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A narrativa da oralidade e a literatura em Moçambique

A questão da oralidade e da literatura no caso de Moçambique, como na maioria


dos países africanos é uma questão complexa e que tem suscitado ao longo dos
últimos oitenta anos várias polémicas e discussões apaixonadas . A nossa
abordagem desta problemática decorre da necessidade de desenvolvermos uma
reflexão critica a partir dos dados da experiencia que testamos na Ilha de
Moçambique . Vários autores, principalmente em Portugal e em Moçambique têm
abordado esta questão.

Ana Mafalda Leite, em 1998 efectuou o desenho sumário desta problemática


(LEITE, 1998). A questão da “negritude”, introduzida por Léopold Senghor em
1948 marca o início da busca duma essência africana (SENGHOR, 1948). Essa
problemática será contestada por vários intelectuais africanos na década de
novecentos e setenta (BALOGUN & DIAGNE, 1977) que, considerando a
conceptualização de “negritude” como um conceito com origem (e com um fim)
nas problemáticas ocidentais, haveria que africanizar a problemática centrando-a
nas questões africanas. Aqui, africanidade, face à ausência da escrita, teria que se
inserir na oralidade. A aí se gera uma nova oposição entre a tradição (alicerçada na
oralidade) e a modernidade (com a emergência da escrita) como um fenómeno
urbano. Segundo Mafalda Leite esta questão ainda se enraíza na busca duma
identidade nacional e prossegue na afirmação das literaturas pós-independência,
que eram até aí consideradas como apêndices das literaturas nacionais (da língua
colonial). O fato de no processo de reconstrução identitária se processar uma
intertextualidade feita na contestação à matriz europeia, vai levar à incorporação de
autonomias (LEITE, 1998, p. 13). E essa busca das autonomias encontra na
incorporação da oralidade aplicação exemplar .

A oralidade como conceito de análise, sobretudo como atributo da


tradicionalidade pode ser considerada como uma problemática que se centra
sobre a construção dos mitos originais. A construção da imagem do africano
efectuada a partir das descrições da antropologia, com as construções dos seus
sistemas de cosmogonia, levaram, os ocidentais a incorporar, que face à
ausência da ferramenta da escrita (como elemento de rememoração e
reprodução do saber), a oralidade, o conto tradicional desempenhava, senão
funções idênticas, pelo menos funções similares. Tanto mais que este processo,
de descoberta do outro africano, vai correr na sequência da descoberta das
tradições populares europeias, que o movimento romântico vai acrescentar como
afirmação da diversidade e duma identidade face à afirmação dos nacionalismos
europeus emergentes que impunham a ideia da nação associada, entre outros ao
uso duma língua vernácula. Como salienta Mafalda Leite, a oralidade é um
resultado do seu processo histórico (LEITE, 1998, p. 13), e não um resultado
duma “natureza africana”, contrariando quem apressadamente considera que a
escrita é um acontecimento disjuntivo para os africanos (LEITE, 1998, p. 13).

A mistificação da oralidade produziu nos Estudos Africanos a utopia da sua


justaposição com a tradicionalidade, identificando os dois conceitos (oralidade =
tradição) ou, por outro lado, a oralidade como uma função exemplar da
africanidade. Essas atitudes acabaram por confundir a ideia da autenticidade com a
condição oral. (LEITE, 1998) Uma outra abordagem conceitual da força da
oralidade como característica da africanidade, segundo Mafalda Leite, encontra-se
nos defensores da ideia de que a “oralidade” é uma forma de partilha colectiva do
“saber”, processo que seriam particularmente adequados aos processos de
construção socialista de raiz africana, que nos anos sessenta e setenta do século XX
se difundiram pelos novos estados africanos. (LEITE, 1998)

Recorde-se que entretanto, em 1976, no âmbito das políticas culturais de


UNESCO, se defendia a necessidade de proceder à recolha (inventário) e
tratamento das tradições populares (BALOGUN & DIAGNE, 1977). O
recenseamento do “Património Cultural”, como forma de desenvolver
“harmoniosamente as culturas e valores que se ignoram ou que pouco se
conhecem” (BALOGUN & DIAGNE, 1977, p. 29) é uma primeira tarefa dos
estados, como forma de valorizar as culturas. Defende ainda a necessidade de criar
uma investigação sistemática que permita a criação de corpus de textos, antologias,
monografias, reportórios, enciclopédias. Afirma que não basta o trabalho de
recolha e que era necessário divulgar e encorajar a produção de “património”
através dos jogos tradicionais, festivais, exposições itinerantes. (BALOGUN &
DIAGNE, 1977, p. 32) Recomenda o estudo das línguas locais, como forma da sua
preservação e difusão. Estudar as culturas africanas, orais e escrita, inscreve-se
então num objectivo de política cultural . Estes textos fundamentam a formação da
política cultural que se desenvolverá em Moçambique .

Das polémicas em torno da questão da função da oralidade, a problemática orienta-


se então para um processo de preservação que passa pela recolha, investigação e
divulgação do património. Actualmente, no âmbito da UNESCO, esta questão
encontra-se incluída nos processos de inventariação do “património imaterial”
(UNESCO, 2003). Mas para a análise desta questão, aplicada ao caso de
Moçambique, é interessante percorrer a linha de investigação efectuada pelo
Etnólogo Manual Viegas Guerreiro (1912-1997), antigo mestre da Faculdade de
Letras de Lisboa onde durante vários anos se dedicou às problemáticas da
Literatura Popular. Viegas Guerreio havia acompanhado Jorge Dias na sua
monumental Investigação sobre os macondes de Moçambique, no qual escreve o
volume IV. (GUERREIRO, 1996).

Posteriormente a 1974, Viegas Guerreiro no âmbito do IPPC executa uma pequena


monografia sobre “Guia de Recolha da Literatura Popular” (GUERREIRO, 1982),
que era a base da sua classe . Em 1985 Viegas Guerreiro no colóquio “Literaturas
Africanas de Expressão Portuguesa” apresenta uma comunicação (GUERREIRO,
1987). O autor exprime a importância da análise do discurso da oralidade para
ultrapassar a ideia do “atraso cultural” das sociedades tradicionais. Se do ponto de
vista das técnicas as comunidades podem apresentar-se com situações
diferenciadas, ao nível do pensamento isso não sucede. “O Devir é um fenómeno
universal”, afirma o autor, “e se no domínio das técnicas estas populações se
atrasaram, e não tento como se julga, não assim nas manifestações do intelecto”
(GUERREIRO, 1987, p. 171). Segundo Viegas, é através do pensamento que as
comunidades expressam a sua actualização dos conhecimentos. “A narrativa oral é
então não apenas elemento do passado mítico, que também o é, mas é sobretudo
uma reelaboração do presente. Uma leitura do presente. (GUERREIRO, 1987, 171)
Trata-se portanto duma expressão da memória social. “As personagens movem-se,
atuam, em ambiente físico que é o de hoje, sentem e pensão de modo análogo ao
do narrador e ouvintes” (GUERREIRO, 1987, p. 172). Estamos portanto perante
uma “matéria do património” justificando-se a sua investigação.

Ainda no âmbito da questão da oralidade, mas agora assumindo uma análise crítica
do discurso Jean-François Loytard quando aborda a “Pragmática do saber
narrativo” (LOYTARD, 1986, p. 42) afirma que a legitimação do saber denotativo,
que na pós-modernidade implica o saber fazer, saber viver, saber escutar, aborda o
saber do costume (ou do senso comum). Segundo Loytard o “saber tradicional”,
que se distingue do saber científico, emerge na Europa do século XVIII e XIX
como uma legitimação do novo saber da burguesia, em oposição ao saber
teológico. O saber popular, da tradição, fundado em genealogias que se perdem nos
tempos, visto como um saber puro, procura legitimar novas relações de poder.
“Estas histórias populares contam o que se pode chamar formações (Bildungen)
positivas ou negativas, ou seja os êxitos ou os fracassos que corroam as tentativas
dos heróis, e estes êxitos e fracassos conferem legitimidade às instituições (função
dos mitos), ou representam modelos positivos ou negativos (heróis felizes ou
infelizes) de integração nas instituições estabelecidas (lendas contos). Estas
narrativas permitem portanto definir, por um lado, os critérios de competência
próprios da sociedade em que são contados, e, por outro lado, avaliar, graças a
esses critérios, as performances que neles se realizam ou podem realizar.”
(LOYTARD, 1986, p. 45).

Mais, Loytard encontra ainda mais três funções neste tipo de discurso narrativo:
Ele é constituído por uma pluralidade de jogos de linguagem, que permite uma
complexidade de enunciados denotativos, e por uma forma de transmissão com
regras fixadas na pragmática. (LOYTARD, 1986, p. 46). Nesta última função o
autor considera que a transmissão da narrativa, na oralidade obedece a lógicas de
enunciação em que o narrador participa no próprio enunciado, sendo que a
legitimação do discurso advém pela participação do “narratário” e do auditório.
(LOYTARD, 1986, p. 47). Para além disso, esta forma de narrativa, como
performance, obedece a um ritmo. O ciclo de exposição e repetição dão origem à
formação de competências por interiorização. A competência nestas comunidades
constrói-se assim, segundo o autor, pele exposição sucessiva às várias narrativas,
sendo que através desse processo ele se vai sucessivamente actualizando. E essa
actualização é uma actualização dupla. Do referente e da memória do participante.
(LOYTARD, 1986, p. 50).

Em 1986, Lourenço do Rosário na sua tese de doutoramento (ROSÁRIO, 1986)


vem acrescentar à conceptualização da “literatura oral” algumas questões de
investigação que decorrem dum longo trabalho de campo. O autor refere, o
entusiasmo com que Aquino de Bragança em 1980, no centro de Estudo Africanos
de Universidade Eduardo Mondlane acolheu a sua ideia da recolha da literatura
Oral. Embora a recolha do corpus tenha sido efectuada nas comunidades do Vale
do Zambeze, o tema interessa à nossa problemática pela sua proposta
metodológica.

Segundo Lourenço do Rosário, a técnica da escrita, nas sociedades da escrita serve


para “uma transmissão de conhecimentos que perpétua a hegemonia social, onde o
núcleo familiar é substituído pela mediatização do sistema de ensino (ROSÁRIO,
1986, p. 49) “Essa preocupação do grupo dominante é perpetuar-se inibe o
indivíduo e a sua criatividade. É por isso que, muitas vezes, à margem desta
aprendizagem mediatizada, o indivíduo procura, através de actos criativos
expressar as suas interrogações, os seus protestos, o seu posicionamento individual
representando o mundo de uma forma subjectiva e em algumas vezes em confronto
com os valores que lhe foram transmitidos. No entanto, o que tem acontecido, na
generalidade, é o ato de criação, na situação de escrita, reproduzir normas e valores
de interesse de classe que lhe permite ter acesso aos mecanismos de divulgação”
(ROSÁRIO, 1986, p. 49). A esta educação erudita, contrapõe Rosário a educação
das sociedades da oralidade onde “a educação se associa à arte e ao ato criativo em
função da das preocupações, manutenção e prosperidade do grupo comunitário”
(ROSÁRIO, 1986, p. 50) Esta dupla função (educativa e criativa) efectua-se em
função da manutenção do grupo, é segundo Rosário, uma característica das
“sociedades da oralidade”; ao passo que as “sociedades da escrita” privilegiam o
carácter instrumental da escrita (uma educação instrumental), ou valorizam a
estética desligada da ato educativo (uma estética pela estética).

Como ato cultural e criativo a narrativa oral, na perspectiva saussuriana onde a


língua é um sistema significante, e a língua – oralidade corresponde à sua
objectivação social. A língua seria então a deposição das normas colectivas (tal
como sucede na fixação do texto escrito, que é uma mediação desta) e a fala –
oralidade corresponderia à interacção do conteúdo da narrativa com o narrador e o
seu público. A fala, come mediação permite ultrapassar a fixação do texto escrito,
e deixa ao artista a liberdade do ato criativo. Note-se que esta liberdade criativa é
condicionada pela conformidade com as normas e com o público.

A partir dessa reflexão, defende Lourenço do Rosário, verifica-se uma distinção


entre o processo de análise da literatura oral, da literatura escrita. Nesta, a
objectivação é feita pela língua/fala (como norma), enquanto na oralidade a
objectivação é feita pela própria língua, inserindo-se portanto no próprio ato
criativo. Com esta distinção, Lourenço do Rosário pretende ultrapassar a ideia de
que a oralidade corresponderia a um arquétipo da literatura, como uma outra
forma, mais primitiva. (ROSÁRIO, 1986)

No campo teórico Lourenço do Rosário trabalha ainda a questão das narrativas


orais como objeto de conhecimento, justificando com integração categorial de
formas consideradas características da oralidade, como são os contos, os mitos, as
lendas fábulas. Segundo Rosário não existe entre essas formas diferenças de
natureza. A diferenciação entre essas narrativas é pelo seu grau, ou pela função que
desempenha em termos de oposições. Depois de analisar a questão a pertinência da
problemática desta “literatura oral” , que nas sociedades modernas tem sido
remetidas para o universo “das crianças”. Ora Rosário defende, na esteira de outros
autores, a existência de dois tipos de narrativas: as narrativas que se relacionam
com as questões de conservação da comunidade e as narrativas sobre a
exemplaridade dos actos individuais. No primeiro caso, temos como exemplo uma
função mais mítica, com formalismos narrativos mais rígidos. No segundo caso, a
função é a apresentação dos actos significativos, onde a personalidade assume
características mais abertas, sendo que nestas encontramos um apelo à ação
limitada pelos vários interditos sociais. Nos actos da oralidade é fundamental a
ritualidade da narrativa. (ROSÁRIO, 1986)

Em termos de morfologia da narrativa da oralidade, Lourenço do Rosário distingue


o objeto pela sua génese. Às narrativas que são geradas por uma situação de
carência inicial, que implica a sua ultrapassagem, são narrativas ascendentes. Neste
tipo de narrativas encontram-se todas a formas míticas, os exemplos de ação
comunitária, e actos de heroísmo ou bravura. Este tipo de narrativa, segundo
Rosário poderia constituir um arquétipo da forma de narrativa e que corresponde à
vontade de futuro (exemplificado pela normalmente apoteótica conclusão).
Representaria a consciência do ser (ou a perda da idade do ouro). (ROSÁRIO,
1986)

A metodologia que Lourenço do Rosário adopta, foi desenvolvida pelo formalista


russo Vladimir Propp . Na análise do corpo de narrativas pressupunha a sua
aplicação num universo social uniforme, e colocava como hipótese que seria
através da narrativa que as comunidades adequavam a sua experiencia no mundo.
Portanto, este tipo de narrativa ascendente opunha-se às narrativas fundadoras,
míticas, em termos funcionais e morfológicos. Estas narrativas são classificadas
como descendentes. Partem dum problema e falam das formas e das soluções que
existem para a resolução do problema. Essas soluções correspondem a formas de
vida, a filosofias de vida e são, no tempo dinâmicas, porque representam o
ajustamento da comunidade à sua história, à sua memória, e ao seu devir.

Lourenço do Rosário ultrapassa as condicionantes do método formalista de Propp,


adicionando-lhe a necessidade de compreensão do sistema de funcionamento social
da comunidade. “Como ninguém pode afirmar que conhece uma língua só pelo
fato de ter estudado a sua sintaxe, porque o domínio desta não permite, só por si
deduzir qual o léxico, nem o valor semântico dos seus enunciados, assim, ao nível
da narrativa de transmissão oral não é suficiente se não for completada com o
conhecimento etnográfico da comunidade que produz essa narrativa”. (ROSÁRIO,
1986, p. 81) Defende Rosário a complementaridade entre narrativa de tradição oral
e a etnografia, que representam uma relação entre o significante e o significado no
contexto em que se verifica a sua relação com outras narrativas, conforme a
proposta de Saussure.

No seu trabalho vai apoiar-se ainda nas propostas de Denise Paulme que através
duma análise específica dos contos africanos opera algumas adaptações
metodológicas. Mantendo a macro tipologia ascendente/descendente, a autora parte
da análise da estrutura narrativa mais simples para o mais complexo. Assim, na
narrativa ascendente à uma situação inicial de carência (1), seguida da
apresentação das provas (2) à qual se segue o processo de ultrapassar as
dificuldades (3). Por vezes, nesta narrativa verifica-se a ocorrência da magia (que
ajuda a solucionar o problema). Dentro desta classificação ascendente, encontram-
se várias variantes. Igualmente no âmbito das narrativas de tipo ascendente
apresentam-se ainda algumas outras categorias, como por exemplo de interdição ou
submissão à tradição (fidelidade), transgressão, punição. Há ainda outro tipo de
combinações, que resultam de aplicações de esquemas desonestos, (truque) que
pode ser aberto (revelado) ou fechado (oculto). Acrescenta ainda, em relação à
morfologia das narrativas de tipo cíclico (que se ajustam aos mitos) em espiral, em
espelho (que se aplicam às narrativas iniciáticas) em ampulheta (que representam
comportamentos diferentes. O critério e a grelha de classificação dependem, nesta
metodologia, dos sentimentos das personagens. Em suma, a proposta de trabalho
de Lourenço do Rosário tem como objectivo principal analisar a narrativa da
oralidade em busca das correspondências entre as narrativas e o universo social
(ROSÁRIO, 1986, p. 112)

Mas vejamos como é que este assunto tem vindo a ser trabalhado em Moçambique.
A narrativa oral, em Moçambique tem tido a atenção de vários projetos editoriais.
Por exemplo a Colecção Cinco Mares, da Editora Paulista Mar Além (CAVACAS,
2001) publica uma recolha de Provérbios Orais Moçambicanos . A intenção da
publicação desse tipo de textos “em estado bruto” tem um objectivo de contribuir
para a sua preservação em face da percepção de ameaça de desaparecimento e um
compromisso com a divulgação “da noção de identidade que anima a história
destas gentes e destas terras” (CAVACAS, 2001, p. 9). Trata-se portanto de uma
antologia de textos sem uma abordagem crítica.

Um outro trabalho, de Maria Fernanda Afonso “O Conto Moçambicano: Escritas


Pós-coloniais” (AFONSO, 2004,) vem também tratar da questão do conto, no
âmbito da construção das identidades culturais. A questão da diversidade cultural
do país, das múltiplas referências que se conhecem, encontra naturalmente uma
primeira evidência ao nível dos contos tradicionais. Neste texto, que é o resultado
dum doutoramento a autora, depois de longamente ter apresentado um discurso
sobre a história de Moçambique, com particular detalhe na sua história recente
afirma: “A literatura tem desempenhado, sem dúvida, um papel muito importante
na construção da identidade nacional moçambicana. Os escritores de primeira
geração identificam-se com o movimento de libertação da FRELIMO, e
acreditaram inabalavelmente no novo projecto de sociedade que ele propunha.
Comprometeram-se pela palavra com o combate anticolonial e vários conheceram
o exílio e a prisão.” (AFONSO, 2004, p. 34) Ainda segundo a autora, após estes
primeiros anos de euforia, foi entre os escritores que surgiram os primeiros sinais
de descontentamento social. Esta “imbricação da ficção com a história, segundo o
conceito de refiguração cruzada de Paul Ricoeur toma lugar no seio da literatura
moçambicana. Ferida pela desilusão da revolução inacabada, atravessada por
hibridismos multiculturais e linguísticos, a escrita assume-se como testemunha da
pluridiversidade da história, denunciando as ambiguidades, as mentiras e os
conflitos sociais, mas sem a preocupação de produzir um discurso monológico e
autoritário” (AFONSO, 2004, p. 34) E é nesse momento, segundo a interpretação
da autora, que a literatura, melhor os escritores moçambicanos se voltam para a
busca das raízes, para a busca das narrativas curtas “que parece testemunhar uma
vontade de criação dum projecto de escrita, articulada em torno duma herança
cultural e linguística. As vozes narrativas instauram a dialéctica entre o que sempre
pertenceu a África e o que ela recebeu de outrem. Elas interpelam o passado,
propondo uma certa percepção do mundo, marcado por um olhar lançado com
inquietação sobre a sociedade pós-colonial” (AFONSO, 2004, p. 35-36). É nesse
contexto que a autora centra o seu trabalho. O conto como expressão da identidade.

O interesse para o nosso trabalho de mobilizar esta reflexão sobre a literatura oral e
a literatura moçambicana recente centra-se precisamente no fato de através dela
podermos problematizar a tensão entre a tradição e modernidade no âmbito da
afirmação das hegemonias. Esta tensão apresenta-se muito frequentemente como
uma contradição. Entende-se a tradição como uma forma original (pura) e a
modernidade (como uma dissociação construída sobre essa originalidade inicial
por efeitos exteriores com o objectivo de a recentrar num outro tempo, concebido
como mais moderno). Ao conceber a tradição como uma forma seminal sobre a
qual o devir vai exercer um processo de transformação, é muitas vezes visto como
uma corrupção da pureza da harmonia original. O ato criativo, que constrói uma
nova visão da tradição na modernidade é assim proposto como uma nova narrativa
de legitimação da hegemonia.

Compreende-se assim que em Moçambique, após da sua experiencia


revolucionária, onde as narrativas se reconstruíam em torno dos novos heróis, a
narrativa ficcional se tenha procurado inserir e recentrar sobre a busca duma ideia
de originalidade ficcional, que alicerçada na tradição reconstrói uma narrativa
orientada para as visões então hegemónicas. “Em África, a prática de uma escrita
literária aparece como consequência das novas relações sociais económicas e
políticas criadas pela colonização, que tem profundamente afectado o universo
mental do homem africano, para quem a palavra é revestida do carácter sagrado
ligado às suas origens” (AFONSO, 2004, p. 36).

Não estando completamente de acordo com as palavras da autora, quando nas suas
conclusões que aponta a narrativa curta, do conto, como uma busca duma
especificidade africana feita com base na análise das raízes para construir o futuro ,
e ultrapassando aquilo que nos parece uma falsa oposição (entre o tradicional e o
moderno), na medida em que o conto, como vimos, pode ser também uma releitura
do presente, interessa-nos sobretudo inserir a problemática a utilização do conto
tradicional e moderno na prática museológica.

A perspectiva museológica pode cruzar-se com perspectiva da crítica literária na


análise do processo narrativo. No entanto, com verificamos esta última perspectiva
utiliza como mediação o texto escrito, implicando portanto um ato criativo dum
autor, um processo de divulgação e uma apropriação por um leitor. Esse processo
que decorre num tempo diferente do tempo museológico, onde oralidade, tal como
temos vindo a salientar se pode constituir como um processo de interacção no
âmbito da dinâmica do grupo. No processo museológico, não interessa tanto a
mediação da escrita (embora não a exclua necessariamente), nem interessa tanto a
autoria do texto (sobretudo se trabalha sobre os contos que são narrados pela
memória colectiva), mas interessa fundamentalmente entender o processo pelo
qual, através da narração oral, a mensagem e a visão do presente vai sendo
actualizada pela dinâmica social.

Na moderna narrativa moçambicana, vários são os autores que usam a técnica


narrativa do conto, para um discurso sobre o presente com uma forte conotação
sobre o devir. Nada impede de os utilizar no âmbito dos processos museológicos.
No entanto, onde nos parece ser particularmente relevante utilizar o conto como
técnica de expressão duma comunidade é exactamente no âmbito da sua expressão
como recurso oral, como expressão duma narrativa comunicacional com base na
memória social da comunidade. Mais à frente regressaremos a esta questão e
verificaremos como é que esse processo partindo de uma referência no passado se
projecta no futuro pela ação no presente. Um processo onde a narrativa (como
forma de comunicação) junta o emissor e o receptor fazendo-os participar numa
permanente reconstrução de significados. E é neste processo que nos parece
pertinente incluir os fundamentos da intervenção museológica, enquanto operação
de conservação, divulgação, investigação e comunicação e criação de inovação na
intervenção na comunidade.a
CARLOS Zinanga

LITERATURA E ORALIDADE AFRICANAS: MEDIAÇÕES LITERATURE


AND AFRICAN ORALITY: MEDIATIONSMaria Nazareth Soares
Fonseca1RESUMO: O texto discute alguns pontos de vista teóricos sobre o
conceito de oralidade, destacando os sentidos dados aos termos oratura e oralitura
e, a partir dessa discussão, considera o uso que diferentes escritores africanos
fazem da oralidade, procurando analisar textos desses escritores em que se observa
a apropriação de falas e cantos orais, bem como outras formas de mediação entre
voz e letra, produzidas por propostas literárias africanas de língua portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: oralidade, literatura, letra e voz, mediaçõesABSTRACT:
The article discusses some theoretical views on the concept of orality, highlighting
the meanings attributed to the terms orature and oraliture. From this discussion, we
also consider the use that different African writers give to orality, trying to analyze
texts of these writers where we can observe the appropriation of speech and oral
chants, as well as other forms of mediation between voice and lyrics produced by
African literary proposals in the Portuguese language.KEYWORDS: orality,
literature, letter and voice, mediations O historiador belga Jan Vansina, nascido,
em 1929, na Antuérpia, Bélgica, em texto que trata da tra-dição oral em
civilizações africanas do Saara, publicado em 1982, ressalta a importância da
oralidade para vários povos africanos para os quais a palavra não é “apenas um
meio de comunicação diária, mas também um meio de preservação da sabedoria
dos ancestrais” (VANSINA, 1982, p. 157). O historiador considera que, para os
povos africanos que estudou no Congo belga e Ruanda, “a palavra tem um poder
misterioso, pois cria coisas” (VANSINA, 1982, p. 157). As constatações
decorrentes de seus estudos permitiriam ao historiador afirmar que, segundo os
povos estudados por ele, a oralidade “é uma atitude diante da realidade e não a
ausência de uma habilidade” (VANSINA, 1982, p. 157). As considerações de J.
Vansina se aproximam das do malinês Hampâté Bâ, que também ressalta a 1
Professora Doutora da PUC Minas, na graduação e pós-graduação. Pesquisadora
1D do CNPq; nazareth.fonseca@gmail.com.FONSECA, Maria Nazareth Soares.
Literatura e oralidade africanas: mediações. Revista Mulemba / Revista do Setor de
Letras Africanas de Língua Portuguesa - Departamento de Letras Vernáculas.
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 14,
número 2, jul-dez de 2016, p.12-34. ISSN 2176-381X
[http://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/]

13Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v.14, n.2.Literatura e oralidade africanas:


mediaçõesimportância da oralidade para os povos africanos que acreditam serem o
“cérebro dos homens os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo” (HAMPÂTÉ
BÂ, 1984, p. 181). Ao considerar a importância da pa-lavra para os povos da
savana ao sul do Saara, Hampâté Bâ (1984, p. 183) destaca o fato de que, para
esses povos, a palavra é considerada “uma força fundamental emanada do Ser
Supremo Maa Ngala, o criador de todas as coisas”. Na visão dos povos estudados
por Hampâté Bâ, Maa Ngala depositou em Maa, o homem, seu interlocutor,
capacidades que se manifestam a partir da fala. Tais capacidades constitutivas do
homem são postas em ação pela fala que “pode criar a paz, assim como pode
destruí-la” (HAMPÂTÉ BÂ, 1984, p. 185). A oralidade é vista, pois, como um
sistema de comunicação não somente entre os homens, mas também entre esses e o
sagrado. Esse sistema se organiza a partir da modulação da voz que é capaz de
reforçar os traços genealógicos da comunidade e de perpetuar os saberes herdados
das gerações passadas. As formas fundamentais das tradições orais descritas por
Vansina e as estratégias de que se valem os tradicionalistas e os grandes
conhecedores da ciência das plantas ou da ciência da vida, referidos por Hampâté-
Bâ, revelam propriedades de uma arte de arquivamento e de transmissão assumidas
pela palavra falada e ouvida. Textos da tradição de vários regiões da África são
recordados na íntegra pelos memorialistas que, como acentua Hampâté Bâ, são
capazes de guardar “os fatos passados transmitidos pela tradição” e informar sobre
os fatos contemporâneos (HAMPÂTÉ-BÂ, 1882, p. 188). Os tradicionalistas são,
portanto, agentes de um sistema que congrega formas e gêneros orais importantes
para a formação das novas gerações e para a manutenção do equilíbrio dos grupos.
Se para muitos povos africanos a palavra é sagrada porque é intermediada pela
força do Ser Supremo, para outros povos do continente e para várias culturas que
tiveram contato com os saberes africanos através da escravidão, a fala guarda a
energia da força vital que está presente no sopro que deu vida ao homem e naquilo
que ele tira de si através da palavra proferida. De alguma forma, os estudiosos
percebem a oralidade como uma manifestação inerente ao homem, permitindo-lhe
expressar a integridade de seus pensamentos. Por outro lado, sem discutir a
percepção mágica da capacidade humana de manifestar-se pela palavra oral,
Walter Ong, no livro publicado em 1982, Orality e literacy. The technologizing of
the word, em português, Oralidade e cultura escrita, discute o que considera ser a
importância capital da linguagem oral: sua capacida-de de comunicação
espontânea e, além disso, sua propriedade de expressar o pensamento do homem
que, para Ong (1998, p. 15), está relacionado “de forma absolutamente especial ao
som”. Ong (1998, p. 16) considera que o estudo científico da linguagem, “durante
séculos e até épocas muito recentes, rejeitou a oralidade”. Questões importantes
sobre a oralidade, segundo o estudioso, foram por vezes descartadas por pontos de
vista interessados em defender a superioridade da escrita porque consideravam a
oralidade um estágio da comunicação humana anterior à escrita. A visão da
superioridade da escrita acabou por descon-siderar a importância do acervo de
produções orais conservadas pela memória, como o de muitas culturas tradicionais
africanas, porque só se acreditava nos acervos de textos escritos conservados por
bibliotecas. Por outro lado, os gêneros orais guardados pela memória, em espaços
significados pela cultura oral, muitas vezes eram estudados por pesquisadores
oriundos de espaços de predominância escrita, o que fazia com que a produção oral
fosse discutida em comparação com o texto escrito, assumindo, por vezes, pontos
de vista comparativos em que a escrita ficava mais valorizada.Motivados, talvez,
pela necessidade de reverter tal discussão, estudiosos africanos, dentre vários,
Joseph Ki-Zerbo, da Burkina Faso, Hampâté Bâ, do Mali, Wa Thiong’o, do
Quênia, bem como Lourenço do Rosário, de Moçambique, realizaram importantes
estudos de acervos orais de culturas de seus países de p. 12-23, jul/dez 2016. ISSN:
2176-381X

14origem, ressaltando a importância das produções aprendidas a partir de práticas


que valorizam o ouvir e a repetição do que é apreendido oralmente. Máximas,
provérbios, lendas, estórias e outras produções carac-terísticas da tradição oral
fazem parte desse grande acervo que a memória dos “velhos de cabelos brancos”
procura guardar, buscando restaurar feições de uma “paisagem outrora imponente,
ligada em todos os seus documentos por uma ordem precisa” (Ki-ZERBO,1982, p.
27).A esse conjunto de textos orais próprios de cada cultura, alguns estudiosos,
como Lourenço do Ro-sário (2001), de Moçambique, e Inocência Mata (2001), de
São Tomé e Príncipe, denominam oratura2. O termo vem sendo também usado por
Ngugi wa Thiong’o, em vários textos de sua autoria, como no artigo “Notes
towards a Performancy Theory of Orature”, publicado em 20073. Nesse importante
artigo, Ngugi wa Thiong’o explica as razões que o levam a usar o termo oratura em
vez de literatura oral, retomando sentidos que, segundo ele, foram defendidos pelo
linguista de Uganda, Pio Zirimu, na década de 1960. Outros estudiosos preferem
usar o termo oralitura, tradução do termo francês oraliture, que Édouard Glissant
(1981), da Martinica, afirma ter sido criado pelo haitiano Ernst Mirville, em 1974.
A informação de Glissant sobre a origem do termo oraliture condiz com a expressa
pelo crítico haitiano, radicado no Canadá, Maximilien Laroche. Laroche também
considera ter sido o termo oraliture empregado, pela pri-meira vez, pelo haitiano
Ernst Mirville, em nota de um artigo publicado em abril de 1974, para estabelecer
analogia com o termo littérature e afastar-se dos sentidos de oratura, que, para ele,
fixa a atenção apenas na voz. Como informa Laroche, Mirville, tanto na referida
nota, quanto em textos posteriores em que volta a tecer considerações sobre o
termo, quer acentuar sentidos que abarcariam não apenas as produções orais
guardadas pela tradição de fala e canto, inclusive as que caracterizam as
manifestações da voz em produções na época atual (LAROCHE, 1991, p. 15-19).
Em concordância com as discussões propostas por teóricos africanos e antilhanos,
pode-se dizer que a oratura se voltaria, mais especificamente, ao acervo de
produções orais pertencentes a culturas acústi-cas, aquelas que, segundo Miguel
Lopes, natural de Moçambique, têm no ouvido o órgão de captação da experiência
narrada pela voz (LOPES, 1995, p. 209). Poder-se-ia acrescentar que as narrativas
orais do universo da oratura, como as considera Lourenço do Rosário e mesmo
Inocência Mata, relacionam-se com as atividades da vida “entendida como todos
os sistemas de elementos que concorrem para a sobrevivência da comunidade”
(NUNES, 2009, p. 47). Logo, para esses estudiosos, a oratura guardaria as
produções orais características de comunidades acústicas. Oraliture, para
estudiosos como Mirville, Laroche, Chamoiseau e Confiant, seria o acervo oral de
estórias guardadas pela memória de grupos e, em muitos sentidos, estaria próxima
do que o próprio Glissant denomina literatura oral. Deve-se considerar que o termo
oralitura vem sendo utilizado pela estudiosa brasileira Leda Martins em sentido
que, embora leve em conta sua aproximação com a letra, com a escrita, assume o
radical “litura” como marca da clivagem que o configura. Como ela mesma
explica, o termo liga-se à escritura, à littera, mas é marca da “alteração
significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das culturas e de suas
representa-ções simbólicas” (MARTINS. In: FONSECA, 2000, p. 83-84). No texto
“A oralitura da memória”, incluído no livro Brasil afro-brasileiro, organizado por
Maria Nazareth Soares Fonseca, publicado em 2000, a estudiosa explica que, em
sua concepção, o termo oralitura remete ao “âmbito da performance [...], seja
desenhada na letra performática da palavra ou nos volejos do corpo” (MARTINS.
In: FONSECA 2000, p. 84). É possível dizer que os sentidos propostos por Martins
estão anunciados, de alguma forma, nas explicações de Mirville sobre os sentidos
do termo criado por ele, e também às discussões do historiador 2 Inocência Mata
me afirmou que usa também o termo oralitura, em alguns textos, com o mesmo
sentido de oratura.3 Ver referência completa do artigo no final deste texto.

15Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v.14, n.2.e escritor britânico Kobena Mercer
sobre “a emergência de culturas híbridas” no mundo atual. Nas refle-xões de
Mercer, “a emergência de culturas híbridas”, no seio de nações como a Inglaterra,
mostra-se como assunção da força subversiva de processos culturais que
desestabilizam e carnavalizam a língua da nação, “através de inflexões
estratégicas, que fortalecem novos índices de valor e outros movimentos
performati-vos nos códigos semântico, sintático e léxico”. (MERCER, 1994, p.
63). No caso específico da produção literária dos países africanos de língua
portuguesa, vários estudiosos têm utilizado expressões diversas4 para indicarem
características do trabalho literário que remete a usos, pelo escritor ou pela
escritora, de recursos próprios do domínio da oralidade. Ana Mafalda Leite (1998)
discute algumas afirmações de teóricos que, em sua opinião, defenderam uma
visão essencialista da oralida-de, vendo-a como um traço característico da
produção literária africana que estaria “radicada nos “Mestres” africanos, os griôs”,
sendo indicadora de uma “noção de continuidade entre a tradição oral e a
literatura” (LEITE, 1998, p. 14). Tais percepções fundamentam considerações
sobre as literaturas africanas, definidas a partir da “forma como fazem eco, ou
filtram, as tradições orais” (LEITE, 1998, p. 27), tornadas elemento importante da
autodefinição exigida não apenas pelos teóricos europeus, mas também por
teóricos africa-nos que consideram a oralidade como uma das marcas das culturas
africanas. Para muitos, a riqueza das tradições orais define modos de ser e de
perceber o mundo, fazendo, portanto, mais sentido para os povos do continente. É
claro que essa posição faz parte de um critério de valoração de uma produção
textual oral que se mostraria mais afeita aos africanos e, por extensão, às pro-
duções literárias produzidas por escritores africanos. Decorre dessa posição a ideia
de herança oral como traço revelador da especificidade literária africana que se
voltaria, por isso, aos gêneros orais praticados pelas sociedades pré-coloniais no
continente africano. Ana Mafalda Leite (1998) considera que, na verdade, muitos
estudiosos, ao defenderem a força das construções orais nas sociedades africanas,
acabaram por fortalecer a oposição entre oralidade e escrita, ainda quando
defendiam a rasura das fronteiras entre os dois campos. É pertinente ainda
considerar que a defesa à herança calcada na oralidade que seria assumida, de
alguma forma, pelas literaturas africanas faz parte de um processo de afirmação da
identidade dessas lite-raturas, em oposição aos valores defendidos pelas literaturas
ocidentais. O que pode ser entendido como uma proposta de autenticidade literária
– aliás, presente em movimentos como a Negritude e o Negrismo cubano –não
significaria que os escritores africanos em geral e os escritores africanos de língua
portuguesa, em particular, valham-se do contato concreto com as tradições locais e
nem mesmo com as línguas locais de seus países, trazendo para seus textos uma
experiência concreta com os falares orais de seus países. Isso porque, como
acentua Leite (1998, p. 30), grande parte dos escritores africanos passou pelo
sistema de assimilação, outros têm ascendência europeia, logo herdaram outros
costumes, e quase todos são oriundos dos centros urbanos e nem sempre têm
contato constante com os espaços rurais de seus países. Acrescente-se a esses
fatores a fragmentação dos valores tradicionais nos centros urbanos, mesmo que se
entenda que, na época atual, os espaços rurais podem ser atravessados por
ressaibos da modernização que, aos poucos, alcançam os cantos mais distantes dos
centros urbanos. Todos esses fatores permitem considerar que a defesa da presença
de traços profundos da oralidade na produção escrita dos escritores africanos de
língua portuguesa não pode ser vista a partir de uma coerência imaginada, mesmo
com relação a escritores de um mesmo país. É preciso relativizar algumas
afirmações sobre peculiaridades das literaturas africanas que se mostram herdeiras
de uma oralidade concreta, bem como os modos como as categorias de oralidade
foram 4 Os termos oratura, literatura oral, oralitura aparecem em discussões
teóricas, muitas vezes, com sentidos semelhantes. Literatura e oralidade africanas:
mediaçõesp. 12-23, jul/dez 2016. ISSN: 2176-381X

16construídas e entendidas para defender pressupostos, nem sempre verdadeiros,


sobre uma essencialidade africana oral que se mantém, sem alteração, sendo a
fonte em que bebem os escritores e escritoras do continente (LEITE, 1998).
Considere-se que a afirmação de que a oralidade seja essencialmente africana
acaba por reiterar a de que a escrita seja a marca essencial da cultura europeia. As
duas afirmações implicam uma valoração ideológica de percepções pautadas na
oposição oralidade e escrita, sem levar em conta a existência da es-crita antes da
chegada dos colonizadores europeus ao continente africano e o fato de a oralidade
ser uma característica da história de muitos povos europeus. É nesse sentido que
Paul Zumthor destacará a força da poesia oral medieval, ainda que considere a
efemeridade do texto oral, contrapondo-o ao escrito. Embora tenha avançado nas
reflexões com relação às manifestações orais da poesia medieval, acaba por insistir
na bipolaridade oral/escrito. No caso específico das literaturas africanas de língua
portuguesa, é importante considerar que elas surgem utilizando a língua portuguesa
como meio de expressão escrita, mesmo em espaços de predominância oral, como
Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, e que, embora as manifestações
em línguas locais sejam valorizadas como manifestações da cultura nacional5, as
produções literárias são escritas majoritaria-mente no idioma português. Há uma
consciência evidente, por parte dos escritores, da distância entre os tex-tos que
produzem e os interlocutores textualmente construídos. Essa percepção figura, por
vezes, em textos literários como “Mussunda amigo”, de Agostinho Neto, em que o
eu lírico condói-se da impossibilidade de o poema poder ser entendido por aquele a
quem é dedicado. No poema, tanto o nome próprio Mussunda, nome comum em
kimbundo, e os versos: “O ió kalunga ua mu bangele!/O io kalunga ua mu bangele-
lé-lélee [...]”, escritos na língua referida, concretizam a intenção do poeta de
transpor a barreira imposta pela escrita, ex-pressa em versos como “E escrevo
versos que não entendes/compreendes a minha angústia” (AGOSTINHO NETO,
1987, p. 92). Na época em que o poema foi escrito, a maior parte dos angolanos, e
dos africanos em geral, não tinha acesso à leitura e à educação, sendo, portanto,
altíssimo o número de analfabetos. A mesma questão está expressa no poema
“Deixa passar o meu povo”, de Noémia de Sousa, de Moçambique, na referência à
urgência dos que sabiam ler e escrever, como a própria escritora, transfor-marem-
se em “instrumento” necessário à expressão do grito do povo contra “misérias,
janelas gradeadas, adeuses de magaíças” (SOUSA, 2001, p. 58), que,
metaforicamente, referem-se aos sacrificados pelos processos de exploração
implantados pela colonização em Moçambique. Nos versos do poema de Noémia
de Souza, ecoa o grito indignado do eu poético: “Oh, deixa passar o meu povo!”
(SOUSA, 2001, p. 59), nascido da revolta contra “dores, humilhações” que o gesto
da escrita espalha pelas palavras que cobrem “o virgem papel branco”. Em Angola
dos anos 1950, o poema “Castigo pro comboio malandro”, de António Jacinto
(1988, p. 132-133), concretiza um diálogo mais próximo com as construções orais,
apropriando-se de ritmo mais solto e apostando em sonoridades – “hii hii hii; múu
muu muu” –, em onomatopeias de valor metonímico/metafórico: “tem-quem-tem
te-quem-tem te-quem-tem”, procurando se apropriar de recursos que enriquecem a
fala do povo. A mesma intenção teve o poeta José Craveirinha, de Moçambi-que,
quando, no poema “Mamana Saquina” (CRAVEIRINHA, 2012, p. 140-142), se
apropria de várias construções do uso oral da linguagem para denunciar as
artimanhas do sistema colonial, sobretudo a apro-5 Citem-se a valorização do
crioulo cabo-verdiano, na proposta de Claridade (1936), a defesa da imersão na
cultura oral preconizada pelos criadores do Movimento “Vamos descobrir Angola
(1948). Inocência Mata afirma, no caso de São Tomé e Príncipe, que o crioulo são-
tomense, embora falado por 85% da população, não é a língua de Estado, “ainda
que seja a língua de força social”. (MATA, 2010, p. 18).

17Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v.14, n.2.priação da força de trabalho dos


africanos a partir do sistema do contrato. No poema, o movimento do “comboio de
magaíza” é simbolizado por expressão que faz alusão ao processo que transforma
João Tavasse, o agricultor que foi à administração tentar conseguir sementes para
plantar, em contratado, em peça a ser apropriada pela máquina colonial. A
referência ao contrato transforma-se em significante do movimento do trem que
permite que os versos
“João-Tavasse-foi-nas-minas/João-Tavasse-foi-nas-minas/João-Tavas-se-foi-nas-
minas” funcionem, ao mesmo tempo, como denúncia e como apropriação de
recurso oral de grande efeito criativo no poema. As histórias guardadas pela
oratura servem de motivo para a construção de poemas como “Serão de menino”,
de Viriato da Cruz (CRUZ. In: FERREIRA, 1988, p. 168-169), em que as
referências concretas a cenários onde se expõem rituais da oralidade permitem
apreender momentos em que avós contam “con-tos bantus” para os meninos, “na
noite morna, escura de breu”, povoada por “vento irado” que faz bater as “portas
bambas” e “xuaxalhar” os ramos “de altas mulembas”. A voz da contadora se
deixa ouvir no poema, porque o eu lírico a invoca através de recursos próprios à
escrita, indicando a voz da ave com o uso de aspas que abrem e fecham a sua
contação: Era uma vez uma corçadona de cabra sem
macho............................................Matreiro, o cágado lentotuc... tuc... foi
entrandopara o conselho animal...(“– Tão tarde que ele chegou!»)Abriu a boca e
falou – deu a sentença final:“– Não tenham medo da força!Se o leão o alheio
retém– luta ao Mal! Vitória ao Bem!tire-se ao leão, dê-se à corça.” (CRUZ. In:
FERREIRA, 1988, p. 168-169)Do mesmo poeta angolano Viriato da Cruz, o
poema “Sô Santo” exibe em sua composição usos orais da língua portuguesa e
trechos de canções populares que circulam pelos espaços de oralidade em Luanda.
A estrofe abaixo demonstra os recursos da oralidade apropriados pela escrita do
poema quando procura encenar ambientes dos musseques da cidade de Luanda, ao
mesmo tempo que expõe questões relativas ao processo de urbanização da cidade,
particularmente às referentes à proposta de expulsar as populações locais para fora
dos limites da cidade6. Essas questões estão anunciadas em estrofes do poema que
aludem a usos orais da linguagem usual dos espaços habitados pela população mais
pobre da cidade angolana, pro-curando registrar, foneticamente, os sons da
oralidade:Quando sô Santo passaGente e mais gente vem à janela:– “Bom dia,
padrinho...”– “Olá!...”– “Beçá cumpadre...”– “Como está?...”– “Bom-om di-ia sô
Saaanto!...”– “Olá, Povo!...” (CRUZ. In: FERREIRA, 1998, p. 166)6 Ver o artigo
de Isabel Cardoso, “Sinais de modernidade na arquitetura popular de Luanda”, em
que a autora faz referência ao processo de urbanização a que o poema de Viriato da
Cruz remete. Disponível em:
http://cargocollective.com/arquitecturamodernaluanda/Texto-4. Acesso em: 19
ago. 2016, às 16:26.Literatura e oralidade africanas: mediaçõesp. 12-23, jul/dez
2016. ISSN: 2176-381X

18Em outra estrofe, o poeta inscreve no poema versos de canções cantadas pelas
“beçanganas bonitas /que cantam pelas rebitas” em língua oral:Muari-ngana
Santodim-domualó banda ó calaçaladim-domchaluto mu muzumbodim-dom...
(CRUZ. In: FERREIRA, 1998, 166)É importante ressaltar que várias produções
literárias referentes ao final dos anos 1940 e início dos anos 1950 indicam a
intenção de escritores e intelectuais de trazerem, para as criações literárias, os
costumes de espaços habitados pela população pobre, majoritariamente angolana,
os chamados musseques periféricos da cidade de Luanda em que se conservavam
muitos dos costumes característicos da população africana. No período aludido,
começam a ser conhecidas, em Angola, as produções literárias de Luandino Vieira
que, aos poucos, irão assumir traços nítidos das misturas de linguagem
características do univer-so encenado em seus livros e que se fazem elementos
identificadores de seu estilo, como a apropriação intencional de “marcas advindas
da língua quimbundo”7. Embora a apropriação do discurso popular e de
construções advindas do kimbundo seja entremeada de recriações e inventividades,
a sua intenção era apreender particularidades do kimbundo relacionadas ao uso dos
tempos verbais e das preposições (VIEI-RA, 1980, p. 60). A língua “misturada”,
característica do português que assume construções próprias do kimbundo, está
visível, em sua escrita, a partir do livro Vidas novas, escrito em 1962 e publicado
em 1975, que já exibe grande número de inovações provenientes da fala popular da
capital angolana. Luuanda, escrito em 1963, reforça o processo de misturas de
línguas e de inovações advindas da oralidade que atingirá seu máximo em obras
como Velhas histórias (1974) e João Véncio: os seus amores e em outras mais
recentes8.No romance João Véncio: os seus amores, publicado em 19799, a
apropriação da língua falada, conforme informa o escritor, mostra-se influenciada
pelo contato direto com um falante do português misturado, característico de
determinados espaços da cidade de Luanda10. A fala do protagonista João Véncio
mistura, na forma oral em que ele se expressa, construções morfossintáticas e
lexicais da língua portuguesa e do kimbundo, e de códigos dos discursos do Direito
e da religião cristã e de referências a conhecimentos “mal costurados” que invadem
a sua fala. Nesse romance, o pacto ficcional assume uma intenção interlocutiva de
que fazem parte os volteios característicos utilizados pelo protagonista João
Véncio desde o convite feito ao mudiê11, para assumir o jogo proposto por ele:
“Dou o fio, o camarada companheiro dá a missanga” (VIEIRA, 1987, p. 13). É
interessante observar que o contrato proposto estabelecerá as regras da relação
entre João Véncio e seu interlocutor e os lugares que cada um ocupará na cena
enunciativa. Quem tece os meandros da conversa é João Véncio que se vale dos
recursos de que lança mão para explorar recursos permitidos pela liberdade do
escritor de criar, ainda que esteja atento aos usos da língua popular, conforme
revela o escritor (VIEIRA, 1980, p. 58). A fala do narrador do romance resgata,
intencionalmente, as “mil cores de gente, mil vozes” (VIEIRA, 1980, p. 41) do
musseque que se misturam aos conhecimentos que o 7 Sobre essa questão, ver as
declarações do escritor no livro Luandino – José Luandino Vieira e sua obra
(estudos, testemunhos, entrevistas), organizado por Michel Laban (1980), p. 57-
62.8 Referimo-nos aos romances: O livro dos rios (2006), que pode ser
considerado “um reencontro com a impressionante linguagem que marcou
profundamente o itinerário da ficção de seu país”, conforme observa Rita Chaves,
em comentário publicado na Carta Maior, 21 dez.2006, e O livro dos guerrilheiros
(2009), o segundo volume da prometida trilogia De rios velhos e guerrilheiros.9
Todas as citações do livro, neste artigo, são feitas a partir da 2a. edição da Edições
70, 1987. 10 Sobre o uso da língua kimbundo nesse romance, ver FONSECA
(2014a) e FONSECA (2014b). 11 Conforme o escritor: “uma palavra quimbunda,
quer dizer: patrão, senhor” (VIEIRA, 1980, p. 59).

19Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v.14, n.2.protagonista foi assumindo em suas


muitas andanças, às muitas falas que ouviu nos diferentes lugares por onde andou,
antes de ser preso, acusado de “Tentativa premeditada de homicídio frustrado [...]:
tentativa de homicídio frustrado, isto é: premeditada tentativa de homicídio”
(VIEIRA, 1980, p. 14), conforme ten-ta explicar João Vêncio ao mudié. Os
recursos explorados pelo escritor corporificam um tipo de escrita tecida com as
múltiplas contas que formarão os fios da conversa que mantém com seu
interlocutor que motiva, com suas perguntas, a orquestração de um discurso
intencionado a apreender as muitas tonalidades que colorem a fala do protagonista
falador.No conto “Estória de família” (Dona Antónia de Sousa Neto), do livro
Lourentinho Dona Antónia de Sousa Neto & eu (1981)12, a inventividade do
escritor se mostrará de forma mais intensa. O narrador do conto, já nas linhas
iniciais, declara que a história retoma os ventos históricos, mas mistura-se a casos
da esfera particular, já que relatará os acontecimentos em torno de um almoço “de-
pedido” que se transfor-mou em “lição etnograstrológica para brasileiro ver”
(VIEIRA, 1991, p. 75). Desde o início da narrativa, configura-se o tom irônico do
narrador, bem como a intenção do texto de mergulhar em costumes e na tradição
angolana de festas, já alterados pelos “ventos históricos” e por demandas de uma
ordem que abriga as ordens sociais várias que o conto explora. Uma delas seria o
fato de a língua quimbunda ser deslocada para o lugar para onde ficará Dona
Antónia de Sousa, a velha bessangana que, aparentemente desterrada dos
acontecimentos que se dão na casa, deles participa, valendo-se de gritos e das
“palavras podres13” que as boas maneiras do anfitrião se esforçavam por
amenizar. Ao ser confinada na “sombra mandioqueira”, a velha lá ficou a “cuspir:
sonhar e espiar as coisas que chegavam; xingar as pessoas” (VIEIRA, 1991, p. 78).
É interessante observar que os lugares reservados aos “meus amicíssimos”, como
acentua o dono da casa, Damasceno de Sousa Neto, “todo anfitrioso” (VIEIRA,
1991, p. 76), não são suficientes para acomodar devidamente o grande número de
convidados que transformam o “plebeio almoço” em “ágape etno-patriótico”
(VIEIRA, 1991, p.77-78), enchendo “a casa de cheiros frescos e frutas” (VIEIRA,
1991, p. 79) e de maravilhas que as mãos das cozinheiras preparavam ciosas de
apresentar aos convidados a riqueza gastronômica do país, mesmo atentado para as
ordens de que “o almoço devia seguir a linha do simples, não funguissar”
(VIEIRA, 1991, p. 79).O conto, ao explorar os vários costumes que a tradição de
festas exigia nos salões angolanos do an-tigamente, detalha a riqueza do almoço,
com quitutes típicos da boa cozinha, da arte de bem receber todos os convidados
que vieram participar da riqueza das “iguarias e bebidas” (VIEIRA, 1991, p. 81)
que eram servidas ao som da música executada pelos Camundongos do Ritmo,
encarregados de substituir o Ngola Ritmo, que estava na cadeia. Com essas
informações, o narrador vai desfiando não apenas os detalhes do almoço, mas,
sobretudo, dando informações sobre os sinais do tempo em que o almoço acontece.
Embora o anfitrião desprezasse o quimbundo, a língua se exibia nos muitos
sotaques e nos acontecimentos que chegavam à festa, junto com os convidados que
enfrentavam “a poeira mussequeira como bênção” (VIEIRA, 1991, p. 83). As
muitas cozinheiras ficam responsáveis pela explosão dos “cheiros da comida e dos
guisados” exibidos por palavras e expressões quimbundas que temperam o texto
com sonoridades várias e imprimin-do neles detalhes que o narrador descreve com
riqueza, acompanhando a riqueza da festa e a dissolução de 12 Todas as
referências ao conto, neste texto, remetem à 2a. edição, de 1991. 13 Luandino
Vieira refere-se, em entrevista: “Eu creio que “palavras podres” é uma tradução, é
como se diz em quimbundo [...] é mesmo um palavrão, uma obscenidade”
(VIEIRA, 1980, p. 57).Literatura e oralidade africanas: mediaçõesp. 12-23, jul/dez
2016. ISSN: 2176-381X

20costumes que se exibe na sombra da mandioqueira, onde a velha Nga Antónia


pede, aos berros, fogo para seu cachimbo: “Ngi-bekele kala dia tubia!”14Ao se
fazer cenário de tempos marcados por prisões e desassossegos, o conto permite que
as mistu-ras, no nível dos enunciados e da diegese, figurem como construções
linguageiras que atravessam o léxico, a sintaxe e a semântica da língua imposta
pela administração de que faz parte Damasceno, como antigo che-fe-de-posto e
também “a senhora dona Antónia de Sousa – digo: nga Tonha dia Kaj‘vintém.”
(VIEIRA, 1991, p. 84), personagem de um cenário que o narrador registra com a
intenção” de assinalar os modos como a “vermelha poeira mussequísima”
(VIEIRA, 1991, p. 83) infiltra-se na festa, ou melhor, de apreender os detalhes de
uma festa que congrega falares, tradições e misturas muito próprias da cidade de
Luanda, em determinado período da colonização portuguesa. Na azáfama da festa,
o “doce xuxualho antigo” fica preso na “sebe das buganvílias, no gueto de
mandioqueiras” (VIEIRA, 1991, p. 87), onde a velha don’Antónia “que ninguém
não vê” grita “Tubia”. O narrador, muito irônico, acrescenta à cena seu sábio
comentário – “quem que ouve necessidades primi-tivescas em hora de musas
inspiradas?” (VIEIRA, 1991, p. 87), salientando o fato de as palavras da velha
bessangana ficarem inaudíveis diante do anúncio da entrada da “música [que]
manará aqui do imorredoiro coração dos próprios vates demócritos [...]” (VIEIRA,
1991, p. 87). O som, conforme observa o astuto narrador, “semeia vogais e colhe
neologismos”, o que acentua a proposta de Luandino Vieira, reiterada em
entrevista recente, de explorar, em seus livros, “as alterações na língua portuguesa
sobretudo devidas ao fato de preencherem, com vocábulos da língua portuguesa ou
da linguagem corrente, estruturas que eram de outra língua [...]” (VIEIRA, 2015, p.
188) – estratégia com que o escritor cumpre o propósito de de-senvolver uma
língua literária angolana. Com tal intenção, exibem-se no conto falas, ritmos e
expressões linguageiras e musicais que afirmam as diferentes posições sobre o que
é ser da terra e o que é ser alheio a ela, ao mesmo tempo em que a essas
informações se juntam minúcias sobre a variedade de tomates, abó-boras e frutos
característicos de seu país15. Uma língua literária, advinda da mistura entre o
português e as línguas orais angolanas, que expõem no conto uma intenção de
“descobrir Angola”, também se expressa com outros contornos literários em livros
dos escritores angolanos Uanhenga Xitu, Jofre Rocha, Boaven-tura Cardoso,
Manuel Rui e, mais recentemente, Ondjaki. Com o mesmo propósito de permitir
que a língua portuguesa levada aos territórios angolanos seja visitada pelas
sonoridades e tons das línguas orais, Ruy Duarte de Carvalho assume, em alguns
de seus livros16, os costumes de povos que conservam rituais expressos em
palavra falada. Como já discutido em outros momentos, a apropriação de textos
orais que se exibem em livros, como Hábito da terra (1988) e Ondula savana
branca (1989), está presente também em obra ficcional que herda experiências
concretas do trabalho do antropólogo, tais como as exibidas no livro Vou lá visitar
pastores (1999), que se vale de anotações e descrições do cotidiano de pastores
kuvale, na província do Namibe, no sudoeste de Angola. Publicado como romance,
o livro é também um relato de percursos do escritor pelo sudoeste angolano,
estrategicamente apropriados com o cuidado de que o produto de experiências
concretas – informadas em nota que acentua o contato do escritor com alguns dos
mencionados pastores (VIEIRA, 2015, p. 11) – não interfira na intenção ficcional
do livro. Por meio desse pacto, a literatura recorre ao artifício narrativo de tornar
públicas as gravações, em fitas cassetes, que o autor (imaginado) diz ter gravado,
tentando deixar 14 “traz-me uma brasa”, de acordo com tradução indicada no
glossário que acompanha o romance, p. 152.15 Ressalte-se a profusão de tomates
e abóboras (p. 79) e de frutos (p. 97-98) e dos vários costumes e artes de os
degustar.16 Observar o trabalho exposto pelo escritor em livros como Ondula,
savana branca (1989) e Vou lá visitar pastores (1999).

21Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v.14, n.2.informações para o suposto repórter


da BBC, de Londres, interessado por “se inteirar da terra e das gentes” do sudoeste
de Angola, conforme afirma o informante na p. 15. Fica clara, nesses livros de Ruy
Duarte de Carvalho, a intenção defendida por Pierre Nora (1985) de que é preciso
cultivar uma “certa vigilância co-memorativa”, para impedir que a história varra
rapidamente para longe o que resta de tradições em muitas culturas de
predominância oral. Com essa intenção, o texto literário reverencia tradições de
grupo e tenta registrar vestígios do que se perdeu em termos de memória coletiva,
legitimando, de certa maneira, as contradições características dos “lugares de
memória”, uma vez que só eles conseguirão recuperar rastros e traços do que se
perdeu ou do que se perde, como as conchas vazias que chegam à praia, na bela
imagem construída por Nora (NORA, 1985, p. 8).No processo desenvolvido pelo
escritor e antropólogo angolano, fica clara a força desestabilizadora da literatura e
a possibilidade de o texto literário ser considerado a partir de elementos de um
intercâmbio verbal que concretiza os modos de funcionamento da escrita que
deseja interagir com o leitor, conclaman-do-o a participar de um jogo, cujas peças
se montam na relação entre letra e voz. As apropriações de peças do acervo da
produção oral de povos africanos diversos são parte de um esforço de exibir a
interatividade entre gestos de escrita e tonalidades de vozes que eles intentam
ouvir. A expressividade de falas e cantos, ao ser transportada para a escrita, passa a
funcionar como elemento característico de um gênero literário que também abriga
outras formas discursivas como as do gênero textual provérbio e de outras
construções características da oralidade. No livro Ondula, savana branca, alguns
poemas assumem as intenções de uma fala proverbial que, no seu espaço original,
era destinada a expressar uma visão de mundo que se legitima em saber calcado na
ex-periência expressa por provérbios que observam que “o dar não molesta o
braço/nem dorme com espinho na mão/que afagou durante o dia” (VIEIRA, 2015,
p. 38). Muitas vezes o poema é espaço onde se encenam enunciados produzidos
pela sabedoria anônima, característica do provérbio e de máximas que, no âmbito
da literatura, passam a produzir efeitos de sentidos que guardam a experiência de
quem os proferiu, visan-do a historiar preceitos que determinam modos de ser e de
fazer: “Não basta juntar a lenha/para recolher os molhos: é preciso que a maldade
os não desfaça” (VIEIRA, 2015, p. 39). O próprio escritor observa que sua escrita,
no caso do livro Ondula, savana branca e mesmo de ou-tros em que a experiência
do observador enriquece a prática de uma escrita, encaminha multiplicidade de
olhares sobre o texto literário. Um texto literário que cuida da gestualidade que
nele se mostra, talvez para configurar o esforço da literatura para se pôr em diálogo
com a oralidade, recolhe os traços de memórias e as “lembranças registadas”, o
“som que a imagem manda, induz anima. A língua afeiçoada às intenções para
conseguir “dizer em português uma noção nyaneka” (CARVALHO, 2005, p.
230).REFERÊNCIAS:AGOSTINHO NETO, António. “Mussunda, amigo”. In:
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22______. Vou lá visitar pastores; exploração epistolar de um percurso angolano


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agosto de 2016 e aceito em 12 de setembro de 2016.

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e

uma fundamentação teórica

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza*1

RESUMO

Ao utilizarmos a expressão “tradição oral africana” fazemos referência

direta a uma discussão de caráter teórico que mobiliza mais questões do que

respostas. O presente artigo busca, a partir de alguns trabalhos recentes da

antropologia e da arqueologia africana, fazer uma revisita teórica a alguns

momentos da discussão acerca da existência de uma tradição africana


e de uma oralidade africana, e, em seguida, discutir a aplicabilidade

desses conceitos no interior da crítica literária moçambicana a partir de

uma visada diacrônica e histórica. O intuito é obter subsídios para uma

reflexão interdisciplinar de conceitos-chave para compreensão dos diálogos

interculturais que cercam a literatura moçambicana.

Palavras-chave: Tradição oral. Literatura moçambicana. Saberes endógenos.

Culturas acústicas.

* Universidade de São Paulo – USP.

Um percurso teórico acerca de África

A discussão acerca da oralidade em África deve remontar, por princípio, uma

questão de base, que se refere especificamente a como as ciências humanas se

posicionam e se posicionaram diante das condições de produção e transmissão

do conhecimento no continente africano. Há pelo menos um século que inúmeros

esforços vêm sendo empreendidos para alterar definitivamente a lógica


eurocêntrica,

que relegava a uma parcela substancial do conhecimento africano o estatuto de

não existente, baseada numa obscura justificativa de que seu suporte de produção

e transmissão não era predominantemente material e visual, se tomarmos

comparativamente toda a extensão do continente.

Evidentemente, essa seletividade entre conjuntos de conhecimentos que devem

ser considerados ou não estava intimamente relacionada com os esforços


científicos

que buscavam corroborar uma visão de que espaços sociais como a África – mas
também a Ásia, a Oceania e outras paragens em que o colonialismo europeu se

desenvolveu – eram passíveis de colonização, uma vez que, sem cultura, esses

95 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

povos careciam de “civilização”. Os esforços para alteração dessa lógica seletiva

construíram um embate científico, epistemológico e intelectual magnífico ao longo

do tempo, e remontar todos os seus lugares e todas as posições que entraram no

combate é um trabalho de fôlego, que precisa ser atualizado constantemente. Nesse

artigo vamos remontar alguns momentos específicos desse embate,


confessadamente

sem a intenção de esgotá-lo, e buscar conectar essa discussão com a produção

literária em língua portuguesa em Moçambique.

A “África oral”

Um dos momentos altos desse embate, e, sem dúvida, um dos mais célebres, é

o texto “Tradição viva”, do escritor e etnólogo malinês Amadou Hampâté-Bâ. Esse

texto é construído num tom reivindicatório, e surge aos olhos do leitor atual como

um manifesto em favor do reconhecimento de uma história e de uma cultura


africana

que se encontrava depositada naquilo que ele chama de “tradição oral”. Partindo,

sobretudo, de uma curta análise a respeito de como o conhecimento é transmitido

e veiculado nas sociedades Bambara, situadas no Mali e em Burkina Faso, o texto

de Hampâté-Bâ busca aventar hipóteses de posicionamentos diante desse repertório

cultural africano que não contou com o suporte material visual até o contato com
as
culturas europeias, já durante o colonialismo. A preocupação principal de
HampâtéBâ parece ser a de refletir a respeito das fontes orais do conhecimento a
partir de

sua fidedignidade, característica recusada pela ciência eurocêntrica. Seu argumento

propõe justamente que as fontes orais sejam consideradas como um testemunho

histórico, cujo valor e fidedignidade sejam aquelas aplicáveis a quaisquer outros

testemunhos em quaisquer suportes, ou, como prefere dizer, o testemunho oral


“vale

o que vale o homem” (HAMPÂTÉ-BÂ, 2010, p. 168).

O contexto que subjaz à escrita de Hampâté-Bâ é justamente de certa angústia

pela possibilidade de desaparecimento da cultura dos chamados “tradicionalistas”

que conservavam, em seus ofícios, os repertórios culturais a que o etnólogo faz

referência como “tradição oral”, justamente por conta do cenário de conflito


cultural

entre as culturas endógenas africanas e a hegemonia da cultura ocidental colonial.

Anteriormente, pensadores mais radicais da situação colonial não hesitaram

em anunciar a “morte da cultura” dos povos colonizados. Com efeito, ao verem

desmoronar aos seus olhos inúmeras formas de organização social que suportavam

práticas culturais muito específicas, pouquíssimas outras analogias de linguagem

lhes restariam senão a figura da morte. Aimé Césaire, por exemplo, reflete:

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

96 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

O mecanismo dessa morte da cultura e das civilizações sob o regime

colonial começa a ser bem conhecido. Para desabrochar, toda a


cultura precisa de um enquadramento, de uma estrutura. Ora, não

há dúvida que os elementos que estruturam a vida cultural do povo

colonizado desaparecem ou degeneram devido ao regime colonial.

Trata-se, bem entendido, em primeiro lugar, da organização política.

Pois é preciso não perder de vista que a organização política que

um povo se outorgou livremente faz parte, e num grau eminente,

da cultura deste povo, cultura que, por outro lado, ela condiciona.

[...] Trata-se da limitação da civilização colonizada, supressão

ou do abastardamento de tudo o que a estrutura. Como não nos

admirarmos, nestas condições, com a supressão daquilo que é uma

das características de qualquer civilização viva, a faculdade de

renovação? (CÉSAIRE, 2011, p. 258-259).

É possível considerar a posição de Césaire radical justamente porque ele

concebe a cultura colonizada como impossibilitada de renovação após a introdução

da cultura colonial nos territórios colonizados. O quadro sociocultural específico

a que ambas as propostas fazem referência, tanto a de Hampâté-Bâ quanto de

Césaire, foi de perceber que, a partir da colonização, as formas de transmissão

do conhecimento em África precisariam viver lado a lado com as formas de

transmissão do conhecimento europeias, transplantadas para aquele continente

por força dos movimentos exploratórios e imperialistas que irradiaram do velho

continente em levas consecutivas e intermitentes desde o século XV. HampâtéBâ


estava atento ao fato de que o encontro entre as duas tecnologias específicas

de transmissão de conhecimento, a europeia, escrita, e as africanas orais, estava


no bojo de um processo maior, a saber, o imperialismo colonizador europeu, o

que, por si só, já definia a tecnologia europeia como uma forma hegemônica, a

exercer domínio sobre as demais. “Tradição viva” é exatamente um esforço de

valoração, pois busca, a partir de um exemplo bastante específico, provar que as

formas de transmissão de conhecimento africanas, embora orais, são dotadas de

uma complexidade e uma sofisticação própria, e que todo um universo cultural

de conhecimento está arriscado diante da paulatina e fatal hegemonia cultural

europeia. Essa diagnose é correlata ao “radicalismo” de Césaire ao prognosticar a

morte desses sistemas tecnológicos em face da constante quebra de seus contextos

de transmissão, ocasionada pelo avanço do colonialismo imperial europeu.

Ora, a proposta de Hampâté-Bâ deve ser vista como um princípio nevrálgico

de uma discussão que ganhou diversos matizes ao longo do tempo. E alguns

princípios de sua proposta precisam, hoje, ser relativizados em face de uma

discussão mais alargada e de um contexto cultural e histórico já totalmente diverso

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

97 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

daquele que permitiu ao etnólogo malinês produzir a sua análise. Por princípio,

poderíamos empreender uma discussão acerca da validade da abrangência

do princípio metonímico da análise de Hampâté-Bâ. Em que medida a análise

conjuntural de uma dada dinâmica Bambara num dado momento específico é

válida para estendermos as conclusões acerca dessa análise específica à realidade

de todo um continente? Será possível que, a partir da análise dos Bambara do


Mali, possamos obter conclusões úteis para os Xhosa da África do Sul, povos

que nem na mais remota possibilidade se cruzaram, sem o mínimo de esforço

comparativo? Em se tratando de uma discussão que quer, justamente, romper

com paradigmas generalizantes, é possível realizar uma análise que obedeça ao

princípio metonímico, a parte pelo todo, ou da sinédoque, o todo pela parte?

Hampâté-Bâ está atento ao risco iminente em que incorre sua análise, e faz

considerações ligeiras que devem ser observadas como uma questão de método

de seu texto:

Nas tradições africanas – pela menos nas que conheço e que dizem

respeito a toda a região de savana ao sul do Saara –, a palavra falada

se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter

sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela

depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças

etéreas”, não era utilizada sem prudência. (HAMPÂTÉ-BÂ, 2010,

p. 169).

Ou ainda:

Como não posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer

tradições que não tenha vivido ou estudado pessoalmente – em

particular as relativas aos países da floresta – tirarei os exemplos

em que me apoio das tradições da savana ao sul da Saara (que

antigamente era chamada de Bafur e que constituía as regiões de

savana da antiga África Ocidental Francesa). (HAMPÂTÉ-BÂ,

2010, p. 179).
A questão da dificuldade metodológica que cerca a possibilidade de enunciar

grandes definições que sejam verificáveis em todo o continente africano parece ser

uma barreira para a qual o etnólogo estava atento. Nem nos mais longínquos
avanços

da antropologia estruturalista uma análise isolada permitiria extrair estruturas

que se estendessem por uma realidade continental abstrata e extemporânea.

Sobretudo, afirmar que toda a realidade cultural do continente africano depende,

“essencialmente”, de uma tecnologia oral para a transmissão do conhecimento,

é ignorar casos absolutamente relevantes como, por exemplo, as figuras dja, dos

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

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povos Akan (distribuídos entre a Costa do Marfim, o Gana, o Benin, entre outros),

comumente chamados de “pesos de bronze” (mas nem todos são “pesos” e nem

todos são de “bronze”), que, nos casos figurativos, registram graficamente um

conhecimento vastíssimo desse povo sobre as mais variadas áreas. A propósito,

essas figuras são conhecidas pelo epíteto de “enciclopédia Akan”.

Outro caso bastante relevante é também o da escrita ge’ez, um complexo

conjunto de signos gráficos nativos da Etiópia, utilizado para o registro de línguas

etíopes e eritreias, como o amárico, o tigré, a própria língua ge’ez, entre outras

daqueles países.1

Outro caso igualmente relevante é a imensidão do conhecimento

africano veiculado em língua árabe, que representa uma quantidade imensa de

testemunhos para a história de África – a Universidade de Sankore, no coração


do antigo Império Mali, não será, porventura, o mais significante baluarte desse

universo do Islã africano? E podemos ainda citar os infindáveis objetos da cultura

material africana que representam mídias de transmissão de conhecimento e de

simbologia social, passados de geração a geração, que hoje encarecem os museus

europeus sob o polêmico qualificativo de “arte africana”. Ignorar essas diversas

tecnologias materiais e visuais de transmissão de conhecimento em nome de uma

ênfase despropositada num fictício caráter “oral” válido para o continente todo é

também solapar uma história e reforçar um estereótipo.

Mas não parece ser esse o caminho que segue Amadou Hampâté-Bâ quando

deixa flagrante que trata de um ambiente específico da África Ocidental. Além

disso, seu empenho naquele texto não é de provar que a África toda desfruta de

uma essência oral comum e que partilha de valores sociais relativos a essa essência

igualmente comuns. Mas é, antes, provar como, a partir do exemplo Bambara,

um conhecimento que não esteja, eventualmente, registrado em formas visuais

de transmissão, é também um conhecimento válido e fidedigno, fonte documental

de uma realidade social e cultural sofisticada e complexa. E essa espécie de

reconhecimento etnográfico e contra-hegemônico diante de culturas que foram

destroçadas pelo colonialismo, isso sim, deve ser estendido a todo um continente,

e mais, pode ser estendido para quaisquer espaços no mundo em que uma cultura

hegemônica, com claros intuitos puramente materiais, desqualifica e deslegitima

uma cultura alheia justamente pela sua diferença.

Afinal, era justamente essa a principal preocupação do etnólogo, o que,

inclusive, o irmanava a Aimé Césaire em sua análise. Sua angústia, inclusive,


assume uma conotação protestatória, contrária às tendências assumidas por parte

1 Considerem-se aqui também como exemplos outras formas de escritas


subsaarianas, como cita KiZerbo, como o Vai, Bamum e Ajami. (KI-ZERBO,
2010).

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

99 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

das elites políticas africanas em relação a um patrimônio cultural marginalizado

pelos governos, que encetavam, à altura, pelo que afirma Hampâté-bâ:

Os jovens líderes “modernos” governam, com mentalidades e

sistemas de lei, ou ideologias, diretamente herdados de modelos

estrangeiros, povos e realidades sujeitos a outras leis e com outras

mentalidades. Para exemplificar, na maioria dos territórios da

antiga África ocidental francesa, o código legal elaborado logo

após a independência, por nossos jovens juristas, recém-saídos

das universidades francesas, está pura e simplesmente calcado

no Código Napoleônico. O resultado é que a população, até então

governada segundo costumes sagrados que, herdados de ancestrais,

asseguravam a coesão social, não compreende por que está sendo

julgada e condenada em nome de um “costume” que não é o seu,

que não conhece e que não corresponde às realidades profundas do

país. (HAMPÂTÉ-BÂ, 2010, p. 2010).

O centro da análise de Hampâté-Bâ consiste justamente em perceber que,


outrora massacradas por uma política colonial racista, seletiva e eurocêntrica,

determinadas parcelas das culturas africanas agora estavam a ser ignoradas

também por uma elite política e econômica que, a propósito de considerar essas

culturas como uma superstição passadiça e obscura, negava-lhes o direito a uma

cidadania democrática. Culturalmente, como se essas culturas africanas não

tivessem ganhado a independência na luta contra a hegemonia eurocêntrica e

ocidental. A essas tendências hegemônicas, portanto, convém turvar a análise em

busca de uma imobilidade cultural desses grupos, relegando-os ao estatuto de um

passado remoto, a ser superado constantemente.

Será porventura esse outro debate suscitado pelo texto de Hampâté-Bâ o que

nos fará retornar à crítica de Césaire: o quão imóveis e incapazes de renovaremse


estarão essas culturas? Será possível considerar essas culturas fadadas à morte

iminente? Será possível falar de uma modernidade científica que discrepa de

uma “tradição” estanque e moribunda? É possível considerar as inúmeras formas

culturais nativas de África como pertencentes a um nicho comum e próprio, que

podemos então, a propósito, chamar de “tradição africana”, ou “África profunda”,

que alimenta semelhanças internas consideráveis (como a oralidade, inclusive)?

A “tradição oral”

Embora seja utilizada de modo geral no texto de Hampâté-Bâ, a palavra

“tradição” suscita maiores discussões. Com efeito, existe certa tendência latente,

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

100 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

derivada, quiçá, da antropologia colonial, em isolar a África subsaariana num


complexo autônomo e atomizado, que seria a África da “tradição”. Exemplos como

o largo trânsito de uma cultura africana escrita em língua árabe, ou a existência de

um alfabeto africano etíope, devem ser descartados de uma análise dessa


“tradição”

justamente por sua ascendência semítica, e, portanto, “não africana”. Contrária às

inúmeras dinâmicas históricas que marcam um complexo trânsito entre a porção

norte do continente com sua porção sul, e contrária também a uma visão que

constata que a África, em suma, nunca esteve isolada na sua solidão obscura,

mas sim, alimentou relações com inúmeros outros espaços (a região sudanesa

com o Oriente Médio, a porção norte integrada ao complexo mediterrâneo,

a África Austral com a China, a Índia e regiões da Oceania, etc.), essa visada

busca identificar nesse “continente da tradição” uma harmonia autônoma, pura

e independente, profundamente perturbada pela chegada de um colonizador que

introduz em África todos os males. Esse tipo de pensamento acabou repousando

nos usos mais extremos de um conceito de “tradição africana”, que há muito tem

sido questionado.

O antropólogo da Universidade de Abomey-Calavi, no Benim, Obarè Bagodo,

considera como marca desse questionamento à ideia de uma “tradição africana”

o seminário realizado em Cotonou entre 1987 e 1988, na então Universidade

Nacional do Benim, cujo tema era, apropriadamente, Les savoirs endogènes:

pistes pour une recherche, cujos resultados seriam publicados, posteriormente, em

forma de um livro de autoria coletiva organizado por Paulin Hountondji e editado

pelo CODESRIA em 1994. Segundo Bagodo, entre os resultados obtidos naquele


seminário, saltava à vista o fato de que os participantes se propunham “(i) a

reconhecer que o adjectivo ‘tradicional’, mesmo quando se apresenta entre aspas,

é inadequado, para não dizer depreciativo, e (ii) a preferir o epíteto ‘endógeno’”

(BAGODO, 2012, p. 53). Para justificar os motivos que levavam os estudiosos

a essas conclusões, Bagodo cita textualmente a alocução de Hountondji, que

transcrevemos aqui:

O adjectivo “tradicional” não é inocente senão aparentemente.

Utilizado de forma espontânea, por oposição a “moderno”, veicula

a ideia obscura de um corte radical entre o antigo e o novo. Atira,

assim, o antigo para um quadro estático, uniforme, sem história e

sem profundidade, em que todos os pontos parecem rigorosamente

contemporâneos, reservando para a categoria do moderno o prestígio

da mudança, ou, numa palavra, da historicidade. (HOUNTONDJI

apud BAGODO, 2012, p. 53).

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

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A dissertação de Obarè Bagodo investe pesado no sentido de, cada vez mais,

desconsiderar os repertórios culturais africanos como “tradição”, oposta a uma

“modernidade”, e sim, como saberes e saberes-fazer endógenos, passíveis de

processos de atualização, automodernização e reciclagens próprias e dinâmicas

consoantes ao tempo e ao espaço em que se inserem – ou seja, atribui-lhes,

exatamente, uma historicidade que o conceito de “tradição” parece não poder


abarcar até certo ponto. A essa oposição aparente entre modernidade e tradição,

Bagodo chama de “falsa antinomia” (BAGODO, 2012, p. 54), buscando,

por sua vez, historicizar mesmo sua origem a partir do decreto proferido pelo

imperialismo europeu “triunfalista, condescendente e egoísta”, num processo que

durou do século XVI até o XIX, de que as outras culturas que encontrava em

sua aventura colonial “não passavam de tradicionais, condenadas a uma extinção

irrefragável” (BAGODO, 2012, p. 55). A mesma antinomia de origens coloniais

parece ter sobrevivido a todos os impulsos descolonizadores das ciências e das

epistemologias, indo depositar-se numa palavra de “aparente inocência”, qual seja

“tradição”, oposta a modernidade.

Curiosamente, outro pesquisador da Universidade de Abomey-Calavi, Geoffroy

Botoyiyè, afirma justamente que o repertório cultural endógeno africano, por não

estar preservado numa forma fixa visual como a escrita, mas sim dependente de

contextos de elocução próprios, está mais volúvel a uma movimentação dinâmica

de transformações, adaptações e adequações que um repertório cultural escrito.

Por isso mesmo, Botoyiyè afirma que a expressão “tradição oral” é um paradoxo

por princípio. Segundo afirma: “na prática, só há tradição se houver escrita”

(BOTOYIYÈ, 2012, p. 349). Ainda que não seja possível confiar totalmente na

permanência e na imutabilidade dos textos escritos como Botoyiyè propõe (e os

graves problemas filológicos que cercam textos antigos que nos provem o quanto

edições e testemunhos escritos estão à mercê de transformações ao longo do

tempo), vale a pena considerar a ênfase do pesquisador acerca do caráter mutável

e histórico das culturas endógenas transmitidas por vias acústicas, o que depõe
contra a utilização do termo “tradição” como significando algo absolutamente

harmônico, permanente e imutável, oposto a uma modernidade.

Com uma argumentação aguda que mobiliza grande repertório da filosofia

da ciência, Bagodo busca derrubar os mitos que cercam a oposição entre uma

possível modernidade científica e uma tradição imóvel africana. Mostrando como,

dentro mesmo dessa modernidade científica ocidental, aqueles antigos critérios da

ciência moderna foram postos em xeque, como a distinção entre sujeito e objeto,

a objetividade científica, a causalidade, o rigor lógico da linguagem, entre outros

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

102 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

aspectos, Bagodo busca mostrar que a modernidade científica tem fundamentos

teóricos que a tornam mais do que apta a reconhecer inúmeros avanços

epistemológicos, filosóficos e científicos elaborados a partir dos saberes e


saberesfazer endógenos africanos, que são largamente enumerados e
exemplificados

em seu texto. Segundo afirma, a concepção e aplicação multidimensional da

modernidade científica permitem relativizar a falsa antinomia habitual entre

as tradições dos saberes de África e “as acções constitutivas da ciência actual”

(BAGODO, 2012, p. 59).

Pois então, restaria a pergunta: se a modernidade científica tem condições

metodológicas de reconhecer a elaboração dos saberes e saberes-fazer do

conhecimento africano endógeno, quais sãos os motivos que continuam, até os

nossos dias, a relegar a esses saberes endógenos sua marginalização e a constante


indiferença com que precisam conviver? Afinal, quando investe em perceber quais

são os desafios do século XXI para os saberes endógenos, Bagodo até apresenta

propostas consideravelmente otimistas, pelo que afirma:

Na medida em que o desenvolvimento técnico e cultural foi sempre

um processo cumulativo, em África [...] o [presente] estudo toma

em consideração todos os sabres e saberes-fazer pré-históricos

ou históricos, antigos, pré-coloniais ou recentes, que contribuam

para o funcionamento das nossas sociedades contemporâneas. Esta

funcionalidade mantém-se essencialmente activa mesmo nas suas

dimensões museográficas, igualmente, a utilização contemporânea

dos nossos saberes e saberes-fazer se mantém activa e preponderante

em muitas áreas. (BAGODO, 2012, p. 60).

Percebe-se aqui o quão diferente é a visão de Bagodo daquela de Césaire.

Um decretava a morte das culturas africanas em face da colonização, o outro,

algumas décadas depois, afirma que a funcionalidade dos saberes endógenos

africanos continua ativa, mesmo nas suas dimensões museográficas. Isso, no

entanto, não anula o desafio que é a existência democrática de uma cidadania

civil para esses saberes dentro dos modernos Estados africanos. E nesse ponto,

exatamente, reside uma ligeira crítica do texto de Bagodo, que acaba sendo uma

crítica que também atravessou o texto de Amadou Hampâté-Bâ, também o texto

de Geoffroy Botoyiyè, e, de alguma forma, também do texto de Césaire. Ou seja,

qual futuro para uma confluência definitiva entre a modernidade científica e os

saberes africanos endógenos que não passe por políticas de gestão que promovam
o intercâmbio, a pesquisa, o registro, a tradução, a transcrição e contato entre

culturas e instituições de saberes? Quais os avanços que são possíveis de serem

observados atualmente neste sentido? Vejamos o que diz o arqueólogo:

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

103 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

Enquanto tal, esta abordagem permite confiar que com a sinergia

entre uma gestão adequada dos patrimônios endógenos vivos

e a modernidade científica contemporânea, a África do século

XXI poderá, enfim, libertar-se da armadilha da marginalização e

promover uma neocultura inovadora e competitiva. (BAGODO,

2012, p. 60).

Também Botoyiyè parecia deslocar a discussão teórica presente em seu texto

para um apelo político que pudesse solucionar os problemas de adequação,

legitimação e capitalização científica dos patrimônios culturais endógenos

africanos, pelo que afirma:

A recuperação, ou melhor, a transcrição dos conhecimentos e dos

procedimentos junto dos detentores locais de saberes [endógenos] é

o meio de capitalizar o depósito dos saberes orais. Isto deve ser uma

tarefa urgente inscrita no programa das instituições de investigação

em África. [...] Se desejamos valorizar os saberes endógenos, não

há mais do que uma via, é encontrar para eles um lugar nos canais

actuais de produção do saber. [...] Será ela possível sem a refundação


do sistema actual da investigação em África? (BOTOYIYÈ, 2012,

p. 349).

Ao ouvirmos esses apelos por uma política de gestão patrimonial, pensamos,

de imediato, acerca do quão difícil tem sido mesmo a consolidação dos sistemas

de investigação – os institutos, as universidades – em África. Se mesmo a

consolidação dessas instituições passa por carências extremas (cf. a esse respeito

HOUNTONDJI, 2008, p. 157), o que deveríamos esperar de uma política mais

democrática e mais etnográfica de atuação? Pelo menos no que tange aos países

africanos de língua oficial portuguesa, os problemas de gestão do patrimônio

endógeno são gravíssimos, com escassas e rarefeitas exceções. Talvez diante da

flagrante falta de vontade política, valha a pena confiar num percurso teórico que

continue investindo na ideia de uma “África profunda” mergulhada numa


“tradição”

composta por qualquer coisa a que se chame “oralidade” – pois, como parece

óbvio, os percursos teóricos não são totalmente abstrativos das vulgatas políticas

e dos discursos oficiais que regem a hegemonia do poder. Relegada ao seu eterno

estatuto imóvel, sem história, é possível, inclusive, perceber conflitos entre essa

“tradição ancestral” – porque, afinal, está no passado –, e as dinâmicas históricas

desses países no presente. Afinal, enxergar-lhe a modernidade, a historicidade e o

imenso potencial científico que esses saberes endógenos preservam, é assumir a

indiferença, a intolerância e a intransigência autoritária.

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

104 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015


Não que não exista uma dimensão de África específica cujos conhecimentos

sejam transmitidos de geração a geração através da cultura acústica, e que guardem

relativa distância dos modos de conhecimento ocidentais. O que colocamos

em questão aqui é que o uso indiscriminado de conceitos como “tradição oral”

acarreta muito mais problemas do que parece, e se o seu uso não estiver atento

a essa problemática, incorrerá no risco de ser generalizante em demasia para

um conjunto humano tão vasto e tão heterogêneo como o continente africano.

Sobretudo quando o objetivo deste uso é romper com paradigmas generalizantes

coloniais e preconceituosos. Não se questiona um paradigma generalizante pela

sua mera substituição, mesmo que o novo seja mais positivo e idealizador que o

antigo – ambos desconhecem a especificidade, autonomia e a diversidade.

Uma postura da crítica literária

As relações possíveis entre a literatura moçambicana de língua portuguesa e os

repertórios culturais endógenos transmitidos por vias acústicas devem ser vistas,

antes de tudo, em vista de sua historicidade. Uma literatura produzida na década

de 1930 não guarda as mesmas relações com o repertório endógeno acústico que

uma literatura produzida na década de 1950. Da mesma forma, os paradigmas

que marcaram a produção da década de 1950 não devem ser considerados como

linhas mestras e diferenciais de uma literatura que se estenderá por mais décadas

a seguir em diferentes quadros socio-históricos. Com o objetivo de percorrer

somente alguns momentos de virada no interior dessa literatura, propomos aqui

uma revisita a alguns momentos bastante pontuais dessa produção.

As primeiras manifestações de uma escrita em língua portuguesa produzidas no


espaço colonial de Moçambique foram gestadas no ambiente do assimilacionismo

português em África, que agregava um contingente populacional dentro de uma

educação que buscava, ao menos em tese, inserir os africanos, juridicamente

considerados “indígenas”, na cultura ocidental, europeia e portuguesa. Alinhase a


essa problemática educacional também um problema social e ideológico de

construir uma visada crítica acerca das próprias condições de vida das populações

sob um regime colonialista – muito da crítica política gerada no interior do

protonacionalismo, no entanto, encontrava limites para suas alternativas nas

estruturas do Estado colonial português. Para isso, cumpre realizar uma rápida

análise das condições jurídicas que ratificavam as divisões sociais na sociedade

colonial. O grupo dos colonizados era dividido em dois subgrupos: o do africano

nativo, o indígena; e o daquele que era considerado “civilizado”, porque “sabia

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

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falar português, estava desligado de todos os costumes tribais (sic) e que tinha

emprego regular e remunerado”, como bem analisa o pensador moçambicano

Eduardo Mondlane (Mondlane apud SANCHES, 2011, p. 312).

Essas eram as bases do que Mondlane chama de “sistema do assimilado”, que,

na verdade, se prestou a criar minorias letradas dentro da sociedade moçambicana.

A assimilação portuguesa tinha bases antigas depositadas na ideologia da missão

evangelizadora do português entre os “gentios”, desde as antigas formas de

colonialismo. Não por acaso, as “missões” foram instituições formadoras de


assimilados. Mas, em relação ao colonialismo ligado ao imperialismo do século

XIX, a assimilação, a partir do seu estatuto jurídico, produziu durante todos os

anos da colonização imperialista diversas gerações de assimilados na sociedade

moçambicana. A condição do assimilado, portanto, inserido num sistema jurídico

e social que desvalorizava cada vez mais sua cultura e a considerava como
“nãocivilização”, mesmo quando tomava a consciência da exploração, deveria
estar

dentro dos limites proporcionados pelo sistema que o assimilava, o que justificaria

os limites da crítica do protonacionalismo:

Mas a firme convicção na capacidade dos negros em guindaremse às altas esferas


do saber acompanha-se de uma atitude

ambivalente, já que ela pressupõe que os “indígenas” rejeitem os

seus valores próprios e “saiam” do estado de “não cultura” para se

integrarem num quadro civilizacional preciso – o molde ocidental.

(ANDRADE, 1997, p. 93 – destaques do autor).

A partir dos anos de 1940, no entanto, essas manifestações consideradas como

protonacionalistas vão desembocar num ponto de viragem que tomará feições

de um novo tipo de pensamento crítico em relação à condição colonial. Este é

o período que veria o fim das limitações apresentadas pelos antigos assimilados

protonacionalistas, e as manifestações críticas no interior da sociedade

moçambicana assumirão a forma de um novo nacionalismo, que, através de

continuidades e rupturas, culminarão num pensamento verticalmente crítico a

respeito da colonização portuguesa em África, segundo afirma Mário Pinto de

Andrade:
A linha de continuidade situa-se no plano dos temas essenciais do

discurso político e da práxis, considerados num outro contexto e

carregados de conteúdos diferentes. Com efeito, a problemática

inerente ao sistema colonial recolocar-se-á durante largo tempo

em termos da dicotomia indígena/assimilado, da permanência

apenas dissimulada do trabalho obrigatório, do esbulho das terras

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

106 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

ou do acesso à instrução. [...] Mas o protonacionalismo, na sua

essência, foi produtor de um discurso com uma finalidade ilusória:

assumindo-se como negros cultos, no molde ocidental, sujeitos

da nação portuguesa e legalistas, esses ideólogos [...] não tinham

atingido o grau crítico de compreensão lógica do sistema colonial

português. E aí reside, precisamente, o ponto de ruptura que será

expresso pela geração que fará a sua entrada na cena da história,

nos anos imediatos à segunda guerra mundial. (ANDRADE, 1997,

p. 185-186).

A explicação sociológica desse novo tipo de pensamento político crítico acerca

da colonização passa pela compreensão de certo tipo de processo social


assimilativo

que escapava ao controle efetivo do Estado português e dos aparatos de Estado

como as igrejas e as missões. Trata-se daquilo que o sociólogo moçambicano

José Luís Cabaço chama de surgimento de “populações periurbanas” (CABAÇO,


2009, p. 139), aglomeradas em bolsões suburbanos ao redor das grandes cidades,

cuja presença na cidade consistia numa oferta de mão de obra barata, cada vez

mais solicitada por conta da intensa urbanização que assistiu Moçambique desde

os primeiros decênios do século XX. Esses bolsões suburbanos terão seus nomes

inscritos miticamente na história literária moçambicana como Xipamanine,

Munhuana, Catembe, Mafalala, Malanga, Minkhokweni, Malhangalene, entre

outros. Segundo Cabaço:

O crescimento da economia colonial estimulava a urbanização

de contingentes cada vez mais numerosos de camponeses que o

Governo colonial, não obstante as restrições administrativas e a

repressão, era impotente para conter. Essa migração de gente do

campo tradicionalista para um habitat urbano onde era forte a

presença da modernidade ocidental foi dando origem a um novo

tipo sociocultural que o maniqueísmo estreito da colonização em

Moçambique insistia em continuar remetendo para a classificação

residual de indígena: era o africano da periferia dos centros

urbanos que [...] se encontrava distante de sua comunidade,

desenquadrado das relações hierárquicas, dos vínculos tradicionais,

das práticas consuetudinárias dos espaços rurais. [...] Nesse parcial

desenraizamento, ele não rompia, contudo, com suas origens e era

sobre tais referências que construía as várias identidades na nova

situação: nos subúrbios urbanos, reestruturava-se em sistemas de

organização da vida que refletiam a simbiose dos dois universos


culturais em que orbitava. (CABAÇO, 2009, p. 139 – destaques

do autor).

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

107 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

Esse novo quadro social gerará um novo contexto discursivo que verá nascer

uma geração de artistas que apresentará articulações estéticas e,


concomitantemente,

políticas, consideravelmente inovadoras. Com efeito, apropriando-se de mídias

ocidentais, como a música produzida com instrumentos europeus, a escrita

livre numa língua portuguesa apropriada, a pintura em telas, Moçambique viu

surgir nesse período uma arte empenhada, que transcendia as pertenças culturais

endógenas, mas recusava o estatuto de “quase-português” obtido através da

assimilação antiga – reconheciam-se, a priori, os artistas, como moçambicanos, e

mais do que isso, reivindicavam o direito a essa pertença. Esse período viu surgir

nomes basilares da cultura moçambicana como o pintor Valente Malangatana

Ngwenya, a ascensão do ritmo marrabenta, através de nomes como Fany Mpfumo,

na prosa artística, nomes como o de Luís Bernardo Honwana, Orlando Mendes e,

na poesia, sobretudo, José Craveirinha e Noémia de Sousa.

Essa arte, que a propósito de um fenômeno semelhante, ocorrido noutra latitude

do mundo colonial, o prof. Antonio Candido chamaria de “arte empenhada”

(CANDIDO, 2013, p. 29), carregará em sua configuração estética, sobretudo,

uma forma de reflexão sobre as próprias condições de vida dos habitantes de


uma sociedade ainda colonial, apresentando uma ótica e uma perspectiva que se

reconhecerá, finalmente, como uma comunidade autônoma diferente de Portugal.

Essa perspectiva de autonomia se verificará em diversas chaves e em diversas

formas de manifestação no interior da cada obra – e vale, para isso, empreender

um esforço crítico que analise em cada peça e cada obra de arte a busca desses

traços de perspectivas e diferentes formas de reflexão acerca dum pensamento

autonomista.

Será especificamente a partir desse momento que se poderá perceber uma

melhor organização e sistematização de um corpo de textos que irá se


comprometer

com a postura da produção de uma literatura moçambicana. Serão nomes como

Orlando Mendes, Noémia de Sousa, José Craveirinha que produzirão uma obra que

se quererá esteticamente moçambicana. Ao pautarem sua produção pela tomada

de uma consciência crítica acerca do domínio político português no interior da

colônia, viam-se identitariamente diferentes dos portugueses, o que, até então,

não teria ocorrido com os antigos assimilados dos tempos do protonacionalismo,

como propunha Mário Pinto de Andrade. Ao perceberem-se em contraste com o

português, os escritores moçambicanos, ao mesmo tempo, estavam distantes da

pertença cultural especificamente endógena – já que não habitavam mais o espaço

da aldeia e só tinham acesso àquelas culturas conforme alguns (ou muitos) traços

delas ainda se preservavam no cotidiano da periferia.

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

108 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015


As formas estéticas específicas que a produção literária assumiu, que podem

ser úteis para uma interpretação de sentido identitário, são sobremaneira variadas,

de autor para autor, e de obra para obra, de modo que dependeríamos de várias

análises para percebermos como a chave do surgimento de uma identidade nova,

moçambicana, no seio dessas populações periurbanas, torna-se operacional para

uma interpretação literária. Como, no entanto, o acesso dessa população aos

bens culturais ocidentais estava livre dos códigos restritivos impostos pela antiga

assimilação oficial, os signos se subvertem de uma forma bastante inovadora, em

diversos níveis. Num momento específico da história, em que as forças coloniais

impunham seu controle político somado à coerção cultural racista e limitadora,

deixar transparecer esteticamente, no texto, uma identidade específica, diferente

da portuguesa, justamente por conta de um contato de proximidade com as culturas

endógenas acústicas, se fazia em caráter de subversão e urgência.

Desse modo, produções literárias como a de Noémia de Sousa apelarão para um

sentido insistente de autoidentificação, através de diversos dispositivos estéticos

– como a estrutura dialogal com um outro estranho e diferente e a autodescrição

que busca definições físicas, culturais e ideológicas – que atravessam várias

comunidades culturais diferentes de um ambiente que se percebe a partir dos

traços definidos pela colônia de Moçambique. Ou seja, uma consciência de

uma identidade calcada no espaço geográfico colonial – Moçambique –, mas

que transcende o unitarismo de uma só pertença etnocultural em direção a um

sujeito enunciador coletivo, são sinais, na poética da autora, de uma consciência

que desembocará na construção de um nacionalismo. Esse nacionalismo estará


definitivamente nomeado na poética de José Craveirinha, quando este sujeito

lírico, expandido e coletivo, alcança a dimensão de uma comunidade nacional que

está porvir, ou a “nação que ainda não existe”.

Sem objetivar uma análise específica de poemas exemplares da produção

desses dois autores, é possível notar, no entanto, que a partir da insistência

desses autores na construção quase pictórica de uma poética que se quererá

eminentemente moçambicana, diversos traços culturais endógenos atravessarão a

construção poética: desde o nível da linguagem, com a extrapolação do uso de

termos diretamente transcritos, maiormente da língua Ronga e de outras línguas do

sul de Moçambique, ao nível das referências, com alusões, analogias e metáforas

mais que explícitas a diversos grupos no interior do território moçambicano, como

os chopes, macondes, entre outros, até o nível da organização lógico discursiva,


que

se construirá a partir de estruturas dialógicas acústicas específicas, como é o caso

do karingana wa karingana, prática discursiva própria dos Rongas, que é transcrita

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

109 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

esteticamente para o interior da poética de Craveirinha, tornando-se praticamente

uma tópica de sua produção, e por extensão, de toda a literatura moçambicana

subsequente. Outras formas de autoidentificação de um sujeito enunciador

expandido, porém, podem ser vistas, como é o caso de Noémia de Sousa e sua
dimensão étnica coletiva, em certos poemas em que o eu lírico se autoenuncia
como

“negro” (mais apropriadamente “negra”), pertencente a um corpo negro coletivo de

todo o mundo, e ainda a questão do trabalho, que em ambos os poetas irmana este

sujeito lírico a um corpo social de trabalhadores na dimensão da exploração e do

trabalho alienado.

Nesse sentido, tanto uma identidade social nova (a “moçambicanidade”) aflora

do interior dos textos literários, como os próprios textos são, a um tempo, um dos

motores de produção dessa identidade. José Luís Cabaço esclarece alguns pontos

acerca dessas coordenadas do projeto literário de então:

A dialética da formação da identidade exige a clareza sobre os

pontos de partida. E se são diversos os caminhos percorridos pelos

nossos escritores, é mais ou menos pacífico para todos eles que a

literatura moçambicana caminha, com maior ou menor ênfase, sobre

dois carris: a língua portuguesa, como meio de expressão escrita e

processo de inculturação – não como referente intertextual marcante

– e a tradição oral (e agora a tradição inventada do processo

revolucionário) como permanente busca de uma intertextualidade

nacional. (CABAÇO, 2004, p. 66).

Resta, pois, saber se o modelo específico dessa literatura que precisava conviver

com a tomada de uma consciência da diferença – para ficar nos termos de Cabaço

– pode ser ampliada para além desse momento. Como vimos, a proposta analítica

de Cabaço prognosticava que a literatura moçambicana, preservadas as variações e


diferenças, caminhava sobre o que ele chama de “dois carris”, a saber, o repertório

próprio adjacente ao uso da língua portuguesa, e depois, o segundo carril,


composto

por dois elementos distintos, quais sejam, (i) uma tradição oral que se
metamorfoseia

numa (ii) “tradição inventada do processo revolucionário”. Ora, esses dois

elementos que compõem um só “carril” na equação de Cabaço, do ponto de vista

da história da literatura atualmente, precisa ser mais bem destrinchado. Ou seja, é

preciso perceber as nuances de diferença entre o que é considerado, num momento,

de “tradição oral” e o que é que pode ser considerado como “tradição inventada”
na

literatura própria do processo revolucionário. As tendências seguintes da literatura

moçambicana dizem respeito diretamente aos acontecimentos que se seguem à

guerra iniciada pela FRELIMO contra as forças coloniais portuguesas em 1964,

e é esse processo, precisamente, que Cabaço chama de “processo revolucionário”.

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

110 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

Um corpus exemplar que compõe essa literatura atribuída como resultante do

processo revolucionário pode ser encontrado na coletânea produzida no âmbito

da guerra pela independência encetada pela FRELIMO, a chamada Poesia de

combate (1971). Essa antologia teve sua continuidade na Poesia de combate

II, editada já após a independência, em 1977, e foi seguida de uma reedição da

primeira antologia, ligeiramente modificada, em 1979, que receberia então o nome

de Poesia de combate I. Já em 1980 vem a lume a Poesia de combate III, e


outras antologias posteriores não tão paradigmáticas em que o modelo proposto

desde a primeira antologia da Poesia de combate era seguido fielmente. Pois essa

poesia produzida neste período objetivava, precisamente, compor-se de um corpo

literário que se afinasse apropriadamente como poesia didática para cumprir com

os objetivos da revolução a que a independência de Moçambique se tornara. A

propósito, a primeira coletânea de 1971 fora publicada por um órgão intitulado

Departamento de Educação e Cultura da Frente de Libertação de Moçambique –

FRELIMO –, e as outras duas antologias, de 1977 e 1979, respectivamente, por

outro órgão intitulado Departamento de Trabalho Ideológico do Partido.

Justamente por objetivar criar um ambiente de afinação absoluta da poesia

com os objetivos da revolução é que certos conteúdos e formatos tornaram-se

programáticos para essa produção. Essa produção recebia ainda as ressonâncias

de outras produções literárias relacionadas com os programas de Estado para arte

e estética realizados em outros lugares do mundo, em contextos de revoluções

socialistas, como o realismo socialista soviético, fomentado por Andrei Jdanov

(1896 – 1948), durante o período stalinista da União Soviética (1922 – 1953).

No caso do realismo socialista soviético, tratava-se, especificamente, de criar

uma literatura que funcionasse como uma “engenharia de almas”, uma forma de

controle intelectual a partir da arte para que a obra, uma vez rejeitados os valores

meramente estéticos, vistos como puro diletantismo burguês, representasse a

“realidade objetiva”, mas, amiúde, a “realidade do processo revolucionário”.

(NAPOLITANO, 1997, p. 15). Assim, valores caros a essa produção passaram a

representar diretrizes normativas instantes, sobre as quais qualquer escritor deveria


manter atenta vigilância, como uma observação atenta à correição ideológica como

definida pelo partido, acessibilidade da obra para todos os públicos (sobretudo a

grande massa iletrada que compunha a população russa aquando da revolução), e

outros caracteres de cariz nacionalista.

No contexto moçambicano essas ideias tiveram uma recepção bastante

oportuna, sobretudo a partir do 1º Seminário Cultural da FRELIMO, realizado


entre

dezembro de 1971 e janeiro de 1972, cujos objetivos, mais do que uma avaliação

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

111 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

da produção poética moçambicana produzida até aqui (representada, sobretudo,

pelo corpus da Poesia de Combate), era elaborar diretrizes para uma verdadeira

poesia que se considerasse revolucionária e moçambicana. Neste sentido, as

diretrizes moçambicanas para o que se queria como poesia revolucionária foram

elaboradas, mas, também, alguma teorização acerca do que seria a própria poesia

revelava certa preocupação com a divulgação poética num contexto em que não

só o iletramento era um problema a ser transposto, mas o próprio acesso à língua

portuguesa (BASTO, 2006, p. 125-126).

Nesse sentido, temáticas como os episódios da guerra nas matas eram vistas

como motes de maior valor revolucionário que temas como poemas de amor,

rechaçados como puro ócio burguês, e alienados. Com efeito, o conceito de poesia

que as coletâneas da Poesia de Combate transmitem a partir de seus prefácios


é bastante revelador de características como o alinhamento da figura do poeta à

figura do guerrilheiro, da poesia como palavra de ordem, e do questionamento dos

valores considerados “burgueses”, como o intimismo ou até mesmo uma tendência

de supressão ou desconsideração da autoria (existem poemas nas antologias que

aparecem sem autoria creditada), e apologia ao Homem Novo moçambicano.

Vejamos alguns trechos:

São poemas de militantes da FRELIMO, todos eles diretamente

engajados na luta armada de libertação nacional. Porque é esta

a característica essencial da poesia moçambicana de hoje: há

identificação absoluta entre a prática revolucionária e a sensibilidade

do poeta. [...] É por isso que a poesia é também uma palavra de

ordem. Como a palavra de ordem, ela nasce da necessidade, da

realidade. Enquanto no colonialismo e no capitalismo, a cultura, a

poesia, eram divertimentos para as horas de ociosidade dos ricos,

a nossa poesia de hoje é uma necessidade. [Prefácio da Poesia de

combate I]

Nesta poesia de combate cada poema é, acima de tudo, participação.

E essa participação só surge quando o combatente se torna o Homem

Novo, o Povo, a Classe. [Prefácio da Poesia de combate II]

Ora, o Homem Novo está exatamente no ponto chave de compreensão do

modo pelo qual este tipo de prática poética deste período da história literária de

Moçambique se relacionaria com as culturas endógenas. A questão do homem


novo
é, na verdade, uma reverberação de ideias políticas que vinham das diversas
formas

que assumiu o socialismo real praticado na União Soviética e na China, além do

socialismo da Tanzânia encabeçado por Julius Nyerere. A FRELIMO, de uma


forma

ou de outra, deixou-se penetrar por diversas dessas tendências, construindo uma

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

112 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

linha de atuação própria, com fortes traços maoístas e stalinistas (MALOA, 2011,
p.

87). Tratava-se de uma tendência de ação cultural que, quando alçada a política de

governo, representou uma cisão profunda no seio da sociedade moçambicana. A


força

centrípeta da construção do Estado moçambicano, que se fazia sentir através de


uma

coerção cultural que privilegiava uma nova forma de identidade em detrimento das

inúmeras culturas africanas, acabou por fazer com que o nacionalismo


moçambicano

fosse mais a expressão de um Estado jurídico que se estava a construir do que,


como

no início da luta armada, a expressão de um anseio coletivo de libertação nacional


e

construção de um Estado no espaço colonial (CAHEN, 2005, p. 41).

Diante desse contexto, a pertença etnocultural diferente daquela proposta pelo

Homem Novo era um perigo demasiadamente grande para ser exaltada como um
valor nacional. Tornava-se, por assim dizer, um tabu, um local interdito para as

discussões públicas – inclusive na literatura. Da mesma forma, diversas práticas

culturais específicas passaram a ser consideradas como “obscurantismo”, como

um tipo de “superstição” a ser transcendido, ultrapassado e eventualmente negado.

Evidentemente, esse tipo de prática de engenharia social revelava as tensões entre

um projeto modernizante de Estado e de sociedade, empreendido pelas elites que

governavam Moçambique, e sua habilidade em negociar ou não com as diversas

formas culturais que se encontravam naquele espaço colonial e que, agora, deveria

ser um país.

Assim, não será possível ainda dizer que aquele tipo de nacionalismo

independentista, que autoafirmava uma identidade cultural específica e

“moçambicana” em contraposição a um regime opressor e etnocêntrico, justamente

a partir de dados culturais que eram valorizados, ainda continuasse ativo da mesma

forma na produção literária desse período. O que o novo nacionalismo


revolucionário

do final da década de 1960 e 1970 prognosticava, sobretudo, a partir da literatura

oficial das coletâneas da Poesia de combate, era justamente uma transcendência do

dado cultural específico – e será grande a possibilidade de vermos traços culturais

endógenos do repertório acústico dos grupos moçambicanos serem negados nessa

produção.2

O que naquela chave de leitura proposta no início consistia somente em

um “carril”, agora podemos ver que se trata de diversos carris, diferentes o


suficiente
para não serem confundidos: o espírito autonomista que inspirou a produção
poética

da década de 1950 e início da década de 1960 será consideravelmente diferente do

nacionalismo revolucionário que pauta a produção poética oficial da década de


1970

e depois.

2 Veja-se, por exemplo, a negação da prática do xicuembo em poemas como


“Obscurantismo”, de

Armando Guebuza, presente na coletânea Poesia de combate II.

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

113 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

Mas, ainda assim, precisamos aumentar mais uma vez, ad infinitum¸ o número

dos “carris” desta discussão com a inclusão de toda a produção que se segue

a partir da década de 1980. Episódios pontuais como o concurso literário de

1980, organizado pela Revista Tempo, que não atribui o prêmio a nenhum dos

concorrentes justamente por julgarem que a produção apresentada “encontravase


aquém” de qualquer coisa que apresentasse um mínimo de trabalho artístico

com palavras (BASTO, 2006, p. 25), já mostrava que o modelo didático da

poesia oficial estava em questão e encontrava-se próximo de um desgaste. Há

que se considerar, sobretudo, um grupo específico de intelectuais e escritores que

iniciam suas atividades artísticas justamente a partir desse período. Refere-se,

precisamente, a Luís Carlos Patraquim, com a publicação de seu livro Monção, de

1980, e posteriormente os nomes que estarão aliados à chamada geração da Revista


Charrua, como Marcelo Panguana, Helder Muteia, Eduardo White, Ungulani Ba

Ka Khosa. É preciso também fazer referência a nomes como Calane da Silva, Lilia

Momplé, Mia Couto e Albino Magaia, que iniciam suas atividades nesta década

de 1980, mas não estão necessariamente relacionados com a Charrua, e também

nomes que publicarão a partir da década de 1990, como Paulina Chiziane, Nelson

Saúte e João Paulo Borges Coelho.

Inaugurando, sobretudo, a escrita em prosa em Moçambique, nesta década de

1980, esses nomes todos começaram a produzir com um nível de reflexão estética

bastante sofisticado e variado entre si. Consideravelmente alheios às diretrizes

revolucionárias da poesia oficial, distenderam o arco de seu comprometimento

ideológico construindo um trabalho bastante diverso, mas com marca à nova

possibilidade de produzir uma crítica contundente ao centralismo e autoritarismo

do Estado, e, sobretudo, a irreverência da escrita para além de paradigmas,


doutrinas

e diretrizes cerradas. Com poucas exceções, tratamos agora de uma geração de

escritores iminentemente urbana, escolarizada, e com a língua portuguesa como

língua materna. Será notável justamente como o apelo às culturas endógenas

acústicas seja recorrente nas obras desses escritores, sobretudo como forma de

protesto, agora não contra um colonialismo etnocêntrico, mas sim contra um

Estado centralista e autoritário demais para reconhecer as diversas pertenças que

compõem o espaço sob sua gestão. Esse recurso aos dados específicos de culturas

endógenas, no entanto, ao invés de ser visto agora como uma petição de princípio

da crítica, deve ser visto como um recurso que toma lado de diversos outros, a que
os escritores podem ou não lançar mão.

Rejane Vecchia da Rocha e Silva e Ubiratã Roberto Bueno de Souza

114 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

Considerações finais

Contra as generalizações que o senso comum produz acerca de África, fruto

do imperialismo eurocêntrico que ainda voga nas mentes e na imaginação dos

espaços pós-imperiais, as ciências humanas precisam apelar sempre para a noção

quase óbvia de que um espaço humano das proporções de um continente não

poderia nunca produzir uma cultura homogênea o suficiente para ser considerada

em bloco. Mas as ciências humanas acerca de África não extraem seus argumentos

a partir do senso comum, a menos que deseje estudá-lo, por sua vez. As ciências

humanas precisam extrair seus argumentos de pesquisas e considerações teóricas

específicas. Nesse sentido, acreditar que a África toda conspira numa espécie

de essência formada por uma “tradição oral” acarreta mais problemas teóricos

que soluções, incorrendo num risco grave de se criar outra generalização, como

aquelas do senso comum.

Não temos aqui discutido o valor ou não de uma cultura endógena

acústica em face da produção literária escrita, muito pelo contrário. A própria

literatura pode demonstrar, em momentos específicos para a crítica, o quanto

esse repertório cultural endógeno atravessa a escrita numa língua cuja origem é, a

propósito, europeia, e cujo histórico africano está justamente ligado à colonização

e à dominação. O que se propõe aqui é que essa relação entre um repertório


cultural
endógeno e a escrita literária em línguas de origens europeias seja, efetivamente,

vista em face de sua historicidade e de sua especificidade. A elaboração, no campo

da crítica, de constantes estéticas para uma produção tão larga e tão variada,

deveria ser feita em face de metodologias comparativas abrangentes, e não em

face de “chaves de leitura”, ou “essência de textos” (literatura “e” oralidade, por

exemplo).

Uma vez que comparações abrangentes não corroborariam a “chave de

literatura”, como pudemos ver no caso da Poesia de combate ou da literatura

urbana da década de 1980, a chave de leitura precisa então ser vista com um

mínimo de crítica. A própria insistência no caráter “europeu” da língua portuguesa

em Moçambique parece desconsiderar o quão “moçambicana” é aquela variante,

ou quão “angolana” é outra variante do português, assim como a nossa variante é

“brasileira”, e nenhum crítico literário põe isso em causa. Os escritores africanos

todos podem escrever sobre quaisquer temas e de quaisquer formas, sem que

exista uma pretensa forma crítica para validar a africanidade de seu escrito, seja

o que se chama “tradição”, seja o que se chama “oralidade”, seja o que se chama

“ancestralidade”, ou sejam quaisquer outros paradigmas generalizantes que se

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

115 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015

venham produzir acerca de África. O continente africano continuará mostrando

para o mundo, em pleno século XXI, muito mais diferenças que semelhanças.

Abstract
The use of the term “African oral tradition” makes direct reference to a

theoretical discussion that mobilizes more questions than answers. Taking

into account some recent studies of anthropology and African archeology,

this article intends to theoretically revisit a few moments of discussion about

the existence of an African tradition and an African orality, and then discuss

the applicability of these concepts within the Mozambican literary criticism

from a diachronic and historical sight. The aim is to obtain information

for an interdisciplinary reflection of key concepts for the understanding of

intercultural dialogue surrounding the Mozambican literature.

Keywords: Oral tradition. Mozambican literature. Endogenous knowledge.

Acoustic cultures.

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Submetido em: 01 de julho de 2015.

Aceito para publicação em: 13 de outubro de 2015.

Literatura moçambicana e oralidade:

uma postura crítica e uma fundamentação teórica

117 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, 2º sem. 2015.

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA AFRICANA NA TRANSMISSÃO DA


CULTURA NO ENSINO MÉDIO NO BRASILResumoPartindo do pressuposto
de que os efeitos da colonização branca na África foram profundos e danosos, a
pesquisa busca através da leitura crítica e comparativa de O mundo se despedaça
(2009), de Chinua Achebe e Hibisco roxo (2011), de Chimamanda Adichie apontar
a presença de aspectos sócio-históricos e culturais dos povos da África. Para tanto,
objetiva comparar as obras sob ponto de vista literário; levantar aspectos
importantes da cultura e tradições africanas; discutir metodologias de ensino de
literatura entre jovens e adolescentes das escolas de ensino médio brasileiras.
Utilizando o método bibliográco se chegou à conclusão de que a
consequência da aculturação colonial mudou o destino dos africanos. A sala de
aula é um espaço de debate, de informação e troca de conhecimentos que visam
conhecer a África e os africanos que contribuíram para a formação do povo
brasileiro. Palavras-Chave: Literatura africana. Ensino. Cultura. Educação.
AbstractOn the assumption that the effects of white settlement in Africa were deep
and harmful, the research seeks through critical and comparative reading of O
mundo se despedaça (2009) of Chinua Achebe and Hibisco roxo (2011) of
Chimamanda Adichie point to the presence of socio-historical and cultural aspects
of the people of Africa. Therefore, objectively compare the works in literary point
of view; raise important aspects of African culture and traditions; discuss
literature teaching methodologies among youth and adolescents of high school
Brazilian schools. Using the literature method came to the conclusion that the
result of colonial acculturation changed the fate of Africans. The classroom is a
place of debate, information and exchange of knowledge aimed at meeting Africa
and Africans who contributed to the formation of the brazilian people.Key words:
African Literature; Teaching; Culture; Education.Introduçãop. 78-85Em todas as
culturas, a escola é o espaço fundamental para a formação dos futuros dos
membros da comunidade. Essas ações educativas, sejam elas tradicionais ou
modernas, tem um papel fundamental com vista a criar novas formas de percepção
do mundo. A literatura e a oratura (termo usado por Salvato Trigo para designar a
literatura oral ou narrativas de tradição oral, como veremos mais adiante) tem tido
grande importância na formação de ideias e de pensamentos, na educação e na
preservação dos valores culturais e étnicos. O presente estudo pretende estabelecer
pontos Maria José Alves Alexandre António Timbane 1- Universidade Federal de
Goiás, Regional Catalão, Goiás. 2- Universidade Federal de Goiás, Professor e
pesquisador Visitante Estrangeiro. Pós-doutor em Estudos Ortográcos, Pós-
Doutor em Linguística Forense, Doutor em Linguística e Língua portuguesa,
Mestrado em Linguística e Literatura Moçambicana, Licenciado em Ensino de
Francês

Interfaces Vol. 7 n.2 (dezembro 2016) 76ISSN 2179-0027em comum entre duas
obras dos escritores nigerianos Chinua Achebe e Chimamanda Ngozi Adichie, em
O mundo se despedaça e Hibisco roxo, respectivamente, em que os autores
evidenciam aspectos da aculturação sofrida pelo povo africano, fazendo perceber
experiências vivenciadas pelos africanos nas suas práticas culturais e tradições. É
impossível dissociar essas experiências em textos africanos, pois a cultura
persegue o autor de todas as formas, até porque o seu mundo é aquele que o rodeia.
Essas duas leituras nos possibilitam conhecer os efeitos que as nações
colonizadoras deixaram na cultura dos países colonizados, mais especicamente
na Nigéria, permitindo, assim, uma análise de diversos aspectos, como política,
losoa, artes, e principalmente a questão da religiosidade. O livro O mundo se
despedaça, lançado no Reino Unido em 1958 com o título Things Fall Apart foi
traduzido e publicado no Brasil, em 2009, pela editora Companhia das Letras e
Hibisco roxo ou Purple hibiscus, título originalmente lançado em 2003, em língua
inglesa, foi publicado no Brasil em 2011, também pela mesma editora. Pode-se
perguntar que relação existe entre a literatura africana e o ensino juvenil no Brasil?
O interesse por essa temática surgiu, inicialmente, com a leitura de Achebe que
apresenta o choque provocado pelo contato das culturas do povo ibo da Nigéria
com a chegada do homem branco, vindo da Inglaterra para colonizar suas terras,
impondo religião e credo, evidenciando, de forma gritante, a intolerância religiosa.
Em segundo lugar, as leituras das duas obras zeram nos reetir sobre a
importância do conhecimento através da divulgação da história e da cultura
africanas no contexto brasileiro, principalmente em razão da nossa miscigenação,
formada por uma diversidade de etnias do mundo, incluindo a africana. A Lei
10.639/03 versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana,
ressaltando a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira.
Essa questão não só deve ser tarefa dos professores de história, mas também dos
professores de literatura, uma vez que essa cultura é riquíssima em tradições e
realidades bem pouco conhecidas e exploradas pelos brasileiros. Isso é o que
designaríamos por interdisciplinaridade. O texto literário, ao nosso ver, pode ser
um instrumento fundamental na divulgação de aspectos que unem os brasileiros e
os povos africanos, bem como as suas diferenças, que, de certa forma, voltam a
unir-nos como nações, como seres humanos que têm necessidade de
desenvolver a solidariedade uns com os outros. A pesquisa tem por objetivos: (a)
comparar as obras O mundo se despedaça e Hibisco roxo sob o ponto de vista
literário; (b) levantar aspectos importantes da cultura e tradições africanas; (c)
discutir metodologias de ensino e divulgação dessas tradições e culturas em jovens
e adolescentes das escolas da educação básica brasileira. A pesquisa levanta
questões inerentes ao ensino da literatura entre jovens e adolescentes ligando se à
cultura e as tradições. Primeiramente, se aborda questões da oralidade como ponto
de partida para transmissão da cultura. Nessa parte, discute-se as complexidades
dos conceitos de oratura versus literatura. Procurou-se falar da importância do
estudo dos contos africanos em sala de aula como instrumento importante para a
partilha de cultura. Em seguida apresentou-se, de forma separada, as análises dos
dois romances: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe e Hibisco Roxo, de
Chimamanda Ngozi Adichie. Mais adiante, identicou-se marcas linguísticas
em contos africanos e debates sobre como ensinar a literatura africana de forma a
reconhecer sua identidade cultural e linguística. O trabalho termina com a
apresentação das considerações nais e referências bibliográcas.1. A
oralidade como o ponto de partida da transmissão da culturaOs povos africanos, na
sua maioria, são de tradição oral, o que signica que a transmissão das culturas,
das tradições e dos modos de ser e de estar em sociedade são transmitidos pela
oralidade. É sabido que a escrita surgiu no Egito há 3000 anos a.C, mas não
inuenciou os povos, nem as línguas do grupo bantu, localizados
geogracamente na região central e sul do continente africano.A importância dos
mais velhos nas tradições africanas, em especial dos povos do grupo bantu, se dá,
principalmente, porque são eles que passam a bagagem de conhecimentos
acumulados ao longo da vida para as novas gerações. Os contos são, sem dúvida, o
ponto de partida para essa troca de conhecimentos culturais. O ensinamento se
baseia em uma história, ou um conto, do qual se extrai a moral, quer dizer, o
conhecimento.

Interfaces Vol. 7 n.2 (dezembro 2016) 77ISSN 2179-0027Contrariamente aos


contos oralizados, em sociedades que possuem a escrita, as formas de transmissão
dos conhecimentos encontram-se mais ou menos mediatizadas. Segundo (NUNES,
2009, p. 39) “a transmissão de valores e conhecimentos já não é mais feita a partir
do núcleo familiar, mas a instrução é partilhada por diferentes entidades (família,
escola, meios de comunicação social e outras).” Toda a oratura não tem dono, quer
dizer, as histórias e os contos não têm autoria, atitude que contraria os
princípios da literatura, onde cada autor se identica e toma posse das estórias
inventadas. Enquanto a primeira possui público especíco (jovens e crianças) e
exige a presença física dos ouvintes, a segunda atinge público distante e não são
previsíveis os futuros leitores, nem a sua faixa etária. O contador de histórias
certica (em presença) a compreensão do conto ou vai tirando dúvidas e
incompreensões, enquanto que o texto escrito pode ser interpretado de formas
diversas dependendo da instrução, da cultura ou das inuências do leitor. Os
contadores não têm a possibilidade de criar palavras novas (neologismos)
enquanto que os escritores tem mais tempo para pensar, inventar e colocar os seus
estilos nos textos. Os textos produzidos oralmente são sujeitos a mudanças
(acréscimos ou omissões) segundo os objetivos do contador, enquanto que na
literatura se mantém el ao texto original do autor com o m e a moral pré-
determinada. É importante notar que a cultura africana é única, social, e oralizada
no pensamento, o que signica que o discurso é falado no cérebro. Desta forma se
entende que a voz e a imagem constituem um ponto de partida de nossa narrativa
oral.2. A oratura versus literatura: perspectivas opostasO conceito de literatura já é
muito bem com-preendido pelo público brasileiro. Mas a palavra “oratura” nem
tanto. Segundo Souza (2007), a literatura éA grandeza de uma literatura, ou de uma
obra, “depende da sua relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem
por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a
prendem a um momento determinado e a um determinado lugar.” (CARDOSO,
2006, p.53).Por outro lado, a oratura é o conjunto das obras sem autoria, que são
criadas e difundidas por anônimos, e que servem de instrumentos de educação
cívica e moral das sociedades. Todas as sociedades possuem histórias e contos que
passam mensagens sobre as regras de ser e de estar numa determinada sociedade.
São inclusas neste grupo “três grandes gêneros: formas e jogos de língua
(provérbios, ditos, adivinhas, orações, lengalengas, etc.), formas narrativas (contos,
lendas e mitos), formas dramáticas e musicais (teatro popular, cantigas e
romances).” (NUNES, 2009, p.35).Para Nunes (2009, p.35), constata-se que a
oralidade e a escrita são dois processos diferentes de produção e transmissão da
própria tradição que, não raras vezes, interagem, visto que muitos textos, antes de
circularem oralmente, já tiveram um registro escrito, e o contrário também se
observa. “Em algum momento, textos da oratura são coletados e publicados na
forma escrita, passando assim da oratura para literatura.” (NUNES, 2009, p.35). Na
realidade o escritor não parte do nada. Ele pertence a um povo que tem uma cultura
e tradição. Esses aspectos sempre se farão sentir em seus textos, querendo ou não.
Daí que algumas realidades vividas na comunidade, alguns contos ouvidos na
oratura podem se fazer sentir na literatura, direta ou indiretamente.3. O estudo dos
contos africanos em sala de aulaPela nossa experiência como professores (em
Moçambique e no Brasil) entendemos que os contos são um potente material para
divulgação das realidades de diversas sociedades. Os autores desses materiais
jamais se desligam da sua cultura, mesmo se a história for ctícia ou imaginária,
como tem sido na maioria dos casos. Olhemos a sala de aula como espaço rico para
formação de mentes pensantes e espaço de troca de conhecimentos e aprendizagem
da descoberta do mundo. Se o conjunto da produção escrita de uma época ou país,
ou melhor, é o conjunto de obras distintas pela temática, de origem ou de público
visado. Pode-se dividir em: infanto-juvenil, de massa, feminina, de cção
cientíca, entre outros. Existe uma literatura de áreas especícas do saber,
como por exemplo: literatura médica, literatura jurídica, literatura sociológica, e
por aí em diante. (SOUZA, 2007, p.45).

Interfaces Vol. 7 n.2 (dezembro 2016) 78ISSN 2179-0027assim reetirmos,


teremos a oportunidade de compreender que a presença do conto em sala de aula
é um potencial instrumento para a transmissão de valores que nem são reportados
pela mídia e pelos manuais escolares (livros de história). Isso signica que
devemos estar atentos à diversidade que é encontrada dentro das nossas salas de
aula, em razão da nossa formação histórica, e também considerando o número de
refugiados pelo mundo que, de forma humanitária, nos convoca a participar e
acolher, tendo em vista que o Brasil é signatário dos principais tratados
internacionais de direitos humanos. Também fazemos parte da Convenção das
Nações Unidas de 1951, sobre o Estatuto dos Refugiados e do seu Protocolo de
1967, tendo, inclusive, o Brasil, promulgado em julho de 1997, a sua lei de refúgio
(nº 9.474/97), contemplando os principais instrumentos regionais e internacionais
sobre o tema. (UNHCR/ACNUR, 2016). Tudo isso reforça nosso papel de
promover uma educação que não vire as costas para esse encontro de pessoas, com
vistas a cultivar o respeito e a solidariedade, como lembra Nunes (2009,
p.26):Segundo Cardoso, a função principal dessa educação das tradições em contos
“deriva da elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa visão do
mundo por meio de instrumentos expressivos adequados.” (CARDOSO, 2006,
p.36). Esse aspecto mostra como as pessoas exprimem as suas representações
individuais e coletivas que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no
patrimônio do grupo, como um todo. Na perspectiva de Martins (2006, p.84), “é
fundamental que a leitura literária seja abordada na escola, tendo em vista as
contribuições da teoria da literatura, as quais certamente podem facilitar a
interação do leitor com o texto literário”. Vários autores, como Pinheiro (2006),
apontam que houve evolução dos livros didáticos nos últimos anos, embora a
maior parte das páginas devesse ser ocupada por textos literários e não por fotos.
Pinheiro propõe que o professor conheça a realidade social e cultural dos seus
alunos, e a partir desse conhecimento indique leituras que possam atender à
expectativa dos mesmos. (PINHEIRO, 2006).Nos textos das duas obras que
vamos analisar mais adiante são mostradas experiências humanas diferentes da
vivência do leitor brasileiro, e dão maior importância às tradições locais. É
importante que o aluno brasileiro tenha contato com obras de outras nações, pois
isso ajuda no enriquecimento cívico. Ao nosso ver, deve-se pensar estratégias para
o ensino da literatura na escola, de forma que haja o letramento literário defendido
por autores como Cosson (2006). Assim, os alunos deixarão de ler textos apenas
para fazer vestibular ou mecanicamente, para aprender a escrever, e passarão a
cultivar o gosto pela verdadeira leitura e consumo literário. Concordamos com a
ideia segundo a qual o texto literário é plural e é marcado pela inter-relação entre
diversos códigos (temáticos, ideológicos, linguísticos, estilísticos etc.), devendo ser
trabalhado de forma a fazê-lo estabelecer interação entre a literatura e outras
áreas que se relacionam no momento da constituição do texto. Defendendo esse
letramento literário, Machado (2010) conclui, mostrando como pode ser feitoOs
argumentos de Machado revelam o que é prática cotidiana no mundo. A maioria
das pessoas que nunca vieram ao Brasil imagina que no país só tem samba, gente
dançando de todo lado, jogando futebol e sem pobreza nenhuma. Essa ideia é
passada pela mídia conservadora que tenta passar uma imagem paradisíaca, num
país que tem problemas como qualquer outro. A falta de leitura muitas vezes leva-
nos para um mundo imaginário produzido pela mídia. Silva (2003, p.515) é outra
autora que também orienta para esse cuidado que a escola e seus professores
devem Numa sociedade multicultural como a nossa (embora variando de cidade
para cidade, de escola para escola), o reconhecimento e o respeito pelas
necessidades individuais de todos os alunos (portugueses e outros) em contexto de
diversidade e pelas necessidades especícas dos alunos recém-chegados ao
sistema educativo nacional devem ser assumidos como princípio fundamental na
construção de projectos curriculares adequados a contextos de diversidade cultural.
(NUNES, 2009, p. 26)Portanto, ao receber os alunos para a aula de Literatura, o
professor deve, como tarefa primordial, criar, dentro de sua sala de aula,
interatividade, de tal forma que possa aguçar o interesse desses jovens aprendizes
pela leitura, já que vivemos em um mundo onde a televisão, o videogame, o
computador e o shopping center estão cada vez mais conquistando espaço dentre
os afazeres diários da criança, do adolescente e até mesmo do adulto, tornando a
concorrência perante a leitura, cada vez mais acirrada. (MACHADO, 2010,
p.51).

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