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Nuno Markl
Há décadas que temos telemóveis, mas durante muito tempo pouco mais faziam do
que chamadas
A mulher com quem partilho a minha existência espero, por exemplo que a pessoa amada saia de
sobre este planeta chamou-me a atenção para um uma loja de roupa tornou-se tão natural e
detalhe: a nossa incapacidade – e a minha, em inquestionável como respirar – simplesmente,
particular – para estar como se estava antigamente. fazemo-lo. Faz parte desse momento – como alçar
Ou seja, estando. Passo a explicar: boa parte da a perna quando passamos por uma poça.
Humanidade deixou de saber estar em sítios sem É claro que – como manda a tradição -,
fazer nada mais – por exemplo, quando se está à quando a pessoa amada nos diz uma verdade, é
espera de alguém. Deixámos de saber olhar para o nosso dever contestar e provar-lhe que tal se trata
ar, para as pessoas que passam, para os pássaros de um exagero. Mesmo que, no fundo da nossa
ou os ramos das árvores balançando com doçura ao mente – ou talvez nem sequer tão fundo -, uma
vento (ou com força, em dias de vendaval); voz nos garanta: “Raios, ela tem razão.” Por isso,
deixámos de pensar na vida ou, simplesmente, de decidi mostrar-lhe que poderia, de forma natural, e
praticar a nobre arte perdida de esvaziar a nossa sem esforço, deixar o telemóvel em casa e, num
mente e não pensar em nada. Porquê? Porque eventual tempo de espera que ocorresse, durante
temos telemóveis. uma visita dela a uma sapataria, por exemplo,
Na verdade, há décadas que temos telemóveis, praticar o nada com o mesmo talento que me
mas durante muito tempo eles pouco mais faziam tornou famoso a praticar o nada na minha
do que chamadas. Ou seja, por muito que juventude e que levava pais e professores a
admirássemos a modernidade do objeto, não tinha considerarem-me “distraído” e “sempre na lua”.
grande coisa para nos encantar que não a Não era isso; estava, de forma exímia e com
fascinante possibilidade de telefonarmos para quem grande talento, a estar.
quiséssemos do lugar que quiséssemos. De E foi horrível. Foi horrível porque assim que a
repente, devagarinho, a alienação começou. A SMS, minha mulher entrou na loja, a minha mão, como
sim senhor; mas culpo também os criadores de que movida por vontade própria, deslizou, rápida e
“Snake” de terem aberto a porta: foi com o lendário eficaz, pelo bolso das calças adentro – constando,
jogo da cobra retangular comilona que começámos em choque que nenhum telemóvel lá estava.
a baixar a cabeça nos tempos livres e a deixar de Seguiu-se profundo desconforto: tremuras, suores
encarar o nada nos olhos. Nós pura e simplesmente – e nova incursão por todas as algibeiras das
tínhamos de alimentar aquele estupor daquela calças. Já sabia que não estava lá qualquer
cobra! telemóvel, mas tinha de lá estar alguma coisa.
Aos poucos, um telemóvel deixou de ser só Alguma coisa que me “vestisse”, que fizesse
um telemóvel – e hoje carregamos desaparecer esta terrível sensação de que estava
orgulhosamente na algibeira centros de nu em público, de que tinha de olhar para coisas e
entretenimento mais poderosos do que um pessoas ou de abraçar a relaxante pacatez do não
multiplex de 10 salas, com ligação ao divertimento fazer nada.
mais infinito de todos: a Internet. Resultado? Se E estava.
temos o telemóvel na algibeira e se está Caramba, já repararam como uma bolinha de
carregado, temos de lá estar a fazer alguma coisa. cotão do bolso das calças pode conter cores e
Acontece que eu nunca tinha racionalizado isto, o cambiantes tão fascinantes? Ah, se o cotão
que é inquietante: sacar do telemóvel enquanto tivesse wi-fi…
Revista Única, 10/0/2011
6. O cronista procurou demonstrar que ele não era um dos que dependia do telemóvel.
6.1. Como?
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7.1. Por que razão o cronista opta pelo pronome pessoal nós?
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