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ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS

THEREZA BAUMANN
YLLAN DE MATTOS
(Orgs.)

Heresias em perspectiva

EMT UD/ RE
8 ANT, É
ENE LA É
1 “7 0"

Lisboa e 2022
Capítulo 9
O zumbi e o bode diabólico: disputas em torno de
uma cerimônia religiosa africana em Benguela no
século XVIII
Alexandre A. Marcussi
Universidade Federal de Minas Gerais

No dia 11 de novembro de 1720, no presídio português de Benguela,


localizado na costa africana centro-ocidental, o vigário da vara Cristóvão
Moreira da Silva convocou à sua residência algumas testemunhas para
depor em um auto de denúncia, a requerimento do Tribunal do Santo
Ofício de Lisboa. Os alvos da denúncia eram três militares angolanos re-
sidentes em Benguela: o capitão Antônio de Freitas Galvão e seus dois
filhos, o capitão Matias de Freitas e o alferes Antônio de Freitas”. A reco-
lha de testemunhas executada pelo padre Cristóvão deu início a uma se-
quência de querelas e ações judiciais que se prolongou por mais dois
anos, tornando-se o pivô de disputas de poderes envolvendo diferentes
grupos de militares de Benguela e o clero secular, tanto do presídio como

"O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior — Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001 e faz parta da dis-
sertação intitulada Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus
de Luzia Pinta, século XVII e XVIII (PPGH-UFMG, 2015).
*A documentação referente ao caso de Antônio de Freitas Galvão encontra-se em duas fon-
tes inguisitoriais distintas, embora haja repetição entre elas. Uma delas é o sumário de cul-
Pas registrado em um dos Cadernos do Promotor, enquanto a outra é tipificada como “pro-
€esso” (embora não se trate de processo completo) na documentação dispersa do Tribunal
do Santo Ofício. Seguem-se as referências completas para ambas: Arquivo Nacional da
Torre do Tombo (doravante ANTT), Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, cx.
1616, proc. 15874 (Documentação dispersa — Autuação de um auto de denúncia contra
António de Freitas Galvão); e ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 285, f1.250-283. (Cadernos do
Promotor, n. 92).
HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO ASSIS | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

de Luanda, capital do reino de Angola e sede do bispado que detinha ju Í


risdição sobre Benguela.
Este estudo de caso pretende ressaltar alguns aspectos do episódio
para lançar luz sobre as complexas formas de interação de concepç
culturais oriundas de diferentes origens geográficas nas sociedades atlã
ticas da África Centro-Ocidental. Práticas, crenças e modos de viver e
ropeus e africanos combinavam-se e conviviam na experiência cotidi
de diferentes grupos da hierarquia social dos territórios portugueses ce
tro-africanos. Mais que isso, concepções e representações oriundas de di
ferentes tradições culturais podiam ser alternativamente mobilizad AS
para diversos fins, ao sabor de conflitos sociais e institucionais. A histori-
ografia sobre a presença portuguesa na região tem ressaltado que as inte:
rações e transformações culturais da zona atlântica de Angola não podem
ser encaixadas em um padrão aculturativo, segundo o qual uma cul a
católica e portuguesa dominante teria se disseminado progressivamente
para as populações africanas. Antes, os intercâmbios devem ser concebi
dos como multilaterais, levando em muitos casos à adoção de práticas e
concepções africanas, de diferentes origens geográficas, no seio da popt
lação de ascendência lusitana?. Linda Heywood, John Thornton «
Roquinaldo Ferreira sugeriram que essas transformações podem ser li:
das como parte de um processo de “crioulização” cultural nos territóric
africanos com presença portuguesa, resultando no surgimento de cul
ras híbridas de síntese, muitas vezes com predomínio das matrizes cultuz
rais africanas (bacongas ou ambundas, especificamente, para o caso de
Angola e das regiões circunvizinhas da África Centro-Ocidental). q

3 FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Bra
during the Era of the Slave Trade. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2014. Nes
obra, Ferreira também menciona brevemente o caso de Antônio de Freitas Galvão!
nas páginas I7I e 172. :
s Idem. “Ilhas crioulas”: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. R
vista de História, n. 155, São Paulo, p. 17-41, ago-dez, 2006; HEYWOOD, Linda
THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas,
1585-1660. Nova York: Cambridge University Press, 2007. O conceito de “crioulização”, que,
adentrou o campo dos estudos culturais de populações africanas a partir da historiografia”
da escravidão do Caribe e dos EUA, tem múltiplas leituras e não cabe, aqui, uma discussão
pormenorizada a respeito. De maneira geral — e a despeito das acirradas polêmicas —, O
tendimento majoritário do conceito na historiografia norte-americana, a partir da déca
de 1980, privilegiou a ideia da criação de sínteses culturais advindas dos contatos entre
turas africanas e europeias. Para uma discussão mais verticalizada a respeito,
MARCUSSI, Alexandre A. Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da
diáspora africana. São Paulo: Intermeios, 2016, especialmente o capítulo 3. i

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o zuMBI E O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI

O que este estudo de caso pretende ressaltar, contudo, não são


tanto as “sínteses” culturais mais ou menos estáveis, compostas por justa-
* posições entre elementos africanos e europeus em diferentes
proporções.
Quero antes lançar luz sobre as disputas simbólicas em torno de práticas
culturais luso-africanas em contextos de conflito institucional, evidenci-
ando como elas podiam ser lidas de formas distintas e contraditórias ao
sabor dos interesses dos grupos sociais envolvidos. Nesse sentido, não
pretendo bater o martelo a respeito do caráter mais “europeu” ou mais
“africano” das práticas culturais de Antônio de Freitas Galvão e de sua
família. O que me interessa é mostrar que as possíveis leituras dessas prá-
ticas e concepções conforme os universos culturais africanos ou europeus
* já eram, em si, parte do idioma simbólico no qual se desdobravam os con-
flitos sociais na sociedade luso-africana da época. Ler Antônio Galvão
como “europeu” ou como “africano”, longe de ser um ato de interpretação
soberano e autônomo do historiador do presente, é adentrar uma disputa
hermenêutica que já se fazia presente no século XVIIE. Mais importante
do que aquilatar o “grau de africanidade” de Antônio e seus familiares (se
é que isso é de alguma forma possível) talvez seja refletir sobre os sentidos
dessas diferentes leituras para os agentes sociais da época.

Às disputas envolvendo Antônio de Freitas Galvão e seus filhos


Antônio de Freitas Galvão era um homem preto, nascido em
Angola, que ocupava o posto de capitão do exército português no presídio
de Benguela, o maior porto escravista português ao sul de Angola”. Seus

“Esta análise converge, em termos metodológicos, com a importância que Wyatt MacGaffey
e à possibilidade de que as mesmas práticas religiosas, no reino do Congo a partir do
E do século XV, pudessem ser lidas alternativamente a partir de categorias culturais
por-
Ea e bacongas, em consonância com interesses políticos específicos. Veja-se
S ie EY, Wyatt. Dialogues of the deaf: Europeans on the Atlantic coast of Africa. In:
E rthe E TZ, Stuart B. (ed.). Implicit Understandings: Observing, Reporting and Reflecting
io o Between Europeans and Other Peoples in the Early Modern Era. Cam-
os ambridge University Press, 1995, P. 249-267. Para uma reflexão merodologicamente
ido ante, a respeito da catequese dos indígenas na América Portuguesa, veja-se POMPA,
EDUS = Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru, SP:
E, SC, 2003,
co mPortância quantitativa de Benguela no volume do comércio escravista ainda viria a
Cer significativamente ao longo do século XVIII, atingindo o auge no início do século
a E dp pad o porto respondia por um quarto de todos os escravizados embarcados da
sa T entro-Ocidental. Para dados quantitativos, veja-se VOYAGES: The Trans-Atlantic
E Tade Database. In: EMORY UNIVERSITY. Disponível em: <http://www-.slavevoya-
"OrB/>, Acesso em: OI ago. 2019.

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HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO AsSSIS | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

dois filhos homens, Matias e Antônio, também haviam seguido carreira.


militar, sendo o primeiro igualmente capitão e, o segundo, alferes, evis
denciando tratar-se de família de ascendência africana, mas com forte ins!
serção social nas instituições lusitanas. Sua terceira filha, de nome.
Natária, era menor de idade. Em 1720, quando os testemunhos contra ele
são colhidos em Benguela, Antônio de Freitas Galvão era viúvo. Sendo)
sua filha repetidamente descrita como “preta” nas denúncias, é lícito con-
cluir que sua esposa provavelmente também devia ser socialmente co q
siderada “preta”, portanto sem ascendência lusitana evidente. Tratava-se
de uma família que se identificava socialmente como portuguesa, mas)
não tinha ascendência europeia discernível, o que era um padrão comum,
das populações luso-africanas deste periodo e de outros posteriores.
Antônio de Freitas Galvão era um homem doente, sofrendo de
uma “potra”, ou hérnia intestinal”. Buscando alívio para sua enfermidade,
recorreu a cerimônias religiosas ambundas, de natureza terapêutica, que:
forneceram o estopim para a abertura do auto de denúncia contra ele,
Sabe-se, pelas denúncias, que o capitão se tratava há algum tempo co m
um sacerdote da região do Dombe, próxima ao presídio. Segundo o pad
Manuel Gonçalves, comissário e visitador do Santo Ofício que esteve en
Benguela para apurar o caso em 1722, Antônio tinha o achaque há muitos
anos, “não podendo curar dele com remédio algum". A expressão “rem
dio algum” sugere que, além de recorrer às curas africanas, o capitão
havia também procurado outros métodos terapêuticos, muito provavel;
mente os cirurgiões lusitanos, talvez mesmo algum exorcista católi
sendo que o trânsito entre esses diferentes agentes de cura era frequente
nos territórios portugueses”. A despeito de sua adesão a cerimônias reli
giosas africanas, não devemos encarar Antônio de Freitas Galvão co o
alguém que não partilhasse práticas sociais e religiosas europeias. Ab
de contas, o primeiro requisito para que um réu caísse na alçada dos tri

7 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino: aulico, anatomico, architectonici


Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, v. 6, p. 656. Disponível e
BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN. Dicionários. Disponível
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1>. Acesso em: 1º ago. 2019. i
$ ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 285, f1.276. (Cadernos do Promotor, n. 92). Todas as transa
crições textuais de documentos tiveram a grafia e a pontuação modernizadas.
9 RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e Demônios: demonologia e exorcismos no munêS
luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003. ;

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O ZUMBI E O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI
Freitas Galvão, portanto, era um sujeito que transitava entre diferentes
universos culturais e sociais, e é esse trânsito que permite que sua traje-
tória possa ter múltiplas leituras.
Convencido pelo sacerdote do Dombe com quem se tratava de que
sua enfermidade era zumbi, ou seja, uma aflição corporal causada pelo
espírito de um parente falecido, mandou fazer no dia 6 de novembro de
1720, em sua casa no presídio de Benguela, uma grande festa em homena-
gem ao espírito causador da moléstia, com o intuito de apaziguá-lo e cu-
rar-se. Mandou sacrificar um novilho para o espírito e ofertou a carne
num banquete ritual frequentado por grande quantidade de negros do
presídio, o qual contou ainda com música de atabaques e violas e mulhe-
res negras aparamentadas ritualmente (“enfeitadas intempestiva-
mente”), entre as quais se incluía sua filha Natária. A grande cerimônia,
que causou rebuliço no presídio, motivou Manoel Pereira Serra a denun-
ciar Antônio para o vigário da vara, culminando na abertura do auto de
denúncia apenas dois dias depois da festa. Manoel Serra também era,
como Antônio de Freitas Galvão, capitão de uma companhia do exército
de Benguela; diferentemente dele, porém, era português de nascimento".
Tudo indica que Antônio já devia ser persona non grata aos olhos
das autoridades eclesiásticas mesmo antes da grande festa de 1720. A pri-
meira diligência de recolha de testemunhas, constante do auto de denún-
cia produzido em novembro de 1720 em Benguela, foi feita por requeri-
mento do promotor do Santo Ofício, o que significa, certamente, que uma
denúncia prévia contra o capitão já havia sido remetida a Lisboa por um
Comissário inquisitorial — cargo responsável pelo encaminhamento de
denúncias e recolha de testemunhos para apreciação do tribunal, sediado
em Lisboa. À época, o comissário inquisitorial que atuava na região era o
Padre José Barros da Cunha, que também ocupava o cargo de vigário-ge-
Tal do tribunal episcopal do bispado de Congo e Angola, em Luanda. Acu-
mulava, portanto, atribuições jurídicas em dois tribunais distintos: a jus-
tiça episcopal e o tribunal do Santo Ofício da Inquisição, evidenciando a
Colaboração das instituições jurídicas episcopais para o bom funciona-
mento da justiça inquisitorial em Angola, à semelhança do que ocorria

to

E, Inquisição de Lisboa, cx. 1616, proc. 15874, fl.3 (Documentação dispersa — Autuação
k am auto de denúncia contra Antônio de Freitas Galvão.
NTT, Inquisição de Lisboa, liv. 285, f1.271-272 (Cadernos do Promotor, n. 92).

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que a de E
também nos territórios luso-americanos”. É provável, porém,
remetida ao comissário em
núncia original tenha partido de Benguela,
e
Luanda para depois ser encaminhada ao promotor inquisitorial
portanto, atritos entre Antônio e eclesiásticos d, :
Lisboa. Já havia,
Se:
Benguela ou de Luanda. Também pudera: segundo Manoel Pereira
Antônio e seus
o capitão que foi o denunciante original da cerimônia,
para si a
lhos “sempre usaram e usam de ritos gentílicos”2, atraindo
provação das autoridades eclesiásticas.
A prática comum do Santo Ofício nos territórios ultramari
era o
onde o tribunal tinha maior penetração e enraizamento (como
de Luanda e de muitas regiões da América Portuguesa, mas não |
direta:
Benguela) era que a inquirição das testemunhas fosse realizada
como
mente pelos comissários, versados no “estilo do Santo Ofício”,
das denúncias inquisitoriais. Er
denominavam as convenções formais
um vigário da vara (cargo
Benguela, porém, quem assumiu a função foi
Silva,
da justiça eclesiástica episcopal), o padre Cristóvão Moreira da
da j
Conforme pontuado por Aldair Rodrigues, a cooptação do ápice
facilita
tiça episcopal (os vigários-gerais) no interior do comissariado
(como os vigários da
mobilização das instâncias inferiores da hierarquia
vara) para as diligências inquisitoriais.
Entre 11 e 14 de novembro de 1720, o padre Cristóvão mandou
zer cinco testemunhas para depor contra Antônio, incluindo nada meno
quatro cap
que quatro outros capitães militares. Significativamente, dos
deles haviam n
tães que depuseram contra Antônio nessa ocasião, três
(o citadi
cido fora de Angola: dois eram portugueses de nascimento
nascido na Bahi
Manoel Pereira Serra e Manoel Simões) e um havia
Francisco Vieira de Lima, era
(Pedro de Araújo Passos). Apenas um,
sugere à À
origem angolana como o acusado. À origem dos acusadores
pótese de que houvesse uma tensão entre grupos de origem angolana
e a justiça
estrangeira no interior do exército português em Benguela,
eclesiástica pode ter servido de instrumento para punir ou eliminar

no século XVIII luso-br


RODRIGUES, Aldair Carlos. Poder eclesiástico e Inquisição
São Paulo, 2012. 374 f. Tese (D
leiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social.
o perfil dos comissários,
torado em História Social) - Universidade de São Paulo. Sobre
se especialmente o cap. 4, p. 174-233. Rodrigue s ressalta que, na América, predominavarl
cargo de cabidos eclesiást icos, mas também eram comuns
comissários que ocupavam o
da Cunha.
vigários-gerais com formação jurídica, como é o caso de José Barros
do Santo Oficio, Inquisiçã o de Lisboa, cx. 1616, proc. 15874, f1.3. (DO
» ANTT, Tribunal Galvão)
contra António de Freitas
mentação dispersa - Autuação de um auto de denúncia

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família de bem-sucedidos militares angolanos no interior da hierarquia.


Nesse sentido, não é fortuito que o denunciante original, que instou o vi-
gário a produzir o auto de denúncia, fosse um português: o capitão
Manoel Serra.
É interessante observar como os alvos da inquirição vão mudando
ao longo da recolha de testemunhos. Ao abrir os trabalhos, o padre regis-
trou que as denúncias recolhidas eram contra Antônio de Freitas Galvão
“e seus escravos”, os quais haviam participado da cerimônia vestindo-se
ritualmente e tocando música. No entanto, ao longo da inquirição, o pa-
dre vai perdendo o interesse pelos escravos (que não são nominalmente
citados pelos denunciantes) e termina por descrever o auto, na página de
apresentação ao comissário, como contendo denúncias “contra o capitão
Antônio de Freitas e seus filhos, o capitão Matias de Freitas e o alferes
Antônio de Freitas”S. Os dois filhos, aliás, não parecem ter tido participa-
ção direta e ativa na realização da cerimônia, tendo apenas estado pre-
sentes na ocasião. É possível conjecturar que o alvo inicial do vigário fosse
apenas o capitão Antônio, mas que os denunciantes, a maior parte dos
quais militares de carreira como Antônio e seus filhos, tenham orientado
a inquirição para implicar todos os militares da família.
Sem esperar por ordens do Tribunal do Santo Ofício e nem
mesmo do vigário-geral em Luanda, e contando apenas com os testemu-
nhos que colheu, o vigário da vara mandou prender Antônio e seus dois
filhos. O procedimento era irregular, pois os denunciados à Inquisição
normalmente não deviam ser mantidos presos enquanto o tribunal não
decidisse pela abertura do processo'*. Antônio, que ainda estava grave-
Este enfermo, não tinha condições de saúde para ser levado, tendo sido
tantido preso em casa e vindo a falecer alguns meses depois. Seus filhos,
porém, foram levados à fortaleza do presídio de Benguela. Com exemplar
agilidade, em 16 de novembro, o auto de denúncia foi finalizado para ser

“Ibid, 8 2.
“Tbid, fl. 1v.
14 Vei
Maça
eja-s esse respeito,
i O despacho que o tribunal
i deu no processo de Afonso Antônio e
iam Pc çã dois meninos menores de idade, habitantes do presídio de Golungo, que
ido irregularmente mantidos encarcerados por vários anos: “Em Angola e no Rio
f e Janeir O se a chavam
V i
as cadeias gemendo com o peso dos presos aà ordem do Santo Ofício,
que o tribunal ti É E So
da ii n EEE mandado fazer estes procedimentos”. ANTT, Inquisição de Lis-
bo

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de 10 dias /
remetido ao vigário-geral de Luanda, tendo decorrido menos
iados. À
entre a realização da cerimônia religiosa e a prisão dos denunc
Começou então uma queda-de-braço entre o vigário da vara eo.
capitão Antô- 4
capitão-mor de Benguela em torno da prisão dos filhos do
na primeira em-
nio. O intuito do vigário era enviar os presos a Luanda
e à prisão, ou-
barcação que saísse de Benguela. Contudo, no mês seguint
o cabo de.
tros militares requisitaram sua soltura. O primeiro deles foi
companhia Manoel Dias Soares, a quem o vigário respon deu negativa:
mente, alegando que “já tinha dado parte a seu prelado da dita prisão”,
José de
No dia de natal, interveio no caso o capitão-mor do presídio
conquanto.
Morais. A citação de um trecho do testemunho do vigário,
longo, nos permitirá entender melhor os conflito s subjace ntes ao caso: |

[...] estando ele testemunha na sacristia desta freguesia, se che,


gara a ele, pondo-se-lhe aos pés, O capitão-mor que então go
vernava este presídio, José de Morais, já defunto, rogand
pedindo-lhe com muita instância [que] mandasse soltar os di
tos presos, pelo dia tão grande em que estavam [era natal], m
que não veio ele testemunha, respondendo-lhe que o não
dia fazer por ter já dado parte ao seu prelado e feito auto d
dito crime. E que, não sossegando o dito capitão-mor com est
resposta, lhe tornou a instar, pedindo-lhe pelos ditos presos
informando-lhe a inocência deles, dizendo que não tinh
concorrido nem cooperado no dito caso, e que se acharam pre
sentes por razão de serem filhos e morarem e viverem nas diz
tas casas; que não sabiam a causa e o fim da dita festa mais qui
entenderem que era folguedo. E instou em tal maneira à el
testemunha o dito capitão-mor no peditório dos ditos preso
que, vendo-se ele testemunha perseguido, rompeu por es
palavras: “Senhor capitão-mor, os presos não posso man
soltar por ter dado parte ao meu prelado e lhe ter avisado do
intento de os remeter para Luanda. A fortaleza é de Vi
se os que
Mercê, aonde eles se acham presos. Vossa Mercê,
mandar soltar, faça o que quiser, que eu não hei de mandar
cap
soltar.” Passado isso, da mesma sacristia chamou o dito
eles [sic.] mandou soltar”
tão-mor ao alferes João Corrêa, e por
presos
os ditos presos, e a outros que à sua ordem se achavam
na dita fortaleza, e ficaram soltos com efeito. E que O pretexto
com que o dito capitão-mor se empenhou no livramento dos

Lisboa, liv. 285, f1.264v. (Cadernos.


7 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Promotor, n. 92).

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O ZUMBI E O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA AFRICANA
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ditos presos, suspeita ele testemunha, seria por o empenhar o


pai dos ditos, que era seu amigo's.

Infere-se do testemunho do vigário que, se Antônio de Freitas


Galvão e seus filhos tinham inimigos dentro do exército em Benguela
também tinham poderosos amigos e patronos, entre os quais se cortava
o próprio capitão-mor do presídio, José de Morais. É verdade que é muito
dificil inferir, a partir de documentos dessa natureza, eivados de cálculos
e estratégias retóricas de todas as partes, as motivações dos agentes en-
volvidos". Contudo, fica a impressão de que, pressionado significativa-
mente pelo capitão-mor, o vigário da vara não tinha grande convicção da
culpa dos filhos do capitão Antônio, ou não fazia, pessoalmente, tanta
questão de mantê-los presos. Ele invoca como razão para sapádias sob
custódia apenas o fato, institucional, de já ter notificado o bispo a respeito
da prisão. Será possível que, a esta altura, o padre Cristóvão já tivesse se
dado conta de que seu tribunal estava sendo instrumentalizado em uma
disputa entre grupos no interior da corporação militar?
À história, contudo, não terminou aí, pois interveio o clero secular
de Luanda. O vigário-geral de Angola e comissário do Santo Ofício, o pa-
Fire José Barros da Cunha, enviou a Benguela o vigário Félix de Coaveia
Leite, o qual tornou a mandar prender os filhos do capitão Antônio. Adi-
cionou ainda à lista dos detentos Natária, a filha do capitão, e uma mulher
parda chamada Margarida, parente dele. As duas, afinal de contas, ha-
me participado ativamente do ritual religioso. A esta altura, o asia

start Aeee dagríio


ca sp Ebmctme se,parace
prisão é significativa: para os militares
E nose a tesnentim harari no primeiro auto de denúncia, interes-
encarcerar 0s militares homens da família do capitão (e li-
Ee ep do exercito), o vigário estendeu a punição
O imente io tendo, a a na dio as denunciantes originais possi-
“a cr Ea em de Freitas, um dos filhos do
A pari p isa lo ainda em Benguela, mas os outros
sr E os a Luanda, onde aguardaram o término das
quisitoriais.

3 Ibid,, fl.264v.
EP arau =
reflexão Ed
metodológica nesse sentido a respeito da documentação in-
istória eja-se GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo. Revista Brasileira de
»V. HI, n. 21, São Paulo, p. 9-20, set. 90-fev. 91.

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HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO ASSIS | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

Em Luanda, corria outra versão da história. Em consulta ao Con- +


selho Ultramarino, as autoridades angolanas haviam sugerido que os.
presos não tinham sido remetidos para Luanda por conta da influência.
exercida por um padre natural de Benguela chamado João Teixeira d,
Carvalho, que viria depois a ser investigado pela inquisição e acusado de.
escravização ilegal de africanos livres. À época do ocorrido, o padre Joã
Carvalho encontrava-se preso em Luanda e estava envolvido em conflito
com a administração colonial”. Seria possível supor que o próprio cap
tão-mor de Benguela tenha lançado o boato para encobrir sua ação d
favorecimento aos filhos do amigo? Qualquer que tenha sido o caso, o vi
gário da vara Cristóvão Moreira da Silva insistiu em que o padre João não
tinha tido nada a ver com a soltura dos filhos do capitão Antônio. O fugi-
tivo Matias parece ter se refugiado no presídio de Caconda, no interior d
Benguela e distante cerca de 200 km do porto. Até o encerramento do su;
mário de culpas, em fins de 1722, não havia sido recapturado.
Em 1722 ocorreu o derradeiro episódio do caso. A pedido do p
prio bispo do Congo e Angola, Dom Frei Manoel de Santa Catarina, o c
missário e visitador do Santo Ofício Manoel Gonçalves foi a Benguela da
continuidade à investigação e proceder à elaboração de um sumário de:
culpas, muito mais exaustivo e formalmente mais adequado às norma
inquisitoriais do que aquele feito em 1720 pelo vigário Cristóvão. For
inquiridas 17 testemunhas, dentre as quais 14 eram militares. Todas
cinco testemunhas do auto inicial foram convocadas novamente a depo:
Desta vez, contudo, compareceu um riúmero muito maior de milita
nascidos em Angola — sete, contra 5 reinóis e 2 luso-americanos. O con s
sário e visitador parece ter sido mais cuidadoso na recolha dos testemu
nhos, e possivelmente menos influenciado pelos militares portugue
do presídio.
A segunda inquirição confirmou as culpas já citadas no auto é
1720, mas adicionou uma nova acusação: a de que Antônio de Freita
Galvão venerava um bode que mantinha no Dombe, aos cuidados do sã
cerdote com quem se consultava. Voltaremos a esse detalhe significa
mais adiante. O novo sumário de culpas não resultou, contudo, em aber
tura de processo inquisitorial completo, tendo sido descartado pelos ins,
quisidores. Pode-se argumentar que os inquisidores talvez te

2 FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Bra
during the Era of the Slave Trade. NI: Cambridge University Press, 2014, p. 169-I72.

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O ZUMBIE O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA
AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI
achado inadequada a publicidade que o caso teve em Benguela, sacrifi-
cando o princípio do sigilo que devia cercar as investigações inquisitoriais
e acarretando falhas formais ao processo. Ou, mais provavelmente, os in-
quisidores podem ter avaliado que o principal acusado, Antônio de
Freitas Galvão, já havia morrido e não valia a pena continuar com o pro-
cesso envolvendo apenas outros membros de sua família. Na ausência de
abertura do processo, é provável que os três presos tenham sido soltos em
Luanda algum tempo depois.

Do “saquelamento” ao bode diabólico


Cabe uma breve caracterização das práticas religiosas das quais se
valia Antônio de Freitas Galvão. A cerimônia realizada pelo capitão no dia
6 de dezembro de 1720 recebeu diferentes denominações ao longo do pro-
cesso. Inicialmente, no testemunho colhido poucos dias após o evento, o
capitão Manoel Pereira Serra, o denunciante original, chamou o festejo de
“zambulamento”2. O termo é infrequente na documentação sobre práticas
religiosas na região, mas é possível arriscar uma origem etimológica a partir
do termo nzambi, que significa simplesmente “espírito” em língua quim-
bunda”. Mais tarde, em 1722, 0 capitão Francisco Vieira de Lima, o sar-
gento-mor Felipe de Souza Meira e o capitão-mor do campo Manoel
Simões chamariam a cerimônia de “saquelamento”*. Francisco e Manoel
já haviam deposto em 1720, mas só vieram a usar o termo na inquirição
Scorrida dois anos mais tarde. “Saquelamento”, ou variações como “sacala-
mento” e o verbo “saquelar”, eram bem mais frequentes na document
ação
sobre Angola ao longo dos séculos XVII e XVIIPA.

u
Eu Inquisição
=.
de Lisboa, cx. 1616, proc. 15874, fl.2v. (Documentação dispersa — Autua-
É um pri de denúncia contra António de Freitas Galvão).
- “ta uma descrição das categorias de espíritos na cosmologia baconga, relativ
Ó-
ni ambundos, Veja-se MACGAFF EY, Wyatt. Religion and ty Genre
rm pa of Lower Zaire. Chicago/London: University of Chicago Press, 1986, p.
42-62.
Saca ejuisicão de Lisboa, liv. 285, f1.267-269v. (Cadernos do Promotor, n.
92).
A E nd ocorre em um relato do missionário Manuel Ribeiro, em missão na região
In: MONO a di (Carta do padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, 15/01/1674.
ço pia Africana: África Ocidental. Coligida e anotada pelo Padre
Dão Clero e Eca org. Migual Jasmins Rodrigues. Lisboa: Instituto de Investi-
BONS Lo a ropical/Centro de História de Além-Mar/Direcção Geral de Arquivos,
denúncia ia loc, a P- 259. DVD-ROM). Já a forma verbal “saquelar” se observa
em uma
re onda ai Massangano (ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 281, fl. 54

[159]
HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO ASSIS | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

A despeito das variações, os saquelamentos tinham em comum o |


fato de serem cerimônias terapêuticas direcionadas para a cura de males |
que eram conhecidos pela denominação “zumbi”. O zumbi era uma aflição
física que se supunha causada pelo espírito de algum parente morto do |
doente, o qual, insatisfeito com a ausência de oferendas e tratamento ri- |
tual adequado, causava dores e achaques em seus parentes vivos. No caso,
de Antônio, o espírito causador de sua hérnia de intestino seria o de sua,
falecida esposa, conforme lhe convencera o sacerdote morador d
Dombe, com quem ele se consultava frequentemente. O zumbi só podia É
ser curado por meio de cerimônias em que oferendas fossem dadas em.
honra do espírito patogênico, aplacando-o e reconciliando-o com seu pa:|
rente. Conforme se lê em seu sumário de culpas, Antônio, f

[...] estando muitos anos enfermo de um achaque de potra,


não podendo sarar dele com remédio algum, usava de curas
ambundas e se tinha sujeitado a um negro do gentio do
Dombe (lugar circunvizinho deste presídio), e com ele se cu:
rava gentilicamente. E ultimamente o aconselhou que o qu
padecia era zumbi (que quer dizer alma de algum defunto)
que a alma de sua mulher defunta era a que o fazia padece
que fizesse em seu obséquio uma festa, na qual matasse uma
rês e a desse de comer a sua gente, comendo esta em lugar d
dita alma, e que, feito isto, melhoraria”.

No caso do saquelamento promovido por Antônio de Frei


Galvão, quem “personificava” ritualmente sua falecida esposa e comia
seu lugar era sua filha Natária. Supõe-se - embora isso não fique explíci
pelos testemunhos — que Natária tenha incorporado ritualmente o espi-
rito da mãe em transe de possessão, com acompanhamento de música de,
atabaques, o que era muito frequente nesse tipo de cerimônia na zona)
atlântica de Angola. À
O festejo promovido pelo capitão Antônio era uma variação de.
uma categoria de cerimônias terapêuticas tipicamente centro-african
que, em outras zonas do Atlântico português, como Luanda, a Bahia ou!
Minas Gerais, eram chamadas de “calundus”. Os calundus!

5 ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 285, f1.276. (Cadernos do Promotor, n. 92).


de do!
*s Para uma análise dos calundus da zona atlântica portuguesa, veja-se minha tese
torado: MARCUSSI, Alexandre Almeida. Cativeiro e cura: experiências da escravidão atlán Ê
tica nos calundus de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. Tese (Doutorado em História Social),
- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Pai
(USP). São Paulo, 2015. Uma exposição de síntese sobre a natureza dos calundus pode
[r60]
O ZUMBI E O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI

apresentavam a mesma vinculação entre doença, cura e parentesco, e fa-


ziam parte de um entendimento de mundo centro-africano em que o pa-
rentesco ocupava lugar simbólico central nas relações humanas. De
acordo com essa visão, o infortúnio era concebido em termos de relações
espirituais de parentesco mal-ajustadas ou rompidas — daí o fato de que
parentes e ancestrais insatisfeitos podiam provocar doenças em seus
parentes VIVOS.
A cerimônia de saquelamento promovida por Antônio no presídio
de Benguela é um testemunho vigoroso dessa visão em que o parentesco
era uma categoria central de entendimento do mundo. Apesar de ter nas-
cido em Luanda, Antônio tinha parentela estabelecida em Benguela, com
a qual morava. Além de viver com os três filhos na casa em que promoveu
o festejo, estava à época hospedado na casa de sua irmã Guiomar, em lo-
cal próximo. À festa foi convidada também uma outra parente sua, a
parda Margarida, que acabou sendo presa juntamente com Antônio,
Matias e Natária. A festa era, de fato, uma reunião de laços familiares em
honra de um parente que havia passado ao mundo dos mortos — a falecida
esposa do capitão. Lembremos que tanto Antônio quanto seus dois filhos
homens faziam parte do exército português, e que o pai intercedera em
favor do filho, por intermédio do capitão-mor do presídio, quando estes
estavam presos. Trata-se de uma família centro-africana, com sua densa
malha de relações de parentesco, que havia conquistado um lugar dentro
da hierarquia militar portuguesa, e que não concebia a si mesma fora da
linguagem caracteristicamente africana do parentesco. Descrever Antô-
nio de Freitas Galvão como um praticante de saquelamentos e como um
aflito pela doença de zumbi era, portanto, pintá-lo com tintas tipicamente
centro-africanas, a partir das linguagens culturais da cultura ambunda.
A cerimônia foi a única acusação lançada contra o capitão no auto
de denúncia de 1720. Contudo, no sumário de culpas de 1722, surgiu curi-
Osamente uma segunda culpa imputada a Antônio: a adoração a um bode.
Segundo grande número de testemunhas da segunda inquirição, Antônio
de Freitas Galvão mantinha um bode no Dombe, aos cuidados do mesmo
Curandeiro ambundo com quem se tratava regularmente. De acordo com
9 testemunhos do alferes Manoel da Rocha Soares e do capitão Manoel

E enc
ontrada em Idem. Utopias centro-africanas: ressignificações da ancestralidade nos ca-
E ndus da América portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Revista Brasileira de História, v. 39 Ê
“79, São Paulo, p. 19-40, 2018.
[161]
HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO ASSIS | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

Pereira Serra, o bode recebia adoração como parte do tratamento da


mesma hérnia de intestino de que o capitão já padecia há muito tempo, |
Assim, tanto o bode quanto o saquelamento fariam parte de um mesmo -
conjunto de cerimônias terapêuticas das quais se valia o acusado. O cap; |
tão Francisco Vieira de Lima foi mais longe ainda, unindo as duas acusa-.
ções. Segundo ele, “em uma sexta-feira haverá dois anos [...], Antônio de
Freitas Galvão [...] rendera adorações a um bode que tinha em seu quintal |
e lhe sacrificara um bezerro, o qual se matou no mesmo dia”, Nessa
versão, o sacrifício do novilho não havia sido endereçado ao espírito
sua esposa, mas sim ao próprio bode.
O surgimento do bode na narrativa acusatória urdida em 1722 co
tra Antônio de Freitas é significativo. Diferentemente dos saquelame
tos, que expressavam uma linguagem cultural tipicamente centro-afri
cana, essencialmente estranha ao pensamento dos inguisidores portu
gueses, o bode tinha forte conotações dentro da cultura religiosa católica
europeia, pois se tratava de um animal tradicionalmente associado ao

quela que era a forma paradigmática da feitiçaria herética no pensa,


mento europeu: a adoração diabólica. Era, aliás, como adoração ao Diabo,
que a feitiçaria era enquadrada na jurisdição inquisitorial, a qual contem>
plava quase exclusivamente crimes de heresia, ou seja, que se caracte
zassem por um desvio de crença e convicção. No caso da feitiçaria, sup
nha-se que os feiticeiros só pudessem exercer suas práticas mágicas poi
meio de intercessão diabólica, a qual pressupunha supostamente a exis;
tência de um pacto com o Diabo, implicando que o feiticeiro abandonass
sua crença em Cristo para adorar seu Inimigo*.
Na cultura europeia dos séculos XV a XVII, esse entendimento
feitiçaria como adoração diabólica era codificado de forma exemplar por
meio do mito do sabá. Nos manuais de demonologia da época e em diver
sos processos judiciais de grandes dimensões contra feiticeiros/as, o sa
era descrito como uma reunião noturna de bruxas, realizada em lugares!

= ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 285, f1.267. (Cadernos do Promotor, n. 92). 8


= Cf SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosid
popular no Brasil colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1986; COHN, Norman. Los demo
familiares de Europa. Madri: Alianza Editorial, 1980. À associação entre feitiçaria e pacto O
bólico é tão estreita que a maior parte dos processos inquisitoriais contra feiticeiros girã
torno da tentativa de provar a existência do pacto, independentemente das motivações Cº
supostas práticas mágicas apuradas. '

[162]
O ZUMBIE O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOSA AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI
ermos aos quais as participantes (quase sempre representadas como
fe-
mininas) chegariam voando, metamorfoseadas ou montadas em animais.
Durante a reunião, cometeriam infanticídios, canibalismo e
participa-
riam de orgias sexuais com demônios. A assembleia seria presidida pelo
próprio Diabo, muitas vezes manifestado em forma de bode, ao qual as
bruxas renderiam adoração e jurariam fidelidade por meio de um beijo
em seu ânus. O sabá era uma difundida construção cultural que, em mui-
tos territórios, serviu para legitimar a perseguição à bruxaria. Sua lógica
simbólica era a da inversão. A assembleia de bruxas seria uma espécie de
“anti-Igreja”: haveria um livro diabólico análogo à Bíblia, a ser assinado
pelas bruxas, e o banquete canibal reproduzia, de forma invertida, o sa-
cramento da eucaristia, que consistia na ingestão simbólica da carne de
Cristo”. O mito do sabá era menos influente e disseminado em Portugal
do que em outras regiões da Europa setentrional”, embora
não estivesse
ausente da cultura lusitana.
Invocar a adoração do bode na descrição das práticas heréticas de
Antônio de Freitas Galvão não era uma simples adição de um novo fato,
a ser somado às acusações anteriores de saquelamento. Implicava
tam-
bém uma “tradução” dos crimes do capitão, vertendo-os de uma
lingua-
gem ritual centro-africana para uma tipicamente europeia, mais próxima
do universo cultural dos inquisidores portugueses. Tratava-se de
um re-
forço da acusação que não era meramente quantitativo (um novo
crime a
ser adicionado ao “rol” de desvios do acusado), mas qualitat
ivo: um delito
nã caracterizado dentro da linguagem demonológica que funda-
Enitigaa lisas das : ;
E E cr gu co re do Santo Qlinio, o qual poderia, sem
ta ; erado herético e diabólico. Apresentar
Antônio como praticante de saquelamentos era pouco mais do que
o in-
“a em um universo cotidiano de práticas africanas muito difundi
das e
Corriqueiras em Benguela; caracterizá-lo como adorador de um
bode era
* localizá “lo seguramente em um universo
demonológico.
Há remissões explícitas ao mito do sabá nos testemunhos contra
Antônio de Freitas. Segundo o sargento-mor Martinho de Oliveir
fer E go asi dá
a e o al-
es André Cristiano, Antônio adorava o mencionado bode nas
E)
Para Uma extensa análise
aj: do surgimento
:
e dos
elementos simbólicos do sabá, veja-se
“CinzBy RG, dE História noturna: Decifrando o sabá.
* 1991; COHN » N., op. cit. São Paulo: Companhia das Letras,
1 "PAIVA, Jo sé Pedro. Bruxaria e superstição num país sem
Otícias Edit “caça às bruxas”: 1600-1774. Lisboa:
orial, 1997.

[163]
HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO Assis | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

conjunções lunares, o que situava o ato num espaço noturno evocador do.
sabá. O cabo de esquadra Inácio Paulo da Silva foi ainda mais longe nas |
tintas sabáticas, afirmando que “tinha o dito Antônio de Freitas, como se |
dizia vulgarmente, um bode a quem ia por vezes adorar e oscular o tra-
seiro”%, em óbvia referência ao ósculo anal do sabá das bruxas. fim deta- |
lhe de seu testemunho chama a atenção: “como se dizia enigarmena - Este)
é, aliás, um elemento que se repete em várias menções ao bode diabóliga
do capitão Antônio: ninguém afirma ter visto o animal pessoalmente. Er
um rumor que circulava entre a população ar Benguela e que inflamou
imaginação dos acusadores de Antônio, muito mais do que um fato co-|
nhecido de primeira mão. E
Pareceria plausível argumentar que a menção ao bode de Antonia
tenha surgido no inquérito de 1722, mas não no de 1720, Simplesmenta de-
vido ao maior número de testemunhas. A análise comparativa das decl
rações das mesmas testemunhas nas duas aEperdas antuiio, não corta
bora essa percepção. Como se disse, o auto de denúncia de 1720 contoll
com 5 testemunhas, todas as quais voltaram a ser interrogadas dois anos
depois. Na primeira denúncia, nenhuma delas mencionou bode = ma
Em 1722, porém, quatro das cinco testemunhas originais fizeram referêns

na costa angolana de ritos religiosos ambundos que incluíam a simbo


gia do bode, e não é implausível que Antônio praticasse de fato alg

sultava no Dombe. Um documento inquisitorial da primeira metad :


século XVII menciona uma cerimônia descrita da seguinte forma: “A: É
ração do demônio em figura de bode a que chamam CAÇUTO a aa se
juntam muitos de noite num grande estrondo de atabaques em 5 E

3 ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 285, fl.253v. (Cadernos do Promotor, n. 92).


“2 Tbid., fl.zz1v.
8 Ibid,., fl.274.

[164]
O ZUMBI E O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNIA RELIGIOS
A AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI
senzalas"*. A denominação “Caçuto” pode ser observada em outras
fontes
coevas, como o relato do missionário capuchinho Giovanni Antonio Ca-
vazzi de Montecúccolo, que percorreu os territórios do Congo,
Angola e
Matamba em meados do século XVII. A respeito da mitologia das popula-
ções jagas que habitavam a região da Grande Ganguela, Cavazzi afirmou:

Quando os Jagas conquistaram aquela região, tanta


era a sua
ferocidade que até os deuses abandonaram as suas habitações
e se abrigaram nas águas. Mais tarde, retomando coragem,
atenderam com feliz resultado à própria desforra e derrota-
ram os invasores, Tal cobardia e tal valor são atribuídos ao cas-
suto e à sua mulher nquixi e a grande número de filhos e
de
sequazes deles%.

Para se compreender o mito, é importante ressaltar que os jagas,


em seus movimentos de expansão territorial, organizavam-se como
po-
vos nômades e guerreiros. Seus cultos religiosos não incluíam a devoçã
o
a entidades naturais ou locais, mas apenas aos antepassados. Na
cosmo-
logia ambunda, é comum que os espíritos da natureza, ligados
mais ao
| território do que às linhagens, sejam associados às águas*,
Muitas cos-
mologias centro-africanas reconheciam a possibilidade de que
os espíri-
tos dos antepassados mais antigos das linhagens fossem
se “imobili-
Zando” progressivamente, associando-se de forma cada vez
mais fixa ao
território onde essas linhagens haviam se estabelecido,
tornando-se en-
fim espíritos territoriais das águas”, O mito de Cassuto parece
codificar
$sse entendimento: trata-se de um dos “deuses” da região,
os quais, por
| Estarem lá há mais tempo, eram tidos como os espírit
os mais “antigos”,
| fixados ao território e às águas, em comparação com os antepa
ssados

* Apud MOTT, Luiz. Feiticeiros de Angola na inquisição portuguesa. Mneme: Revista


de
- 29, Caicó, p. 1-22, jan.-jul. 2011, p. 7.
TECÚCCOLO, Padre João António. Descrição histórica dostrês reinos
- 2190, Matamba e Angola. Trad., notas e índice pelo Padre Graciano
Nr a: Junta de Investigações do Ultramar, 1965, Maria de Leguzzano.
tenifo. $no original). v. 1, Livro Segundo, S66, Pp. 215
BY
eja-se MACGAFFEY, W., op. cit; MILLER, Joseph C. Poder político
Bos “stados Mbundu em
e parentesco: Os anti-
i

bert W. The great porpoise-skull strike: Central African water


E
spirits and
identity in early-nineteenth-century Rio de Janeiro. In: HEYWOO
D, Linda (Ed.). Cen-
1 E Cans and cultural transformations in the American diáspora. Cambridge: Cambridge
ers
ity Press, 2002, p. 183-208.

[165] |
HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO Assis | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

“nômades” e mais recentes dos jagas. Nesse sentido, a adoção do culto;


Cassuto pelos conquistadores jagas em Ganguela indicava a transição,

pêutico, uma vez que seus sacerdotes preparavam misturas de substân.


cias diversas e “[dJistribuem tudo isto aos doentes como tempero das
comida”3,

É possível especular que o culto ao bode do Dombe fosse uma va


riação dos antigos cultos terapêuticos dos jagas em homenagem q
Cassuto. Essa hipótese sugere uma curiosa adição de instâncias ri
nas práticas de Antônio de Freitas: se, por um lado, seus saquelamentos
faziam parte de um complexo ritualístico de culto aos ancestrais e paren-
tes diretos, o bode se incluía num conjunto distinto de cultos a espírit
naturais das águas. Por garantia, o capitão recorria aos dois tipos de esj
ritos. Ou então, alternativamente, pode ser que o sacerdote com que
Antônio se consultava tenha primeiro tentado uma terapêutica associ
a Cassuto e aos espíritos das águas, para depois chegar à conclusão de q
se tratava de moléstia associada aos espíritos da família e aos paren
mortos. Trocava-se assim o bode pelo zumbi na derradeira tentativ
preservar a vida do capitão.
O que importava, porém, nas denúncias dos militares contra Ani
nio de Freitas, não era o desvendamento dos sentidos culturais e religi
do culto a Cassuto entre os ambundos. O bode lhes interessava especi
mente porque lhes permitia fazer uma leitura não africana, mas especifi
mente europeia e católica dos supostos crimes do capitão, inserindo-o
um universo inequivocamente herético, o que reforçava a demanda p
prisão de sua família. Ironicamente, foi a ineficácia terapêutica do
Cassuto que contribuiu para que o minucioso inquérito do Santo Oficic
não resultasse na prisão da família Freitas: morto o capitão da doença q e
o consumia, a inquisição parece ter perdido interesse em seu caso,
ventura de seus três filhos e de sua parente Margarida.

58 CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, Pe. ]., op. cit, v. 1, Livro Segundo, $60, p. 21.
[166]
O ZUMBI E O BODE DIABÓLICO: DISPUTAS EM TORNO DE UMA CERIMÔNI
A RELIGIOSA AFRICANA
ALEXANDRE A. MARCUSSI
Considerações finais
O caso das acusações contra Antônio de Freitas Galvão e sua fa-
mília permite-nos observar de perto um complexo jogo de disputas
sociais, institucionais e culturais na Benguela do início do século XVIII.
Antônio era o patriarca de uma família negra angolana, natural da terra
que havia ganhado significativa inserção social em Benguela, tendo a
cançado postos consideráveis da hierarquia militar do presídio. Os
Freitas, ademais, comportavam-se de fato como uma linhagem no sen-
tido africano: veneravam os espiritos dos seus mortos e mantinham es-
treitos laços profissionais e de lealdade. Não é à toa que os filhos seguiram
com sucesso a carreira militar do pai e que este moveu grandes esforços
para libertá-los da prisão quando já estava em seu leito de morte. Mais
que isso, o “mais velho” Antônio gozava dos favores do próprio capitão-
mor do presídio, autoridade portuguesa máxima da região.
Tudo isso parece ter suscitado o desconforto e a ira de outros mi-
litares de Benguela, com destaque para os estrangeiros — reinóis e luso-
americanos — que, tendo vindo de fora para fazer carreira militar em
um
presídio distante dos centros de poder da monarquia portuguesa, talvez
esperassem privilégios mais acentuados do que os militares de pra lo-
cal. Não teriam tolerado, possivelmente, a situação de favorec
imento que
à linhagem Freitas” vivia devido a seus laços com o capitão-mor
de
Benguela. Os detalhes e motivações do conflito são de difícil determina-
ção a partir das fontes inquisitoriais, abrindo-se à conjectura. Mas as rus-
gas entre os denunciantes e o vigário da vara, por um lado,
e a família
Freitas e o capitão-mor, por outro, são indícios claros de tensões
que atra-
Vessavam as instituições lusitanas em Benguela.
terra a pci de Ereitas Galvão - e sobretudo as denúncias
aa nã e lidas luz desses conflitos. Cerimônias cla-
MA assa as ee e um aniveirss cipal centro-africano e am-
“Aria a com o Ge da investigação, a ser situadas no inte-
ret e ng Eliereur hos E asperisive ente europeia. In-
ad pp gpa Atena or africanas” ou como
A , fator de crucial importância nas disputas
Simbólilicas e concretas que se desenrolam entre os envolvidos
no caso

[167]
HERESIAS EM PERSPECTIVA
ANGELO Assis | THEREZA BAUMANN | YLLAN DE MATTOS

O caso nos sugere uma lição valiosa para o estudo das dinâmica
no
culturais de territórios como a África Centro-Ocidental: não basta
questionarmos se as práticas culturais de determinada região ou popula
a,
ção são mais próximas desta ou daquela matriz cultural específic
de ce
Antônio de Freitas Galvão era mais “africano” (como praticante
po Us
mônias ambundas) ou mais “europeu” (como católico e militar
guês)? A resposta mais fácil talvez fosse dizê-lo “crioulo” — aurea
híbrido. Mas nisso talvez se perca justamente aquilo que a dinâmica
representação cultural apresenta de mais Areias a possibiidall
múltiplas leituras simultâneas e em concorrência. (o) caso de Antôni
tada!
mostra claramente que as mesmas práticas podem ser interpre
formas muito distintas, não apenas pelos historiadores, mas também
€ n
los próprios sujeitos históricos envolvidos, a depender des interesses
tação ul;
jogo. E talvez esses interesses e todos os “equívocos da interpre
rmo:
tural que dele emergem sejam um objeto relevante para entende
papel da cultura em situações de interaçã o entre diferent es grupos so
e códigos simbólicos.

[168]

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