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5.

A primeira ameaça direta

Toda manhã, enquanto eu e minhas amigas passávamos pelo portão da escola, um


homem do outro lado da rua ficava olhando com cara feia pra nós. Então certa noite ele veio
à nossa casa, com seis anciãos da comunidade. Abri a porta. Ele disse que era um mufti, um
erudito islâmico, e que tinha um problema com a escola. Meu pai me mandou ir para outro
cômodo quando o mufti e os anciãos entraram em nossa pequena casa, mas ouvi cada
palavra.
— Represento os bons muçulmanos — o mufti disse. — E todos consideramos sua
escola para meninas uma blasfêmia. Você precisa fechá-la. Meninas adolescentes não devem
ir à escola. Devem ficar reclusas em purdah.
O mufti estava claramente sob a influência de um maulana que tinha um programa de rádio ilegal em que
dava sermões e protestava contra as pessoas que considerava “anti-islâmicas”.
O que nós sabíamos, mas o mufti não, era que sua própria sobrinha frequentava a escola em segredo.
Enquanto papai argumentava, um dos anciãos tomou a palavra.
— Ouvi dizer que você não é um homem devoto — ele disse a meu pai. — Mas há exemplares do Corão em
sua casa.
— Claro que sim! — meu pai disse. — Sou muçulmano.
O mufti retomou a palavra, reclamando que as garotas entravam na escola pelo mesmo portão que os
homens. Então meu pai sugeriu que as meninas mais velhas entrassem por um portão diferente.
No fim, o mufti desistiu e os homens foram embora. Mas, mesmo depois de a porta se fechar atrás deles,
continuei a sentir um nó no estômago. Cresci presenciando homens pachtum teimosos e orgulhosos. Geralmente,
quando um deles perde uma discussão, não esquece. Nem perdoa.
Apesar de ser uma criança, eu sabia que aquele homem estava errado. Eu estudava o Corão, nosso livro
sagrado, desde que tinha cinco anos, e meus pais me mandavam a uma madrasa para os estudos religiosos à tarde,
depois da escola. Era uma mesquita a céu aberto, onde meninos e meninas estudavam o Sagrado Corão juntos. Eu
amava estudar o alfabeto arábico. Amava as formas estranhas e misteriosas das letras, o som das orações quando
todos as recitávamos juntos e as histórias sobre como viver de acordo com os ensinamentos de Alá.
Minha professora lá era mulher. Era gentil e sábia. Para mim, a madrasa era um lugar apenas para educação
religiosa; eu ia para a Escola Khushal para todos os outros estudos. Mas para muitas daquelas crianças a madrasa
era o único lugar em que estudavam a vida toda. Não tinham nenhuma outra aula: ciências, matemática, literatura.
Estudavam apenas o árabe para que pudessem recitar o Sagrado Corão. E não aprendiam o que as palavras
significavam, apenas como dizê-las.
Eu nunca tinha pensado muito sobre essa diferença até a visita do mufti à nossa casa. Um dia, eu estava
brincando com as crianças da vizinhança e, quando estávamos nos dividindo para jogar críquete, um dos meninos
disse que não me queria no time dele.
— Nossa escola é melhor que a sua — ele disse, como se isso explicasse.
Não concordei nem um pouco.
— Minha escola é a melhor — eu disse.
— Sua escola é ruim — ele insistiu. — Não segue o caminho do Islã.
Eu não sabia como responder a isso, mas sabia que ele estava errado. Minha escola era o céu.
Porque, dentro da Escola Khushal, voávamos nas asas do conhecimento. Em um país onde mulheres não
podem sair em público sem um homem, nós meninas viajávamos para longe dentro das páginas de nossos livros.
Em uma terra onde muitas mulheres não conseguem nem ler os preços no mercado, fazíamos multiplicações. Em
um lugar onde, assim que nos tornássemos adolescentes, teríamos que cobrir a cabeça e nos esconder dos meninos
que eram nossos companheiros de brincadeiras, corríamos livres como o vento.
Não sabíamos para onde nossa educação nos levaria. Tudo o que queríamos era a chance de aprender em paz.
E era isso que fazíamos. O mundo louco continuava fora dos muros da Escola Khushal. Do lado de dentro,
podíamos ser quem éramos.

Yousafzai, Malala. Eu sou Malala (edição juvenil. Editora Seguinte. Edição do Kindle.

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