custo, como saúde, educação, lazer. Já o paradigma emergente,
nas políticas sociais, muda o foco do objetivo principal, passando a considerar a
universalidade dos direitos sociais, isto é, o atendimento das necessidades básicas de todos
os cidadãos com base nos princípios da inclusão e equidade.
A inclusão com equidade se faz pelo atendimento às necessidades diferenciadas dos
sujeitos e grupos por meio de ações também diferenciadas, sem estigmatizar suas
diferenças (PBH, 2001).
Essa mudança de foco revela que, quanto mais se consolida a cidadania, mais se amplia
a luta pela própria cidadania, e por inclusão. Isso porque um dos graves problemas da
democracia é a injustiça social revelada pela desigualdade do acesso a condições básicas e
dignas de vida. Essa dura realidade retrata as diferenças entre sujeitos e grupos sociais, que
colocam “às claras” a exclusão de muitos que têm suas necessidades desconsideradas ou,
precariamente, atendidas.
As desigualdades produzem profundas segregações, abalando as bases estratégicas da
vida dos excluídos. Uma política de inclusão com equidade nos coloca diante do
reconhecimento e da valorização das necessidades das pessoas e seu desenvolvimento
social e humano, fruto de ações em um conjunto de condições objetivas e subjetivas que
proporcionam a qualidade de vida.
Assim, as ações políticas de lazer baseadas na inclusão com equidade buscam a criação
de condições que permitam aos diversos atores sociais serem reconhecidos e participarem
de escolhas no lazer, condições básicas para que seus interesses, suas demandas e
necessidades sejam atendidos. Para isso, as ações políticas procuram prever, criar e usar
canais de expressão e diálogo com a população, como destacam os gestores convidados a
participar desse nosso estudo.

A1: Ouvimos o público por meio de trabalho coletivo, diálogo, reflexão e respeito
sobre o dito. Procuramos qualificar nossos recursos humanos e comunidades para
exercício da crítica, autocrítica e trocas de experiências.

A2: Realizamos reuniões, conferências, orçamento participativo, plenária temática


sobre cultura, esporte e lazer. Criamos conselhos gestores, Conselho Municipal do
Desporto e Fundo Municipal de Desenvolvimento do Esporte e Lazer. Cada ação
demandou muita divulgação e contato com comunidades, motivando a
participação.

B1: Procuramos ouvir as comunidades nos atendimentos permanentes,


treinamentos de lideranças e diálogos com agentes de lazer das comunidades,
construindo com elas alternativas; discutimos o lazer no Orçamento Participativo
do município, desenvolvemos ações interdisciplinares para qualificar o
levantamento e atendimento de demandas.

B2: Realizamos pesquisa de opinião com servidores; entrevistas; Conferência


Municipal de Esporte e Lazer; intervenções lúdicas no trabalho e comunidades;
mobilização de representantes comunitários; levantamento de anseios,
dificuldades, potencialidades.

C1: Fazemos seminários distritais e encontros com as comunidades, trocas de


experiências e construção de calendário de ação para a cidade, definindo locais e
prioridades. Criamos conselhos municipais de cultura, educação, turismo, esporte,
lazer e meio ambiente. Fomentamos a participação, sistematizando necessidades,
práticas locais, ações que dão certo, problemas e seus controles, custeio,
investimentos dos setores e assuntos temáticos: negros, índios, deficientes,
mulheres, idosos, homossexuais e crianças.

D1: Desenvolvemos trabalhos com grupos considerando pesquisas de


necessidades, de expectativas e de satisfação, caixas de sugestões, bate-papos
informais; observação, registro e análise do envolvimento das pessoas nas
atividades. Mapeamos seus contextos, desejos, necessidades e
inclusão/acessibilidade nos nossos projetos.

E1: Construímos e sistematizamos, coletivamente, reflexões e conhecimentos que


deem sentido e significado às nossas ações, desenvolvemos formação continuada e
em serviço dos profissionais para a construção coletiva dos programas
socioeducativos, conscientizadores e lúdicos, estabelecendo um referencial de
qualidade reconhecido em âmbito nacional, sem “engessar” as ações desenvolvidas
nos diferentes Estados.

Esses depoimentos reafirmam o que diz Melucci (2001) quando destaca a democracia
como prática da liberdade e, por isso, direito de construção de espaços sociais de
reconhecimento, representação e expressão de identidades, que se afirmam nas diferenças
entre o eu e o outro. A liberdade resulta da necessidade de que todos tomem parte da sua
vida social, agindo para promover os interesses e as necessidades de todos (dimensão civil
da cidadania); diz respeito, também, ao fazer parte da vida em sociedade, com
oportunidade de pertencer a um sistema, identificando-se com os interesses gerais dos
grupos e comunidades (dimensão cívica). A existência simultânea dos componentes e
valores que estruturam essas duas dimensões é condição para que a ação política seja
autônoma.
A mudança de paradigma do objetivo buscado hoje pelas políticas sociais se traduz na
compreensão da política de lazer não mais como modo de preencher tempos ociosos das
pessoas, mercadorizar práticas culturais ou fazer favor a alguém, como aconteceu e
acontece em nosso meio, mas como ação que influi na constituição de identidades
individuais e coletivas, de corpos em movimento, falas, sonhos, erros, gostos, afetos,
conhecimentos, culturas, atitudes, funções e papéis sociais, que sofrem influência das
condições de homem, mulher, criança, jovem adulto, idosos, negro, índio, branco, com
diferentes habilidades corporais e outras especificidades.
Nessa concepção, o campo das decisões políticas inclui novos sujeitos, como
trabalhadores, índios, imigrantes, mulheres, homossexuais, crianças, jovens, idosos,
deficientes físicos, presidiários, enfermos e outros com necessidades especiais. É atribuída
uma especial relevância ao multiculturalismo e às memórias que expressam as diferenças
coletivas e individuais, valorizando culturas particulares historicamente desconsideradas
pelos grupos de poder.
Enfim, como campo de vivência de política inclusiva, o lazer é reconhecido como
tempo/espaço/oportunidade de constituição de sujeitos e identidades individuais e
coletivas.

Quanto aos critérios de prioridade e de expansão do modelo


Historicamente, as políticas públicas foram institucionalizadas tendo como prioridade a
população beneficiária e os setores que podiam fazer pressão no Estado, como a classe
média e os grupos organizados, gerando, com isso, um acesso segmentado e uma ampliação
progressiva, de cima para baixo, no atendimento de outras camadas da população. Exemplo
disso foi o direito à previdência social, que, até recentemente, era apenas de quem a ela
contribuía, ou seja, os trabalhadores do mercado formal.
Mudança significativa nesse contexto acontece a partir do momento em que políticas
sociais passam a assumir o princípio da equidade associado ao da universalidade, como
critério de prioridade e expansão do modelo de políticas sociais. Ou seja, o princípio da
universalidade dos direitos combinado com o princípio da equidade no acesso. É o que se
identifica como focalização na tradução da política em programas sociais – busca de maior
precisão possível dos beneficiários potenciais e desenho de programas que assegurem, por
meios diversos, um impacto per capita elevado sobre o grupo selecionado, ou seja, os mais
necessitados.
A focalização permite melhorar o desenho do programa e, quanto mais precisa for a
identificação do problema e dos envolvidos, mais fácil será desenhar medidas diferenciadas
e específicas, aumentando-se a eficiência no uso dos recursos escassos e elevando o
impacto produzido pelo programa ao concentrar os recursos na população de maior risco
(BID, 1997).
Assim, a democratização (direitos sociais ao alcance de todos) implica inclusão, que
requer equidade. Esta implica acessibilidade (vivência concreta das oportunidades
disponíveis) dos sujeitos e grupos às oportunidades de bem-estar e qualidade de vida,
garantidas pelas políticas sociais, aqui se destacando o lazer como garantia tanto de bem-
estar como de qualidade de vida.
Tais princípios partem do reconhecimento de que as pessoas e os grupos sociais são
diferentes entre si em vários aspectos (físicos, culturais, sociais, econômicos e outros). Esses
grupos também têm condições diferentes de acesso ao que está disponível em seu meio.
Todavia, as políticas sociais devem ter caráter universal, independente das diferenças
socioculturais e dos limites vividos. Se existem diferenças que impedem o acesso, devem-se
construir políticas que o viabilizem, como é o caso, por exemplo, da política de assistência
social, da política do idoso, das pessoas com deficiência etc.
As políticas de lazer devem avançar nessa direção, ampliando e diversificando
oportunidades culturais, superando barreiras que possam dificultar ou impedir o acesso dos
usuários a tais oportunidades/políticas. Para tal, precisam reconhecer o lazer como
tempo/espaço/oportunidades de liberdade de escolha com vista à vivência diversificada de
práticas culturais. Esse argumento desafia as políticas a atender as demandas do maior
número de pessoas, considerando as necessidades especiais dos sujeitos e grupos, o que
requer suporte necessário às escolhas e ao uso do que foi disponibilizado. Ou seja, a
mudança precisa se traduzir em ações programáticas, mas também na tecnologia física,
material e humana que garanta acesso a todos.
Por isso, devemos refletir criticamente sobre o cerne do problema a atacar. Sobre isso,
Kliksberg (2000) nos lembra que as desigualdades não se referem somente às carências
materiais – como pobreza socioeconômica que conduz à fome, ao desemprego, às doenças,
ao desabrigo, à falta de acesso a bens e serviços, como o lazer e outros. Pedro Demo (1996)
lembra que lidamos, especialmente, com pobreza entendida como repressão do acesso aos
benefícios sociais aos quais todos nós, por lei, temos direito, em decorrência,
principalmente, da falta de consciência política dos direitos e deveres sociais, desigualmente
distribuídos entre nós.
O compromisso com a redução de desigualdades sociais é histórico e supõe a
necessidade e a possibilidade de os cidadãos participarem de ações políticas que sejam,
"primeiro preventivas, indo às raízes do problema, evitando que [as desigualdades] se
processem; segundo redistributivas de renda e poder, o que implica atingir
concentrações de privilégios, processos de enriquecimento, acumulação de poder,
centralizações administrativas [e o direito à informações sobre processos e resultados
das ações, que qualifica novas conquistas]. Em terceiro lugar equalizadoras de
oportunidades, partindo-se do pressuposto de que as oportunidades foram
apropriadas pelo grupo dominante. Uma face desse desafio é a universalização [de
todos os direitos sociais]: todos devem ter acesso às oportunidades de modo
incondicional, com a mesma qualidade. Em quarto lugar [promotora de] política
social que deve ser, sempre que possível, emancipatória, unindo autonomia
econômica [voltada à auto-sustentação] com autonomia política [alicerçada por
práticas participativas conscientemente vividas]" (Demo, 1996, p. 21-23).
Nesse quadro de demandas, são muitos os limites a serem superados para a garantia do
acesso ao lazer: preconceitos; dificuldades financeiras; escassez de tempo disponível;
dificuldades de moradia e transporte urbano; barreiras físicas para pessoas portadoras de
necessidades especiais; acesso geográfico difícil; falta de conhecimentos/informações sobre
as oportunidades culturais disponíveis; restrita oferta de vivências culturais etc. Por isso, as
políticas de lazer precisam ser também articuladas com políticas de garantia de renda
mínima, trabalho, provisão de serviços para a família, saúde, educação, planejamento
urbano, transporte, cultura, esporte e outras.
Para garantia do acesso da população à maior gama possível de vivências de lazer, é
imprescindível construção, manutenção e uso viabilizado de espaços e equipamentos. É
preciso gerar oportunidades de vivências de diversificados conteúdos culturais no lazer:
físicos, esportivos, artísticos, sociais, intelectuais, tecnológicos, turísticos, dentre outros. E,
também, garantir polivalência de animação lúdica, mobilizada pelos usuários, grupos,
comunidades e profissionais qualificados.
A acessibilidade amplia-se, assim, com a animação de equipamentos culturais
construídos e os disponíveis na natureza. Espaços que, muitas vezes, não são reconhecidos
por comunidades ou órgãos de preservação cultural. Nesse sentido, a ocupação espacial
precisa ser aliada ao controle, preservação, proteção e valorização do meio ambiente.
Precisamos cuidar dos rios, das matas, campos, cachoeiras, praias, florestas, montanhas e
outros espaços naturais usados no lazer.
Essa é uma questão em que o poder público pode interferir muito, por exemplo, por
meio de leis de uso e ocupação do solo, definindo exigências referentes à construção e ao
uso de áreas para parques e outros equipamentos de lazer. Além disso, uma rede de
serviços com infraestrutura adequada, agentes capacitados e oferta contínua de atividades
de lazer para a população são extremamente importantes para a acessibilidade ao lazer.
O acesso responsável ao patrimônio cultural disponível é, pois, indispensável à
democratização do lazer: exige competência não só do poder público, como dos setores
sociais, considerando a qualidade de prestação de serviços a ser garantida pela sua
eficiência, eficácia e ação socioeducativa conscientizadora sobre o lazer. Exige consciência
necessária para o acesso às oportunidades de participação no lazer, considerando os
gêneros da prática, assistência e busca de conhecimentos e de participação crítica e criativa,
superando as vivências conformistas no lazer.
Com o objetivo de promoção de acessibilidade, os gestores entrevistados destacaram
algumas experiências vividas, por exemplo:

A1: construção, manutenção e animação de Unidades Recreativas (32 parques e


praças), do Ginásio Municipal Tesourinha e do Parque Arariboia (novo ginásio e a
cancha de bocha coberta foram oriundos do Orçamento Participativo e os
banheiros e almoxarifado construídos com verbas exclusivas da comunidade) onde
são promovidas diversas atividades para todas as idades. Revitalização dos Centros
de Comunidades (administração de equipamentos esportivos dos Centros de
Comunidade); Marina Pública (criação de Escola Pública de Vela); promoção
continuada de eventos para todas as idades (Em Cada Campo Uma Escolinha;
Programa Brincando na Rua; Programa Lazer e Saúde; Porto Verão); atividades
específicas para crianças (Projeto Graxaim, Brincalhão, Brinquedoteca, Brincando
no OP); política específica para futebol de várzea da cidade, para estudantes da
educação básica, idosos, e mulheres.

A2: Centro Esportivo Municipal (qualificado para realização de atividades


recreativas diversas); construção e manutenção de 125 equipamentos públicos de
esporte e lazer, gerenciados por conselhos gestores; construção de parque para
esporte e lazer no meio rural; Núcleos de Atendimento Comunitário (NACs) –
Unidades esportivo-recreativas com acesso gratuito transformam espaços públicos
em áreas de lazer permanentes; Central do Esporte e Lazer: reúne e difunde
calendário anual de eventos da área realizados no município e as opções de
esporte e lazer à disposição da população (parceria com diversas entidades); Curso
de Gestão Esportiva: parceria Ministério de Esporte e Instituição de Ensino
Superior; realização de atividades específicas para crianças, jovens, adultos e
idosos, estudantes; pessoas portadoras de deficiências, associações de bairros,
atletas amadores; programas sistemáticos e eventos (Bate coração, Festerando,
Festa da criança, Brinca Enxutão).

B1: a constituição de Centros de Referência Regionalizado de Esporte e Lazer


reuniu vários programas: Recrear (recreação para pessoas de diferentes idades);
Superar (política municipal de inclusão das pessoas portadoras de deficiências nas
atividades de esporte e lazer); Vida Ativa (política de Esporte e Lazer para
população acima dos 50 anos); MEL (difusão esportiva para crianças e
adolescentes, incluindo os pertencentes à população de rua); Caminhar (educação
conscientizadora da população para saúde e qualidade de vida); Dente de Leite
(promoção do futebol campo para crianças e adolescentes, incluindo os
pertencentes à população de rua); Bom de Bola, Bom de Escola (escolinhas de
esporte para crianças e adolescentes das classes menos favorecidas, incluindo os
pertencentes à população de rua).

B2: programas com orientação técnica e acompanhamento pedagógico, psicológico


e social: Lazer e Trabalho (integração cultural entre servidores municipais e seus
familiares); Lazer na Cidade (fomento do lazer e integração cultural entre as regiões
da cidade, promovendo ações demandadas pelas comunidades, escolas, creches,
associações de bairro etc.); 2º Tempo (promoção esportiva e recreativa para
crianças e adolescentes, em convênio com os governos estadual e federal e
parcerias com clubes e ONG’s); Viva o Esporte Viva Melhor (aprendizagem e
aprimoramento das técnicas esportivas para crianças, adolescentes e pessoas com
restrições e necessidades especiais); Futebol Melhor (atende demanda das
comunidades relativa ao futebol de campo); Bicicross (disponibilização de pista
oficial aberta à comunidade, cursos e treinamento). Promoção de vários eventos de
lazer, de competição e festivais em diferentes níveis técnicos (iniciação ao alto
rendimento).

C1: projeto político pedagógico: escolas de esporte (nas escolas municipais e


instituições conveniadas); Vivências Corporais (para crianças, jovens, adultos e
idosos); Cultura, Escola e Alegria (para alunos, trabalhadores da educação, pais e
população dos entornos das escolas; projeto integrado à alfabetização de jovens e
adultos); Contador de História (preservação da memória da cultura do estado,
reaproxima pessoas de todas as idades); Mala do Livro (acesso às produções
literárias e não literárias reunidas pela comunidade); Projeto Folclore (nas escolas
municipais, preservação de diversas manifestações da cultura popular); Cores da
Cidade (movimento cultural de ressignificação da pichação); Escola Circo (para
crianças e adolescentes, prioriza quem vive em situação de risco); Dança (vivências
corporais e Mostra de Dança); Brinquedoteca (nos espaços esportivos e culturais da
cidade, abertas às comunidades e escolas); Felizcidade (criação de grupos e
movimentos organizados de lazer, que atuem nas perspectivas interdisciplinar e de
cogestão com a prefeitura); eventos esportivos e de lazer para servidores
municipais, comunidades e escolas.

D1: para atender trabalhadores das empresas industriais, suas famílias e


comunidades são desenvolvidos, nas empresas e dependências do SESI (clubes do
trabalhador, teatro, escolas, colônia de férias etc.), programas corporativos como:
SESI Ginástica (desenvolvido por meio de exercício físico sistemático e realizado por
livre escolha dos sujeitos ); SESI Arte (promoção da arte e cultura, considerando
suas diversas manifestações); SESI Esporte (promoção, da prática esportiva
democrática, consciente e com autonomia); SESI Turismo (conjunto de opções de
lazer caracterizadas pela atividade turística, utilizando a estrutura física do SESI e
seu entorno). Além desses programas, são desenvolvidos projetos especiais
elaborados e implementados a partir de demandas específicas de cada unidade,
parceiros externos ou comunidades locais. Um projeto especial poderá vir a se
tornar programa corporativo caso a demanda que atender for sistemática, ou seja,
considerado no conjunto de prioridades do SESI, definidas por avaliação técnica
e/ou estratégica da entidade.

E1: Programas: Lazer na empresa – promoção de estilo de vida saudável por meio
de assessoria, consultoria e desenvolvimento de projetos de lazer nas áreas de
atividade física/exercício físico (Programa SESI Ginástica na Empresa, avaliação
física, reeducação postural, fitness); arte (teatro, informação, coral); esporte
(formação de times, torneios internos); turismo (pacotes turísticos, Colônias de
Férias) e eventos (festas comemorativas, gincanas, concursos); SESI esporte –
promoção da prática esportiva de participação, formação e rendimento voltada à
valorização humana pelos Jogos do SESI; esporte de inclusão social; formação
físico-esportiva; atividades físico-esportivas de participação; assessorias e
consultorias e eventos esportivos; SESI Cultura – promoção de acesso às vivências
artístico-culturais diversificadas, capacitação de gestores da cultura; organização de
Banco de Dados (Censo Cultural do País); Gestão do Conhecimento e da Informação
na Cultura; circulação de espetáculos; projetos especiais de implementação do
Programa SESI Cultura em empresas e escolas; incentivo à dramaturgia (educativa);
realização da Bienal das Artes e do Prêmio Bianual “Marcoantonio Vilaça para as
Artes Plásticas” (2004/primeira edição; exposição itinerante com vencedores em
2005/2006).

Quanto ao enfoque
Por um lado, as políticas sociais ainda mantêm o enfoque nos meios, isto é, na cobertura
à infraestrutura física e recursos materiais para instituições prestadoras dos serviços sociais,
tendo-os como indicadores, isto é, como medida de avaliação da relação custo-benefício no
gasto público social. O gasto social é a soma de todos os gastos do estado que possui
conotação social. Não é um indicador adequado para o desenvolvimento social – que se
relaciona também com o desempenho econômico do país – nem adequado ao investimento
em capital humano, por ser elevado e, muitas vezes, mal-utilizado para alcançar essa
finalidade.
Por outro lado, cada vez mais, as políticas sociais inovadoras focalizam os fins,
orientando-se por resultados: impactos dos programas sociais e magnitude dos benefícios
de acordo com os objetivos, definidos com base em reais necessidades e tendo, por
finalidade, mudanças nas condições de vida dos beneficiários. O indicador utilizado é a
relação custo-impacto, que permite apreciar se o programa está otimizando os recursos e
maximizando o impacto, ao menor custo possível.
Mas isso não é fácil. Quantas vezes encontramos a valorização de uma ação ou entidade
pelo muito que ela gastou, sem se preocupar com os resultados efetivos de quantas pessoas
ela atendeu? A intensificação dos meios é, muitas vezes, confundida com a realização dos
objetivos.
Por isso, o primeiro passo para concretizar políticas participativas é a realização de
diagnósticos sobre a realidade vivida pelos beneficiários das políticas, para o que é
necessário o envolvimento destes. E são muitos os problemas que vêm sendo identificados
quanto às políticas sociais de lazer em nosso meio, como, por exemplo:

A1: é ainda restrito, por parte do governo e da população, o conhecimento da


importância do lazer para a qualidade de vida dos cidadãos. O lazer merece maior
investimento financeiro e educativo para se consolidar nas políticas sociais.

A2: em nosso município precisa ser melhorada a consciência da população e dos


gestores de que a participação, embora dê mais trabalho e exija predisposição de
todos, não pode ser substituída por benesses, que até podem sanar questões e
problemas pontuais, mas não contribuem para a emancipação da população. Não
fomos educados para a participação e isso dificulta muito.

B1: falta maior participação das comunidades no desenvolvimento de ações no


lazer e de políticas favoráveis ao desenvolvimento sustentável da comunidade.
Precisamos avançar nas questões administrativas com maior descentralização das
ações, combinadas com a criação de Conselho Municipal de Esporte e Lazer e
Conferências Públicas Deliberativas. A Secretaria precisa ampliar parcerias com
setores públicos estadual e federal e Terceiro Setor.

B2: precisamos melhorar a comunicação e interlocução da Secretaria com a


comunidade. Pensando nisso, trabalhamos no planejamento das pré-conferências
Regionais. Fazemos com o que temos, mas estamos muito longe do que queremos.
As demandas são tantas.
C1: precisamos melhorar a comunicação/divulgação das ações desenvolvidas. Os
veículos utilizados eram os mais alternativos. Os veículos de comunicação com
maior abrangência – rádio, imprensa escrita e TV – na maioria das vezes não
tinham interesse pelo lazer. Daí a necessidade de criarmos rádios comunitárias e de
mais tempo para consolidar a participação popular.

D1: a sociedade hoje exige formação acadêmica dos profissionais de lazer para
atuar em políticas participativas, maior disponibilidade de tempo de todos os
envolvidos, processos menos burocráticos e decisões mais rápidas.

E1: necessitamos da construção de um modelo mental corporativo, que ainda é


individual. À medida que os modelos mentais são explicitados e compartilhados,
expande-se a base dos significados compartilhados na organização e aumenta a sua
capacidade para realizar ações integradas. Precisamos ainda de maior alinhamento
conceitual, ampliando a reflexão sobre a própria prática, seus sentidos, significados
e intencionalidades.

Curiosamente, a maioria dos gestores entrevistados destaca que o principal problema a


se enfrentar é a falta de conscientização, conhecimento e informações a respeito do lazer
tanto por parte dos gestores como por parte da população beneficiária.
Esse dado nos remetem a discussões que vêm sendo realizadas por Sílvio Bava (2002) ao
afirmar que, para concretizarem-se as inovações políticas é preciso que haja atuação
constante e qualificada da sociedade que estimule a participação consciente, pois o objetivo
principal não é apenas atender necessidades materiais do público-alvo, mas, especialmente,
fortalecer a capacidade dos cidadãos se autogovernarem nos diversos aspectos da vida
coletiva, justificativa que faz com que um governo socialize o poder. É o que destaca Sílvio
Bava (2002):
"nunca é demais lembrar que é pela associação livre de vontades que o poder se cria.
Desenvolver a capacidade da população de exercer a cidadania, isto é, a capacidade
de saber escolher, efetivar escolhas e se beneficiar delas é a mola central desse
processo" (p. 87).
Inovações importantes nas políticas sociais são construídas pelos processos continuados
de qualificação em serviço de quadros profissionais e promoção de políticas socioeducativas
conscientizadoras. A participação – dos dirigentes à população beneficiária – em todo
processo também é fundamental para alicerçar o envolvimento de todos, desde a fase
diagnóstica.
Outro aspecto importante diz respeito ao monitoramento da ação em desenvolvimento,
ou seja, ao acompanhamento sistemático da ação com vistas a verificar a adequação de
seus objetivos e metas, metodologias, tendo em vista o resultado que se deseja atingir com
a ação. Assim, ao longo do processo, é indispensável a “gestão das informações” levantadas
em todo o monitoramento da ação, organizadas e disponibilizadas de modo que todos
possam ter acesso a elas e ampliar seus conhecimentos sobre o vivido, o que é básico nos
processos de tomadas de decisões e comprometimento com a ação. Esse compromisso é
mais evidente quando há agilidade nas informações – o processamento destas reflete tanto
incertezas do setor ou organização quanto consciência sobre as fontes que melhor
respondem às necessidades dos sujeitos e grupos.
Para Chun Wei Choo (1998), nos processos centrados na participação das pessoas, as
informações podem ser usadas com base em três objetivos principais, que são: dar
significados às ações realizadas, gerar novos conhecimentos sobre eles e orientar ou
fundamentar tomadas de decisões. A criação de significados (manifestados e negociados
nas práticas de tomada de decisões), além de estruturar a percepção, por todos, dos
problemas e das oportunidades vividos, produz uma estrutura de sentidos e propósitos
comuns que dá identidade e valor às ações realizadas.
Choo (1998) nos ajuda a entender que a qualidade desse processo depende da forma
como pessoas, grupos e organizações lidam com o “conhecimento tácito” (usado pelas
pessoas para realizar suas atividades e dar sentido a elas, expresso pelas habilidades na
realização das ações, não usando regras predefinidas) e com o “conhecimento explícito”
(expresso formalmente por sistemas de símbolos e, por isso, comunicado usando regras,
métodos e outras formas de registro difundidas amplamente).
Alguns dos resultados citados pelos gestores com os quais conversamos expressam
como conhecimento, informação e participação têm influído na superação de problemas
vividos pelas políticas de lazer em nossa realidade. Os principais resultados citados são:

A1: a coerência entre discurso e prática; aumento de participantes nas atividades


com maior consciência sobre o que fazem; avaliação positiva feita por eles;
aumento e diversidade das ações oferecidas; grande número de voluntários como
parceiros; qualidade do trabalho; grau de satisfação da maior parte dos
funcionários da Secretaria.

A2: ver a comunidade acreditando, vivenciando e reivindicando lazer.

B1: melhor estrutura gerencial da Secretaria; capacitação direta de líderes


comunitários e indireta de pessoas da região onde atuamos; integração de
projetos, setores, departamentos e servidores municipais; maior acesso às
atividades desenvolvidas; orientação das comunidades sobre uso de espaços e
equipamentos disponíveis para o lazer; produção científica e pedagógica sobre
práticas de conscientização da comunidade sobre o lazer na sua vida.

B2: conquista de espaço para ações, reflexões e participações no lazer da cidade;


continuidade do trabalho, independentemente do segmento político partidário à
frente das primeiras ideias, sensibilização da população e gestores da cidade para o
lazer; parcerias com outros órgãos da Prefeitura, clubes, empresas, ONGs;
mapeamento de projetos comunitários existentes.

C1: a descentralização das políticas, inclusão e acesso de maior parcela da


população ao lazer; aumento de equipamentos de lazer nos bairros periféricos, da
autoestima de muitos que vivem na cidade e investimento/recursos públicos para o
setor, com participação popular na definição das políticas; a ação intersetorial
entre as secretarias do governo.
D1: cooperação do grupo de trabalho; crescimento pessoal e profissional de cada
um da equipe; consciência de onde estamos e para onde vamos; construção de
uma política com uma “causa” comum – a educação para a autonomia no lazer –
independente do campo de atuação – artes/esporte/turismo/atividade física;
reconhecimento institucional de que é possível um trabalho “sério” sem ser sisudo;
importância da “rede”; maior satisfação dos beneficiários.

E1: maior organicidade na articulação e no alinhamento teórico-prático dos nossos


programas em torno de objetivo comum e construção coletiva das ações; nova
visão sobre os conteúdos (princípios, conceitos estruturadores, valores e
procedimentos) da política de lazer; busca do romper da dicotomia entre
planejamento/execução/avaliação; reconhecimento de que a política de lazer está
no dia a dia dos profissionais; busca de sentido e significado das ações; lazer na
entidade deixa de ser visto como “atividade” e passa a ser reconhecido como
dimensão cultural, alinhada aos nossos objetivos estratégicos; busca de
sistematização de conhecimentos para propor tecnologia de ação social integrada
que subsidie nossos programas socioeducativos lúdicos.

Esses dados apontam, também, para o aspecto das inovações políticas discutidas a
seguir.

Quanto à lógica de tomadas de decisões


Nesse sentido, as mudanças mais significativas que temos vivido nas políticas sociais se
revelam nas mudanças relativas ao modelo burocrático, orientador das políticas
dominantes, segundo o qual são adotadas estratégias macro, definidas pelo Estado,
considerado quem sabe sobre o que e por que fazer. Os usuários dos serviços oferecidos são
definidos sem critério de seleção.
Essa lógica centralizadora reflete um momento em que nossa sociedade se regula pela
lógica do mercado, impõe um padrão de sociabilidade individualista, privatista, competitiva,
concorrencial, não considerando o interesse público e demonstrando que a democracia e
cidadania como valores não encontram espaços.
Ao contrário, um paradigma emergente de política social focaliza uma lógica de tomada
de decisões definidas por projetos nos quais os usuários participam em suas proposições e
controle. As ações políticas são dinamizadas na convivência e atuação ativa dos atores
sociais nelas envolvidos, organizados sob diversas formas de ação em que estes têm efetivas
condições de influir no processo e usufruir a experiência vivida seja pela participação do tipo
“restrita” e/ou “ampliada”.
Para Azevedo (1991), a participação restrita caracteriza-se pelo envolvimento da
comunidade diretamente beneficiada no projeto político específico ou programa de âmbito
local. Já a participação ampliada refere-se à capacidade dos grupos organizados de
influenciar, direta ou indiretamente, as macroprioridades e diretrizes das políticas sociais,
seja na formulação, reestruturação ou implementação de seus programas/projetos.
Por exemplo, as iniciativas voluntárias de participação no lazer (Pinto, 2002b) são
exemplos de participação restrita, pois representam o envolvimento da comunidade em
ações de lazer realizadas no âmbito local. Já as discussões dos orçamentos participativos
que incluem o lazer (Zingoni, 1999; Rodrigues; Gutterres, 1996) podem se caracterizar como
participação ampliada, influenciando tomadas de decisões no âmbito municipal.
Enfim, como esclarece Benevides (1996), a participação de que falamos é aquela que se
realiza por meio de canais institucionalizados que garantem a intervenção direta dos
beneficiários da política nas atividades de sua formulação e controle das ações
implementadas. A cidadania ativa pela participação é, pois, um princípio democrático, e não
um favor ou receituário político que pode ser aplicado como medida ou propaganda de
governo, sem continuidade constitucional: é a realização concreta da democracia.
Mas, ao lado de ganhos a favor da cidadania (e da participação como um dos princípios
desta), lidamos com dificuldades na sua concretização. Isso porque muitos se referem à
participação sem a noção do que significa, sem consciência de sua inserção nas discussões
sobre poder na sociedade, que imbrica os direitos sociais, civis e políticos.
Como enfatiza Melucci (2001), as negociações são fundamentais para manter a
liberdade coletiva. Para isso, é necessário garantir espaços sociais, preservados do controle
repressivo, que garantam a liberdade de pertencimento, ou seja, de se fazer representar. A
representação significa a capacidade de dar voz às demandas e aos interesses dos sujeitos
ali representados. A prática participativa é, portanto, um espaço político que assegura a
continuidade das demandas e a sustentabilidade de ações, pois mobiliza os atores coletivos
envolvidos.
Um espaço configurado, desse modo, necessita de abertura para o diálogo baseado no
respeito ao outro e às identidades dos sujeitos e comunidades, o que é básico para
compartilhar ideias e objetivos. A participação requer, pois, postura de sujeitos, grupos e
organizações em relação a si mesmos, aos outros, aos ambientes em que vivem, bem como
valores, significados e sentidos que atribuem à sua ação política. Por isso, não pode ser
meramente induzida por dirigentes ou outras lideranças. Ela é um processo de interação
face a face, que nasce de relações partilhadas com grupos organizados. Esses se constituem
pertencimento dos indivíduos a uma coletividade claramente identificada, com regras e
objetivos definidos e com interesses comuns. Ela é, pois, uma relação de mão dupla:
determinada pelo modo como o sujeito lida com o grupo e pelo modo como o grupo
favorece o processo de identificação, com e inclusão no mesmo.
As políticas participativas de acessibilidade associam-se à construção de espaços
políticos para negociação de interesses públicos e pactos sociais, envolvendo atores sociais
e gestores de diferentes setores empenhados na conquista de direitos.
Como diz Laura Veiga (2001), as inovações políticas, ao introduzir novos atores no
processo decisório, ampliam as condições de atendimento às demandas prioritárias das
comunidades. Também aumentam as dificuldades da elaboração e implementação das
políticas, pois não é fácil atender a todos os interesses e superar os limites vividos. Por isso,
na prática, a política inclusiva requer consensos e negociações entre os participantes.
Requer que gestores e público beneficiário encontrem, juntos, maneiras de enfrentar os
desafios.
Novas estratégias têm orientado a reorganização das funções e formas de gestão,
desafiado os governos municipais e setores que atendem interesses públicos na busca de
eficiência e equidade na formulação e execução de suas políticas sociais, como discutido a
seguir.

Descentralização da administração pública e de decisões


É o processo de transferência de poder de níveis centrais para periféricos o que
promove a reestruturação do aparato central, não para reduzi-lo, mas para torná-lo mais
ágil e eficaz (PBH, 2001). A descentralização é, pois, uma estratégia que se baseia na gestão
de proximidade. Funda-se no pressuposto de que tudo aquilo que for possível deve ser
realizado em um nível da administração pública mais próximo do cidadão, isso sem perder
de vista a necessária garantia de “equidade” e redistribuição de bens e serviços públicos no
espaço da cidade.
Como argumenta Marco Aurélio Nogueira (1997), essa é uma prática que se refere às
estratégias técnicas, fiscais, administrativas e, também, político-participativas, já que só
acontece quando envolve diretamente a população beneficiária das ações promovidas. O
princípio da descentralização amplia a participação das comunidades e as aproxima do
governo, possibilitando maior agilidade e controle das ações e decisões governamentais,
bem como prática política mais justa e menos autoritária. Instiga a redefinição do
funcionamento burocrático, no sentido de fazer a administração funcionar desde a ponta,
na qual se dá a interface com o cidadão. Ao aproximarmo-nos territorialmente dos cidadãos,
precisamos respeitar a heterogeneidade e a complexidade de cada região, suas carências e
potencialidades.
Deve-se considerar a territorialidade das ações descentralizadas, ou seja, qual recorte
relevante no espaço, considerando escala e acessibilidade a bens e serviços (PBH, 2001), se
quer privilegiar, tendo em vista os objetivos a serem alcançados? Para Ricci (2001), a
definição do território acontece por meio de três movimentos: o primeiro consiste da
integração dos equipamentos públicos; o segundo, da reorganização do corpo técnico; e o
terceiro, da redefinição das áreas homogêneas.
As decisões devem ser compartilhadas com o público local por meio do incentivo a
estruturas colegiadas territorializadas. O objetivo é articular formas de democracia direta –
os próprios beneficiários decidem sobre as políticas – com formas representativas – eleição
de representantes que fazem a mediação entre o Estado e a sociedade civil. Na prática,
podemos perceber essa teoria política pelo modo como são vividas as instâncias de tomadas
de decisão nas experiências políticas, considerando as características e experiências próprias
de cada contexto. Vejamos alguns exemplos:

A1: foram muitas reuniões e encontros de qualificação dos recursos humanos:


muito diálogo, paciência e humildade.

A2: as decisões foram tomadas nas reuniões de planejamento da equipe da


Secretaria e com a comunidade, Conselho Municipal, Conferências, Orçamento
Participativo, Plenária Temática, Congresso da Cidade.

B1: os técnicos da Secretaria coordenavam os projetos sociais de esporte e lazer.


Havia uma coordenação geral para implantação do setor de ação comunitária no
organograma da Secretaria. As ações desenvolvidas eram decididas com as
lideranças comunitárias participantes de cada projeto.

B2: no programa Lazer e Trabalho as decisões foram tomadas com os servidores.


No programa Lazer na Cidade discutimos com a comunidade por meio das regionais
administrativas, associações, grupos organizados. Elaboramos Pré-conferências
Regionais de Esporte e Lazer para diagnosticar anseios, potencialidades e
lideranças de cada região da cidade, preparando para a 2ª Conferência Municipal
de Esporte e Lazer do município. Na Secretaria, nossa principal instância de decisão
é o Conselho Gestor e nos Pontos de Encontro de Lazer discutimos e decidimos
com os agentes comunitários.

C1: as instâncias de decisão são os: Encontros das Comunidades, Congressos


Temáticos e Setoriais da Cidade, Conselhos Municipais das áreas afins, Encontros
com Famílias.

D1: o envolvimento da alta direção é básico para o sucesso da mudança. Foi


fundamental o envolvimento do Conselho/Superintendência, corpo técnico,
gerentes, assessores, analistas, terceiros, parceiros, estagiários e beneficiários
(representantes).

E1: as instâncias de decisão foram de nível estratégico.

O local que é força é também limite. As ações descentralizadas sem dúvida são úteis,
mas não podemos descuidar do acúmulo progressivo de forças que precisam se consolidar
por meio de medidas mais amplas em outros níveis de poder.
Uma possibilidade de efetiva participação na cidade, citada por todos os gestores
entrevistados, é o Orçamento Participativo (OP). Essa é uma estratégia fundamental para as
políticas sociais, uma vez que reflete a direção política das relações econômicas referentes
ao processo estatal de alocação e distribuição de valores conforme as prioridades dos
municípios. O alcance de certo patamar de equidade implica a combinação de opções
políticas: negociação de interesses, incentivos à acumulação e ao crescimento, provisão de
meios de subsistência aos mais carentes e ações redistributivas.
Segundo Rodrigues e Gutterres (1996), o OP contribuiu para aumentar a consciência da
população e da administração municipal sobre a importância do lazer como fator de
qualidade de vida. Por intermédio dele, muitas regiões de Porto Alegre priorizaram
investimentos também na área de lazer (construção de ginásio poliesportivo, praças e
parques com fixação de profissionais de Educação Física nesses locais, reforma de campos
de futebol e quadras esportivas).

A1: a Prefeitura apostou na criação e execução de um planejamento, pautado em


eixos temáticos, que possibilitou ações intersetoriais entre as secretarias e criação
de uma esfera pública não estatal de planejamento e controle social que, de 1997
até 2000, se expressou pelo OP e, de 2001 até 2004, avançou para o Congresso da
Cidade. O Congresso da Cidade foi um planejamento socialmente construído,
experimentado a partir de 2001, incorporando o acúmulo de quatro anos de OP
(uma vez que se constataram enormes limitações da experiência de planejamento
participativo centrado na elaboração do orçamento da cidade). O Congresso da
Cidade foi um passo além do OP, discutindo as políticas públicas a partir de uma
visão integral da cidade. O mais importante não era apenas entender os problemas
e as necessidades do espaço onde se morava para demandar obras, serviços e
equipamentos, mas entender a cidade como um todo, suas dinâmicas sociais
contraditórias e problemáticas. As Políticas de Esporte e Lazer passam a ser
planejadas a partir das diretrizes de governo, amplamente discutidas e organizadas
com diversos grupos sociais da cidade.

Em Caxias do Sul, também, o aumento de equipamentos de esporte e lazer deu-se pela


priorização da população das diversas regiões da cidade no OP. Segundo Bonalume (2004),
até 1997 mais de 50% desses equipamentos se localizavam no centro do município. No final
de 2004, esse índice caiu para 30%.
Outra possibilidade efetiva de participação na gestão das políticas públicas, citada pelos
gestores entrevistados, foi a criação dos conselhos. Cada um tem sua criação estipulada por
lei. Foram criados como instrumentos de expressão, representação e participação da
sociedade, com potencial para promover transformação política. São espaços de cogestão e
de coparticipação entre governo e sociedade civil, que podem se constituir instrumentos
importantes de mediação entre governo e sociedade.
Os conselhos são órgãos colegiados encarregados de formular, acompanhar e fiscalizar
as políticas públicas setoriais, considerados indispensáveis para a descentralização e
democratização das políticas públicas por serem oportunidade de decisões mais coerentes e
realistas quanto aos problemas, necessidades, construção de alternativas e transparência
administrativa (Grau, 1998).
Contudo, esse instrumento tem apontado limites quanto à participação cidadã. Em sua
maior parte, os conselhos são paritários, ou seja, metade é representante da sociedade civil
organizada e a outra metade agentes governamentais, todavia, a assimetria existe. Por
exemplo, a atuação dos representantes da sociedade civil é voluntária, enquanto os agentes
governamentais são remunerados pela participação, utilizando do horário de trabalho
remunerado para participar dos conselhos.
Há, ainda, diferenças significativas entre os representantes da sociedade civil. Não são
todos iguais. Há associações e grupos mais organizados do que outros, sendo que muitos
membros de associações e grupos ficam à mercê das pressões de representantes de
governos, que buscam controlá-los para interesses próprios. Outras vezes, como a
comunidade não se mobiliza para o lazer, o gerente municipal decreta a formação de um
conselho, de cima para baixo, captando voluntários que vão participar e reproduzir a lógica
das relações de poder daquele local. Os conselhos, enfim, são diferentes entre si. E, mesmo
quando funcionam adequadamente e os voluntários participam, não substituem o governo.
O conselho estabelece diretrizes, coloca limites e pode cobrar se o governo não atuar de
acordo com eles. A margem de manobra de qualquer governo na hora de implementar,
porém, é muito grande.
Sílvio Bava (2002) lembra ainda que, em relação aos conselhos de gestão, além da falta
de recursos disponíveis para implementação das políticas, enfrentam outra dificuldade que
é a falta de capacitação da população para elaboração, implementação, avaliação e
prestação de contas desse modo de gestão, ficando à mercê dos técnicos do setor público,
isso quando os conselhos não são instituídos por prefeitos que apenas querem garantir
repasse de verbas, nomeando amigos e partidários para sua composição.
Ricci (2001) destaca, ainda, a importância da parceria entre público e privado no campo
das políticas sociais e da descentralização. Para ele, quando a transferência de poder se faz
para cooperativas e associações ou outro tipo de coletividade sem fins lucrativos, deve ser
feita uma descentralização máxima, que precisa ser limitada nos casos em que o governo
permanece como fiador das condições que viabilizam o desempenho satisfatório das
funções desenvolvidas.
Para o autor, são várias as formas de operacionalização da descentralização
extragovernamental: tradicionais concessões de obras e serviços públicos, contratação de
obras ou serviços subordinados às normas gerais de licitação e terceirização de serviços em
que certas atividades de um ente público são transferidas a fornecedores particulares,
conservando-se, entretanto, o controle estatal sobre quantidade, qualidade e preço dos
bens e serviços fornecidos.
Setores sociais, setores institucionais, pessoas passam a estabelecer parcerias de vários
tipos: convênios entre instituições, acordos, contratos e, de modo fundamental, renovam
modos de gestão: intersetoriais, em rede. Há equilíbrio dos diversos interesses em jogo. O
que vale é que todos ganham. Por exemplo, públicos ganham melhores serviços,
profissionais a capacitação, os conselhos a eficiência do trabalho, a prefeitura ou entidade a
visibilidade política de sua ação.

Intersetorialidade
A intersetorialidade é outra condição necessária para superar a fragmentação existente
no planejamento e execução das políticas setoriais, bem como para garantir uma gestão
sinérgica e equalizadora que supere as superposições e competições dos diversos
programas e ações setoriais. As estruturas colegiadas de gestão serão espaços de
consolidação dessa integração, coordenados pelas áreas centrais e contando com a
participação das áreas temáticas e regionais (Rosa, 2001).
A intersetorialidade é compreendida como um princípio que privilegia a integração
matricial das políticas sociais, tanto na fase de formulação quanto nas de execução e
monitoramento. Essa matricialidade representa o eixo coordenador e organizador dessas
políticas, potencializando sua integração, com impacto positivo em seus efeitos (PBH, 2001).
As ações devem ser integradas de modo interdisciplinar, envolvendo profissionais e
multifuncionalidade dos equipamentos que articulam diversos serviços e atividades.
Exemplificando, a escola pode incorporar também posto de saúde, centro cultural, espaço
de lazer; os centros esportivos públicos podem incorporar ações preventivas de saúde,
educação informal, complementação alimentar e educação para o lazer. Essas e outras
propostas implicam planejamentos e gestão em rede.
Gestão em rede
A gestão em rede é a construção de espaços de convergência de vários atores sociais
que se completam à medida que articulam esforços para atuar em relação a objetivos
comuns, otimizando recursos e impactos de cada ação no público beneficiário, que também
é comum (Ricci, 2001).
Assim, a gestão em rede consiste, em última instância, da fusão das ações de setores a
partir da territorialização da gestão, pois não há como resolvermos sozinhos os problemas
sociais. Cresce a necessidade da compreensão do todo do contexto e das relações de
complementaridade e interdependência entre as partes envolvidas no trato dos problemas.
Por isso, a gestão em rede baseia-se na inter-relação de necessidades e suas influências
mútuas, bem como na articulação de diversos campos sociais no trato das demandas
atendidas na sua globalidade. Requerem a compreensão dos beneficiários das ações
políticas, considerando a totalidade de suas necessidades socioculturais (familiares,
escolares, de trabalho, lazer, comunitária, culturais etc.).
Para isso, a lógica é simples. Há integração de ações interdependentes, complementares
entre elas e com equifinalidade. Ou seja, todo ator – individual ou coletivo – está inserido
numa rede de sistemas que pode mobilizar e promover mudanças desejadas na ação
sociocultural vivida (Sesi, 2005).
As redes dependem das alianças que conseguem estabelecer internamente nos
setores/organizações e com parceiros externos. Os processos de tomadas de decisões
baseiam-se na participação ativa, crítica e criativa das pessoas, seu sentir e agir
coletivamente, cujo aprendizado provavelmente será mais tácito que explícito. Por sua vez,
os sujeitos, grupos e comunidades constroem novos conceitos sobre as atividades vividas e
desenvolvem novos sistemas de atividades que evoluem historicamente. Os conhecimentos
afetam preferências e comportamentos dos indivíduos. A participação afeta as decisões das
organizações e essas decisões afetam o ambiente, que influi nos conhecimentos e nas
preferências dos indivíduos.
Assim, as políticas participativas em rede, ao implicar corresponsabilidades nas tomadas
de decisões sobre ações a serem desenvolvidas, requerem definição de competências e
atribuições na elaboração e gestão das políticas setoriais e superação no centralismo das
decisões. Os dirigentes precisam se fazer reconhecidos como gerentes dos assuntos de
interesse público, com a responsabilidade pelo diagnóstico, programação, supervisão e
continuidade das ações de lazer do âmbito a que referem.
No entanto, convivemos com resistências, formas disfarçadas de clientelismo,
ineficiência e inoperância que podem bloquear ou corromper a descentralização de gestão.
Essa não é uma prática política simples, ela envolve várias instâncias da cidade – entidades,
movimentos e grupos – exigindo recursos e sinergias (Nogueira, 1997).
Além disso, nossas experiências de gestão de políticas vêm nos mostrando que existem
muitos limites a transpor no desenvolvimento das ações intersetoriais e em rede. São
dinâmicas muito diferentes das culturas vividas e exigem uma nova sociabilidade, novos
modos de liderança que implicam menos saber mandar e mais ouvir e interagir.
Compreender e exercitar essas experiências são importantes para enxergarmos como a
dinâmica da gestão pode dinamizar a cultura e ampliar o poder articulador das práticas
sociais e culturais.
Assim, as políticas participativas requerem um novo perfil de liderança, pois participação
implica novas formas de pensar a relação e partilhar poder entre sujeitos, grupos,
organizações. A participação está vinculada à cultura, valores e hábitos pessoais e coletivos.
As lideranças são desafiadas a participar de mudanças na cultura política local, a ver e a ler a
realidade. Precisam ser mobilizadoras de ações, saber participar da formulação e da
implementação das políticas, seus programas e projetos, sendo sensíveis às possibilidades e
aos limites vividos na concretização de sonhos e necessidades. São comprometidos com a
discussão de problemas coletivos, o protagonismo dos sujeitos e a realização de ações
conscientes e lúdicas.
Para que essas formas de gestão tenham êxito, voltamos a afirmar que há necessidade
de superarmos a centralização e o controle arbitrário da comunicação, bem como a
precariedade de informações e usos das tecnologias de informação. É fundamental a gestão
da informação, não apenas reunindo, mas disponibilizando dados levantados pelas
avaliações continuadas e que facilitem o diálogo, o intercâmbio, a compreensão e superação
de limites, a otimização de possibilidades e a modernização da gestão, com a criação de
redes dinâmicas e funcionais.

Quanto ao financiamento
Há mudanças bastante significativas em relação ao financiamento das políticas sociais
dominantes e emergentes. Nas primeiras, os recursos são da própria instituição Estado,
arrecadados por meio de fontes fiscais, sempre sendo limitados em relação a demandas.
Nesse sentido, nas políticas sociais emergentes o Estado não é o único ator da política
social. Há um cofinanciamento, o usuário contribui com parte. Outra forma de recuperação
dos custos é mediante cobrança de tarifa por serviços públicos, de quem pode pagar. Nisso
há um problema, pois essa forma de gestão marginaliza os mais pobres.
Outro aspecto que muda quanto ao financiamento se refere à asignação de recursos,
pois, segundo o paradigma dominante, as políticas sociais são políticas de oferta, isto é,
oferecem bens e serviços com os quais pretendem solucionar ou paliar o problema social,
convivendo com problemas de competência na promoção desses serviços. O novo
paradigma instiga mudança nesse sentido, requerendo competência de promotor,
financiador que transfere poder de compra instigando a criação de um quase mercado, e
liberdade de escolha do consumidor, que tem informações sobre os serviços.
Há, também, flexibilização do acesso aos financiamentos para a área social, estratégia
que tende crescer à medida que as ações democratizadas adquirem maior peso e
importância no cenário político.
Outra mudança se refere à criação de fundos municipais, mecanismo que, junto com o
conselho e o plano municipal, recebe recursos públicos e outros para desenvolver
programas e projetos em áreas específicas, dentre elas o lazer. A constituição de um fundo
orçamentário representa outra forma de garantia de recursos, além da destinação de verbas
para a área do lazer no orçamento anual do município e a busca de recursos para a
execução de projetos em diferentes órgãos e esferas de apoio/financiamento.
Um exemplo: em Caxias do Sul, o Fundo Municipal de Desenvolvimento de Esporte e
Lazer (FUNDEL) foi criado na 1ª Conferência Municipal de Esporte (2001) e implantado em
2004. É um investimento de recursos públicos que financia ações na área, beneficiando as
comunidades por meio de entidades esportivas, organizações comunitárias, sindicais, não
governamentais e outras promotoras do esporte e lazer na cidade. Em 2004, foram
recebidos 121 projetos e selecionados 62, atendendo aproximadamente 14 mil pessoas em
atividades comunitárias de esporte e lazer, além de atletas e equipes da cidade (Bonalume,
2004).
Analisando-se, também, os orçamentos participativos como estratégias de ampliação de
recursos para as políticas sociais, Sílvio Bava (2002) entende que sejam mecanismos criados
para que os cidadãos possam participar do processo de definição de prioridades e
aproveitamento dos recursos públicos, embora, muitas vezes, neles haja muita participação
e pouco orçamento. Há apenas o empenho de pequenas verbas públicas, o que mostra que
não há mudanças de prioridades no conjunto dos gastos públicos. O que se dá, em geral, é
justificado sob a alegação de que o restante já está comprometido com outras despesas
como pagamento de pessoal, manutenção etc. Com isso não se concretiza a participação
cidadã.
Apesar das dificuldades na criação de mecanismos participativos de gestão,
financiamento e controle das políticas sociais os passos já vividos são decisivos para
inovações políticas.
Mas, em que as políticas sociais, especialmente as de lazer, têm inovado?
As análises das práticas políticas em geral, em nosso meio, mostram que muitas ações
consideradas inovadoras não inovam tanto assim. Muitas buscam garantir o cumprimento
de leis tentando democratizar direitos por meio de ampliação de atendimentos para a
população-alvo, mas mantendo o processo das práticas políticas dominantes. Nesse sentido,
há atendimento mínimo das necessidades, muitas vezes mantendo-se o sentido
compensatório.
Por outro lado, as experiências relatadas com gestão de políticas de lazer mostram que
existem inovações nas políticas sociais vividas em nosso meio. O que mais chama atenção é
que se ampliam os debates sobre a democratização no país, principalmente incluindo o
lazer na pauta dessas discussões. Isso é algo novo na história das políticas sociais brasileiras.
Ampliam-se, também, as experiências participativas, embora algumas delas tenham
resultados mais significativos no que se refere à participação popular nas tomadas de
decisões políticas como mostram, por exemplo, os relatos dos municípios de Porto Alegre e
Caxias do Sul.
Nas experiências participativas, ao ser permitido que diferentes atores possam falar
quanto ao direito ao lazer, observa-se que as pessoas chamam a atenção para questões
mais amplas relacionadas aos problemas sociais como um todo (falta de educação
conscientizadora sobre a vida social e dilemas historicamente vividos, articulando questões
do lazer com os demais fatores de qualidade de vida como saúde, educação, trabalho,
segurança, participação etc.).
Outra inovação revelada refere as experiências corporativas que mostram dados de um
cenário de pactos éticos, que mudam sentido de políticas filantrópicas, utilitárias e
compensatórias para políticas de defesa de direitos. Os casos do SESI exemplificam isso.
Cresce o exercício da responsabilidade social.
As inovações nas políticas sociais revelam que os vários setores sociais e a sociedade
estão se aproximando, ampliando articulações e mobilizando esforços conjuntos para
enfrentar os problemas sociais por meio de estratégias, algumas vezes ousadas, outras
vezes tímidas, mas que, igualmente, surtem efeitos interessantes nos gestores e públicos
beneficiários.
Não há dúvida de que, nos jogos de poder, influi mais quem detém instrumentos mais
eficazes de pressão; de que avanços implicam o envolvimento dos dirigentes, mas que
também a pressão da sociedade vem provocando reformas do Estado e das corporações.
Não há dúvida, ainda, de que os vários instrumentos participativos e a promoção de ações
conscientizadoras vêm anunciando essas possibilidades e requerendo a presença mais ativa
da população.
Refletem, assim, a direção política do desenvolvimento, que passa a ser tratado não
apenas como síntese econômico-política (acumulação e utilidade social), mas como ação
social do Estado no que diz respeito à promoção de justiça, superação de desigualdades e
pobrezas diversas, com vista à promoção dos direitos sociais da cidadania e consequente
desenvolvimento social, humano, econômico e ambiental, como discute Patrícia Zingoni
(2002).
A construção de um ambiente de transparência efetiva, de respeito mútuo, de dignidade
nas relações e honestidade na apresentação dos problemas, construção de saídas precisa
estar latente em todos os momentos discutidos – dos objetivos ao financiamento. Isso não
acontecia nas práticas baseadas na desonestidade, espoliação, violência e hipocrisia. Por
isso, não basta melhorar as técnicas sem melhorar as relações, sem mudar a cultura política
e o reconhecimento do valor do lazer na vida das pessoas e coletividades.
A importância das experiências relatadas neste texto precisa ser considerada não
propriamente pelo volume de resultados quanto às pessoas e percentual de orçamento
envolvido, mas pela mudança cultural. Quem já participou de experiências dessa natureza
sabe o que estou dizendo, lembra com certeza do brilho nos olhos e voz embargada de
cidadãos que nunca vivem a oportunidade concreta de ter “voz” na política de sua cidade ou
de sua entidade. E isso é muito sério. O cidadão precisa, é fato, ser respeitado pelo poder
dirigente da ação, pois este é um exercício concreto de garantia de um fator de qualidade
de vida e cidadania: a participação.
Por isso, espero que as análises aqui tecidas possam ajudar na construção de “novos
olhares” e a ter bom senso no julgamento dos efeitos diversos e multiplicadores de nossas
práticas políticas, nossos programas, nossos projetos e ações que realizamos no lazer.

Notas
1. Conversamos com duas gestoras do Rio Grande do Sul. A primeira (identificada como
A1), foi secretária municipal de esporte e lazer de Porto Alegre no período de 1998 a
2004, durante governo que valorizou e incentivou a participação dos cidadãos de diversas
formas. A segunda (A2), viveu experiência participativa de lazer em Caxias do Sul, de
1999–2004, que começou com o programa do governo municipal eleito. Esse programa
previa a construção de uma cidade institucionalmente democrática e participativa e, no
lazer, a participação comunitária como diretriz norteadora. Em Minas Gerais, também
identificamos duas experiências participativas de lazer. A primeira aconteceu em Belo
Horizonte (B1) desde 1993, quando a administração municipal assumiu características de
um governo popular comprometido com os segmentos mais desfavorecidos da população
e passou a desenvolver ações comunitárias participativas de lazer, assumido, esta, como
fim e meio educativos para cidadania, qualidade de vida e participação democrática. A
segunda realizou-se em Contagem (B2) desde 1998, tendo continuidade mesmo com
mudança de partido responsável pela administração municipal. O início dessa história foi
a discussão do lazer do servidor municipal, gerando o programa de “Lazer e Trabalho”,
implementado como programa “Lazer na Cidade”. O estado do Pará nos dá exemplo de
política participativa de lazer articulada pela Secretaria Municipal de
Educação/Coordenadoria de Esporte, Arte e Lazer de Belém (1997-2004). Segundo duas
gestoras que viveram essa experiência (C1) a história do município revela demandas pelas
políticas participativas. A cidade conviveu, por séculos, com relações conflituosas e
antagônicas entre os interesses hegemônicos das elites e os diversos movimentos sociais
que demandavam a superação de políticas clientelistas e fragmentadas, no lazer,
realizadas nos poucos equipamentos da cidade. O Departamento Regional do SESI na
Bahia nos mostra um exemplo de política de lazer corporativa, integrada aos interesses
da sociedade, política destacada pela ação intersetorial, que gerou parcerias internas e
externas entre o campo do lazer e outros campos da ação social. A depoente dessa
experiência (D1) ressalta que tudo começou com a consciência dos educadores de lazer
de que o modelo tradicional – centrado no saber unilateral do corpo técnico da
instituição – não promovia o envolvimento dos beneficiários dos programas de lazer, uma
condição indispensável para o sucesso estes. A conscientização dos educadores de lazer
foi crescendo com as capacitações continuadas que geraram construções coletivas a
partir de reflexões sobre o vivido. A política nacional do SESI, cuja liderança (E1) encontra-
se em Brasília, é outro exemplo de ação política corporativa que conseguiu articular os 26
estados brasileiros e o Distrito Federal na reestruturação da Política de Lazer da entidade.
A ação participativa foi um dos princípios que nortearam esse processo (2002-2005). A
experiência acumulada da entidade no lazer forneceu a matéria-prima para a
reformulação dessa política que se fez refletindo e (re)significando a própria prática.

2. Vários dados apresentados neste texto são extraídos de pesquisa realizada e publicada
no livro Políticas participativas de lazer (Pinto, 2005).

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CAPÍTULO 5
Políticas Públicas de Lazer no Brasil:
uma história a contar
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto

Segundo Magda Soares (1991),


"antes de explicar o passado, é preciso explicar o presente [...] porque acredito que é
pelo presente que se explica o passado – o acontecimento atual, efeito dos
acontecimentos passados, é que permitirá perceber e bem avaliar esses
acontecimentos" (p. 21-22).
Essa fala de Soares fez-me pensar que não é por acaso que vivemos, hoje, um momento
histórico no qual várias experiências políticas implementam processos contínuos de
consultas e debates, como os relatados no capítulo anterior deste livro. Experiências que
tomam forma de conferências municipais, conselhos e outras estratégias, ampliando
espaços de debates sobre o enfrentamento dos problemas dos municípios e do
desenvolvimento de suas potencialidades; que nos mostram atividades políticas norteadas
pela apropriação das cidades pelos seus moradores e usuários, priorizando ações em favor
dos excluídos e da democratização das relações Estado-sociedade, enfim, como toda prática
social, não são experiências lineares. Elas se organizam e se estruturam segundo certas
normas e autonomia que dependem de conquistas históricas.
A consciência da importância da história para nos ajudar a entender o hoje fez-me voltar
o olhar ao passado e buscar reconstruir caminhos vividos pelas políticas públicas de lazer no
Brasil, desvendando mudanças e permanências, avanços e recuos, movimentos cujas lógicas
só percebi agora, com as conquistas do presente.
Esse é o objetivo que proponho neste texto, representando uma entre muitas possíveis
leituras da nossa experiência histórica no campo das políticas de lazer. Mas, de onde parti
para enfrentar esse desafio?
Optei por iniciar esta reconstrução histórica na década de 1940, quando vivemos uma
série de eventos importantes para a legalização e a legitimidade do direito a um tempo que,
historicamente, foi sendo ressigni​ficado como tempo de lazer. De lá para cá, numa trajetória
em que tensões e limites foram, ou não, sendo superados e oportunidades foram mediadas
por diversos interesses individuais e coletivos, destacam-se, a meu ver, quatro momentos
de mudanças significativas nas políticas de lazer no Brasil. [1] Que momentos históricos são
esses? Que possibilidades históricas influíram nas práticas políticas vividas em cada um
deles?

A legalização do “tempo livre” na política assistencialista de


bem-estar social dos anos 30 e 40
No período da ditadura estadonovista dos anos 30 e 40, vivemos um movimento legal-
institucional que provocou mudanças significativas principalmente na educação, assistência
social e saúde. Data dessa época a introdução de avanços no processo de centralização
institucional – em relação aos recursos e instrumentos administrativos no executivo federal
– e incorporação de novos grupos sociais aos esquemas de proteção do Estado, mesmo que
sob padrão seletivo (de beneficiários), heterogêneo (de benefícios) e fragmentado (no plano
institucional e financeiro) de intervenção.
Foi período de significativa produção legislativa [2], destacando-se a Constituição
Federal de 1934, que, pela primeira vez, fala de um “tempo de não trabalho” [3]. Em seu
artigo 121, parágrafo 1º, a constituição de 1934 destaca na alínea (c) o trabalho diário não
excedente de oito horas; na (e) o repouso hebdomadário, de preferência aos domingos; e,
na (f), as férias anuais remuneradas. A Constituição de 1937, no seu artigo 137, prescreve na
alínea (d) que o operário terá direito ao repouso semanal aos domingos; na 9(e), que depois
de um ano de serviço ininterrupto em uma empresa de trabalho contínuo terá direito a uma
licença anual remunerada; e, na (i), que o dia de trabalho de oito horas poderá ser reduzido.
Nesse contexto, a promulgação do Decreto-lei n. 5.452, de 1943, que dispôs sobre a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi recebida como um avanço nas relações sociais
brasileiras e passo decisivo para nosso desenvolvimento econômico, social e humano. A CLT
dispôs sobre uma período mínimo de descanso para os trabalhadores (art. 66); intervalo
para repouso/alimentação no trabalho (art. 71); remuneração para repouso semanal (do
art. 67 ao 69), feriados (art. 70) e férias (do art. 129 ao 153).[4]
Também nesse momento histórico, o lazer foi incluído na pauta da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, aprovada, em 1948, pela Resolução da III Sessão Ordinária da
Assembleia-geral das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário. Declaração que,
atualmente, refere aos direitos humanos e segundo a qual todo indivíduo tem direito ao
lazer, tratado como um tempo diferente do tempo de repouso (art. 24).
É interessante observar que, até os dias atuais, a CLT não sofreu alterações significativas
nos itens destinados ao direito ao “tempo de não trabalho”. Isso pode ser explicado pelo
fato do direito a esse tempo, no Brasil, ter sido criado e sustentado num contexto histórico
no qual o capitalismo, para se sedimentar, precisou dos aparatos legais e da formação de
valores básicos para legitimar o novo modo de produção. Os valores ligados ao lazer são
considerados dentre os essenciais a esse modo de produção.
O que se verifica é que a CLT, embora constituída e normatizada pelo Estado e o
mercado sem (na sua gênese) contar com a participação dos trabalhadores, foi um dos
instrumentos usados para disciplinar corpos, trabalhos e tempos cotidianos da classe
trabalhadora. Mas, mesmo revestida de caráter de doação, representando uma forma de
adaptação ao sistema socioeconômico e político requerido pelo capitalismo, a CLT
inaugurou um fato novo – ou seja, o reconhecimento legal de um “tempo social” que abriu
espaço para experiências que foram sendo ressignificadas como lazer à medida que,
historicamente, foi reconhecido que o essencial da vida dos atores sociais se desenrola
também para além do tempo dedicado ao trabalho assalariado.
A implementação da CLT gerou a elaboração e a execução de políticas de atividades
recreativas – de caráter assistencialista e corporativista, privilegiando apenas o grupo social
dos trabalhadores –, com o propósito de ocupar o seu tempo de não trabalho legalmente
regulamentado. Isso contribuiu para acentuar as desigualdades sociais relativas ao direito
ao tempo de lazer, uma vez que a legalização/institucionalização desse direito, por um bom
tempo, ficou restrita aos trabalhadores assalariados urbanos.
É importante destacar que o direito ao lazer como proposto pela CLT/43 somente
estendeu-se a todos os trabalhadores do país com a disseminação da legislação trabalhista
ao campo, obra do governo Castelo Branco. Os sindicatos rurais foram criados durante o
período parlamentarista (1961-1963) e meses depois do golpe de 1964 foram promulgados
o Estatuto da Terra e o Estatuto do Trabalhador Rural. Este último propunha a extensão de
uma série de direitos dos trabalhadores urbanos aos trabalhadores rurais, como férias, 13°
salário, aposentadoria e outros (Dieese, 2002).
Do meu ponto de vista, o tempo de não trabalho nos moldes das Constituições de 1934
e 1937, assim como pela CLT de 1943, é compreendido como sobra do tempo social
considerado útil (o do trabalho). O tempo é aí valorizado como recompensa do trabalho ou
redenção dos problemas sociais, e não como direito, necessidade e vontade coletivas.
Como forma de ocupar esse tempo de não trabalho, nesse período histórico, difundiu-se
a política assistencialista de recreação orientada, promotora do acesso a atividades
mediante benesse, ou seja, supondo sempre um doador e um receptor. Esse modelo de
política de lazer marcou e ainda marca muitas práticas recreativas de nossas instituições,
provocando dependência do público assistido a “pacotes” de atividades carregados do
sentido de doação.
As políticas de atividades recreativas, como modelo a ser desenvolvido em todos os
setores do País, foram disseminadas por meio de várias experiências brasileiras desse
período histórico (Pinto, 2004). Essa difusão encontrou espaços importantes no âmbito
estatal e corporativo. Um marco nesse sentido foi a criação do Departamento de Recreação
Operária no Rio de Janeiro (1946). Também se destacou a inauguração de várias entidades
com objetivos explícitos de recreação de seu público beneficiário, sendo várias dessas
entidades financiadas pelo Estado. Exemplo disso é o Minas Tênis Clube de Belo Horizonte –
inaugurado em 1937 como o primeiro clube da cidade a ser usado para o lazer e o esporte
amador –; o Serviço Social da Indústria (SESI) e o Serviço Social do Comércio (SESC), criados,
em 1946, como duas das soluções brasileiras para a prestação de serviços de educação,
saúde, lazer e ação social dos trabalhadores da indústria, do comércio e de suas famílias.
As políticas de atividades, difundidas nacionalmente, tratavam de problemas
relacionados à organização de vivências em um tempo social de não trabalho, seguindo
modelo social baseado em princípios funcionalistas. Nesse sentido, tinham como objetivo
explícito promover a recreação como distração, descanso e recomposição da força de
trabalho. E, implicitamente, mantinham diferenças na posse da vida cultural a ser vivida
nesse “tempo” pelos indivíduos das diversas idades e camadas sociais (Pinto, 2004).
Integrando as estratégias e ações que buscavam a manutenção do sistema social em
operação na época, tais políticas contribuíram para a formação de atitudes e
comportamentos dos indivíduos no lazer, tratado como “tempo livre” ou “desocupado”.
Com esse sentido, conflitos, tensões, diferenças de necessidade – a não ser as relacionadas
ao trabalho – e de acesso cultural no lazer não foram considerados pelas políticas de
atividades recreativas, nesse momento histórico.
O lazer no contexto da consolidação da política social
brasileira dos anos 60 e 70 – política baseada no mérito, na
seletividade e na ação burocrática
As décadas de 1960 e 1970 representam um período de transformação radical do perfil
da Política Social Brasileira no âmbito institucional-financeiro. Draibe (1990) enfatiza que,
nesse período histórico, o “núcleo duro” da intervenção social do Estado se define,
completando, welfare state brasileiro – modelo de desenvolvimento baseado na ação e
proteção estatal. O sistema de política social adotado foi baseado nos princípios do mérito –
posição ocupacional e de renda adquirida no nível da estrutura produtiva – e da
seletividade. Segundo a autora, essa opção instigou a discussão sobre a expansão global de
riqueza e renda como melhoramento das capacidades humanas e condição de acesso aos
benefícios do Estado de Bem-estar.
A esse debate incorporaram-se discussões sobre o papel do Estado em relação ao
desenvolvimento econômico e às políticas sociais, bem como sobre a redução da ação do
setor público estatal nas políticas sociais e a reestruturação das mesmas.
Com a transformação do perfil da política social brasileira no âmbito institucional-
financeiro muda a forma fragmentada e seletiva do momento histórico anterior e abrem-se
espaços para organização dos sistemas públicos, ou estatalmente regulados, na área de
bens e serviços sociais básicos. Com isso, foram ampliadas ações com tendências
universalizantes, difundindo, por exemplo, “políticas de massa” de relevante cobertura.
Como efeito desse modelo político destaco duas estratégias. A primeira foi a instituição,
em 1958, da Campanha de Ruas de Recreio – que mobilizou a promoção de atividades
esportivo-recreativas em ruas e praças das cidades. As Ruas de Recreio, posteriormente
chamadas de Ruas de Lazer, foram difundidas de tal forma nas décadas seguintes que, até
hoje, representam o modelo de política pública de lazer da maioria dos municípios e estados
brasileiros. Essa experiência pode ser considerada como a principal propagadora da política
de lazer como “cultura de eventos” – esporádicos, discriminatórios e “pacotes” de
atividades baixados pelos gabinetes técnicos (Pinto, 1998).
Alinhada a essa estratégia, ressalto a aliança entre as políticas de esporte, educação
física e lazer que, no meu modo de ver, constituiu-se um segundo fato histórico decisivo nos
desenhos das políticas de lazer das décadas de 1960 e 70. Essa aliança foi alicerçada pelo
Decreto n. 69.450, de 1971 – em vigor até 1996 –, que dispôs sobre a obrigatoriedade da
educação física escolar como prática de atividades esportivo-recreativas em todos os níveis
de ensino no país. Aliança consolidada nas secretarias municipais e estaduais de Esporte e
Lazer, consagrando o campo da Educação Física como o principal difusor das políticas de
lazer no Brasil. Essa estratégia política foi fundamental ainda para promover uma educação
corporal pactuada com educação para o lazer e orientada pelas necessidades do
desenvolvimento capitalista.
Para o sucesso dessas estratégias, foi fundamental a difusão de políticas esportivo-
recreativas traduzidas como políticas de atividades, influindo nas políticas de doação de
material e cessão de equipamentos específicos, sem se preocupar com a participação
humana nas atividades vividas (Zingoni, 2003).
A estrutura centralizadora e fragmentada (setores estanques), própria do estado
burocrático dessa época, não reconhecia o usuário como ser social com necessidades e
oportunidades diferentes. Em consequência, as políticas de lazer eram traduzidas por ações
setorizadas, institucionalizadas e marcadas pela promoção de eventos esporádicos que
tinham como contrapartida atitudes conformistas dos usuários.
Para Draibe (1990) as políticas públicas nesse período histórico são elitistas pelo fato de
priorizarem segmentos já privilegiados da população e assistencialistas e tutelares quando
direcionadas aos segmentos empobrecidos da população. Quanto às políticas públicas
assistencialistas, Draibe enfatiza que a forma mais tradicional encontrada no país é
marcadamente individualista, reflexo da própria visão econômica da sociedade, regulada
mais pela competição do que pela convergência.

O lazer nos anos 80 conquista espaços sociais e ganha força nas


políticas econômicas
Os primeiros passos sistemáticos no sentido das políticas cidadãs na América Latina
foram dados nos anos 60, contexto marcado pela industrialização. A década de 1970, por
sua vez, foi assinalada por fluxos e refluxos dessas iniciativas, sendo que, em 1980,
inaugurou-se a participação cidadã como instrumento para o aprofundamento da
democracia. Nessa época, no Brasil, caíram os regimes autoritários, consolidaram-se o
capitalismo e ajustes que tendem a ser socialmente excludentes (Grau, 1998).
Os primeiros anos da década de 1980, marcaram o reconhecimento do lazer como força
econômica no país. As exigências do modo de vida capitalista influenciaram na propagação
do lazer como tempo-espaço necessário para o consumo de várias formas de
entretenimento produzidas e difundidas pela indústria cultural. Com isso, ampliou-se a
produção e o consumo de bens, a oferta de serviços e a geração de empregos atendendo
demandas específicas ligadas ao lazer (Pinto, 2002b).
No contexto capitalista, o lazer despontou como um mercado emergente, em pleno
crescimento, que gerou expressiva atividade econômica, passando a exigir mão de obra
diversificada e qualificada para atender aos novos empreendimentos e demandas. O
capitalismo provocou a disseminação do lazer veiculado pela indústria cultural, tratando os
indivíduos como potenciais consumidores de mercadorias lúdico-culturais. E com o aumento
do acesso diferenciado a esses bens, devido a diferenças de condições socioeconômicas e
educativas entre as camadas da população, alargam-se as desigualdades quanto ao acesso à
produção cultural disponível no lazer.
Nessa época, vivíamos os problemas sociais que, desde anos anteriores, desafiavam
governos e sociedade como, por exemplo, crescimento econômico irregular no país,
pobreza, desigualdades sociais, insegurança pessoal. No início dos anos 80, o lazer não era
reconhecido como parte dos dilemas e das reivindicações sociais. A apropriação cultural
consumista promovia vivências acríticas de lazer.
Mas o início dos anos 80 foi também marcado pelo aumento da participação dos atores
sociais nos processos de democratização do país, o que gestou ambiente propício a
mudanças políticas que, posteriormente, influíram nas políticas de lazer. Grandes
mobilizações democráticas marcaram o novo momento histórico – como a campanha pelas
Diretas Já e o nascer de formas de participação dos cidadãos na formulação e gestão das
políticas implementadas a partir da Constituição Federal de 1988.
E, depois de longo período de privação de liberdades democráticas, a década de 1980
culminou com a promulgação de uma Constituição avançada quanto à ampliação/extensão
dos direitos sociais e afirmação da cidadania, neles, incluído o lazer.
No entanto, a inclusão do lazer na nossa Carta Magna, que representou avanço quanto
ao reconhecimento do lazer no conjunto dos direitos sociais, manteve, nessa legislação,
uma conotação estigmatizante e questionada por muitos estudiosos. Sobre isso, Nelson
Carvalho Marcellino (2001) analisa a inclusão do lazer no Título VIII, Capítulo III, seção III, Do
Desporto, art. 217, § 3° e último parágrafo do item IV, que diz: "o Poder Público incentivará
o lazer, como forma de promoção social". Para o autor, a expressão ‘promoção social’ é
carregada de vícios assistencialistas, compreendendo o lazer como utilidade e não como um
dos fatores do desenvolvimento social e humano.
Mesmo com limites apontados, a inclusão do lazer nos direitos constitucionais
inaugurou um fato novo nas nossas experiências políticas. Ele deixa de ser considerado um
benefício social concedido apenas aos trabalhadores, passando a ser tratado no conjunto de
medidas políticas necessárias à melhoria da qualidade de vida de todos. Esse fato passou a
desafiar governantes e a sociedade no sentido da elaboração e implementação de políticas
que pudessem reconhecer e proteger tal direito. Esse desafio trouxe no seu bojo outro
maior ainda, ou seja, a necessidade de repensarmos as políticas de lazer desenvolvidas
como políticas de atividades, sem reflexos sociais mais amplos e continuidade nas ofertas
para a população. Desafio que se ampliou com a difusão de estudos sobre o lazer realizados
em cursos de pós-graduação e grupos de pesquisas de diversos campos de conhecimento.
Tais discussões provocaram contrapontos entre políticas fundadas no lazer concebido pelo
mercado e o lazer entendido como campo de criação humana, prática de resistência à lógica
do discurso consumista da época.
Segundo Zingoni (2003), a partir dos anos 80, os debates sobre cidadania passaram a
envolver não só problemas relacionados a prerrogativas – afirmação e garantia de direitos –,
mas também quanto ao provimento – quantidade e diversidade de oportunidades e meios
para o pleno exercício dos direitos. Tarefa nada fácil em um país com tantas demandas e
desigualdades sociais e um Estado ainda marcado pelo discurso da competência puramente
técnica, a burocracia e o clientelismo na relação com os cidadãos.
Com o processo de redemocratização do estado brasileiro, iniciado em meados da
década de 1980, há a abertura de novos espaços para reflexões sobre conceitos e
estratégias políticas, relacionando questões do estado e da sociedade. Ainda assim, nesse
momento histórico, a dimensão econômica se sobrepõe nas nossas políticas de lazer.
Enquanto isso, mundialmente,
"ocorre grande crise econômica nos países em desenvolvimento – exceto no leste e
sudeste da Ásia – e desaceleração das taxas de crescimento nos países desenvolvidos,
que tem como sua principal causa a crise endógena do Estado social – do Estado de
Bem-Estar nos países desenvolvidos, do estado desenvolvimentista nos países em
desenvolvimento, e do Estado comunista –, crise que a globalização acentuou ao
aumentar a competitividade internacional e reduzir a capacidade dos estados
nacionais de proteger as empresas e seus trabalhadores. Esta crise levou o mundo a
generalizado processo de concentração de renda e aumento da violência sem
precedentes, mas também incentivou a inovação social na resolução dos problemas
coletivos e na própria reforma do Estado" (Pereira; Grau, 1998, p. 1).

Reconhecimento do lazer como direito social nas políticas


sociais democráticas dos anos 90 aos dias atuais
Já a década de 1990, no Brasil, pode ser caracterizada por duas tendências. A primeira é
representada por uma série de reformas constitucionais que enfatizam os instrumentos da
democracia direta, dando oportunidade à participação cidadã na administração pública. A
segunda, impelida pelo modelo econômico neoliberal adotado, instigou os governos a
livrarem-se do investimento em obrigações públicas de proteção e na garantia eficaz dos
direitos sociais. Nesse caso, há um claro esforço de transferência dos serviços sociais por
parte do governo central, atribuindo às comunidades papel especial nessa condução.
Combina, assim, gerenciamento descentralizado dos recursos e criação de colegiados para
sua administração (Grau, 1998). Nesse contexto, como diz Francisco Oliveira (1999), as elites
se convenciam da desnecessidade do setor público diante de um Estado em crise financeira
e de legitimidade.
Nessa sociedade coexistem formas distintas de se ver e agir politicamente. Duas delas se
destacam: a que se pauta pelo interesse da acumulação de capital em detrimento de seus
impactos na vida humana, especialmente dos mais excluídos, e outra que inclui a promoção
dos sujeitos e a defesa dos direitos como meio de produzir novos sentidos para experiências
até então negligenciadas nas relações humanas.
A política neoliberal adotada pelo governo federal brasileiro desde os anos 80 – que teve
como modelo as políticas privatizantes e de desmonte do Estado de Bem-estar Social –
estimulou o livre-mercado e legitimou o debate entre as duas concepções. Nesse contexto,
de um lado, ficavam aqueles que defendiam um estado mínimo numa certa idealização do
mercado motivado pelo discurso da ineficiência do Estado e eficiência do mercado. De
outro, aqueles que defendiam que o problema não estava no tamanho do Estado, e, sim, na
sua forma de gestão.
A partir da segunda metade dessa década, expandiu-se pelo país a discussão sobre
fatores determinantes do desenvolvimento, colocando em pauta as necessidades de
provimento dos direitos do cidadão. Isso implicou políticas que concebem o
desenvolvimento não somente como possibilidade de crescimento econômico, mas também
como distribuição equitativa dos resultados dos ativos gerados, pois crescimento sem
equidade é crescimento sem desenvolvimento. Essas decisões implicaram políticas que
estabelecem mediações entre o econômico, social, ambiental e humano com vista à
melhoria da qualidade de vida da população e a um mercado orientado pela universalização
do acesso aos bens e serviços oferecidos. Políticas pautadas por valores de sociabilidade,
cooperação e associativismo, dentre outros valores que merecem ser destacados (Zingoni,
2002).
Nesse contexto, o debate sobre a participação popular se renovou, revelando mudanças
nos planejamentos políticos e reformas nas administrações municipais. Os atores sociais e
representantes de todos os setores têm aprendido a negociar propostas e construir ações
políticas capazes de enfrentar as desigualdades crescentes, introduzindo a criação da cultura
de participação, controlando os excessos do interesse privado e ampliando oportunidades
de acesso de todos aos bens sociais indispensáveis a uma condição digna de vida.
Também nesse contexto, diversas empresas passaram a realizar e divulgar efetivas ações
sociais, buscando seu reconhecimento como organização mais responsável e humana. Com
isso, os “balanços sociais” anuais passaram a fazer parte do cotidiano de um número cada
vez maior do setor corporativo. Como esclarece Zingoni (2005), o projeto de Lei n. 3.116/97
– que versa sobre o balanço social e a responsabilidade social das empresas visa tornar
obrigatório para as empresas brasileiras com mais de 100 funcionários, a divulgação anual
do balanço social (conforme critérios especificados no site: www.balancosocial.org.br). O
balanço social refere-se ao conjunto de informações acerca dos projetos, benefícios e ações
sociais dirigidos aos empregados, investidores, analistas de mercado, acionistas e
comunidade. Já com base na responsabilidade social as empresas buscam melhoria da
qualidade de vida dos seus funcionários e públicos beneficiários, por meio de ações efetivas
que não só impactam na produção e imagem das empresas. Elas necessitam gerar
resultados positivos e sustentáveis ao longo do tempo, que repercutam na transformação
das condições sociais dos sujeitos e contextos em que atuam.
Com isso, a garantia dos direitos sociais, buscando reduzir progressivamente as
desigualdades, passa a se constituir como investimento assegurado pelo Estado, pelo setor
estatal não governamental e também pelo setor corporativo. O compromisso compartilhado
tem implicado, por parte do Estado, a regulamentação do lazer e o provimento de condições
mínimas de acessibilidade a ele; por parte das entidades não governamentais e
corporativas, o desenvolvimento de políticas, programas e projetos de lazer conscientes do
seu dever socioeducativo; por parte das comunidades e famílias, o dever de participa do e
colaborar com as ações desenvolvidas pelos diferentes setores, também criando
oportunidades de tempo e espaço educativos para que os sujeitos possam vivenciar o lazer
com autonomia.
Nesse sentido, os avanços no âmbito jurídico-legal, em decorrência da promulgação da
Constituição de 1988, revelam relações de responsabilidades compartilhadas de lazer
relacionadas a outras políticas sociais.
Com isso, várias leis implicam o lazer no conjunto de seus dispositivos, passando a
desafiar a construção de estratégias e instrumentos de gestão que permitam efetivamente
promover amplo atendimento proporcionado por tais políticas. A participação e a difusão
de informações sobre esse aparato legal tornaram-se indispensáveis, como também as
discussões sobre possibilidades e limites a enfrentar rumo ao provimento necessário à
conquista desses direitos.
Começando pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o lazer é expresso como direito a ser assegurado pela família,
sociedade em geral e poder público, devendo os municípios estimular e facilitar a promoção
de programas culturais com foco no lazer voltados à infância e juventude.
O mesmo acontece com o Estatuto do Idoso, de 01 de outubro de 2003, que explicita
que os programas de lazer devem ser incentivados proporcionando melhoria da qualidade
de vida do idoso e a sua participação comunitária.
A questão do direito ao lazer está contemplada também na Política Nacional para a
Integração das Pessoas Portadoras de Deficiência – Decreto n. 3.298 – sendo, nessa, o lazer
tratado juntamente com a cultura, o esporte e o turismo.
Na Lei n. 8.080, Título I, art. 3º, o lazer é posto como um dos fatores determinantes da
saúde de toda população. Sendo que a lei n. 10.216, art. 4°, dispõe sobre os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais, destacando o lazer como um serviço
obrigatório no tratamento desses, em regime de internação.
O Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), criado com a finalidade de captar e
canalizar recursos para o setor, inclui, no capítulo I, o lazer como um dos seus objetivos,
tendo em vista salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, de lazer
e de viver da sociedade brasileira.
Na trilha da implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n.
9.394, de 20 de dezembro de 1996, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 2000)
ressaltam a Educação Física como área de conhecimento que cuida da educação corporal,
nela considerando a educação para a participação lúdica no lazer.
Porém, se de um lado esse quadro de “orienta-ações” legais é animador no sentido da
garantia de direitos ao lazer, de outro há uma distância significativa entre a
institucionalização dos direitos sociais expressos nas políticas públicas implementadas e as
condições reais de conquistas dos direitos pelos sujeitos. A conquista plena desse direito
continua ainda negligenciada por problemas tais como: a falta de consciência; insuficiente
responsabilidade individual e/ou coletiva no jogo social para garantia desse direito; exclusão
de muitos das vivências de lazer disponíveis em nosso meio; falta de estrutura que dinamize
e dê base concreta para que a população vivencie o lazer; falta de gestão participativa e
transparente que partilhe responsabilidades com todos os envolvidos para o
estabelecimento das prioridades, a formulação e o controle da execução das políticas de
lazer; faltam pactos, adesões, articulações de pessoas, que atuam em diferentes âmbitos,
com competências e papéis diferentes, formação adequada e elevação da qualidade dos
serviços prestados; falta de financiamento, parcerias e cooperação para prover a
viabilização das ações de lazer com equidade.
Como diz Cury (2005), as leis encarnam a dimensão de luta que inclui sonhos de justiça,
sonhos esses que indicam direitos, deveres, possibilidades e também contradições. Sonhos
que instigam conquistas, que impactam no cotidiano das pessoas. Por isso, a prática de
declarar direitos exige consentimento social e político, como ressalta Chauí (apud Cury,
2005), e educação, como tenho enfatizado nos meus estudos sobre o assunto (Pinto, 2005).
Afinal, o reconhecimento e a conquista de direitos não nascem das pessoas como modo
individual de lidar com suas obrigações e escolhas. Ao contrário, são, conquistas
socioculturais históricas, de sujeitos e grupos organizados, conscientes dos sentimentos
coletivos e do poder da participação conjunta.
Mesmo não sendo fácil essa conquista, em 2004 e 2006 vivemos outro novo fato
importante nas políticas de lazer no Brasil, quando pela primeira vez na história, criamos o
Sistema Nacional de Esporte e Lazer, com a participação direta da população, por meio de
conferências municipais, estaduais e nacionais, dentre outras usadas para esse fim.
Sistema que busca a articulação de agentes – entidades, organizações sociais,
instituições e seus sujeitos – para ampliar condições para a prática do esporte e lazer nos
municípios, estados e União. Busca-se, com isso, promover a inclusão social, garantir a
universalização do acesso ao esporte e lazer como direitos de todos os cidadãos e dever do
Estado, com o apoio de toda a sociedade, e promover a democratização do acesso, da
gestão e da participação no esporte e lazer (Brasil, 2006).
Mesmo que muito tenhamos ainda a avançar para consolidar esse espaço de diálogo
entre o Estado e a sociedade, mobilizar e qualificar as articulações e participação popular
em torno da implantação do Sistema Nacional de Esporte e Lazer, especialmente
consolidando a dimensão do lazer nesse contexto, é importante ressaltar a importância do
“alargamento da esfera local”, que ganha força nos últimos anos. A incorporação de novos
atores na arena política favorece a democratização, o fortalecimento da cidadania e a
possibilidade de novos arranjos institucionais para superação dos desafios postos às
políticas de lazer fundadas no desenvolvimento social e humano.
Aliás, mundialmente, não mais falamos em Declaração Universal dos Direitos do Homem
(ONU, 1948), pois, mesmo representando um avanço na proclamação do direito ao lazer
para além do direito ao tempo de repouso, não conseguiu a síntese entre liberdade,
igualdade e equidade. Falamos, hoje, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma
evidência a mais das lutas empreendidas pelos movimentos sociais nos últimos anos em prol
da universalidade dos direitos e da inclusão social.
Analisando as mudanças nas políticas de lazer aqui estudadas, percebo, como Edna
Castro (2001), que aqui o novo não é traduzido como rompimento com o velho, mas sim
como incremento das forças associativas em prol da garantia de direitos. O debate sobre a
construção de direitos coloca as pessoas na posição central da construção de políticas e dá
ao conceito de “inovação” novos sentidos. O direito é visto no contexto da dinâmica social
que busca a cidadania e, nessa dinâmica, há o surgimento (ou reascender) de novos direitos
e formas de avaliar o alcance dos resultados obtidos pelas ações implementadas pelas
políticas.
No entanto, essas inovações enfrentam muitos limites. Crises econômicas têm alterado
a estrutura do sistema de produção e do mercado de trabalho. Continua crescente a
competitividade nas políticas econômicas, ao mesmo tempo em que Estado e mercado
passam a constituir esferas com estruturas e dinâmicas diferentes. Além disso, em muitos
municípios historicamente governados por oligarquias locais (regime político em que o
poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas pertencentes ao mesmo partido, classe
ou família), as políticas ainda agem em benefício de interesses particulares. A urbanização
acelerada agregou novos problemas aos existentes, deslocando esferas de decisão para os
meios urbanos, aumentando demandas em relação aos vários setores urbanos, e no interior
de cada um deles, acentuando as diferenças de oportunidades para as camadas da
população.
O maior desafio, entretanto, passa a ser o desenvolvimento de políticas participativas
segundo as quais o direito ao lazer precisa ser algo construído diariamente, requerendo
“novo” olhar, consciência, ética dos envolvidos, bem como clareza e coerência dos fins e
meios de implementação política, de seus pressupostos, diretrizes e formas de gestão e da
avaliação da eficiência, eficácia e efetividade social [5] das ações realizadas.

***
Em síntese, essa releitura histórica das políticas de lazer no Brasil nos mostra que o lazer
não é uma esfera social isolada. Insere-se nas relações sociais e é perpassado por relações
de poder da mesma forma que toda a sociedade. Nesse contexto, mesmo imbuídos da
necessidade e desejos de mudanças históricas, estamos sempre sendo confrontados com
vários interesses: políticos, econômicos e outros.
Os quatro momentos históricos identificados mostram que, ao mesmo tempo em que o
lazer participou da reprodução social vivida em cada momento histórico, abriu espaços
importantes para a reversão de valores e papéis sociais e históricos. Pois o lazer é tempo-
espaço-oportunidade de reprodução da ideologia dominante e desigualdades sociais e
também de produção crítica e criativa sobre suas próprias relações e conteúdos vividos.
Desse modo, as políticas de lazer não podem ser pensadas somente a partir das suas
questões. Precisam também implicar as potencialidades que se abrem no lazer. A
consciência da importância do lazer nas políticas sociais nos motiva a aprofundar esses
estudos, como diz Bernardo Kliksberg (2000), nesse processo que é influenciado pela
capacidade de funcionamento adequado da vida das pessoas e dos grupos, pela
intermediação de interesses e fatores mobilizadores de comprometimento e adesão de
sujeitos às ações coletivas; processo que se constitui em um dos fatores de melhoria da
qualidade de vida, pois impacta na superação de preconceitos, desagregação da vida social
e de desigualdades, mobilizando a autoestima individual e coletiva, assim como a
organização dos sujeitos e grupos para lutar e corresponsabilizar a favor de melhorias de
condições de vida.
Em síntese, a reflexão realizada mostrou que as inovações têm sido vividas pelas
políticas centradas em pessoas, que têm como pontos de partida e de chegada o vivido.
Experiências históricas que implicam civilidade, desejos, motivações, demandas, vontade
política e lutas dos sujeitos.

Notas
1. Discussão da reconstrução histórica aqui apresentada no livro Políticas participativas
de lazer (2005).
2. Os dados legais citados no presente texto foram extraídos da Coletânea de Leis (2005).

3. Cury (2005) nos lembra que a nossa primeira Constituição Federal, que data de 1891,
silencia-se quanto aos direitos dos trabalhadores, exceto quando, indiretamente, na
Revisão Constitucional de 1925-26 emenda o art. 14 e atribui ao Congresso Nacional a
competência de legislar sobre o trabalho.
4. A Constituição federal de 1946 estabelece, em seu art. 157, os princípios da legislação
do trabalho, explicitando no inciso V a duração diária do trabalho não excedente a oito
horas; no inciso VI o repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos, e
no VII as férias anuais remuneradas. A Constituição de 1967 preserva os direitos de 1946
e acrescenta no art. 158, inciso XIX, colônias de férias e clínicas de repouso, recuperação,
convalescença mantidas pela União. Aborda, também, as 8 horas de trabalho com
intervalo para descanso, o que se repetirá no art. 165 da ementa da Junta Militar de 1969.
5. Segundo Arretche (1998), a eficiência analisa a relação entre esforço empregado na
implementação da política e resultados alcançados, que pode ser medida pela capacidade
de mobilizar e motivar o maior número possível de sujeitos para participar, de promover
parcerias, articular com outras políticas e de administrar os recursos disponíveis. A
eficácia compreende a relação entre objetivos, instrumentos explícitos de um programa e
resultados efetivos. E a efetividade social de uma política se refere à relação entre a sua
implementação e impactos e/ou resultados sociais que alcança.

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CAPÍTULO 6
Territórios do Lazer:
panoramas e reflexões sobre a animação
sociocultural [1]
Débora Alice Machado da Silva

"É fundamental viver a própria existência como algo unitário e verdadeiro, mas
também como um paradoxo: obedecer para subsistir e resistir para poder pensar no
futuro. Então a existência é produtora de sua própria pedagogia" (Milton Santos,
2000).
Pensar em os “territórios do lazer” pressupõe o esclarecimento da dupla
intencionalidade deste capítulo, de apresentar os panoramas da animação sociocultural no
Brasil e na França e de aprofundar as reflexões em torno da animação entendida como uma
das facetas do lazer, destacando suas particularidades na realidade brasileira e apontando
caminhos para ampliar seu debate.
Buscamos na geografia alguns subsídios para compreender o conceito de território, que
extrapola a mera justaposição de elementos naturais e dos sistemas de coisas criadas pelo
homem, abarcando a identidade que se constrói num determinado espaço físico/geográfico.
Ou seja, os territórios não se constituem em campos neutros, mas sim são fruto da
população que os vivencia/integra, fruto das diferentes apropriações a que são submetidos,
das trocas materiais neles existentes, da ação e da vida neles presente. Daí emerge o fato e
o sentimento de pertencimento àquilo que nos pertence, construindo uma relação mais
aprofundada e consciente com o espaço que nos cerca.
Ao propor a análise de duas realidades geográficas e culturais distintas fez-se necessário
entender que cada uma delas se apresenta como complexo espaço de manifestação, posto
que são “territórios” que acolhem e beneficiam vetores da racionalidade dominante, mas
que também permitem a emergência de outras formas de vida. Esse estado caótico, próprio
dos territórios, desempenha papel ativo na formação da consciência de suas populações
(Santos, 2000).
Ao mesmo tempo em que construímos nossas casas, nosso trabalho e nossas práticas de
lazer, essas também nos constroem, numa relação constante, tensa e paradoxal. No
entanto, a ideia de povo e nação depende exatamente de um aprofundamento dessas
relações constituídas na medida em que o “espaço” adquire significados e significações.
Nesse sentido, deixamos de lado a ideia de ‘espaço’ e buscamos o entendimento dos
“lugares” que se delineiam, particulares em seus significados, revelando e realizando o
mundo em seus tempos históricos, tornando-o campo de múltiplas experiências.
Para Santos (2000),
"os lugares são, pois, o mundo que eles reproduzem de modos específicos, individuais
e diversos. Eles são singulares, mas são também globais, manifestações de uma
totalidade-mundo, da qual são formas particulares" (p. 112).
Dessa forma, não poderíamos restringir
"a discussão em torno da animação sociocultural apenas num aspecto global, o que
nos remeteria a pensar a influência francesa de forma colonizadora, passível de ser
inserida no contexto brasileiro. É fundamental discutir as semelhanças existentes nos
dois contextos mas, sobretudo, considerar as múltiplas influências existentes na
realidade brasileira, o que justifica a emergência em ampliarmos o debate sobre a
temática para entendermos determinadas particularidades."
Considerando a animação sociocultural como um dos territórios do lazer e, ao mesmo
tempo, como manifestação que se particulariza em diferentes lugares (no caso, Brasil e
França), podemos situá-la como espaço vivido e vivificado pelas tensões que são próprias do
“lugar” e, também, como universo de influências advindas de outras realidades. Ou seja,
atualmente, considerando a velocidade da informação e da difusão do conhecimento,
rompe-se a antiga oposição entre o mundo e os “lugares” e, no caso da animação (e não só
dela),
"a informação mundializada permite a visão, mesmo em flashes, de ocorrências
distantes. O conhecimento de outros lugares, mesmo superficial e incompleto, aguça
a curiosidade" (Santos, 2000, p. 116).
Por um lado, tal curiosidade nos leva a verificar as semelhanças e as diferenças da
animação sociocultural nos dois contextos analisados. No entanto, a “descoberta das
diferenças” perde seu sentido se não for acompanhada de uma “tomada de consciência da
diferença”, o que acarretaria lidar com a informação geral, fragmentada, buscando situá-la
num contexto e processo histórico crítico que, em última análise, é um dos responsáveis
pelas particularidades da animação no Brasil e na França.
Inicialmente, é importante destacarmos a contemporaneidade do lazer e da animação
sociocultural. Na França, esses termos surgem com a industrialização, processo que se
instaura concomitantemente à urbanização. No caso do Brasil, tendo em vista o fato da
industrialização ter acontecido antes da urbanização, esses termos começam a aparecer a
partir da organização urbana da sociedade, ou seja, na transição do século XIX para o século
XX, momento em que novas formas de habitar, trabalhar e se divertir passaram a ser
necessárias.
Nesse período, os divertimentos passam a estar vinculados à questão do consumo de
bens industrializados e predominam propostas de lazer dirigido, um contexto bem diferente
daquele vivenciado na sociedade rural. Muitas iniciativas no campo do lazer surgiram nessa
época, buscando, em parte, reduzir o impacto causado pela nova ordem urbano-industrial,
destacando a promissoriedade das cidades.
Os primeiros estudos sistematizados sobre as práticas de lazer surgiram no final do
século XIX, na França e nos Estados Unidos, ou seja, alguns anos após o surgimento de
iniciativas desenvolvidas sob essa nomenclatura. Tais estudos traziam uma conceituação
específica sobre o lazer e a recreação, fortemente vinculada às necessidades dos
trabalhadores. Assim, preservando a ideia de conhecimento e controle social do “tempo
livre” dos trabalhadores, começa a se constituir, nos EUA, um campo de pesquisa
denominado sociologia do lazer. Tal campo se consolida a partir das abordagens teóricas da
sociologia do trabalho, o que desconsidera o desenvolvimento de modos de investigação
peculiares aos estudos do lazer.
É importante destacar que o termo “lazer” foi adotado e desenvolvido particularmente
pelos estudos franceses, enquanto os estudos norte-americanos preferiram adotar o termo
“recreação”. No entanto, ambos eram vistos como mecanismos para tentar resolver a
problemática decorrente da redução da jornada de trabalho e, consequentemente, dos usos
que os trabalhadores faziam de seu “tempo livre”.
Se, nos dias de hoje, é bastante polêmica a discussão de tais termos, em seus primórdios
ambos apresentavam características bastante similares. O que se falava sobre a “recreação”
nos Estados Unidos, se aproximava significativamente das discussões travadas sobre o
“lazer” na França. Mas, aos poucos, as diferenças foram se construindo, considerando os
“lugares” em que ambos se inseriram.
Segundo Melo (2001), as preocupações com o lazer, no Brasil, surgem no final do século
XIX, estando presentes no discurso de médicos e sanitaristas, responsáveis pelas novas
reformas típicas da organização urbano-industrial. Já os estudos sistematizados aparecem
por volta dos anos 20 e 30, ainda pautados pela defesa de lazeres saudáveis, buscando
difundir os valores morais e higienistas presentes na época.
O lazer surge, portanto, como fruto da revolução industrial, fundamentado numa ideia
de homem diferente da existente na sociedade rural: um homem que passa a ser movido
por normas e valores veiculados pelos meios de comunicação de massa e pelos pares. Nesse
sentido, a influência desses outros países passa a ser mais uma variável a ser considerada,
afinal, neles, o processo urbano-industrial já se consolidava, enquanto, no Brasil, ainda
estava se estruturando. Alguns teóricos da sociologia do lazer, entre eles Joffre Dumazedier
(grande influenciador do debate sobre o lazer no Brasil), chegaram mesmo a prever a
instauração de uma “civilização do lazer”, fato que, mesmo com o desenvolvimento
tecnológico, não tem se mostrado possível.
A instituição pioneira no debate sobre o lazer no Brasil foi, sem dúvida, o Serviço Social
do Comércio (SESC) que, nas décadas de 1960 e 1970, começa a criar mecanismos de
difusão da área. O lazer passa a ser o campo prioritário de ação da instituição e, aos poucos,
essa área se consolida, em razão da abertura a e intercâmbio com a França, por meio do
sociólogo Joffre Dumazedier; e da sistematização do conhecimento (Centro de Estudos do
Lazer), levando em conta novas concepções e técnicas de investigação sobre o tema.
Entretanto, é fundamental destacar que
"o Sesc, ao longo de sua história, sempre se destacou por uma ação social de cunho
assistencialista, seja no nível da saúde, como nos primeiros anos de sua existência, no
da educação ou do lazer dos trabalhadores comerciários" (Sant’anna, 1994, p. 48).
Nesse sentido, a instituição pretendia assumir um papel complementar ao do Estado,
buscando integrar-se ao poder público e, por suas propostas, incutir no “tempo livre” dos
trabalhadores os valores necessários ao aumento da produtividade e ao cultivo de uma
sociedade organizada, em que os conflitos dariam lugar ao espírito comunitário que se
pretendia criar (Sant’anna, 1994).
Além da notável difusão do lazer via SESC, a partir de 1969, foi cada vez mais frequente
o uso do termo “lazer” nos discursos políticos, destacando-se, principalmente, as práticas
consideradas saudáveis como forma de combate ao ócio, considerado um perigo social. O
lazer se constituiu, aos poucos, como instrumento de disciplina e organização da sociedade,
voltado ao ajustamento e à educação social, fato que pode ser observado por meio da
análise das formas de controle dos usos diversificados do “tempo livre” que, na época,
passaram a ser substituídas por formas de lazer institucionalizadas.
Ao aproximar as propostas de lazer de valores e interesses relacionados à saúde, à moral
e à higiene, a área logo se aproximou das discussões vinculadas à Educação Física, o que
justifica, em grande parte, a presença maciça dos profissionais dessa área, até os dias de
hoje, no âmbito do lazer.
De forma bastante paradoxal, os usos do “tempo livre” dos trabalhadores começaram a
se relacionar com as formas de lazer institucionalizadas, instaurando-se, assim, uma
discussão em torno do lazer mais adequado, melhor e verdadeiro, a construção de uma
verdade capaz de "justificar o lazer como um valor social imprescindível" (Sant’anna, 1994,
p. 63).
Ao se analisar o lazer no Brasil permanece, portanto, o questionamento sobre suas
finalidades e sobre o tipo de engajamento social que o difundiu. No caso da França, essa
luta surge da organização política e social conduzida pelas associações e sindicatos, tendo,
como princípio, a busca da integração social e a participação cultural ativa da população. Já
no Brasil, o lazer como campo de ação e pesquisa é fortemente incutido na população
através de uma instituição regida pelo patronato do comércio, preservando ideais e
interesses em consonância com a ordem vigente. Podemos falar, nesse sentido, em
organização e participação cultural? Em que medida essa participação acontece, se o
princípio é de paz social e a organização social pressupõe conflitos, frutos da relação entre
diferentes pontos de vista, interesses e grupos?
Não negamos, dessa forma, o paradoxo que encerra o lazer e a animação sociocultural,
apresentado como possibilidade de questionamento e superação do estabelecido e, ao
mesmo tempo, instrumento de manutenção e propagação da ordem dominante.
Considerando as contradições apresentadas, optamos por analisar com maior
profundidade as questões do lazer e da animação sociocultural na França e no Brasil,
buscando suas semelhanças e diferenças e fazendo-as dialogar, além de buscar entender em
que medida podemos nos desprender das influências francesas, na tentativa de trazer à
tona as particularidades brasileiras e, assim, traçar políticas públicas e políticas de ação cada
vez mais efetivas e consistentes.

A démarche francesa: ação e formação profissional


A França é reconhecida, historicamente, como um dos países em que a organização e a
participação popular são muito significativas. O mote do desenvolvimento associativo
francês surge, no final do século XIX, com a criação das grandes associações propostas na
Declaração de Condorcet, em 1789. Para Condorcet é impossível falar em democracia sem
pensar a democracia do conhecimento, que se dê de forma laica e seja a garantia de
formação do cidadão.
Também, na atualidade, a força dos movimentos associativos se faz presente. Hoje, na
França, existe uma infinidade de associações que lutam pelos mais variados interesses,
buscando garantir melhores condições de vida, além da integração social e do
desenvolvimento de uma consciência cada vez mais participativa da população. Dessa
forma, o debate em torno do lazer e da animação não poderia surgir de outra maneira,
senão pela militância dos mais variados setores.
Na década de 1960, várias associações inspiradas pelos ideais do Movimento de
Educação Popular deram início ao debate sobre os usos do “tempo livre” e sobre a
necessidade de se defender o lazer como elemento potencial para o desenvolvimento pleno
do cidadão. Apesar de terem se inspirado num mesmo movimento, as associações – ou
melhor dizendo, grupos delas – constituíram correntes variadas, o que permitiu diversificar
a discussão, com objetivos diferentes, em torno de uma mesma manifestação: o lazer.
Tais correntes se organizaram tendo como base três ramificações: a de tradição
educativa laica, a de tradição cristã humanista e o movimento operário. Em todas elas, a
Educação Popular era vista partindo-se do princípio de “educação permanente” – que se dá
ao longo da vida e, portanto, não pode ficar restrita à educação formal. Trata-se, logo, de
desencadear e valorizar os processos de educação “não formal” de forma cooperativa e
incentivando a emancipação dos indivíduos.
Sendo fruto da influência do Movimento da Educação Popular, o lazer não tardou a
dialogar com as Pedagogias da Escola Nova, o que foi determinante na organização e na
difusão do conceito de animação sociocultural (na década de 1970) em vários setores
(educação, saúde, vendas...) não ficando restrito apenas ao lazer.
Quando se fala em animação neste país, é possível fazer menção a uma gama de
ações/intervenções de caráter social, educativo e cultural, que podem estar vinculadas, ou
não, ao lazer. É possível elencar várias terminologias vinculadas à intervenção sociocultural,
entre elas: animação cultural; animação social; animação sociocultural; e animação social-
cultural. Isso demonstra a complexidade de se abordar essa temática e, principalmente, nos
convida a aprofundar as discussões.
No início, a animação apareceu como uma possibilidade de “cultura para todos”, sendo
comparada a uma “escola paralela”, posto que era e é evidente que a instituição escolar não
tem condições de garantir a promoção social de grande parte da população (Besnard, 1980).
Como o propósito central do Movimento de Educação Popular era a “educação das
massas”, a animação se desenvolveu na perspectiva de garantir acesso mais facilitado e
democrático aos bens culturais. Partia-se do princípio de que a emancipação política e social
dos indivíduos passava, necessariamente, pela emancipação cultural (Mignon, 1999).
A animação surge num momento pós-guerra bastante ambivalente, traumatizado pelos
valores republicanos e pelos ideais fascistas transmitidos na educação formal. Assim, a
educação política dos cidadãos passa a ser o foco e, necessariamente, ela deveria se dar fora
dos ambientes formais. A pedagogia sai da escola e vai de encontro aos atores culturais
(músicos, artistas, entre outros).
A funcionalização desses atores culmina num projeto de animação sociocultural que se
propõe a transformação da organização social vigente. Rompe-se a ideia de uma sociedade
constituída por indivíduos que se comunicam e se relacionam entre si, para buscar entender
a apropriação que esses indivíduos fazem dos diferentes objetos sociais, os quais, em última
análise, serão responsáveis por desencadear os diferentes procedimentos de consumo de
bens culturais. Dessa perspectiva, o viés de uma educação política ficava ainda mais
evidente e a animação sociocultural se apresentava como possibilidade de intervenção no
campo do lazer. Assim, outras intervenções, também denominadas de “animação”, se
realizaram no campo da ação social, da prevenção em saúde e da difusão cultural.
A pluralidade de olhares para a animação existentes na França foi bastante positiva no
sentido de apresentar novos caminhos para o Estado que, aos poucos, teve que dialogar
com as associações e desenvolver mecanismos de ação que pudessem contemplar os
interesses destas. Historicamente, isso foi bastante importante para o desenvolvimento da
sociedade, pois a animação permitiu a valorização do capital cultural e social existente na
comunidade, estimulando a tomada de iniciativa e a busca da autonomia (Gillet, 1995).
Tais encaminhamentos não se deram de maneira linear e pacífica. O conflito sempre
esteve presente e fez parte das conquistas hoje consolidadas em território francês. A
própria animação se legitimou como “lugar” paradoxal, de conflito e esperança, de sentido e
finalidade, entre elementos complexos que se relacionam, o que dificulta sua definição de
maneira pontual.
Estudos que datam da última década, sobre a animação na França (Gillet, 1995),
apontam para a necessidade de compreendermos suas finalidades e fundamentos na
perspectiva da práxis, algo que pode parecer ambíguo, mas que propõe a tensão constante
entre teoria e prática de forma dialética e não lógica ou empírica. Trata-se de englobar a
teoria como elemento que vivifica e verifica uma ação, enquanto a prática pode significar a
consolidação das ideias e reflexões teóricas.
Não basta, no entanto, falarmos apenas da ação vinculada à animação. Aos poucos, esse
campo foi se profissionalizando, graças ao surgimento de cursos de formação que buscavam
qualificar os novos profissionais.
As formações específicas para atuação com a animação se constituíram, na França,
como Certificados e Diplomas de Estado e não como cursos de nível superior. Esses são
equivalentes aos cursos livres e cursos técnicos, no Brasil, com o reconhecimento do Estado.
Existem duas categorias gerais de formação, aquela voltada para animadores
“profissionais” e outra que qualifica os animadores “não profissionais” ou “voluntários”.
Estes, apesar de ditos “voluntários”, são remunerados por sua ação profissional. Tal
terminologia é proposital, para qualificar o animador que tem sua prática fundamentada na
militância. Apesar de não ser uma regra, os animadores “profissionais” apresentam,
normalmente, uma vasta experiência no “voluntariado”, participando de associações e
desempenhando, além das intervenções com o público, sua militância associativa. Isso é o
que contribui, em grande parte, para a manutenção das associações.
Há cinco Certificados de Estado que autorizam a prática de profissionais na animação.
São eles: BAFA [2] (habilitação para desempenho de funções na animação); BAFD [3]
(habilitação para o desempenho de funções de coordenação); BASE [4] (habilitação para
desempenho de ações socioeducativas); BAPAAT [5] (assistente técnico de animação);
BEATEP [6] (técnico em educação popular). Os três primeiros fazem parte do eixo
“voluntário”, enquanto os dois últimos correspondem à formação de animadores
“profissionais”.
O animador BAFA é um profissional sazonal, ou temporário, que atua com funções de
animação em contato direto com o público, propondo atividades e ações em consonância
com projetos elaborados por outras instâncias, algumas vezes com sua contribuição, outras
não.
Os animadores BAFD e BASE possuem certificados que permitem a eles desempenhar
funções de coordenação em instituições de lazer (colônias de férias) ou socioeducativas
(casas de cultura). No entanto, a elaboração de projetos é restrita à instituição que
representam.
Os animadores profissionais que recebem o certificado BAPAAT são autorizados a
desempenhar funções de animação ligadas a atividades de competência específica,
principalmente as esportivas e socioculturais (artes plásticas, teatro, dança, patrimônio
cultural), bem como elaboração de projetos.
Já os animadores BEATEP possuem uma formação que tem, como diferencial, o
aprofundamento de determinadas competências específicas em seus aspectos pedagógicos,
sendo estas divididas em três grupos de atividades: as técnicas e as científicas, as culturais e
as de expressão e as sociais e as cotidianas. Essa formação desenvolve competências para o
profissional ser capaz de conceber, realizar e avaliar projetos de animação para instituições
de médio porte, agregando diferentes campos, ações e profissionais.
Com exceção da formação BAFA, que tem duração de uma semana, todas as outras se
desenvolvem em alternância (formação – estágio) o que reforça a ideia de formação
permanente e, sobretudo, de práxis. Além disso, é fundamental destacar que os cursos
oferecidos pelas associações e validados pelo Estado têm um custo bastante alto, que é
subsidiado em grande parte pelo Estado, sendo o restante dividido entre o profissional e a
instituição que ele integra.
Ainda no que compete à formação, destacam-se mais dois Diplomas de Estado que
capacitam animadores “profissionais”: o DEFA [7] (gerenciamento de funções de animação)
e o DEDPAD [8] (direção de projetos de animação e desenvolvimento social). Ambos têm
equivalência com cursos de graduação com duração de quatro anos.
Os animadores DEFA são autorizados a desempenhar funções em instituições de médio
e grande porte, atendendo grandes comunidades em projetos de animação que integram
diferentes grupos organizados. A grande possibilidade desses animadores é atuar no serviço
público, estruturando e planificando a animação nos bairros e/ou cidades.
A formação de animadores DEDPAD qualifica o profissional para o desenvolvimento de
políticas de animação e desenvolvimento local, dando especial atenção para a interação
entre diferentes estruturas (educativas, sociais e culturais) e buscando valorizar o capital
cultural existente.
Em meados de 1990, surge o primeiro curso de nível superior (licenciatura) voltado para
a animação sociocultural, na Universidade Bordeaux 3. Sua formação pode ser comparada
àquela dos animadores DEFA. Nos anos subsequentes, o curso foi se consolidando e novas
iniciativas surgiram. Hoje, além da formação superior de quatro anos, essa mesma
universidade oferece um mestrado profissionalizante e cursos de aperfeiçoamento e
formação continuada na área da animação. Neles, o processo de formação se dá em
alternância, o que permite, desde o início da formação, incentivar o aluno a aplicar e
reformular o que se discute em sala de aula.
Nessa breve incursão no campo da formação de animadores franceses, é possível
visualizar com nitidez a estrutura de animação proposta por Dumazedier (s/d.) em sua obra
Questionamento teórico do lazer. De forma piramidal, a estrutura é composta por
animadores de competência geral em seu vértice; animadores de competência específica no
centro e animadores voluntários na base.
Marcellino (2001) retoma a mesma estrutura, de forma bastante apropriada, discutindo
as funções de cada um dos animadores:
"Os primeiros, a meu entender, encarregados do gerenciamento, digamos assim, da
coordenação de políticas e da supervisão dos planos e projetos. Os de competência
específica planejadores também, mas basicamente executores e avaliadores das
ações em cada um dos conteúdos culturais do lazer e suas conseqüências
socioculturais. E, finalmente, a base, encarregada da ligação da ação com a cultura
vivida, nas comunidades nas quais está inserida" (p. 22).
Em linhas gerais, é possível afirmar que a animação na França apresenta uma forte
dimensão cultural, identitária daquele “território” e fruto das tensões e relações que nele se
estabeleceram/estabelecem, criando significados e, principalmente, significações que
consolidaram a animação como um campo multidisciplinar de atuação profissional. É
impossível limitar o conceito de animação a um único campo do conhecimento na realidade
francesa pois ela pode ser apropriada por profissionais de diferentes áreas (lazer, educação,
saúde, serviço social...).
Além disso, é importante destacar o quanto a animação nesse país está vinculada à
dinâmica social (entenda-se aí, também, educação social) e não ao mero oferecimento de
produtos culturais. Isso não significa dizer que a oferta de produtos culturais não ocorra,
mas que o espírito associativo tem ajudado a preservar a animação como possibilidade de
intervenção que busca a transformação da organização social.
Nesse sentido, lazer e educação acabam dialogando de forma constante, posto que a
intervenção do animador é potencialmente educativa (não no aspecto formal do termo) e
visa incutir nos indivíduos a necessidade cada vez mais eminente de se inserirem num
processo de autoformação (propósito da educação permanente). Em última análise, isso
representaria a tomada de consciência e a autêntica realização do que se nomeia
autonomia. Ou seja, a ação espontânea ou provocada, no lazer e em outros campos da vida,
passa a ser um constante convite para que o indivíduo assuma seu próprio
desenvolvimento.
Essa reflexão poderia ser ingênua caso não considerasse as contradições presentes na
realidade francesa, mas o objetivo primeiro de nosso capítulo é dar destaque às diferenças
para, posteriormente, tomar consciência de como elas foram apropriadas pela realidade
brasileira.

A démarche brasileira: ação e formação profissional


Para pensar o lazer e a animação sociocultural no Brasil, é fundamental resgatarmos o
contexto histórico aqui existente, na transição do século XIX para o século XX. A abolição
dos escravos e o início da organização das cidades foram elementos que exigiram novas
formas de pensar e agir, novas condutas, normas, trabalhos e formas de se divertir. A
chegada de imigrantes também contribuiu muito com essa nova configuração e a busca de
referências no “Velho Continente” se tornaram inevitáveis.
É fundamental destacarmos a influência francesa na organização dos grandes centros
urbanos brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, que se ergueram tendo
como “musa inspiradora” a cidade de Paris. No que tange ao lazer, a tendência que mais se
difundiu, via SESC, conforme já vimos, foi aquela defendida pelo sociólogo francês Joffre
Dumazedier. No entanto, não podemos negar as contribuições dadas pela tendência norte-
americana. Daí emerge uma primeira problemática que se funda na tentativa de reproduzir
modelos já existentes, muito mais do que pensar e discutir as particularidades do lazer no
Brasil.
Em partes, essa iniciativa foi bastante positiva no sentido de fazer conviverem diferentes
tendências. Mas poderia ter significado a superação dessas tendências, se tivesse sido
investida de um sentimento de identidade brasileira, considerando as questões mais
específicas do lazer em nosso país.
Alguns autores discorrem criticamente sobre a proposta francesa, destacando que a
“sociologia empírica do lazer” defendida por Dumazedier, apresenta o lazer como um
conceito a-histórico, um modelo puro formulado teoricamente e desinvestido da realidade
concreta. "Existe assim a procura pela especificidade do lazer no instante mesmo em que ela
se produz" (Sant’anna, 1994, p. 69).
Para Requixa (1977), o lazer é uma possibilidade de estimular o criativo e a aquisição de
novos conhecimentos, exercendo a função de condutor, encaminhador dos indivíduos no
processo de busca do prazer e da felicidade, através da descoberta e fruição de valores
estéticos.
O antagonismo dessas afirmações pode nos levar a perceber o lazer como campo de
conhecimentos e modos de expressão criativa estabelecidos a priori, selecionados e
escolhidos conforme o projeto de sociedade que se almejava construir. Esse fato conduz a
estruturação dos processos de educação para e pelo lazer que visariam educar os indivíduos
"corrigindo seus hábitos e fixando sua identidade em valores e significados, consoantes com
a ordem social vigente" (Sant’anna, 1994, p. 71).
De certa forma, isso naturalizou o lazer de cunho educativo, levado a campo pelas ações
institucionais com o intuito de transformar os usos do “tempo livre” e desinvestiram as
diversões e o descanso de seu caráter de gratuidade.
Portanto, quando falamos do lazer no Brasil, devemos observar suas múltiplas
influências (americanas e europeias) e perceber que as iniciativas de sistematização do
conhecimento dessa área não surge das necessidades comunitárias ou associativas, mas de
uma instituição que, em seu cerne, pregava o bem-estar e a paz social. Nesse sentido, a
ideia de conflito se perde ou se torna perigosa e, assim, a discussão acaba sendo conduzida
por um outro viés, o do lazer como panaceia para resolução dos problemas sociais, para
alcançar a ordem e o progresso imponentemente apresentados em nossa flâmula.
Também não podemos ser simplistas e desconsiderar as ações que, nessa época,
ultrapassavam o mero assistencialismo, ou mesmo, não validar a iniciativa do SESC em
sistematizar o conhecimento e propor ações no campo do lazer. É imprescindível, contudo,
analisarmos – como nos propusemos no início do texto – como os sujeitos se apropriaram
dos diferentes objetos culturais.
Sendo, assim, possível afirmar que o lazer na realidade brasileira é, frequentemente,
restrito à ideia de atividade e às possibilidades práticas proporcionadas por ela.
Outro fator importante a se destacar é que o movimento associativo no Brasil, apesar de
tornar-se cada vez mais significativo, aparece em proporções bem menores que na França,
sendo sua contribuição para o debate e sistematização do conhecimento no campo do lazer
pouco relevante. Nesse caso, os estados e municípios embasados no discurso higienista e,
mais tarde, nos princípios cívicos patrióticos de ordem e progresso, foram mais eficientes no
encaminhamento de iniciativas, mesmo que numa perspectiva limitada e funcionalista.
De forma geral, o lazer se consolidou como campo de interesse da propagação de um
ideal regido pelo lema “ordem e progresso”, no qual predominaram “bairrismos” e a busca
constante de disciplinar a área, ou seja, restringi-la a um campo do conhecimento, no caso a
Educação Física, que estava bem próxima dos ideais citados anteriormente.
É curioso perceber, conforme nos propõe Sant’anna (1994), que o empenho do regime
militar (ação e repressão) em corrigir e pôr fim a determinadas práticas sociais – que não
estavam em consonância com os princípios da época de desenvolvimento e progresso –
eram bastante similares às falas que norteavam e buscavam organizar e ampliar o lazer
programado.
Nesse processo, fica evidente que a educação política do cidadão não é a finalidade
básica das intervenções, o que nos remete a pensar que, até certo ponto, as práticas de
lazer programado podiam se constituir como elementos poderosos de alienação e
docilização da população.
Além de suas possibilidades lúdicas, o lazer passou a assumir funções disciplinadoras,
terapêuticas, de correção dos excessos e desequilíbrios existentes nas cidades. Considere-
se, também, que as possibilidades de lazer oferecidas pela “indústria do entretenimento”
relacionavam cada vez mais o lazer saudável com o consumo o que, de certa forma,
reforçava o mesmo discurso.
É importante destacar que, ao falarmos do lazer como instrumento de controle
ideológico, nos referimos mais às ambições de poder institucional do que às possibilidades
observáveis na realidade concreta. Aliás, seria um risco afirmarmos o lazer exclusivamente
como instrumento ideológico, posto que isso incorreria em pensarmos o Estado como bloco
hegemônico e único que funciona a partir de estratégias planejadas, o que, definitivamente,
não é verificável.
Como no Brasil, a difusão da área ocorreu com o diálogo SESC – Estado, logo foi
necessário pensar a formação dos profissionais da área de lazer, que começava a se
constituir. Dar condições para que a população fizesse uso adequado de seu “tempo livre”,
falar do prazer de dispor o corpo de outra forma, de cuidar dele, contê-lo, exercitá-lo,
torneá-lo e adestrá-lo, buscando torná-lo veloz, produtivo, saudável, para combater o ócio,
a doença, a moleza. Tal discurso logo encontrou ressonância com os ideais defendidos pela
Educação Física da época, o que culminou com o oferecimento de disciplinas de Recreação
nos cursos de nível superior da área. O profissional de Educação Física foi considerado,
então, o mais apto a atuar no campo do lazer.
As disciplinas vinculadas ao lazer foram, aos poucos, proliferando nos cursos de
Educação Física. Nelas, predominava, em sua maioria, a difusão do lazer restrito a
brincadeiras, jogos e outras alternativas de caráter ocupacional, ou seja, uma perspectiva
reducionista se comparada àquela que se difundiu na França.
Atualmente, quando falamos da formação dos profissionais do lazer – não nos limitamos
à denominação “animador”, pois existem outras nomenclaturas que os qualificam –
podemos distinguir seis categorias possíveis: cursos livres de curta duração; formação de
nível superior específica; inserção de habilitações em cursos de nível superior; pós-
graduação strictu sensu diversificada com linhas de pesquisa específicas; pós-graduação lato
sensu e MBA.
Os cursos livres normalmente têm curta duração e, em sua maioria, reforçam a ideia
simplista do lazer, limitando suas possibilidades de ação à promoção de atividades de
caráter duvidoso. Talvez possamos compará-los a verdadeiros “caça-níqueis”, que
estabelecem um processo de formação altamente dependente de suas ações e “receitas”.
Os cursos nesse formato são, apesar disso, bastante difundidos, pois vão ao encontro da
perspectiva de divertimento que vem se consolidando cada vez mais em nossa sociedade,
pela chamada “indústria do entretenimento” e que visa, segundo Marcellino (2001),
“desviar a atenção” – o que nos parece bem similar à política do Pão e Circo da antiga Roma.
No entanto, essa perspectiva não se difunde, segundo o autor, somente nos cursos livres:
"mesmo em universidades consideradas “sérias” estão cada vez mais preocupados na
“gestão” de uma perspectiva de entendimento extremamente pobre das questões da
administração, que vem abarcando cada vez mais esforços de formação profissional
em nossa área, de modo geral, ou entendida nos seus conteúdos culturais, como é o
caso do Turismo, do Esporte e da Cultura, vista fundamentalmente como Artes e
Espetáculos" (p. 23).
Vale a pena destacar que tal perspectiva de divertimento nos remete a um tipo de
profissional que se justifica por sua personalidade e não, necessariamente, por sua
competência. É o que Mills (1969, p. 243) chama de dupla alienação ou autoalienação, ou
seja, o trabalhador não vende simplesmente sua força de trabalho, mas também sua
personalidade.
No lazer, isso pode extrapolar e, em alguns casos, o trabalhador deixa de ser profissional
para se tornar uma “personalidade profissionalizada” (Marcellino, 2001). Naturalmente, tal
postura tende a defender o discurso de que bom humor é mais importante que
competência no lazer e, nesse sentido, não se fala em compromisso político do profissional,
mas em solicitudes artificiais e na distração do “público”, ao qual o animador se apresenta
quase como um “bobo da corte”.
Não queremos dizer com isso que o bom humor não é importante, o que seria perigoso,
posto que lidamos diretamente com o público. Mas esse bom humor não pode representar
a ausência de competência, compromisso político e seriedade. "Esses são os três elementos
que tornam o exercício da profissão digno" (Marcellino, 2001, p. 24).
Avançando na discussão da formação do profissional do lazer, outra possibilidade é dada
pelos cursos específicos de nível superior, que são bastante recentes e ainda tentam ganhar
solidez. A faculdade Anhembi-morumbi e a Universidade do Vale do Itajaí foram pioneiras
na iniciativa, mas sucumbiram frente a algumas dificuldades. Mais recentemente, em 2005,
a USP Leste – novo campus da Universidade de São Paulo – criou um curso que forma
bacharéis em Lazer e Turismo e teve, em seu primeiro vestibular, uma procura superior a
cursos considerados mais tradicionais, como Esporte e Saúde.
As habilitações específicas em cursos de nível superior são mais comuns. Aparecem,
tradicionalmente, na área de Educação Física, mas também em Turismo, Comunicação,
Artes, Pedagogia, Ciências Humanas, Administração, entre outros.
Isayama (2003) afirma que, na área de Educação Física,
"ainda prevalece um entendimento de que o profissional que atua com lazer deve
levar as pessoas a esquecer seus problemas cotidianos [...] neste contexto, sua
atuação se restringe à organização de jogos e brincadeiras que incentivem o
agrupamento das pessoas ou à animação de festas e bailes" (p. 64).
Esse diagnóstico reforça a visão predominante, já apresentada, do lazer como mera
ocupação, estimulado pelo consumo alienado de bens culturais. O direcionamento excessivo
das atividades acaba deixando em segundo plano o papel pedagógico da animação,
"contribuindo para reforçar os valores da ideologia dominante, encorajando práticas
tradicionais que não possibilitam um envolvimento crítico, criativo e consciente dos
participantes" (Isayama, 2003, p. 69).
Além da qualificação no nível de graduação, ainda é possível encontrar programas de
pós-graduação stricto sensu (em outras áreas do conhecimento) e lato sensu
(especialização). Neste último caso, destacamos o curso oferecido, com regularidade, pelo
Centro de Estudos de Lazer e Recreação (CELAR), da Escola de Educação Física, Fisioterapia e
Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Finalmente, existem cursos de formação de administradores e gestores de negócios da
indústria do entretenimento, oferecidos pela Universidade Candido Mendes (RJ) e pela
Fundação Getúlio Vargas. O foco dessas formações é atender, principalmente, à demanda
de vagas relativas aos polos de entretenimento, como por exemplo, os parques temáticos.
Apesar das diversas formações disponíveis, Marcellino (2001), ao analisar a política de
formação e desenvolvimento de quadros, aponta a frequente queixa dos responsáveis pelos
executivos, nos vários âmbitos, da falta de pessoal qualificado e competente para
desempenhar funções na área.
O fato de não haver cargos definidos com funções claras delimitadas é um dos
agravantes da situação. Isso gera disputa de cargos da área de lazer por funcionários de
outras áreas, ou mesmo “apadrinhados” externos, o que dificulta, significativamente, a
inserção do profissional de lazer no mercado. Este especialista possui uma visão abstrata do
lazer, o “lazer mercadoria”, sendo um profissional tradicional que tem seu perfil regulado
pelo mercado.
Não menos importante é a questão, já levantada, da “profissionalização da
personalidade”, que somada às dificuldades de inserção no mercado acaba contribuindo
com a baixa remuneração do profissional que, normalmente, trabalha como freelancer, sem
garantia, direitos ou estabilidade.
A função de ‘tapa-buraco’, ou seja, de disfarçar com amabilidade e simpatia as
deficiências e os problemas do serviço, normalmente exige do profissional uma atuação
quase ‘circense’, desviando o foco e procurando mascarar a falta de qualidade.
Dessa falta de compromisso político, alimentada pelo “personagem” que o animador
deve encarnar para entreter seus clientes, surge uma problemática ainda maior, aquela que
desconsidera os sujeitos sociais e políticos em seus interesses, expectativas, conflitos e
necessidades.
Bernet (apud Isayama, 2003) aproxima-se dessa discussão ao apontar, como objetivo
central da animação sociocultural, o fomento nas pessoas, nos grupos ou nas comunidades
de atitudes abertas e orientadas para o envolvimento nas dinâmicas e processos sociais e
culturais que os constituem, sendo todos responsáveis pela construção dos princípios
norteadores da vida cotidiana.
Com base em tais considerações é possível perceber que, apesar dos diferentes níveis de
formação existentes no Brasil e da demanda de profissionais existente na área do lazer, é
urgente e necessário (re)discutir a formação e desenvolvimento de quadros, buscando
superar as expectativas do senso comum, levando em conta a estrutura de animação
proposta por Dumazedier (s/d.) e estruturando equipes multiprofissionais que deem conta
do lazer como campo abrangente de pesquisa e ação.
Em suma, o lazer no Brasil é norteado por um pensamento hegemônico que o vincula ao
mero oferecimento de atividades. Esse simplismo se reflete na delimitação do perfil do
profissional que atua na área, valendo-se do bom humor e não da competência. Cabe
também a ele reconquistar seu espaço profissional, buscando dignificar a profissão, pautado
por uma formação sólida e abrangente, pelo constante estudo e aperfeiçoamento e pela
percepção das interseções de sua intervenção com as demais existentes no lazer. Extrapola-
se, assim, o estereótipo do sujeito meramente simpático e bom camarada.
Também é muito importante destacar quanto os pedagogismos têm permeado as ações
no campo do lazer, instrumentalizando o lúdico e as possibilidades no lazer em nome de
valores preestabelecidos. Em outros casos, é possível constatar a completa oposição entre
lazer e educação, o que reforça a ideia de consumo de bens culturais. Acreditamos ser
fundamental delimitar a relação lazer e educação, no sentido de permitir intervenções
consistentes através da animação sociocultural, preservando seus objetivos primeiros de
"promover uma compreensão das pessoas em relação a si próprias e ao mundo que
as cerca; buscar maior participação de todos nas questões sociais mais amplas, por
meio de encaminhamento de soluções coletivas, sempre renovadas, para os
problemas de sua comunidade; e também possibilitar uma preparação para
empreender mudanças na sociedade, gerando um pensar constante sobre o papel de
sujeitos nesse sentido" (Carvalho apud Isayama, 2003, p. 73).
Parece-nos claro que, dentro da perspectiva predominante do lazer no Brasil, persiste a
ideia de que o mero acesso aos divertimentos pode representar a democratização dos bens
culturais. Por inúmeros fatores o acesso não é suficiente para estimular e desenvolver a
participação cultural dos indivíduos, sem contar que, muitas vezes, não há acesso ao lazer
para determinados grupos sociais. Faz-se necessário associar os meios de acesso aos bens
culturais com intervenções no campo da animação sociocultural.
Nesse sentido, o profissional deve fundamentar suas ações na animação em quatro
papéis principais: facilitador, clarificador (conscientização), catalisador (suscitar as
iniciativas) e promotor (acesso e difusão da cultura local). A negação desses papéis pode
representar a manutenção de intervenções que consideram o público apenas como plateia,
estimulando-o a desempenhar sua participação como mero espectador, e não como
cidadão.

Considerações finais
Apesar das particularidades destacadas nas análises anteriores é evidente a importância
de buscarmos ampliar o contato com as experiências de outros países, superando a ideia de
reprodução destas e buscando os elementos que podem ser devidamente adequados à
realidade brasileira. Para tanto, é fundamental haver um campo vasto de práticas e
experiências profissionais que subsidiem e consolidem as discussões da área.
Aliás, a relação entre a teoria e a prática tem se tornado um outro limite no avanço das
discussões e na reformulação das ações profissionais no Brasil. É fundamental ampliar as
discussões do lazer e da animação sociocultural na perspectiva da práxis, permitindo a
instauração de intervenções educativas no plano cultural.
Enfim, se quisermos entender o lazer como questão contemporânea em suas múltiplas e
complexas possibilidades é fundamental entendê-lo como campo multidisciplinar, fazendo
dialogar as diferentes áreas que o integram. Para tal, é importante refletirmos sobre a
inviabilidade de disciplinarizar o lazer, buscando, cada vez mais, a interação das áreas
engajadas.
Ao mesmo tempo, isso requer a superação de propostas desenvolvidas por profissionais
mal-remunerados e mal-formados, que reproduzem “pacotes de atividades” de caráter
duvidoso. A qualidade do trabalho no campo do lazer deve ser construída levando-se em
conta verbas e estruturas compatíveis com as necessidades existentes, bem como
profissionais que tenham engajamento político suficiente para desencadear intervenções
nas comunidades, caso contrário veremos prevalecer a promoção de atividades e
“festinhas” com o objetivos de entreter e ocupar a população.
Para Miranda (2003) a superação desta lógica distributiva dos bens culturais passa
necessariamente por uma intervenção que considere o mercado cultural como difusor de
bens culturais de consumo, cabendo a ele, portanto, um papel fundamental de
democratização da cultura. Ao mesmo tempo que é fundamental intervir considerando a
cultura como um projeto de sociedade que busca sua autossustentação alicerçada na
participação cultural dos cidadãos e na valorização do potencial cultural existente.
Essas vias de intervenção na área cultural, sobretudo a segunda, só ganham sentido
quando o lazer assume sua interface com a educação, entendida no sentido mais amplo de
processo permanente de formação dos indivíduos, que não pode, de maneira alguma, ficar
restrito ao ambiente formal de educação (escola).
Da relação lazer-educação emerge a animação sociocultural como possibilidade de
intervenção educativa preocupada com a emancipação dos sujeitos. Para tanto, é mister
que os profissionais do lazer (animadores, monitores, agentes culturais, gentis
organizadores...) possuam uma bagagem cultural sólida que possa auxiliar na dinamização
de propostas diversificadas e tenham a intenção de exercer influências pautadas em seu
engajamento e compromisso político com a mudança, incentivando a participação e
valorizando os elementos que pululam na dinâmica social. Em suma, o animador assume um
papel de educador que exercita seu caráter opinativo na busca de soluções e
encaminhamentos coerentes com as necessidades, interesses e expectativas do público.
Dessa forma, é importante ampliar as discussões sobre o lazer e a animação
sociocultural na perspectiva da práxis, buscando superar os paradigmas tecnológico (vertical
– de cima para baixo) e interpretativo (próprio dos diferentes grupos), para nos inserirmos
num paradigma dialético que considere ambos em uma tensão que se faz necessária para
superarmos propostas conformistas, dando à população/público a possibilidade de
intervenções críticas e criativas.
Para Miranda (2003) isso nos remete à ideia de que "a cultura não é algo a ser
distribuído, é algo a ser vivido e a ser criado conjuntamente" (p. 31), no entanto, isso exige a
integração de algumas ações, entre elas: a reformulação, elaboração e implementação de
políticas de lazer sérias, que seriam o contraponto das propostas colocadas no “mercado”; o
resgate do respeito ao profissional do lazer, passando por sua formação e, principalmente,
pela assunção de seu papel como educador (e não mercador, como habitualmente vem
ocorrendo); a consideração da relação lazer-trabalho não em oposição, mas como
elementos que se complementam.
Além disso, é fundamental que os profissionais do lazer assumam a profissão tendo
como base o engajamento político, considerando-se militantes da área de sua atuação.
Nesse sentido, os preconceitos relativos aos locais de trabalho são superados, posto que o
profissional passa a ter condições de argumentar e discutir determinadas propostas
impostas pelo mercado.
Considerando que o lazer é um campo de ação e pesquisa multidisciplinar, não é
interessante delimitar um perfil profissional, mas acreditamos ser urgente a necessidade de
se incutir nos animadores a questão do desenvolvimento profissional constante, na
tentativa de se garantir um alicerce sólido de cultura geral que subsidie intervenções
comprometidas com o que foi até aqui discutido.
Neste capítulo, certamente, há muitas brechas para discussão e questionamentos, o
que, é bastante positivo, pois representa a possibilidade de se fazer avançar os debates
sobre a animação sociocultural no Brasil, buscando destacar nossas particularidades e
construir, aos poucos, uma identidade para a área.

Notas
1. Este texto foi elaborado com base na fala apresentada na abertura do I Encontro de
Animadores Socioculturais, realizado no XVII ENAREL – Encontro Nacional de Recreação e
Lazer, em novembro de 2005, em Campo Grande – MS.

2. BAFA – Brevet d’Aptitude aux Fonctions d’Animateurs.

3. BAFAD – Brevet d’Aptitude aux Fonctions de Directeur.


4. BAFAD – Brevet d’Aptitude aux Fonctions de Directeur.

5. BAPAAT – Brevet d’Aptitude Professionnelle d’Assistant Animateur Technicien de la


jeneusse et des sports.
6. BEATEP – Brevet État d’Animateur Technicien de l’Éducation Populaire et de la jeneusse.
7. DEFA – Diplôme État relatif aux Fonctions d’Animation.

8. DEDPAD – Diplôme État de Directeur de Projet d’Animation et de Développement.

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Marco Zero, 1994.
CAPÍTULO 7
Formação dos Agentes Sociais de Esporte e
Lazer:
história, limites e desafios
Andréa Nascimento Ewerton e Marcelo Pereira de Almeida Ferreira

Para início de conversa, entendemos que falar de formação, capacitação e


aperfeiçoamento traz uma carga significativa de conceitos e concepções que, muitas vezes,
são vistos como sinônimos ou ensaios que, no contexto pedagógico da prática social,
partem e chegam ao mesmo ponto, transformando-o de uma maneira ou de outra. Assim
sendo, é na perspectiva de não estarmos falando de lugar nenhum que este texto se
apresenta, no sentido de entender que a palavra – em si – tem força e traduz concepções de
homem, de mundo, de sociedade e de vida.
Vejamos o peso das palavras com o auxílio do reconhecido dicionário Aurélio (2004),
segundo o qual “capacitar” significa tornar capaz, habilitar, persuadir-se, convencer-se;
“aperfeiçoar” significa tornar mais perfeito, adquirir maior grau de instrução ou aptidão; e,
por fim, “formar” significa dar forma a algo, compor, por em ordem, educar e aperfeiçoar.
Esse jogo inicial de palavras nos faz determinar um ponto de vista, acreditando na
possibilidade de um mundo de pessoas em comunhão, vivendo e construindo saberes e
vivências – práticas sociais – disponibilizando aos sujeitos o olhar, o conhecer e o
compreender dos conteúdos historicamente construídos e sistematizados pela humanidade,
mas permanentemente negados a grande parte dela, consequência das relações de poder
próprias da sociedade capitalista.
Em nossa experiência de gestão pública, nas áreas da educação, esporte e lazer, sempre
ligada à construção e consolidação de políticas públicas de qualidade, partimos da crítica ao
uso do termo “capacitar”, que pressupõe incapacidade, assim como do termo “aperfeiçoar”,
que subtende a instrução e aptidão de quem não está ‘perfeito’. Entendemos que os
sujeitos, por serem históricos – e, portanto, terem seu lugar e tempo na sociedade – estão
em permanente processo de formação, constituindo e estruturando elementos e conteúdos
diversificados da prática social. Para tanto, definimos como premissa central dessa ação, na
política pública, a formação.
Partimos da ideia de Paulo Freire (2005) de que "ninguém educa ninguém, ninguém
educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo" (p. 78). Assim,
entendemos também o processo de formação de agentes sociais de esporte e lazer como
uma educação em comunhão, reconhecendo esses agentes como educadores populares,
cujas intervenções pedagógicas dialogam com o campo da “educação formal” e se efetivam
no campo da educação não formal, no sentido da educação pelo e para o lazer. Assim como
Marcellino (1996), defendemos o "duplo aspecto educativo do lazer".
Não acreditamos em política pública de qualidade sem um eixo de formação de quadros
de pessoal. Comungamos essa ideia com o conteúdo abordado na II Conferência Nacional de
Esporte, realizada em 2006, em Brasília, coordenada pelo Ministério do Esporte e
desenvolvida com apoio dos estados, municípios e da sociedade civil organizada, nas etapas
municipais, regionais e estaduais [1].
A II Conferência, que teve como resultado a apresentação dos subsídios para a
construção de um Sistema Nacional de Esporte e Lazer, apresentou, como um dos eixos de
estruturação do sistema, o tema Recursos Humanos e Formação, como parte indissociável
de uma política pública nesse campo.
Destacamos, como foco desta abordagem, o agente social de esporte e lazer e sua
formação. Para falarmos dos agentes sociais que estão na ponta, efetivando as práticas
sociais das políticas de lazer, torna-se imprescindível estabelecer o diálogo entre o perfil e a
formação destes, e esse diálogo deve se sustentar e fortalecer de maneira ímpar no tripé
agentes-formação-trabalho/prática pedagógica.
Trata-se, portanto, de reestabelecermos um marco diferencial no desenvolvimento de
atividades nos campos do esporte e do lazer, de tal maneira que o termo “oficina” não
venha a ser usado apenas como uma alcunha pedagógica, mas que tenha fundamentação
teórica sólida, refletindo na prática pedagógica e social não apenas de agentes, mas
também de pessoas beneficiadas pela política pública.
Optamos por falar com base na experiência concreta a que viemos dedicando os últimos
quatro anos de nosso trabalho no Programa Esporte e Lazer da Cidade (PELC), do Governo
Federal. [2]
É importante destacar que o PELC, por seus princípios (trato intergeracional, trabalho
coletivo, gestão e planejamento participativo, resgate e fortalecimento da cultura popular
nacional), necessita construir, localmente, um perfil diferenciado e diversificado, que
caminhe na direção da formação multiprofissional, para que o programa alcance,
verdadeiramente, o que denominamos por “direito ao esporte e ao lazer”. A própria
questão do atendimento à crescente demanda por esporte recreativo e lazer, conforme
prevê a missão do Programa, precisa ser discutida e fortalecida à luz desses princípios.
Portanto, com um perfil “monoprofissional” para o programa, está claro que o mesmo
não poderá atingir suas metas e, menos ainda, estruturar as bases de seus princípios.
Consequentemente, não se fortalecendo e sistematizando tais princípios, não se poderão
estruturar as condições materiais para o seu funcionamento.
É fundamental destacar, também, a importante participação de trabalhadores que
atuam em ações pontuais ou não (muitas vezes voluntariamente), bem como de lideranças
comunitárias para o desenvolvimento do Projeto Social, em especial. De qualquer modo, o
PELC, como um todo, vem se caracterizando como importante instrumento para esses
trabalhadores, seja como forma de geração de renda, seja como possibilidade de formação
pessoal e de qualificação no campo profissional.
É para além desses elementos, e como ação ímpar do PELC e de uma política pública nos
campos do esporte e do lazer, que lançamos mão de um olhar significativo para a formação
desses agentes.
Na nossa experiência, foi possível ampliar a ação de formação não apenas para aqueles
agentes que atuavam institucionalmente no programa (coordenadores, bolsistas), mas
também para essa frente de trabalhadores que atuava e atua junto à entidade conveniada –
a exemplo de professores de rede municipal que, mesmo não vinculados ao PELC, eram
convidados a participar das ações de formação – ou para trabalhadores outros, que
atuavam voluntariamente. E a importância dessa ação ampliada se reflete no quadro a
seguir, que demonstra que a quantidade de pessoas formadas, nos anos de 2004 e 2005, é
sempre superior ao número de pessoas contratadas para atuar no programa.

Esse quadro apenas reitera a importância que o PELC dá à diversificação de seus


agentes. No mesmo período, foi constatado que o perfil dos trabalhadores era da seguinte
ordem (entre jovens, adultos e idosos):
1. Professores e estudantes de diversas licenciaturas (Educação Física, Pedagogia,
Letras, História, Matemática, Artes) e áreas (Medicina, Assistência Social,
Fisioterapia);
2. Estudantes secundaristas e de cursos de magistério;
3. Educadores populares e lideranças comunitárias;
4. Trabalhadores do campo [3];
5. Praticantes de skate, hip-hop, dança de rua – não apenas adolescentes e/ou jovens;
6. Atores populares das mais diversas manifestações (teatro, dança, música, pintura,
artesanato etc.);
7. Atletas e ex-atletas, em um universo que incluía outros trabalhadores, com outras
formações.

Esse quadro de formação dos agentes sociais envolvidos direta ou indiretamente no


PELC nos dá a certeza do forte caráter “mobilizante” dos núcleos do Programa e de que o
próprio perfil dado ao núcleo do Programa de Esporte e Lazer da Cidade só poderia
funcionar por conta dessa realidade.
É o que nos leva a defender que o núcleo do PELC é o local e o momento em que as
pessoas – crianças, jovens, adultos e idosos, incluindo as pessoas com deficiência e com
necessidades educativas especiais – se encontram de forma sistemática, o que possibilita o
registro, o testemunho e a prática social de oficinas de todas as manifestações da cultura
corporal, além das artes, da música e das letras, bem como de atividades assistemáticas
(ruas de lazer, festivais, colônias de férias, passeios), a própria identificação da comunidade
e o fortalecimento dos laços de auto-organização em torno dela.
É nessa linha de entendimento e reconhecimento do PELC que conseguimos caracterizar
quantitativa e qualitativamente o programa. A variável quantitativa se expressa,
diretamente, por aquilo que o PELC financia, pelas ações para as quais uma entidade
(pública ou privada sem fins lucrativos) recebe recursos federais e os executa: a contratação
dos agentes comunitários, a aquisição de material de consumo e de material permanente, a
promoção de eventos de esporte e lazer e a formação continuada de agentes comunitários.
Mas tais variáveis quantitativas só ganham força, sentido e significado pela identificação
crítica dos elementos qualitativos, protagonizados pelas comunidades atendidas e
beneficiadas pelos núcleos: a amplitude da formação, a intervenção diversificada dos
agentes, o resgate e a preservação da cultura local, o permanente diálogo e a vivência do
tradicional com o moderno, o fortalecimento da participação popular no funcionamento dos
núcleos, a capacidade de atendimento do campo e da cidade, quer em sua expressão mais
longínqua – comunidades ribeirinhas, indígenas, assentamentos –, quer em sua expressão
mais próxima dos grandes centros urbanos. Para além disso, é a expressão na própria
organização da comunidade na luta por seus direitos, dentre eles, o direito ao esporte e ao
lazer.
É dessa forma, resgatando Freire (1996), que fortalecemos o sentido e o significado da
educação popular, que tenha como referência central não apenas os princípios do PELC já
relatados e destacados neste texto, mas a própria questão do protagonismo crítico e
consciente dos sujeitos envolvidos.
A questão colocada, já iniciando o diálogo do perfil dos agentes com a organização do
trabalho pedagógico, é: o que identificamos na Educação Popular e o que esperamos dela?
Destacamos as seguintes possibilidades:
1. necessidade, não apenas para o PELC, mas para a comunidade como um todo, da
elaboração de soluções coletivas, tanto no âmbito do andamento de uma oficina de
esporte ou de jogo popular – na construção e reconstrução de suas regras, do
espaço do jogo etc. – como para os próprios problemas centrais da comunidade;
2. O fortalecimento da identidade local, que se expressa, por exemplo, no andamento
de uma oficina de dança ou de música, mas também no próprio sentimento de
pertencimento da comunidade com sua história e sua realidade e a capacidade de
modificá-la sem enterrar e/ou esquecer suas raízes;
3. O próprio resgate das expressões populares, em todas as suas linguagens e
manifestações, e o permanente diálogo com o novo, com o moderno;
4. O fortalecimento da cidadania e da consciência crítica e coletiva, como expressão
mais forte e significativa da libertação de um povo da alienação da indústria cultural
e esportiva;
5. A (re)construção, por parte da comunidade, de sua relação com os espaços
(principalmente públicos) de esporte e lazer, suas praças, seus parques, seus
terrenos baldios, suas associações comunitárias etc., a fim de que não mais tenha
que se adequar a esses espaços, podendo, ao contrário, adequá-los às suas
necessidades culturais e esportivas, bem como às conquistas culturais da
comunidade;
6. A (re)construção da relação com a vida pública e política de sua rua, comunidade,
bairro e cidade.

É importante destacar que tais possibilidades (que não devem ser entendidas de forma
ordenada) dialogam com seus limites como, por exemplo:
1. Os valores coletivos de uma comunidade em relação aos valores individuais,
consumistas e privados;
2. Um tempo da política pública ainda distante do tempo das necessidades dessa
comunidade;
3. A relação dos agentes sociais com o senso comum, sobre os conteúdos e/ou o
referencial teórico-metodológico no trato com oficinas de esporte e lazer;
4. O perfil de “escolinhas esportivas” e de promoção de eventos esportivo-
competitivos das muitas políticas públicas no país.

Ainda assim, as experiências construídas pelos convênios do PELC nos apontam soluções
e nos dão a esperança de estarmos no caminho certo. Um pilar importante desse caminho
é, justamente, o investimento na formação continuada dos agentes sociais de esporte e
lazer, que passamos a tratar a seguir.

A formação de agentes sociais


O PELC organiza a formação em três fases – divididas didaticamente – e sua
operacionalização se dá em permanente diálogo e inter-relação:
1. O estudo da realidade, para que estimulem os agentes a conhecer e a compreender
a sua realidade e a construir formas de superação e emancipação política e cultural,
bem como a investir na construção do conhecimento com base na identificação dos
saberes existentes;
2. A organização do conhecimento, buscando os saberes historicamente construídos
para o diálogo com a realidade identificada;
3. A aplicação do conhecimento, trazendo, à luz da realidade e dos conhecimentos
identificados, a forma de intervenção desse agente junto à comunidade.

Partindo da proposta metodológica da educação popular, apresentamos a perspectiva


de se fortalecer três níveis de formação dos agentes sociais, envolvidos direta ou
indiretamente no funcionamento dos núcleos. São eles:
A formação local
Acontece de forma modular (módulo introdutório, no início do convênio; módulo de
aprofundamento ou formação em serviço, durante toda a duração do convênio; módulo de
avaliação, ao final do convênio), de acordo com o foco de atuação do núcleo, e se organiza
de maneiras diferenciadas. O primeiro módulo, mais central e orientador, é o Encontro de
Formação, que acontece com a presença de professores formadores do PELC, tem carga
horária de 32 horas e trabalha temas centrais e orientadores do trabalho pedagógico e de
organização dos núcleos. Nesse encontro, são abordadas as características do programa e
da proposta local, trabalhadas por meio de oficinas de organização de planejamento
estratégico e participativo de todas as ações do programa, quando são discutidos os
principais conceitos trabalhados (lazer, esporte recreativo, intergeracionalidade, inclusão,
diversidade cultural, cultura popular e erudita, planejamento participativo etc.).
O terceiro módulo, já construindo uma articulação entre os conceitos trabalhados no
primeiro, reconhece as convergências e as divergências e realiza um processo de avaliação,
com base na identificação dos limites, das possibilidades e dos avanços ocorridos no
decorrer do convênio.
Além desses dois encontros, o PELC trabalha, no segundo módulo, a perspectiva da
“formação em serviço”, organizada pelos núcleos e pela coordenação geral do Programa
(localmente). É realizada semanal ou quinzenalmente, conforme as condições objetivas e a
auto-organização de cada região, envolvendo todos os agentes que trabalham nos núcleos,
abordando temáticas específicas, de acordo com a necessidade dos agentes sociais no
desenvolvimento das atividades do Programa, contemplando estudos de caso,
planejamento, revisão ou ampliação das atividades dos núcleos, oficinas temáticas e
avaliação processual.

Formação regional e nacional


As Reuniões Nacionais dos Agentes e Gestores do PELC [4] são exemplos edificantes
desse nível de formação. São em ações como essas que fortalecemos e nacionalizamos as
várias questões que estruturam a construção de uma ação consequente de formação, desde
o aprofundamento de temas técnico-operacionais importantes (gestão, prestação de
contas, planejamento etc.), passando por questões estruturantes do funcionamento
ampliado dos núcleos (planejamento participativo, organização social do conhecimento,
trato com o meio ambiente), até os princípios, diretrizes e conteúdos centrais do programa.
Para além da realização dessa ação nacional, o PELC vem experimentando ações de
formação regionalizada, na perspectiva de convênios estabelecidos sob a forma de
consórcio [5]. Nesse sentido, capilarizamos e ampliamos o alcance do programa,
estruturando melhor suas variáveis quantitativas e qualitativas e aglutinando cidades
diferentes de uma mesma região, com a realização de Reuniões ou Encontros Regionais de
Formação de Agentes Sociais.

Formação a distância
Num país com dimensões continentais, como é o caso do Brasil, e com o avanço
tecnológico da atualidade, não podemos deixar de enxergar a necessidade de construirmos
uma ação de formação a distância dentro do programa de formação desses agentes.
Os três níveis de formação dos agentes sociais do Programa Esporte e Lazer da Cidade
buscam construir as condições necessárias para que o fazer pedagógico (quer nas atividades
sistemáticas, quer nas atividades assistemáticas) ganhe sentido e significado no dia a dia dos
núcleos. O fator principal dessa relação entre o pensar e o fazer pedagógico é que ela não se
constrói de maneira hierárquica, ou seja, não existe uma mão única na relação entre a
formação do agente e a sua prática pedagógica e social. Essa construção é mútua e
permanente e só poderia ser assim, levando-se em consideração os princípios do PELC. Se
não o fosse, como trabalhar, por exemplo, os desafios e as superações no campo do trato
intergeracional, na relação com o resgate e o fortalecimento da cultura local?
Para o PELC, é impossível pensar no desenvolvimento de uma oficina de dança, que
resgate as manifestações locais e regionais – o cacuriá no Maranhão, o caboclinho em
Pernambuco, o carimbó no Pará, o samba de roda no Recôncavo Baiano, o vanerão no Sul, a
polka paraguaia no Mato Grosso do Sul –, sem fazê-lo numa perspectiva de trato
intergeracional, sem se garantir o planejamento participativo no pensar e fazer pedagógico,
sem dialogar, por exemplo, com o hip-hop e a dança de rua, tão expressivas e tão próximas
à juventude.
Nesse ensejo, destacamos os conteúdos significativos que devem ser trabalhados na
formação, a fim de realmente indicar a estrutura central dos princípios tratados até o
momento. No entender do Programa Esporte e Lazer da Cidade, a estrutura da formação
(continuada e em serviço) dos agentes sociais deve garantir:
1. Conteúdos significativos nos campos do esporte, da cultura, da dança, da luta, do
jogo, do teatro, da música, das artes;
2. O estudo aprofundado das pessoas que vivenciam o núcleo de esporte e lazer: a
idade, a comunidade, a história, as dificuldades;
3. A importância do diálogo com outras áreas do conhecimento;
4. A instrumentalização dos agentes: a organização das atividades, o planejamento e os
estudos regulares;
5. A pesquisa e a sistematização da prática social;
6. A apropriação de instrumentos didático-metodológicos necessários à prática
pedagógica crítica e criativa;
7. A formação intelectual coletiva dos agentes sociais de esporte e lazer.

Na linha da coerência pedagógica da ação de formação dos agentes, destacam-se as


possibilidades metodológicas para o trato dessa estrutura de formação, construindo,
também, os instrumentos técnicos e pedagógicos necessários ao fortalecimento da
autonomia pedagógica dos agentes, ampliando, assim, suas possibilidades de intervenção:
1. Cursos, oficinas e palestras – que se apresentam no cotidiano das ações da
formação em serviço, estabelecendo permanentes diálogos com os limites e as
possibilidades do funcionamento sistemático e assistemático dos núcleos;
2. Atividades de campo – para que se ampliem as ações dos agentes com a
comunidade atendida e beneficiada pelo núcleo, com reuniões junto aos diferentes
segmentos etários de interesse (peladeiros, grupos de dança popular, grupos de
capoeira), bem como na participação das ações que a própria comunidade organiza e
participa;
3. Registros e monitoramento – na busca de se construir e registrar o fazer pedagógico
do núcleo, desde as questões de planejamento das oficinas e dos eventos até a
própria história daquela comunidade, os resgates de suas manifestações populares,
a constituição de associações representativas, a formação de times de futebol e/ou
voleibol ou de grupos de dança, teatro ou música e a transformação do contexto
local resultante das lutas e conquistas para o lazer e para além deste;
4. Intercâmbios entre núcleos, projetos sociais, entidades – ainda que num mesmo
município, núcleos diferentes constroem experiências diferentes, por conta de suas
necessidades locais, de sua geografia, de seus espaços; por isso, são importantes o
diálogo e a construção de tempos e espaços de trocas com outros projetos sociais
locais e/ou regionais;
5. A organização e a participação em eventos, encontros, seminários e congressos – a
fim de democratizar as experiências construídas nos núcleos, nacionalizando-as, não
apenas com o objetivo de divulgá-las, mas também com o de experimentá-las em
outras regiões.

Nesse último ponto, em especial, fortalecemos a percepção própria da construção do


conhecimento, desmistificando a relação entre a excelência científica e o saber popular,
tratando a produção do conhecimento como algo inerente a quem está na prática social e
pedagógica, no seu constante trabalho com a comunidade, com suas experiências corporais
e culturais, no sentido próprio de instrumentalizar os agentes para organizar, estruturar e,
até mesmo, publicar suas experiências.
O ponto central desse caminho de formação, estruturação e trato metodológico se
traduz na própria Organização do Tempo Pedagógico, que se expressa, portanto:
1. Nas ações de formação (em todas as suas formas já apontadas neste);
2. Nas atividades sistemáticas e assistemáticas, em todas as suas características locais e
particulares (desde o seu planejamento e organização, passando pela sua vivência e
avaliação processual, garantindo o caminho pedagógico da prática social à prática
social);
3. No processo de mobilização comunitária;
4. Na participação em todos os fóruns de consulta popular que venham a ser
organizados – inclusive os que a comunidade venha a organizar;
5. Na construção de momentos constantes de debates e palestras junto a e com a
comunidade. Para o PELC, essa organização do trabalho pedagógico é um tempo que
se “manifesta” em vários tempos, mas sem deixar de garantir o ponto de partida na
prática social (vivenciada entre os agentes e a comunidade), a problematização, a
instrumentalização, a catarse e o retorno à prática social, que é, novamente, ponto
de partida. [6]

Limites a serem superados e em superação


Tão importante quanto apontar os avanços do PELC, no que diz respeito à formação dos
agentes sociais é identificar os elementos limitadores e as maneiras de superá-los. Nesse
sentido, destacamos a necessidade de:
1. Fortalecer a cultura do diário de campo, do planejamento e da pesquisa entre os
agentes comunitários – ratificando o compromisso de também formar agentes
comunitários pesquisadores;
2. A formação ir além do funcionamento do PELC, como já indicamos anteriormente,
ao destacarmos as possibilidades de geração de renda, formação pessoal e
qualificação no campo profissional para os agentes do programa;
3. O trabalho pedagógico ter como premissa a questão do registro permanente das
ações, dos obstáculos e das superações;
4. Garantir-se o diálogo concreto com a realidade local: a forma de organização da
comunidade, a ação com os segmentos mais excluídos (as pessoas com deficiência,
os idosos e as comunidades afastadas).

Por fim, entendemos que o Governo Federal, pelo Programa Esporte e Lazer da Cidade,
vem construindo bases sólidas para democratizar o acesso, especialmente de forma
contínua, da população brasileira – sobretudo aquela parcela mais carente de políticas
públicas e de condições econômicas para sua sobrevivência – a práticas esportivas e de lazer
de qualidade. É com esse intuito que o PELC desafia-se constantemente, a cada novo núcleo
organizado, a cada nova comunidade atendida, a aprofundar suas experiências e a construir
bases sólidas de organização e mobilização comunitária.

Notas
1. Destaca-se que, nessa oportunidade, delegou-se ao sujeito que atua no campo do
esporte e lazer o estatuto de “agente comunitário de esporte e lazer”. No entanto,
optamos por manter a categoria “agentes sociais de esporte e lazer”, por entender que
abrange mais e melhor o perfil e o trabalho nesta área.

2. O PELC, implementado desde 2003 pela Secretaria Nacional de Desenvolvimento de


Esporte e de Lazer do Ministério do Esporte, configura-se como um programa de lazer
para todas as faixas etárias, materializado em núcleos de esporte recreativo e de lazer,
com oficinas de diversos conteúdos, a organização de eventos que busquem difundir e
fomentar o direito ao lazer e, obviamente, a formação.

3. O destaque aos trabalhadores do campo está sendo dado pelo fato de o PELC possuir
núcleos ou convênios com Entidades que possibilitaram a atuação em áreas de
assentamentos rurais e, consequentemente, o envolvimento – a formação – de
trabalhadores rurais com experiência em educação, organização, mobilização etc.

4. Realizada a cada dois anos, teve sua primeira edição em setembro de 2006.

5. A experiência de consórcios vem sendo executada em três situações: (1) convênio com
a União dos Dirigentes Municipais de Educação do MT (UNDIME/MT), que chega a 19
municípios; (2) Liga Ipatinguense de Esportes Especializados (LIESPE/MG), que chega a 35
municípios da região do Vale do Aço em Minas Gerais, com o funcionamento de 77
núcleos; e (3) algumas entidades no DF (ARUREMAS, IACC, LINFANB), da metodologia
consorciada, articulando diversas outras entidades com atuação em administrações
regionais do DF e cidades do entorno. A tendência é a ampliação dessa experiência de
consórcios para todos os estados brasileiros.

6. Em Silva e Silva (2004), encontramos um significativo estudo sobre a questão da


organização do tempo pedagógico.

Referências
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desenvolvimento humano: documento final. Brasília: Ministério do Esporte, 2004.

FERREIRA, M. P. de A. O lúdico-revolucionário no MST: a prática pedagógica do Encontro


dos Sem Terrinha 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife/PE.

FERREIRA, A. B. de H. Miniaurélio: o minidicionário da língua Portuguesa, 6. ed. rev.


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FERREIRA, M. P. de A.; MARCELLINO, N. C. (Org.). Brincar, jogar, viver: programa esporte e


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FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. 22. ed. São
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IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: forma-se para a mudança e a incerteza.


2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. v. 77 (Coleção Questões da Nossa Época)
MARCELLINO, N. C. (Org.). Formação e desenvolvimento de pessoal em lazer e esporte:
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PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Editora Expressão


Popular, 2000.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Esporte, arte e lazer: sob o olhar dos que fazem.
Belém: SEMEC/Grafhitte Editores, 2002.

SILVA, J. A. de A. da; SILVA, K. N. P. Círculos populares de esporte e lazer: fundamentos da


educação para o tempo livre. Recife: Bagaço, 2004.
CAPÍTULO 8
Espaços e Equipamentos de Lazer:
apontamentos para uma política pública
Nelson Carvalho Marcellino, Felipe Soligo Barbosa e Stephanie Helena
Mariano

Espaço e equipamentos são componentes dinâmicos para uma Política Pública de Lazer,
estando em constante transformação. Hoje, nas grandes cidades, vivendo o dilema entre o
“ser” e o “ter”, as pessoas, principalmente os jovens, estão optando por viver o “estar”,
assim, o trajeto e o tempo da noite são o principal espaço do lazer (Almeida; Tracy, 2003).
Por seu lado, os equipamentos não podem ser vistos apenas de uma perspectiva, como
centros de consumo, como muitas vezes acontece com os shoppings centers (Padilha,
2003), mas nas suas múltiplas possibilidades de significados atribuídos pela população. E é
impossível negar a importância do tema, quando se trata do lazer, pois se as duas
circunstâncias que caracterizam essa manifestação humana são as de tempo e atitude, elas
supõem a existência de um espaço real ou virtual. Embora reconheçamos o grande vulto
que vem ganhando o espaço virtual, ficaremos restritos, neste texto, à relação lazer e
espaço urbano. Mas a dimensão que o espaço toma, aqui, é ainda maior porque se trata do
acesso a ele, ligado à Política Urbana.
Os estudos do lazer, no mundo ocidental moderno, nascem e ganham impulso com o
processo de urbanização. O lazer [1], tal como o conhecemos hoje, é uma problemática
tipicamente urbana, característica das grandes cidades, mas que ultrapassa fronteiras, uma
vez que os grandes centros urbanos as levam, com as mesmas características, pela mídia,
para outras regiões do país, nem tão grandes ou tão urbanizadas.
A noção de cultura deve ser entendida em um sentido amplo, consistindo "num conjunto
de modos de fazer, ser, interagir e representar que, produzidos socialmente, envolvem
simbolização e, por sua vez, definem o modo pelo qual a vida social se desenvolve" (Macedo,
1982).
Implica-se, assim, no reconhecimento de que a atividade humana está vinculada à
construção de significados que dão sentido à existência. A análise da cultura, pois, não pode
ficar restrita ao produto da atividade humana, mas deve considerar, também, o processo
dessa produção, ou seja, "o modo como esse produto é socialmente elaborado" (Marcellino,
2005).
Os conceitos de espaço e equipamento frequentemente se confundem. Santini (1993)
acredita existirem duas formas de entendimento para essa diferença entre os conceitos. O
primeiro entendimento propõe que os conceitos sejam utilizados como sinônimos. Já o
segundo sugere uma distinção clara entre espaço e equipamento. Espaço é entendido como
o suporte para os equipamentos. E os equipamentos são compreendidos como os objetos
que organizam o espaço em função de determinada atividade. Seguindo o segundo ponto
de vista apontado por Santini, conclui-se ser possível exercer atividades de lazer sem um
equipamento, mas não sem a existência de um espaço.
Uma análise de situação da questão do espaço e dos equipamentos de lazer, põe em
destaque algumas características indesejáveis quando se pensa em democratização, um dos
valores centrais, ao lado da participação popular, na concepção de políticas de lazer, que
vêm orientando os trabalhos de políticas públicas mais progressistas (Marcellino, 2001).
Democratizar o lazer implica democratizar o espaço. Muito embora as pesquisas
realizadas na área das atividades desenvolvidas no tempo disponível enfatizem a atração
exercida pelo tipo de equipamento construído, deve-se considerar que, para a efetivação
das características do lazer é necessário, antes de tudo, que ao tempo disponível
corresponda-se um espaço disponível. E se a questão for colocada relativamente à vida
diária da maioria da população, não há como fugir do fato: o espaço para o lazer é o espaço
urbano.
Se procedermos à relação lazer/espaço urbano, verificaremos uma série de
descompassos derivados da natureza do crescimento das nossas cidades, relativamente
recente e caracterizado pela aceleração e imediatismo. O aumento da população urbana
não foi acompanhado pelo desenvolvimento de infraestrutura adequada, o que gerou
desníveis na ocupação do solo e diferenciou marcadamente, de um lado, as áreas centrais
ou os chamados polos nobres, concentradores de benefícios, e de outro a periferia, com
seus bolsões de pobreza, verdadeiros depósitos de habitações. Mesmo quando estão
localizados equipamentos, nesses espaços, tais como shoppings, a população local
geralmente não tem acesso privilegiado a eles.
Constata-se, principalmente, a centralização de equipamentos específicos [2] (teatros,
cinemas, bibliotecas etc.), ou a sua localização em espaços para públicos segmentados, o ar
de “santuário” de que ainda se revestem um bom número deles e as dificuldades para
utilização de equipamento não específico – o próprio lar, bares, escolas etc.
Essa situação é agravada, sobretudo, se considerarmos que, cada vez mais, as camadas
mais pobres da população vêm sendo expulsas para a periferia e, portanto, afastadas dos
serviços e dos equipamentos específicos: justamente as pessoas que não podem contar com
as mínimas condições para a prática do lazer em suas residências e para quem o transporte
adicional, além de economicamente inviável, é muito desgastante. Nesse processo, cada vez
menos encontramos locais para os folguedos infantis, para o futebol de várzea, ou que
sirvam como pontos de encontro de comunidades locais.
Assim, pouco restou aos espaços destinados ao lazer. O lazer também passou a ser visto
pelos grandes investidores como uma mercadoria.
"Há muito a cidade deixou de ser basicamente um espaço público, neutro, sem querer
chamar a atenção. A própria cidade é um produto a ser vendido para o
desenvolvimento de atividades lucrativas" (Sassen, 2000, p. 120).
É preciso que o poder municipal entenda a importância dos espaços urbanos de lazer
nas cidades, antes que empresas os transformem em produtos acessíveis somente a classes
sociais mais altas.
Se o lazer é colocado pela sociedade capitalista como um momento de consumo, o
espaço para o lazer também é visto como um espaço para o consumo.
"A constituição dos núcleos é primordialmente assentada em interesses econômicos.
Foram e são concebidos como locais de produção ou de consumo" (Marcellino, 2002a,
p. 25).
Dessa forma, também os equipamentos de lazer, os espaços de convívio, seguem uma
tendência à privatização, incluindo aí as áreas verdes que, como o próprio lazer, passam a
ser “mercadorias”.
Somos partidários da opinião de que uma bela cidade constitui o equipamento mais
apropriado para que o lazer possa se desenvolver. É aí, onde se localizam os grandes
contingentes da população, que a produção cultural pode ser devidamente estimulada e
veiculada, atingindo um público significativo.
O crescimento desordenado, a especulação imobiliária, enfim, uma série de fatores vem
contribuindo para que o quadro das nossas cidades não seja dos mais promissores, quer na
defesa de espaços, quer na paisagem urbana, quando se fala da contemplação estética. Em
nome da economia e da funcionalidade, muito se tem feito para ‘enfeiar’ a paisagem
urbana.
Mas não somente a urbanização é regida pelos interesses imediatistas do lucro. A visão
utilitarista do espaço é determinante também nos processos de renovação urbana, ou seja,
nas modificações do espaço já urbanizado, ditadas pelas transformações verificadas nas
relações sociais. Além da alteração da paisagem, fato mais facilmente observado e que, pela
ausência de critérios, geralmente contribui para a descaracterização do patrimônio
ambiental urbano e a consequente perda das ligações afetivas entre o morador e o hábitat,
há a diminuição dos equipamentos coletivos e o aumento do percurso casa/trabalho, enfim,
o favorecimento de pequenos grupos sociais em detrimento dos antigos moradores.
É relativamente recente a preocupação com os efeitos nocivos causados pelo processo
de urbanização crescente à estrutura de nossas cidades. A ação predatória, motivada pelos
interesses imediatistas, ocasiona problemas muito sérios, que afetam a qualidade de vida e
o lazer das populações, contribuindo com a violência e a falta de segurança, inclusive.
Atualmente, fala-se muito em entretenimento. Pelo nosso entendimento de lazer, o
entretenimento deveria ser um dos componentes do lazer, ligado, basicamente, aos valores
de divertimento. Mas o que se percebe, hoje, é uma clara alusão ao entretenimento como
“lazer mercadoria”. Não atividades populares ligadas à alma da população, mas
“popularescas”, no sentido de nivelamento “por baixo”, com o único objetivo de “desviar a
atenção de”, e esse “de”, quase sempre, pode ser entendido como a triste realidade pessoal
e social dos seres humanos. É a distração significando alheamento e não atração por um
outro mundo, um mundo diferente, de sonho e invenção, de uma sociedade mais justa, de
um ser mais humano.
Um dos fatores mais importantes para o crescimento do “lazer mercadoria” em
detrimento do lazer de criação e participação culturais é a falta de espaços vazios
urbanizados. A começar da infância, uma vez que para o desenvolvimento de uma cultura
da criança a disponibilidade de espaço é fundamental. Fernandes (1979) já destacava a
importância da "cultura infantil, constituída de elementos culturais quase exclusivos [...] e
caracterizada por sua natureza lúdica", distinguindo nela uma "educação da criança, entre
as crianças e pelas crianças. A carência de espaços, aliada a outros fatores" (Marcellino,
2005), vem contribuindo para a substituição quase maciça da produção cultural da criança
pela produção cultural para a criança que, por melhor que seja, não tem condições de
substitui-la. Isso é destacado por vários autores, incluindo Perroti (1982), que observa a
substituição que ocorre do real pelo simbólico. Mas Benjamin já alertava para os “perigos”
da produção cultural para a criança. Na sua análise do teatro infantil proletário, o autor
considera tanto a produção como a fruição da atividade cultural positivas, desde que feitas
por crianças para crianças:
"Esse teatro infantil é ao mesmo tempo para o espectador infantil o único proveitoso.
Quando adultos representam para crianças, irrompem patetices" (Benjamin, 1984).
As consequências desse processo são bastante conhecidas: a mais negativa delas,
provavelmente, é a diminuição das ocasiões de reunião das crianças, isto é, das brincadeiras
coletivas, tão importantes no aprendizado da vida em grupo e no desenvolvimento do
sentimento comunitário.
Tratando de equipamentos não específicos de lazer, as escolas contam com grandes
possibilidades de espaço nos vários campos de interesse: quadras, pátios, auditórios, salas
etc. Deve-se considerar ainda seus períodos de ociosidade, em férias e fins de semana, e a
existência, que pelo menos deveria ocorrer, de vínculos com a comunidade próxima. No
entanto, a tão propalada abertura comunitária desses equipamentos não vem se
verificando, talvez pelo temor dos riscos de depredação. Embora algumas iniciativas estejam
ocorrendo com o desenvolvimento de atividades de lazer em escolas, pode-se e deve-se
questionar suas metodologias de abordagem. Mesmo assim, em trabalhos comunitários, ao
contrário do que se possa imaginar à primeira vista, uma ação bem realizada nesse sentido
só contribui para aumentar o respeito das pessoas pelo equipamento, uma vez que, à
medida que o utilizam, vão desenvolvendo sentimentos positivos, passando a colaborar na
sua conservação. Guimarães (1985, 1990) deixa isso muito claro quando analisa a
depredação escolar por dentro do equipamento, chegando à conclusão de que a violência
está ligada à vigilância e punição escolares, e quando estuda a violência externa ao
equipamento, chegando à conclusão de que a violência, nesse caso, está ligada à exclusão
do próprio sistema escolar.
A proposta da Pedagogia da Animação (Marcellino, 2004, 2005) considera a escola como
equipamento e organização de educadores, funcionando como centro de cultura popular, e
analisa, entre seus vários componentes, a tarefa educativa no que compete ao espaço,
ultrapassando os limites dos muros dos prédios escolares, estendendo-se a outros
equipamentos da comunidade próxima e procurando dessacralizá-los.
As consequências das questões políticas e econômicas que envolvem o espaço acabaram
fazendo com que um equipamento não específico de lazer – o lar – se tornasse o principal
espaço de lazer, situação minimizada com o advento do automóvel, que ‘expulsou’ as
famílias de suas casas, e agravada agora, porque a casa vem se tornando cada vez mais, por
circunstâncias diversas, também um local de trabalho, tanto na classe dominante – uso de
micros e equipamentos eletrônicos sofisticados, que ‘empurram’ as pessoas para dentro –,
quanto na classe dominada – em razão da necessidade crescente de pequenos negócios de
economia informal, em decorrência da crise do desemprego estrutural.
Saímos de uma situação histórica, na chamada “sociedade tradicional”, em que o brincar
e o trabalhar conviviam com o ambiente familiar no espaço da casa e seu entorno. Por uma
série de razões, na sociedade contemporânea, a casa volta a ser novamente e cada vez mais,
um lugar de morar, de trabalhar e de brincar. Quais as consequências dessa situação? Como
nos preparar para enfrentá-la ou conviver com ela, enquanto profissionais do lazer? Como
equilibrar o lazer em família com o lazer da família? O lar, como espaço para brincar, morar
e trabalhar será o local de aproximação forçada ou possibilidade de afirmação das
individualidades?
Mesmo os bares vêm perdendo sua característica de ponto de encontro, embora
algumas iniciativas ocorram no sentido de transformá-los em espaço alternativo para
atividades como exposições, lançamentos de livros, música ao vivo etc. Essas iniciativas
quase sempre se restringem aos chamados “barzinhos”. Os tradicionais “botequins” são
substituídos pelas lanchonetes, os fast-food, onde o consumo é rápido e a convivência
desestimulada.
As ruas e a maioria das praças das grandes cidades são concebidas, quase sempre,
unicamente como locais de acesso e passagem.
Com o crescimento desordenado das cidades, agrava-se o isolamento de seus
habitantes, e sua condição de passividade frente às decisões que afetam diretamente sua
vida diária. É perfeitamente lógica, nesse esquema de raciocínio, a falta de espaço para o
lazer, quase sempre colocado numa falsa hierarquia de necessidades. Nas grandes cidades
atuais sobra pouca ou quase nenhuma oportunidade espacial para a convivência. O vazio
que fica entre o amontoado de coisas é insuficiente para permitir o exercício mais efetivo
das relações sociais produtivas em termos humanos. Os equipamentos urbanos para o lazer,
quando concebidos, quase sempre são assumidos pela iniciativa privada, que os vê como
uma mercadoria a mais para atrair o consumidor. As possibilidades de lucro são os critérios
levados em conta para a construção e para a manutenção em funcionamento dos
equipamentos de lazer.
Sintomas desse mau arranjo da vida urbana são encontrados no cotidiano das pessoas
em geral e, mais particularmente, nas fugas grandiosas que se repetem em todas as
ocasiões em que a população tem oportunidades para tal.
Os condomínios verticais e horizontais buscam a ilusão da saída individual para o “lar,
doce lar”, construindo suas moradas como “cantinho de sonho”, “refúgio do guerreiro”, mas
têm, em suas construções, guaritas medievais e fossos com pontes elevadiças separando as
casas. E o lazer é individualizado, com profusão de piscinas e parabólicas e bancos
individuais, nos jardins, distando, em alguns casos, pelo menos dez metros uns dos outros.
O lazer, visto como manifestação humana, com suas especificidades, mas entendido no
conjunto delas, sofre as mesmas influências que qualquer área do social. Entendê-lo como
um “oásis” ou gerador de tranquilidade, é uma visão contraditoriamente mercantilista –
lazer como mercadoria a ser consumida, funcionando como válvula de escape. Pelo
contrário: a violência e a falta de segurança são apontados como fatores que impedem a
escolha do lazer das pessoas, contribuindo para que fiquem reféns de suas próprias casas,
aumentando o já elevadíssimo número de indivíduos que têm na casa o seu principal
“equipamento” de lazer.
Raquel Rolnik (2000a), urbanista e presidente do Instituto Polis, ao abordar a
impossibilidade de uma noção única de qualidade de vida numa metrópole, chama a
atenção notadamente para o uso do espaço, referindo a noção limitada, baseada em valores
comerciais, de equipamentos incorporados com finalidades exclusivas, como oferecimento
de academias de ginásticas, proximidade a grandes empreendimentos etc. Chama a
atenção, também, em especial aos profissionais da área de arquitetura e urbanismo, para
não caírem na "noção mesquinha de qualidade de vida, superando a noção privatista de
espaço e cidade, retomando os ideais que informam a própria constituição do exercício
profissional" (Rolnik, 2000a, p. 35).
Lia Diskin (2000) (cofundadora da Associação Palas Athena) ao abordar a riqueza a ser
avaliada no mundo social, diz que ela "fica evidenciada pela pluralidade cultural que
consegue legitimar-se na convivência", chamando a atenção para o fato de que
"hoje, a qualidade de vida individual e coletiva está condicionada às oportunidades de
conhecer e escolher um repertório de valores, que nem sempre pertence à sociedade
na qual está inserido" (p. 37).
Para a autora,
"a qualidade de vida pessoal, institucional ou social depende em grande escala da
capacidade de se relacionar com o outro (o diferente), o entorno e o planeta de
maneira respeitosa e responsável, promovendo o legítimo direito de oportunidades
para usufruir dos bens naturais e culturais que todas as comunidades humanas têm
disponibilidade ao longo da nossa história" (p. 37).
Muito se fala da péssima qualidade de vida das grandes metrópoles. A mudança na
percepção da importância do lazer na vida das pessoas poderia trazer mudanças nesse
aspecto, sem dúvidas. Seria uma mudança de valores, mas ela não acontece per si. É preciso
que se tenha condições objetivas. O mundo do lazer também pode ser o mundo da
violência: o lazer como esfera de manifestação humana é pleno de possibilidades, inclusive
de violência.
A grande maioria das cidades não conta com um número suficiente de equipamentos
específicos de lazer para o atendimento à população. E o que é pior: muitos deles, mantidos
pela iniciativa privada, como teatros e cinemas, estão fechando e dando lugar a
empreendimentos mais lucrativos. Mesmo as cidades que contam com um razoável número
desses equipamentos nem sempre têm seu uso otimizado, pela falta de conhecimento do
grande público, ou seja, pela falta de divulgação insuficiente entre os próprios moradores.
Iniciativas particulares vêm sendo tomadas e devem merecer apoio. O poder público,
entretanto, não pode ficar ausente. O urbanismo moderno atribuiu às cidades quatro
funções: lazer, moradia, trabalho e circulação. Destas, três ficaram confinadas e localizadas
em espaços privados, cada vez mais circunscritos e homogêneos, cabendo à dimensão
pública a quarta função (Rolnik, 2000b). As classes sociais média e alta atribuem à cidade a
função exclusiva de circulação, já que podem desfrutar de lazer em seus espaços
privatizados. Porém, para as classes mais pobres, a cidade continua com a função de lazer,
de morar, de trabalho e de circulação. Contudo, como os investimentos em equipamentos
de lazer são feitos, na sua grande maioria, pela iniciativa privada, o espaço público passa a
possuir equipamentos de péssima qualidade, já que o poder público vem sendo negligente
com essa questão. Há uma crescente privatização dos espaços de convivência social em
favor das classes mais favorecidas. Assim, o bairro é substituído pelo condomínio fechado,
os espaços públicos de lazer pelos clubes e centros de entretenimento e as ruas pelos
shoppings centers (Bonalume, 2002).
O espaço público vem perdendo seu uso multifuncional, deixando de ser local de
encontro, de prazer, de lazer, de festa, de circo, de espetáculo e, para que as cidades
deixem de possuir somente a função de circulação, é necessário:
"implementar uma política de investimento muito clara na retomada da qualidade do
espaço da cidade, na retomada da sua multifuncionalidade e beleza, na retomada da
idéia de uma cidade que conecte usos, funções e pessoas diferentes, em segurança.
Esse modelo não só é urgente para quem defende uma posição mais democrática de
utilização do espaço público, da vida pública, mas também porque é mais
sustentável" (Rolnik, 2000b, p. 184).
Um dos canais possíveis para isso é a implantação de políticas setoriais de lazer,
devidamente conectadas com as demais áreas socioculturais. A manutenção e a animação
de equipamentos de lazer e esporte podem ser instrumentos importantes na ressignificação
do espaço urbano.
Nas grandes cidades, as pessoas buscam por áreas abertas (praças, parques etc.), pois
sentem a necessidade de estar em contato com o meio ambiente. "Eis porque alguns
grandes parques, espalhados pela cidade, tornam-se pólos centralizadores de verdadeiras
multidões" (Santini, 1993, p. 44). A existência de parques nas cidades torna-se, assim, de
extrema importância para o lazer da população. Porém, muitas vezes, falta espaço para a
construção desses parques.
"O processo desordenado de constituição das cidades brasileiras não garantiu espaço
para uma ocupação planejada do solo urbano. A conseqüência deste problema
aparece na forma de disfunções urbanas" (Santos; Miotto, 2003).
Essa falta de espaços de lazer contribui para o enclausuramento das pessoas que, por
não terem opções de lazer nos logradouros públicos, acabam gastando seu tempo
disponível em ambiente doméstico, conforme já havíamos destacado anteriormente. Mas
esse processo não é só resultado da falta de espaços para o lazer. A violência das cidades
também contribui com isso.
"Assim, a vida privada é marcada cada vez mais pelo medo e pelo enclausuramento.
Vivemos uma realidade travestida pelo virtual e pelo simulacro. Desaparece a rua
como lócus da sociabilidade. Da mesma forma como desaparecem a família e a rua,
as relações de vizinhança e de compadrio, tende a desaparecer também o mundo
vivido" (Rodrigues, 2002, p. 154).
Para lutar contra essa individualização do lazer, é necessário que, cada vez mais, o poder
público crie políticas de lazer que possam dar mais ênfase aos espaços e equipamentos. Ao
invés disso, cresce o lazer doméstico, amparado nas possibilidades individuais eletrônicas,
que contribui para que as pessoas busquem somente o lazer entretenimento, deixando de
lado o lazer convivência social (Rodrigues, 2002).
Conforme colocado, a iniciativa privada vem criando novos espaços de lazer no
ambiente urbano. Num país periférico como o Brasil, todavia, a grande maioria da
população não possui condições financeiras de desfrutar de espaços de lazer pagos. Dessa
maneira, o poder público, através de políticas de lazer, deve criar novos equipamentos e
espaços e revitalizar os antigos. Dessa forma, a população em geral poderá ter maior
disponibilidade de acesso às atividades de lazer, tendo garantido o seu direito constitucional
[3].
"O governo não pode ficar refém da política globalizante, que o coloca no ínfimo
papel de preparar a cidade para receber os novos padrões de produção do mundo
globalizado. É necessário romper com os modelos existentes de ocupação espacial
das áreas urbana e rural, enfrentando as dificuldades e resistências inerentes ao
processo, para que as pessoas possam ser inseridas em um espaço harmônico. As
políticas de ocupação do solo devem democratizar oportunidades, resgatar a
funcionalidade e a qualidade dos logradouros públicos e melhorar a circulação de
pessoas, favorecer o convívio, a integração, o encontro" (Bonalume, 2002, p. 198).
Além da luta para a obtenção de novos espaços, é preciso tratar da conservação dos já
existentes. Muitas vezes, a solução não está na construção de novos equipamentos, mas na
recuperação e revitalização de espaços, destinando-os à sua própria função original ou, com
as adaptações necessárias, a outras finalidades. Algumas iniciativas vêm sendo tomadas
nesse sentido, mas muito mais pode ser feito e, na maioria das vezes, dependendo de
recursos bem menores do que os necessários para novas construções.
No processo de construção e adaptação de equipamentos, é importante observar a
redução das barreiras arquitetônicas, pois estas impossibilitam as pessoas idosas e
portadoras de necessidades especiais de usufruírem dessas áreas (Müller, 2002). Só dessa
maneira a democratização cultural do lazer será efetivamente alcançada. Afinal,
democratizar significa tornar acessível a todos. E “todos” inclui crianças, adolescentes,
idosos e portadores de necessidades especiais.
Os clubes recreativos (privados ou públicos) são equipamentos específicos de lazer.
Porém, hoje, há pouco investimento técnico efetuado para uma conceituação adequada de
clubes. É preciso que se crie um dimensionamento adequado da infraestrutura de água,
energia elétrica, esgoto e lixo, bem como uma projeção proporcional à frequência, ao tipo
de atividade e à boa circulação de pessoas dessas instalações. Infelizmente, a arquitetura de
lazer ainda é amadora, ainda está se firmando (Camargo, 1998, p. 48). O estudo de Capi
(2006) aponta para a importância do clube como espaço privilegiado para a concretização
do associativismo e como um dos componentes do setor corporativo que pode fazer parte
de uma política pública de esporte e lazer. Se os clubes [4], com toda a estrutura existente
no país, conseguissem se estruturar em movimento [5], boa parte da política pública de
esporte e lazer estaria definida, pelo seu componente corporativo, que inclui também o
Sistema S [6].
No processo de planejamento de um equipamento específico de lazer, antes de sua
construção, é preciso conhecer quais são as aspirações e as necessidades da comunidade
em questão. Assim, é possível saber que tipo de equipamento construir e que aspirações
atender em termos de conteúdos culturais.
Se o espaço para o lazer é privilégio de poucos, todo o esforço para a sua
democratização não pode depender unicamente da construção de equipamentos
específicos. Eles são importantes e sua proliferação é uma necessidade que deve ser
atendida. Mas a ação democratizadora precisa abranger a conservação dos equipamentos já
existentes, sua divulgação, “dessacralização” e incentivo à utilização, por meio de políticas
específicas, e a preservação do patrimônio ambiental urbano (Marcellino, 2002a).
Mesmo quando superados todos os entraves para a participação da população em
atividades realizadas nos equipamentos específicos e, particularmente, naqueles dirigidos às
áreas de interesses intelectuais e artísticos, caso de bibliotecas, museus, galerias de arte,
teatros etc., frequentemente, essa participação é dificultada e inibida pelo ar de santuário
de que se revestem as construções e sua sistemática de utilização, principalmente quando
são mantidos pelo poder público.
Talvez por nossa falta de tradição, fruto de uma história ainda recente e marcada por
longo período de colonialismo e, ultimamente, do consumismo das obras da indústria
cultural que em última análise também representa uma forma de colonialismo, a
necessidade de preservação de bens culturais, até pouco tempo atrás, atingia um pequeno
número de especialistas e cultores, os quais, não raro, adotavam atitudes que, aos olhos da
maioria, assumiam características de esnobismo.
Outro fator deu uma parcela bastante significativa, nesse sentido: a crença na
impossibilidade de conciliar tradição e progresso e a própria ideia do que seria essa tradição
e esse progresso.
Até bem pouco tempo era difundida uma falsa noção de memória cultural, de sentido
muito restrito e embebida na ideologia dominante. Essa noção estava ligada ao conceito
clássico de patrimônio histórico e artístico, tal como definido no decreto de criação do
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Assim, o Decreto-lei n. 25, no artigo 1,
definia como patrimônio artístico nacional: "o conjunto de bens móveis e imóveis existentes
no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico ou artístico".
Historicamente, entre estudiosos e instituições voltadas para a preservação, nota-se
uma ampliação gradativa da abrangência do conceito, com a ideia de excepcionalidade
dando lugar à noção de representatividade dos elementos a serem preservados. Dessa
forma, evoluiu-se para o conceito de Patrimônio Ambiental Urbano, constituído por
espaços, que, inclusive, transcendem a obra isolada e que caracterizam as cidades pelo seu
valor histórico, social, cultural, formal, técnico ou afetivo.
Congressos e seminários mais recentes vêm ampliando ainda mais a abrangência do
conceito, incluindo usos e costumes. Para nós, importa destacar que, enquanto a primeira
noção era baseada em atributos como a singularidade e a monumentalidade, o conceito
mais recente reconhece, inclusive, os elementos afetivos como critérios para a preservação.
Dessa perspectiva, a participação comunitária é fundamental para o conhecimento do
valor do ambiente e da cultura e para o incentivo a um comportamento destinado à
preservação, valorização e revitalização urbanas.
O lazer pode contribuir, de forma prazerosa, no processo de valorização e preservação
do patrimônio, desde que entendido da perspectiva colocada anteriormente e não como
mero item da indústria cultural. Cumpre importante papel, também, na revitalização dos
espaços e equipamentos. Assim, é muito importante a consideração dos patrimônios
artísticos, arquitetônicos e urbanísticos, que fazem parte da memória das cidades, como
elementos de enriquecimento da paisagem urbana. Esse “patrimônio ambiental urbano”,
desde que preservado e revitalizado, pode e deve se constituir em novos equipamentos
específicos de lazer para as cidades.
Além disso, contribui de maneira significativa para uma vivência mais rica da cidade,
quebrando a monotonia dos conjuntos, estabelecendo pontos de referência e mesmo
vínculos afetivos. Outro aspecto, não menos importante, é que preservando a identidade
dos locais pode-se manter e até mesmo aumentar o potencial turístico de nossas cidades.
Se os equipamentos específicos de lazer são necessários, a adaptação e utilização de
equipamentos não específicos subtilizados é mais premente ainda. Nesse sentido, vale
lembrar:
1. A necessidade de desenvolvimento de uma política habitacional que considere, entre
outros aspectos, também o espaço para o lazer – o que não é fácil num país como o
nosso, com alto déficit habitacional, e que deve estimular alternativas criativas para
áreas coletivas;
2. A consideração da necessidade da utilização dos equipamentos não específicos para
o lazer, por meio de uma política de animação;
3. A preservação de espaços urbanizados “vazios” (Marcellino, 2002a).

Por outro lado, a observação do uso dos equipamentos de lazer tem nos levado à
constatação de inúmeros casos de adaptações ou de novos usos pela população, diferentes
daqueles para os quais foram planejados, o que exige uma postura diferenciada dos
animadores ou uma nova forma de planejamento de equipamentos, mais participativa, de
acordo com as aspirações da população e, diga-se de passagem, em consonância com o
próprio conceito de lazer.
Toda essa questão do acesso aos equipamentos e espaços de lazer deve ser vista não
somente no âmbito municipal, com a formação das chamadas Regiões Metropolitanas, em
muitas áreas do país.
"O termo ‘megalópole’ é usado principalmente para designar um fenômeno
preponderante contemporâneo. Baseia-se na superposição e interpenetração de
áreas metropolitanas anteriormente distintas, formando um setor urbanizado
contínuo. Onde havia cidades menores, forma-se uma área urbanizada maior, na qual
os centros metropolitanos são as unidades básicas" (Santini, 1993, p. 41).
Diante do novo quadro urbano que se desenha no país, com a concentração das
populações em regiões metropolitanas, e tendo em vista que o lazer se configurou,
historicamente, como uma problemática essencialmente urbana (Requixa, 1977), é
imperativo que se trabalhe em políticas públicas na perspectiva dessas regiões-consórcios. É
impossível ficar restrito aos âmbitos municipais, inclusive em razão da série de impactos que
as políticas de lazer podem trazer para regiões inteiras (Marcellino, 2001).
A pesquisa de informações básicas municipais, realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (2001), aponta que, em quase metade da região metropolitana de
Campinas (RMC), não há espaços culturais e de lazer construídos, embora o perfil
apresentado para a região esteja acima da média brasileira em oferta de serviços de lazer e
cultura. Ainda assim, as cidades periféricas da região conseguem ter algum serviço de
qualidade em lazer quando eles são da natureza, como lagos e cachoeiras. Ademais, mesmo
aqueles mais democráticos, como parques, também são muito pobres nas periferias. Dos
municípios que integram a RMC apenas um não tem clube ou associação recreativa e
somente dois não têm estádio ou ginásio poliesportivo, mas a pesquisa constata a alta
concentração dos serviços na cidade sede.
Segundo Rinaldo Bárcia Fonseca, coordenador do Núcleo de Economia Social, Urbana e
Regional (Nesur) do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), esses dados refletem o perfil tradicional das regiões metropolitanas,
caracterizadas por “centro” e “periferia”, em que a oferta de serviços de qualidade está no
centro (Costa, 2002).
Partimos do pressuposto de que o que ocorria antes com a concentração dos
equipamentos de lazer no centro das cidades e que, com o decorrer do processo de
urbanização e especulação imobiliária, fez tais equipamentos deslocarem-se para outras
áreas urbanizadas, hoje se dá com o centro das regiões metropolitanas em relação às
cidades periféricas, dificultando o acesso da população.
Mesmo para os municípios sede das regiões metropolitanas, onde há mais facilidade de
acesso aos equipamentos, é preciso verificar o grau de “sacralização”, de que muitas vezes
eles são revestidos, como fator inibidor do seu efetivo uso democrático por parte da
população.
Em pesquisa realizada em Campinas-SP (Marcellino, 2002b), pudemos constatar os
seguintes itens:
1. A moradia e seus prolongamentos são os principais espaços de lazer, mesmo
enfatizando a observação dos interesses físico-esportivos ou, dito de uma forma
mais abrangente, as práticas corporais de lazer;
2. Embora os interesses físico-esportivos sejam preponderantes, são combinados a
outros ou convivem com outros interesses no lazer;
3. A defasagem entre o querer e o fazer nem sempre é consciente e, quando isso
ocorre, as razões são variadas, porém ligadas às barreiras socioeconomicas que se
verificam interclasses, mas também intraclasses sociais, englobando aí aspectos
como faixa etária, gênero, estereótipos, tempo, espaço, violência urbana e
dificuldades de acesso à informação;
4. A ausência de uma política pública de lazer, e dentro dela uma política de animação
sociocultural, contribui para a defasagem entre o querer e o fazer para a prática, o
consumo (assistência) e a informação em níveis conformistas, dificultando a
passagem para níveis críticos e criativos;
5. Há disponibilidade de espaço para a prática dos interesses físico-esportivos, porém,
ele vem cada vez mais sendo ocupado para outras finalidades, sem que a população
seja consultada;
6. O espaço é ocupado, pela população local e vizinha, por faixas etárias diferenciadas,
no decorrer do dia. Durante a semana e fins de semana: pela manhã, idosos e donas
de casa; à tarde, por crianças; à noite, por jovens e, aos finais de semana,
preponderantemente, por crianças e jovens;
7. Nesses espaços são improvisados pela própria população equipamentos específicos,
às vezes muito próximos de equipamentos públicos, o que evidencia a necessidade
de uma política de animação sociocultural para os próprios municípios, que a
população não vem reconhecendo como seus;
8. Apesar de criar seus espaços de lazer, a população dos locais investigados gostaria
de ter mais equipamentos de lazer em sua comunidade, porém não desenvolve, ou
desenvolve muito pouco, ações conjuntas reivindicatórias junto ao poder público,
nesse sentido. As ações de construção levadas a efeito pela própria comunidade são
poucas e prendem-se, quase que exclusivamente, a equipamentos permanentes
ligados ao futebol e a equipamentos móveis ligados a brincadeiras infantis.

Nesse sentido, é fundamental entender todo o processo de planejamento, construção,


administração e animação dos equipamentos para uma política de democratização cultural.
Torna-se, assim, muito importante a relação que se estabelece entre o público usuário, os
profissionais e os equipamentos públicos de lazer, verificando o comportamento de
praticante e espectadores, uso de equipamentos específicos e não específicos, modificações
ou adaptações e expectativas de atuação profissional.
É preciso a atenção em políticas públicas com o lazer sim, mas não qualquer lazer. Não o
mero entretenimento, não o “lazer mercadoria”. Cada vez mais precisamos do lazer que
leve à convivência, por mais paradoxal que isso possa parecer, sendo fruído
individualmente. Convites à convivência significam, do nosso ponto de vista, minimizar os
riscos da exacerbação dos próprios componentes do jogo: agon, a competição, que não leve
à violência; ilinx, a vertigem, que não leve ao risco não calculado de vida; mimicry, a
imitação, que não promova o fazer de conta imobilizante da pior fantasia; alea, sorte/azar,
que não provoque alheamento (componentes analisados por Callois, 1990).
O espaço para o lazer é fundamental quando se pensa em vincular essa esfera da vida
humana (jogo) com a convivência ou a qualidade de vida.
O lazer e a segurança precisam ser tratados não como mero esforço de entretenimento
que pode camuflar uma situação de violência. Violências, melhor dizendo. Porque somos
violentados de várias formas no nosso cotidiano, não apenas num assalto, num sequestro
ou num assassinato. A busca da convivência e da felicidade não precisa de justificativas.
Quem sabe, assim, não serão necessárias mais grades nas nossas casas e nos nossos
parques e jardins.
Analisando a manipulação do uso do espaço como componente de aprofundamento das
diferenças de classe, fato agravado pelo advento da sociedade mundial que tornou o espaço
global capital comum à humanidade, mas de efetiva utilização somente aos que dispõem de
um capital particular, Milton Santos (1982) conclui que
"a própria cidade converteu-se num meio e num instrumento de trabalho, num
utensílio como a enxada na aurora dos tempos sociais [...] Quanto mais o processo
produtivo é complexo, mais as forças materiais e intelectuais necessárias ao trabalho
são desenvolvidas, e maiores são as cidades. Mas a proximidade física não elimina o
distanciamento social, nem tampouco facilita os contatos humanos não funcionais. A
proximidade física é indispensável à reprodução da estrutura social. A crescente
separação entre as classes agrava a distância social. Os homens vivem cada vez mais
amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos
outros" (p. 22).
Por isso tudo, falar numa política de lazer significa falar não só de uma política de
atividades que, na maioria das vezes, acaba por se constituir em eventos isolados e não em
política de animação como processo; significa falar em redução de jornada de trabalho –
sem redução de salários, e, portanto, numa política de reordenação do tempo, numa
política de transporte urbano. Significa, também, incluir uma política de formação e
desenvolvimento de quadros, pois depende de uma estrutura de animação formada de
animadores profissionais de competência geral, específica e voluntários. E, finalmente,
significa falar numa política de reordenação do solo urbano, incluindo aí os espaços e
equipamentos de lazer, o que inclui a moradia e seu entorno, não se restringindo a ela.
E para a sua efetivação é imprescindível a articulação do setor público governamental
com os demais setores públicos, além dos setores corporativo e privado; com a articulação,
também, entre equipamentos não específicos e específicos e, se possível, com o
funcionamento dos equipamentos específicos em rede.
Em grande parte dos processos de reorganização dos espaços e equipamentos já
existentes e construção de novos equipamentos, os profissionais da área e a população não
são chamados a contribuir. É preciso enfatizar que esses processos precisam contar com a
participação dos profissionais da área, garantindo assim as qualidades técnicas requeridas e
as especificidades da área, e também com a participação popular, viabilizando a satisfação
ou superação da satisfação dos interesses culturais manifestos, através da animação
sociocultural, e a manutenção dos vínculos com a cultura local.
Quando a questão dos espaços e equipamentos de lazer é vista sobre a mancha urbana
metropolitana, além dos limites dos municípios, fica claro que os problemas ganham outra
dimensão, como equipamentos utilizados pela população da região metropolitana e de
difícil manutenção apenas pelo município sede. Uma das alternativas que se apresentam
são os consórcios entre os municípios. Além disso, a paisagem da região metropolitana é
comum a todos os seus habitantes e percorrida cotidianamente, uma vez que seus
habitantes moram em cidades diferentes daquelas onde estudam, ou trabalham. Assim, a
paisagem metropolitana pode ser monótona ou se tornar estímulo agradável de
contemplação. Portanto, as soluções também terão que partir de um ponto de vista
metropolitano.

Notas
1. O lazer é entendido, aqui, “[...] como a cultura – compreendida no seu sentido mais
amplo – vivenciada (praticada ou fruída) no ‘tempo disponível’. É fundamental como
traço definidor o caráter ‘desinteressado’ dessa vivência. Não se busca, pelo menos
basicamente, outra recompensa além da satisfação provocada pela situação. A
‘disponibilidade de tempo’ significa possibilidade de opção pela atividade prática ou
contemplativa” (Marcellino, 2004).

2. Requixa (l980) enfatiza a necessidade de integração, dentro de uma política de lazer, de


equipamentos privados e públicos, de um lado, e de outro, de equipamentos específicos e
não específicos. Como equipamentos não específicos entende os que, na origem, não
foram construídos para a prática das atividades de lazer, mas que depois tiveram sua
destinação específica alterada, de forma parcial ou total, criando-se espaços para aquelas
atividades. O autor coloca que hoje os espaços das cidades precisam ser aproveitados de
modo a se tornarem polivalentes. Entre esses equipamentos não específicos estão o lar, a
rua, o bar, a escola etc. Já os equipamentos específicos são construídos com essa
finalidade, podendo ser classificados pelo tamanho, atendimento aos conteúdos culturais
ou outros critérios.

3. Na Constituição de 1988, o lazer consta do Título II, Capítulo II, Artigo 6, como um dos
direitos sociais; o termo aparece em outras ocasiões mas é tratado, quanto à formulação
de ações, no Título VIII, Capítulo III, Seção II, Do Desporto, no Artigo 217, nº 3 e último
parágrafo do item IV – “O Poder Público incentivará o lazer – como forma de promoção
social”.

4. Segundo a Confederação Brasileira dos Clubes, em todo o Brasil, há 13.826 clubes com
sede própria. Para a CBC, esse total de clubes têm, em média, mil sócios titulares.
Multiplicando cada título pelo número médio de quatro pessoas, deve haver cerca de 53
milhões de pessoas vinculadas aos clubes, quase um terço da população nacional (CBF,
2005).

5. Os clubes, enquanto associações, estão no penúltimo degrau do associativismo, sendo:


1. Relações interpessoais; 2. Grupos; 3. Associações (Clubes) e 4. Movimentos (Oliveira,
1981).

6. Sistema que inclui o SESI – Serviço Social da Indústria, e o SESC – Serviço Social do
Comércio.

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CAPÍTULO 9
Controle Social das Políticas de Esporte e
Lazer
Cláudia Regina Bonalume

Controle social sobre as políticas públicas é um tema que vem sendo muito debatido em
áreas como a saúde, assistência social e educação, principalmente a partir da década de
1980 e, mais especificamente, no Brasil, da constituição de 1988. No tocante às políticas
públicas de esporte e lazer, falar em controle social ainda significa falar de experiências
pontuais que estiveram ou estão em construção e, na maior parte dos casos, encontram
dificuldades no que diz respeito às possibilidades de aprofundamento e, especialmente, de
continuidade.
Longe de ter a pretensão de elucidar todas as questões que envolvem esse tema, o texto
se propõe a trazer algumas referências, problematizações e hipóteses que venham a
contribuir com o debate e, quem sabe, estimular o aprofundamento da relação entre Estado
e sociedade civil.
Observando-se o processo histórico, é possível perceber que o conceito de controle
social vem evoluindo: o Estado controla a sociedade; a sociedade apenas contempla o
Estado; a sociedade combate o Estado; a sociedade participa das decisões do Estado.
Para desencadearmos o debate acerca de como se dá tal participação, lançamos
algumas questões:
1. Como chegar a uma gestão participativa, partilhada com a sociedade civil?
2. Como romper com a visão particularista de atendimento de demandas públicas e
fiscalização de governos que gera corporativização e fragmentação da questão social
e, em especial, desresponsabilização do Estado?
3. Que aspectos ainda dificultam uma efetiva implementação da participação da
sociedade na formulação e implementação das políticas públicas de esporte e lazer?

O controle social no processo histórico mais recente


Podemos citar, no mínimo, três importantes conquistas da cidadania, referentes à
questão legal, nos três últimos séculos: no século XVIII, os direitos civis; no século XIX, os
políticos e, no século XX, os sociais.
De acordo com o processo histórico que predominou até o século XIX e que, apesar de
alguns avanços, persiste até os dias atuais, a democracia é considerada perigosa e
indesejada por atribuir o poder de governar a quem estaria em piores condições técnicas
para fazê-lo. Bobbio, discordando desse ponto de vista, aponta as principais justificativas
para tal pensamento:
"à medida que as sociedades passaram de uma economia familiar para uma
economia de mercado, de uma economia de mercado para uma economia protegida,
regulada e planificada, aumentaram os problemas políticos que requerem
competências técnicas. Os problemas técnicos exigem, por sua vez, expertos,
especialistas [...] Tecnocracia e democracia são antiéticas: se o protagonista da
sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão comum"
(apud Santos, 2002).
O sistema liberal produziu um enorme distanciamento entre governantes e governados
ao defender a tese da necessidade de uma burocracia estatal especializada, que tem como
propósito decidir sobre questões complexas para as quais o cidadão não é considerado
preparado.
A crise do capitalismo contemporâneo e a derrocada do Leste Europeu, nos anos 80,
abriram espaço para a emergência das teses neoliberais de desmonte do Estado enquanto
instância mediadora da universalização dos direitos e da cidadania. No caso do Brasil, as
consequências mais visíveis foram o acirramento das desigualdades, a redução dos direitos
sociais e trabalhistas, o aprofundamento dos níveis de pobreza e exclusão social, o aumento
da violência e o consequente agravamento da crise social.
Com a intensificação do debate a respeito das políticas públicas, especialmente de
cunho social, como o esporte e o lazer, dá-se início ao questionamento acerca do padrão
histórico que caracterizou a implementação das mesmas até então – seletivo, fragmentado,
excludente e setorizado –, bem como da necessidade de democratização dos processos
decisórios.
Assim, a década de 1980 foi extremamente contraditória, pois configurou um período de
aprofundamento das desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, foi palco de avanços
democráticos sem precedentes na história da política brasileira. A sociedade vivenciou, com
o fim do regime ditatorial instaurado em 1964, um processo de democratização política
acompanhado de uma profunda crise econômica que persiste até hoje. A década ficou
marcada pela participação como fato inédito na história. Movimentos sociais e populares
criaram e ampliaram o espaço público e a democracia assumiu um lugar central no campo
político a partir desse período.
É nesse cenário que a discussão das políticas sociais entra na pauta, introduzindo
oportunidades que, aos poucos, estimulam a participação de segmentos organizados da
sociedade civil na formulação, gestão e controle social das políticas públicas.
A concepção de gestão burocrática defende a centralização do poder e a busca de
soluções homogêneas para cada problema administrativo, porém, na atualidade, as
questões que envolvem as políticas públicas exigem cada vez mais soluções diversificadas e
criativas. A burocracia centralizada não dá conta de lidar com o conjunto das informações
necessárias para resolver questões como a criação e execução de políticas nas áreas sociais,
ambientais e/ou culturais. Dessa forma, o conhecimento acumulado pelos atores sociais
passa a ser elemento importante, inclusive na solução dos problemas de gestão.
A constituição de 1988 permitiu a incorporação de novos elementos culturais da
sociedade, abrindo espaço para a prática da democracia participativa. O processo
representou, no plano jurídico, a promessa de afirmação e extensão dos direitos sociais, ao
estabelecer mecanismos de democracia direta como plebiscitos, referendos, projetos de
iniciativa popular e conselhos de gestão setorial.
O controle social aparece inscrito na constituição com o sentido de participação da
população na elaboração, implementação, fiscalização e avaliação dos resultados
alcançados pelas políticas públicas. Para tal, precisa ser tratado como um processo contínuo
e em permanente construção.
Mais especificamente, no tocante ao esporte e ao lazer, a ruptura com a tutela do
Estado sobre o esporte brasileiro passou a se concretizar no momento em que a referida
Constituição tratou o esporte como “direito de cada um”, garantiu autonomia às entidades
e associações e colocou o lazer entre os direitos sociais (Título II, Capítulo II, artigo 6º). No
que diz respeito à formulação de ações, encontramos no Título VIII, Capítulo III, Seção III, no
Artigo 217, no 3º Parágrafo do Item IV: "O Poder Público incentivará o lazer como forma de
promoção social".
Cabe fazer uma ressalva, que não aprofundaremos aqui, ao caráter assistencialista,
utilitarista e descomprometido ainda fortemente presente no texto da constituição, no que
diz respeito às políticas de lazer.
Com relação à descentralização das políticas públicas, importantes dispositivos foram
definidos no sentido da criação de um novo pacto federativo. O município passou a ser
tratado como ente autônomo da Federação, transferindo-se para o âmbito local novas
competências e recursos públicos com o objetivo de fortalecer o controle social e a
participação da sociedade civil nas decisões políticas. Áreas como educação, saúde e
assistência social já garantiram importantes conquistas nesse sentido, uma vez que, com a
constituição veio a regulamentação da participação popular.
A história do esporte e do lazer acompanha a história da sociedade e, no caso do Brasil e
do esporte, com forte presença do Estado brasileiro em suas questões. Além dos aspectos
legais que tiverem lugar no século XX, o processo de urbanização vivido pela sociedade
brasileira no mesmo período criou necessidades e levou a população a começar a
reivindicar, junto aos governantes, políticas públicas de esporte e lazer.

A relação entre o estado e a sociedade civil


Inicialmente, cabe mencionar a que concepção nos referimos ao falar de políticas
públicas, Estado e sociedade civil.
Para Política Pública adotamos a definição de Pereira (2000): "linha de ação coletiva que
concretiza direitos sociais declarados e garantidos em lei". É através das políticas públicas
que os bens e serviços são distribuídos ou redistribuídos, de acordo com as demandas da
sociedade. Interessa a este trabalho buscar formas de construir relações de reciprocidade e
antagonismo entre as esferas envolvidas, ou seja, Estado e sociedade civil.
As concepções de Estado e sociedade civil adotadas baseiam-se em Gramsci, para quem
o Estado comporta duas esferas: a sociedade política ou Estado, no sentido estrito de
coerção, e a sociedade civil, construída pelo conjunto de organizações responsáveis pela
elaboração e/ou difusão das ideologias. São essas duas esferas que constituem, em
conjunto, o Estado no sentido amplo ou sociedade política mais sociedade civil.
Encontramos sistemas políticos autoritários e não autoritários, menos e mais
democráticos, entre governos mais ou menos representativos, mais ou menos autônomos;
porém, de um modo geral, a sociedade e a política, no Brasil, ainda são caracterizadas pela
total predominância do Estado e pelos obstáculos enormes à construção da cidadania, ao
exercício dos direitos e à participação popular.
Quando um governo opta pela descentralização democrática, elege a sociedade civil
como protagonista, ou seja, a participação da sociedade civil nos processos decisórios e de
implementação das políticas públicas é tida como a verdadeira constituição de uma esfera
pública capaz de rearticular a noção de espaço público e incorporar o controle social na
política.
É importante reforçar a afirmação de Pereira (2002), segundo a qual existem três
aspectos a respeito da relação sociedade/Estado que precisam ser considerados: o estado
não é unívoco, ou seja, varia muito, de acordo com o contexto histórico e sociocultural; o
Estado não é criador da sociedade, mas sim criatura desta e existem diferentes e
competitivas doutrinas, teorias ou concepções sobre essa relação.
As políticas públicas representam a via por meio da qual a sociedade penetra no Estado,
ou seja, através delas a integração Estado/sociedade civil torna-se realidade. Ao optar por
desenvolver as políticas públicas em cogestão, o executivo não pode abrir mão do seu papel
nessa relação, uma vez que detém e controla o conhecimento técnico, além de ser o
responsável por produzir e ter acesso a informações relevantes para a tomada de decisões.
O Estado será democrático à medida que a população tomar mais consciência de seu
dever e do seu direito ao exercício pleno da participação e, consequentemente, da
democracia.

Refletindo acerca da democracia


"A democracia é frágil como prática pela própria natureza de sua proposta: limitar e
controlar o poder dos poderosos" (Costa apud Bravo; Pereira, 2002).
A democracia tem sua origem em movimentos que questionam as práticas sociais de
exclusão, por meio de ações que geram novas formas de controle dos cidadãos sobre o
governo.
Procurar desenvolver uma cultura de participação da sociedade na atual estrutura
mundial é um trabalho difícil, pois significa atuar contra o individualismo possessivo e
mercantilista que o neoliberalismo tem implementado. A globalização também atua como
ameaça à democracia por alimentar a tensão permanente entre a prática política de
movimentos populares e associações civis e os obstáculos criados pela institucionalidade,
com sua tendência de fazer prevalecer suas práticas.
"Processos e meios pacíficos de controle ou ajustamento social pelos quais o Estado
leva os membros da sociedade a adotarem comportamentos, idéias, relações e
políticas competitivas com a lógica do sistema social do qual fazem parte" (Pereira,
2002).
O Estado democrático precisa aprender a conviver com a participação da sociedade nos
fóruns de discussão sobre decisões de interesse geral, sem abdicar de seu compromisso com
o bem-estar dessa sociedade. Para isso, cabe ao poder público buscar a integração entre
planejamento central, exercido pelo Estado, e controle democrático, exercido pela
sociedade, uma vez que a participação é concebida como gestão coletiva das políticas,
desde o planejamento, a fiscalização até a avaliação.
Ao tentarmos definir o que seria participar das decisões, encontramos diversas
afirmações que se complementam:
Se autogovernar;
Aprender a distinguir entre seus interesses pessoais e o interesse público;
Cumprir as decisões das quais participou;
Cooperar;
Educar-se pela liberdade;
Educar-se para a vida pública.

Dessa forma, tudo indica que o procedimento democrático deve ser um exercício
coletivo de poder político, baseado em um processo livre de apresentação de razões entre
iguais.
Nas democracias, o Estado precisa estar voltado para o agenciamento da vontade geral,
para o interesse público e não para determinados grupos que estão no poder ou mesmo
que são parceiros para que esse poder se mantenha.
A importância da participação é reconhecida pela maioria dos autores e mesmo
governantes, o que é questionada é sua viabilidade técnica e as formas de
operacionalização, dada a magnitude, complexidade e burocratização dos sistemas políticos
contemporâneos. Surge, então, a necessidade de criar e institucionalizar procedimentos
democráticos viáveis.
Quando falamos em democratização, estamos tratando de um processo e não de um
estado, processo este que deve articular os mandatos executivos e representativos com
formas efetivas de deliberação em nível local. População e governo devem estar juntos
desde a elaboração das regras da participação que devem ser integradas e avaliadas
permanentemente para evitar que sejam transformadas em processos de controle social
organizados de cima para baixo, fazendo prevalecer os interesses de uma minoria.
A democracia participativa exige transparência entre a ação política e o resultado. Essa
transparência depende da gestão eficaz das ações, da sua relação com os resultados e da
capacidade de retorno das estruturas de delegação e representação. Por sua vez, a
intensidade da participação depende do desenho institucional e das regras de
funcionamento das instâncias participativas.
A gestão eficaz das ações de participação depende de fatores como frequência,
organização, duração dos encontros, acessibilidade, relação entre o investimento nas ações
de participação e os resultados, entre outros.
A participação requer oportunidades igualitárias de acesso à informação e de
capacitação, de forma que as discussões sejam feitas entre pessoas com entendimento claro
das questões, com vista à construção de alternativas e decisões que contribuam para o
avanço coletivo.
Se a informação é imprescindível no processo de democratização, cabe ao poder público
investir no acesso à mesma, na sua difusão e inteligibilidade, ou seja, garantir que a
informação disponível seja informação acessível e não tão técnica que não possa ser
compreendida pela população.
A ampliação da democracia, para além da atuação das instituições, requer também
iniciativas dos atores sociais com o objetivo de transformar demandas e reivindicações
particulares em questões coletivas capazes de se tornarem políticas públicas, fazendo o
Estado atuar na sociedade.
"O poder é produto da capacidade humana de agir no espaço público e, através de
suas ações, representar não apenas desejos individuais, mas aspirações coletivas
expressadas pelos movimentos sociais e demais entidades da sociedade" (Bezerra,
2005).
Para avançar na construção de uma sociedade na qual todos se reconheçam e se
respeitem como iguais, porque cidadãos, é imprescindível a junção da democracia
representativa a mecanismos que permitam a participação direta, como o OP (Orçamento
Participativo), as conferências, plenárias temáticas, audiências públicas, congressos etc.
É mais difícil praticar a democracia direta, uma vez que não é possível colocar os
usuários permanentemente envolvidos na discussão da política pública em questão, porém,
em determinadas circunstâncias, a participação direta é possível e muito importante.
"quando menor for uma unidade democrática maior será o potencial para a
participação cidadã e menor será a necessidade para os cidadãos de delegar as
decisões de governo para os seus representantes. Quanto maior for a unidade, maior
será a capacidade para lidar com problemas relevantes para os cidadãos e maior será
a necessidade dos cidadãos de delegar decisões para os seus representantes" (Dahl,
1998, p. 110 apud Santos, 2002).
Falar em representação significa considerar, no mínimo, três escalas: a da autorização,
via representação; a da identidade e a da prestação de contas.
A tensão entre democracia participativa e representativa parece fazer parte constitutiva
das democracias modernas, já que a expansão de qualquer uma delas implica a redução da
outra.
É possível combinar essas duas formas de democracia em articulação profunda se
houver coexistência e complementaridade, ou seja, convivência de diversas práticas,
organização administrativa e variação de formas de gestão, com o reconhecimento, pelos
gestores, de que a participação, o controle social sobre o que é público e as deliberações
coletivas podem substituir boa parte do processo de representação e deliberação.
Só tal articulação poderá viabilizar um processo de democracia participativa, coibir
práticas clientelistas/patrimonialistas e construir políticas públicas que contribuam na
reversão da desigualdade e na afirmação de direitos.
É importante transformar as práticas locais de democracia, por mais simples que sejam,
em elos de redes e movimentos mais amplos e, consequentemente, com mais capacidade
de transformação, pois estes permitem a aprendizagem recíproca e contínua, considerando
não existirem soluções válidas para qualquer contexto. Não se deve confundir o valor
intrínseco da democracia com uma mera utilidade instrumental ou estaremos criando uma
caricatura de democracia.
Existem barreiras à participação que impedem a acessibilidade, principalmente dos
setores populares mais carentes e menos organizados, que têm dificuldades em participar.
Para superá-las é preciso investir no cidadão, construir formas de ação que facilitem a
participação dos que mais precisam dela, combater os fatores que são indicados como
nocivos à democracia: a burocratização, o clientelismo, a instrumentalização partidária, a
manipulação das pessoas e/ou instituições participantes.
Para evitar os riscos oferecidos por esses fatores, a formação e reflexão permanentes
são indispensáveis. É preciso assegurar e fomentar o pluralismo e a tolerância nas diversas
ações participativas, sem os quais a democracia participativa definha.
Podemos dizer que a distinção entre a democracia como ideal e a democracia como
prática é a diferença entre o que se realiza e o que se deseja. É preciso buscar o que é
possível, indo além do que existe na realidade atual.
Segundo Paulo Freire, uma proposta de trabalho democrático exige conhecimentos
organizados, mas não cabe em pacotes predeterminados e está em constante processo de
descoberta, ou seja, é necessário refletir sobre a própria situacionalidade, na medida em
que, desafiados por ela, agimos sobre ela de forma crítica. Os homens são porque estão em
situação. Pensá-la é pensar a própria condição de existir.
Institucionalizar a democracia é um processo de construção e depende do que Paulo
Freire denomina “paciência histórica”.

Controle e emancipação social


O controle social favorece a transparência dos serviços e resultados, considerando as
opiniões e reivindicações dos destinatários da política.
"A desordem automática dos mercados financeiros é a metáfora de uma forma de
regulação social que não precisa da idéia de emancipação social para se sustentar e
legitimar" (Santos, 2002).
Cada vez mais estão surgindo, em nível mundial, iniciativas, movimentos, organizações
que lutam contra a regulação que não regula e contra a emancipação que não emancipa.
O controle social passa a ir além da luta pela garantia de um direito adquirido, pela
potencialidade e criatividade dos usuários, reais conhecedores das necessidades e parceiros
na elaboração da política. Reivindicar direitos implica questionar a gramática social e estatal
de exclusão e propor uma mais inclusiva.
Nesses processos deliberativos, os cidadãos devem se posicionar em perspectivas que
lhes permitam redimensionar seus interesses individuais ou de grupo, em relação ao
interesse coletivo.
O controle social busca, como um dos objetivos, garantir suporte a tomadas de decisões
políticas quanto a propósitos, ações e alocação de recursos orçamentários, permitindo
refletir sobre a ação, fornecendo resultados quantitativos e qualitativos para a avaliação das
ações de esporte e lazer.
"A deliberação pública, centrada no bem comum, requer alguma forma explícita de
igualdade e moldes, uma identidade e interesse dos cidadãos de forma a contribuir
para a formação de uma concepção pública de bem comum" (Costa apud Bravo,
Pereira, 2002).
Instituições como associações, ligas e clubes podem e devem ser parceiras na luta pelo
controle social das políticas públicas de esporte e lazer, com a intenção de criar mecanismos
que contribuam com o objetivo de representar os interesses populares e de ampliar os
processos de participação nas decisões referentes às políticas públicas.
Com o fito de substituir o projeto neoliberal, que defende o Estado mínimo – ausente
nas políticas de esporte e lazer, assim como nas demais políticas sociais, desmobilizador da
participação popular – pelo Estado participativo, valemo-nos de importantes estratégias
como:
Democratizar as informações referentes às políticas públicas;
Realizar encontros com a população, em forma de reuniões, orçamento
participativo, encontros, pré-conferências, conferências, plenárias temáticas,
audiências públicas, congressos;
Criar conselhos paritários e/ou fóruns populares de políticas públicas;
Mobilizar entidades de profissionais e populares para a participação nos conselhos;
Elaborar planos com a participação dos sujeitos sociais;
Garantir a articulação entre conselheiros e população;
Capacitar conselheiros, na perspectiva crítica e propositiva;
Descentralizar políticas e decisões.

Apontamos alguns exemplos de espaços públicos que possibilitam a participação de


sujeitos sociais:

Conselhos de políticas sociais e de direitos


Os conselhos de políticas sociais e de direitos surgem como inovações na gestão das
políticas sociais que procuram estabelecer novas bases de relação Estado-sociedade,
opondo-se à histórica tendência clientelista, patrimonialista e autoritária do Estado
brasileiro.
Diferentes formas de organização de conselho estão em curso atualmente no Brasil,
revelando pressões em busca de novos canais de participação da sociedade civil na coisa
pública.
Como espaço político por natureza, que congrega representações diversas e, por vezes,
antagônicas, o conselho se constitui em espaço de disputa, discussão, negociação e conflito,
combina participação direta com participação através de representantes. Visto dessa forma,
o conselho permite a ampliação dos mecanismos de soberania popular e a diminuição da
delegação de poder.
Conselho: espaço tenso em que diferentes interesses estão em disputa. É pautado pela
concepção de participação social com base na universalização dos direitos e na ampliação
do conceito de cidadania; é uma forma de controle exercida pela sociedade mediante
presença e a ação organizada de diversos segmentos.
Por serem espaços de participação e controle democrático, os conselhos não devem ser
confundidos com instâncias governamentais, nem assumir a função de executores das
políticas públicas, em substituição à competência governamental. Vinculados à máquina
estatal devem operar por meio da participação, com poder de planejamento e decisão.
Acreditamos que o conselho deve representar um espaço de partilha de poder e
explicitação de conflitos, na tentativa de construção do interesse público e facilitação do
processo educativo de aprendizagem da democracia. Pode ser uma das maneiras de
estabelecer políticas públicas que atendam a um maior número de pessoas, formando
cidadãos no lugar de simples clientes ou beneficiários das políticas públicas de esporte e
lazer.
"Os conselhos são espaços de interação que se caracterizam por um tipo de
distribuição de poder justificada pela realização de uma tarefa comum, de interesse
comum, para o aprimoramento de uma responsabilidade comum" (Costa apud Bravo,
Pereira, 2002).
Como instância paritária, os conselhos devem ter, em igual número, representantes do
governo, por este indicados, e da sociedade, eleitos por seus segmentos, a fim de, por
princípio, tornarem-se espaço de democracia participativa.
Os conselheiros devem ser estimulados a criarem formas de dar retorno ao conjunto das
pessoas que representam, no tocante aos posicionamentos e decisões adotados no e pelo
conselho. É imprescindível criar canais de comunicação que evitem que o único momento
em que a plenária das entidades se reúna seja na eleição do conselheiro.
É preciso também ficar atento, com o propósito de garantir que o conselho não fique
prisioneiro de uma visão fragmentada e/ou restrita ao seu tema específico, sem a
compreensão do conjunto das políticas públicas, por meio da criação de canais de
integração das mesmas, como fóruns/conselhos/plenárias/Op/congressos da cidade. Esses
processos permitem a construção de uma consciência mais cidadã dos membros de cada
conselho, além de preservar o papel de instância autônoma, propositiva, fiscalizadora,
controladora e reivindicatória.
Os conselhos, seguidamente, esbarram em erros como: fugirem do papel de discutir,
elaborar e fiscalizar a política, perdendo-se em discussões de problemas pontuais como falta
de quórun, centralização das informações pelo poder público, falta de apoio estrutural para
funcionamento, pois que é necessário investimento para que os conselhos de fato atuem
como parceiros no controle, elaboração e fiscalização das políticas.
Infelizmente, o mais preocupante é encontrarmos casos em que o conselho é espaço de
consenso, pactuação entre sociedade e Estado, regulamentação de conflitos, pautados pela
concepção liberal de democracia, funcionando como mecanismo de viabilização das ações
do Estado, facilmente manipulado de acordo com os interesses das minorias dominantes.

Conferências
São eventos realizados periodicamente, cujo fim é discutir as políticas públicas em cada
esfera e propor diretrizes de ação; suas deliberações devem nortear a implantação dessas
políticas e podem influenciar, inclusive, as discussões dos conselhos.
Conferências são momentos privilegiados de avaliação da política e construção da
agenda participativa a ser implementada pelos governos. Contribuem para a definição das
diretrizes e princípios, definidos em forma de resoluções, a serem implementados pelo
executivo e pela própria sociedade civil.
Uma conferência garante a participação somente se há realização de encontros
preparatórios e/ou pré-conferências que permitam a participação direta da população.
Desses encontros são tiradas as propostas e neles são eleitos os representantes que
seguirão defendendo os interesses e necessidades dos envolvidos.

Orçamento participativo
O processo do orçamento participativo tem por princípio básico a discussão e a decisão
coletiva dos investimentos públicos. É uma das principais formas de democracia direta. Para
tal, é preciso que quem está no governo tome a iniciativa de abrir mão de prerrogativas de
poder, que até então lhe eram exclusivas, em favor das formas de participação. É a
sociedade política decidindo por ampliar a participação pela transferência e devolução de
deliberação de prerrogativas decisórias até então sob sua única responsabilidade.
A experiência do OP configura um modelo de cogestão, ou seja, um modelo de partilha
do poder político mediante uma rede de instituições democráticas orientadas para obter
decisões por deliberação, por consenso e por compromisso.
Santos (2002) aponta três principais características do orçamento participativo:
1. Participação aberta a todos os cidadãos sem nenhum status especial atribuído a
qualquer organização, inclusive as comunitárias;
2. Combinação de democracia direta e representativa, cuja dinâmica institucional
atribui aos próprios participantes a definição das regras internas;
3. Alocação dos recursos para investimentos baseada na combinação de critérios gerais
e técnicos, ou seja, compatibilização das decisões e regras estabelecidas pelos
participantes com as exigências técnicas e legais da ação governamental,
respeitando também os limites financeiros.

Plenárias temáticas
Como o próprio nome sugere, são plenárias em que governo e população discutem e
deliberam a respeito de temas ou determinadas políticas públicas mais específicas,
impulsionando o processo democrático ao aprofundarem a discussão acerca das carências e
necessidades destas para a sociedade em geral.
As experiências de plenárias temáticas já desenvolvidas usualmente decidem os
investimentos de caráter mais geral, ou seja, que beneficiam a maior parte da população
usuária direta ou indireta de determinada política.
São espaços abertos à população em geral, nos quais as entidades representativas do
setor exercem um papel importante por contribuírem com os conhecimentos específicos
das demandas da área.

Congressos da cidade ou congressos constituintes


Consistem em um esforço de pensar a cidade como um todo, com a participação direta
dos cidadãos e/ou através de seus representantes. Têm como principal objetivo articular os
mais diversos setores sociais para planejar o futuro, dialogando com a sociedade,
aprofundando a democracia e ampliando os espaços de debate no âmbito da cidade, estado
ou país.
Os Congressos, geralmente, vêm sendo realizados como culminância e integração geral
de todos os canais de participação e discussão, definindo o modelo de cidade, estado ou
país que se quer construir.

O controle social nas políticas públicas de esporte e lazer


Embora o esporte e o lazer ainda não tenham garantido avanços na legislação federal,
com extensão a estados e municípios, que resultem na criação de conselhos e no repasse de
recursos a essas políticas, como ocorre nas áreas de saúde, educação e assistência social,
em alguns locais do país esta organização já se dá, resultado da mobilização e participação
popular.
Quando nos aproximamos mais da expressão “participação popular” das políticas
públicas de esporte e lazer podemos afirmar que ela visa:
Priorizar a participação ativa da população;
Valorizar as manifestações esportivas de nossa cultura, buscando ampliá-las
qualitativamente;
Efetivar a apropriação de sua prática, de sua assistência e de seu conhecimento;
Garantir o esforço de mobilização, organização e capacitação da população em busca
da cogestão entre grupos comunitários e o poder público, na prática de lazer e,
consequentemente, da autonomia.

Ou seja, construir o que Marcellino (1994) chamou de autonomia compartilhada:


"As pessoas atuam como sujeitos nas suas comunidades, redefinindo sua existência e
participando na construção de políticas públicas capazes de garantir a cidadania."
Uma política de esporte e lazer é feita por diversos atores que, no dia a dia,
desenvolvem inúmeras ações voltadas ao público diretamente ligado a elas. Cada uma
dessas iniciativas tem seu mérito e precisa ser valorizada, respeitando-se o papel, a
ideologia e o espaço.
No intuito de garantirmos a participação e a construção coletiva, temos a ação
comunitária como alternativa indispensável para dar ao esporte e ao lazer um tratamento
especial, que priorize a participação ativa da população e, sobretudo, valorize as
manifestações esportivas de nossa cultura, buscando ampliá-las qualitativamente e garantir
a apropriação de sua prática, de sua assistência e de seu conhecimento.
A inserção de sujeitos coletivos no processo de construção/realização transforma o lazer
em veículo e objeto da cidadania, conquista e vivência do espaço público compartilhado,
quando permite esses mesmos sujeitos desvelar condições possíveis para superar a visão de
lazer como produto de consumo, meio de conformismo e instrumento de alienação.
A ação comunitária é uma alternativa operacional nas políticas de lazer, entendida como
esforço de mobilização, organização e capacitação da população em busca da cogestão
entre grupos comunitários e o poder público, na prática de lazer e, consequentemente, da
autonomia. Para que essa ação gere as transformações desejadas, é preciso valorizar a
participação consciente, crítica e criativa do sujeito no lazer. Esse processo geralmente
passa por três etapas: a primeira é a de despertar a consciência para a necessidade de
mudança; a segunda, transformar a necessidade em disposição e ação propriamente dita e,
como terceiro passo, provocar mudanças cognitivas, de ação, de comportamento e, enfim,
de valores.
"A educação popular mudou a ética de se fazer ciência, ou seja, primeiro a
experiência e depois a conceitualização. Todo processo de conhecimento se dá dentro
dessa ótica. O povo passa o conhecimento pelas mãos, pela vida, enquanto nós
passamos pela área intelectiva e racional" (Pereira, 1996).
Podemos apontar como pontos chave do trabalho comunitário: confiança mútua,
clareza nos objetivos e disponibilidade de trabalhar com a comunidade e não para ela.
Assim, uma alternativa de ação comunitária leva em conta a necessidade do conhecimento
da realidade, dos interesses e aspirações de determinada população; a participação efetiva
desta população no planejamento, organização, realização e avaliação das ações e a
integração com órgãos e instituições.
Algumas propostas, que se dizem comunitárias mas se furtam aos princípios essenciais
desse processo, reduzem a participação à mão de obra barata, explorada, que legitima a
retirada do Estado por uma falsa autonomia da sociedade. É preciso perceber que a
verdadeira mobilização acontece quando a comunidade envolvida decide e atua com um
objetivo comum – a solução dos problemas ou dos desafios que se apresentam, envolvendo
mudança de valores e atitudes.
O profissional, nesse trabalho, é educador social, dialógico, problematizador. Seu
conteúdo é a devolução organizada, sistematizada e acrescentada à sociedade daqueles
elementos que este lhe entregou de forma desorganizada. Seus parceiros são as pessoas da
comunidade dispostas a trabalhar como multiplicadoras, permitindo a ampliação da ação.
Desenvolver um programa voltado para a maioria da população, ampliando os espaços
de participação da cidadania, criando canais de comunicação entre população e poder
público, estabelecendo novas relações e tratando o esporte e o lazer com novas
perspectivas e possibilidades é uma tarefa que exige muito mais que boa vontade dos
executivos locais. É necessário assumir o desafio de romper com as estruturas fragmentadas
e construir propostas que norteiem a ação do poder público a um planejamento integrado
com os demais setores da sociedade e com a proposta geral de cada administração.
Mais do que oferecer programas e atividades, uma política pública precisa criar
condições para que o lazer passe a ser um valor indispensável na vida das pessoas, mudando
a qualidade dessa vida, e fazendo com que a população passe a buscar este direito junto ao
poder público.
Uma política municipal de esporte e lazer é feita por diversos atores que não devem ser
vistos como concorrentes e sim como complementares e que, no dia a dia, desenvolvem
inúmeras ações voltadas ao público diretamente ligado a elas. Cada uma dessas iniciativas
tem seu mérito e precisa ser valorizada, respeitando-se o papel, a ideologia e o próprio
espaço.
Por fim, vale citar Dowbor (1996), sintetizando sua ideia sobre o princípio da
descentralização:
"na dúvida, ou salvo necessidades claramente definidas de que as decisões pertençam
a escalões superiores na pirâmide da administração, estas devem ser tomadas no
nível mais próximo possível da população interessada. Referimo-nos aqui à
capacidade real de decisão, com descentralização dos encargos, atribuição de
recursos e flexibilidade de aplicação. [...] Não se trata de dotar as administrações
centrais de 'dedos mais longos', com a criação de representações locais, mas sim
deixar as administrações locais gerirem efetivamente as atividades".

Considerações finais
A democratização do Estado exige abertura de canais de participação acompanhados
pela crescente organização da sociedade civil e de sua apropriação dos diversos espaços de
discussão. Para que isso ocorra é imprescindível a consolidação de modelos de gestão que
combinem democracia direta com democracia representativa, eficiência administrativa e
qualificação dos serviços públicos.
Pelo que foi apontado e observando-se o dia a dia da construção, implementação,
fiscalização e avaliação das políticas públicas de esporte e lazer, é possível afirmar que,
apesar dos avanços contidos na Constituição Federal, se não houver intensa mobilização da
sociedade civil, desde a escolha de seus representantes até a busca da construção de canais
diretos de participação, o controle social sobre as políticas públicas permanecerá muito
restrito.
Para alterar a tendência histórica de subordinação da sociedade civil ante ao Estado, é
preciso que se permita e se estimule a atuação da população como interlocutora, dotada de
representatividade e legitimidade, no processo de encaminhamento e tomada de decisões.
Trata-se da construção de uma nova cultura política que consolide a participação da
sociedade civil na gestão das políticas públicas em geral.
As experiências de controle social precisam permitir a aprendizagem fundamental de
uma dada consciência democrática de valorização da participação ativa, que ajude e/ou
estimule os governos a voltar-se aos interesses dos setores populares, socialmente
construídos. Trata-se da reconstrução do Estado enquanto pacto de poder, avançando da
tradição autoritária na direção de uma concepção democrática de esfera pública.
É a devolução da palavra e da ação a quem a história sonegou o direito de constituir-se
como sujeito na sociedade brasileira (Raichelis, 2000).

Referências
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representação da participação popular. Fundação Perseu Abramo, SP, 2005

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popular. Fundação Perseu Abramo, SP, 2005

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CAPÍTULO 10
O Papel do Estado nas Políticas Sociais:
elementos para discussão sobre a gestão das
Políticas Públicas de Lazer no Brasil
Rejane Penna Rodrigues

"No que precede o conhecimento, é lá que eu vivo.


Espero viver sempre às vésperas. E não no dia" (Clarice Lispector).
A gestão da política pública brasileira, ao longo dos anos do governo Lula, sofreu
modificações em sua pauta de debates e redefiniu, na prática, questões pactuadas pelos
setores sociais ao longo de décadas. Tais alterações têm ocorrido com maior intensidade
motivadas pelo compromisso da atual gestão do país com os movimentos populares e
setores historicamente excluídos dos direitos sociais, garantidos pela Carta Magna, dentre
eles, o lazer. Assim, o lazer, no Brasil contemporâneo, está incluído na pauta das políticas
sociais. Portanto, é reconhecido como direito de todos os cidadãos, cabendo ao poder
público a responsabilidade de se garantir o seu cumprimento.
Esse é um desafio fundamental e, ao mesmo tempo, muito complexo, dada a
abrangência desse compromisso e também a contraditória história do lazer no âmbito das
políticas sociais brasileiras, que influencia e é influenciada por toda a conjuntura mundial,
enfrentando, atualmente, inúmeros dilemas.
Por isso, no presente texto, proponho refletir sobre a trajetória histórica das políticas
sociais brasileiras, repensando alguns dados que traduzem elementos fundamentais
relativos ao papel do Estado, retratando os limites enfrentados e as alternativas construídas
pelo governo para garantir os direitos sociais. Com este exercício, esperamos poder levantar
subsídios que fundamentem ações transformadoras para as práticas políticas de lazer no
país.
"Algumas pessoas vêem as coisas e perguntam: por quê? Eu sonho com as coisas que
nunca foram e digo: por que não?" (George Bernard Shaw).

Influências mundiais na política pública brasileira


Desde a década de 1990, em âmbito mundial, a administração pública encontra-se num
contexto que os historiadores chamam de “revolucionário”. Novos conceitos aparecem para
contrapor os hegemônicos. Acredita-se que, assim, surge um novo paradigma
administrativo global. Na verdade, o que se procura, por meio das novas propostas e
transformações da administração pública, é a redefinição do papel do Estado.
Desde antes disso, sobretudo a partir da crise do petróleo, em 1973, que interferiu
profundamente na economia mundial, pondo fim à era de prosperidade iniciada após a II
Guerra Mundial, já vivíamos um amplo consenso social a respeito do papel do Estado.
Segundo Abrucio, em Pereira e Spink (2004),
"o tipo de Estado que começava a se esfacelar em meio à crise dos anos 70 tinha três
dimensões – econômica, social e administrativa – todas interligadas. A primeira
dimensão era a keynesiana, caracterizada pela ativa intervenção estatal na
economia, procurando garantir o pleno emprego e atuar em setores considerados
estratégicos para o desenvolvimento nacional – telecomunicações e petróleo, por
exemplo. O Welfare State correspondia à dimensão social desse modelo. Adotado em
maior ou menor grau nos países desenvolvidos, o Estado do Bem-Estar tinha como
objetivo primordial a produção de políticas públicas na área social (educação, saúde,
previdência social, habitação, [lazer] etc.), para garantir o atendimento das
necessidades básicas da população. Por fim, havia a dimensão relativa ao
funcionamento interno do Estado, o chamado modelo burocrático weberiano, ao qual
cabia o papel de manter a impessoalidade, a neutralidade e a racionalidade no
aparato governamental" (p. 175).
Considerando-se os fatores socioeconômicos que contribuíram para o esfacelamento do
Estado após a II Guerra Mundial – crise econômica mundial, crise fiscal, situação de
“ingovernabilidade” – os governos estavam inaptos para resolver seus problemas (Holmes;
Shand, 1995). A globalização e as inovações tecnológicas influíram não só no setor
produtivo, mas também no Estado. Nesse novo contexto, como os governos passaram a não
controlar mais os fluxos financeiros e comerciais, houve uma perda significativa do poder
dos Estados nacionais, com relação às políticas macroeconômicas, já que estas passaram a
sofrer maior influência das multinacionais. Isso afetou, diretamente, a organização das
burocracias públicas.
Em meio a isso, surgiram teorias críticas às burocracias estatais, que não ficaram só no
campo intelectual, mas também se difundiram para o senso comum. Cresceu um
sentimento contrário à burocracia, que a via dirigida mais por um grupo de interesse do que
por um corpo técnico neutro, a serviço dos cidadãos. Esse sentimento contrário à burocracia
estatal e a favor da iniciativa privada ganhou espaço. Com isso, na década de 1980, a
burocracia weberiana – guiada por procedimentos rígidos, forte hierarquia e total separação
entre o público e o privado – sofreu o seu maior ataque, e o modelo gerencial, importado da
iniciativa privada, foi o motivador das grandes mudanças nos mecanismos da administração
pública. (Adriao; Peroni, 2005).
As primeiras iniciativas para se implantar as reformas no antigo modelo administrativo
foram tomadas pelos republicanos norte-americanos e pelos conservadores ingleses. Essas
iniciativas tiveram resultados diferenciados: o sistema federalista norte-americano não
permitiu a implantação de um modelo gerencial puro, levando à adoção de um modelo
híbrido, que respondia tanto à eficiência quanto à democracia. Já na Grã-Bretanha, com seu
caráter majoritário de sistema político, e alto grau de centralização, elevou o poder do
Gabinete da Primeira Ministra Margarete Thatcher, criando condições ideais para a
consolidação do gerencialismo. Esse gerencialismo puro teve, como principais objetivos,
reduzir os custos do setor público e aumentar sua produtividade, levando à privatização de
empresas, desregulamentação e delegação de atividades governamentais à iniciativa
privada ou à comunidade. E o primeiro passo do modelo gerencial puro foi procurar cortar
custos e pessoal (Osborne; Gaebler, 1994).
Como o ponto principal do gerencialismo puro é a busca da eficiência, e como se
considerava a burocracia tradicional uma estrutura rígida e centralizada, voltada ao
cumprimento dos regulamentos e procedimentos administrativos, foram implementadas
mudanças nos instrumentos gerenciais. A introdução de novas técnicas orçamentárias –
possibilitando uma maior “consciência dos custos” –, os instrumentos de avaliação do
desempenho organizacional – mecanismos objetivos de mensuração da performance
governamental – e a seleção de mecanismos para definição clara da responsabilidade das
agências governamentais e dos funcionários caracterizaram esse período. A ótica da
qualidade começou a ser incorporada pelo modelo gerencial quando trouxe o conceito de
efetividade, apontando a necessidade de o governo prestar bons serviços. A administração
por objetivos e a descentralização administrativa, visando dar maior autonomia às agências
e aos departamentos, também caracterizou a inovação do modelo organizacional (Osborne;
Gaebler, 1994). Contudo, apesar de o gerencialismo puro ter como base a separação entre a
política e a administração, isso não foi possível, porque a especificidade do setor público
dificulta a avaliação do seu desempenho e a mensuração de sua eficiência.
Outras mudanças ocorreram a partir da metade da década de 1980, sendo a mais
importante delas a tentativa de atender aos desejos dos clientes/consumidores por meio de
serviços públicos voltados para esse fim. No setor privado, houve o entendimento de que
não bastava medir o desempenho dos empregados e da organização; era preciso, também,
elevar a qualidade dos seus produtos para permanecer no mercado, cada vez mais
competitivo e globalizado. Enfim, era necessário conquistar e manter clientes. Surgia, então,
a administração da qualidade total (Total Quality Management – TQM), que não tardou a
chegar ao setor público. Seguindo essa linha de raciocínio, foram surgindo medidas
governamentais propostas pelo governo britânico, visando tornar o serviço público mais ágil
e competitivo: descentralização administrativa (não política) para aproximar o serviço
público do consumidor, incentivo à competição entre os serviços – estabelecendo uma
lógica entre a competitividade e o aumento da qualidade, acabando com o monopólio e
possibilitando alternativas de escolha – e a adoção de um novo modelo contratual para os
serviços públicos. Esse novo modelo visava aumentar a qualidade e o controle por meio da
extensão das relações contratuais ao fornecimento de serviços públicos – entre o serviço
público, o setor privado e o voluntário/não lucrativo – da extensão das relações contratuais
ao próprio setor público (delegação de autoridade, descentralização) e estabelecimento de
contratos de qualidade entre os prestadores de serviço e os consumidores/clientes
(Osborne; Gaebler, 1994).
Entretanto, como há muitas diferenças entre o consumidor de bens no mercado e o
consumidor de serviços públicos, e considerando que este último participa de uma relação
mais complexa, entende-se que o termo cliente/consumidor deva ser substituído pelo de
cidadão, já que o exercício da cidadania é muito mais abrangente do que apenas escolher
serviços públicos. A cidadania está relacionada à participação ativa dos sujeitos na escolha
dos dirigentes, na formulação e usufruto das políticas e na avaliação dos serviços públicos.
Esses itens atendem a um dos objetivos principais da administração pública cidadã: a
equidade (Benevides, 1996).
Mais recentemente, surge a corrente da Public Service Orientation (PSO), criada em
virtude de problemas vividos com a descentralização – outra estratégia política de gestão
democrática cidadã – procurando encontrar novos caminhos para a discussão gerencial,
explorando suas potencialidades, preenchendo suas lacunas. Autores como Hamblenton
(1992) defendem a descentralização não apenas para tornar mais eficazes as políticas
públicas ou possibilitar aos consumidores (clientes) o direito de escolher os equipamentos
sociais que fossem de melhor qualidade. Sua principal justificativa é que a descentralização
favorece o governo local, não somente como um bom meio para prover os serviços
(públicos) necessários, o que de fato faz, mas, sobretudo, porque capacita os cidadãos a
participar das decisões que afetam suas vidas e as de suas comunidades.
Nesse momento histórico, os teóricos do PSO resgatam os ideais de participação política
segundo um conceito mais amplo – o de esfera pública, vista como local de aprendizagem
social e organizacional, em que os cidadãos aprendem com o debate público, local de
transparência que deve estar presente na burocracia. É com base no conceito de esfera
pública que se percebe a possibilidade de romper com a rígida divisão entre as teorias da
administração pública, demonstrando que pode haver intercâmbio entre elas, que elas não
são excludentes e que, portanto, é viável o aproveitamento dos aspectos positivos de cada
uma delas.
Dessa forma, podemos afirmar que a reforma da administração pública tornou-se um
tema político de grande relevância, revestido de um linguajar técnico que não escondeu
todos os conflitos existentes, sobretudo entre dois setores fundamentais para a redefinição
do papel do Estado: os funcionários públicos e a população.
No Brasil, também na década de 1990, inicia-se o processo de configuração do Terceiro
Setor na gestão pública, que segue a orientação da política, com base em um diagnóstico
que identifica a crise do capitalismo como resultado da crise do Estado. Ao criticar a
ineficácia do Estado de bem-estar social, a teoria neoliberal julga que não é o capitalismo
que está em crise, mas o Estado. Dessa forma, a estratégia adotada para a superação da
crise seria a Reforma do Estado, por meio da diminuição de sua atuação, já que o excessivo
gasto governamental gerado pela permanente necessidade de se legitimar, por meio do
atendimento das políticas sociais, foi o responsável pela crise fiscal. Outra causa estaria no
papel regulador desempenhado pelo Estado na esfera econômica, prática que atrapalhava o
livre andamento do mercado (Pereira; Spink, 1998).
Já que a superação da crise passava, pois, pela Reforma do Estado, era necessário
racionalizar recursos (diminuição das políticas sociais existentes) e esvaziar o poder das
instituições governamentais (o mercado era mais eficiente). Nesse sentido, nada era
considerado mais justo do que transferir a responsabilidade pela execução e o
financiamento das políticas sociais diretamente para o mercado (privatização da estrutura
estatal). No caso de serem mantidos esses setores no âmbito do Estado, deveria ser
introduzida a lógica mercantil em seu funcionamento. Porém, entendeu-se como necessário
superar a natureza dos serviços sociais, que não permitia a implementação irrestrita da
chamada regulação pelo mercado, já que a relação entre os demandatários dos serviços
sociais (agentes econômicos) e a oferta desses mesmos serviços não resultaria de uma
concorrência perfeita.
Segundo Souza (2003), a alternativa encontrada foi a de introduzir concepções de gestão
privada nas instituições públicas, sem alterar a propriedade das mesmas. Assim, surge a
noção de “quase-mercado”, que, tanto do ponto de vista operativo quanto conceitual,
diferencia-se da alternativa de “mercado” propriamente dita, podendo ser implantada no
setor público sob a suposição de induzir melhorias.
Analisando esse contexto, Antony Giddens – um dos teóricos que tenta responder à
crise do capitalismo no marco do próprio capitalismo – concorda com o diagnóstico
neoliberal que responsabiliza o Estado de bem-estar social pela crise, assim escrevendo:
"a terceira via se refere a uma estrutura de pensamento e de prática política que visa
adaptar a social-democracia a um mundo que se transformou fundamentalmente ao
longo das últimas duas ou três décadas. É uma terceira via no sentido de que é uma
tentativa de transcender tanto a social-democracia do velho estilo quanto o
neoliberalismo" (Giddens, 2003, p. 36).
Para ele, o resultado dessa tentativa seria a constituição de um novo Estado
democrático, que teria como base: a descentralização do poder, agora entendida como a
relação entre Estados-nações no contexto de economias globalizadas; o aumento da
eficiência na ação governamental como forma de afirmar a competência do Estado na
sociedade de mercado; a dupla democratização, representada, de um lado, pela ampliação
de mecanismos de democracia direta e de descentralização do poder para esferas locais e,
de outro, pela possibilidade de tais mecanismos interferirem de fato nas decisões, agora
globais; a renovação da esfera pública por meio do aumento da transparência; e a
disposição do Estado de atuar como administrador de riscos, o que significa expor suas
opções de políticas ao debate público e submeter-se a ele (Giddens, 2003, p. 36).
Também, para esse autor, a Reforma do Estado e do Governo deveria ser um princípio
orientador básico da política da terceira via – um processo de aprofundamento e ampliação
da democracia. O governo pode agir em parceria com instituições da sociedade civil para
fomentar a renovação e o desenvolvimento da comunidade (Giddens, 2003, p. 36). Esses
parceiros, identificados em segmentos da sociedade civil, comporiam o Terceiro Setor.
Na literatura, o termo Terceiro Setor parece um pouco indefinido, e Montaño (2002)
chama a atenção para o reducionismo desse conceito, como se o “político” pertencesse à
esfera estatal, o “econômico” ao âmbito do mercado e o “social” remetesse apenas à
sociedade civil. Szazi (2003) o define como "o conjunto de agentes privados com fins
públicos, cujos programas visavam atender direitos sociais básicos, combater a exclusão
social e, mais recentemente, proteger o patrimônio ecológico brasileiro" (p. 22).
A identificação da crise fiscal do setor público como o principal agente da estagnação
econômica resultou na defesa da diminuição dos gastos e dos investimentos públicos nas
políticas sociais, limitando o padrão dos investimentos públicos em políticas de bem-estar
social. A estratégia de Reforma do Estado, explicitada na introdução do quase-mercado na
gestão pública e incorporada na pauta de mudanças trazidas pela terceira via – em especial
considerando o incremento do Terceiro Setor como corresponsável pelos atendimentos das
demandas sociais – encontra, no “Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado” (1995)
– produzido na primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, sob a coordenação do então
ministro Luiz Carlos Bresser Pereira – sua forma orgânica. A Reforma do Estado no Brasil ia
ao encontro das perspectivas do quase-mercado – buscando flexibilidade e eficácia – e
induzia a criação de uma esfera pública não estatal. Nessa perspectiva, o cidadão passa a ser
cliente, o que, seguindo a lógica do mercado, não inclui todos os cidadãos, já que os clientes
dos serviços do Estado seriam apenas os contemplados pelo núcleo estratégico e por
atividades exclusivas. As políticas sociais assumiriam uma nova conotação. Para o “Plano
Diretor da Reforma”, as políticas sociais não seriam mais serviços exclusivos do Estado,
passando a ser de propriedade pública não estatal ou privada. No plano também
encontravam-se as estratégias que deveriam ser adotadas pelo governo federal para que a
Reforma no Estado fosse viabilizada, ou seja, a privatização, a terceirização e/ou a
publicização de serviços ou atividades prestados pelo Estado (Pereira; Spink, 1998).
Ampliando a leitura desse contexto de mudanças mundiais, Manoel Castells (1999)
destaca que vivemos a transição da sociedade industrial para a sociedade informacional,
convivendo com mudanças significativas, como: as relacionadas às tecnologias em
transformação; economia informacional globalizada; crescente influência da cultura virtual;
o fluxo do poder dando lugar ao poder do fluxo; crises da estrutura do poder do Estado;
crise do patriarcado, que implicou na redefinição das identidades e mudanças nas estruturas
familiares; ascensão dos tigres asiáticos (Korea, Japão, China e outros), mostrando como os
fatores econômicos são mola e motor para mudanças políticas; a criminalidade global,
destacando a questão do narcotráfico se organizando em rede, além de várias outras redes
se constituindo globalmente e atuando localmente.
Mais do que isso, para Castells, esse contexto define o estágio da sociedade em rede,
que precisa ser considerado nas análises sobre a atualidade. Há um modo de conhecer e
atuar no mundo pela compreensão das relações entre os nós de uma rede, que compõem
um conjunto interconectado. São estruturas abertas, capazes de se expandir de forma
ilimitada, integrando novos nós, desde que estes consigam comunicar-se dentro da rede, ou
seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação. Ampliada pelas
comunicações eletrônicas, essa rede gera poder suficiente para reformular a sociedade por
meio de um sistema aberto, que está em constante fluxo, de modo que essa sociedade está
sempre pronta para ser (re)organizada.
Para o autor, a rede é tudo menos coesão institucional. A rede coloca a noção de
instituição em questionamento, pois o conjunto de nós pode provocar vários resultados,
sendo um deles o dinheiro produzido. O fato de não ser uma coesão institucional mostra
que a rede é uma síntese altamente dinâmica, forma drástica de organização das relações
no tempo e no espaço.
Assim, os esforços de compreensão das ações na sociedade em rede não são mais
centrados, por exemplo, na disciplina, nas instituições ou em uma localidade. É necessário ir
além do nó e contextualizá-lo, compreendendo o ambiente em que está inserido e as
possíveis influências.
A leitura da vida social, na perspectiva da rede, exige-nos pensamento sistêmico, o que
implica a compreensão de interdependência e complementaridade, permitindo afirmar que
as partes podem ter objetivos distintos, mas o fim pretendido com o cumprimento dos
objetivos é o mesmo. A interdependência é a característica que evidencia as relações, pois
nenhuma parte é estanque e tem fim nela mesma. Cada parte existe na relação de
dependência com as outras, pois as mudanças ocorridas em uma das partes afetam todas as
outras (Pinto, 2004).
Exemplificando,
"são mercados de bolsas de valores e suas centrais de serviços auxiliares avançados
na rede dos fluxos financeiros globais. [...] São campos de coca e de papoula,
laboratórios clandestinos, pistas de aterrizagem secretas, gangues de rua e
instituições financeiras para lavagem de dinheiro, na rede do tráfico de drogas que
invadem as economias, sociedades e Estados no mundo inteiro. São sistemas de
televisão, estúdios de entretenimento, meios de computação gráfica, equipes para a
cobertura jornalística e equipamentos móveis, gerando, transmitindo e recebendo
sinais na rede global da nova mídia no âmago da expressão cultural e da opinião
pública na era da informação" (Castells, 1999, p. 498).
Ao mesmo tempo, diz Rose Inojosa (1999), são Redes Temáticas, que se congregam em
torno de temas específicos (AIDS, Meio Ambiente, Lazer, Segurança, Juventude etc.); redes
regionais, que se congregam em torno de um mesmo nicho geográfico; redes
organizacionais, que congregam organizações com objetivos comuns; redes de mercado,
cujos membros articulam-se para a produção ou apropriação de um bem ou serviço que faz
parte da sua finalidade e convivem com cooperação e competição; redes de compromisso
social, que mobilizam pessoas e/ou organizações com base na percepção de dado problema
na sociedade, ou que se unem a uma ideia e a uma explicitação de sua existência. As redes
podem, assim, ser constituídas por indivíduos, organizações ou ambos. Podem promover
relações interpessoais, intergovernamentais e intersetoriais.
Para essa autora, as Redes de Compromisso Social se sustentam em três pilares, ou seja,
na ideia-força, nos reeditores e na produção comum. A ideia-força é uma visão de
intervenção solidária, cuja realização provoca uma mudança na sociedade. É uma ideia que
traz em si uma força mobilizadora para a ação. Os reeditores são as pessoas que têm um
grupo de influência capaz de transmitir, introduzir ideias e criar sentidos para e com o
grupo. Eles não multiplicam ou reproduzem ideias, mas são capazes de modificar as formas
de pensar, sentir e atuar de seu público. A produção comum representa a divulgação das
informações, bens ou serviços, projetos, ações que colocam em prática a ideia-força.
Pessoas que trabalham em rede necessitam desses apoios. Isso não significa que todos
tenham que estar, ao mesmo tempo, no mesmo local, fazendo a mesma coisa. Se dois
membros estão pondo em prática uma ação com base na ideia-força, aí vive a rede, que, em
inglês, se diz network. Costuma-se dizer que é preciso existir work, trabalho, para que exista
a net. É a produção comum que realimenta a rede e dá visibilidade a ela, atraindo novos
entes.
Se analisarmos a qualidade da relação entre os membros da rede, podemos identificar
outros tipos de rede: redes subordinadas, cujos membros são parte de uma organização ou
sistema em que existe uma interdependência de objetivos, e, embora a articulação
independa da vontade dos membros, o controle é centralizado; redes tuteladas, em que os
membros têm certa autonomia, pois se articulam sob a égide de uma organização que
modela o objetivo comum, mas a permanência na rede depende da persistência de
propósitos do ente mobilizador, que tende a ficar com o controle; redes autônomas ou
orgânicas, nas quais os membros são autônomos, articulam-se voluntariamente, existe uma
ideia-força mobilizadora e as identidades originais são preservadas, além de a rede ser
aberta, trabalhar por pactuação e seu controle ser compartilhado (Rose Inojosa, 1999).
Analisando a relação entre a rede e o ser, Castells (1999) destaca que a revolução
tecnológica está remodelando a sociedade rapidamente. Nesse contexto, o fundamental
não é trocar informações, mas saber como processá-las, aplicá-las e usá-las. Nesse sentido,
o sistema de redes gera e processa a informação para o mercado mundial, articulando os
componentes fundamentais das organizações: são redes entre empresas, dentro de
empresas, individuais, de computadores. O objetivo das empresas é provocar mudanças nas
organizações, ao contrário do que pretendia a burocracia. A rede japonesa por exemplo,
parte das grandes empresas, que são administradas por administradores. Na rede coreana,
as empresas são controladas por holding e pelo sistema governamental. Na rede chinesa, a
família tem papel fundamental, ou seja, se a rede cresce, a família também cresce. Mas até
que ponto as redes modificaram a economia global?
Criticando o determinismo na expansão da tecnologia, Castells afirma que a tecnologia é
sociedade. Por isso, para ele, não existe a sociedade informacional. Existem várias
sociedades informacionais. E, nesse contexto, ter ou não ter instrumentos tecnológicos vai
influenciar a sociedade. A Internet, criada como instrumento militar, passou a ser utilizada
pela sociedade em geral. O papel do Estado tem sido central nessa expansão. Nesse
contexto, são reduzidos os espaços para a política de convivência. O espaço público vai
cedendo seu lugar a um espaço publicitário e midiático.
Ao mesmo tempo, os módulos de produção continuam sendo capitalistas. O que muda é
a produção industrialista, que passa a ser produção informacionalista. O novo paradigma
sociológico focaliza o conhecimento e o processamento de informações. Há uma ligação
íntima entre cultura e forças produtivas. As sociedades reagem de forma diferente a essa
economia global. A matriz comum é o consumo. A lógica da organização é que serve de base
para a sociedade informacional. Trajetória específica de produção fordista para uma
produção informacionalista, mais flexível.
Há introdução de estruturas mais horizontalizadas. Sai o modelo da grande empresa, no
topo, verticalizada, e entra o de pequenas empresas, que dão impulso a essa nova
tecnologia.
Analisando essa situação, Walter W. Power (1991) não focaliza nem o mercado nem a
hierarquia, mas as formas de organização em rede. Para ele, a rede centraliza-se na
complementariedade. Trata a comunicação como forma de relacionamento, de resolução
de conflitos com normas de reciprocidade. A rede tem um grau médio de flexibilidade. O
compromisso entre as partes vai de médio a alto, em um clima de benefício mútuo, e há
uma forte interdependência dos atores. As regras são formais e há diversos sócios.
Precisamos identificar a ordem que dá coerência aos fatos e significado às redes, como
formas distintas de organização econômica coordenada, analisando frequência,
durabilidade e limitações das redes. Há, por exemplo, formas mais utilitaristas, como as
usadas pelo mercado, e mais hierárquicas, com alto grau de controle, como algumas usadas
por experiências estatais. Oposição a ambas as formas é a liberdade, requerida pelos vários
tipos de democracia.
Há situações em que nem o mercado, nem a hierarquia, como modos de trocas,
representam uma forma particular de ação coletiva como nas redes, em que: a cooperação
pode ser mantida em torno da permanente construção de acordos efetivos; há incentivo,
aprendizagem, socialização e disseminação da informação, permitindo que as ideias sejam
transformadas em ação rapidamente; os recursos variáveis e o ambiente não representam
obstáculos; há uma viabilidade elevada para a utilização e o aumento de vantagens
intangíveis, como conhecimento tácito e inovação tecnológica.
As redes podem atender a várias necessidades. Por exemplo, de conhecimento
específico, de facilitação de acesso/velocidade e de confiança, legitimidade. As instituições
servem para aumentar a confiança: a fórmula irá resultar naquilo que se espera. As redes
servem para agregar conhecimentos especializados, sem hierarquia (possibilidade de gerar
confiança). A reciprocidade não gera necessariamente a confiança; mas por que a rede pode
fazê-lo? Porque há algo, na essência da rede, que propicia a confiança. A rede pode
institucionalizar padrões. Há horizontalidade, mas não, necessariamente, a ausência de
conflitos, a falta de harmonia. Pode haver conflitos entre os atores, alguns bastante
previsíveis, levando a uma competição. Ainda assim, as redes contribuem para gerar
confiança. Isso acontece porque as relações de interdependência, muitas vezes, acabam
superando os conflitos. Não são os indivíduos, os atores buscando seus interesses. São
relações de intersetorialidade. A confiança aparece embasada na cooperação e no senso de
reciprocidade geral; está na repetição, em jogos continuados. Vale mais a pena a ideia de
que se está na rede, de que há continuidade nas relações. A entrada de novos atores na
rede é mais flexível que hierárquica, mas não é tão flexível como no mercado.
Assim, a sociedade de informação é um conjunto de redes. As relações entre os atores
podem ser diversificadas, as interações típicas de uma rede não são características das
relações de mercado. As redes são estruturadas por diversos atores, o que traz alguns
ganhos: busca de reputação de longo prazo, redução de incertezas, respostas mais rápidas.
Mas as redes não funcionam no mesmo grau de eficiência e eficácia. Geram resultados
diferentes nas políticas públicas.
Nesse contexto, algumas questões me incomodam: com quais redes lidamos nas
políticas públicas? Quem faz parte delas? Quais são seus limites? Que desafios colocam para
os gestores públicos?

Desafios atuais para a política nacional de esporte e lazer no


Brasil
Atualmente, no Brasil, vivemos diferentes desafios, colocados pelo Governo Federal e
pela população. Desafios da liderança de um pacto social que não perca de vista a
universalização do esporte e do lazer, combinada com a garantia de inclusão com equidade,
demandas também explicitadas nas Conferências Nacionais de Esporte e Lazer (2004; 2006).
Desafios que exigem que o Estado estimule a sinergia e gere espaços de colaboração,
mobilizando recursos potencialmente existentes na sociedade, tornando imprescindível a
participação desta em ações integradas, buscando multiplicar seus efeitos e chances de
sucesso.
Mobilizar a sociedade para esse esforço conjunto não é tarefa fácil e nem exclusiva do
Estado, embora este disponha de mecanismos mais fortemente estruturados para
coordenar ações capazes de catalisar diferentes atores em torno de propostas mais
abrangentes.
Isso tem requerido da administração pública o desenvolvimento de habilidades
específicas para lidar com as tensões, expectativas, relações que se estabelecem e
diferentes intenções que convivem entre si nas redes de que participa.
No que tange ao campo do lazer, essa necessidade cresce, considerando, de início, a
diversidade de programas e projetos sociais governamentais nos quais o lazer é um tema
transversal, embora não haja, ainda, congruência suficiente das ações desenvolvidas e
serviços prestados, nem das articulações entre órgãos e entidades por eles responsáveis.
Além disso, temos que considerar que as políticas sociais têm caráter complementar, o que
pressupõe o esforço de cada uma delas, cada entidade e organismo público que nelas
atuam. Afinal de contas, os usuários são os mesmos. Essas evidências impõem a
necessidade da integração de recursos e ações, tanto na relação intra como
interinstitucional.
Nessa perspectiva, a rede é
"espaço de convergência de vários atores sociais, todos incompletos, que precisam
tecer uma articulação de esforços frente a objetivos definidos, ou seja, potencializar
recursos com e para um público comum" (Amorim; Fonseca, 1999, p. 17).
Tal processo confere à rede um caráter político, uma vez que ela é tomada como espaço
aberto à complementariedade e à cooperação, com regulação; assim, a rede só pode ser
respeitada se contemplar a participação popular e o controle público das ações.
Ilse Scherer-Warren (apud SMDS/PBH, 2001), analisando pressupostos ideológicos da
noção de rede, com base nos princípios democráticos, ressalta a possibilidade de uma nova
cultura política, em que as relações seriam mais horizontalizadas e haveria maior respeito à
diversidade e do pluralismo. Destaca a possibilidade da conexão do local com o global,
articulando interesses específicos, locais, em torno de projetos comuns. Como estratégia
político-institucional, a autora observa que a noção de rede não só comporta a dimensão da
solidariedade, como a de responsabilidade com o bem comum, a dimensão do conflito e da
diferença.
O dissenso e o consenso estão presentes nas ações em rede. Aprender a suportar
conflitos e aceitar soluções provisórias faz parte da nossa aprendizagem, como pessoas e
como responsáveis pelas políticas sociais. As redes exigem equilíbrios entre acordos,
participação e institucionalização. A respeito disso, avalia Immergut (apud SMDS/PBH,
2001), não existe um vínculo direto entre um dado conjunto de instituições políticas e o
resultado de uma dada política pública. As instituições não permitem prever as soluções
resultantes de disputas políticas. Porém, ao definir as regras do jogo, criam-se condições
que permitem predizer a maneira pela qual esses conflitos devem se desenvolver.
No campo das políticas sociais, há o que Scherer-Warren (apud SMDS/PBH, 2001) chama
de redes sociogovernamentais, isto é, redes constituídas por atores coletivos, portadores de
identidades diversas e orientados tanto por valores de solidariedade como por valores
estratégicos. Nessas redes, os conflitos são explicitados, os interesses, disputados e
articulados por meio da construção de projetos estratégicos. Nesse contexto, é preciso
tomar cuidado para não cairmos na armadilha da perigosa inversão: localizar a linguagem
dos direitos na sociedade e a da solidariedade no Estado, processo que traz consigo a
desresponsabilização estatal.
Além disso, Boaventura Santos (1997), discutindo a questão do trabalho em rede
sociogovernamental, argumenta que o Terceiro Setor não pode representar a substituição
da ação estatal nas ações em rede, ancorada na distinção entre funções não exclusivas do
Estado. E diz: afinal a exclusividade estatal do exercício de funções foi sempre o resultado de
uma luta política (p. 16). Antes de substituir a ação do Estado, a rede deve ser alavancada
com base em decisões políticas tomadas pelo poder público. O Estado é o coordenador do
processo de articulação e integração entre ONGs e OGs.
Assim, uma vez que o desafio posto ao Estado é dar unidade aos esforços sociais,
compondo uma rede de serviços que assegure os direitos de forma integral e com
qualidade, o Ministério do Esporte, na medida em que desenvolve sua política de lazer
atento à intergeracionalidade, ao atendimento das demandas das minorias e as diferenças
culturais da população, articulando ações intersetoriais compartilhadas com os demais
órgãos do governo federal, estados e municípios, é chamado a desenvolver uma gestão que
enfrente os desafios postos por meio de várias estratégias políticas, dentre elas, pela
consolidação de:
Redes de tomadas de decisão – em que os organismos públicos e as organizações da
sociedade civil se reúnem para discutir propostas e deliberar sobre as políticas
públicas, como acontece, por exemplo, nas Conferências de Esporte e Lazer;
Redes temáticas ou setoriais – que conectam organizações e entidades da sociedade
civil e organismos públicos que atuam num determinado campo, com retaguarda aos
encaminhamentos, como propõe o Sistema Nacional de Esporte e Lazer e consolida a
Rede CEDES – Centro de Desenvolvimento do Esporte Recreativo e do Lazer, do
Programa Esporte e Lazer da Cidade/Ministério do Esporte;
Redes de Informação – responsáveis pela difusão de informações para entidades
diversas, parceiros, setores sociais, cidadãos interessados, promovendo interfaces de
experiências, divulgando redes de serviços e campanhas emergenciais, dentre outras
iniciativas, como objetiva o CEDIME – Centro de Documentação e Informação do
Ministério do Esporte.

Além disso, como estratégia político-institucional, essa Política de Lazer valoriza a rede
fundamentada na solidariedade de base informal, isto é, nos códigos culturais e simbólicos
comuns construídos no cotidiano das pessoas e/ou grupos (família, comunidade, trabalho,
lazer) e nas ações coletivas que busquem o bem comum, considerando as dimensões do
conflito e da diferença.
Isso porque concordamos com Pedro Demo (1994), quando este afirma que a arte
qualitativa do sujeito é a sociedade desejável que é capaz de criar. E isso passa,
necessariamente, pela sua participação. Mais ainda, só haverá democracia se houver
participação capaz de integrar todas as propostas que se colocam como transformadoras.

Referências
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Peirópolis, 2003.
Sobre os Autores
ORGANIZADOR

Nelson Carvalho Marcellino


Sociólogo; doutor em Educação; livre-docente em Educação Física – Estudos do Lazer;
docente do mestrado em Educação Física, da Faculdade de Ciências da Saúde, da
Universidade Metodista de Piracicaba-UNIMEP; coordenador do Núcleo do Centro de
Desenvolvimento do Esporte Recreativo e do Lazer-REDE CEDES, do Ministério do Esporte;
líder do GPL – Grupo de Pesquisas do Lazer – e pesquisador do CNPq.

COLABORADORES

Andréa Nascimento Ewerton


Licenciada em Educação Física pela UEPA/PA. Diretora de Políticas Sociais de Esporte e
Lazer/SNDEL-ME.

Cláudia Regina Bonalume


Licenciada em Educação Física e Especialista em Educação do Movimento. Chefe de
Gabinete da Secretaria Nacional de Desenvolvimento de Esporte e de Lazer/Ministério do
Esporte/DF.

Débora Alice Machado da Silva


Licenciada e bacharel em Educação Física pela UNICAMP; especialista em Lazer e Educação
pela faculdade Paris 13 (França); mestranda em Educação Física pela Unimep; integrante do
Grupo de Pesquisa em Lazer (GPL); coordenadora-geral de Tecnologia, Cooperação e
Intercâmbio SNDEL/Ministério do Esporte.

Felipe Soligo Barbosa


Licenciado em Educação Física pela PUC-Campinas; bacharel em Turismo, pela UNIMEP;
mestrando em Educação Física – Corporeidade e Lazer, pela FACIS – UNIMEP; membro do
GPL e do Núcleo da Rede CEDES – do Ministério do Esporte, na UNIMEP.

Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto


Licenciada em Educação Física pela UFMG; mestre em Educação Física – área de
concentração: recreação/lazer, pela UNICAMP; doutora em Educação, pela UFMG; docente
do Curso de Educação Física da PUC-Minas – Belo Horizonte; diretora do Departamento de
Ciência e Tecnologia do Esporte da Secretaria Nacional de Desenvolvimento de Esporte e de
Lazer, do Ministério do Esporte.

Marcelo Pereira de Almeida Ferreira


Licenciado em Educação Física pela Universidade de Pernambuco; especialista em Política
Educacional e Prática Pedagógica; Mestre em Educação pela UFPE; coordenador Geral de
apoio, capacitação e eventos esportivos/SNDEL-ME.

Rejane Penna Rodrigues


Professora de Educação Física; especialista em Desporto Coletivo; secretária Nacional de
Desenvolvimento de Esporte e de Lazer/Ministério do Esporte; membro do Conselho
Nacional do Esporte; publicou diversos trabalhos e teve várias participações em fóruns
políticos científicos, nacionais e internacionais. Foi Secretária Municipal de Esporte,
Recreação e Lazer de Porte Alegre, de 1993 a 2004, e presidente da ASMEL (Associação
Nacional dos Secretários Municipais de Esporte) 2003-2005.

Stephanie Helena Mariano


Bacharel em Turismo pela UNIMEP; mestranda em Educação Física – Corporeidade e Lazer,
pela FACIS-UNIMEP; membro do GPL e do Núcleo da Rede CEDES do Ministério do Esporte,
na UNIMEP.

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