Você está na página 1de 10

- EXAME 2015 1ªFASE

A música é outra coisa. Domenico Scarlatti trouxe para a abegoaria um cravo, não o carregou
ele, mas dois mariolas, a pau, corda, chinguiço, e muito suor da testa, desde a Rua Nova dos
Mercadores, onde foi comprado, até S. Sebastião da Pedreira, onde seria ouvido, veio Baltasar
com eles para indicar o caminho, outra ajuda lhe não requereram, que este transporte não se
faz sem ciência e arte, distribuir o peso, combinar as forças como na pirâmide da Dança da
Bica, aproveitar o molejo das cordas e do pau para ritmar a passada, enfim, segredos de ofício
que tanto valem como outros, e cuida cada qual que os do seu são máximos. O cravo foi
deixado pelos galegos do lado de fora do portão, não faltava mais nada verem eles a máquina
de voar, e para a abegoaria o levaram, com grande esforço, Baltasar e Blimunda, não tanto
pelo peso, mas por lhes faltarem arte e ciência, sem contar que as vibrações das cordas
pareciam queixumes magoados e por causa deles se lhes apertava o coração, também
duvidoso e assustado de tão extrema fragilidade. Nessa mesma tarde veio Domenico Scarlatti,
ali se sentou a afinar o cravo, enquanto Baltasar entrançava vimes e Blimunda cosia velas,
trabalhos calados que não perturbavam a obra do músico. E tendo concluído a afinação,
ajustado os saltarelos que o transporte havia desacertado, verificado as penas de pato uma
por uma, Scarlatti pôs-se a tocar, primeiro deixando correr os dedos sobre as teclas, como se
soltasse as notas das suas prisões, depois organizando os sons em pequenos segmentos, como
se escolhesse entre o certo e o errado, entre a forma repetida e a forma perturbada, entre a
frase e o seu corte, enfim articulando em discurso novo o que parecera antes fragmentário e
contraditório. De música sabiam pouco Baltasar e Blimunda, a salmodia dos frades, raramente
o estridor operático do Te Deum, toadas populares campestres e urbanas, cada qual suas,
porém nada que se parecesse com estes sons que o italiano tirava do cravo, que tanto
pareciam brinquedo infantil como colérica objurgação, tanto parecia divertirem-se anjos como
zangar-se Deus. Ao fim de uma hora levantou-se Scarlatti do cravo, cobriu-o com um pano de
vela, e depois disse para Baltasar e Blimunda, que tinham interrompido o trabalho, Se a
passarola do padre Bartolomeu de Gusmão chegar a voar um dia, gostaria de ir nela e tocar no
céu, e Blimunda respondeu, Voando a máquina, todo o céu será música, e Baltasar,
lembrando-se da guerra, Se não for inferno todo o céu. Não sabem, estes dois, ler nem
escrever, e contudo dizem coisas assim, impossíveis em tal tempo e em tal lugar, se tudo tem a
sua explicação, procuremos esta, se agora a não encontrarmos, outro dia será. Muitas vezes
voltou Scarlatti à quinta do duque de Aveiro, nem sempre tocava, mas em certas ocasiões
pedia que não se interrompessem os trabalhos ruidosos, a forja rugindo, o malho retumbando
na bigorna, a água fervendo na tina, mal se ouvia o cravo no meio do grande clamor da
abegoaria, e no entanto o músico encadeava serenamente a sua música, como se o rodeasse o
grande silêncio do espaço onde desejara tocar um dia.

1. Explicite o contraste existente no modo como o cravo é transportado, primeiro, até ao


portão da quinta e, depois, até à abegoaria.

Da Rua Nova dos Mercadores até ao portão da quinta, o cravo é carregado por dois
homens experientes, que usam os processos adequados para, com o seu saber e com os
cuidados necessários, levarem a carga até São Sebastião da Pedreira. Já do portão até à
abegoaria, o transporte é feito por Baltasar e por Blimunda, que, por lhes faltar
experiência neste tipo de trabalho e por receio de danificar tão frágil instrumento, tiveram
muita dificuldade em fazer chegar o cravo ao seu destino.
2. Explique a forma como, ao longo do excerto, a música de Scarlatti se vai articulando
com os diferentes trabalhos de Baltasar e de Blimunda na abegoaria.

No dia da chegada do cravo à abegoaria, Scarlatti procedeu à sua afinação, após o que
começou a tocar, encadeando os sons de forma progressivamente mais complexa.
Entretanto, Baltasar e Blimunda dedicavam-se a trabalhos pouco ruidosos (entrançar
vimes e coser velas), tarefas que não interferiam com a música de Scarlatti. Nas visitas
posteriores à quinta, Scarlatti nem sempre pedia que cessassem os trabalhos ruidosos que
decorriam na abegoaria; assim, o som do cravo fluía de forma harmoniosa, apesar do rugir
da forja, do malho a bater na bigorna ou da água a ferver na tina.

3. «Não sabem, estes dois, ler nem escrever, e contudo dizem coisas assim, impossíveis
em tal tempo e em tal lugar» (linhas 29 e 30). Justifique este comentário do narrador,
tendo em conta o sentido das palavras de Blimunda e de Baltasar que o motivam.

O comentário do narrador justifica-se pela surpresa que as palavras de Blimunda e de


Baltasar lhe provocam, dado que, sendo eles iletrados, são capazes de verbalizar
pensamentos tão complexos e elaborados. Efetivamente, face à possibilidade de a
passarola voar, Blimunda admite que a música se possa integrar no voo como expressão
de harmonia e de celebração. Já Baltasar, levado pelas recordações negativas da guerra,
antevê desastres e sofrimento.

- EXAME 2014 1ªFASE


Agora, sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste descoberto,
sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro, depois Baltasar que segura a corda
com que se fecharão as velas, depois Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos
o futuro, Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez num
sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez logo Baltasar, tremeu-lhe a mão, que isto
será como dizer Fiat, diz-se e aparece feito, o quê, puxa-se e mudamos de lugar, para
onde. Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só
movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda. A vela correu
toda para um lado, o sol bateu em cheio nas bolas de âmbar, e agora, que vai ser de nós. A
máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido,
ouviu-se um rangido geral, eram as lamelas de ferro, os vimes entrançados, e de repente,
como se a aspirasse um vórtice luminoso, girou duas vezes sobre si própria enquanto
subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada,
erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima. Sacudidos pelos
bruscos volteios, Baltasar e Blimunda tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o
padre Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um dos prumos que sustentavam as velas, e
assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível, já mal se distinguia a quinta,
logo perdida entre colinas, e aquilo além, que é, Lisboa, claro está, e o rio, oh, o mar,
aquele mar por onde eu, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vim por duas vezes do Brasil, o
mar por onde viajei à Holanda, a que mais continentes da terra e do ar me levarás tu,
máquina, o vento ruge-me aos ouvidos, nunca ave alguma subiu tão alto, se me visse el-
rei, se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso, se o Santo Ofício
me visse, saberiam todos que sou filho predileto de Deus, eu sim, que estou subindo ao
céu por obra do meu génio, por obra também dos olhos de Blimunda, se haverá no céu
olhos como eles, por obra da mão direita de Baltasar, aqui te levo, Deus, um que também
não tem a mão esquerda, Blimunda, Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenham
medo. Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria coragem. O padre
ria, dava gritos, deixara já a segurança do prumo e percorria o convés da máquina de um
lado a outro para poder olhar a terra em todos os seus pontos cardeais, tão grande agora
que estavam longe dela, enfim levantaram-se Baltasar e Blimunda, agarrando-se
nervosamente aos prumos, depois à amurada, deslumbrados de luz e de vento, logo sem
nenhum susto, Ah, e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a
chorar, parecia uma criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões
matou um homem com o seu espigão, e agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda,
que lhe beija a cara suja, então, então. O padre veio para eles e abraçou-se também,
subitamente perturbado por uma analogia, assim dissera o italiano, Deus ele próprio,
Baltasar seu filho, Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu, Só há um Deus,
gritou, mas o vento levou-lhe as palavras da boca. Então Blimunda disse, Se não abrirmos a
vela, continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol.

1. Explicite, com base no primeiro parágrafo, os contributos do padre Bartolomeu de


Gusmão, de Baltasar e de Blimunda para a construção e para o voo inaugural da
passarola.

o padre Bartolomeu de Gusmão contribui com o saber científico e a inteligência – «viajei à


Holanda» (linha 19); «estou subindo ao céu por obra do meu génio» (linhas 22 e 23); – 
Baltasar contribui com a sua força e o seu trabalho manual – «Puxa, Baltasar» (linha 5);
«por obra da mão direita de Baltasar» (linha 24); –  Blimunda contribui com os seus
poderes sobrenaturais, que permitem ver o que escapa ao olhar humano – «por obra
também dos olhos de Blimunda» (linha 23); num momento de hesitação, é também ela
quem leva Baltasar a agir – «Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de
Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a
corda.» (linhas 6 a 8).

2. Compare, nas suas semelhanças e diferenças, as reações de Baltasar e de Blimunda a


partir do momento em que a passarola se lança céu acima.

Num primeiro momento, Baltasar e Blimunda começam por ser apanhados de surpresa
pelo súbito movimento da passarola – «tinham caído no chão de tábuas da máquina»
(linhas 14 e 15); «Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria
coragem» (linha 26). Depois, erguem-se, ficam deslumbrados e deixam de estar
assustados. Num segundo momento, as reações individualizam-se: –  Baltasar dá largas à
sua alegria – «Ah, e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a
chorar, parecia uma criança perdida» (linhas 31 e 32); «e agora soluça de felicidade» (linha
33); –  Blimunda mantém a calma e o discernimento – «Então Blimunda disse, Se não
abrirmos a vela, continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol.» (linhas 37 e
38).

3. «O padre ria, dava gritos, deixara já a segurança do prumo e percorria o convés da


máquina de um lado a outro» (linhas 26-28). Explique a euforia do padre Bartolomeu
de Gusmão, relacionando-a com dois dos elementos biográficos por ele evocados no
primeiro parágrafo.

O padre manifesta um estado de euforia, pois sente-se realizado e vitorioso pelo facto de
ter conseguido concretizar o seu sonho de voar. Esta euforia é enfatizada pela evocação de
situações anteriormente vividas pelo padre, as quais, pela relevância que assumiram,
aumentam agora o seu contentamento:

– a viagem à Holanda para aquisição de saber – «o mar por onde viajei à Holanda»(linha
19);
– o apoio discreto de D. João V – «se me visse el-rei» (linhas 20 e 21);
– a troça de que foi alvo – «se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim
em verso» (linha 21);
– a perseguição da Inquisição – «se o Santo Ofício me visse» (linhas 21 e 22).

- EXAME 2012 2ªFASE


Regressou o filho pródigo, trouxe mulher, e, se não vem de mãos vazias, é porque uma lhe
ficou no campo de batalha e a outra segura a mão de Blimunda, se vem mais rico ou mais
pobre não é coisa que se pergunte, pois todo o homem sabe o que tem, mas não sabe o que
isso vale. Quando Baltasar empurrou a porta e apareceu à mãe, Marta Maria, que é o seu
nome, abraçou-se ao filho, abraçou-o com uma força que parecia de homem e era só do
coração. Estava Baltasar com o seu gancho posto, e era um dó de alma, uma aflição ver sobre
o ombro da mulher um ferro torcido em vez da concha que os dedos fazem, acompanhando o
contorno do que cingem, amparo que o será tanto mais, quanto mais se amparar. O pai não
estava em casa, andava no trabalho do campo, a irmã de Baltasar, única, casou-se e já tem
dois filhos, chama-se Álvaro Pedreiro o homem dela, puseram-lhe o ofício no nome, caso não
raro, que razões teria havido, e em que tempos, para que a alguns tivesse sido dado, ainda que
só de alcunha, o apelido de Sete-Sóis. Não passara Blimunda de entreportas, à espera da sua
vez, e a velha não a via, mais baixa que o filho, além de estar a casa muito escura. Moveu-se
Baltasar para deixar ver Blimunda, era o que ele pensava, mas Marta Maria viu primeiro o que
ainda não tinha visto, talvez apenas pressentido no frio desconforto do ombro, o ferro em vez
da mão, porém ainda distinguiu o vulto à porta, pobre mulher, dividida entre a dor que a
mutilava naquele braço e a inquietação doutra presença, de mulher também, e então
Blimunda afastou-se para que cada coisa acontecesse a seu tempo e cá de fora ouviu as
lágrimas e as perguntas, Meu querido filho, como foi, quem te fez isto, o dia ia escurecendo,
até que Baltasar veio à porta e a chamou, Entra, acendia-se dentro de casa uma candeia,
Marta Maria ainda soluçava de mansinho, Minha mãe, esta é a minha mulher, o nome dela é
Blimunda de Jesus. Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da
vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é
será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com
isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo. Com a última luz do dia chegara o pai de
Baltasar, de seu nome João Francisco, filho de Manuel e Jacinta, aqui nascido em Mafra,
sempre nela vivendo, nesta mesma casa à sombra da igreja de Santo André e do palácio dos
viscondes, e, para ficar a saber-se mais alguma coisa, homem tão alto como o filho, agora um
tanto curvado pela idade e também pelo peso do molho de lenha que metia para dentro de
casa. Desajoujou-o Baltasar, e o velho encarou com ele, disse, Ah, homem, deu logo pela
mutilação, mas dela não falou, apenas isto, Paciência, quem foi à guerra, depois olhou para
Blimunda, compreendeu que era a mulher do filho, deu-lhe a mão a beijar, daí a pouco
estavam a sogra e a nora a tratar da ceia, enquanto Baltasar explicava como tinha sido aquilo
da batalha, a mão cortada, os anos de ausência, mas calando que estivera quase dois anos em
Lisboa sem dar notícias, quando as primeiras e únicas só aqui tinham sido recebidas há poucas
semanas, por carta que o padre Bartolomeu Lourenço ainda escrevera, enfim a pedido de
Sete-Sóis, dizendo que estava vivo e ia voltar, ai a dureza de coração dos filhos, que estão vivos
e fazem dos seus silêncios morte.

1. Indique, de acordo com o primeiro período do texto, três elementos que caracterizam
Baltasar no momento em que regressa a casa.

No momento em que regressa a casa, Baltasar vem: – pobre («de mãos vazias» ‒ linha 1); – 
mutilado, já que perdeu a mão esquerda («uma lhe ficou no campo de batalha» – linhas 1-2);
–  acompanhado de Blimunda («trouxe mulher» ‒ linha 1; «e a outra segura a mão de
Blimunda» – linha 2)

2. Compare as reações de Marta Maria e de João Francisco à mutilação de Baltasar,


fundamentando a sua resposta com elementos textuais.

Os pais de Baltasar reagem de forma diferente à mutilação do filho: –Marta Maria manifesta
espanto e dor, chorando e fazendo perguntas ao filho («a dor que a mutilava naquele braço» ‒
linhas 16-17; «as lágrimas e as perguntas, Meu querido filho, como foi, quem te fez isto» ‒
linhas 18-19; «soluçava de mansinho» – linha 21); – João Francisco encara a mutilação do filho
com resignação, compreendendo a sua condição de soldado («mas dela não falou, apenas isto,
Paciência, quem foi à guerra» ‒ linhas 30-31).

3. Caracterize os vários momentos da aproximação entre Marta Maria e Blimunda.

A relação entre Marta Maria e Blimunda evolui ao longo do excerto: – num primeiro momento,
Marta Maria distingue o vulto de uma mulher, o que a inquieta (linhas 16-17); – num segundo
momento, Baltasar apresenta Blimunda a Marta Maria (linha 21); –  finalmente, Blimunda é
integrada nas tarefas domésticas («daí a pouco estavam a sogra e a nora a tratar da ceia» ‒
linhas 32-33).

4. Releia a expressão: «ai a dureza de coração dos filhos, que estão vivos e fazem dos
seus silêncios morte.» (linha 37). Explique este comentário do narrador, relacionando-
o com a conversa entre Baltasar e o pai.

No seu comentário, o narrador critica a atitude desatenta de Baltasar, que, tendo estado em
Lisboa durante dois anos, apenas há duas semanas dera notícias, prolongando o sofrimento
dos pais com o seu longo silêncio. Na conversa com o pai, Baltasar omite essa informação, para
ele não pensar que houvera indiferença da sua parte.

- EXAME 2010 2ªFASE


O italiano abrigara-se à sombra fresca de um grande plátano. Não parecia curioso do que o
rodeava, olhava tranquilo as janelas fechadas do palácio, a cimalha onde cresciam ervas, a
caleira da água por cima da qual passavam andorinhas rasando, à caça dos insectos. O padre
Bartolomeu Lourenço aproximou-se, trazia na mão um pano que tirara do bolso, Só de olhos
vendados se chega ao segredo, disse, sorrindo, e o músico respondeu, em tom igual, Quantas
vezes assim mesmo se volta dele, Não seja este o caso, senhor Scarlatti, cuidado com a soleira,
essa pedra mais alta, agora, antes de tirar a venda, quero dizer-lhe que vivem aqui duas
pessoas, um homem chamado Baltasar Sete-Sóis, e uma mulher, Blimunda, a quem, por viver
com Sete-Sóis, chamei Sete-Luas, são eles quem está construindo a obra que lhe vou mostrar,
eu explico o que devem fazer, eles executam, e agora já pode desatar o pano, senhor Scarlatti.
Sem precipitação, tão tranquilamente como antes estivera olhando as andorinhas, o italiano
tirou a venda. Na sua frente estava uma ave gigantesca, de asas abertas, cauda em leque,
pescoço comprido, a cabeça ainda em tosco, por isso não se sabia se viria a ser falcão ou
gaivota, É este o segredo, perguntou, Este é, até hoje de três pessoas, agora de quatro, aqui
está Baltasar Sete- -Sóis, e Blimunda não se demora, anda na horta. O italiano fez uma
pequena vénia na direcção de Baltasar, que respondeu com outra mais profunda, ainda que
inábil, sempre era ele o mecânico, e além disso estava sujo, enfarruscado da forja, em todo ele
só brilhava o gancho, do muito e constante trabalho. Domenico Scarlatti aproximou-se da
máquina, que se equilibrava sobre uns espeques laterais, pousou as mãos numa das asas como
se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar do seu grande peso,
cavername de madeira, lamelas de ferro, vime entrançado, se houver forças que façam
levantar isto, então ao homem nada é impossível, Estas asas são fixas, Assim é, Nenhuma ave
pode voar sem bater as asas, A isso Baltasar responderia que basta ter forma de ave para voar,
mas eu respondo que o segredo do voo não é nas asas que está, E esse segredo não o posso
saber eu, Não posso dar mais que mostrar o que aqui se vê, Já isso basta para que eu
agradeça, mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta. Baltasar e o padre
Bartolomeu Lourenço olharam-se perplexos, e depois para fora. Blimunda estava ali, com um
cesto cheio de cerejas, e respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir,
umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo, e todas as paredes,
se for preciso. Esta é que é Blimunda, disse o padre, Sete-Luas, acrescentou o músico. Ela tinha
brincos de cerejas nas orelhas, trazia-as assim para se mostrar a Baltasar, e por isso foi para
ele, sorrindo e oferecendo o cesto, É Vénus e Vulcano, pensou o músico, perdoemos-lhe a
óbvia comparação clássica, sabe ele lá como é o corpo de Blimunda debaixo das roupas
grosseiras que veste, e Baltasar não é apenas o tição negro que parece, além de não ser coxo
como foi Vulcano, maneta sim, mas isso também Deus é. Sem falar que a Vénus cantariam
todos os galos do mundo se tivesse os olhos que Blimunda tem, veria facilmente nos corações
amantes, em alguma coisa há-de um simples mortal prevalecer sobre as divindades. E sem
contar que sobre Vulcano também Baltasar ganha, porque se o deus perdeu a deusa, este
homem não perderá a mulher.

1. Considere o primeiro parágrafo do texto. Descreva o comportamento de Scarlatti


imediatamente antes de ser iniciado no «segredo», fundamentando a resposta em três
citações do texto.

No momento em que vai ser iniciado no «segredo», Scarlatti mostra-se: – indiferente – «Não
parecia curioso» (linha 1); – calmo – «olhava tranquilo» (linha 2), «Sem precipitação, tão
tranquilamente como antes estivera olhando as andorinhas» (linhas 10 e 11); – cúmplice –
«disse, sorrindo, e o músico respondeu, em tom igual» (linha 5).

2. Interprete a resposta do músico: «Quantas vezes assim mesmo se volta dele»(linhas 5


e 6).

Scarlatti dá a entender que nem sempre o «segredo» chega a ser desvendado, uma vez que: –
pode ter de se procurar a chave do «segredo» numa esfera mais profunda do que a que é
apreendida pelos sentidos, situada para além do domínio do racional; – pode esse «segredo»
corresponder a alguma coisa de obscuro que não é traduzível por palavras; – pode esse
«segredo» ser insondável, isto é, não ter solução
3. Scarlatti e Baltasar têm percepções diferentes da «ave gigantesca» (linha 12). Explique
em que consiste a diferença, ilustrando o ponto de vista de cada uma destas
personagens com uma citação adequada.

– Domenico Scarlatti, músico conceituado, trata a passarola como um instrumento musical,


fazendo-a vibrar ao colocar sobre uma das asas as suas mãos, e revela uma atitude racional,
fazendo o voo da máquina depender de uma força que a conseguisse elevar e constatando,
com algum cepticismo, que as asas da máquina, estando fixas, não podiam bater («pousou as
mãos numa das asas como se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar
do seu grande peso» – linhas 19 e 20; «se houver forças que façam levantar isto, então ao
homem nada é impossível» – linhas 21 e 22).

– Baltasar Sete-Sóis, o obreiro «enfarruscado da forja» (linha 17), encara a passarola como
produto de um trabalho esforçado e acredita na possibilidade de concretizar o sonho («em
todo ele só brilhava o gancho, do muito e constante trabalho» – linhas 17 e 18; «basta ter
forma de ave para voar» – linha 23).

4. No último parágrafo, o narrador assume uma atitude de comentador. Transcreva do


texto dois excertos exemplificativos de tal atitude e explicite a intenção que pode estar
subjacente a esses comentários.

(linhas 32 e 33) – Constatação irónica da comparação estereotipada de Scarlatti. OU –


Valorização dos humanos (Baltasar e Blimunda) nessa aproximação aos deuses. OU –
Manifestação de simpatia por Baltasar e Blimunda.

(linhas 33 e 34) - Crítica a Scarlatti, que se pronuncia sobre um assunto que desconhece. OU –
Elogio à beleza de Blimunda

(linhas 34 e 35) - Valorização da condição de Baltasar em relação a Vulcano, por não ser coxo e
ter o amor incondicional da sua amada Blimunda.

(linhas 35 e 36) - Magnificação dos dotes de Blimunda, possuidora de um dom especial.

(linhas 37 a 39) - Afirmação da fidelidade e do amor entre Baltasar e Blimunda.

- EXAME 2008 2ªFASE


De Montemor a Évora não vão faltar trabalhos. Voltou a chover, tornaram os atoleiros ,
partiram-se eixos, rachavam-se como gravetos os raios das rodas. A tarde caía rapidamente, o
ar arrefecia, e a princesa D. Maria Bárbara, que enfim adormecera, auxiliada pelo torpor
emoliente dos caramelos com que aconchegara o estômago e por quinhentos passos de
estrada sem buracos, acordou com um grande arrepio, como se um dedo gelado lhe tivesse
tocado na testa, e, virando os olhos ensonados para os campos crepusculares, viu parado um
pardo ajuntamento de homens, alinhados na beira do caminho e atados uns aos outros por
cordas, seriam talvez uns quinze. Afirmou-se melhor a princesa, não era sonho nem delírio, e
turbou-se de tão lastimoso espectáculo de grilhetas, em véspera das suas bodas, quando tudo
devia ser ledice e regozijo, já não chegava o péssimo tempo que faz, esta chuva, este frio,
teriam feito bem melhor se me casassem na primavera. Cavalgava à estribeira um oficial a
quem D. Maria Bárbara ordenou que mandasse saber que homens eram aqueles e o que
tinham feito, que crimes, e se iam para o Limoeiro ou para a África. Foi o oficial em pessoa,
talvez por muito amar esta infanta, já sabemos que feia, já sabemos que bexigosa, e daí, e vai
levada para Espanha, para longe, do seu puro e desesperado amor, querer um plebeu a uma
princesa, que loucura, foi e voltou, não a loucura, ele, e disse, Saiba vossa alteza que aqueles
homens vão trabalhar para Mafra, nas obras do convento real, são do termo de Évora, gente
de ofício, E vão atados porquê, Porque não vão de vontade, se os soltam fogem, Ah. Recostou-
se a princesa nas almofadas, pensativa, enquanto o oficial repetia e gravava em seu coração as
doces palavras trocadas, há-de ser velho, caduco e reformado, e ainda se recordará do
mavioso diálogo, como estará ela agora, passados todos estes anos. A princesa já não pensa
nos homens que viu na estrada. Agora mesmo se lembrou de que, afinal, nunca foi a Mafra,
que estranha coisa, constrói-se um convento porque nasceu Maria Bárbara, cumpre-se o voto
porque Maria Bárbara nasceu, e Maria Bárbara não viu, não sabe, não tocou com o dedinho
rechonchudo a primeira pedra, nem a segunda, não serviu com as suas mãos o caldo dos
pedreiros, não aliviou com bálsamo as dores que Sete-Sóis sente no coto do braço quando
retira o gancho, não enxugou as lágrimas da mulher que teve o seu homem esmagado, e agora
vai Maria Bárbara para Espanha, o convento é para si como um sonho sonhado, uma névoa
impalpável, não pode sequer representá-lo na imaginação, se a outra lembrança não serviria a
memória.

1. Vários são os imprevistos da viagem que a princesa e a sua comitiva fazem, de


Montemor a Évora. Refira três desses imprevistos, fundamentando a sua resposta com
elementos do texto.

– condições climatéricas adversas – «voltou a chover» (linha 1), «esta chuva» («este frio») –
linha 11; – consequência dessa precipitação – «os atoleiros» (linha 2); – desgaste do meio de
transporte – «eixos» que se partem e «raios das rodas» que se racham «como gravetos» (linha
2); – visão perturbadora de um «pardo ajuntamento de homens, alinhados (…) e atados uns
aos outros por cordas» (linhas 7-8);

2. Explicite o sentido do seguinte excerto: «turbou-se de tão lastimoso espectáculo de


grilhetas, em véspera das suas bodas, quando tudo devia ser ledice e regozijo» (linhas
9 a 11).

A resposta deve contemplar a ideia de contraste entre a vontade de festejar a anunciada


felicidade «das suas bodas» (linha 11) e a visão da realidade brutal (a constatação da
escravatura de homens no trabalho de construção do convento) negativamente conotada pelo
adjectivo «lastimoso» e pelo nome «grilhetas» (linha 11);

3. Identifique um dos recursos de estilo presentes no último parágrafo do texto e


comente a respectiva expressividade.

– a construção anafórica – «Maria Bárbara não viu, não sabe, não tocou (…) não serviu, não
aliviou, não enxugou» (linhas 29-32) – realça o forte contraste negativo entre a indiferença da
princesa face à construção do convento e essa construção como fonte de desgosto e de
sofrimento para os trabalhadores;
– a comparação – «o convento é para si como um sonho sonhado» (linhas 33-34) – sublinha
que o convento não faz parte da realidade de Maria Bárbara. É uma espécie de sonho
inconsistente, sem imagens; «sonho sonhado» – redundância que reforça o afastamento do
real;
– a metáfora – «uma névoa impalpável» (linha 34) – traduz a incapacidade de Maria Bárbara
para representar o convento. Este, apesar de existir porque Maria Bárbara existe, não é, para a
princesa, mais do que essa «névoa» abstracta;
4. Divida o texto em partes lógicas e apresente, para cada uma delas, uma frase que
sintetize o respectivo conteúdo

– os contratempos surgidos durante a viagem da princesa de Montemor a Évora (1.º e 2.º


períodos do 1.º parágrafo);
– a curiosidade e a perturbação que a princesa revela perante o «pardo ajuntamento» (linha
7) e o amor do oficial pela princesa (último período do 1.º parágrafo e o 2.º parágrafo);
– a reflexão em torno do desinteresse da princesa por um convento que está a ser construído
para celebrar o seu nascimento (3.º parágrafo);

- EXAME 2014 EE
Frias hão de ter parecido, a quem perto estivesse, as palavras ditas por Blimunda, Ali vai minha
mãe, nenhum suspiro, lágrima nenhuma, nem sequer o rosto compadecido, que ainda assim
não faltam estes no meio do povo apesar de tanto ódio, de tanto insulto e escárnio, e esta que
é filha, e amada como se viu pelo modo como a olhava a mãe, não teve mais dizer senão, Ali
vai, e depois voltou-se para um homem a quem nunca vira e perguntou, Que nome é o seu,
como se contasse mais sabê-lo que o tormento dos açoites depois do tormento do cárcere e
dos tratos, e que a certa certeza de ir Sebastiana Maria de Jesus, nem o nome a salvou,
degredada para Angola e lá ficar, quem sabe se consolada espiritual e corporalmente pelo
padre António Teixeira de Sousa, que muita prática leva de cá, e ainda bem, para não ser tão
infeliz o mundo, mesmo quando já tem garantida a condenação. Porém, agora, em sua casa,
choram os olhos de Blimunda como duas fontes de água, se tornar a ver sua mãe será no
embarque, mas de longe, mais fácil é largar um capitão inglês mulheres de má vida que beijar
uma filha sua mãe condenada, encostar a uma face outra face, a pele macia, a pele frouxa, tão
perto, tão distante, onde estamos, quem somos, e o padre Bartolomeu Lourenço diz, Não
somos nada perante os desígnios do Senhor, se ele sabe quem somos, conforma-te Blimunda,
deixemos a Deus o campo de Deus, não atravessemos as suas fronteiras, adoremos deste lado
de cá, e façamos o nosso campo, o campo dos homens, que estando feito há de querer Deus
visitar-nos, e então, sim, será o mundo criado. Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado,
apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca
do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul,
que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros
noturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra. Veio a esta casa não porque lhe
dissessem que viesse, mas Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era
necessária melhor razão. Terminado o auto de fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o
padre foi com ela, e quando Blimunda chegou a casa deixou a porta aberta para que Baltasar
entrasse. Ele entrou e sentou-se, o padre fechou a porta e acendeu uma candeia à última luz
duma frincha, vermelha luz do poente que chega a este alto quando já a parte baixa da cidade
escurece, ouvem-se gritar soldados nas muralhas do castelo, fosse a ocasião outra, havia Sete-
Sóis de lembrar-se da guerra, mas agora só tem olhos para os olhos de Blimunda, ou para o
corpo dela, que é alto e delgado como a inglesa que acordado sonhou no preciso dia em que
desembarcou em Lisboa. Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume na lareira, pôs
sobre a trempe uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma parte para duas tigelas
largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto sem falar, não tornara a abrir a boca depois
que perguntou, há quantas horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado
primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era como se
calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a colher de que se
serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi
dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito
que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados.

1. Em casa, a reação de Blimunda face ao destino da mãe é muito diferente daquela que
mostrara em público. Explique esse contraste.
Em público, quando vê a mãe entre os condenados, Blimunda mostra uma discrição que pode
ser entendida como frieza, aparentando até sentir menos pena do que aquela que é possível
ler no rosto de alguns populares. Esta reação, que poderá parecer estranha, é justificada pelo
facto de Blimunda ter de manter-se anónima entre o povo, pois poderia ela mesma ser alvo da
Inquisição. Em casa, Blimunda chora convulsivamente, exteriorizando, então, toda a sua dor,
por saber que nunca há de voltar a ver a mãe, senão ao longe, no momento da partida de
Sebastiana Maria de Jesus para o degredo.

2. Interprete as palavras do padre Bartolomeu Lourenço sobre a relação entre Deus e o


homem (linhas 15 a 18).
Num primeiro momento, o padre Bartolomeu Lourenço defende que há dois campos distintos,
o de Deus e o dos homens, pondo até a hipótese de Deus não saber quem são os homens. No
entanto, segundo o padre, pela sua capacidade de criar, o homem desperta a atenção divina.
Sugere-se, pois, que o homem é colocado como que a par de Deus, dado o estatuto de criador
atribuído a ambos.

3. Refira as atitudes que comprovam a aproximação progressiva entre Blimunda e


Baltasar
Depois de Blimunda ter perguntado o nome a Baltasar, a aproximação entre ambos realiza-se
por atitudes que tornam as palavras dispensáveis:
– Baltasar segue Blimunda até casa;
– Blimunda deixa a porta aberta, o que constitui um convite a que Baltasar entre;
– Baltasar entra e senta-se, sempre em silêncio;
– Blimunda serve uma tigela de sopa ao padre Bartolomeu Lourenço e outra a Baltasar,
aguardando que este termine a refeição para só depois comer, usando então a colher de que
Baltasar se servira, o que simboliza a união entre ambos.

Você também pode gostar