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O ESPAÇO ILUMINADO

NO TEMPO VOLTEADOR
nCARLOS AUGUSTO DE FIGUElREDO MONTEIRO*

PRÓL
PRÓLOGOOGO
PARA ATENDER AO HONROSO CONVITE DOS ORGANIZADORES DESTE EVENTO PARA PARTICIPAR DESTA MESA RE-
DONDA, ABORDANDO A RELAÇÃO “ESPAÇO-LITERATURA” TIVE QUE OPTAR ENTRE DUAS VERTENTES. EVITEI AQUE-
LA DO TEÓRICO — TALVEZ MAIS ESTIMULANTE À DISCUSSÃO — UMA VEZ QUE, PARA TANTO, TERIA FATALMENTE
QUE CRUZAR REFERENClAIS TANTO DA EMERGENTE GEOGRAFIA HUMANíSTlCA QUANTO DA TEORIA LITERÁRIA,
SOBRE A QUAL, APENAS PRINCIPIO A ESTUDAR. ESCOLHI A VERTENTE DA EXPERIÊNCIA VIVIDA, OU SEJA, AQUElA
DA PRÁTICA, DA QUAL POSSA EXTRAIR ALGUMAS ILAÇÕES DE INTERESSE PARA DEBATE. AO APOSENTAR-ME COMO
PROFESSOR TITULAR EM GEOGRAFIA FíSICA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (MARÇO DE 1987) ESTAVA EU DAN-
DO OS PRIMEIROS PASSOS NESTA LINHA DE INVESTIGAÇÃO ELEITA TANTO POR PAIXÃO QUANTO POR CONVENIÊN-
CIA. AS MATRIZES QUE GUIARAM MEU INTERESSE PROVIERAM DE GEÓGRAFOS BRITÂNICOS (POCOCK, 1981) E
CRíTICOS LITERÁRIOS FRANCESES (CROUZET, 1981). UM ANTIGO E ADORMECIDO INTERESSE PESSOAL FORA AVI-
VADO NO INíCIO DOS ANOS OITENTA (1982-1984) PELAS ANÁLISES DAQUELAS OBRAS.

Desde a minha aposentadoria (1987) até o pre­ Diante deste rol de romances e autores de nossa
sente (1998), no segmento de um decênio, já tive literatura, pode surgir a indagação sobre o “critério”
ensejo – entre outras produções – de consumar seis que norteou tal escolha. Ao que eu responderia que
ensaios voltados para a investigação do conteúdo considero três grandes vertentes, dentro da Litera­
geográfico em espaços romanescos. A eleição do tura Brasileira, sobre as quais o interesse “geo­
foco sobre a ficção literária, no gênero romance, na gráfico” é variado.
Literatura Brasileira, teria um­ longo rol de razões
a) Há um conjunto de obras literárias, no gênero
que não comportaria (no tempo desta mesa­redon­
de prosa romanesca (romances, contos, crônicas)
da), mas, creio eu, serão entendidas no decorrer da
que, malgrado não merecerem a consagração por
abordagem. Estes meus “cometimentos” dirigiram­
parte dos críticos literários, apresentam um conteú­
se, em ordem cronológica, às seguintes obras: Corpo
do de interesse geográfico, sobretudo aquele canali­
de Baile, de Guimarães Rosa; O Cortiço, de Aluísio de
zado, didaticamente, para uma “complementação
Azevedo; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Memóri­
ilustrativa” da disciplina no ensino médio. Eu lem­
as Póstumas de Brás Cubas, de Machado da Assis; Tris­
braria, como exemplo desta categoria, o caso do ro­
te Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto e Ca­
mance “Barro Blanco” de José Mauro de Vasconce­
naã, de Graça Aranha. Deste conjunto, apenas o se­
llos, uma expressiva ilustração da atividade salineira
gundo e terceiro mereceram publicação (MONTEI­
no Rio Grande do Norte.
RO, 1988), aliás conjunta, na Revista Trópico & Ciên­
cia da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife.

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b) O importante conjunto dos romances ditos veria ser bem mais ampla e complexa. Isto sintoniza
Regionalistas, nos quais somos felizes pela varieda­ perfeitamente com a própria evolução, dentro da
de das “escolas” e, num panorama qualitativo bem Geografia, das concepções de lugar e espaço. Con­
variado, com algumas obras de grande mérito. A meu tudo, como se trata de uma discussão conceitual de
ver este conjunto, por óbvias razões, não oferece atra­ grandes implicações teóricas ela será aqui evitada.
tivos à pesquisa. Não porque não mereçam, mas por­ Desse conjunto de experimentos, em sua maioria
que – por suas próprias características – elas dispen­ inéditos, estou tentando organizar uma coletânea
sam esta preocupação. Não é este o caso do Vidas para a qual tenciono o título de O Mapa e a Trama:
Secas de Graciliano Ramos. Se algumas das obras ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas.
deste grande escritor alagoano se inserem naquela Isto parece esclarecer a ampliação deste horizonte,
categoria, este não é o caso de Vidas Secas no qual, para o qual trago uma proposta, ainda mais objetiva,
ao lado de um profundo estudo ontológico do ser­ para discutir nesta mesa­redonda. Atrevi­me a prin­
tanejo nordestino e malgrado a opinião do crítico cipiar esta linha de investigação, nada mais nada
literário Álvaro Lins (MONTEIRO, 1988 p.185) de menos do que A Percepção Holística da Realidade
que o meio físico ou paisagem exterior no escritor do Sertão, a partir de um Mosaico Romanesco: O
alagoano constitui­se apenas numa “ambiência aci­ Corpo de Baile, de Guimarães Rosa (MONTElIRO,
dental” o seu conteúdo geográfico é da mais alta 1988, inédito). Passados dez anos, dois dos quais
qualidade. Isto faz com que, a meu ver, ao Vidas residindo no Japão, é difícil, no momento presente,
Secas, assente melhor na vertente seguinte. dar­me conta do volume de estudos que, não só no
Brasil mas também no exterior, se publicam a pro­
c) Finalmente, aquelas obras que se inserem no
pósito da obra do nosso maior escritor neste expi­
âmbito da Alta Literatura I e nas quais o conteúdo
rante século XX2. De volta do Japão e agora instala­
geográfico nem sempre é facilmente aflorante, ou
do residencialmente em Campinas, SP, estou reto­
porque se prestem à análise de tópicos geográficos
mando a análise da obra de Guimarães Rosa. Se toda
– não necessariamente regionais – de relevância. Em
ela está ligada ao “Sertão”, a abordagem “geográfi­
O Cortiço, além do dinamismo do espaço urbano do
ca” deve ser dirigida para a sua mais extensa e com­
Rio de Janeiro no final do século XIX, sobretudo
plexa novela, ou seja, Grande Sertão: Veredas. É um
no bairro de Botafogo, indaga­se, no conteúdo es­
projeto principiado apenas, centrado em minhas pre­
pacial, o que existe de “determinismo ambiental”
ocupações e esforço pessoal, procurando apoio na
num “realismo” marcado por TAINE. Nas obras
vertente da análise e crítica literária (na medida do
primas de Machado de Assis e Lima Barreto, sonda­
possível) e evitando, deliberadamente, o que já se
se – a partir das semelhanças e diferenças marcantes
tem feito – e parece já ser bastante significativo –
nas personalidades dos dois escritores – a declarada
por parte de Geógrafos. Será fatalmente um projeto
vocação geográfica de um (Barreto) e um possivel­
a longo prazo sobre o qual não estou certo de con­
mente velado noutro (Machado). No Canaã dispen­
cluí­lo. Mas é algo ditado apenas por “prazer”, sem
sa­se, por óbvio, o conteúdo geográfico natural e o
nenhuma obrigação suscetível de cobrança.
virtuosimo na descrição da paisagem em favor do
problema da imigração, transculturação e identida­ É exatamente calcado neste projeto que me atre­
de nacional. Dessa primeira fase – digamos de “ini­ vo a propor aqui uma rápida, talvez vertiginosa, apre­
ciação” ao longo do evoluir desta série de aborda­ sentação das idéias centrais. Imagino que, dada a
gens, produziu­se em mim um alargamento percep­ importância e complexidade do autor e sua obra, este
tivo. Daquele ponto de partida que era um simples é um campo privilegiado para enfrentar um grande
exercício de sondagem na “experiência do lugar” desafio. O que não deixa de ser uma temeridade. Mas
(POCOCK) foi­se­me aclarando que a procura de­ eu sempre estive disposto aos grandes desafios: Sob

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o rótulo O ESPAÇO ILUMINADO NO TEMPO tracei bonitos mapas, (Grande Sertão Vmdas, p.15­16)
VOLTEADOR eu me proponho a apresentar3 al­
Um forte pendor que, na Geografia do Brasil,
guns tópicos que imagino constituam a estrutura
direciona o escritor das Minas Gerais para o SER­
básica da análise, e de cujo conteúdo se possam ex­
TÃO. Minas sem mar, interiorizada no SERTÃO.
trair algumas ilações teóricas, analíticas ou mesmo
conceituais sobre as preocupações básicas do Geó­ 2 – O SERTÃO NO BRASIL E O MUNDO (U MA B IFACILI­
grafo motivado pelas componentes humanísticas na DADES J ANUSIANA )

relação “espaço e cultura”.


Na longa narrativa pela qual se estrutura o ro­
mance Grande Sertão: Veredas tem­se enfatizado,
I – “BRINCAR” DE GEOGRAFIA com insistência, o dualismo ensejado pelo falso diá­
logo entre o ex­jagunço Riobaldo e seu ouvinte in­
(O LUGAR DA GEOGRAFIA NO PRIVILEGI­ visível: o campo inculto face ao saber citadino eru­
ADO UNIVERSO CULTURAL DO AUTOR) dito. Talvez o meu lado geógrafo leve­me a propor
Numa entrevista 4 , o escritor João Guimarães acrescentar aquele outro entre o litoral e o interior.
Rosa, recordando a infância, declarava­se arredio aos Nas dimensões continentais da geografia brasileira
adultos, recolhendo­se às suas preferências: estudar avulta aquele dualismo­ significativo embora alegó­
sozinho e brincar de geografia. Ao associar a Geografia rico – entre a face externa de Janus, expressa pelo
a uma atividade lúdica, Rosa demonstra que, para litoral, aberto às comunicações com outras regiões,
um menino solitário, “viajar” pelo mundo era ativi­ onde chegam as novidades, importam­se necessida­
dade prazeirosa. des e exportam­se disponibilidades, em contraste
com aquela voltada para o interior, ignota a princí­
Sua formação em medicina respondia àquele seu pio, lentamente conquistada. Enquanto a face exter­
lado cientista, amante do naturalismo, da botânica e na (litorânea) abre­se às trocas, intercâmbios e faci­
da zoologia, Mas sua fraca vocação para o exercício lidades de mudanças, aquela interna – num espaço
da medicina exibiu outros tesouros de sua sabedo­ mais distanciado onde o tempo flui mais lentamente
ria, como poliglota, estudioso compulsivo de muitas – indutora da conservação, do mergulho” sobre si
línguas e leitor onívoro de literaturas, religiões e fi­ mesmo, do refúgio. Enfim, a oponência básica e fa­
losofias. Tesouro que, em se acumulando, vai privi­ talmente complementar entre a integração (face ex­
legiar sua vocação suprema como escritor. O fascí­ terna) e a auto­afirmação (face interna). Sentimento
nio pelo mundo, que o leva à diplomacia, fará enri­ contrastante perceptível em todos os países de gran­
quecer, com o estudo, aquilo que fora brincadeira de extensão, nos diferentes continentes onde se di­
em Geografia. Em suas funções no Itamarati, foi ferenciam o avant e o arrière pays, dos francófonos, o
Diretor de Divisão de Fronteiras e Representante frant e back lands dos anglófonos. Talvez pela associ­
do Ministério das Relações Exteriores junto ao Con­ ação ao coração “desértico” isto é especialmente
selho Nacional de Geografia, do IBGE. Assim, do sensível na Austrália, onde a implantação britânica
lúdico ao erudito, a Geografia aflorará, de modo no litoral foi um suave “transplante” para um domí­
destacado, na sua obra. O herói do Grande Sertão nio subtropical em violento contraste com o “out
Veredas: – Riobaldo – também demonstra pendores back” do “bush” degradando­se até o deserto, pre­
geográficos. servador do aborígene e escassamente aberto à co­
Tive mestre, Mestre Lucas, no curralinho, decorei gra­ ragem audaciosa do “jakaroo”. Dentro da polisse­
mática, as operações, regra de três, até Geografia e Estu­ mia brasileira dos Sertões – de feições geográficas bem
do Pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho, variadas – a constante fundadora da semântica do
termo parece estar vinculada ao “interior”5. As Mi­

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nas Gerais, conquistadas do final do século XVII e a uma matriz estrutural. Abundam, ao longo na nar­
especialmente ao longo do XVIII, juntando a mine­ rativa, uma série de “estórias” desde pequenas – os
ração à pecuária é bem um domínio interior, onde as “causos” do Aleixo, com seus filhos cegados pelo
ocorrências de sertões permitem a proposta rosea­ sarampo; do Pedro Pindó, com seu filho Valtei, e
na de um Grande Sertão. Face interna, de auto­afir­ outros – até aquela longa estória de Maria Mutema,
mação (rebeliões, inconfidências vingando ali antes – todos eles com conteúdo bem significativo na ar­
do litoral), de desconfianças, de cautelas. Face inte­ quitetura geral da trama. Este “embutimento” – tipo
rior que é a base de uma Mineiridade da qual Gui­ caixinha chinesa ou copo de escoteiro – é agravado
marães Rosa é uma magnífica expressão. por aquela outra preocupação, pertinente ao Com­
padre Quelenem, aquele sábio sertanejo que, ambi­
cioso: “quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre­coisa,
3 – AMBIGÜIDADES NO LABIRINTO
a outra coisa”. Assim sendo estas coisas “embutidas”
(A COISA DENTRO DA OUTRA E A SOBRE­ e “aureoladas” – uma intrincada polissemia – reque­
COISA) rem dobrada atenção do leitor. E ouso dizer que esta
complicada estrutura do romance assenta bem à
O romance Grande Sertão: Veredas, mais do que
compreensão do Sertão embutido no Brasil de tal
qualquer outra obra de Guimarães Rosa, admite
modo que, como face interna, auto afirmadora ele
muitas entradas e poucas saídas. Daí sua associação
representa muito do caráter “nacional”, ao mesmo
freqüente à idéia de um labirinto. A partir do arqui­
tempo que sua “auréola” – sua sobre­coisa – trans­
tetar da escritura, numa narrativa caudal dispensan­
cende o regional projetando­o ao “universal”. Estas
do partes ou capítulos, com uma linguagem peculi­
considerações parecem­me capitais para aqueles que,
ar, e o ziguezaguear ao sabor do fluxo da memória
penetrando no intrincado labirinto roseano, possam
do ex­jagunço pouco letrado, tudo representa um
extrair real proveito’ para o seu ofício. E sobretudo
desafio ao leitor. Desafio este que exige cautela, con­
para o ofício da Geografia.
centração e persistência. Venci da, nesta obra, esta
barreira fundamental
4 – O ESPAÇO ILUMINADO (GEOGRAFIA E METAFÍSICA)
há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, A ambigüidade no romance decorre, em gran­
impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá­la a de parte, da própria natureza do personagem nar­
seu gosto, conforme o seu ofício: mas em cada aspecto rador em sua condição de sem i letrado detentor
aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta con­ de um saber obscuro, cheio de dúvidas, desconfi­
fiança na capacidade de inventar. (CANDIDO, 1957). ado e inseguro que, no fluxo (psicanalítico) lan­
çado a seu ouvinte instruído, para aconselhar­se
Em sua magistral análise do romance Grande sobre os seus problemas de consciência na pre­
Sertão Veredas, intitulada “As Formas do Falso”, gressa vida de jagunço, precisa não só apresen­
GALVÃO assinala que o princípio organizador da
6 tar­se isoladamente como indivíduo mas também
obra é a ambigüidade e que a estrutura do romance devidamente integrado a sua terra – o Sertão –
é também definida por um padrão dual recorrente: na suas lutas (exteriores e interiores), nos seus
“A coisa dentro da outra (...) é um padrão que com­ problemas. Embora o conhecimento do Sertão
porta dois elementos de natureza diversa, sendo um roseano requeira a associação entre a Terra, o
o continente e outro o conteúdo.” (GALVÃO, 1986, Homem e a sua Luta ou o seu problema – aqueles
p.13). Isto se reflete no fato de se encontrar, no meio elementos que estruturam o clássico Os Sertões,
do romance, histórias ou casos aparentemente como de Euclides da Cunha –, há profundas e radicais
peças soltas que, na realidade, entretanto, obedecem diferenças entre as obras do engenheiro cientista

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e do diplomata escritor. Há quem considere o premo, em seus oponentes higrométricos: o difícil e
Grande Sertão: Veredas uma re­escrita de Os Ser­ rude SERTÃO e o verde macio, belimbeleza das VERE­
tões tese da qual discordo totalmente. Uma coisa
7
DAS. Os acidentes simbólicos do pensamento taoísta;
é um engenheiro, estranho à região, embuído [sic] o yang e o yin.
de altos conhecimentos científicos (da época)
b) A esta complexidade junta­se a imprecisão
denunciar para a nação a iniqüidade do massacre
dos limites, em horizontes fugidios segundo a
de adeptos de um movimento messiânico, por ig­
percepção dos habitantes. “Enfim. Cada um o que
norância da realidade natural e social do sertão
quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é ques­
baiano, e outra é uma elaboração estética, alta­
tão de opiniães ... O sertão está em toda a parte.
mente poética, de um romance onde um vero ser­
(Grande Sertão Veredas p.9)
tanejo, no seu saber obscuro, desvela o seu pro­
blema pessoal como parte da realidade natural e c) Percepção esta ligada àquela sensação interior
sócio­política do Sertão Mineiro. Um libelo, uma de isolamento, lugar de refúgio, onde se vive arreda­
explicação “científica”, uma denúncia, uma reve­ do do arrocho de autoridade. Enfim: “Sertão. Sabe o se­
lação erudita de um lado. Um desvelamento lite­ nhor: sertão é onde o pensamento da gente se for­
rário, artístico, um poema encantatório de outro. ma mais forte que o poder do lugar.” Assim o cará­
ter geográfico, dentro se sua complexidade e impre­
A narração de Riobaldo ao seu interlocutor invi­
cisão de limites é percepção que se afirma interiori­
sível, no início logo após o esclarecimento sobre os
zada, produzida dentro do Homem. Firma­se aqui o
tiros ouvidos e o caso de bezerro, esclarece sobre o
vínculo indissolúvel entre o real e o mítico na Geo­
SERTÃO.
grafia do Sertão. Em CANDIDO (1957), sua análise
“O senhor tolere. Isto é o Sertão” (GS: V p.9) pioneira, assinala brilhantemente esta dualidade.
Após iniciar a apreciação sobre a Terra registra que:
E na explicação inicial Riobaldo apresenta o
“O meio físico tem para ele (GR) uma realidade en­
Sertão em seus aspectos essenciais do ponto de
volvente e bizarra, servindo de quadro à concepção
vista geográfico, em três caracteres definitivos:
de mundo e suporte do universo inventado.” Em toda
a) O Sertão é uma unidade na diversidade. Ele é a narrativa aparecem as referências a numerosos lu­
composto de grandes chapadões, fracionados em ta­ gares, acidentes geográficos, em sua grande maioria
buleiros e com variadas formas intermediárias (tabu­ identificáveis e localizáveis nos mapas. Nesta rique­
leiros chapadosos), coberta de cerrados, de feições as za de toponímia, os nomes – dos lugares como das
mais variadas; as serras, que por vezes os atravessam pessoas (antroponímia) – são quase que sacraliza­
ou emolduram, as vertentes das quais nicham­se ma­ dos. Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de
tas; vales de rios que os atravessam, em diferentes or­ estar sagrado (Grande Sertão Veredas, p.35). Nesta
dens hierárquicas – filiadas à grande artéria, o rio do fartura de lugares, muitas vezes os seus nomes ser­
Chico – e seus afluentes, dentre os quais se destaca o vem e se ajustam às intenções simbólicas na inven­
Urucuia, em generoso vale de matas, atraindo povoa­ ção criativa do escritor. O afluente de Janeiro, ao
ção; os “gerais” correndo em volta, sem tamanho e desaguar no São Francisco, no episódio do encon­
dentro do complexo conjunto, variedade de sub­uni­ tro do adolescente Riobaldo com o Menino, e seu
dades segundo a presença da água naquele pacote de passeio de barco identifica­se comodamente com
rochas sedimentares, notadamente calcáreas, com la­ Janus padroeiro das travessias. Francis UTÉZA9 de­
goas e várzeas, brejos, atoleiros. Outras vezes na escas­ monstra como os lugares onde ocorrem os fatos
sez dela, nos baixões secos, areiões, etc. etc. E avultan­ decisivos da trama romanesca são realçados pelos
do em todo esse complexo conjunto, o contraste su­ seus nomes. Por exemplo: Medeiro Vaz morre no

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Marcavão – passagem para o outro lado da vida – à que emprestou elementos do Razo da Catarina ou
margem do rio do Sono. Aliás a presença da água, o do Jalapão em sua composição. Mas parece que já
seu escoamento na vastidão da paisagem desde os houve felizardos que conseguiram identificar e loca­
brejos que se juntam para formar os rios à magia lizar cartograficamente não só o Liso do Sussuarão
das veredas verdejantes de buritis e os grandes cau­ enquanto outros continuam procurando­o 11. Talvez
dais: o Urucuia vindo do obscuro poente para o ilu­ o Liso do Sussuarão – cujo nome masculinizado de
minado nascente (W­E) e o pai de todos, o São Fran­ um grande felino reforça a condição psicológica de
cisco, oferecendo diferentes situações de “travessi­ medo – seja o exemplo mais vultoso dessa trans­
as” são, ao longo da narrativa, o símbolo do inces­ gressão corográfica. Mas há outros casos. Destaque
sante e perigoso fluxo da vida. E os lugares dos gran­ merece também aquele das Veredas Mortas, lugar
des momentos do romance estão sempre vincula­ onde ocorre o pacto, que depois é revelado como
dos aos cursos d’água. Mas há ocasiões em que o sendo Veredas Altas. O lugar cujo nome trocamos,
autor toma a liberdade de criar sítios e nomes sem que se aparenta ou que não existe bem pode ser obra
respaldo cartográfico e efetividade corográfica. E do inconsciente. Dentro do espaço geográfico o lu­
Antonio Candido, que não é geógrafo, percebeu cla­ gar – com seu nome – revela a instância pessoal, in­
ramente e advertiu: dividual. O lugar como que serve a defini­lo em sua
fragilidade, em sua precariedade, ao longo da sua
Cautela todavia. Premido pela curiosidade, o mapa se “travessia”. Daí ele estar embaralhado, como no jogo
desarticula e foge. Aqui um vazio; ali uma impossível de cartas, misturando o real ao imaginário. O físico
combinação de lugares; mais longe uma rota misteriosa, ao metafísico. Por conseguinte, a fruição geográfica
nomes irreais. E certos pontos decisivos escapam de todo. do texto requer que o geógrafo esteja atento a uma
Começamos então a sentir que a flora e a topografia obe­ preciosa sintonia. Assim como os acidentes topo­
decem freqüentemente a necessidade de composição; que o gráficos, os lugares, para sair do nível corográfico e
deserto é sobretudo projeção da alma10 e as galas vegetais atingir o “geográfico” – o jogo de interações e cor­
simbolizam traços afetivos. Aos poucos vemos surgir um relações os símbolos ou signos (nível imaginário)
universo fictício, à medida que a realidade geográfica é estão articulados também num “sistema” o qual é
recoberta pela natureza convencional. (CANDIDO, preciso descobrir, conhecer. Tarefa nem sempre fá­
1957, p.7) cil já que a simbologia admite um jogo de antíteses,
contrários que cumpre decifrar. O Homem, ser so­
Para um escritor que transgride o léxico, cria pa­ cial, vivendo num dado espaço, num certo tempo,
lavras, trata a língua como coisa dinâmica, “em esta­ em sua travessia lida com a realidade – moldura de
do de ebulição”, por que não transgredir a realidade sua identidade – e o metafísico (a sobre­coisa) – que
geográfica, assim como a língua não fica desfigura­ lhe traça o destino12. E na condição indissolúvel de
da por que o seria a corografia? Contudo há aqueles espaço/tempo, é preciso notar o caráter de que se
que, obcecados pela objetividade e o real, insistem reveste o tempo nesta geografia iluminada de meta­
nesta pesquisa. física na História do Grande Sertão.
O Liso do Sussuarão parece­me um caso típico
de criação. Uma criação para refletir um estado de 5 – O TEMPO VOLTEADOR
espírito – ora dificultoso em demasia de ser atraves­
(HISTÓRIA E ESTÓRIAS)
sado, ora sem maiores dificuldades – mas que se
coloca dentro de limites lógicos de verosimilhança. Uma das muitas dificuldades em alcançar saída
O Liso do Sussuarão não é um deserto com oásis de no labirinto que é a narrativa do romance Grande
tamareiras, o que seria absurdo de conceber, mas algo Sertão Veredas é que além do fluxo contínuo – que

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não possibilita divisões ou subdivisões em partes ou gunçagem em Minas com aqueles movimentos na
capítulos – o desenvolvimento não é absolutamente Bahia e no Piauí. É explicitamente registrado no
linear. Decorrência mesmo da oralidade e do fluxo GS:V que um dos jagunços de Medeiro Vaz então
da memória a narrativa antecipa eventos, colocan­ Passos), após uma refrega mal sucedida contra “Os
do­os numa falta de ordenação que requer do leitor Judas”, logo antes da morte daquele chefe, foi colo­
do livro uma atenção redobrada, difícil de acontecer car­se sob a proteção do lendário coronel Horácio
numa primeira leitura, mas em subseqüentes. Ape­ de Mattos, chefe político nos sertões baianos com
nas no terço final da narrativa os acontecimentos famosa jacunçada nos sertões do São Francisco nos
colocam­se em ordem cronológica linear. O tempo anos dez e vinte deste século. No Piauí, a jacunçada
do narrador não é o do relógio – no dia a dia nem foi decorrência da derrocada da extração do látex da
obedece a uma cronologia ordenada. Produzem­se maniçoba – um pálido complemento do ciclo da bor­
muitos volteios . Não. Eu estou contando assim,
13
racha Amazônica no Meio Norte – quando os mani­
porque é meu jeito de contar. Guerras e batalhas? çobeiros (oriundos do Nordeste Oriental, notada­
Isto é como jogo de baralho, verte, reverte. [...] mente Pernambuco e Ceará) desocupados puseram­
se a serviço dos latifundiários criadores em suas dis­
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos di­ putas pela posse da terra e ascensão ao poder políti­
versos, cada um com seu signo e sentimento, mas com co. A jagunçada do sul do Piauí foi erradicada em
outros acho que nem se misturam. Contar seguido, ali­ 1924, pouco antes da entrada, naquele Estado, da
nhavado, só mesmo as coisas de rasa importância. De Coluna Prestes que, como se sabe, findou­se em ter­
cada movimento que eu real tive, de alegria forte ou pe­ ras da Bolívia em 1927. Com estes artifícios pode­se
sar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse seguir o contorno da militância guerreira de Riobal­
diferente. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim do e Diadorim, no início da República, antes do seu
é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem “envelhecimento” com a Revolução de Trinta o Im­
horas antigas que ficam muito mais perto da gente do que pério já é passado um tanto remoto como sugere
outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (p.95) uma velha carta encontrada na abandona­da casa
grande da Fazenda dos Tucanos, onde se falava no
O narrador não fornece datação exata das ocor­
Imperador e da existência de “escravos”. A “narra­
rências e quando menciona alguma o faz de maneira
tiva’:, quando Riobaldo deixara a jagunçagem, coisa
imprecisa. Uma das mais destacadas e que só apare­
do passado e se tornara fazendeiro, nem sertão “de­
ce no final é aquela do batistério de Diadorim (aliás
mudado” com a entrada de zebú e inclusive mudança
Maria Diadorina) na matriz de Itacambira ... “em um
de nomes dos lugares14 deve ter ocorrido no final
11 de setembro da era de 1800 e tantos.” (p.568). Com
dos anos quarenta quando, após a guerra, o diplo­
dificuldade coletam­se outras vagas referências. Uma
mata, escritor retomou da Europa, principia suas
menção ocasional: “Os revoltosos depois de passarem por
viagens pelo sertão. De nenhum modo, no seu trata­
aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás ...” (p.95). Outra
mento do tempo, o escritor João Guimarães Rosa,
a um ataque a Januária e Carinhanha, referida a Rio­
na obra Grande Sertão Veredas intenta, uma Histó­
baldo pelo seu pai, como tendo ocorrido “... nas eras
ria marcada por uma cronologia exata, apoiada em
do ano de 79” (p.108). Considerando­se que se o nas­
fatos documentados e dirigida aos grandes vultos
cimento do Diadorim deu­se no final dos anos oi­
detentores do poder. Numa frase muito feliz GAL­
tenta do século passado, e não se distanciando em
VÃO (1986, p.63) diz que GR “dissimula a História
idade daquela de Riobaldo, os dois jagunços no auge
para melhor desvendá­la”.
dos acontecimentos – a morte de Hermógenes –
deveriam estar pelo final dos vinte, princípio dos trin­ O conteúdo histórico a ser extraído da narrativa
ta. Importante, contudo, é associar­se a época da ja­ de um sertanejo, de saber obscuro, em suas vivênci­

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as no sertão distante, pouco povoado e de comuni­ pontos, de zero a dez, por ele apresentada17 a seu tra­
cações difíceis e morosas, sobretudo para uma vida dutor italiano, BIZZARRI (1980, p.58), é citação qua­
errante de jagunço , só poderia emergir de sua pró­
15
se obrigatória por parte dos estudiosos de sua obra:
pria individualidade e de sua vida. Assim, a História
possível (em escolha deliberada na criação artística) ... como apreço de essência e consideração, assim gostaria
é aquela que se tece a partir das inúmeras estórias, de considerá­los: a) cenário e realidade sertaneja: 1 pon­
emanadas da oralidade dos “causos”, da música das to; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor me­
cantigas, do imaginário popular, reveladora dos ar­ tafísico religioso: 4 pontos. Naturalmente, isto é subjeti­
quétipos, do inconsciente coletivo. O que vale dizer vo, traduz só a apreciação do autor, e do que o autor
que, neste Sertão, em sua Geografia onde o real da gostaria, hoje, que o livro fosse. Mas, em arte, não vale a
natureza é percebida pela mediação do mítico e em intenção. Dei toda esta volta, só para reafirmar a você
sua História, extraída da vivência cotidiana e dos que os livros, o Corpo de Baile principalmente, foram
problemas dos escassos habitantes, no seu distanci­ escritos, penso eu, neste espírito.
amento espacial e retardamento temporal, existe um
verdadeiro laboratório para a compreensão da cul­ Para aqueles que abordam sua obra pelo ofício
tura. E esta visão interior – a máscara da auto­afir­ da Geografia é fácil constatar que ela não está para
mação, a coisa (Sertão) dentro da outra (Brasil) – ser sondada apenas naquele item de cenário e reali­
expressa no romance GS:V, serve bem à compreen­ dade sertaneja, com o valor mais baixo, de apenas
são da realidade brasileira. Pela dinâmica dos pro­ um ponto. Em verdade ela pode ser percebida tam­
cessos variados que se unem, conjuntivamente, na bém no enredo, na trama romanesca e até mesmo na
gênese de nossa cultura, ainda não consumada mas rubrica da poesia. Isto sobretudo porquanto o amor
em pleno “fazimento”. à natureza foi­lhe “ensinado” por Diadorim e por­
que, ao longo da narrativa, cada vez que estas lem­
6 – AS DIMENSÕES DA CULTURA branças são evocadas, a paisagem (cenário) merece
os mais elevados momentos poéticos da escritura.
(Do REAL, PELO LÚDlCO AO MÍTICO) Quanto à confessada “aversão” que o autor tem pela
História, Sociologia e Política, ela deve ser entendi­
Ao lado do já referido pendor geográfico de Gui­ da sobre aquilo que está além do vivido e demons­
marães Rosa é muito conveniente sondar suas disposi­ trado pela condição humana e que, por par­te dos
ções em face de ciências puramente humanas, sobretu­ adeptos do racional, da “megera cartesiana” elabo­
do porquanto sua obra revela exalta dos pendores para ram as Teorias. Não seria possível deixar de perce­
as naturais como botânica e zoologia. Em uma carta a ber e coletar informação nestes domínios das ciên­
seu amigo Vicente Ferreira da Silva, datada de 21 de cias humanas no GS:V. O que não se encontra são
maio de 195816, encontramos o seguinte: os vezes da “megera ideológica”. Antes de preten­
der demonstrar o conteúdo sociológico e político,
Desconfio que sou um individualista feroz, mas discipli­
ao lado da História peculiarmente entretecida em es­
nadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao soci­
tórias, recorro a outro esclarecimento que Guima­
ológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, de­
rães Rosa dá a seu tradutor italiano. Em carta datada
sordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco.
de 3 de janeiro de 1964 (BIZZARRI, 1980 p.8), a
Sou só RELIGIÃO – mas impossível de qualquer as­
propósito da colocação de uma nota de pé de pági­
sociação ou organização religiosa: tudo é o quente diálo­
na, elucidativa do Coco de Chico Braboz, comenta
go (tentativa de) com o ¥. O mais você deduz.
o autor a seu tradutor:
Se juntarmos a isto aquela preciosa valoração de

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... simplesmente sotoposta (a nota) ao Coco, quebra o massa dos vaqueiros ou alguns semi­letrados como ele
encantamento mágico, a que visamos, e traz o acento para próprio; o grande fazendeiro – criador de gado e la­
o aspecto “documental” do livro – que é apenas subsidi­ vouras de cana e arroz, além daquele chefe Zé Bebelo
aríssimo, acessório, mais um “mal necessário “, mas ja­ aspirante ao poder político. A comparação entre o fa­
mais devendo predominar sobre o poético, o mágico, o zendeiro Habão e sua condição de jagunço é muito clara:
humor e a transcendência metafísica.
o que me dava a tal inquietação, que era de ver: concluí
Parece­me claro que estes subsídios ou acessóri­ que fazendeiro­mór é sujeito da terra definitivo, mas que
os políticos e sociológicos existem, até abundante­ jagunço não passa de ser homem muito provisório. (p.390)
mente, ao longo de toda a trama romanesca do Gran­
E sobretudo a comparação entre os extremos da
de Sertão Veredas.
escala social; a riqueza do Seu Habão e a miséria dos
A penetração das normas administrativas, a catrumanos:
aplicação da justiça no interiorizado sertão, ao
... eu acho que, homem só vendido ao dinheiro e ao ganho,
início de vida republicana brasileira – em relação
às vezes são os que percebem primeiro o atiço real das
às permanências que vigoram até o presente –
cousas, com a ligeireza mais sutil. (p.405)
eram por demais precárias, dando ensejo a que os
donos das terras, dos latifúndios do criatório de e o outro extremo:
gado, em disputa entre eles mesmos, recorressem
De homem que não possui nenhum poder nenhum, di­
àquelas formas de “sobregoverno” (poderes pa­
nheiro nenhum o senhor tenha medo. O que mais digo:
ralelos) que explicam a própria gênese da jagun­
convém nunca a gente estar no meio das pessoas muito
çada. E o painel de “chefes” apresentado por
diferentes da gente. (p.367)
Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas é
bastante expressivo ao exibir o carisma de Joca Entre os dois extremos, deve­se também evitar
Ramiro, a coerência idealista de Medeiro Vaz e a escalas intermediárias. Ante a maneirosa e sutil insi­
esperteza do ladino Zé Bebelo (o mais brasileiro nuação que seu Habão demonstra em bem acolher o
deles). bando de jagunços de Zé Bebelo, no seu vão zigue­
zaguear na perseguição dos judas, com a intenção de
Em trabalho anterior a este (MONTEIRO, 1998),
aproveitá­la para trabalhar em suas lavouras desfal­
procurei demonstrar a importância do conteúdo soci­
cadas pela peste nos seus servos do Sucruiú, Riobal­
ológico que pode ser captado no Grande Sertão Vere­
do não admite e rebela­se ante a idéia:
das. Tanto por uma colheita de fragmentos e informa­
ções ao longo de toda a narrativa quanto – e especial­ Mas a natureza dele (Habão) queria, precisava de todos
mente – concentrado no momento supremo do roman­ como escravos... [... ] Nós íamos virando enxadeiros. Nós?
ce, ou seja, quando após o “pacto” nas Veredas Mortas Nunca! (p.392).
Riobaldo faz sua opção definitiva – sua decisão de, após
Para agravar a situação, Riobaldo percebe sinais
vencido o Hermógenes, tornar­se fazendeiro18. Riobal­
de vacilação – sintoma de medo – no seu chefe Zé
do, ele mesmo, tinha suas origens entre os dois extre­
Bebelo em continuar a procura e enfrentamento do
mos da escala social sertaneja já que era filho bastardo
“judas”.
do Coronel Selorico Mendes e da serva Bigrí, No itine­
rário do Pubo­Sucruiú­Valado ele, em poucos dias, tem Diante de um tal estado de espírito Riobaldo toma
o desfile completo da escala social sertaneja. Os mise­ a sua decisão capital: nas Veredas Mortas firma o
ráveis catrumanos do Pubo; os enxadeiros moradares “pacto”. Por fidelidade (e amor) a Diadorim cumpre
do Sucruiú, mão­de­obra explorada pelo Coronel Ha­ derrotar os Hermogenes. Para tanto, fortificado pelo
bão, atacada pela bexiga preta; os jagunços – saídos da pacto precisa ser o chefe. Poderoso, retoma ao gru­

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po, é proclamado o Urutú Branco, destitui Zé Bebe­ muito interessante promover um confronto entre as
lo, é presenteado pelo Seu Habão com o seu cavalo; obras capitais de GR – GS: V e Corpo de Baile surgi
recusa para ele o nome de Barzabú em favor daquele das em 1956 e o “nouveau roman” francês, da mes­
de Siruiz (a preferência pela doçura da poesia contra ma época. Sobretudo importante seria a compara­
a aspereza do demo), humilha o capitão Habão fa­ ção da questão do “espaço romanesco”. Mas isto
zendo­o moço­de­recado com a mensagem de levar seria uma questão para a crítica literária e não para
a “pedra de topázio” à sua Otacélia, e, como chefe – um geógrafo19.
ao lado de Diadorim – parte para a luta final.
É interessante notar como a comparação entre
Decorridos tempos, já demudado o sertão, Rio­ os problemas que angustiam o herói do roman nou­
baldo faz sua narrativa na condição de Senhor, – bens veau – expressão do homem urbano da sociedade al­
e terras herdadas do pai – mantendo a seu redor seus tamente tecnológica do mundo ocidental –, em que
antigos companheiros jagunços, na condição “fra­ pesem as diferenças de gênese de seus problemas
terna” de meeiros, moradores de “suas” terras com existenciais e a sua projeção espacial, são equivalen­
pacto de fidelidade e ajuda em caso de precisão. tes aos do sertanejo mineiro do início do século XX .
E o traço de ligação que é a fonte primordial da con­
Riobaldo acomoda­se naquilo que julgou ser o melhor para
dição humana é o eco da transposição da categoria
ele. Ele nunca foi um revolucionário; mesmo sua entrada
espaço­temporal em categoria moral­psicológica que
e militância na jagunçagem foi obra das circunstâncias e
coloca o homem entre o jogo de oponências, entre
não de uma vocação. Como Riobaldo, Guimarães Rosa
as luzes e as trevas (a caverna platônica), o bem e o
não é um escritor revolucionário. Como escritor, romancis­
mal (Deus e o diabo) que se reduzem à dicotomia
ta, ele se filia mais a Dostoiewsky, que também evitava o
básica: o conhecer e o desconhecer. A angústia de
político ideológico. Diante desta posição do escritor não
Riobaldo revelada a seu invisível interlocutor:
faltam “cobranças” (quando não patrulhamento) ideoló­
gicas. Em sua análise da ambigüidade no GS: v: GAL­ Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria deci­
VÃO (1986, Introdução, p.13­14) aponta a posição frar as coisas que são importantes. E estar contando não
sumamente ambígua, que aliás é estendida ao intelectual é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a maté­
brasileiro: Preso a seus privilégios mas sendo capaz, por ria vertente, queria entender do medo e da coragem, e da
treino, de experimentar imaginariamente outras situações gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo
de vida, convive no mundo dos valores, mas é tradicional­ ao suceder. O que induz a gente para más ações estra­
mente servidor do Estado; aqui existe e aqui produz, nhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por
mas de olho na última moda das agências centrais de direito, e não sabe, não sabe. (p.84)
cultura.
Enquanto não atinge este grau de conhecimento
Riobaldo escolheu ser “cidadão efetivo” procu­ o sertanejo jagunço embrenha­se no seu espaço na­
rando a herança paterna (inda que bastarda). Gui­ tural complexo sobre o qual o espaço social impõe
marães Rosa escolheu ser diplomata (servidor do mudanças, embora lentas, mas a ponto de ser um
Estado). Seus princípios estéticos norteadores de sua sertão “demudado” do tempo da narrativa ao tem­
criação literária, mais do que o esforço da análise po da jagunçagem. O tempo volteador, num ritmo
dos estudiosos de sua obra, foram explicitados por lento, embaralha o espaço­tempo de tal modo que a
ele sobretudo na correspondência com seus tradu­ Geografia narrada já se revela História. E esta, na­
tores. O metafísico, o mágico e o poético superam a quele espaço e naquele volte ar, junta antigo e mo­
crua realidade. derno, tecendo uma teia de tempos múltiplos que
possibilita a contemporaneidade do não coetâneo.
Quanto ao “olho na última moda”, talvez fosse
E este verter e contraverter de tempo no espaço do

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sertão privilegia uma visão do processo de elabora­ Assim, a manifestação de cultura popular é
ção da CULTURA brasileira. Exibindo o sertão mi­ posta sob o foco de uma lente, para uma filtra­
neiro do início do século uma fácies mais primitiva gem pela tradição culta. Tudo isto aparecendo nos
no nosso processo de formação de CULTURA em inúmeros “causos” semeados à fartura ao longo
andamento, ainda não capaz de expressar seus atri­ da narrativa, extremamente reveladores da mis­
butos essenciais. tura do real, do lúdico (o humor) e sobretudo do
mítico. Nas sociedades primitivas onde o Homem,
E parece estar aí um dos aspectos dignos de
na obscuridade do saber, liga­se visceralmente às
maior realce dentre os muitos contidos em Gui­
forças e formas da natureza, recorre aos mitos –
marães Rosa no seu Grande Sertão: Veredas. Há
aquilo que a natureza reflete da vontade dos deu­
abundância de elementos culturais oriundos de
ses e dá significado a sua vida. Conforme ensi­
nossa multietnicidade. As raízes indígenas, seja
nou MALINOWSKI (1948, p.79):
pelas referêndas (um tanto longínquas) aos “bu­
gres” (p.22, 23), mas muitas e próximas, identifi­ o mito desempenha uma função indispensável na cultura
cáveis nos lugares, nos costumes da gente serta­ primitiva: expressa, possibilita e codifica a crença; prote­
neja; ás contribuições africanas, nos personagens ge e reforça a moral; garante a eficiência do rito e contém
negros, nas “rezas baianas”, em muitos aspectos. as regras práticas para a orientação do homem.
Além do estoque dirigente, de origem lusa, o apor­
Na arquitetura desta obra monumental, Guima­
te da língua – em seus ar­caísmos – e da religião
rães Rosa utiliza todo o arsenal do seu tesouro pes­
católica, assim como a língua, eivada de africa­
soal de cultura, criando na arte literária uma fusão
nismos, cardecismos etc. E aquela contribuição
especial tecida pela lingüística: desobediência do lé­
que extravasa do português, do ibérico, para o
xico, reaproveitamento ou revivificação de arcaísmos,
estoque europeu ocidental, em aspectos bem re­
geração de palavras novas inclusive pelo acréscimo
motos, medievais e renascentistas que foram tra­
de barbarismos; pelas raízes profundas na tradição
zidos pelos colonizadores e inda hoje – no interi­
cultural ocidental, onde o caráter helenista impreg­
or sertanejo, no Grande Sertão em sua confor­
nado de componentes judaico­cristãs; e pelos com­
mação máxima incluindo os sertões Nordestinos
ponentes metafísicos – convergência de vertentes do
correm na boca dos contadores de estórias, dos
hermetismo, da alquimia; e pelas associações com as
cantadores e na literatura de cordel. A própria
filosofias e religiões orientais, com destaque para o
trama da jagunçagem liga­se aos cavaleiros andan­
taoísmo.
tes e o próprio Diadorim molda­se nos mitos da
donzela guerreira (Clorinda e Tancredo, por exem­ 7 – CONCLUSÕES
plo). O próprio Riobaldo encantou­se com o li­
vro Senclér das Ilhas que encontrou em casa do Diante da complexidade exibida, talvez seja pre­
único morador do Currais­do­Padre e no qual, no tensioso alcançar “conclusões” sendo mais realista
deletrear dos seus descansos, “ achou outras verda­ admitir que se podem pinçar algumas ilações.
des, muito extraordinárias”, Sua referência a Gui de A Literatura através do romance, em sua propos­
Borgonha (p.502) demonstra a permanência ser­ ta de nos dar uma visão particular do Mundo, tem
taneja das estórias do Santo Graal e dos Cavalei­ que revesti­la de uma estrutura espaço­temporal. Isto
ros da Távola Redonda. Quando empresta a Me­ em qualquer tradição cultural, já que espaço­tempo
deiro Vaz a categoria de um “par­de­frança” vemos são categorias a priori.
aí uma alusão às histórias de Carlos Magno e os
12 Pares de França. “Rien n’aura eu lieu que le lieu” nos disse o poeta
Mallarmé. Em verdade toda uma trama, um enredo

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que se desenrola sobre uma cena, tudo que é narra­ casado com sua Otacília, já está às portas de velhice
do num romance, acontece (“tem lugar”) num conti­ e o Sertão já está “demudado”.
nuum espacial mais ou menos definido e a partici­
Pelo que procurei demonstrar neste ensaio, em­
pação do leitor – que não é totalmente passiva como
bora haja uma declarada e indisfarçável preocupa­
na leitura jornalística – tende a identificá­la a uma
ção de GR em não “documentar” a realidade, o con­
realidade concreta, ou seja “geográfica”. Mas, em
teúdo do GS:V apresenta elementos precisos de ca­
tanto que criação artística, ficcional, haverá, for­
racterização daquele seu Sertão Mineiro, marcado
çosamente, um espaço artístico que não pode ser
pelo Urucúia – como eixo privilegiado da sombra
reduzido aos limites estreitos de uma paisagem real.
para a luz – no início do século XX . O romance deve
Assim, o primeiro problema para aqueles que, do ter sido escrito (junto ao Corpo de Baile) no início
ofício da Geografia, procuram sondar o seu conteú­ dos anos de 1950, tendo sido lançado em 1956, no
do num dado romance consiste em sintonizar aque­ Governo Kubitschek. Quatro anos após, Juscelino
les dois sistemas espaciais. É de toda conveniência inaugura Brasília (1960), abrindo as portas dos Ser­
que o sistema geográfico deva ser procurado nos seus tões do Planalto Central Brasileiro. A rede de trans­
atributos mais relevantes, sobretudo quando em face portes e a conquista dos cerrados pelo advento da
da alta literatura. Não teria sentido fazer cobranças petroquímica e indústria de fertilizantes vem acele­
do trivial geográfico já que um romance não é um rar a sua conquista. Os contingentes populacionais
manual de geografia, sobretudo uma velha corogra­ excedentes do Sul do País compram as terras bara­
fia. Importa muito desvendar as relações entre o sis­ tas e, com a mecanização e uso de agroférteis, pro­
tema do real geográfico com aquele dos símbolos movem a grande mudança. O Sertão roseano não
ou signos artísticos na arquitetura da obra. escapará a ela.

Esta articulação entre estas duas categorias de Os vários relatórios das diferentes missões cien­
espaços, aparentemente complicada, é perfeitamen­ tíficas, os antigos relatos dos naturalistas, as mono­
te possível. Devemos lembrar do caso de Homero 21
grafias e artigos geográficos que se produziram, ao
na Odisséia onde Ulisses, na sua longa viagem de longo dos tempos, darão depoimentos circunscritos
retorno através do desconhecido, e, tentado pelas às épocas de suas produções. A efemeridade dos re­
sereias, desce aos infernos, enfrenta os Cíclopes e o latos geográficos diante de um mundo em perma­
Minotauro num labirinto. No caso de Ulisses, temos nente mutação. O magnífico painel, arquitetado lite­
um “herói de estirpe” bafejado pelas musas e deu­ rariamente por GR como “poema – encantatório”
ses, vencendo os desafios do meio hostil pela sua que é será eterno.
inteligência e sobretudo, a “astúcia”. Na sua longa
A Geografia embora auferindo indiscutíveis gan­
viagem de volta de Tróia ele encontra uma Itaca di­
hos com as preocupações teóricas e sobretudo quan­
ferente e ele próprio já não é o mesmo (a ponto de
titativas, descuidou­se muito da descrição, empobre­
ser reconhecido apenas pelo seu cão).
cida e quase abandonada nas abordagens regionais.
Também é possível, malgrado as dificuldades cri­ Aquele sabor lablacheano da personalidade dos lu­
adas deliberadamente pelo próprio autor, sintonizar gares e regiões foi dado como obsolescências a aban­
estas relações na longa “travessia” de Riobaldo: um donar. A atual preocupação com um conhecimento
anti­herói, homem humano, no seu ziguezaguear de mais conjuntivo, uma pregação das virtudes do “ho­
jagunço pelo grande sertão, entre fatos obscuros, lismo” e a proposta de uma Nova Geografia Huma­
além de sua compreensão e que culmina com o de­ nística, poderá promover um benéfico contato com
senlace pelo grande equívoco com Diadorim, sua a Literatura.
“neblina”. Quando ele se instala como fazendeiro,

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Não se quer dizer, de nenhum modo, que a criação Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é
literária substitua a Geografia, mas é preciso que se um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha
considere uma possibilidade de complementação enri­ me ouvido. Me ouviu a conforme a ciência da noite e o
quecedora. E daí a necessidade de promover a relação ouvir dos espaços, que medeia. Ao que eu recebi de volta
Geografia­Literatura como veículo de educação no um adêjo, um gôzo de agarro, daí umas tranqüilidades –
ensino médio. E reconhecer também que, por mais ta­ de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa
belas de dados e comprovações científicas que uma de meu pai. (p.398)
análise geográfica possa fornecer, haverá uma possibi­
Embora incerto de sua condição de pactuário,
lidade de que um artista criador – na alta literatura –
nasceu nele, dentro dele, a coragem de que carecia
com outros recursos tenha o poder de criar uma reali­
para chefiar os jagunços na missão de exterminar os
dade infinita.
judas. Mas reconhece suas limitações:
Não que o ficcional, o imaginário, o mítico, e o
As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca.
metafísico, neles mesmos, substituam o real. Mas é
Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Abso­
muito provável – como no caso de GR – que isto
lutas estrelas!
venha “iluminar” e ampliar a percepção do geográ­
fico num poema mágico como o GS:V

E para bem sublinhar esta relação recorro ao pró­ NOTAS


prio autor extraindo do seu discurso de posse na * Departamento de Geografia – USP. Texto
Academia Brasileira de Letras o seguinte trecho, glo­ apresentado no I SIMPÓSIO NACIONAL
sando um dito de João Neves de Fontoura: SOBRE ESPA­ÇO E CULTURA, NEPEC
Não que a fé (mítico, metafísico) seja inimiga da vida ­ UERJ Rio de Janeiro, outubro de 1998.
(realidade). Mas o que o homem é, depois de tudo, é a 1­ Muito provavelmente críticos literários po
soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo a dem dis­cordar do meu critério nesta cate
natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe goria mais “eleva­da”. Ressalve­se que a
impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido motivação “geográfica” seráaquela nortea
rascunho ”. (Grifos e parênteses meus).
22
dora da minha procura.

No seu ofício de investigar as “verdades” que 2­ Venho de assistir a dois eventos que ates
caracterizam o “real”, em sua penosa travessia do tam ca­balmente esta assertiva. A X Semana
ignorado para o conhecido, o cientista, muitas ve­ Roseana, rea­lizada entre 29 de junho e 05
zes, atinge apenas aproximações, “verdades provi­ de julho em Cordis­burgo, berço do escri
sórias”. Ao concluir uma pesquisa constata que para tor, e sobretudo o SEMINÁ­RIO INTER
uma resposta obtida levantam­se novas indagações. NACIONAL promovido pela PUe­MG em
E é isto que impulsiona a Ciência. Belo Horizonte entre 24 e 28 de agosto.

O Homem humano, comum – de quem Riobal­ 3­ Pelo pouco tempo disponível numa “mesa­
do é um símbolo – em seu saber limitado, ainda obs­ redon­da” talvez oralmente se possa apenas
curo, ante as grandes dúvidas e indagações capitais apresentar as idéias sem oportunidade de
sobre o real e falso, acima de sua capacidade, recor­ esclarecê­Ias ou fun­damentá­Ias devida
re à natureza, mediadora dos deuses. Após a emoci­ mente.
onante e angustiosa vigília nas Veredas Mortas ele 4­ Provavelmente uma famosa entrevista con
ainda não se deu conta da efetivação do pacto: cedida a Ascendino Leite, reproduzida (sem

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menção à fon5te) em PEREZ (1968). uma trama (o destino).

5­ Se é verdade que a noção de SERTÃO liga­ 13­ Esta dificuldade notória parece já haver en
se a formações vegetais predominantemen seja do a preparação de ROTEIROS para
te não flores­tais (cerrados, caatingas) line guiar o leitor. O que faz lembrar o quadro
ar ou pontualmente com ocorrência de ma geral de cronologia e correlações que – ba
tas, naquela parte onde as formações de mata seado num estudo de Valery LARBAUD – o
pluvial – litorânea e do interior – se alargam próprio Joyce montou para o seu ULISSES,
consideravelmente no Sudeste, a me­dida reproduzido na Enciclopédia Britânica, Ed.
que se as derrubavam para implantar a cul De 1970, Vol. 13, p.96B.
tura do café, não se falavam também em
14­ Note­se que a medida federal de não permi
Sertão da Mo­giana ? Sertão de Ribeirão Preto?
tir to­pônimos repetidos – em sedes munici
6­ Tese de Doutorado de 1972, referida à 2" pais – é obra do Estado Novo, sugeri da pelo
edição de 1986. IBGE à época do Recenseamento Geral de”
1940.
7­ Caso da Willi BoIle (1997­98) que parte da
evoca­ção de Antônio CANDIDO (1957) 15­ Lembre­mo­nos do caso de uma carta que
sobre os três elementos básicos: A TERRA, Nhori­nhã enviou à Riobaldo e que ele só
O HOMEM, O PROBLEMA (em substitui veio recebê­Ia passados oito anos, quando
ção à A LUTA euclidia678na), mas, já já estava casado com Otacília. (p.95).
apontando as diferenças, defende
16­ Citada em Paulo DANTAS: Sagarana Emoti
ar­dorosamente sua tese sobre a “re­escrita”.
va, São Paulo, Duas Cidades, 1975 p.9 e re
8­ Pelo tempo disponível numa mesa­ redonda petida em Luiz Otávio Sa assi ROCHA
evito aqui as transcrições longas. (1981) p.36.

9­ Pormenorizada e ao longo da obra A Meta 17­ Importantíssima carta, muito elucidativa,


física Do Grande Sertão e numa brilhante sín datada de 25.x1. 1963 onde esta “valoração”
tese em mesa­redonda no Simpósio Inter é precedida por considerações importantes
nacional de PUC – MI­NAS – “Realismo e sobre o fato dele evi­tar, em seus livros “...
Transcendência: o mapa das Minas do Gran o bruxolrar presunçoso da inteligên­cia reJlexif!a,
de Sertão”. da razão, a megera cartesiana”.

10­ Caso do Liso do Sussuarão. 18­ Numa obra sem capítulos – uma narrativa
11­ Caso de sucesso parece ser aquele de VIG contí­nua, mas não linear – é difícil localizar
GIANO (1978) segundo referência colhida as citações, a não ser pela paginação (3" edi
em Heloísa Vi­Ihena de ARAÚJO (1996). ção). Digamos que entre as páginas 353 –
O Roteiro de Deus, em nota ao pé da página quando Riobaldo pensa aban­donar o gru
22. Enquanto outros, como BOLLE, (1997­ po de Zé Bebelo à procura dos judas ao che
98) continuam à procura. gar ao Currais­do­Padre, até a página 414,
quan­do encarrega o Seu Habão de levar a
12­ Em termos de dramaturgia equivale ao bi
pedra de to­pázio para Otacília.
nômio ANAGNÓRISE – a passagem do ig
norado ao co­nhecido, ou a solução de uma 19­ Contudo, teria gra’:lde interesse em confron
trama (a identidade) e PERIPÉCIA – o tra tar o jagunço do GS:V de GR (1956) com o
jeto da identidade no reconhecimento, ou “soldado” do “Dans le Labyrinthe” de Rob
uma súbita mudança na sorte, no curso de be­Grillet (1959) nos espaços sertanejo (Bra

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sil) e urbano (França). 44. São Paulo, Coordenadoria de
Comuni­cação Social/USP, Dez­Jan­Fev.
20­ Além do já numerado acervo de estudos de
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