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Sabrina Noivas 85 - The

Diamond Bride
Uma torrente de paixão invadiu o coração
de Anne!
Anne vibrava da cabeça aos pés, cheia de
desejo, querendo que aquele prazer não
terminasse nunca. Mas parou bruscamente
quando Raphael se afastou com um olhar
tão sombrio que seus olhos ficaram negros
novamente. "Você não está apaixonada por
Anthony, Anne. Não está apaixonada por
ninguém. Não teria me beijado assim, se
estivesse." Anne, perdida em emoções
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confusas, não soube o que responder. Mas,
naquele momento, tinha certeza de que
Raphael estava certo: só ele poderia
preencher o vazio de seu coração!
Dados da Edição: Ed. Nova Cultural 1998
Publicação original: 1998 Gênero: Romance histórico
contemporâneo
Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida

Série Nanny Wanted


Autor Título Ebooks Date
Wilkinson, The Secret Jan-
Sabrina
Lee Mother 1998
Cegonha 41 -
Mãe Secreta
Ross, Kathryn The Love-Child Feb-
1998
Lee, Miranda A Nanny Mar-
Named Nick 1998
Spencer, A Nanny in the Apr-
Catherine Family 1998
Hamilton, The Millionaire's May-
Diana Baby 1998
Craven, Sara Ultimate Jun-
Temptation 1998
Mortimer, The Diamond Sabrina Noivas Jul-1998
Carole Bride 85 -
Uma Jóia Para a
Noite
2
Autor Título Ebooks Date
Darcy, Emma Inherited: One Aug-
Nanny 1998
Donald, Nanny Affair Sep-
Robyn 1998
Armstrong, Accidental Oct-
Lindsay Nanny 1998
Williams, A Daughter for Nov-
Cathy Christmas 1998
Craven, Sara A Nanny for Dec-
Christmas 1998

CAPITULO I

S. e está pensando em se jogar, espere 'a maré subir! Anne Fletcher voltou-se de imediato em direção
à voz grave, que não reconhecia.
No meio do denso nevoeiro divisou uma sombra, uma figura grande e assustadora.
—Se pular agora, só vai conseguir enterrar os tornozelos na lama.
Parada na ponta de um pequeno ancoradouro, perdida em pensamentos, Anne não percebeu que o
homem se aproximara. Então se deu conta de que se encontrava sozinha na densa neblina e que
ninguém a veria da casa majestosa que se erguia no alto do rochedo. A família Diamond raramente vinha
àquela praia e com certeza ninguém apareceria a tal hora do dia.
Ao se ver só com um estranho, se deu conta do perigo que corria.
— A família Diamond não vai gostar que outra pessoa se suicide na sua propriedade — o
homem continuou.
Suicídio? Quem teria se jogado dali?
Anne não soube o que dizer. Mas tinha de admitir que, com a maré baixa e tanta neblina, era
muito estranho encontrar uma pessoa parada na ponta do ancoradouro. Só que daí ao suicídio...
Num ato instintivo, recuou um passo quando a sombra avançou em sua direção, mas acabou se
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colocando entre ele e a grade de segurança, sem ter para onde.
Anne levou um susto quando o homem se aproximou: era a síntese perfeita dos heróis de ficção. A
primeira vista, lembrava o romântico e elegante Rochester, com seus cabelos negros indomáveis, o rosto
forte e poderoso, os olhos pretos como o carvão. Era Rochester em carne e osso, podia jurar!
Anne sentiu um calafrio. Seria por causa dele ou pela umidade que penetrava em seus ossos,
mesmo estando protegida por uma grossa jaqueta de brim?
—O gato comeu sua língua? — o estranho a desafiou, arqueando uma sobrancelha.
Estava perto... perto demais! Os olhos nem eram tão negros, mas de um tom escuro, a pupila quase
invisível sobre o azul-cobalto da íris, as feições como que esculpidas em granito.
O rapaz inclinou a cabeça de lado, com uma expressão curiosa no rosto; alguns fios reluzentes de
cabelo chegavam na altura dos ombros, protegidos da umidade por uma jaqueta escura, camisa azul
e jeans desbotado.
—"Entrada proibida". — Ele leu, apontando com o dedo,
a placa que impedia o acesso à praia.
Anne umedeceu os lábios ressecados. A única maneira de sair dali era passando pelo jovem,
porém as chances de conseguir eram mínimas.
Leitora ávida, imaginou o que uma heroína de ficção faria nessa situação. Distraí-lo, era isso!
Esperaria que o homem baixasse a guarda para que pudesse fugir. Quando estivesse encoberta pela
neblina, não seria mais encontrada.
Anne tentou um sorriso simpático, conciliatório.
—Vá embora, e a família Diamond não saberá que esteve aqui — ela sugeriu, desejando que o
pânico não transparecesse em sua voz.
Uma expressão divertida apareceu no rosto dele.
—Ir embora?! Meu bem, não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
"Como não?! Que impertinência!" Anne engoliu em seco, as mãos cerradas nos bolsos do agasalho,
tentando manter a calma.
— E o melhor que o senhor tem a fazer. Antes que o sr.
Diamond descubra que está aqui.
— Sr. Diamond? — repetiu, curioso.
— Anthony Diamond! — Anne completou o mais rápido possível, achando que assim o
convenceria.
__Ele está aqui? — Olhou para a casa no alto do rochedo.
__Está, sim. Estão todos lá.
__É mesmo? — O desconhecido a desafiou, a expressão mais suave agora, a boca se curvando num
sorriso. — Bem, posso garantir que Anthony não virá. Ele morre de medo do mar, sobretudo depois
do acidente de barco que aconteceu tempos atrás. A menos, é claro, que vocês dois tenham combinado
de se encontrar aqui...
Anne esqueceu-se do temor por um momento. O que aquele atrevido queria dizer com aquilo? Não
conhecia Anthony, e muito menos ela, para dizer uma coisa dessas.
—É isso, minha jovem? É o único lugar em que Davina não viria procurá-lo, pois conhece sua
total aversão a água!
Davina era a noiva de Anthony. Aquele estranho parecia conhecer muito bem a família Diamond.
Atento, ele a perscrutava com o olhar, como se quisesse assimilar tudo de uma vez: os cabelos curtos e
ondulados emoldurando o rosto angelical dominado por profundos olhos azuis, o narizinho arrebitado, os
lábios fartos e sorridentes quase sempre, quando não se sentia acuada por estranhos, um queixo pequeno e
determinado, mais parecendo um menino usando jaqueta, boné azul e calça de brim colada no corpo.
—Você não é do tipo que Anthony aprecia — o homem concluiu após a inspeção. — Mas, depois
que se fica velho, deve-se chegar à conclusão de que as jovens devem ser mais impressionáveis e
fáceis de se lidar. Fácil de impressionar!
Bem, aos trinta e seis anos não era possível considerar Anthony uma pessoa de idade, e nem Anne
era tão jovem assim. Tinha vinte e dois, e já poderia estar casada e com filhos pequenos.
Anne olhou-o com frieza.
—Como o senhor acaba de dizer, Anthony Diamond está noivo. — Anne estava agora mais indignada
do que com medo. Aquele desconhecido não só invadira uma propriedade particular como insultava a
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família como se a conhecesse a fundo.
—De Davina. Eles têm uma boa relação, mas isso não impede que Anthony olhe para outras. Você não
deve ser daqui — ele acrescentou, hesitante. — Pelo que sei, Anthony já esteve com todas as moças
disponíveis da vila. A menos que seja casada.
O rapaz estava achando que ela morava na vila a dois quilómetros dali. Se não fosse um
forasteiro, saberia que era a babá da criança da família Diamond.
— Não sou casada, nem estou disponível — retrucou, zangada. — E prefiro que não continue a
insultar os Diamond!
— Estou insultando apenas Anthony. — O jovem deixava evidente seu desprezo. Então, consultou
o reluzente relógio de ouro em seu pulso. — Ele não vem. Já estou observando você há uns dez
minutos.
Anne colocou-se numa atitude defensiva quando soube que estava sendo observada. Sentia-se muito
perturbada quando chegou, os pensamentos tumultuados, o que devia estar muito claro em seu rosto
quando ele pôs os olhos nela. E foi decerto por isso que falou em suicídio. E verdade que sua vida andava
meio complicada, mas não era nada tão desesperador.
— Espero que não venha mesmo, senhor, para seu próprio bem. O senhor invadiu uma
propriedade privada — Anne salientou, irritada, mas o homem ainda não se impressionou.
— Você também. Ainda que Anthony não se importe que esteja aqui, e o resto da família?
Raphael, por exemplo?
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— Raphael não está aqui — Anne respondeu com impaciência, já se cansando daquela inútil
discussão.
Raphael Diamond, o chefe da família e pai da criança de quem Anne cuidava, estava fora no
momento. Na verdade, havia três meses. Como repórter de campo de certa reputação, ia de um lugar a
outro do mundo, aos países em guerra, desde que Anne havia chegado para cuidar de sua filha. A mãe
dele, Célia, a matriarca dos Diamond, foi quem a contratou quando a babá anterior abandonou o
emprego.
— Você disse que a família está em casa?
— Está. — Anne franziu as sobrancelhas. — Mas o sr. Diamond, o pai...
— Raphael? — O tom irónico fez escurecer ainda mais seus olhos. Dentes brancos e
ameaçadores surgiram por trás do sorriso de lobo. — E a primeira vez que ouço alguém referir-se
a ele dessa maneira. Até parece um avô senil.
— Nem sei que idade tem o sr. Raphael Diamond. Só sei que é mais velho que Anthony.
— Três anos, para ser preciso. E esteja certa de que sinto cada um deles nas costas —
acrescentou, atento à reação dela. E não se desapontou.
"Esse é Raphael Diamond? Esse homem de cabelos longos e desgrenhados, olhos penetrantes, de
feições tão másculas, grande e poderoso?!"
Anne tentara imaginá-lo, baseando-se nas vagas menções da família a seu respeito e na profunda
adoração que Jéssica nutria pelo pai, mas com certeza a imagem que fizera não era nada parecida com
aquele deus grego a sua frente, perigosamente bonito, envolvido por uma aura incrível de poder.
Talvez porque fosse o oposto de seu irmão. Anthony era muito loiro, belíssimo, com olhos azuis como
o céu de um dia de verão, sempre muito bem trajado com roupas feitas sob medida. Tão diferentes que
ninguém diria que eram irmãos.
Anne inspirou devagar, dando tempo para se recompor.
—Prazer em conhecê-lo, sr. Diamond. — Estendeu a mão para cumprimentá-lo.
Raphael permaneceu imóvel observando-a por entre as pálpebras semicerradas.
—É mesmo? — indagou, inabalável.
Anne engoliu em seco, deixando o braço voltar para bem perto da cintura e sentindo as mãos
quentes e úmidas, apesar do frio.
— Sou a nova babá de Jéssica, sr. Diamond.
—E Margaret?
Anne umedeceu os lábios outra vez ao sentir o medo voltar.
— Ela foi embora.
— Já percebi.
— A sra. Diamond ligou para uma agência de empregos...
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— Para quê? — Seu mau humor aumentava a cada minuto.
— Eu já disse, Margaret foi embora, e Jéssica precisava...
— Por que Margaret se foi é o que quero saber.
— Não tenho a menor ideia. Pergunte à sra. Diamond.
— Pode estar certa de que é o que farei. — No mesmo
instante, Raphael tomou o caminho para o penhasco. Mas, antes de desaparecer na neblina, parou.
— Aconselho-a a voltar para casa em vez de ficar aí se lamuriando por um irresponsável como
meu irmão!
Então, Raphael desapareceu no meio da neblina, e o silêncio voltou a imperar.
Como se nada tivesse acontecido...
Mas acontecera, e Anne ainda tremia de pavor. Preferia que Raphael fosse um intruso. Seria muito
melhor do que tê-lo como patrão. O fato de a babá anterior ter ido embora deixara-o furioso, e na certa
a substituta não tinha agradado.
Sem dúvida, era o próprio Rochester! Quando Anne lera esse clássico na adolescência, identificara-
se, talvez pela própria condição de órfã, com Jane Eyre, embora sua infância tivesse sido feliz. Mas
Raphael Diamond, óbvio, não era o sr. Rochester. E muito menos ela era Jane Eyre.
Anne ficou se perguntando como teria se comportado se soubesse quem ele era. Evidente que de um
modo diferente, mas não muito. Afinal, partira dele, sem conhecê-la, a referência insultuosa a um
suposto relacionamento com seu irmão.
Anne estava agora mais confusa do que uma hora atrás, quando o encontrou. Ficara tão animada com
a chance daquele trabalho na costa da Inglaterra, que chegara cheia de entusiasmo, contente por poder
sair de Londres, onde sempre vivera.
Estar ali, circundada por aquele ambiente rural, fazia-lhe muito bem. Adorava a amplidão dos
espaços abertos, a gentileza dos habitantes locais. Pela primeira vez na vida tinha chamado um
leiteiro pelo nome! Em Londres, nem sabia quem ele era. Comprava tudo, inclusive leite, na loja da
esquina de seu prédio, onde dividia um apartamento com três amigas.
Depois de ter passado a infância em casas de família, escolher o curso universitário de babá qualificada
foi a consequência lógica por ter cuidado de tantas crianças menores das residências em que morara. Assim
como dividir um apartamento com as outras moças do orfanato quando chegou a hora de sair.
Conseguiu um emprego num jardim-de-infância depois que se formou, mas cuidar de quarenta
pequeninos que voltavam para a casa dos pais no final do dia não lhe dava mais raízes do que as
que encontrara no orfanato. Por isso, inscreveu-se numa agência de empregos com a intenção de
trabalhar num ambiente familiar. Jéssica Diamond era a primeira criança de quem cuidava nessa
sua nova fase. E Anne logo aprendeu a amá-la.
Jéssica, uma criança adorável de oito anos de idade, tinha cabelos longos e cacheados, olhos azuis e
uma inteligência brilhante. E, convivendo a maior parte do tempo apenas com a avó e com seu tio
Anthony, que só aparecia nos fins de semana, foi muito fácil apegar-se à menina, que corria para seus
braços quando chegava da escola. Nos dias ensolarados, as duas cavalgavam pelas praias. Se chovia,
divertiam-se com os inúmeros brinquedos que Jéssica tinha em seu quarto.
Mas agora o pai dela voltara. E não parecia nada feliz por encontrar sua filha com uma nova
babá...
O futuro de repente ficou mais sombrio do que estava uma hora atrás. Ainda mais porque
Raphael Diamond chegaria em casa e descobriria que Jéssica tinha caído do cavalo e estava de cama
com o tornozelo torcido. Que bela babá tinham arrumado!
Para falar a verdade, não havia.nada que Anne pudesse fazer para evitar o acidente, mera
aprendiz que era no que dizia respeito a cavalgadas. Mas Raphael, pelo visto, não encararia o fato
daquela forma, em primeiro lugar porque não estava nada satisfeito com a troca de babás.
Anne sentiu os olhos arderem quando lágrimas passaram a se formar. Gostara de Jéssica à
primeira vista, e muito mais quando viu que a garota era tão carente de afeto quanto ela. Talvez não
devesse ter permitido que Jéssica se apegasse tanto, mas, por ser uma criança tão necessitada de
amor, foi impossível impedir.
Jéssica mal se lembrava da mãe por tê-la perdido muito cedo. Célia Diamond, sua avó, era uma
mulher altiva, loira e ainda muito bonita a despeito de seus sessenta e poucos anos, mas que, era
visível, tinha dificuldade de demostrar afeição a uma criança. Um rápido boa-noite em sua saleta
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particular era o máximo de atenção que dava à neta.
Mas agora o pai de Jéssica tinha voltado e as coisas poderiam mudar. E uma das mudanças
poderia ser a dispensa da nova babá.
Anne arrastava-se com relutância quando tomou o caminho de volta para a mansão. Mesmo
assim, andava com muito cuidado. O tempo piorara, e ela teve de se apoiar várias vezes no
corrimão, escorregando nas pedras úmidas. Por fim, avistou a residência.
A Casa dos Rochedos era uma construção suntuosa, de proporções quase góticas. Anne levou
quase uma semana para aprender onde ficava seu quarto. Era incrível que apenas uma senhora de
idade e uma criança morassem num lugar tão grande.
Embora fosse verdade que, com a chegada de Anthony e sua noiva, no dia anterior, para passar
uma semana, a casa pareceu de repente pequena para tanta gente.
E alguma coisa lhe dizia que ficaria menor ainda com a impositiva presença de Raphael
Diamond!
— Ora, Raphael, não sei por que deveria avisá-lo — Célia Diamond protestava, impaciente, quando
Anne passou pela porta da sala. — O médico disse que foi uma simples torção, nada para se preocupar, e
Anne está cuidando de Jéssica muito bem.
— Quem é Anne? — Aquela voz, agora tão conhecida, inquiriu com rispidez.
— A nova babá, por quem parece estar tão irritado — Célia retrucou, com frieza. — Você não
estava aqui, Raphael... Bom, não está nunca, não é? O que queria que eu fizesse, se Margaret
saiu sem avisar?
Anne não conseguia se mexer. Parecia petrificada desde o momento em que ouvira seu nome.
— Seria demais esperar que a senhora cuidasse de Jéssica sozinha. E ainda não me deu uma
explicação aceitável para a saída de Margaret. E se essa tal Anne cuida tão bem de Jéssica, por que ela
está lá no quarto com um tornozelo torcido?
Anne não acreditou na injustiça do que acabara de ouvir. Era impossível, a não ser que amarrasse a
menina, controlar todos seus movimentos. Jéssica andava a cavalo fazia muito tempo, e havia sido ele
mesmo quem dera a ela o cavalo que a derrubara.
— É melhor eu mesmo perguntar. — Assim que Raphael acabou de falar, a porta da sala se
abriu, revelando uma moça envergonhada, encostada na parede do corredor. ;— Muito bem, você é
Anne?
Ela levou um susto. Não só por ter sido pega em flagrante, mas porque ele sabia que era. Anne tinha
acabado de lhe dizer que era a babá de sua filha.
— Francamente, Raphael! — Célia Diamond repreendeu-o. — As vezes não acredito que seja
filho de David. Seu pai sempre foi tão gentil, tão consciente de seu papel de chefe da família!
Raphael lançou-lhe um olhar insolente.
— Quer dizer, você sempre foi muito consciente de seu papel de esposa do chefe desta família!
Estou certo de que papai morreu cedo para se livrar de você e suas poses sociais!
— Raphael! — Célia apertou o colar de pérolas contra o pescoço, sufocando um grito de
indignação. — A longa ausência não suavizou sua língua ferina. Esquece que há cria dos na casa?
Anne só se deu conta de a quem Célia se referia segundos depois: ela mesma. Uma criada! Bem, até
podia ser. Trabalhava para aquela gente e recebia um salário. Mesmo assim...
— Parece que Anne não gostou muito dessa observação, Célia — Raphael interpôs-se.
Anne olhou para ele e viu em seu rosto uma expressão irónica. Pelo jeito, estivera observando
suas reações, e divertindo-se muito com elas.
Ergueu a cabeça, orgulhosa.
— A sra. Diamond está certa, senhor, é claro. Esta conversa parece ser muito íntima. Mas estou
a sua disposição, sr. Diamond, para conversarmos sobre o acidente de Jéssica numa ocasião mais
conveniente. — Enfrentou seu olhar com valentia, embora sem entender por que ele não tinha contado
à mãe que se conheceram no ancoradouro.
Por que Raphael nada dissera a Célia Diamond? E por que ela própria não dizia? Essa resposta
era fácil: porque Anne não devia ter ficado na praia a tarde toda. Célia Diamond a aconselhara,
logo que chegara à casa, a não ir lá quando o tempo estivesse ruim.
— Agora é bem conveniente para mim, Anne.
— E a tarde de folga de Anne, Raphael — Célia informou-o, antes que Anne dissesse alguma
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coisa.
Raphael ficou olhando para ela, impenetrável.
— E mesmo? — perguntou, enfim.
Estava muito claro que, com essa nova informação, ele tirava suas próprias conclusões. A
indagação estava lá, em seu ar de troça.
— E, senhor. Só que não vou a lugar nenhum. Vou apenas verificar como está Jéssica. Poderemos
conversar quando o senhor terminar de conversar com sua mãe.
Raphael deu uma risada inesperada.
— Eu disse alguma coisa engraçada, senhor?
— Para mim, sim. Para Célia, não. — Surgiu mais uma vez aquele sorriso perigoso. — Se estivesse
aqui há dois meses, alguém já teria lhe contado as histórias desta família...
— Raphael! — Célia repreendeu-o com energia, as faces manchadas por dois pontos rosados.
— Eu disse alguma coisa que os criados não podem ouvir? — ele a provocou.
Célia lançou-lhe um olhar gélido, mas que em nada o afetou, e então voltou-se para Anne.
— Importa-se de ir ver Jéssica agora? — Foi uma ordem disfarçada de sugestão. — Mais tarde
você e Raphael po
derão conversar.
Anne começava a desejar jamais ter posto os olhos naquele homem.
Não havia dúvida de que Célia Diamond era uma pessoa mais condescendente ou que as coisas
tinham se complicado um pouco depois da chegada de Anthony com a noiva. Mas, de sua parte, Anne
gostava daquele lugar, adorava trabalhar com Jéssica. Era verdade que nem tudo era paz e harmonia,
mas ela amava Jéssica, e todo o resto eram meros desconfortes com os quais já aprendera a lidar.
Com a chegada de Raphael Diamond, no entanto, tinha a sensação de que muita coisa iria
mudar

CAPITULO II

— Você viu? Papai chegou! — Jéssica batia palmas, e seus olhos azuis brilhavam como dois
diamantes
Anne adoraria partilhar o mesmo entusiasmo, mas, por ter acabado de se livrar de Raphael
Diamond, não tinha nenhuma pressa de reencontrá-lo. Jéssica, porém, não via a hora de abraçar o
pai.
— Que bom, querida! — Anne ajeitou os travesseiros na cama. — Seu pai sempre aparece
assim sem avisar?
— Sempre! — Jéssica assentiu, balançando os cachinhos negros. — Do mesmo jeito que vai
embora...
Era possível. Como repórter de campo, Raphael tinha de estar onde a matéria estivesse. Mas, para
sua filha, não era fácil aceitar a situação. Mesmo assim, Jéssica parecia ser uma menina bem-ajustada.
Ninguém podia dizer que se tratava de uma criança abandonada ou com distúrbios psicológicos.
Anne não sabia o que fizera de errado para deixar Raphael Diamond tão zangado. Nem ele nem
Célia tinham lhe dado explicações. E comentar isso com Jéssica não ia adiantar nada. Seria exigir
demais de uma pobre criança.
— Como está se sentindo?
Jéssica sorriu. Era o mesmo sorriso do pai.
— Muito bem, Anne. Vou descer para jantar!
Anne sentiu um aperto no coração. Se Jéssica fosse comer com a família, teria de ir também. E se
a tensão entre Célia e Raphael fosse um sinal do reboliço que ele costumava provocar na família, seria
indigestão na certa.
—Tem certeza, Jéssica? Veja bem, você precisa usar as muletas.
O acidente acontecera no fim de semana, havia apenas três dias, e o médico aconselhara um
repouso mais longo antes de a garota apoiar o tornozelo no chão.
No começo, Jéssica adorava ser visitada em seu quarto, mas a novidade logo começou a cansar.
Naquela manhã, ela se levantara um pouco e logo depois voltara a se deitar. A chegada do pai, no
entanto, parecia ter renovado sua disposição.
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— Papai pode me carregar na escada. — Jéssica estava adorando essa ideia.
— Quanto antes você conseguir andar, mais cedo voltará à escola, meu anjo.
O rosto da menina se iluminou mais ainda.
— Posso ir amanhã?
Anne sorriu. A licença de uma semana que Jéssica obteve na escola particular, que ficava a mais de
trinta quilómetros da casa, tinha sido muito bem recebida, mas também não era mais novidade.
Jéssica sentia falta dos colegas, sobretudo de Lucy, sua melhor amiga.
— Acho que ainda é cedo, Jéssica. Mas você vai poder passar mais tempo com seu pai. —
No mesmo instante, Anne sentiu seu humor mudar, pois isso significava que também iria ficar
perto dele. — Por falar nisso, vou me vestir para jantar, e volto para ajudá-la.
— Meu pai vem logo, Anne?
Talvez sim, quando acabasse de esbravejar com Célia, ela pensou.
— Com certeza. — Anne apertou a mãozinha de Jéssica, transmitindo-lhe segurança. — Ele está
conversando com sua avó e já vai subir.
— Ah...
Pelo jeito, a tensão que existia entre mãe e filho não era segredo para ninguém, nem para a
criança.
— Procure repousar um pouco para não ter sono muito cedo, Jéssica.
Indo distraída para seu quarto, Anne pensava que pre feria dormir em vez de jantar. A presença
de Raphael não prometia uma refeição agradável.
— Anne!
Ela virou-se ao ouvir seu nome. Era Anthony, que vinha pelo corredor em sua direção. Toda vez que o
via, uma beleza de tirar o fôlego, seu coração dava um salto. Anne ficou enfeitiçada desde a primeiro
instante em que pôs os olhos sobre ele.
— Desculpe-me por tê-la feito esperar. — Anthony estava agitado, os cabelos desalinhados,
evidenciando grande preocupação. — Davina quis ir à cidade e fui obrigado a levá-la por causa do
mau tempo. Espero não tê-la feito aguardar muito tempo naquele ancoradouro.
Anthony pegou a mão de Anne, que parecia perdida naquele par de olhos azuis.
Mas como Raphael sabia que ela estava esperando por Anthony?
E, acima de tudo, como podia ter notado que estava louca por ele?
Estava mesmo, desde o primeiro fim de semana em que Anthony apareceu. Quando soube que
estava comprometido com outra pessoa, era tarde demais. E, a bem da verdade, tratava-se de um
compromisso impossível de ser desfeito.
— Não muito — ela mentiu, pois ficara lá por mais de uma hora. A proximidade de Anthony
estava deixando-a quase sem ar.
— Perdoe-me. — Sorridente, apertou a mão dela. — Sei que precisamos conversar, que você
que tem muitas perguntas a me fazer.
Anne sentiu uma forte palpitação só de pensar na possibilidade de que Anthony também sentisse
algo por ela. De que quisesse beijá-la de novo, como no domingo...
Célia e Davina tinham saído de manhã para visitar alguns amigos, e Anthony ficara estudando um
processo do qual estava cuidando em Londres. Mais tarde, confessou a Anne que também esperava uma
oportunidade de ficarem a sós.
Por um lado, foi bom ele ter ficado, porque ajudou muito no acidente de Jéssica. Foi Anthony quem
as levou ao hospital, depois carregou a sobrinha para o quarto e ficou fazendo companhia a Anne até
a menina dormir.
Foi então que a beijou. Anne levara um susto. Ficara maravilhada, extasiada, porque a atração
que sentira, nas semanas anteriores, voltara com toda a força.
Depois, sentira-se arrasada. Muito envergonhada, porque Anthony era noivo de outra.
Anthony garantiu-lhe que não amava Davina, mas que era quase impossível dizer isso a ela no
momento, uma vez que seu pai era sócio majoritário do escritório de advocacia para o qual ele
trabalhava.
Anne entendia seu problema, mas não sabia onde se encaixava nele.
— Não faz mal, Anthony. — Ela o perdoava por não ter aparecido ao encontro, mas
incomodava-a o noivado com Davina. — Seu irmão chegou.
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As palavras de Anne como que provocaram um choque elétrico em Anthony. Ele recuou, com um
gesto brusco, e soltou os dedos dela.
— Raphael chegou? — Anthony arregalou os maravilhosos olhos azuis.
— Está lá embaixo, com sua mãe. — Anne baixou a cabeça, ela própria sentindo-se muito mal
com a chegada daquele homem. A única que parecia estar feliz era Jéssica.
— Não sei como não o encontrou antes de subir.
— Vim direto atrás de você. Sabe quanto tempo Raphael vai ficar?
— Anthony, ele acabou de chegar! — respondeu, pesarosa.
— Sua última visita à filha durou apenas vinte e quatro horas — Anthony recordou, com
desprezo. — Você o viu? Falou com ele? Pelo jeito, parece que sim. Indelicado como sempre, não?
Anne umedeceu os lábios.
— Acho que seu irmão não gostou da saída de Margaret.
Anthony franziu a testa.
— Por quê? Afinal, era só uma babá... Ah, desculpe-me, querida, não me referi a você!
Anne ficou um pouco assustada por ter sido chamada de "querida".
— E que Jessy teve muitas babás. Nem sei como Raphael consegue diferenciar uma da outra.
Bem, ele tinha percebido a diferença. Mas Anne ainda estava atordoada pelo fato de ter sido
chamada de "querida"...
— Margaret é loira. Anne é ruiva. — Era aquela voz que já estava se tornando bem conhecida.
Raphael Diamond falava com sarcasmo, aproximando-se no corredor. — Qualquer um percebe a
diferença.
Mais uma vez, Anne surpreendeu-se com a incrível diferença entre os dois: agora que estavam
próximos, via-se que Raphael era bem mais alto, tinha cabelos longos, negros e desalinhados,
enquanto os de Anthony eram loiros e sempre muito bem penteados. Raphael também era mais forte.
Até as roupas que eles usavam eram de estilos bastante diferentes. Embora fossem ambos lindos,
eram belezas distintas: Anthony parecia um menino bonito, ao passo que o rosto de Raphael
lembrava uma escultura de pedra.
Se Raphael ouvira o que disseram sobre as babás de Jéssica, teria ouvido também Anthony tratá-la
com intimidade?
Os olhos azul-cobalto fixavam os dois, mas foi ao irmão que Raphael se dirigiu:
— Davina andou procurando por você. E eu lhe disse que fosse atrás de uma carinha bonita,
que o encontraria! Como se vê, acertei — concluiu, encarando Anne.
Ela sentiu-se corar. Não por ele ter dito que era bonita. Mas, afinal, por que a tratava com tanto
desprezo se nem sequer a conhecia? E, pelo jeito, não tinha nenhuma intenção de conhecê-la melhor.
— Perguntei a Anthony se o senhor já estava vindo para ver Jéssica — Anne inventou uma
desculpa. — Ela está esperando.
— Estou indo. — A expressão de Raphael mostrava ser evidente que estava se deliciando com
alguma coisa. Na certa, com ela. Aquele jeito deixava seu semblante ainda mais sombrio.
Anne enfrentou-o com coragem:
— Jéssica ficará muito feliz.
Para sua surpresa, Raphael jogou a cabeça para trás e soltou uma ruidosa gargalhada. Ainda
sorrindo, estendeu a mão e pegou uma mecha dos cabelos dela.
—Andei pensando se esta cor seria natural ou vendida em frascos. Agora estou vendo que é
natural. Seu eu fosse você, Anthony, tomaria cuidado. As ruivas são perigosas!
Raphael deixou a provocação pairando no ar e foi para o quarto de Jéssica.
Os gritos de alegria da menina foram ouvidos logo em seguida.
— O que ele quis dizer com isso? O que foi que vocês conversaram lá embaixo? — Anthony
parecia preocupado.
Anne ajeitou os cabelos com as mãos trémulas. Raphael Diamond tratava-a como se tivesse a
idade de Jéssica, mas, pela insinuação que acabara de fazer, não devia acreditar muito nisso.
— Anne! Eu perguntei sobre o que vocês conversaram! — Anthony repetiu, impaciente.
Ela não queria comentar o diálogo que haviam tido na praia, e não podia fazê-lo. Ninguém
precisava saber que aquele encontro fora tão perturbador.
— Pouca coisa, Anthony. Mas seu irmão me disse que alguém já morreu naquele ancoradouro.
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Anthony mordeu o lábio, pensativo.
— Raphael disse isso? E falou quem foi?
— Não. Na verdade, conversamos muito pouco. — Mas o suficiente para fazê-la sentir-se uma
tola.
— Acho interessante ele ter falado a respeito.
Anne ficou intrigada.
— Por quê?
— Não importa. Como viu, com Raphael por perto precisamos ter mais cuidado para nos
encontrar.
Aliás, era nisso mesmo que Anne estava pensando naquele ancoradouro: se devia ou não continuar
se encontrando com Anthony. Não porque não a atraísse, ou porque não quisesse tocá-lo, mas pelo
fato de ele ter outra mulher, por mais que aquela relação fosse uma farsa.
Depois de muito pensar Anne chegou à conclusão de que estava se envolvendo com o homem
errado. Mesmo que a atração fosse recíproca, não lhe parecia certo ligar-se a alguém que tinha outra
pessoa.
Anne respirou fundo e resolveu dizer o que pensava:
— Acho que não devemos mais nos encontrar, Anthony.
— Eu estava esperando que você dissesse isso! —Anthony abraçou-a. Quando a soltou, estava
sorrindo. — Mas não será por muito tempo. Raphael vai ficar aqui no máximo uns dois dias.
Depois, tudo voltará ao normal e não temos mais com que nos preocupar.
Não foi isso o que ela quis dizer. Por mais que lhe doesse, a única conclusão possível sobre sua
relação com Anthony era que devia terminar. Pelo menos até ele decidir o que fazer com seu
noivado. Mas Anthony entendera outra coisa.
— Você é maravilhosa, Anne. Como pude cometer a tolice de achar que seria possível ter alguma
coisa com Davina?
Vou conseguir ajeitar tudo, você vai ver. Enquanto isso, pretendo ficar o mais possível longe de
Raphael. E sugiro que faça o mesmo.
Falar era fácil...
Como os Diamond costumavam se vestir para jantar, o fato de Raphael aparecer de smoking não
foi nenhuma surpresa. Também era de se esperar que o formalismo do traje pouco fizesse para
disfarçar sua arrogância.
— Nosso ratinho ainda está rugindo? Ou Anthony conseguiu atemorizá-la ao ponto de fazê-la chorar?
— ele provocou.
Jéssica não entendeu a pergunta.
— De que ratinho você está falando, pai?
Mas Anne sabia muito bem a quem se referia. Em geral, era uma pessoa calma e controlada, pois
acessos de raiva não eram bem vistos nos orfanatos. Mas aquele homem tinha o poder de despertar
um lado temerário de sua natureza que durante muito tempo conseguira sufocar.
— O sr. Diamond não me atemorizou, de maneira alguma.
O bom humor abandonou o rosto risonho de Raphael que, ao franzir a testa, adquiriu uma aparência
ameaçadora, o que fez com que Anne se perguntasse se fizera bem em responder-lhe de maneira tão
brusca. Afinal, ele era seu patrão.
— Não seja insolente, Anne — admoestou-a, como se adivinhasse seus pensamentos.
Na verdade, isso não seria nada difícil. Anne nunca foi muito boa em disfarçar seus sentimentos. Mais
uma razão para terminar sua recente relação com Anthony, por mais que viesse a sofrer por isso e até mesmo
provocasse sua demissão. Aquele tipo de complicação nunca lhe ocorrera quando escolheu trabalhar num
ambiente familiar.
— Não tenho nada contra você, Anne. Jéssica não cansou de exaltar suas virtudes. — Raphael acariciou
a cabeça da menina e recebeu de volta uma risadinha feliz. Voltou-se para Anne com um olhar muito
penetrante. — As crianças não se enganam com facilidade.
Era verdade. Quando tivera de morar na casa de outras pessoas, na infância, sabia sempre quando
estavam mesmo preocupadas com ela ou apenas querendo ser gentis.
—Papai, o que é exaltar as virtudes?
Raphael pegou a filha no colo e sorriu.
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— E falar sempre as coisas boas que a pessoa faz. E para você, mocinha, Anne é ótima!
— E é mesmo — Jéssica confirmou —, sem nenhuma sombra de dúvida.
— Eu sei que é, minha querida.
Anne saiu atrás deles, emocionada com a intimidade entre pai e filha, apesar do longo tempo de
separação. Então, ouviu Raphael confidenciar ao ouvido da Jéssica:
— Sabe de uma coisa? Quando conheci Anne esta tarde, achei que ela tivesse quase a sua idade! Ela fica
mais velha com esse vestido preto — acrescentou, com um olhar perigoso.
— Fui eu que ajudei a escolher — Jéssica disse orgulhosa.
Quando trabalhava no jardim-de-infância e nada fazia durante a noite, Anne jamais se preocupara em ter
roupas formais como as que se usavam nos jantares dos Diamond. Depois de descer duas noites de saia e
blusa, e sentir-se uma mera ajudante, resolvera acabar com aquilo. Resolvera ir com Jéssica para a cidade no
sábado seguinte e comprara vestidos que, usados com diferentes acessórios, permitiam-lhe jantar com quem
quer que aparecesse. Na mesma noite das compras, fora apresentada a um bispo e a um juiz,
portanto, valera a pena o esforço.
Um dos trajes era preto, o outro azul-turquesa, e o outro, branco. Nessa noite, como Raphael
Diamond notara, estava usando o preto, que não marcava seu corpo, mas também não o escondia. O
comprimento, acima dos joelhos, revelava uma boa extensão de suas pernas bem torneadas. Outras
vezes usara esse vestido com um longa echarpe florida ou com um blazer azul-claro, mas agora usava
apenas um broche de prata acima do seio esquerdo, para não chamar muito a atenção.
— Mas Anne é muito mais velha que eu. — Jéssica olhou para Raphael, escandalizada. — Tem
vinte e dois anos. Foi ela mesma que me disse.
— Ah, então é bem mais velha! — Raphael concordou, apenas curvando os lábios com um
sorriso contido.
— Ora, papai! As vezes você diz cada coisa! — Jéssica falava como sua avó e balançava a
cabeça com vigor, da mesma maneira como Célia fazia.
Mas Anne não concordava, pois era outra a impressão que tivera dele no primeiro encontro.
Aquela foi a refeição mais estranha que Anne presenciara em sua existência, e não por culpa da
comida. Como sempre, a sra. Wilson tinha preparado pratos deliciosos: patê caseiro, seguido por pato
ao molho de laranja, e frutas frescas ao vinho do Porto de sobremesa.
A tensão à mesa é que era intolerável. Todos pareciam senti-la, com exceção de Jéssica, que
estava muito feliz por se ver ao lado do pai. E Raphael Diamond era o catalisador de toda aquela
energia contida. Embora soubesse muito bem o que estava acontecendo, mostrava-se alheio a tudo o
que ocorria ao redor.
Jéssica sentara-se entre Anne e o pai, e Raphael precisou inclinar-se sobre ela para falar com
Anne.
— Está se divertindo?
O que Anne gostaria era que o jantar terminasse logo, ao menos a parte que dizia respeito a si
mesma e a Jéssica. A menina, em geral, se retirava quando o café e o vinho do Porto eram
servidos. Más naquela noite, devido à presença do pai, devia ser diferente.
Célia estava mais altiva do que nunca, ao passo que Da-vina, elegante como sempre, flertava, sem
o menor pudor, com Raphael em todas as oportunidades. Anthony parecia estar sonhando, sem
prestar atenção a ninguém. Atine sentia-se aliviada por isso. A última coisa que queria era dar a
Raphael mais munição contra si e contra Anthony.
—Estou sim, obrigada, senhor.
Raphael sorriu, irónico, diante de tanta formalidade.
—Mentirosa... — devolveu em voz baixa.
Anne enfrentou-o sem esquivar-se.
—Eu me referi à comida, claro.
Mais uma vez, Anne levou um susto quando Raphael deu uma gargalhada de prazer, aquelas
linhas que ela já notara no canto dos olhos e ao redor da boca demonstrando ser marcas de um
homem que ria muito. E desconfiou que não fosse sempre dos outros. Raphael tinha a capacidade
de rir de si mesmo. Aquele homem era um enigma, um camaleão: num momento, era distante e
inatingível, em outro, tinha um humor explosivo. Devia levar uma vida inteira para conhecê-lo
melhor.
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Anne parou de pensar quando olhou de relance para Anthony, como sempre, encantada por sua
beleza, e percebeu que ele lhe sorria de maneira conspiratória, como se percebesse a confusão em
que ela se encontrava. Duvidava que Anthony achasse graça se soubesse o que estava pensando sobre
seu irmão.
—Por que não nos conta do que estão rindo, Anne? — O tom arrogante de Célia Diamond
misturou-se a seus pensamentos. — Não seria ruim um pouco de diversão — acrescentou, com frieza,
demonstrando que não estava imune ao clima que se criara durante o jantar.
Anne olhou para Raphael como se lhe pedisse socorro, mas, conhecendo tão pouco sua maneira de
ser, desconfiava que ele adoraria assistir a seu embaraço. Mas, em vez disso, para seu espanto, se
apressou em ajudá-la:
—Foi apenas uma história de Jéssica que Anne me contou. Por falar nisso, acho que é hora de
minha prince-sinha ir dormir. Sem reclamações, mocinha! Terá de estar muito descansada para me
enfrentar amanhã numa partida de xadrez.
Foi então que Anne ficou sabendo que Jéssica jogava. Uma criança tão pequena conhecendo algo
tão complicado! De imediato, Anne se levantou para atender à sugestão de Raphael. Pelo jeito, a
noite seria longa.
— Tomem o café sem mim. — Raphael se levantou para erguer a filha no colo. — Quero conversar
com Anne depois que Jéssica estiver na cama.
Não foi o fato de ele ter dispensado o café o que a perturbava, nem mesmo a ideia de Raphael de
juntar-se a elas, mas a menção de "conversar com Anne".
Sobre o que Raphael estaria querendo falar? A respeito do fato de ser a nova babá de sua filha? Ou
alguma outra coisa?

CAPÍTULO III

As referências são excelentes, Anne. Devem ter sentido muito, no jardim-de-infância, por você ter saído
de lá.
Era verdade. Brenda Thompson, a diretora do jardim-de-infância, dizia isso claramente na carta de
referência.
Eles estavam no estúdio de Raphael Diamond, uma sala espaçosa, ao lado da biblioteca, mobiliada com
pesados móveis de mogno. Era a primeira vez que Anne entrava lá. Isso não era de surpreender: a Casa do
Penhasco era enorme, ladeada por duas grandes alas. Numa delas viviam os criados, e a outra estava quase
desocupada, e tinha dezenas de cómodos nos quais Anne nunca tinha estado.
Raphael despedira-se da filha na porta do quarto e dissera que esperaria Anne no estúdio. Anne ficara para
pôr a menina na cama, mas, antes de sair, precisara perguntar a Jéssíca onde ficava o estúdio de seu pai.
Quando sentara-se diante da mesa dele, fora como se os bons momentos compartilhados havia pouco
não tivessem existido. Ela se sentira de volta ao orfanato sendo repreendida pela sra. James por uma
traquinagem qualquer. "Fique de cabeça baixa e longe dos problemas" era frase mais ouvida.
— Otimas referências — Raphael repetiu, devagar. O fato de ter tirado o paletó e soltado o nó da gravata
não o tornou mais acessível. — Na verdade, quase não há nada aqui a seu respeito. Quem é você? De onde é
sua família? Também vai se demitir sem aviso prévio, como Margaret?
Tenho o direito de fazer essas perguntas. Afinal, você está com minha filha todos os dias.
Arme faria o mesmo se a filha fosse dela. Ainda assim, no entanto, essas questões soavam como
intrusão. E ela não pretendia revelar mais coisas a seu respeito do que o necessário.
— Meu nome é Anne Fletcher, e sou órfã. Não tenho família. E não sairei daqui, ou de perto de
Jéssica, sem ter um bom motivo ou com tempo para que a família encontre uma substituta.
Os lábios dele se curvaram num breve sorriso.
—Margaret me disse a mesma coisa.
Anne ergueu os ombros.
— Sobre Margaret nada posso dizer porque não a conheci. Quanto a mim, garanto que não agirei
da mesma forma.
— E pegar ou largar, não?
— Eu não disse isso. — Anne sentiu o rosto corar. — É claro que não é assim. O senhor é meu
patrão e tem todo o direito de exigir certas garantias. O que sei é que não gostaria de sair de
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perto de Jéssica.
— Gosta da minha filha?
— Muito.
Uma pergunta sensata. Mas havia outras muito mais ofensivas que Raphael Diamond poderia
fazer.
— E quanto aprecia meu irmão?
Aquela era uma delas! Anne estava esperando que Raphael fizesse a indagação desde que os três
se encontraram no corredor.
— Gosto de todos nesta casa — Anne respondeu de forma evasiva.
Os lábios de Raphael se estreitaram.
— Até de Célia?
Célia era uma mulher arrogante e considerava Anne uma mera criada, mas ao menos era sincera e não
fingia ser diferente. Além disso, na maioria das vezes tratava-a muito bem.
— Até dela, senhor.
— Eu acho que Célia é muito exigente.
— De modo algum — Anne protestou, indignada. — A sra. Diamond é muito gentil, a sua
maneira.
No mesmo instante arrependeu-se de ter dito isso, pois sabia que tinha dado a Raphael uma
abertura que não pretendia. E não precisou esperar muito tempo para constatar.
— A sua maneira... Conheço Célia desde que tenho dois anos de idade, e nunca a vi ser gentil
com ninguém. Não sem uma boa razão, e as babás de minha filha não estão incluídas não seriam
uma boa razão para ela.
Anne não estava interessada em suas opiniões sobre Célia e não queria continuar esse assunto.
Mas interessou-lhe, sim, pelo fato de Raphael afirmar conhecer a própria mãe desde os dois anos
de idade.
Raphael observava-a com muita atenção e percebeu sua curiosidade. Aquele homem não perdia
nada, pelo visto.
— Você sabe muito pouco sobre esta família, não, Anne?
Ela sabia que amava Jéssica, que Célia cumpria seu papel de nobre dama à perfeição e que Anthony
estava enrascado numa relação que não queria. O que mais precisava saber?
— Vou retomar a minha pergunta original, Anne: quanto você gosta de Anthony?
Não muito, claro. Porque até o último fim de semana Anne não soubera que ele estava noivo.
Antes, aparecera sozinho, quando então ela descobrira que sua beleza era irresistível. Fora um
choque e uma decepção quando o vira chegar no sábado com Davina para passar a semana. Depois se
beijaram no domingo... Portanto, não estava a par de muita coisa.
— Não muito, senhor — Anne respondeu, com honestidade.
Raphael ainda a observava com um olhar astuto.
— Nesse caso, aconselho que fique longe dele.
Anne mostrava-se bastante calma, mas a força das palavras de Raphael a fizeram tremer por
dentro. Era evidente que os dois irmãos não se davam bem. E Raphael, mais uma vez, falava com
Anne como se fosse uma criança. Sentir atração por um homem comprometido não era a melhor
coisa que já fizera na vida, mas, como a própria Jéssica dissera, não era mais menina e podia
responsabilizar-se pelos erros que cometia.
— Conselho de pai, sr. Diamond? — indagou com ironia.
Os lábios dele voltaram a se estreitar.
— Eu estava brincando quando disse a Jéssica que você parecia ter a idade dela. Também retiro
o que falei na praia sobre ser uma jovem impressionável — acrescentou, diante do ar contemplativo
de Anne. — É jovem, mas não é boba.
Anne prendeu a respiração, pois não tinha muita certeza disso.
De fato, nunca ouvira falar nada sobre a noiva de Anthony até o último sábado, mas permitiu que
ele a beijasse assim mesmo. Não teria sido uma grande bobagem?
— Obrigada, senhor.
— Quanto a meu conselho, seja ele paternal ou não, acho melhor segui-lo.
Anne ficou indignada. Raphael chegara àquela casa havia poucas horas e desde então não tinha
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feito outra coisa senão delegar ordens e aborrecer as pessoas. Sobretudo ela! Mesmo que tivesse todo o
direito de exigir o que quisesse no que dizia respeito a Jéssica, dispensava sua interferência em
assuntos que só diziam respeito a si.
No entanto, a despeito disso, preferiu escolher com muito cuidado o que ia dizer.
— E muita gentileza sua, sr. Diamond.
— Não sou mais gentil do que Célia — ele a interrompeu, brusco. — Nem Anthony, diga-se de
passagem. Na verdade, ninguém é gentil nesta família.
— Nesse caso, por que deixa... — Anne se deteve diante de sua expressão severa ao tentar
ultrapassar a linha limítrofe do assunto Jéssica. Apreensiva, ergueu a cabeça quando Raphael se
levantou da cadeira e pareceu preencher toda a sala com o seu tamanho.
— Nem jovem nem impressionável — Raphael ponderou. — Pelo amor de Deus, tire do rosto esse
olhar assustado!
Raphael deu a volta na mesa e parou ao lado dela.
— Posso não ser uma gentleman, Anne, mas jamais feri uma mulher na minha vida. E não
pretendo começar por você, mesmo que diga uma coisa terrível. Deixo Jéssica aqui porque não tenho
onde deixá-la. A mãe dela morreu — declarou, frio, sem revelar nenhum sentimento pela perda. — E
não posso levá-la comigo quando estou trabalhando.
Anne entendia isso e sabia que Jéssica tinha uma infância mais feliz do que fora a sua. A mãe de
Anne morrera pouco depois de dar à luz, e não tinha conhecido o pai. A única coisa que sabia eram
as circunstâncias de seu nascimento. Quanto a Jéssica, apesar de ter Raphael ausente, adorava-o.
Anne umedeceu os lábios.
— Desculpe-me, senhor, não pretendia fazer uma crítica.
— Pretendia, sim. E tenho de dizer que foi merecida. — Raphael ergueu o rosto de Anne com a
ponta dos dedos e não lhe deu outra opção senão fitá-lo direto nos olhos. Ele já não estava
zangado, mas sorrindo. — Confio em você, Anne Fletcher. Gosta de minha filha, e essa é a única
referência que me interessa.
Anne tinha dificuldade de respirar ou de se mover com tanta proximidade. Seus olhos estavam
presos nos dele, o rosto imobilizado pela mão, o calor dos dedos irradiando sob seu queixo.
Passou a língua pelos lábios e enrubesceu ao perceber que Raphael seguia o movimento. No
mesmo instante, se retraiu para desvencilhar-se dele. O que estava acontecendo, afinal? Se não era tão
jovem nem tão impressionável, por que sentia algo tão forte por aquele homem como sentira por
Anthony?
Era uma situação absurda. Os Diamond, apesar de serem educados, eram dotados de um poderoso
magnetismo.
— Posso ir agora? — Anne queria que Raphael se afastasse e a deixasse ao menos respirar.
Por sorte, ele voltou para seu lugar.
—Não. Ainda não falamos sobre o acidente de Jéssica.
Essa era uma das razões por que Anne estava lá. Como tinha se esquecido disso? Por causa dele, é
claro. Não era fácil lidar com tantas alterações de humor e de assuntos. Mas Anne sabia que devia
estar atenta ao que viesse pela frente.
E o assunto sobre o acidente da menina foi um deles. Anne não sabia como tinha acontecido. A
menina estava na sela num momento e, no instante seguinte, caíra ao chão. Anne não sabia cavalgar,
apenas conseguia manter-se na sela. Assim, não tinha experiência para dizer o que acontecera.
Isso, decerto, seria um ponto a menos no julgamento de Raphael.
— Não falamos sobre andar a cavalo quando estive aqui para a entrevista.— Anne tomou uma
atitude defensiva.
— Mas como Jéssica gosta muito de montar e não pode sair sozinha...
— ...você a acompanhou. Já tinha cavalgado antes, Anne?
Droga! Ele estava se divertindo a sua custa outra vez.
— Não havia muito interesse nisso no orfanato em que fui criada, senhor.
O forte contraste entre sua própria infância e a de Jéssica ficou evidente na resposta rude. O
orfanato nunca tivera dinheiro sobrando, e muito menos para aulas de equitação. Mesmo que Anne
quisesse aprender, coisa que nunca quis.
E, depois do acidente de Jéssica, a última coisa que desejava era montar outra vez. A menina, que
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parecia ter nascido sobre um cavalo, assim mesmo conseguiu ser derrubada.
A expressão de Raphael tornou-se mais suave.
— Veja, Anne, eu não tomaria os Diamond como uma família exemplar. Havia uma certa-
normalidade antes de meu pai morrer, seis anos atrás. Depois, tudo virou uma anarquia. Somos
apenas um grupo de pessoas que por acaso vive na mesma casa, mas que não se suporta.
— É mesmo? — Anne se sentiu consternada.
Mas não tinha presenciado havia pouco a frágil civilidade durante o jantar? Ao mesmo tempo,
achava que Raphael fosse o catalisador. Afinal, nas noites anteriores não notara tanta tensão.
— É, sim, Anne. E, como nunca lhe contaram a história da família, eu contarei.
Anne não sabia se queria ouvir, pois já se sentia incomodada com o pouco que conhecia.
— É importante para Jéssica que eu saiba, senhor?
— Antes deste fim de semana eu diria que não. Agora, não tenho mais tanta certeza. — Seu
rosto ganhou uma expressão triste, mas logo em seguida ele sorriu. — Não precisa ficar preocupada.
Não há nenhum caso de morte a machadadas ou de assassinos seriais na família. Pelo menos nada que
Célia tenha se permitido comentar. A aparência é o que mais importa para minha querida madrasta.
Embora ela não costume ser tão específica — ele completou com frieza, deixando transparecer um brilho
de ódio no olhar.
— Madrasta!
Depois de alguns momentos, por fim Anne conseguiu entender. Raphael e Anthony eram meios-irmãos, o
que explicava o fato de um ser loiro e o outro moreno e terem tão poucas características comuns. Eram
ambos muito bonitos, sem dúvida, mas completamente diferentes. Também explicava a falta de afeto entre
Raphael e Célia. Mesmo que Raphael fosse quase um bebé quando Célia se casara com o pai dele.
Raphael continuou:
— Isso mesmo, eu tinha acabado de fazer dois anos quando minha mãe morreu. E Célia, que na época era
secretária de meu pai, logo tratou de compensar essa perda. E trabalhou tão bem que Anthony nasceu seis
meses depois que eles se casaram! Não estou julgando ninguém, Anne. — Notou que ela franziu a
testa. — Só acho uma falta de respeito com minha mãe.
O cenho franzido não era por achar que ele estava julgando Célia e o pai. Isso já não importava, com tantas
crianças nascidas de relacionamentos ilegais. Sua estranheza se deu pela rapidez com que David Diamond se
casara depois da morte da mulher, e não por ter se casado.
— Isso não quer dizer que seu pai não tenha sentido a morte de sua mãe. As vezes, quando se ama
demais uma pessoa, perde-se uma parte de si mesmo, e encontrar alguém para amar é a única maneira de
sentir-se inteiro outra vez.
Raphael olhou-a com atenção, balançando de leve a cabeça, como que surpreso com sua perspicácia.
— Você é muito sábia para uma pessoa tão jovem, Anne.
Papai me disse qualquer coisa assim quando o questionei sobre isso. Porém, ele logo percebeu o grande
erro que cometeu ao escolher amar Célia.
Em geral, era isso o que acontecia, mas, naquele caso, havia o bem-estar de um menino em jogo. E
o casamento sobreviveu. E, a julgar pela amargura de Raphael, não tinha sido muito feliz.
Portanto, ele fora criado por uma madrasta de quem não gostava e crescera ao lado de um meio-irmão a
quem desprezava.
Durante muitos anos, Anne desejou ter uma família e que sua mãe não tivesse morrido tão cedo.
Mas se a família Diamond fosse tomada como exemplo...
— Por isso, aconselho-a a não tomar esta família como típica — Raphael aconselhou-a, como se mais
uma vez lesse seus pensamentos. — Ainda quer continuar cuidando de Jéssica?
— Mais do que nunca — respondeu, sem hesitar. — Sinto muito pelo acidente que ela
sofreu. Jessy estava na sela e, um segundo depois, as duas estavam no chão, e Jessy chorava.
— As duas?!
— Ela e a sela. Jéssica não lhe contou que a sela também caiu?
— Não. Quem foi que selou o cavalo?
— James, eu acho...
Pela expressão de Raphael, Anne achou que poderia criar problemas para o pobre homem que
cuidava dos estábulos da família.
Jéssica gostava muito de James e sempre conseguia extrair um sorriso de seu rosto enrugado.
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Talvez por isso não tivesse contado ao pai que a sela caíra junto com ela.
— A correia que passa pela barriga do cavalo se soltou.
James nada poderia ter feito para impedir. — Anne tentava protegê-lo.
Raçhael respirou fundo, os dentes cerrados.
— É provável que não. — Mas estava disposto a investigar esse detalhe.
Anne procurou ao redor alguma coisa para aliviar a tensão que se criou e encontrou um tabuleiro de
xadrez montado sobre uma mesinha no canto da sala.
— Eu não sabia que Jéssica jogava. — Referia-se ao convite que Raphael tinha feito à filha para
a manhã seguinte.
— Ela é muito nova para jogar um jogo tão complexo.
— Ensinei-a quando tinha cinco anos. Joga muito bem, mas ainda não conseguiu me vencer.
Anne tinha dúvidas de que alguém conseguisse vencê-lo em qualquer circunstância.
— Ainda, senhor. Conheço muito bem a determinação de Jéssica.
Ele riu baixinho.
— Herança do pai, não acha?
— Não sei, não. — Anne fingiu-se inocente. Seus olhos brilhavam, os lábios se curvaram num
sorriso.
Raphael riu.
— Aposto que não sabe mesmo! Você... — Ele parou de falar quando a porta se abriu atrás de
Anne. — O que quer aqui? Não sabe que se costuma bater antes de entrar?
Anne virou-se e viu Anthony, impassível. E, por seu olhar acusador, presumiu que os ouvira rindo
dentro do estúdio. Mas não sentiu nenhuma culpa por isso. Raphael era seu patrão, e Anthony
estava noivo de outra moça.
— Acabei de passar pelo quarto de Jessy, Raphael. Ela não está conseguindo dormir porque o
tornozelo dói. Eu dei o comprimido que o médico receitou, mas acho que só está querendo você lá.
— Anthony encarava o irmão.
Anne, que já se dirigia para o quarto, parou ao ouvir a última frase, e voltou-se para Raphael.
— Estou indo, senhor. Já terminamos nossa conversa, não é?
Anthony não deu a menor importância. Em vez disso, riu. como se o mau humor do momento
anterior tivesse evaporado.
— O que posso fazer se sua filha te ama?
Raphael atravessou o estúdio com passos firmes, deixando ainda mais evidentes as diferenças entre
os dois. O belo corpo de Anthony era estruturado nas academias de ginástica, ao passo que o estilo
de vida de Raphael mantinha-o em excelente forma. Seu jeito irónico parecia dizer que não tinha
tempo para os luxos de academia e que a própria batalha da vida o fortalecia física e
emocionalmente.
— Pelo menos sou amado por alguém — murmurou ao passar por Anthony. — Diga-me, Anne,
você joga xadrez?
Ela se surpreendeu com a pergunta inesperada.
— Sim, senhor.
— Foi o que pensei. Bem, vamos jogar uma noite dessas. Mas devo avisar que nunca deixo
ninguém ganhar de mim!
Algo lhe dizia que isso se referia a vários aspectos da vida de Raphael. Ele era um homem que
não dava espaço a quem quer que fosse, nem a si mesmo.
— Em nenhum momento achei que deixaria, senhor.
— Otimo. — Saindo do estúdio, ele fez uma pausa. — Ah, Anne...
— Sim?
— Você fica muito bem nesse vestido preto -— disse num tom grave, com um brilho de triunfo
nos olhos ao vê-la enrubescer.
Anne sabia que fizera aquele comentário de propósito. Jéssica não tinha dito que ela estava
bonita, e sim que era mais velha. E também sabia, pela clara irritação de Anthony, que a
provocação de Raphael tinha atingido o alvo.
Era inacreditável. Eles pareciam dois garotos querendo vencer um ao outro. Só que tal atitude em
homens de mais de trinta anos de idade era absurda e destrutiva.
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Anthony ficou sério e dirigiu-se a Anne num tom acusador:
— Parece que você e Raphael se dão muito bem.
— Ele quer que eu continue trabalhando com Jéssica. — Anne não desejava pôr mais lenha na
fogueira. Preferia manter-se bem longe daquela guerra pessoal.
— Isso é ótimo, não? Para nós, quero dizer. Teremos mais tempo para nos conhecer.
Anne fitou-o e mais uma vez sentiu uma leve vertigem diante de tanta beleza.
— Talvez, Anthony.
Ele passou o braço pela cintura delgada e atraiu-a para si.
— Alguém pode nos ver, Anthony!
— E daí? Minha mãe e Davina estão envolvidas numa profunda discussão sobre um assunto
qualquer, bastante aborrecido. Prefiro estar aqui com você.
Mas Davina era a noiva dele. Aquilo não estava certo. Anne tentou se desvencilhar de seus
braços, de maneira delicada, mas firme.
— Anthony...
— Ah, pare com isso! — Ele a empurrou ao perceber que Anne resistia. — Você não me pareceu
tão exigente quando a beijei no domingo. Ou será que depois de conhecer meu irmão achou a
perspectiva mais interessante?
Anne levou um susto com esse comentário. Não estava se referindo ao beijo que acontecera
entre eles. Apenas se sentia culpada desde então, depois que soubera de seu noivado. E decerto não
tinha nenhum interesse romântico por Raphael Diamond. Seria loucura de sua parte, muito mais do
que estar atraída por Anthony.
— Desculpe-me, Anne. — Ele tentou se retratar no mesmo instante, ao perceber as lágrimas nos
olhos dela, e tornou a abraçá-la. — Fiquei com ciúme. Você me perdoa?
Como resistir àquele olhar de menino?
— É claro que o perdoo. Raphael é meu patrão, e nada mais.
— Fico feliz com isso, porque detestaria que ele a magoasse só por ter velhas contas a acertar
comigo.
Anne olhou para Anthony, preocupada. Estaria se referindo ao casamento de Célia com David e a
seu nascimento logo em seguida?
—: Sabe, Anne, eu conheci Joana primeiro, a mulher de Raphael. — Anthony resolveu explicar ao
perceber a confusão dela. — Foi quando estivemos em Londres, no tempo de faculdade, e tivemos
um.... relacionamento, digamos assim. Mas tudo terminou quando voltei para cá. Pelo menos de
minha parte. No entanto, Joana estava levando nossa relação mais a sério do que eu, e veio atrás de
mim. Quando consegui convencê-la de que não estava interessado, ela começou a olhar para Raphael.
Tenho certeza de que no começo foi só para me provocar. Porém, não conseguiu. Mas parece que
minha atitude só serviu para fazer Joana insistir mais ainda em Raphael e, quando me dei conta, eles
estavam casados. E o presente de casamento que Joana deu a ele foi lhe contar que tinha sido
minha amante!
Diante de tanta crueldade, Anne não se surpreendeu com a animosidade existente entre os dois.
Raphael era um homem que detestaria saber que sua mulher fora amante de seu irmão antes de se
casarem.
— Eu não contei sobre nosso relacionamento a Raphael porque não achei que estivesse tão
interessado nela. E acho que ele nunca me perdoou por isso.
Mas o casamento sobreviveu, e Jéssica foi o fruto daquela relação. Caso contrário, Anne não
estaria ali.
Ela escolhera trabalhar com aquela família por livre e espontânea vontade, mas nunca pudera
imaginar que os Diamond pudessem ser tão complicados. Primeiro, morrera a mulher de David
Diamond; depois, Célia se tornara a cruel madrasta de Raphael. Como se não bastasse, ele se
casara com uma mulher que jamais poderia fazê-lo feliz e, por último, ela morrera.
Será que uma daquelas mulheres teria cometido suicídio naquela enseada rochosa aos pés da Casa
do Rochedo? Se fosse o caso, qual delas teria sido?

CAPITULO IV

18
Como foi sua entrevista com meu en teado ontem à noite? — Célia Diamond levantou-se para
servir o chá que acabara de ser deixado em sua saleta particular.
Anne atendeu ao convite de juntar-se a ela no desjejum, não sem certa insegurança. Mas, como
Jéssica estava com o pai no estúdio, jogando a prometida partida de xadrez, não tinha nenhuma
desculpa para recusar.
Escolheu com cuidado as palavras, embora não tivesse muita certeza se sua conversa com
Raphael ter sido um sucesso ou não.
— Parece que o sr. Diamond ficou satisfeito com minhas referências.
— Então você vai ficar?
Anne deu um profundo suspiro.
— Parece que sim — respondeu devagar.
— Otimo. — Célia bebeu seu café, pensativa, satisfeita com a resposta. — Acho que Raphael
não ficará aqui por muito tempo. Ele não fica nunca, afinal.
Anne queria com sinceridade que ele ficasse, por causa de Jéssica. Mas era possível entender por
que suas visitas eram tão rápidas: a tensão que se criara naquela casa, desde de sua chegada, no dia
anterior, parecia tangível, quase podia ser tocada com as mãos.
— É bom que você continue conosco, Anne. Davina e eu conversamos ontem à noite sobre o
casamento dela e Anthony. Será muito mais fácil para nós se não tivermos de nos preocupar com
Jéssica.
— Casamento? — Anne repetiu, distraída.
Seria esse o "assunto aborrecido" ao qual Anthony se referira na véspera? Era bastante provável.
— Será logo depois do Natal. — Célia, muito tranquila, estava alheia às preocupações de
Anne. — E, como será em Londres, exigirá muitos preparativos. O maior problema é a recepção,
porque temos pouco tempo para planejá-la.
Além disso... bem, não interessa a você. Só quero me assegurar de que estará aqui para cuidar de
Jéssica.
Seria só isso o que Célia estava querendo? Já fazia algum tempo que Anne andava buscando
significados ocultos em tudo o que ouvia. Antes, as coisas que os Diamond diziam era exatamente o
que ela ouvia. Agora, no entanto, procurava duplo sentido em todas as frases. Culpa de Raphael, é
claro. Célia não podia saber da atração que ela sentia por Anthony. Ou será que sabia?
"Pare com isso!", Anne disse a si mesma. "Você já está fazendo outra vez. Pobre Anthony... Está
sendo pressionado de todos os lados a realizar esse casamento!"
Ao fim do café, terminou também a conversa. Célia pediu licença para cuidar dos arranjos de flores,
pois receberia convidados para jantar.
Ao sair da saleta atrás de Célia, Anne encontrou Anthony descendo a escada. Quando se separaram
na noite anterior, no escritório de Raphael, Anthony a beijara e depois fora se juntar a Célia e
Davina, mãe e noiva, para discutirem a cerimónia, que aconteceria em poucos meses. Dizer que
Anne estava confusa era pouco.
Anthony olhou para ela como que procurando alguma coisa.
—Algum problema? — perguntou ao perceber sua confusão.
Sim: ele ia se casar no Natal, em questão de meses, e na véspera a beijara outra vez. E claro que
tinha algo errado! O fato é que Anne estava tão perdida em relação a esse assunto quanto estivera
naquele ancoradouro.
— Anthony, nós precisamos conversar. Sua mãe acabou de me dizer...
— Sobre o casamento! Não se preocupe, Anne, não vai acontecer.
Ela ergueu a cabeça. Seria por sua causa? Como podia ser responsável por isso se nem conseguia
definir os próprios sentimentos desde a chegada de Raphael?
— E quando pretende dizer isso a Davina? Quando estiver no altar?
— Esse assunto só interessa a mim — ele retrucou, ressentido.
Não, de maneira nenhuma era por sua causa que Anthony não ia se casar. Agora estava bem mais
claro o que havia por trás da beleza e do charme que a cegavam. Existia um brilho de raiva, uma
frieza tão grande que...
— Ei, pare de me olhar desse jeito, Anne! — brincou, e, no mesmo instante, a crueldade e a
fleuma deram lugar a uma meiguice bem mais sedutora. — Não estou bravo com você. Acontece
19
que fico cansado com essa situação. Vamos, dê-me um sorriso.
— Eu...
— Problemas no paraíso? — Mais uma vez aquela voz, que se tornava mais familiar a cada
dia.
Anne viu Raphael se aproximando deles com um sorriso irónico nos lábios bem delineados. A
camisa de seda preta e a calça esporte, os cabelos negros, longos e despenteados, os olhos brilhando
deixavam-no mais perigoso ainda.
Eles já tinha se encontrado, quando Raphael fora buscar Jéssica no quarto para o jogo. Anne o vira
de uma maneira diferente por saber como tinha sido seu casamento com Joana. Era evidente que a
arrogância era uma parte importante de sua personalidade. Qual não teria sido sua decepção quando
soubera que sua mulher já tinha sido amante de Anthony?
Raphael fitou-a primeiro, a sobrancelha erguida numa indagação silenciosa, a qual Anne não sabia
responder. Para ser franca, desejava não ter conhecimento de sua vida e que Anthony não tivesse lhe
contado nada. Raphael ganhara uma vulnerabilidade que jamais poderia ser associada a ele.
A expressão de Raphael endureceu ao voltar-se para o irmão.
— Você devia ter nascido cem anos atrás, Anthony. O fascínio que exerce sobre os membros
femininos desta casa... sem querer ofendê-la, Anne. Isso podia ser compreensível há um século, mas
não aceitável.
— Ao menos sei apreciar uma bela mulher — Anthony devolveu o insulto.
Raphael permaneceu indiferente à clara retaliação.
— Você está comprometido com uma moça muito bonita. Sugiro que fique com ela. — Raphael
pegou com firmeza o braço de Anne. — E deixe em paz pessoas inocentes.
Anne sentia-se como um osso disputado por dois cachorros famintos. Além disso, gostaria de não ser
tratada como criança.
— O senhor me conhece muito pouco para afirmar isso a meu respeito. — Ela soltou-se de sua
mão, enfrentando-o.
— Quer dizer que não é inocente?
Nesse momento, os dois se envolveram numa batalha silenciosa, como se não houvesse mais
ninguém presente.
Anne não se considerava tola, nem tão pura, pois já tivera alguns namorados, mas no sentido real
da palavra, da forma como Raphael se referia...
— Anthony, querido! — Era Davina Adams, que vinha descendo as escadas, linda, elegante, no auge
de vinte e oito anos.
— Já estou melhor da dor de cabeça. Podemos ir à cidade.
No sábado anterior, quando Anne conhecera Davina, não imaginara que por trás de tanto charme
existisse uma pessoa tão superficial. Era muito bonita, sem dúvida, mas seus únicos interesses eram
fazer compras e cuidar da aparência.
— Ótimo. — Anthony sorriu. — Vocês nos dão licença? —Ele ofereceu o braço a sua noiva, e os
dois se afastaram.
— Quando Davina diz "salte", Anthony salta — Raphael comentou, mordaz.
O que ele queria dizer com isso?
— Mas Davina é muito bonita, não acha, Anne?
— Claro.
— E rica.
— Sim...
— Não é segredo nenhum que meu irmão já gastou quase toda sua herança e que tem gostos
muito caros. E todo o mundo sabe que Davina é uma moça riquíssima.
— Menos eu?
— Não estamos falando de você, Anne. Ou estamos?
Aquele homem era de fato um repórter muito bom. Conseguia informações sem pedir, a ponto de fazê-
la confirmar, sem dizer uma só palavra, seu interesse por Anthony. Mas será que Anne estava mesmo tão
interessada? Não saberia dizer.
— Não, sr. Diamond — respondeu, seca. — Posso ir ver Jéssica agora? O senhor deve ter
coisas a fazer.
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— Tenho. — Porém, continuou olhando-a com atenção.
— Vou levar vocês para almoçar. As duas. A pedido de Jéssica — acrescentou, como se
pressentisse a recusa.
Teria sido um ato instintivo, porque a vontade de Anne era ficar o menor tempo possível ao lado de
Raphael Diamond. Mas, quando ouviu o nome de Jéssica, não pôde se esquivar.
— Está bem. Vou pegar um casaco para Jéssica. — Anne se virou para subir a escada.
— Anne?
Ela já estava quase no alto, procurando fugir daquela batalha emocional. Raphael Diamond não
era um homem fácil. Muito pelo contrário. Era preciso estar sempre em guarda quando ele estava
por perto.
Anne respirou fundo e virou-se devagar. Ele estava no mesmo lugar, sempre tão poderoso.
—Sim, senhor?
Raphael sorriu.
— Irei até a jaula da leoa: avisarei a Célia que não almoçaremos aqui.
— Está certo, senhor.
— Anne?
Ela tornou a se virar, impaciente. Raphael estaria fazendo de propósito? Alguma coisa naqueles
olhos azuis pareciam lhe dizer que sim.
— Sim, senhor.
O sorriso dele ampliou-se, aprofundando as linhas de expressão nos cantos da boca.
— Não precisa mudar de roupa. Está muito bem assim.
E trate-me por Raphael. É uma ordem.
Anne teve a nítida impressão de que estava sendo observada enquanto subia os degraus. Então,
se lembrou de que usava uma calça justa que realçava seus quadris e as pernas longas e bem
torneadas.
—Eu não ia me trocar — respondeu, irritada, conseguindo, enfim, livrar-se dele, mas ainda
ouvindo sua risada, que a perseguia pelo corredor.
E agora iria passar algumas horas na companhia daquele homem. Maravilhoso! Anne já se
arrependia de ter desejado que Raphael ficasse mais tempo em casa daquela vez. Queria que ele fosse
logo embora.
No entanto, arrependeu-se outra vez ao presenciar a alegria de Jéssica na presença do pai. A
menina o adorava, e sua afeição era retribuída na mesma intensidade. Seu casamento fracassara,
mas Raphael Diamond não permitira que nenhum sentimento amargo que pudesse nutrir por Joana
atingisse a filha, a quem amava de todo o coração.
Anne sentiu-se excluída desse relacionamento e até dispensável, porque Jéssica recorria ao pai para tudo o
que necessitava.
— De repente você ficou triste — Raphael interrompeu seus devaneios, outro sinal de que a
observava sem que ela percebesse. — Espero não ter dito nada que a ofendesse.
Raphael arqueou uma sobrancelha naquele seu jeito desconcertante.
Eles deram um passeio antes de parar para comer um lanche. Jéssica sentia-se muito à vontade,
pois era visível sua felicidade.
Anne, então, pensou que, se Raphael resolvesse ficar em casa para sempre, poderia ser facilmente
dispensada. Ao mesmo tempo, culpou-se por seu egoísmo, pois seria muito melhor para Jéssica ter seu pai
do que ser cuidada por outra pessoa.
— Não, Raphael. Está tudo bem. Você não disse nada que me entristecesse.
Raphael insistiu:
— Tem certeza?
— Tenho. — Anne sorriu.
Ele não tinha culpa nenhuma por ela gostar tanto de Jéssica. Era a ideia de separar-se da menina
que a fazia sofrer.
— Alguém já lhe disse que você tem olhos muito expressivos, Anne?
Ela levou um susto e, de repente, quando os olhares se cruzaram e ficaram presos um ao outro,
sentiu que eram as duas únicas pessoas no salão repleto.
— São incríveis! — Raphael murmurou, balançando a cabeça, encantado.
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— Achei que tivesse dito "expressivos".
— Expressivos! Belos! Encantadores... Deus me livre...
— Vovó disse que só devemos usar o nome de Deus quando rezamos — Jéssica o reprovou e os fez
lembrar que estava presente. — E você não está rezando, papai.
Raphael sorriu e acariciou os cabelos da filha.
— De certa forma, era o que eu estava fazendo, sim, querida. — Raphael encarou Anne de uma
forma enigmática.
Anne não sabia mais o que pensar daquele homem singular. Havia pouco, Raphael comentara
sobre seu silêncio. Agora, falava de seus olhos? Anne não conseguia ver a ligação entre uma coisa e
outra.
— Também rezei ontem à noite, papai. Pedi para que não fosse embora nunca mais. Por que
você estava rezando? — a menina quis saber, inocente, alheia ao efeito devastador que suas palavras
provocaram nos dois adultos.
Anne ficou encabulada, de repente, e perguntou-se como Raphael se sentiria por terem esquecido por
instantes de sua filha.
— Rezei pela mesma coisa, meu amor.
Jéssica assentiu, como uma menina amadurecida.
— Acho que, se nós dois rezarmos pela mesma coisa, ela pode acontecer. Durante muito tempo
pedi para ter uma nova mãe, e não fui atendida. — Jéssica franziu o nariz, sem ter a menor ideia
da bomba que tinha jogado no meio da conversa. — O que acha, papai?
Anne teve vontade de rir da expressão assustada de Raphael. Pelo jeito, nunca lhe ocorrera que a
filha queria tanto ter uma mãe, e não sabia o que responder.
Então, Anne decidiu ajudá-lo.
— Jéssica, me acompanha ao toalete? Vamos mostrar a seu pai que você já sabe andar de
muletas — acrescentou, para encorajá-la.
Isso conseguiu desviá-la de um assunto que, no mínimo, deixava Raphael incomodado.
Ele ainda estava assustado quando Anne levantou-se para ir ao banheiro.
—De onde foi que você veio? — Raphael perguntou, em voz baixa, antes de ela se afastar.
Anne voltou-se com um sorriso solidário.
—Essa é uma das razões por que gosto tanto de cuidar de crianças, Raphael: nunca se sabe o
que elas vão dizer!
— Uma nova mãe! — ele repetiu, incrédulo.
O sorriso de Anne se alargou.
—Eu não me preocuparia com isso. Jéssica já deve ter desistido de esperar.
—Graças a Deus! — Respirou, aliviado, e sorveu um gole generoso de cerveja.
O sorriso desapareceu do rosto de Anne quando seguiu atrás de Jéssica. Esquecera-se de que o
casamento dele com Joana tinha sido um desastre. Não era de admirar que não via nenhuma graça
numa substituição. Não era uma experiência que Raphael gostaria de repetir, e ninguém poderia
culpá-lo por isso.
Raphael parecia mergulhado em pensamentos ao voltar para casa, dirigindo o Mercedes preto como
um autómato. Jéssica, cansada do passeio, logo adormeceu no banco de trás.
Anne aproveitou o silêncio para pensar melhor na última conversa que tivera com Anthony, que de
manhã lhe parecera muito diferente. Decerto não gostara do que ela dissera sobre o casamento. O que
iria acontecer? Será que Anthony pretendia mesmo se casar? Dizia que não, mas...
—Ele não vale nada — Raphael interrompeu suas reflexões como se soubesse em que, ou em
quem, ela estava pensando. Aliás, isso parecia estar se tornando uma rotina.
Anne sentiu-se enrubescer.
— Não sei do que está falando.
Raphael suspirou.
— Sabe, sim. Não entendo como Anthony consegue, mas toda mulher que se aproxima dele é
seduzida por seu charme, apesar de ser quem é! Não acredite no que Anthony lhe disser, Anne,
porque vai se casar com Davina. Célia fará tudo para isso.
— Por quê? — Anne perguntou, perplexa.
— Já lhe expliquei as razões.
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Porque Davina era rica e Anthony tinha gostos caros. Essa não parecia ser uma boa base para
um casamento. E não era da conta de Célia com quem seu filho se casaria. Seria melhor para todos
que ela aprovasse a escolha de Anthony, mas era muito mais importante que o próprio Anthony
escolhesse com quem se unir.
— Não entendo, Raphael.
— Você vai entender — garantiu-lhe. — Só estou que rendo facilitar as coisas para você. Ou
será tarde demais?
Anne não saberia dizer. Sim, fora enfeitiçada pelo charme de Anthony desde o início e sentia-se
envaidecida por ter atraído sua atenção. Mas a chegada de Davina no último fim de semana destruíra
tudo. Agora já não sabia mais o que pensar.
— Espero, com sinceridade, que não, Anne — Raphael continuou. — Meu irmão já arruinou a
vida de muita gente, e você não precisa ser mais uma.
E a primeira de todas tinha sido a dele. Mas a culpa não era de Anthony. Ou será que era?
Anne já não sabia mais o que pensar, precisava dar um tempo, trabalhar melhor as coisas em sua
cabeça.
Mas não houve tempo para isso quando chegaram. Anne e Jéssica jantaram no quarto de
brinquedos, porque os donos da casa receberiam convidados. E Anne, por sua vez, não viu mais
Anthony. Melhor assim: precisava de um tempo para si mesma antes de tornar a encontrá-lo.
Para sua surpresa, Célia ainda estava em seu quarto quando chegou a hora de Jéssica dizer boa-
noite à avó. As duas a encontraram no closet escolhendo a roupa que iria usar. Já estava penteada e
maquiada, faltava apenas se vestir. No momento usava um robe. Era de admirar que não tivesse
se casado outra vez após seis anos de viuvez, pois ainda era uma mulher muito atraente.
— Pronta para dormir, querida? — Célia saudou a neta, vendo-a já de pijama. — E tão tarde
assim?
Anne observava-a enquanto Célia se despedia de Jéssica.
Havia sinais de cansaço em seus olhos e ao redor da boca, apesar de Célia ter repousado antes do
jantar. O fato de ter Anthony e Davina presentes, além do perturbador Raphael, era estressante para
a pobre mulher. Apenas Jéssica, e talvez a superficial Davina, não pareciam afetadas por aquela
estranha reunião familiar.
—O que vai fazer esta noite?
De repente Anne se deu conta de que a pergunta de Célia era dirigida a ela. Depois que pusesse
Jéssica na cama, o que iria fazer? Sua rotina tinha sido afetada com a presença de toda a família.
—Preciso pregar algumas etiquetas no uniforme escolar de Jéssica — inventou. — Depois vou
escolher um livro na biblioteca. Tudo bem?
Anne encantara-se com a biblioteca dos Diamond desde o primeiro dia. Sempre gostara de ler, e
o grande aposento, no andar inferior da casa, era todo dedicado à literatura. Para ela, era a própria
caverna de Aladim. Era como se sua vida ficasse muito mais simples quando se entregava à
leitura da vida de outras pessoas.
Célia sorriu.
—Excelente ideia, Anne! Fique à vontade para escolher o livro que quiser.
Anne observou-a com mais atenção. Por alguma razão, Célia estava muito mais simpática desde a
chegada de Ra-phael. Talvez fosse o esforço de conviver com ele sob o mesmo teto, ou o fato de Anne
conhecê-la melhor agora, o que operara essa transformação.
—Obrigada.
—Agora preciso terminar de me vestir. — Célia levantou-se para dispensá-las, acariciando a
cabeça da neta. — Tenho de escolher com cuidado, porque a mãe de Davina deverá estar usando
trajes muito elegantes. Ela está sempre muito bem vestida.
A mãe de Davina... Eram os pais dela os convidados para o jantar! Decerto estariam ali para conversar
sobre o casamento.
Anne pôs Jéssica na cama como um autómato e costurou as etiquetas com as iniciais da menina
no novo uniforme de inverno, sem notar que fazia uma tarefa entediante. Depois, foi para a
biblioteca, sem saber dizer como chegou lá, lembrando-se de que os pais de Davina estavam na sala
ao lado. Os planos de casamento estavam incluídos no cardápio da noite, isso era óbvio.
Como ficava Anne em tal situação? Talvez Raphael tivesse razão. Devia ser apenas mais uma das
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inúmeras namoradas que Anthony tivera na vida. Era bem provável que ele estivesse brincando
com suas emoções enquanto pretendia casar-se com Davina. Por isso ficara tão perturbado pela
manhã, ao ser questionado.
Que confusão! Anne ficou tão feliz por ter conseguido o emprego naquela casa, adorava estar com
Jéssica, e agora, por causa de um envolvimento com Anthony que jamais deveria ter começado, tinha
posto tudo a perder. Como poderia permanecer na mansão depois de ter cometido a tolice de envolver-
se com Anthony? Mesmo assim, não queria sair. Teve certeza disso quando notou que a volta de
Raphael dispensaria sua presença ao lado de Jéssica.
Anne começou a chorar baixinho, sem saber muito bem por que ou por quem. Estava tudo muito
confuso em sua cabeça. A única coisa que sabia era que sua relação com Anthony, fosse o que fosse,
devia terminar.
Era preciso pôr um fim em algo que nunca começara, a não ser em sua ingénua cabeça. Raphael
tinha razão: era imatura e impressionável.
— Eu disse que ele não vale a pena.
Anne virou-se e deu de frente com o homem em quem acabara de pensar. Raphael entrou na
biblioteca, fechando a porta atrás de si. Estava impressionante em seu smoking preto e a camisa
branca como a neve.
— Não vale a pena sofrer por ele, Anne — enfatizou,
cruzando a sala com passos firmes. — Pare de chorar, droga!
Anne se deu conta da bobagem que fazia e chorou ainda mais. Acreditara com sinceridade no
interesse de Anthony, começou a apaixonar-se, e agora sentia-se uma tola.
— Anne! — Raphael sacudiu-a pelos braços. — Droga! — A voz ergueu-se quando ele viu as
lágrimas escorrendo pelo rosto bonito.
Anne queria muito parar com aquilo, mas o fato de Raphael presenciar sua humilhação piorava
tudo. Ele era seu patrão. O que iria pensar a seu respeito? Que era uma idiota que se envolvia com
um homem que não valia a pena? Talvez a despedisse por isso.
Com a voz entrecortada por soluços, Anne lembrou-o, tentando aliviar a tensão:
— Jéssica não gosta que fale assim.
Isso só serviu para aumentar a fúria de Raphael.
— Pouco me importa Jéssica e pouco me importa Anthony! — Suas mãos apertavam os braços
dela. — Não quero nem saber! — Baixou a cabeça em busca da boca de Anne, cheio de paixão.
Anne foi pega de surpresa de tal forma que nada pôde fazer senão ficar presa pela força de seus
braços, enquanto aqueles lábios exigentes perseguiam os seus, implacáveis. Ela já beijara antes, havia
pouco até, mas nunca daquela maneira.
Então, a cólera pareceu abandonar Raphael. Afrouxou o abraço e, com ternura, aproximou-a ainda
mais, os lábios provando e deliciando-se com os dela. Aos poucos, com a pulsação descompassada,
Anne começou a retribuir as carícias, passando as mãos bem devagar pelos ombros dele enquanto
ficava na ponta dos pés para beijá-lo.
Raphael aceitou o convite, curvando o corpo de Anne junto ao seu, os lábios roçando os dela com
erotismo, a língua penetrando com suavidade por entre eles e provocando um calor que a inundava
por inteiro.
Anne sentia a pele toda formigar, vibrando de desejo, querendo que o prazer não terminasse
nunca.
Mas foi interrompido de repente, quando Raphael a afastou, os olhos tão sombrios que se tornaram
negros outra vez.
— Você não está apaixonada por Anthony, Anne. Na verdade, não ama ninguém. Não teria me
beijado assim se estivesse envolvida. Então, pare com esse choro e volte a cumprir seu dever:
cuidar de Jéssica! — Raphael deu-lhe as costas e saiu batendo a porta.
Anne ficou parada, olhando se afastar, ainda mais confusa. Na verdade, desesperada.

CAPITULO V

— O que está acontecendo entre Raphael e você?!


Anne descia a escada com uma bandeja nas mãos e não tinha encontrado Anthony desde o dia
24
anterior. Na verdade, ainda não tinha visto ninguém da família, com exceção de Jéssica, e não sabia
como enfrentaria Raphael depois do que acontecera entre eles na véspera.
Olhou para Anthony com um ar assustado. Ele não podia saber que Raphael a beijara. Mais que
isso: que ela retribuíra a seus beijos.
— O que quer dizer com isso, Anthony? — perguntou, apreensiva, mantendo a bandeja firme
entre os dois.
— Largue essa droga! — ele exigiu, impaciente, e, sem esperar que ela'o obedecesse, arrancou
a bandeja de suas mãos e colocou-a com violência sobre a grande mesa do hall, fazendo com
que uma das xícaras esparramasse seu conteúdo pelo chão.
— Raphael acaba de me informar que vocês irão passar alguns dias em Londres.
— Ele disse?!
— Disse! E então? O que está havendo?
Anne também gostaria de saber. Era a primeira vez que estava ouvindo aquela história de
viagem. Claro que não havia nada de estranho no fato de a babá viajar com a família, mas, em se
tratando de Raphael Diamond e do que acontecera na noite anterior, não deixava de ser espantoso.
Bem, não era a única coisa estranha que estava acontecendo.
—Anne! — Anthony esperava uma resposta.
E ela não tinha nada a dizer. Não sabia por que estavam indo a Londres, nem por quanto tempo.
Na verdade, não sabia nada.
—Tem certeza de que vou também, Anthony?
—Tenho.
E, conhecendo Raphael, Anne concluiu que devia ter adorado dizer isso a Anthony.
—O que acha que devo fazer enquanto você viaja com meu irmão?!
Anne arregalou os olhos, sem acreditar no que ouvia. Anthony fazia uma pergunta como aquela
apesar de ter jantado na noite anterior com a noiva, os pais dela e sua mãe, para discutir os planos
do casamento.
—Que tal fazer exatamente o que tem feito nos últimos dias? Aproveite suas férias na casa da
família ao lado de sua noiva, ora! — A indignação endureceu sua voz ao pronunciar a última frase.
—Ah, agora estou entendendo... Estamos fazendo um jogo, não estamos? — Anthony deu um
passo para trás com um sorriso nos lábios.
Anne não sabia que jogo ele estava fazendo e já tinha desistido de tentar adivinhar. Quanto a si
mesma, não havia o que revelar.
—Só estou querendo dizer que Raphael não me disse nada e que, portanto, não há jogo
nenhum.
Anthony olhou-a com atenção.
—Está brava comigo por causa do casamento, Anne?
Brava? Ela nem sabia se estava. Confusa, sim, mas talvez nem isso, sobretudo por causa dele. Quanto
a Raphael, bem, era uma outra história.
— De modo algum, Anthony. Acho ótimo que seu casamento tenha sido adiantado. Agora, se
me dá licença... —
Tentou passar por Anthony para pegar a bandeja, mas ele segurou seu braço. — Está me
machucando.
— Você...
— Anne, querida, precisamos conversar sobre essa viagem que fará com Raphael para Londres.
— Célia apareceu de repente diante deles.
Anne tentava livrar-se das mãos de Anthony, mas ao ouvir a voz da mãe ele soltou-a de
imediato. Ela virou-se para Célia.
— Eu ainda não sei de nada, Célia. Talvez Raphael queira levar apenas Jéssica.
—E claro que não. Acabamos de conversar, e ele me disse que você também vai.
Anne gostaria que Raphael parasse de falar com as outras pessoas e fizesse o favor de contar a ela o
que estava acontecendo. Parecia que todos naquela casa já sabiam o que estaria fazendo nos
próximos dias, enquanto ela própria não tinha a menor ideia.
O que iriam fazer em Londres? Onde se hospedariam? Ficariam apenas alguns dias?
—Você vai adorar, querida — Célia encorajou-a ao perceber sua relutância. — Poderá visitar
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seus amigos.
Anne sentiu, mais do que viu, o olhar ameaçador que Anthony lançou em sua direção. Talvez
porque a ideia de rever algumas velhas amizades, na certa homens, não o agradasse. Bem, Anne
tinha muitos conhecidos em Londres, alguns deles do sexo oposto, mas eram só amigos. E, mesmo que
não fossem, não era da conta dele. Afinal, Anthony estava noivo e não tinha o direito de aprovar ou
desaprovar quem quer que fosse.
Ora, sua atitude em relação a ele tinha mudado muito nos últimos dias!
Mas Anthony estava noivo. E com a proximidade do casamento, a conversa na noite anterior com os
pais de Davina, sem esquecer o detalhe relevante de que o pai dela era o patrão dele, a conclusão
imediata era que .o enlace se daria em breve. Que papel Anthony estava pensando em oferecer-lhe nessa
situação? Não era muito difícil adivinhar, e muito menos a resposta que daria a ele. A própria Anne era
fruto do envolvimento de sua mãe com um homem que se recusara a deixar a esposa, mesmo sabendo
que ela estava grávida. Não tinha nenhuma vontade de repetir sua própria história.
Estava vivendo num mundo de faz-de-conta quando pensou que seria diferente com Anthony Diamond.
Mas graças a Deus tinha caído em si. E se Raphael Diamond pensasse que com ele seria diferente, que
se preparasse para o choque também.
— Sim, vai ser muito bom, Célia — Anne ignorou o olhar de Anthony. — Raphael deve conversar
comigo sobre isso.
Agora, se me dão licença, preciso levar esta bandeja para a cozinha.
— Anne...
— Anthony, precisamos conversar sobre o aniversário de Davina na semana que vem — Célia
lembrou-o. — Anne tem muita coisa para fazer.
Anne já tinha desconfiado, por certos comentários e algumas conversas, que Célia não ignorava o
envolvimento entre seu filho e a babá da neta. E agora tinha quase certeza de que sabia de tudo.
Raphael estava certo mais uma vez: Célia queria Anthony livre para casar-se com Davina.
Anne encontrou Davina por acaso a caminho da cozinha. Aquele não era, de modo algum, seu dia
de sorte!
— Ah, Anne, gostaria de conversar um pouco com você... Mais uma!
Anne suspirou, resignada.
— Se for sobre a viagem a Londres com Raphael e Jéssica, Anthony já me contou.
Um pouco surpresa, Davina meneou a cabeça.
— Não tem nada a ver com a viagem com Raphael. Esse assunto não me interessa.
Até então, Anne achava-a bonita, mas um pouco sem sal. Agora estava vendo em Davina uma
frieza que até então não conhecia. E se não queria falar sobre a viagem com Raphael, do que poderia
ser? Anne aguardou, ansiosa.
Davina continuou olhando para ela com olhos frios como o gelo.
— É sobre Anthony...
— Ah, você está aí, Anne! — Raphael interrompeu-as com toda a calma e aproximou-se. —
Procurei-a por toda parte.
Se a família inteira conseguiu encontrá-la, por que ele não teria conseguido?
— Como vai, Davina? — ele a cumprimentou, carinhoso. — Não notei que estava aqui.
Considerando-se que Davina era muito mais alta que Anne, com longos e brilhantes cabelos
dourados sob o sol de outono, como poderia não tê-la notado?
Anne preferia adiar esse primeiro encontro depois do beijo da noite anterior, mas, depois das
conversas intermediárias com Célia e Anthony, estava furiosa com Raphael. E a irritação não
diminuiu por tê-la livrado da incómoda conversa com Davina. Porque agora tinha certeza de que
Davina pretendia conversar sobre a "amizade" que Anthony nutria por ela. Talvez fosse ótima ideia
viajar com Raphael e Jéssica.
— Bem, já me encontrou. — Anne nada fez para disfarçar sua zanga. Sentia-se atacada por todos
os Diamond.
Raphael arqueou uma sobrancelha com aquele seu jeito enigmático.
— Sim, encontrei.
Anne corou.
— Estou indo levar esta bandeja para cozinha. Mas terei muito prazer em conversar com você
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depois que fizer isso.
— Os pratos e as xícaras a faziam lembrar-se do lanche agradável que fizera com Jéssica pouco
tempo atrás, mas que parecia ter acontecido havia séculos.
Raphael assentiu.
— Estarei na biblioteca.
A biblioteca!' O coração de Anne deu um salto, as mãos tremeram, fazendo as xícaras baterem na
bandeja. Aquele fora o lugar em que tinham se beijado com tanta paixão, e era onde voltaria a
encontrá-lo.
Talvez por isso Raphael tivesse escolhido aquele local. Raphael não era apenas perturbador, mas
irritante, um espinho na vida de todos. Sobretudo na dela.
Mesmo assim, o beijara como se durante toda a sua vida tivesse desejado isso.
Bem, Raphael também beijara-a, mas o fato de tê-la mandado cuidar de Jéssica demonstrava a
pouca importância do que acontecera.
Para Raphael, aquela carícia só servira para mostrar que Anne não estava apaixonada por
Anthony.
Raphael estava sentado em uma das poltronas de couro que ladeavam a lareira, com um livro
aberto sobre os joelhos. Ergueu os olhos quando percebeu a presença de Anne.
—Charles Dickens. — Fechou o volume e voltou a colocá-lo na estante. — Não é um de meus
autores preferidos.
"Nem meu", Anne disse a si mesma, mas decidiu não concordar com nada do que ele dissesse.
Dickens era um pouco depressivo para seu gosto. A bem da verdade, combinava bastante com seu
atual estado de espírito.
—Quer conversar comigo, Raphael?
Ele inclinou a cabeça de lado, olhando-a com um ar divertido.
—Alguém pisou no seu calo, Anne?
—Como?
—Ah, então é comigo que está zangada!
Ela soltou um ruidoso suspiro.
—A troco do que estaria zangada com você?
Raphael riu.
— Se eu fosse você, me sentaria, Anne. — Raphael indicou a outra poltrona. — Antes que o tapete
incendeie sob seus pés. E pensar que cheguei a duvidar que fosse mesmo ruiva... Tudo bem, diga-
me o que fiz para poder me desculpar e tirar isso do caminho. Depois continuaremos.
Então ele era do tipo que não guardava mágoas. Estranho, não for a impressão que Anthony lhe
passara quando contara sobre Joana... Mas talvez fosse outro caso. Havia muito antagonismo entre
eles.
— É por causa de ontem à noite? — Raphael olhava-a com atenção. — Quer que eu me
desculpe por tê-la beijado? É isso?
Anne preferia não falar naquele assunto. Mas talvez fosse exigir demais.
— Bem, eu posso fazer isso — Raphael continuou, tomando seu silêncio como confirmação.
— Só não sei por que, desde que não vou prometer que não acontecerá de novo. — Esboçou um
sorriso devastador quando ouviu Anne engasgar. — Enfim você acordou! E por ontem à noite, Anne?
— Não! É que... todo mundo... Vamos a Londres...
— Vamos. Não quer ir? — perguntou, gentil.
— Sim. Não! — Suspirou, perturbada com a própria hesitação. — É claro que quero ir!
— Mas gostaria que eu tivesse conversado com você antes de contar aos outros. Por ter se
referido a "todo mundo", presumo que minha família teve imenso prazer de infor má-la de meus
planos antes que eu tivesse oportunidade de fazê-lo. Apenas mencionei qualquer coisa após o
almoço, Anne. Não sei por que foram correndo lhe contar.
Pois ela sim. Anthony, porque estava furioso por saber que viajaria com seu irmão, embora
fosse babá da filha dele; Célia, porque a queria longe de Anthony o mais rápido possível, e Davina,
porque não quis conversar sobre a viagem, mas sobre um assunto muito mais pessoal. Pensando
bem, a viagem a Londres chegara na hora certa.
— Não importa, Raphael. E que eu.,.
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— É claro que importa. Apesar do que eu possa ter lhe dito ontem à noite, não pretendia magoar
nem aborrecer você. Muita gente nesta casa já está fazendo isso, e não precisa de mais um. Peço
desculpas por ter feito o que fiz. Não devia ter mandado que fosse cuidar de Jéssica. Basta ver as
duas juntas para saber que gosta muito dela, e ela de você.
Anne tomou fôlego e disse, com voz rouca:
— Obrigada.
— Não agradeça.
Raphael era incorrigível. Era impossível ficar brava com ele por mais de cinco minutos.
— Então... — Anne continuou num tom mais firme, determinada a deixar a conversa no nível
profissional. O que não era fácil depois de ouvir que ele poderia beijá-la de novo.
Isso não podia acontecer. Porque, se acontecesse, Anne temia reagir como na véspera. E envolver-se
com um homem como Raphael, pai da criança da qual cuidava e que passava mais tempo fora do país
do que dentro dele, era mais ridículo do que o entusiasmo que sentira por Anthony.
— Quando vamos partir, Raphael? Preciso fazer as malas.
— Vamos no final da tarde. Não se preocupe muito com Jéssica. Ela tem muita roupa em meu
apartamento.
No apartamento! Anne achou que ficariam num hotel. Um conclusão absurda, visto que Raphael
devia morar em Londres por causa do trabalho. Mas ficar na casa dele...
— Não se preocupe, Anne. Lá há quatro quartos, portanto, não estou esperando que durma no
meu.
Céus, quanta transparência! Claro que não esperava dormir com ele, mas a ideia de ficar lá,
mesmo com a menina presente, era um pouco perturbadora.
— Dormir com Jessy seria a melhor opção, Raphael.
— Mas a menos divertida.
Anne não levou a sério. Só podia ser brincadeira. No entanto, já era hora de parar com aquilo.
— Vou arrumar minhas coisas, então. — Anne levantou- se para sair.
— Ficaremos apenas alguns dias. Depois, voltaremos para cá.
— Não se preocupe, Raphael. — Anne sorriu ao ver a expressão de pânico no rosto dele. — Eu
trouxe tudo o que possuo numa única mala. Não preciso de tanto para dois ou três dias.
Ele suspirou, aliviado.
— Enfim, uma mulher que não costuma levar a pia da cozinha e todos os móveis da casa!
Anne achou graça, e dirigiu-se para a porta.
— Mais uma coisa, Anne. Leve seu vestido preto.
Os olhos dela se arregalaram.
— Vamos sair à noite?
Ele a encarou.
— É provável que não. Mas leve assim mesmo.
Anne nunca sabia se Raphael estava brincando ou falando sério. No dia anterior, quando a beijou,
parecia muito bravo, mas uma boa noite de sono tinha mudado tudo isso.
—Anne! — Anthony estava à soleira da saleta particular de sua mãe.
Anne sentiu-se preocupada ao ir em sua direção. Melhor que Célia e Davina não estivessem lá
dentro ou teria de ouvir mais uma vez que não perdesse seu tempo com ele. Se aquele era o
problema, podiam ficar tranquilos: seu entusiasmo por Anthony tinha passado por completo.
—Venha cá, Anne. Quero conversar com você.
Não havia ninguém na sala. Mas isso não queria dizer que Célia não pudesse chegar a qualquer
momento.
— Minha mãe está lá em cima descansando — Anthony tratou de tranqúilizá-lâ, fechando a
porta atrás deles.
Nesse caso, ele tinha escolhido o melhor lugar. Ninguém além de Célia entrava ali, a menos que
fosse convidado.
— O que é, Anthony? — Anne estava inquieta. — Vou fazer as malas para a viagem.
— Então você vai mesmo com Raphael.
— E acompanhando Jéssica — completou com muito cuidado.
— Você vai com Raphael! — O tom acusador de sua voz provocou-lhe arrepios.
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— E você ficará aqui com Davina.
— Isso a incomoda, não é?
É claro que incomodava. Afinal, Anthony era um homem comprometido agindo como se fosse seu
dono, o que, além de ser inaceitável, era uma experiência muito estranha para alguém que sempre
fora dona do próprio nariz.
— Eu acho que você devia acertar sua vida, Anthony.
— Em que sentido?
— Em todos! Há poucos dias você me beijou, depois quis encontrar-se comigo no ancoradouro. E
não apareceu, porque sua noiva o requisitou. Com todo o direito, diga-se de passagem. Agora, me corrija
se eu estiver errada: esse compromisso, que você mesmo disse ser uma farsa, parece ter progredido
tanto que o casamento até foi adiantado. Não sei bem onde é que eu entro nisso tudo. — Seus olhos
ganharam uma tonalidade mais escura por causa da ira contida.
— Raphael tem razão. Você fica bem mais bonita quando está brava!
Indignada, Anne recuou quando Anthony avançou em sua direção.
— Raphael só disse que eu era uma ruiva autêntica. — Anne tinha ouvido muito bem, e a
palavra "bonita" nunca tinha sido usada.
— Seja o que for. — Anthony abriu um sorriso cheio de charme. — Eu acho que fica linda
quando está brava.
Anthony deu mais um passo à frente, ficando a poucos centímetros de Anne.
— Menos quando é comigo. Calma, Anne — acrescentou com a voz mansa ao perceber sua
resistência. — Nós já nos divertimos juntos, e você podia relaxar um pouco.
Divertir-se! Não, não era bem isso. Anne se sentira humilhada e depois culpada por ter beijado e
permitido que um homem comprometido a beijasse. E Anthony chamava isso de diversão!
— Até você se casar no Natal? — Ela o rejeitou, empurrando-o para longe.
— E depois também, se tudo der certo entre nós. Não vejo nenhuma razão para não
continuarmos. — Anthony apertava o braço dela enquanto Anne tentava se soltar.
Anne arregalou os olhos, a pulsação tão rápida que mal conseguia respirar.
— Pare com isso, Anthony!
— Só se você for boazinha.
Anne resistiu ao impulso de socar aquele rosto aristocrático. Anthony, que não podia avaliar o
grau de irritação em que ela se encontrava, sorria, cheio de alegria, certo de seu magnetismo
irresistível.
— Se eu for boazinha? — ela repetiu devagar, sentindo o ódio crescer dentro de si.
— Isso mesmo. Vou me casar, mas continuarei vindo aqui com frequência. E darei um jeito
para que Davina permaneça em Londres quando eu vier.
— É mesmo? — Anne não estava mais conseguindo se conter.
Anthony estava cavando um buraco fundo para si mesmo, e a qualquer momento teria muito
prazer de empurrá-lo para dentro dele.
— Eu seria sua amante? — As mãos dela estavam tão apertadas que as unhas se enfiavam
nas palmas.
— É um modo meio antigo de se dizer, mas... Sim, acho que é isso.
— Bem, é aí que você se engana. —Anne acabou perdendo o controle e empurrou-o para longe.
A expressão de surpresa no rosto de Anthony seria engraçada se ela sentisse alguma vontade de
rir.
E pensar que um dia chegara a pensar que Anthony estava interessado de verdade. Imaginava-
os juntos, apaixonados, e o tempo todo ele não pretendia ser melhor do que fora seu pai.
— Se eu fosse você, Anthony, não diria mais nada. A menos que tenha algum desejo pervertido
de levar o soco no nariz que tanto quero lhe dar! — Anne respirava, agitada, o peito pesado, os olhos
anuviados. — Não pretendo, jamais, ser sua amante, nem de nenhum outro homem!
Dito isso, Anne virou as costas e saiu batendo a porta. "Amante! Meu Deus, ele escolheu a
última pessoa que aceitaria tal estilo de vida!"
—Até que enfim — observou uma voz admirada.
Anne deu de frente com Raphael, com o rosto vermelho de ira, encostado na parede como se estivesse
ali havia muito tempo. Desde quando? Talvez não tivesse ouvido tudo...
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— Desculpe-me por ter escutado a discussão. — Raphael aproximou-se dela. — Eu estava
passando e por acaso ouvi a palavra "amante". Depois disso, não consegui mais sair. Mas foi uma
pena você não ter acertado Anthony como disse que queria fazer.
Anne não pensou, nem quis pensar, mas, sem se conter, deu um tapa no rosto dele com toda a
raiva que a impedia de chorar. Depois, empinou o queixo e foi embora.

CAPITULO VI

aphael não a seguiu.


Mnne não parou até chegar ao quarto, mas, a cada passo, esperava sentir a mão de Raphael em
seu braço para lhe dizer que não a queria mais cuidando de sua filha.
Mas isso não aconteceu. Ela ficou sentada na cama uns dez minutos esperando que ele entrasse
no quarto.
Isso também não aconteceu. E por que não?
Anne sabia que a única razão por ter agredido Raphael foi tê-lo encontrado no lugar errado, na
hora errada, e por isso descontara nele toda a ira que sentia por Anthony. E, para ser sincera, que
sentia também por si mesma, por ter sido tão estúpida, tão jovem e impressionávell
Talvez por isso tivesse agredido Raphael: porque ele estava certo!
Mas nada justificava o que fizera. Raphael não tinha culpa de conhecer tão bem o irmão, e não
era certo que toda a zanga tivesse sobrado para ele. A prova de sua reação, a marca vermelha no
rosto, ainda estava lá duas horas depois.
Sentada no banco do carro, Anne via claramente a marca de seus dedos no rosto do patrão.
Evitava olhar, mas espiava pelo canto do olho. Não conseguira dizer mais que umas poucas
palavras desde que Raphael guardara sua maleta no porta-malas e entraram no automóvel. Anne
preferia não estar ali e procurava não chamar a atenção para si além do necessário. Já era ruim o
bastante que...
—Desculpe-me, Anne.
Ela virou-se para Raphael e engoliu em seco. Nunca pensou que fosse capaz de ferir alguém, mas
a prova de que isso era possível estava bem ali a sua frente. E ele ainda lhe pedia desculpa. Por
quê, pelo amor de Deus?!
Raphael apertou de leve as mãos dela, cruzadas sobre os joelhos.
—Anthony é um canalha — Raphael disse entre os dentes, o olhar fixo na estrada.
Anne virou-se para trás, mas viu que Jéssica dormia.
— Ela não gosta de longas viagens. — Raphael viu pelo espelho retrovisor a filha deitada no
banco de trás e soltou as mãos de Anne. — Dormindo, elas ficam mais curtas.
Anne também gostaria de dormir para eliminar aquele dia de sua vida.
— Perdoe-me por ter agredido você, Raphael.
— Ei, estou tentando dizer que foi merecido!
— Não era nada com você. — Anne balançou a cabeça com firmeza.
— Acredite: não foi o primeiro tapa que levei por causa de Anthony.
— Mas de mim será o último. — Anne estremeceu ao se lembrar da cena.
Raphael passou a mão na face.
— Que direita você tem, srta. Fletcher!
— Por favor... — Anne tinha os olhos cheios de lágrimas.
— Estou muito envergonhada. Não posso acreditar que fiz isso. Você devia...
— Pare com isso, Anne! Você foi ofendida, e para livrar-se da ofensa...
— ...agredi você. — ela gemeu, escondendo o rosto entre as mãos. Parecia que a única coisa
que sabia fazer nos últimos tempos era chorar.
— Anne, não chore! Não suporto isso! Por causa de An thony?! Pare com isso! — ordenou,
pegando-a pelos braços.
Só então Anne se deu conta de que o carro estava parado. Olhou ao redor e viu que tinham parado
no acostamento. Num lugar proibido, a menos que fosse uma emergência.
—É uma emergência, Anne — Raphael falou como se Anne pensasse em voz alta.
Então, quando Raphael buscou, ansioso, por sua boca, ela não pensou em mais nada, apenas
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sentiu.
E que sensação! Jamais conhecera uma paixão tão ardente e um desejo tão intenso.
—Vocês estão aí, papai?
Foi como se Raphael e Anne tomassem um choque ao ouvir a voz de Jéssica no banco de trás.
Eles se separaram, e Anne sentiu uma vergonha ainda maior. Quando era beijada por aquele homem,
ficava sem a menor reação. Não podia imaginar que fosse assim!
— Papai, nós já chegamos? — Jéssica indagou outra vez.
Raphael virou-se para trás.
— Não, Jessy, ainda não.
. — Então por que paramos?
Raphael buscou a ajuda de Anne, mas ela não sabia o que dizer.
—É que... entrou alguma coisa no olho de Anne!
— Que desculpa absurda!
Anne permitira que Raphael a beijasse outra vez. Na noite anterior, fizera isso porque estava
bravo. E ela, muito triste. Agora, o fazia porque sentira pena dela. E Anne estava magoada. O fator
comum aos dois incidentes eram suas lágrimas. Então o melhor a fazer era parar de chorar. Pelo
menos na frente dele...
— Já melhorou? — Jéssica quis saber, ainda sonolenta.
Raphael olhou para Anne e repetiu:
— Já melhorou? O beijinho ajudou a passar?
Ela o reprovou com o olhar e virou-se para Jéssica.
— Estou bem melhor, obrigada. Está tudo certo.
— Droga! — Raphael murmurou, olhando pelo retrovisor.
Anne levou um susto.
— O que foi?
Ele balançou a cabeça e abriu a porta do carro.
—Olhe só os problemas que você me causa, moça! Parecementira que nos conhecemos há apenas
quarenta e oito horas.
Anne virou-se para trás e viu um policial se aproximando do Mercedes. O carro de polícia estava
estacionado logo atrás. Raphael parara em local proibido. Não ia ser fácil o oficial aceitar a desculpa
de um cisco no olho de Anne. Raphael tinha razão: ela só lhe criava problemas.
Jéssica sentou-se e olhou pelo vidro detrás.
—Meu pai fez alguma coisa errada? Ele vai ser preso?
Anne esperava que não, ou jamais saberia o final daquela história.
Os dois homens conversaram alguns minutos. O policial tirou um bloco do bolso e começou a
anotar. Estava multando Raphael. E por culpa sua. Daquela vez, ele iria se zangar de verdade.
Anne preparou-se para o que desse e viesse quando o viu afastar-se do guarda com um papel
na mão e uma expressão muito séria. Dessa vez não haveria beijos... nem que ela chorasse!
Raphael não disse nada quando entrou no Mercedes.
—Papai...
—Agora não, filha — Raphael olhou outra vez pelo espelho. —Vamos voltar para a estrada o mais
rápido possível.
— Ligou o motor e entrou na pista.
Anne não sabia o que dizer, nem se devia falar alguma coisa. Podia piorar tudo.
— Que sorte! — Raphael acabou rompendo o silêncio. Acomodou-se melhor no banco quando o
policial ficou para trás.
— Sorte? — Anne não entendeu. A última coisa que se podia imaginar é que fora bom tudo
aquilo.
— Ele me reconheceu e disse que gosta muito de meu trabalho. Apreciou, em especial, uma
matéria que escrevi no ano passado sobre o crime nos subúrbios. O irmão dele, que também é
policial, elogiou muito o artigo. Disse-me que guardou o jornal, mas a mulher dele usou para
acender a lareira. Pediu para lhe mandar uma cópia. Tenho o disquete no apartamento e farei o que
pediu quando chegarmos. O papel que Raphael trouxera não era a multa, mas o endereço do
guarda. Anne tinha imaginado todo tipo de problema: audiências, penalidades...
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—Essa é a vantagem de ser famoso, Raphael.
Ele lançou-lhe um rápido olhar.
—Eu não sou famoso, Anne.
—Mas seu trabalho é.
— Pode ser. Pelo menos nos livrou de uma multa pesada.
O homem riu quando eu disse que paramos porque tinha entrado alguma coisa em seu olho! —
Raphael apertou a mão dela de novo, dessa vez para celebrar, e voltou a segurar o volante.
— Posso dormir mais um pouco, papai?
Anne, então, retomou seu papel. Era a babá de Jéssica, seu dever era cuidar dela, e nada mais.
— Faça como quiser, filhinha. Ainda temos um longo caminho pela frente.
Jéssica deixou escapar um longo suspiro e voltou a deitar-se no banco.
Anne também suspirou. Nem tinham chegado a Londres, e ela já estava arrependida. Como
passaria alguns dias na casa daquele homem, mesmo Jéssica estando junto?
— Você está muito quieta, Anne — Raphael observou logo depois.
— Estou?
— É o que parece.
— Não sou de falar muito.
— Eu não disse isso. Quis dizer apenas... Que droga, mulher! Nunca sei se devo beijá-la ou
sacudi-la por me deixar tão perturbado!
— Da próxima vez, sugiro que me sacuda... é mais seguro para todos.
Raphael não esperava aquela resposta, e soltou uma gargalhada.
—Minha jovem, você não sabe o mal que faz a meu ego!
Mesmo sem querer, Anne não pôde deixar de rir. O mal-estar de minutos atrás desfez-se no ar.
—Não era nele que eu estava pensando, Raphael. O próximo policial pode não ser seu fã.
—É verdade. Mas não faça nada que me obrigue a parar o carro para beijar ou sacudir você!
Anne não sabia por que ele faria isso. Se falava, parecia dizer a coisa errada; se não falava,
também estava errada! O melhor era fazer o mesmo que Jéssica: dormir.
Anne fechou os olhos, simulou um tremendo cansaço e logo não estava mais fingindo, mas
dormindo como um anjo.
Já tinha escurecido quando chegaram a Londres e, acabando de acordar, Anne logo reconheceu
em que parte da cidade estavam. Não era um lugar muito conhecido. Ela apenas tinha passado por lá
poucas vezes.
Mas não foi surpresa quando Raphael entrou com o carro na garagem subterrânea de um elegante
edifício. Sendo dono da Casa do Penhasco e de uma grande área de terra ao redor, não era de
estranhar que tivesse um apartamento naquele lugar.
A segurança do condomínio também não a surpreendeu: um guarda no estacionamento, outro no
andar térreo, ao lado da escada. Ninguém impediu-lhes o acesso, sinal de que Raphael era mesmo
um dos ricos proprietários.
A casa não parecia fazer parte de todo o complexo, pois ficava no térreo, com jardim gradeado no
fundo. Era muito bem mobiliada, com móveis antigos e tapetes autênticos. Anne olhou em volta e
ocorreu-lhe uma única palavra: elegância. Muito diferente do apartamento que dividira com suas
amigas até pouco tempo atrás, que caberia inteiro só naquela sala.
— É alugado — Raphael informou-a, ao perceber sua reação. — Portanto, não é meu.
O aluguel de um lugar como aquele deveria custar o equivalente a um ano de seu salário.
— Ora, Anne! E a primeira vez que tenho de me desculpar pela casa que escolhi para morar!
Não era isso o que a incomodava, mas sim a localização do imóvel e quanto deveria custar, pois
deixava evidente a distância que havia entre ela e a família Diamond. Decerto, não pedia que ele se
desculpasse por isso.
— E muito bonito. — Anne fez aquele comentário para não aborrecê-lo ainda mais.
Os dois sabiam muito bem o que acontecia quando Raphael se zangava.
— E está bem-arrumado — Jéssica observou. — Pelo jeito, faz tempo que você não vem aqui, não é,
papai?
— Pelo menos três meses, filha. Cheguei aqui na quarta-feira, entreguei minha última matéria e fui
direto para a Casa do Penhasco.
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Teria sido por causa de Jéssica? Ou será que foi outro motivo o que o fez ir tão depressa para a mansão da
família?
Raphael a olhou de forma enigmática, como que respondendo a suas indagações.
— Mas mandei colocar algumas coisas na geladeira — Raphael explicou, rápido. — Tem chá
para mim e Anne, e suco de laranja para você, minha garotinha. — Acariciou a cabeça de Jéssica. —
Anne ficará no quarto ao lado do seu. Mostre a ela onde fica enquanto preparo as bebidas.
Anne gostou de ter alguns minutos a sós para se acostumar ao novo ambiente. Era óbvio que não
imaginava que o apartamento de Raphael fosse como o quarto da velha casa vitoriana que dois meses atrás
tinha sido seu lar. Afinal, ele era um Diamond, cuja família tinha muitas posses. Mas não esperava tanto.
Isso provava que o relacionamento deles não fora, desde o início, apenas profissional. Anne fizera Raphael
rir, conseguira irritá-lo e nas últimas vinte e quatro horas ele a beijara duas vezes. E quase a fizera
esquecer que eram patrão e empregada. Isso não poderia acontecer outra vez.
— E um quarto lindo, Jessy.
E era mesmo. As cores predominantes, o creme e o dourado, tornavam-no acolhedor e agradável. Mas isso
era o que menos importava. Iria ocupá-lo apenas por alguns dias.
—Fazia séculos que eu não vinha aqui, Anne.
Então aquela viagem a Londres não acontecia com frequência. Por que será que Raphael resolvera ir
daquela vez?
Anne sorriu.
—Talvez não tenha sido tão ruim torcer o tornozelo, Jessy — brincou.
Jéssica riu também, um sorriso muito parecido com o do pai. Pela primeira vez, Anne se
perguntou que idade teria Joana. Não havia nenhuma foto, nem no dormitório de Jéssica, nem em
nenhum lugar. No apartamento todo só havia um porta-retrato com uma foto da garota na sala de
estar. Mas de uma coisa Anne tinha certeza: Joana não devia ser ruiva, nem de baixa estatura.
Por que teria pensado nisso agora?
—Vamos tomar nossas bebidas — Jéssica lembrou. — Papai não é bom em assuntos de casa,
portanto, o chá deve estar um horror. Prepare-se!
Elas ainda riam quando entraram na cozinha.
—Posso saber qual foi a piada? — Raphael sentou-se para servir o chá.
Anne e Jéssica se entreolharam, balançaram a cabeça ao mesmo tempo e caíram na gargalhada
outra vez. Aquilo fez muito bem a Anne. Ria pouco ultimamente.
—Já vi tudo! Eu sou a piada! — Raphael entregou a Anne uma xícara de chá.
Aquela reação bastou para que as duas voltassem a rir, tanto que Anne nem conseguia pegar a
xícara sem tremer.
— Ah, bom, então o motivo da graça é o chá! Admito:
não está mesmo muito bonito...
— Foi isso o que eu disse a Anne — Jéssica revelou, por fim. — Por que acha que sempre
prefiro tomar suco?
— Sua danadinha! — Raphael fez um carinho no rosto da filha. — Será que Anne sabe fazer
melhor?
Ela arregalou os olhos.
— Não fui eu que falei mal de seus dotes culinários, Raphael!
— Não, mas está rindo junto com Jessy!
Anne não se animava muito a beber o que tinha diante de si, um líquido cor de lama nada
convidativo.
— Quantos saquinhos você pôs no bule?
— Gosto de chá forte — Raphael se defendeu.
— Eu também, mas... minha medida é sempre um para cada xícara e um para o bule.
— O bule é grande, Anne.
— Quantos saquinhos você pôs aqui? — ela insistiu.
— O suficiente.
— Papai...
— Tudo bem: foram seis!
Contendo a risada, Anne despejou o bule na pia e começou tudo outra vez.
33
— Vai querer chá, Jéssica? — perguntou, segurando mais um saquinho.
— Não se atreva a dizer que sim só porque não sou eu que vou fazer! — Raphael desafiou a
filha. — Vou esperar na sala.
Anne ficou olhando Raphael sair, com os lábios ainda curvados num sorriso.
— Será que fizemos alguma coisa errada, Jessy?
— Não. — A menina acomodou-se num banco. — Papai vai gostar de tomar um chá decente
para variar!
Anne não saberia dizer se ele gostou quando voltaram a se reunir na sala. Raphael bebeu o
conteúdo da xícara sem dizer uma palavra. Mas não era um silêncio que incomodava, e Anne admitiu
que não tinha sido-má ideia substituí-lo na cozinha. Formariam uma bela família...
Mas ela logo afastou aquele pensamento. Família era para outras pessoas, não para ela. Um dia
teria a sua, mas era preciso ter cuidado para não se apegar muito a Jéssica. Quanto ao pai dela...
Raphael conseguia fazê-la rir. E isso podia ser mais perigoso que um beijo.
Raphael não era do tipo que se casava. Amava a filha, era evidente, e devia ter outra mulher em
sua vida, apesar da profissão que escolhera fazê-lo levar uma vida nómade. E ele já sabia, pela
conversa que ouvira entre Anne e Ant-hony, que não admitia ser amante de ninguém.
Mas por que estaria pensando nisso? Raphael apenas a beijara duas vezes, e nunca lhe declarara
seu amor. Na verdade, não dissera absolutamente nada!
— Muito bom — Raphael deixou a xícara vazia sobre a mesa.
— Papai! — Jéssica reprovou-o mais uma vez.
— Eu disse que estava bom, não disse? Você também sabe cozinhar, Anne?
— Tomara que sim — Jéssica implorou.
Anne não tinha pensado nisso. Fazia dois meses que não precisava se preocupar com as refeições
na Casa do Penhasco. Mas estava no apartamento de um homem sozinho, onde não existiam todas
aquelas facilidades.
— Sei fazer o trivial — tratou de explicar para que não a tomassem como uma cozinheira de
forno e fogão.
— Papai não sabe nem esquentar um ovo.
— Sei, sim! — ele protestou, mas sem esconder um sorriso.
— Sabe nada, pai. Lembra-se daquela vez...
— Está bem. — Raphael ergueu a mão. — Não sei mesmo cozinhar.
— Papai esqueceu de pôr água na panela — Jéssica cochichou para Anne, mas alto o bastante
para que Raphael ouvisse. — Você sabia que o ovo explode?
— Não, Jéssica, e nunca pensei muito nisso. — Anne resolveu mudar de assunto antes que
Raphael perdesse a paciência. — Agora sei por que me trouxeram junto! — Fingiu indignação.
— Ninguém está querendo arriscar-se a morrer de fome!
— Ela está nos provocando, Jessy. — Raphael piscou um olho para a filha.
— Não é muito difícil. — Anne aceitou a brincadeira. — O que temos para jantar?
Anne arqueou as sobrancelhas, certa de que Raphael havia providenciado alguma coisa.
— Bife — ele informou no mesmo instante. — Jéssica pode preparar a salada.
— De acordo, pai! Da última vez, encontrei uma lesma nas folhas.
— Vou deixar o jantar com vocês. — Raphael levantou-se, decidido. — Preciso dar alguns
telefonemas. Estarei em meu estúdio, a primeira porta à direita. Chamem-me quando estiver
pronto.
Anne virou-se para Jéssica com um sorriso nos lábios.
— Acho que ele ficou bravo conosco!
— Não ficou, não. Está é feliz por ter se livrado do trabalho.
Anne preparou a carne, Jéssica concentrou-se na salada, e, em meia hora, a mesa da cozinha
estava posta.
— Vou chamar papai — Jéssica se prontificou, ansiosa para mostrar-lhe o resultado de seu
trabalho.
— Deixe que eu vou, querida. Você não pode ficar andando muito com este tornozelo engessado.
— Então vou acender as velas.
— Espere eu voltar com seu pai para fazer isso.
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As velas tinham sido ideia de Jéssica, bem como as duas taças de vinho nos lugares de Anne e de
Raphael. A menina sabia que seu pai bebia vinho às refeições. Anne não tinha certeza, mas achou boa
ideia, embora seu limite fosse apenas o de um copo.
Do corredor podia ouvir Raphael falando ao telefone, por isso Anne hesitou em bater. Mas o jantar
podia esfriar...
O movimento de sua mão parou a meio caminho quando ouviu-o dizer do lado de dentro:
—Peça a Margaret para me ligar assim que ela chegar. Preciso muito falar com ela.
Margaret? Anne tinha ouvido esse nome fazia pouco: a pessoa a quem substituíra. Raphael
mantinha contato com ela. E disse que precisavam conversar... Por quê? Tudo bem que ela tivesse
abandonado o emprego, mas...
—Sim, recebi a carta — Raphael ainda falava ao telefone. Mesmo assim preciso falar com ela.
Margaret tinha escrito para ele! O que haveria entre os dois? Então, Anthony não era o único da
família que se relacionava com as empregadas...

CAPITULO VII

— Você não falou nada durante todo o jantar, Arme — Raphael falou, quando os dois já estavam na
sala e Jéssica já tinha ido dormir.
Para Anne, a surpresa maior era ter conseguido comer. Quanto ao seu limite de tolerância para
vinho... Bem, ela aceitou a segunda taça oferecida por Raphael, na esperança de conseguir pôr
ordem em seus pensamentos.
Raphael e Margaret...
Como as coisas se encaixavam agora! A reação de Raphael fora muito clara ao saber que Margaret
não estava mais na Casa do Penhasco: saíra perguntando a cada úm por que razão ela teria ido
embora de maneira tão inesperada. E não pensou duas vezes em viajar a Londres para tentar
conversar com ela pessoalmente.
Diante disso, o mais provável era que tivesse partido de Margaret a decisão de pôr fim ao
relacionamento. Fosse ou não verdade, o fato era que Raphael estava desesperado para vê-la.
Anne não abrira a boca durante o jantar, mas a cabeça não parou de funcionar. Não tinha se
apaixonado pelo homem errado apenas uma vez, mas duas, num pequeno espaço de tempo. Como
alguém podia ser tão ingénuo? Não fora difícil reconhecer que Anthony tinha sido um terrível engano
de sua parte, mas Raphael... Ah, Raphael era outra história! Parecia-lhe tão sincero, tão confiável...
pelo menos, até pouco tempo atrás.
Anne percebeu que estava apaixonada por ele quando se viu tão desorientada diante da porta de
seu estúdio.
Gostava de estar com ele, sentia-se bem a seu lado, mas, ao mesmo tempo, muito insegura. O
mais importante era que ele conseguia fazê-la rir.
Só que agora não estava rindo mais, assim como não rira durante o jantar. Era como se as
brincadeiras e as provocações anteriores nunca tivessem acontecido. A refeição tinha sido apenas
uma atividade de rotina.
Mas Anne conseguira controlar-se até o fim, aceitara com um'sorriso sem graça os cumprimentos
pela comida e levara Jéssica para a cama enquanto Raphael tirava a mesa.
Agora, o que Anne mais queria era lamber as próprias feridas na privacidade de seu quarto. No
entanto, estava mesmo sentindo-se machucada, magoadíssima por ter se enganado tanto em relação
a Raphael.
— Anne? — Raphael estranhou o fato de ela não ter respondido nada.
Anne ergueu-se de um salto, com as mãos cruzadas, para disfarçar o tremor.
— Estou muito cansada, Raphael. Se não se importa, pretendo ir me deitar.
Sem conseguir encará-lo, Anne fixou um ponto qualquer sobre o ombro de Raphael, que estava
sentado na poltrona.
— Você nem tocou em seu licor. '
Claro que não. Mais uma gota de álcool e o pior aconteceria a qualquer momento.
Raphael e Margaret teriam ficado conversando naquela sala, mesmo com Jéssica presente?
Também teria lhe oferecido licor e pedido a ela que se sentasse a seu lado? Será que fora assim que
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tudo começara? Será que eles dois...
— Anne, você está bem? — Raphael levantou-se, deixando o cálice sobre a mesinha. — Minutos
atrás, parecia ótima, agora está tão pálida!
Minutos atrás estivera corada por causa do vinho que ingerira. Agora estava branca porque ia
vomitar.
No mesmo instante, Anne virou-se e saiu correndo da sala. Conseguiu chegar ao banheiro a tempo de
devolver toda a comida que tinha se forçado a engolir pouco tempo atrás. Seus olhos se encheram de
lágrimas com o ataque inesperado.
Raphael entrou atrás dela.
— Você não está bem mesmo. — Ele pressionou uma toalha molhada na testa dela.
A presença dele no banheiro fazia-a sentir-se ainda pior. Sua vontade era de morrer, deitar-se ali
mesmo e...
— Venha, Anne, vou ajudá-la a ir para o quarto. — Raphael ainda segurava a toalha em sua
fronte.
Anne endireitou-se, tentando se recompor.
— Não, Raphael. Já estou bem, obrigada. — Afastou a mão dele, aliviada por não mais tremer
tanto. — Sou péssima para viagens. Foi isso o que me fez mal.
— Você enjoa quando viaja de carro?
"Digamos que enjoo mais com emoções fortes", ela pensou.
— Mais ou menos isso — Anne concordou, louca para ficar sozinha.
-— Primeiro, o cavalo, depois, o carro... Você não anda com muita sorte, não é?
"Sobretudo no que diz respeito a homens." Além do quê, toda aquela conversa estava acontecendo
dentro do banheiro!
— Pois é, Raphael... — Anne passou por ele para sair dali.
Raphael acompanhou-a pelo corredor.
— Lembra onde é seu quarto? Ou será que também tem problemas geográficos?
Anne sentiu que ele estava rindo dela, embora sua expressão enigmática não demonstrasse isso.
— Não, Raphael, só tenho problemas com cavalos e automóveis. Amanhã estarei me sentindo
melhor. — Isso Anne podia garantir. O que precisava agora era ter uma boa conversa consigo mesma. E
era o que ia fazer. — Se me der licença...
— Anne?
Ela virou-se, relutando em olhar para ele.
— Sim?
Raphael estava muito bonito ali parado, ainda usando a camisa preta e a calça azul da viagem.
Nem se preocupara em trocar de roupa antes de comer, depois de dar aquele telefonema para
Margaret...
Ele abriu um sorriso muito perigoso.
— Boa noite, Anne.
— Boa noite. — Anne fechou-se no quarto antes que ele a detivesse por mais tempo.
Antes de se deitar, foi ver como estava Jéssica e encontrou-a dormindo como um anjo, os lábios
curvados num meio sorriso. O sono dos inocentes.
Anne sentia-se da mesma forma: uma ingénua. Devia ter percebido que Raphael tivera uma
reação exagerada quando soubera que Margaret, uma simples babá, tinha resolvido ir embora. Até
Anthony, que só olhava para si mesmo, notara sua reação.
Raphael e Margaret, a desconhecida.
Bem, não era surpresa nenhuma que Raphael, um homem viúvo, se envolvesse com outras
mulheres. Era um homem muito másculo para ser diferente. Mas jamais passara pela cabeça de Anne
que uma delas fosse a antiga babá de Jéssica. E, pelo fato de Raphael procurá-la, aquela história
estava longe de terminar.
As risadas, as brincadeiras e os beijos que eles haviam trocado não tiveram importância. Não para
Raphael, pelo menos.
Quanto a ela mesma, o que mais queria agora é que ele viajasse o quanto antes. Não estando por
perto, fazendo-a lembrar o tempo todo o que sentia, acabaria superando a decepção.
Isso era o que Anne gostaria que acontecesse, mas não estava muito certa de vir a conseguir. A
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partir de então, faria o possível para que a relação entre eles se mantivesse no nível estritamente
profissional.
Anne adormeceu ao tomar aquela decisão. Não com a mesma inocência de Jéssica, que tinha a
consciência tranquila, mas vencida pelo cansaço.
Só que dormiu mais do que devia.
O radiorrelógio estava marcando nove e quinze da manhã. Havia anos não dormia até tão tarde. O que
Raphael iria pensar?
Anne vestiu-se depressa. Sem tempo de maquiar-se, deu apenas uma boa escovada nos cabelos.
Tinha de correr para a cozinha. Jéssica devia estar com fome, e Raphael também.
Mas só encontrou um bilhete preso à porta da geladeira:
"Estou com Anne no parque. Tome seu desjejum sossegada. Espero que tenha dormido bem.
Raphael".
Anne jogou-se numa cadeira. De que servira tanta pressa, se Jéssica tinha saído com o pai? Mas
algo lhe dizia que a última frase do bilhete era sincera, não ocultava nenhum sarcasmo.
Picou olhando para o papel. Era a primeira vez que via a letra de Raphael: grande, forte, com o
R bem desenhado.
O apartamento ficava vazio sem ele. E sem Jéssica, é claro. Mas era de Raphael que Anne estava
sentindo falta. Ele saíra havia poucas horas e já estava saudosa. E dizer que na noite anterior tinha
pensado que, quanto antes Raphael fosse embora, melhor...
Anne gemeu, cobrindo o rosto com as mãos. Estava perdidamente apaixonada por aquele homem.
Em nada se comparava ao que sentira por Anthony. E Raphael estava tão distante de sua vida
quanto Anthony, e também tinha outra mulher.
Anne levou um susto quando o telefone da cozinha tocou. Olhou para o aparelho: devia atender ou
não? Se fosse alguém procurando pelo dono da casa, ele não estava. Mas podia ser uma emergência.
Ou mesmo o próprio Raphael, para dizer que tinha acontecido alguma coisa a Anne.
Era preciso atender.
— Residência de Raphael Diamond.
Fez-se silêncio do outro lado, e enfim uma voz doce perguntou:
— Posso falar com Raphael, por favor? — O sotaque era irlandês, a voz, um pouco rouca, mas
sem dúvida nenhuma feminina.
Anne ficou nervosa. Raphael parecia ser tão tranquilo, tão seguro... Como conseguia ser assim
tendo tantas mulheres em sua vida? E se todas elas resolvessem procurá-lo ao mesmo tempo?
— No momento ele não está — Anne respondeu de forma evasiva, um pouco incomodada com
aquela conversa. —Xevou Jéssica ao parque.
De repente ficou em dúvida se devia ou não ter mencionado a menina. Por morar sozinho, talvez
muita gente nem soubesse que tinha uma filha.
—Como Jéssica está? — a voz suavizou-se ao perguntar da garota.
Ela conhecia Jéssica!
—Muito bem — Anne respondeu, ríspida, sentindo um tom um tanto possessivo na própria voz. Mas o
que podia fazer se Jéssica e Raphael tinham se tornado tão importantes para ela?
—Que bom! Você é a empregada?
—Não, não sou. Quer deixar recado?
—Se não se importa...
Anne suspirou.
—Não me importo.
—Diga a Raphael que Margaret ligou. E que ficarei esperando que ele me ligue quando voltar.
Anne quase não ouviu a última parte do recado. O nome Margaret foi a única coisa que conseguiu registrar: a
ex-babá de Jéssica, a mulher com quem ele queria tanto falar na noite anterior.
—Eu direi a Raphael.
—Obrigada. E dê um beijo em Jéssica por mim. Diga que a amo muito. — E desligou.
Anne tornou a sentar-se. Não queria dar aquele recado a Raphael. E também não queria dizer a Jéssica
que Margaret a amava.
Que coisa mais ridícula! Se não avisasse Raphael, e ele não ligasse de volta, Margaret telefonaria outra
vez. Anne sentiu-se uma tola por pensar assim. Mas não sabia se conseguiria dar o aviso sem emocionar-se
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outra vez.
E se escrevesse num papel, o mesmo em que Raphael rabiscara e ainda estava sobre a mesa?
Anne reconhecia sua covardia, mas o que fazer, agora que conhecia seus sentimentos por Raphael?
Dizer-lhe que outra mulher o procurara? Isso seria ferir a si mesma em demasia. Por fim, decidiu-se
por escrever um bilhete, e foi lavar a louça da noite anterior, que ainda estava sobre a pia.
Quando já estava guardando os pratos no armário, ouviu Raphael abrir a porta.
— Já se levantou, Anne? — Ficou surpreso por encontrá-la na cozinha.
— São mais de dez horas. Desculpe-me por ter dormido tanto. — Tirou o casaco de Jéssica.
— Isso quase nunca acontece. Não me lembro da última vez em que...
— Não estou dizendo nada — Raphael interrompeu-a com delicadeza. — Só fiz um
comentário. Estava ótimo no parque, não é, filha?
"Sem minha presença..."
Anne começou a sentir-se dispensável. E tinha de confessar que isso a entristecia. Amava aquele
homem e sua filha, e um dia teria de deixá-los. Talvez antes do que imaginava, se Raphael quisesse
mesmo ficar com Margaret.
— Foi muito divertido! — Jéssica assentiu, o rosto ver melho de tanto brincar.
— Vocês devem estar com frio. — Anne, de repente, se sentiu pouco à vontade na presença de
Raphael. — Querem beber alguma coisa quente? Prometo pôr apenas três saquinhos de chá no
bule.,
Raphael sentou-se ao lado de Jéssica.
Anne achou que estava imaginando coisas, como se a frase "eu amo Raphael Diamond" estivesse
escrita em sua testa. Não era possível que ele pudesse ler seu coração. E só dependeria dela que
Raphael não soubesse jamais.
— Eu não quero chá. Vou arrumar os quartos enquanto vocês o tomam. — Anne se lembrou de
que saíra do quarto com tanta pressa que nem tinha arrumado a cama.
Raphael ainda a fitava.
— A cama pode esperar. Além disso, Jéssica e eu já arrumamos as nossas. Sente-se e tome chá
conosco.
Não era possível. Aquele homem tinha mesmo o dom da telepatia.
— Preciso arrumar meu quarto. — Anne não conseguia encarar Raphael. — A bebida está
pronta.
— Não queremos ter gémeos, não é, Anne?
— Gémeos?
— Quem faz o chá deve servi-lo, caso contrário uma das duas pessoas terá filhos gémeos. E
uma velha crendice.
— Eu acho que isso é uma desculpa para não servir, Raphael.
— Eu também — Jéssica concordou. — Nunca ouvi esse ditado.
Raphael abriu um sorriso irresistível.
— Então vou ter de servi-lo?
— Parece que sim, Raphael. Ah, a propósito! Ligaram para você. Anotei naquele papel.
— É mesmo? — Raphael leu a mensagem, tão depressa que Anne nem teve tempo de sair. —
Quando foi que Margaret ligou?
— Meia hora atrás.
— Droga! — Amassou a folha. — Vou precisar sair. Vocês duas ficarão bem, sozinhas aqui? — Era
mais uma afirmação do que uma pergunta.
"Raphael vai encontrar-se com Margaret", Anne pensou. Não ia retornar o telefonema, mas encontrá-
la pessoalmente.
— Tem comida na geladeira para o almoço, Anne.
— Nós nos arranjaremos, fique sossegado.
Raphael notou a frieza da resposta.
— O que foi que ela disse?
— O que está escrito aí.
Anne não mencionou, como ele também não, de quem era o recado. Talvez para não dizer o
nome dela na frente de Jéssica. Sem entender por que, Anne supôs que Jéssica faria perguntas sobre
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a ex-babá que Raphael não iria quer responder, e nem caberia a ela revelar de quem se tratava a
ligação. Sentia que não gostava de Margaret sem nunca ao menos tê-la visto.
Raphael assentiu.
— Arrume seu quarto e faça o que tem de fazer enquanto bebemos o chá, Anne. Depois eu vou
sair.
"Ele está ansioso para encontrá-la!", pensou. Anne sentou-se na cama debatendo-se contra o
ciúme que a assombrava pela primeira vez na vida. Não fora isso o que sentira quando soubera que
Davina era a noiva de Anthony. Tinha sido mais uma decepção consigo mesma por ter se envolvido
com um homem comprometido, mas cujas intenções só conheceu quando ele pediu-lhe para ser sua
amante. Agora era de Davina que Anne sentia pena.
Margaret era outra história. Fora tão gentil ao telefone que seria muito difícil não gostar dela.
Mas a raiva que sentia era tanta que até a impedia de respirar.
Mas não poderia ficar escondida naquele quarto o dia todo. Precisava voltar à cozinha e cuidar de
Jéssica enquanto Raphael estava fora. Com Margaret.
Anne escondeu o rosto entre as mãos e começou a chorar. Por que amar era tão doloroso? Prazer e
sofrimento. Era a primeira vez que sentia ambas as emoções ao mesmo tempo. Raphael a fazia rir e
sofrer por amá-lo tanto e não ser correspondida. Isso era intolerável!
O que devia fazer?
O que iria fazer, isso sim. Não queria afastar-se de Jéssica. E, para ser sincera consigo mesma,
também não queria abandonar Raphael, ainda que ele não correspondesse a seu amor. Mas se
Margaret voltasse para eles, saberia cuidar bem de Jéssica, e Anne não teria escolha. Mas enquanto
isso não acontecia...
— Anne? — Raphael bateu na porta.
Ela secou as lágrimas antes de abrir.
— Sim? Já vai sair?
— Vou trocar de roupa, antes. Você melhorou depois de ontem à noite? Estou achando que não.
— Muito obrigada! Você sabe como elogiar uma mulher!
— Anne queria comportar-se com naturalidade, e a melhor maneira era entrar na brincadeira.
Margaret ainda não voltara para a vida dele, e enquanto isso... Vale tudo na guerra e no amor,
não é?
— Espero saber mesmo. — Raphael abriu aquele sorriso estonteante, e Anne sentiu o rosto
corar.
— Vá tranquilo. Jéssica e eu ficaremos bem.
— Não vou demorar.
Anne não deixou que Jéssica percebesse sua angústia quando as duas resolveram fazer bolinhos
para passar o tempo. Mas, no fundo, não parou de pensar em Raphael um instante sequer.
Faltava metade dos ingredientes, e o resultado final dos bolinhos nada tinha de apetitoso.
Porém, serviu para as duas se divertirem bastante, e isso era o que interessava.
— Agora vamos provar, Jessy.
— Vamos lá. — A menina riu, olhando para o bolos chatos e meio queimados. — Você primeiro!
— Você é mais nova. — Anne torceu o nariz.
— Um motivo a mais para que experimente primeiro. Ainda tenho muito o que viver.
Anne olhou para Jéssica, para os bolinhos, e de novo para a garota.
— Já sei, Jessy! Vamos dar a seu pai quando ele chegar.
— Que maldade! — Jéssica gargalhou, mas não descartou a ideia.
Talvez fosse mesmo. Mas, para ser sincera, não se podia dizer que Anne estava tendo bons
sentimentos em relação a Raphael naquele momento.
Ela virou-se ao ouvir a porta se fechar. Quem poderia ser, se Raphael tinha saído havia -menos
de uma hora?
Mas foi ele mesmo quem entrou na cozinha, com o rosto atormentado.
— Vocês, mulheres! — resmungou, jogando o casaco sobre uma cadeira. — Só se pode entendê-
las quando estão dormindo! E, mesmo assim, não é fácil. Vou para o estúdio telefonar. — E saiu
sem olhar para trás.
— O que foi que deu nele? — Jéssica perguntou. — Nunca vi meu pai assim.
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Anne até podia adivinhar. Raphael se encontrara com Margaret e, óbvio; aquele encontro o
perturbara. Pelo jeito, dera tudo errado.
Anne não pôde evitar de sentir um secreto prazer por isso.

CAPITULO VIII

— Não é hora de oferecermos os bolinhos. Papai não está para brincadeiras. — Jéssica jogou os
doces no triturador da pia.
Estranho, mas o mau humor de Raphael trouxe de volta a alegria de Anne. Não sabia o que tinha
acontecido entre ele e Margaret, mas, pelo jeito, não dera nada certo. Bem feito! Anne, ao menos,
estava sentindo-se muito bem.
Mesmo que fosse maldade de sua parte, nada podia fazer contra isso. Não queria que Raphael e
Margaret reatassem. Se amava Raphael, como poderia desejar que fosse diferente?
— Vamos começar a fazer o almoço, então, Jéssica. Acho que seu pai vai querer comer conosco.
Se Raphael estava ou não sentindo fome, era outra história.
Como Raphael não apareceu na cozinha até meio-dia e meia, Anne resolveu ir buscá-lo.
Ele ainda estava no estúdio. Anne bateu na porta e encontrou-o sentado atrás da escrivaninha
com os pés sobre a mesa.
— Está confortável?
— Mais ou menos. — No mesmo instante, Raphael mudou de posição, apoiando os cotovelos nos
braços da poltrona de couro, as mãos cruzadas sob o queixo, olhando Anne por cima delas.
— O almoço está pronto.
— Não estou com muito apetite. — Raphael não demonstrava nenhuma intenção de se levantar.
Anne também permaneceu onde estava.
— Jéssica disse que é seu prato preferido.
Ele sorriu.
—É mesmo? E o que é?
— Omelete com bacon e muita torrada. — Não era do que Anne mais gostava, mas Jéssica
insistira em dizer que era o favorito do pai.
— É meu predileto, sim. — Raphael endireitou-se na cadeira, parecendo um pouco mais
bem-humorado. Ao se levantar, o mau humor tinha se dissipado por completo. — Jéssica vai dar
uma ótima esposa quando crescer. — Seguiu atrás de Anne até a cozinha.
Ela virou-se ao ouvi-lo rir.
— Qual é a graça, Raphael?
— A sua expressão quando eu disse aquilo sobre Jessy. Vamos, diga-me o que foi que eu não
devia ter dito.
Anne reprovou-o com o olhar.
— Não gostei do que ouvi.
— Então, consegui.
— Está bem, Raphael. Achei um comentário chauvinista. Surpreende-me que só espere isso sua
filha.
— Que resposta! Por acaso não acha que, para a mulher, basta úm bom casamento?
—E isso basta para um homem?-
Raphael parou antes à soleira.
— Se não entrarmos agora, vamos estragar o almoço de Jéssica. Mas quero continuar essa
conversa depois. Não pense que estou me esquivando de sua pergunta, Anne. É que esse
assunto é muito amplo para se responder em um minuto.
Anne já estava arrependia por tê-lo desafiado. Não porque não acreditasse no que tinha dito, mas
porque já sabia que Raphael, quando punha uma coisa na cabeça, não desistia com facilidade. Em
nenhum momento achou que ele estivesse evitando responder. Aquilo era pura provocação da parte
dele. Como não tinha se entendido com Margaret, estava descontando no primeiro que aparecia, ou
seja: nela.
Mesmo sem fome, Raphael fez justiça à omelete e às torradas, repetindo duas vezes. Com um
espírito muito mais leve, fez muitas brincadeiras com as duas, mas não bastou para Anne sentir-se
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relaxada, pois sabia que logo depois estariam conversando.
— Estava ótimo. — Raphael encostou-se, satisfeito, no espaldar da cadeira. — O que mais pode
querer um homem, além de duas mulheres para servi-lo?
Outra provocação, mas Anne não ia cair na armadilha.
— O café. — Anne sorriu com doçura, colocando o bule fumegante ao lado dele.
Raphaelpercebeu que, no fundo, Anne estava louca da vida.
— Obrigado, Anne.
— Sabe de uma coisa, Raphael? — Anne continuou sorrindo, enquanto servia Jéssica. Depois,
voltou a sentar-se.
— Você é terrível.
Raphael ficou olhando assustado para ela, então começou a gargalhar, uma risada sincera. Só que
daquela vez não era dela que estava rindo, mas do que acabara de ouvir.
— Tem toda a razão, Anne. Sou mesmo. Mas é você quem tem o dom de me provocar. Por que será
que isso acontece?
Raphael a olhava de,uma forma sedutora, um jeito perigoso que fazia Anne preferir sua raiva,
muito mais segura para sua paz de espírito.
— O que vamos fazer à tarde?
Anne demorou para registrar a questão de Jéssica e perceber que era se dirigia a ela. Estava tão
hipnotizada por aquele olhar que não conseguiu responder.
— O que vocês gostariam de fazer? — Raphael se adiantou.
— Bem, a julgar pela nossa geladeira, acho que devemos fazer compras — Jéssica falou, sem
titubear.
— Vão vocês duas. — Raphael ergueu-se, pegou dinheiro no bolso e deixou-o sobre o balcão.
— Preciso trabalhar. Peguem um táxi e não tragam muita coisa. Só vamos ficar aqui dois dias. Não
se preocupem com o jantar. Jéssica está louca para ir comer sua pizza preferida, não é, filha?
— Obrigada, papai! — Feliz, a menina esperou que ele se retirasse. — Não se preocupe, Anne.
Não sei o que está acontecendo entre vocês dois, mas não gostei do jeito como papai falou com você.
Eu sabia que ele daria um jeito de não fazer compras conosco. Tem razão, Anne. Meu pai é muito
mal-humorado!
Jéssica era uma menina astuta. Raphael não tinha sido indelicado, mas decerto fizera outra
provocação. E por ser a única pessoa adulta presente, Anne foi o alvo. Se Jéssica não estivesse
presente, ela até aceitaria o desafio.
Anne achou graça e sentiu a tensão dissipar-se.
— Vamos fazer essas compras, mocinha.
Jéssica levantou-se com facilidade e nem se lembrou do tornozelo.
— Podemos comprar ingredientes para fazer uma coisa bem picante amanhã. Quem sabe
assim papai melhore o humor?
— Você não devia dizer isso — Anne reprovou-a, mas, no fundo, teve de concordar.
Raphael não estava mais com aquele ar beligerante quando saíram para comer a pizza à noite. Na
verdade, ele mal falou, como se nem estivesse presente. Anne não sabia o que era pior: um Raphael
provocativo ou quase mudo.
— Primeiro, mal-humorado; depois, não conversa — Jéssica comentou com Anne na hora de
dormir. — Nunca vi meu pai assim.
Anne deu de ombros como se isso não fizesse muita diferença, embora tivesse de confessar que
Raphael conseguira criar um mal-estar geral.
— Ele deve estar com algum problema...
Margaret estava presente mais uma vez. Mas Anne não queria dizer isso a Jéssica.
Foi até bom que Raphael não tivesse querido conversar sobre Margaret. No estado em que
estava, teria sido muito penoso para Anne ouvir suas preocupações sobre outra mulher.
— Espero que ele não viaje outra vez. —Jéssica sentou-se na cama com os braços em volta dos
joelhos.
Anne sentiu o estômago revirar só de pensar nessa possibilidade. Raphael viajando de novo... A
última o mantivera longe de casa por três meses.
A ideia de não vê-lo durante tanto tempo fazia-lhe mal. Era impossível não tê-lo por perto,
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mesmo que a provocasse tanto.
Era impressionante como seus sentimentos em relação a ele tinham mudado em tão pouco tempo.
Primeiro, pensou que estivesse apaixonada por Anthony. Mas era impossível comparar a emoção fraca
e insípida que nutrira por Anthony com o que sentia agora por Raphael. No dia anterior, Anne não
vira a hora de viajar para ficar longe de Anthony, ao passo que se sentia péssima só de pensar que
Raphael poderia viajar.
— Você acha que ele vai? — Anne perguntou ansiosa para Jéssica, sentindo os lábios rígidos.
A menina ergueu os ombros.
—Não sei. Quando papai resolve, viaja e pronto.
Então era por isso que Raphael trouxera Anne naquele fim de semana. Não poderia abandonar
Jéssica sozinha em Londres se tivesse de se ausentar de repente. Anne sentiu o coração ainda mais
pesado com essa constatação.
Anne acariciou os cabelos de Jéssica e acomodou a menina nos travesseiros.
— Bem, não vamos nos preocupar com uma coisa que ainda não aconteceu, querida. Devemos
aproveitar o tempo em que Raphael está conosco. — Era isso o que ela pretendia fazer. — Durma bem.
Raphael estava sentado na sala, olhando distraído para um copo de uísque em sua mão, quando
Anne voltou do quarto. Ele não parecia disposto a nada.
— Jéssica está preocupada com você — Anne falou com franqueza, parada à soleira.
Ele voltou-se para ela.
— É mesmo?
— Está. — Anne entrou na sala. — Está achando que vai viajar outra vez.
— Não vou, não.
— Eu não disse que ia... — Sentiu um súbito alívio ao ouvir a resposta. — Só disse que
Jéssica acha que vai.
Raphael ficou irritado.
— E por quê?
— Não tenho ideia. Pergunte a Jéssica.
— Por que fica rodeando em vez de me dizer que devo tranquilizar minha filha?
Era óbvio que Raphael não era do tipo que gostava de se sentir manipulado.
— Não estou fazendo rodeio, Raphael. Apenas lhe contei o que sua filha me disse.
— Está bem! — Impaciente, deixou o copo sobre a mesinha de apoio antes de se levantar. —
Eu vou. Deus me livre das mulheres sensatas.
Anne não duvidava por nenhum momento que estivesse querendo descontar nela alguma coisa. E,
se Raphael continuasse com provocação, ia ter o que estava querendo.
—Que tal uma partida de xadrez? — Anne convidou-o com um sorriso, quando ele voltou para a
sala.
As peças já estavam no tabuleiro, a um canto. Anne aproximou a mesa e colocou-a entre as duas
poltronas.
Se Raphaeí queria briga, aquela era a maneira mais segura de atendê-lo. Além disso, ficaria
concentrado no jogo, e não remoendo seus pensamentos.
— A menos que tenha outro compromisso... — ela acrescentou, pensando melhor. Mas uma
coisa era certa: com Margaret ele não iria se encontrar.
— Não é nada que não possa esperar. — Sentou-se na frente dela. — Você joga bem?
— Joguei apenas algumas vezes.
— Otimo! — Mais uma resposta beligerante. — Então, comece.
Anne sentiu a raiva tingir suas faces.
— Costuma-se atirar-se uma moeda para o alto para ver quem é o primeiro.
Ele abriu a boca para dar uma resposta, mas alguma coisa o fez desistir.
— Estou com um humor terrível, não estou, Anne?
— Está.
Ele riu, o olhar tornando-se mais suave.
— Ao menos você é sincera!
Anne retrucou, desafiando-o:
—Por ser mulher?
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— Meu Deus, fui muito grosseiro o dia todo, tenho de admitir. Basta pedir desculpas, ou devo
me ajoelhar e implorar por seu perdão?
Anne não pôde evitar um sorriso ao vê-lo tão arrependido.
— Por que não jogamos primeiro? Depois, se ainda tiver vontade de se desculpar...
— Nossa, você é tão boa assim?
Anne não respondeu. Não era nenhuma campeã, e não jogava havia muito tempo. Mas iria vencê-
lo naquela partida a qualquer custo.
Primeiro, ganhou ao atirar a moeda para cima. Então, começaram.
Na meia hora que se seguiu, não disseram mais nada, ambos concentrados nos movimentos das
peças. O resultado foi um empate.
— Você joga bem, Anne.
— Obrigada.
Raphael recostou-se na poltrona e fixou os olhos nos dela.
— Desculpe-me pela maneira como me comportei o dia todo. E que... sabe, Anne, você é
mulher... Eu disse alguma coisa engraçada? — Raphael franziu as sobrancelhas ela esboçou um
sorriso.
— De maneira alguma!
— E que hoje você foi alvo de todos os insultos que se pode dirigir a moça.
— Nem todos — brincou. Havia mais alguns que ele não havia mencionado.
— Pelo menos todos que são relevantes a meu problema. Diga-me, por que uma mulher quer
falar com você ao telefone, mas não pessoalmente?
"Ah, então Margaret não quis recebê-lo! E depois disso, ficou rosnando como um leão
enjaulado." Anne ergueu os ombros, com indiferença.
— Por várias razões. — Ela moveu uma peça no tabuleiro.
Os olhos dele se estreitaram.
— Tais como? — Raphael moveu outra pedra.
— Foi a você que essa jovem recusou-se a ver?
— O que isso tem a ver? Foi — confessou, impaciente.
— Nesse caso, posso pensar num bom motivo para não querer vê-lo.
— Qual é?
Anne moveu-se, incomodada, na poltrona, achando que tinha ido longe demais. Mas Raphael tinha
perguntado, e sua resposta seria sincera:
— Você é muito... Consegue ser tão...
— Diga logo, Anne! Sou o quê?
— É meu patrão, Raphael. E gosto muito de meu trabalho.
— Esqueça isso e responda ao que perguntei.
— Trabalho para você — ela insistiu. — Não acho justo que me questione sobre isso. — A
honestidade tinha seu lugar, e Anne não estava certa de que seria entre patrão e empregada.
— Esqueça a justiça. Diga logo por que se recusaria a encontrar-se comigo.
— Por isso mesmo — Anne disse, corajosa.
— Isso o quê? Por obrigá-la a dar uma resposta?
— Certo — Anne confessou, aliviada. Afinal, não tinha sido ela a provocar essa briga. — Se
você me tratasse assim ao telefone, eu desligaria no mesmo instante. É bem provável que o mesmo
tenha acontecido com essa mulher.
Raphael ainda não tinha falado em Margaret, mas Anne sabia que era ela. O que a deixava tão
magoada era o fato de estar tão claro que ele queria falar com a ex-babá de Jéssica.
— Foi o que ela fez — Raphael confessou. — Não quis me ver quando fui procurá-la em sua
casa. Depois, quando telefonei mais tarde, bateu o fone ao saber que era eu.
— Como você mesmo disse, Raphael, seu humor estava um pouco agressivo hoje. Xeque-mate.
A surpresa dele foi tanta que Anne não pôde evitar o riso. Devia ser a primeira vez na vida que
perdia uma partida de xadrez.
— Não fique assim, Raphael. O orfanato em que vivi podia comprar tabuleiros... e em
dezesseis anos passei muitos dias frios e chuvosos lá dentro.
Anne não tivera uma infância infeliz. Faltara-lhe talvez um pouco mais de amor, mas nada que
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pudesse chamar de infelicidade.
Primeiro, Raphael olhou-a com admiração e em seguida para as peças.
—Belo jogo, Anne! Você é uma excelente adversária.
Não era o que ela queria ser depois de uma viagem tão agradável ao lado dele e dos beijos que
tinham trocado.
— Chega de jogar. — Raphael levantou-se e levou a mesa de volta para o canto. —Você tem razão.
Fui muito grosseiro o dia todo. E também sei que você não me disse isso. Mas fui mal-educado,
sim. Bom, mas isso acabou. E se quiser servir um conhaque para nós, vou acender a lareira.
Conhaque e lareira... Anne não gostava de conhaque, mas de uma lareira... Mas era algo íntimo
demais para compartilhar com o próprio patrão.
— Já é um pouco tarde para isso, Raphael. Ainda mais se levarmos em conta que acordei tão
tarde esta manhã.
— Que eu saiba, você não teve nenhum tempo livre nos últimos dias. Está aqui para
descansar, não apenas para cuidar de Jéssica. Não gostaria de visitar seus amigos?
Talvez fosse mesmo mais seguro do que ficar ao lado dele naquela sala.
Porém, Anne não queria segurança. Isso ela tivera a vida toda, e não desejava mais.
— Prefiro dormir cedo, Raphael. Vou servir-lhe o conhaque. — Estar sóbria ao lado dele
tornara-se algo de suma importância.
Raphael sentou-se ao lado de Anne no sofá.
— Não há nada como o fogo. Essa lareira foi uma das coisas que me atraiu neste
apartamento.
Anne concordava, sem dúvida. Era muito sedutor estar ao lado do homem que amava e olhar o
bailado das chamas. Raphael relaxou e deitou a cabeça no encosto do sofá.
— Que coisa boa! — murmurou.
Aquela não era a definição que Anne daria à situação.
Ela devia estar em seu quarto. Ou ter saído. Tudo, menos ficar ao lado dele naquele ambiente
aconchegante. Porque o que mais queria agora era poder beijá-lo.
Como se lesse seus pensamentos, Raphael virou-se para Anne, um olhar profundo, o brilho do
fogo refletido em seus olhos.
— E a companhia é melhor ainda.
Anne sentiu um calor em seu rosto que nada tinha a ver com as chamas.
— Estou falando sério, Anne. — Raphael pegou a mão dela. — Você não é mulher de ficar falando
qualquer coisa. Quando diz algo é porque tem alguma coisa a dizer. Se não, fica quieta.
Anne sabia que devia afastar-se, pois estava correndo um sério perigo. Mas não queria isso.
Amava aquele homem e talvez nunca mais pudesse ficar assim ao lado dele.
—Você gosta disso numa jovem?
Raphael sorriu.
—Nenhuma outra me atraiu tanto, Anne. E adoro o sexo oposto. O que estava tentando lhe
dizer, e talvez não esteja conseguindo, é que você é especial para mim.
Anne recuou, mas não conseguiu afastar-se. Na verdade, Raphael estava mais próximo que
nunca.
—Que olhos, Anne! Quero tanto estar dentro deles!
Anne mal conseguia respirar. Quando os lábios de Raphael aproximaram-se dos seus, ela também
os quis. E por isso entregou-se com paixão às deliciosas sensações que lhe despertavam, os braços
que a enlaçavam com força, o perfume daquela boca que buscava a sua com avidez.
Quando Raphael procurou seus seios, o calor que ela sentia estava se tornando insuportável. Eles
reagiram de imediato às carícias, ficando rijos e muito mais sensíveis.
De repente, um gemido saiu de sua garganta quando um forte arrepio percorreu todo seu corpo e
suas mãos apertaram com força os ombros dele.
Anne não ofereceu resistência quando Raphael deitou-a no sofá e acomodou-se a seu lado,
entrelaçando as pernas nas suas, abrindo a blusa e acariciando-lhe as costas. Os olhos mostravam
intenso desejo ao fitarem o sutiã acetinado e a pele por baixo dele, macia e sedosa como o tecido.
Anne seguia com o olhar as mãos que exploravam seus seios, a volúpia estampada no rosto de
Raphael, e sentiu uma enorme satisfação de alegria por saber que era por sua causa.
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— Eu quero você, Raphael. Quero você!
Ele levantou-se, sorrindo, e ergueu-a nos braços.
— Venha. Minha cama é maior que a sua.
Raphael levou-a no colo como se nada pesasse, empurrou a porta do quarto com a ponta do pé e a
fez deitar-se. Em seguida, ajoelhou-se no tapete e, devagar, começou a tirar as roupas, dobrando
cada peça com muito cuidado e deixando-as a seu lado no chão.
Anne só percebeu o que estava acontecendo quando se viu nua, sendo beijada e acariciada em
todas as suas curvas. E via nos olhos dele um profundo prazer.
— Tire a roupa também, Raphael.
Quando ele a ob.edeceu, Anne não se decepcionou. Raphael era bonito, a pele bronzeada, o corpo
firme, o peito largo, quadris estreitos, pernas musculosas cobertas com os mesmos caracóis negros que
cobriam o tórax. Nu, com os cabelos longos caídos nos ombros, lembrava um guerreiro de outros
tempos. Anne queria ser sua prisioneira e conhecê-lo por inteiro.
Quando Raphael deitou-se a seu lado, ela sentiu a promessa da posse pulsando entre suas coxas.
Ele começou a beijá-la outra vez, os seios, as pernas, fazendo-a gemer de prazer e vontade. Então,
seus gemidos transformaram-se em soluços provocados por um prazer que Anne jamais conhecera.
Era uma loucura, um redemoinho de emoções que percorriam seu corpo dos pés à cabeça.
Ela olhou, maravilhada, para Raphael quando ele voltou a deitar-se, beijando com delicadeza seu
rosto quente.
— Eu nunca... eu... Oh, Raphael! — Anne o abraçou com ternura.
Raphael ergueu a cabeça devagar.
— Você nunca fez amor com ninguém, Anne? Ou apenas nunca sentiu o prazer que estou lhe
dando?
— Ambas as coisas. — Sentia-se um pouco envergonhada. Era tão inocente, nem imaginava
como era, não sabia de nada.
Raphael sorriu.
— Então sinto-me feliz e muito honrado de ser o primeiro. — Raphael afastou os cabelos
das faces dela e beijou-a de leve nos lábios. — Acho melhor você se cobrir e dormir um pouco.
Anne não entendeu.
— Mas você... nós não... Você não vai...
Raphael ajoelhou-se ao lado dela e tocou de leve seu rosto.
— Não estou prevenido, Anne, e duvido muito que você esteja. Não quero que nossa primeira
noite juntos seja motivo de futuras preocupações. — Cobriu-a com o cobertor antes de voltar a
deitar-se a seu lado e aninhá-la entre seus braços,
Anne não tinha nenhuma dúvida de que Raphael a queria tanto quanto ela o desejava. E estava
negando a si mesmo uma noite de amor por causa de sua inocência.
Ela também q abraçou e encostou-se no corpo forte. Anne o amava. Teve absoluta certeza disso
naquele instante. Feliz, adormeceu.

CAPITULO IX
Anne ficou muito confusa quando acordou na lanha seguinte, não na cama de Raphael ou em
seus braços, mas em seu próprio quarto, em seu leito, e sozinha.
Raphael devia tê-la levado durante a noite. Soerguendo-se, viu que suas roupías estavam dobradas,
inclusive a blusa e o sutiã, sobre a poltrona.
Jéssica... Anne não se lembrou, mas Raphael devia ter pensado na menina, que não deveria
encontrá-los dormindo lado a lado quando acordasse.
Espreguiçou-se, sentindo o corpo diferente, ainda guardando a sensação de prazer que as mãos e
os lábios de Raphael haviam lhe proporcionado. A única coisa de que se arrependia era não ter se
entregado por completo a ele. Mas isso ainda iria acontecer.
Como Raphael se comportaria depois de tudo o que houvera entre eles? Voltariam a ter uma
relação de patrão e empregada? Ou ele demonstraria, no olhar, as lembranças das delícias que tinham
vivido na véspera? Ah, como Anne desejava isso! Porque, quanto a ela, jamais iria esquecer-se do que
sentira. Mas também não gostaria que Raphael não recordasse nada.
— Trouxe chá para você — Jéssica anunciou, alegre, entrando, depois de bater. Deixou a xícara
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sobre a mesa-de-cabeceira e sentou-se na cama, perto de Anne. — Fique tranquila, não foi meu pai
quem fez. Ele saiu.
Anne levou um susto quando olhou para o relógio. Mais uma vez tinha acordado depois de Jéssica.
Porém, agora, por sorte, não passava de oito e meia. Aonde teria ido Raphael tão cedo em pleno
domingo? Decerto, não fora assistir à missa. Anne lembrou que estava nua sob os lençóis quando ia
sentar-se para tomar o chá. Então, cobriu-se para esconder-se de Jéssica.
— Aonde Raphael foi? — perguntou, como quem não estava interessada, entre um gole e
outro.
Jéssica não sabia.
— Papai ligou para alguém e depois saiu. Não disse para onde. Nem quando voltava.
Margaret... só podia ser!
Anne fechou os olhos para esconder a dor que, com certeza, não conseguiria disfarçar. Talvez
tivesse se enganado. Raphael não desistira de fazer amor com ela só porque era virgem. Devia
haver uma razão diferente: ele estava pensando em outra pessoa.
Decerto fora procurar Margaret tão logo amanheceu. Anne estava tão certa disso que nem
precisava questionar.
— Está se sentindo bem, Anne? Devia ter sido mais delicada para acordar você?
Não, não era nada disso, o problema era outro. Anne estava sonhando com Raphael e em como seria
viver com ele. Que bobagem! Quanta infantilidade! Só porque um homem faz amor com alguém não
quer dizer que queira viver com aquela pessoa. Já devia saber que o que mais acontecia era justo o
contrário. O exemplo de sua mãe não bastava? Tal como seu pai fizera, Raphael não tinha ido atrás de
Margaret?
Anne deu um suspiro contido, abriu os olhos e sorriu para Jéssica. A última coisa que desejava
era que a menina percebesse sua angústia. Se isso acontecesse, Jéssica não hesitaria em comentar
com o pai, e Raphael saberia como Anne estava se sentindo.
Precisava reagir como uma pessoa adulta. Afinal, o que acontecera de concreto entre ela e
Raphael? Para Anne, tinha havido tudo. Mas, para Raphael, tão experiente, era provável que não
tivesse sido quase nada. Ela era mais uma conquista, nada mais que isso, alguém com quem
quiserá dividir sua cama. Porque a pessoa que Raphael desejava não aceitaria isso.
No entanto, tudo mudaria quando Raphael voltasse. Anne não deixaria que ele pensasse que o que
acontecera entre os dois tinha sido mais importante para ela do que foi para ele.
— Não, você não me acordou de maneira brusca, querida. Gostaria de comer algumas panquecas?
— Anne sabia que Jéssica adorava panqueca e que a resposta seria evidente.
— Preciso de dez minutos para me levantar e encontrarei com você na cozinha.
— Eu vou providenciar os ingredientes! — A menina pulou da cama, muito animada, e saiu do
quarto.
Anne voltou a se deitar quando se viu sozinha. Por que não tinha a mesma energia de Jéssica?
Mas a manhã lhe trouxera de volta uma dura realidade: a noite anterior tinha sido apenas um sonho.
E se tivesse sido mesmo? E se nunca tivesse dividido o leito com Raphael?
Porém, ao se levantar, Anne viu que não tinha sonhado. Seus seios estavam um pouco inchados
depois das carícias que Raphael lhe fizera, os músculos de suas coxas, que antes nem sequer eram
percebidos, também estavam doloridos. O corpo parecia em letargia. Anne preferia que nada disso
estivesse acontecendo, mas era impossível negar.
E, quando Raphael voltasse, teria de enfrentá-lo depois do que ambos tinham experimentado na
noite anterior.
Jéssica adorou as panquecas, mas Anne só conseguiu beber café. Na segunda xícara, ouviu a porta
do apartamento se abrir. Sentiu-se enregelar ao ouvi-la se fechar. Estava sentada de costas, bebendo
a segunda xícara para sentir-se mais desperta e, se possível, com um pouco mais de coragem. Porém,
isso de nada adiantou quando Raphael apareceu. Anne sentiu um frio no estômago, e sua mão
tremeu.
— Pai! — Jéssica sorriu, alegre, nem se lembrando mais do tornozelo machucado.
Anne permaneceu imóvel. Mas sabia que teria de fazer alguma coisa, ou Raphael notaria que
algo estava errado.
Melhor não demonstrar que o que partilharam tinha sido tão importante para ela. Afinal, havia seu
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orgulho a preservar. Anne respirou fundo, tentou acalmar-se e virou-se devagar, mas encolheu-se ao
ver a expressão no rosto dele. Esperava ver que Raphael estava arrependido, mas nada disso aconteceu.
— De quanto tempo vocês precisam para voltarmos à Casa do Penhasco?
Anne foi pega de surpresa, tanto pela frieza da voz quanto pela pergunta. No dia anterior, Raphael
tinha falado em comprar comida para mais dois dias. Agora, queria viajar de imediato. O que
poderia ter acontecido para mudasse tão rápido de planos?
Por sua expressão arrogante e distante, não adiantaria indagar.
— A Casa do Penhasco? — Jéssica ficou desapontada. — Mas, pai, você disse que...
— Eu sei o que disse, Jéssica. Mas mudei de ideia. Vamos voltar hoje.
Raphael não dirigiu o olhar a Anne quando comunicou essa súbita decisão, mas alguma coisa
muito séria devia ter acontecido. Na certa não planejava levar para a cama a babá de sua filha. A
bem da verdade, já era a segunda.
Anne também não tinha planejado nada. Era a última coisa que esperava que acontecesse no fim
de semana. Por essa razão, também não via a hora de voltar. Seria horrível ficar mais dois dias
naquele apartamento, tentando ser gentil para que Jéssica nada percebesse.
— Estaremos prontas em quinze minutos, Raphael — Anne respondeu, fria, mas sem encará-
lo. Era impossível enfrentar o olhar de Raphael.
— Em meia hora, então — Raphael determinou. — Mas antes quero tomar uma xícara de café
para estar bem desperto para dirigir.
— Vou fazer as malas. — Anne não se ofereceu para fazer mais café. Se não saísse da
cozinha já, acabaria chorando e fazendo papel de tola.
— Anne. — Raphael segurou-a pelo braço quando ela estava saindo. — Você está pálida.
"Porque a noite anterior foi muito especial, maravilhosa e mágica! Adormecer em seus braços foi a
melhor coisa que me aconteceu na vida. E por um instante, apenas por um instante, imaginei que
seria assim para sempre."
Quanta ingenuidade! Fora apenas uma vez, e nada mais. Pensando bem, Raphael não tinha ido até
o fim apenas por tratar-se de uma pessoa inexperiente, e não por ser virgem. Não se tratou de
delicadeza, e sim de falta de interesse por uma virgem sem expressão.
— Precisamos conversar, Anne.
— Acho que não — retrucou, agora bem mais calma, soltando-se. — Seria algo sobre a
viagem?
— Não, Anne. Quero pedir desculpas por ter saído tão cedo e...
— Só pode ter sido para tratar de negócios — ela o interrompeu, olhando para Jéssica pelo
canto dos olhos, em sinal para que ele se calasse.
— Não eram negócios. Mas era importante. Ainda é. Está tudo bem com você? — Eaphael parecia
preocupado de verdade.
Anne achou que não iria resistir. Ele a olhara da mesma maneira na véspera, quando seus toques
e suas carícias fizeram-na quase derreter em seus braços.
— Está tudo bem comigo, Raphael.
Tinha medo de não conseguir ocultar o sofrimento em seu rosto, as leves olheiras ao redor dos
olhos por não ter dormido o suficiente, os lábios trémulos para conter as lágrimas que insistiam em
cair.
— Não acredito, Anne. Meu Deus, que tremenda confusão!
— Passou os dedos pelos cabelos. — Tenha paciência até eu conseguir resolver tudo isso.
"Até decidir o que sente por Margaret, isso sim! Não basta ter ido procurá-la logo cedo? Nada disso
tem a ver comigo: o fato é que estou apaixonada e o perdi."
Nada mais havia para se dizer. E nada do que fosse dito mudaria isso.
Mais uma vez, Anne se afastou.
— Todo o mundo comete enganos, Raphael. Esqueça o que aconteceu ontem.
— E isso o que acha? Que foi um engano?
— Sem dúvida!
Anne arrependia-se de ter sido tão ingénua. Chegara a acreditar que, entregando-se a Raphael,
tudo ficaria bem entre eles, mas agora sabia que um homem podia ter relações com uma mulher e
amar outra. As emoções masculinas nem sempre acompanhavam seus instintos.
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Raphael recolheu-se, agora muito sério, indecifrável.
— Jéssica, vá ajudar Anne a guardar o que você quiser levar.
— Quer dizer que vou à escola amanhã?
Raphael sorriu ao olhar para a filha.
— Vai, sim. Já está andando muito bem e poderá brincar, sem problemas.
— Ah, pai...
— Vamos, Jéssica — Anne encorajou-a. — Pense que vai poder contar a Lucy como foi seu fim
de semana.
— É mesmo — a menina concordou de má vontade, mas atravessou a cozinha com toda a
facilidade.
Anne levou menos de dez minutos para juntar suas coisas, mas, como Raphael pedira meia hora,
aproveitou o tempo para se maquiar um pouco e disfarçar a palidez. O resultado foi bom: ao menos
perdera aquela aparência de quem estava prestes a adoecer.
Mas a decepção era indisfarçável. Isso não havia cosmético que pudesse resolver.
A viagem de volta foi feita quase toda em silêncio. Jéssica adormeceu, como sempre, no banco de
trás, Raphael ficou impassível, perdido em seus pensamentos, e Anne, mergulhada em seu
sofrimento particular.
Anne nunca imaginou que ficaria tão aliviada ao vislumbrar as linhas góticas da Casa do
Penhasco quando entraram na estrada. Isso não aconteceu nem no primeiro dia em que ali
chegara.
Mas parecia fazer tanto tempo...
Muita coisa acontecera em dois meses. Anne achou que tinha se apaixonado, mas viu que
Anthony não era quem pensou que seria. Depois, apaixonou-se de verdade pelo homem com quem
sonhara por toda a vida. Só que ele estava apaixonado por outra.
Raphael parou o carro e, no mesmo instante, Anne saiu para ajudar Jéssica a descer.
—Vocês podem entrar. Eu levo as malas. — Raphael ainda ficou no automóvel.
Ele nem precisava dizer aquilo, pois Anne não via a hora de ir para dentro. Por mais difícil que
fosse, pretendia ficar o mais longe possível, enquanto Raphael estivesse lá. Se não o visse, talvez a
tristeza passasse.
Célia estava passando pelo hall de entrada quando Anne e Jéssica abriram a porta. As
sobrancelhas erguidas foram o único sinal de que* estava surpresa por vê-las.
—Ah, vocês estão de volta! Não os esperava tão cedo.
—Raphael tem alguns compromissos — Anne prontificou-se a informar.
—Ele está com vocês, suponho. Ou será que ficou em Londres?
—Não, Célia, estou aqui — Raphael disse, frio.
Célia olhou para o enteado da mesma maneira.
—E qual dos empregados pretende demitir desta vez?
Raphael estreitou os olhos.
— Está se referindo a James?
—Estou, Raphael.
— Agora você errou, Célia. Não demiti James. Ele decidiu que era hora de se aposentar.
—E mesmo? Assim, sem mais nem menos?
Raphael suspirou.
— Foi James quem decidiu. Acha que o acidente de Jéssica foi culpa dele, e, depois que
conversamos, acabei concordando...
— Acho que devemos ir para a sala conversar em particular.
Longe de Anne, uma criada. Mas se fosse verdade que James se demitira porque sentia-se
responsável pelo acidente de Jéssica...
— James foi embora? — Jéssica perguntou quase chorando. — Papai...
— Foi o que acabei de dizer a sua avó. — Raphael virou-se para Célia com um olhar de censura
por ter dito aquilo na frente da menina. — Ele acha que foi responsável por seu acidente, por não
ter checado se a sela estava bem presa.
— Eu também devia ter visto isso. Foi você quem me ensinou. E eu...
— Jéssica, vamos levar nossas coisas para cima e deixar seu pai e sua avó conversarem.
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— Mas...
— Você pode telefonar para Lucy e dizer que vai à escola amanhã—Anne acrescentou, para tentar
convencer a menina.
— Está bem, Anne. Vejo você depois, pai.
— Certo, filha. Anne? — Raphael a fez parar no meio da escada.
Anne virou-se devagar, já prevendo o que ele ia dizer. Raphael sorriu, não aquele sorriso irónico
tão conhecido, mas muito mais carinhoso.
— Mais tarde vamos conversar.
Anne não entendeu. Apenas olhou para Raphael, sem dizer nada.
— Estarei no quarto de Jéssica,-Raphael.
Elas subiram os degraus. Ao chegar aos aposentos de Jéssica, Anne sentiu-se bem melhor. Enfim,
conseguia respirar com liberdade, pela primeira vez, desde que acordara naquela manhã.
O que devia fazer? Fizera aquela pergunta a si mesma milhares de vezes desde que acordara.
Mesmo que Raphael viajasse, uma hora acabaria voltando. E então teria de enfrentá-lo outra vez. O
amor que estava sentindo por ele era um sentimento novo, que Anne não conhecia. E não voltaria a
sentir. Mas Raphael estava apaixonado por outra mulher, que não o amava da mesma maneira.
— Posso descer para telefonar para Lucy?
Anne olhou, distraída, para Jéssica e só então se deu conta de que já tinham desfeito as malas e
guardado todas as roupas. Tudo pronto, a menina queria agora falar com sua amiga. Só que Arme
não sabia se Raphael e Célia ainda estavam na sala.
— Telefone de meu quarto, querida. Lá, poderá falar com Lucy tempo que quiser.
Jéssica gostou muito da ideia e foi para o dormitório de Anne.
Mais uma vez sozinha, Anne poderia pensar melhor.
Se Margaret ainda estava em Londres, e Raphael queria tanto que ela voltasse para ele, por que
teria retornado?
Teria mais sentido se Raphael preferisse ficar só na cidade, longe de Anne. Ainda mais depois do
que acontecera entre eles na noite anterior.
Tinha sido mesmo na véspera? Parecia tudo tão irreal, quase um sonho, ou melhor, um pesadelo!
Porque era nisso que tudo havia se transformado.
Anne sabia que não poderia ficar no quarto de Jéssica para sempre, remoendo-se. Já estava tudo
guardado e não havia mais nenhuma razão para continuar lá. Beber um xícara de café não seria má
ideia.
Mas e se Raphael e Célia ainda estivessem perto da escada?
Claro que não estavam. Célia jamais teria uma conversa particular com o enteado onde os
empregados pudessem ouvi-los. E, pela raiva que se via no semblante de ambos, o assunto só
poderia ser particular.
Anne estava certa. Não havia ninguém perto dos degraus, não se ouviam vozes em nenhum lugar da
casa. Pelo menos, ninguém estava gritando.
— Anne! Graças a Deus — Raphael apareceu agitado à porta da sala particular de Célia. —
Ligue para a emergência e peça uma ambulância agora mesmo!
Anne não entendeu a princípio. O que houvera? Com quem? A briga teria sido tão feia?
Isso não, era impossível. Raphael jamais usaria de violência contra uma mulher. Mas então...
— Anne, chame a ambulância! — ele repetiu, aflito. — Acho que Célia teve um enfarte!

CAPITULO X

Não foi preciso falar duas vezes. Anne saiu correndo para o telefone e surpreendeu-se com a calma
com que Raphael descreveu em detalhes o problema de Célia, exatamente como tinha sido. A telefo-
nista garantiu que a ambulância seria enviada de imediato e chegaria em poucos instantes.
Anne desligou, correu para a sala de estar de Célia e encontrou Raphael ao lado dela no sofá.
Célia estava deitada, muito pálida, e parecia ter envelhecido nos últimos minutos. Toda sua empáfia
desaparecera, deixando-a com uma aparência vulnerável.
— O que houve? — Anne perguntou em voz baixa, aproximando-se de Raphael.
— Estávamos conversando... discutindo, para dizer a verdade. Mas nós dois sempre nos falamos
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assim. Só que desta vez Célia perdeu a cor e caiu.
Anne ajoelhou-se ao lado dele.
— Sobre o que vocês conversaram?
— Sobre Anthony. O que mais poderia ser?
Anne pôs a mão no rosto de Célia, que estava muito frio.
— Ela gosta muito dele. Orgulha-se do filho.
— Anthony é insensível e egoísta, Anne.
— Mas é filho dela, Raphael. E as mãe sempre perdoam os filhos.
— Eu não sabia que era tanto assim.
Anne olhou para Raphael com uma sombra nos olhos azuis.
— Nem eu, Raphael. Mas tenho certeza de que, se tivesse um filho, eu o protegeria da mesma
maneira que Célia protege Anthony. Ou como você cuida de Jéssica.
Uma veia pulsou na testa de Raphael, que se levantou e foi para a janela.
Anne perguntou-se o que ele teria ido olhar lá fora, ou se seria apenas para evitar ver Célia
deitada naquela sofá. Talvez tivesse sido por isso. Raphael continuava nervoso. E toda a sua raiva
se voltava contra Anthony.
— A ambulância chegou — Raphael disse, de repente, voltando para a sala. — Vou ao hospital
com Célia enquanto você fica aqui esperando Anthony voltar. Ele foi levar Davina a Londres esta
manhã, mas voltará depois do almoço.
A ideia de acompanhar Célia fazia sentido. Ela era sua madrasta, e seria melhor que Raphael a
acompanhasse. Mas o fato de ficar ali esperando Anthony voltar não deixava Anne muito tranquila.
Ela não revelou sua preocupação enquanto os enfermeiros levavam Célia para a ambulância.
Raphael observava tudo a seu lado.
E então, a ambulância, com Raphael e Célia dentro, foi embora, e uma estranha calma voltou a
reinar naquela casa. Estranha, porque decerto não prenunciava nada de bom.
Anne se encarregou de dar a notícia a todos os empregados e também a Jéssica, que voltou muito
animada do quarto após ter falado com a amiga.
— Vovó vai morrer? — Jéssica quis saber, quase a ponto de chorar.
Seria muito mais fácil dizer que não e rezar para que fosse verdade. Porém, Anne não podia fazer
isso, pois não sabia qual era a gravidade do estado de Célia.
— Não sei, Jéssica.
— Meu avô morreu quando eu era pequena.
Anne apertou a mão da menina para tranquilizá-la.
— Eu sei.
— Minha mãe também.
Anne sentiu o coração apertado ao ouvir a dura realidade de uma garota tão pequena: sua mãe
também morrera e a deixara sozinha. No fim, todos morriam. Era um fato da vida que ninguém
poderia negar.
— Vamos torcer para que sua avó fique boa.
Jéssica mordia o lábio para não chorar.
—Minha mãe saiu num barco com tio Anthony e nunca mais voltou.
Anne levou um susto. Joana e Anthony? Teria sido àquele acidente que Raphael se referira no
ancoradouro? Joana e... Anthony?!
—Isso não quer dizer que Célia não vai voltar do hospital, Jessy.
—Vamos poder visitá-la?
—Se seu pai achar que sim — Anne respondeu de forma evasiva, pois não sabia qual era a
gravidade do estado de Célia. — Vamos jogar uma partida de xadrez enquanto esperamos por
alguma notícia. Raphael me disse que você joga muito bem.
Jéssica olhou para Anne de um jeito que a fez lembrar-se de Raphael.
—Papai me disse que você joga melhor que ele.
Anne riu.
— Ele não estava muito concentrado na noite em que jogamos.
— Não me importo quando perco. Papai me disse que é uma boa experiência.
— É mesmo? — Anne duvidava muito que Raphael acreditasse nisso.
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— Acho que ele não pensou assim ontem à noite. Ainda não consigo acreditar que você tenha
ganhado dele. Acho que até hoje ninguém conseguiu.
Anne concentrou-se na partida, e seu sorriso desapareceu, pois sabia que nunca mais jogaria com
Raphael. Que jamais voltaria a ficar a sós com ele.
Mas pelo menos o jogo ajudou a distrair a cabecinha de Jéssica. Era muito triste que uma criança
tão pequena já tivesse lembranças tão tristes. Além do fato de sua mãe ter morrido de uma
maneira trágica: afogada. Era, sem dúvida, uma maneira muito triste de morrer.
Mas ao menos Anne sabia agora que não fora Joana quem se suicidara no ancoradouro.
Então, talvez tivesse sido a mãe de Raphael.
Anne envolveu-se com muita rapidez na vida e nas emoções daquela família fadada à infelicidade. Anthony
pretendia casar-se, mas não tinha intenção de ser fiel a sua mulher. Esperava de todo o coração que Raphael
estivesse certo e que achasse com sinceridade que seus familiares não serviam de exemplo para ninguém.
Anne conseguiu vencer Jéssica com facilidade, embora percebesse, pelas jogadas, que a menina ainda
seria muito boa no xadrez.
— Você acha que meu pai vai telefonar para nos dar notícias de vovó? — Jéssica perguntou enquanto
guardavam as peças.
— Esperemos que sim. — Anne levantou-se. — Venha, vamos procurar alguma coisa para comer.
O telefonema tão esperado só chegou no meio da tarde.
— Célia está acordada agora. — Raphael parecia muito preocupado. — Não foi um enfarte, mas ela
deverá ficar no hospital mais alguns dias. Estou providenciando um quarto particular para minha
madrasta, e em seguida voltarei para casa.
Ele fora muito evasivo. Se não fora enfarte, o que poderia teria sido? Por que Célia teria de ficar
hospitalizada? Seria apenas para observação?
Mas Anne estava mais preocupada com Jéssica, que não saía de seu lado, com muito medo de que sua avó
fosse morrer.
— Jéssica quer ver Célia. — Anne esperava que Raphael percebesse a ansiedade da filha.
— Hoje é impossível. Talvez amanhã, quando Célia estiver mais... recuperada.
Ele parecia estranho, nada confiante como costumava ser. Talvez tivesse percebido que gostava mais de
sua madrasta do que imaginava.
— Por favor, Raphael, diga a Célia que gostamos muito dela e que desejamos sua rápida melhora.
— Farei isso. Pelo visto, Anthony ainda não chegou, não é? Não, não tinha voltado. E Anne sentia-
se melhor por isso.
A última vez que o vira não fora muito agradável, e ela não estava animada a ter de dar a
notícia sobre sua mãe.
— Não, Raphael.
— Otimo. Tentei ligar para Davina para ver se o encontrava, mas ele já tinha saído.
O que significava que Anthony chegaria a qualquer momento. Anne sentiu-se mal ao pensar que
tornaria a vê-lo. A última vez que conversaram ele tinha lhe proposto que fosse sua amante.
— Anne? — Raphael ainda estava na linha.
— Sim?
— Não vá morrer de pena de Anthony só porque a mãe dele não está bem. Anthony continua
sendo um cretino, e não vai mudar.
Anne não gostou do comentário. Tinha se comportado como uma tola em relação a Anthony, mas
não era uma idiota completa.
— Eu vou me lembrar disso, Raphael. Mais alguma coisa?
A risada que ouviu do outro lado não era o que gostaria de ouvir. Como ele ousava fazer uma coisa
assim? Porque não havia nenhuma dúvida de que "estava achando muita ! graça.
— Voltarei logo, Anne. Esquente a cama para mim.
Anne afastou o fone do ouvido, como se tivesse levado um soco. Sofrera o dia todo pelo que
tinha acontecido entre eles na véspera, e agora Raphael fazia brincadeiras a respeito!
— Anne? O que aconteceu? Por que desligou tão de repente? — Jéssica olhava preocupada
para ela. A menina tinha se assustado com seu comportamento.
— Seu pai está providenciando um quarto no hospital para sua avó. — Anne sorriu, ajeitando a
franja de Jéssica sobre a testa. — Mas está tudo bem. Raphael voltará logo.
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Mas o que Anne mais temia agora era encontrar Anthony. E Raphael...
— Ah, minhas lindas garotas!
Seu pensamento materializou-se a sua frente. Anthony estava parado diante da porta da
biblioteca, onde Jéssica e Anne se encontravam. Com seu sorriso mais sedutor, ele estava mais lindo
e charmoso que nunca. Pelo jeito, já não se lembrava mais da última conversa que tivera com Anne,
antes de ela viajar para Londres com Raphael. Ou talvez fosse apenas arrogância pensar que a
conversa não tinha sido importante e definitiva.
— Tio Anthony! — Jéssica correu para os braços dele. — Que bom que você chegou.
— Bem, pelo menos alguém fica feliz em me ver! — Olhou para Anne por cima do ombro da
sobrinha.
— Sua mãe está no hospital. — Anne não pretendia dar a notícia de maneira tão brusca, mas
foi como aconteceu.
— Raphael está lá com ela.
— Hospital? — Anthony repetiu, devagar, colocando Jéssica no chão e olhando fixo para Anne. —
Mamãe no hospital?
— Ela teve um... Célia desmaiou logo depois que chegamos de Londres.
— E onde estava Raphael quando aconteceu esse desmaio? — Anthony parecia muito
preocupado.
— Meu pai estava conversando com vovó.
— Miserável! — A raiva de Anthony explodiu pela boca e pelo olhar furioso.
Anne voltou-se para Jéssica.
— Está esfriando, meu bem. Você poderia ir até meu quarto e trazer meu xale? — pediu-lhe,
com um sorriso nos lábios.
— Mas...
— Por favor, Jéssica — ela insistiu com firmeza.
A menina saiu da biblioteca com relutância, mas a obedeceu. Anne esperou que Jéssica se
afastasse para falar com Anthony.
— Eles estavam conversando, e Célia sentiu-se mal. Raphael acabou de ligar do hospital.
— Qual?
— Não sei. — Esquecera-se de perguntar, e só agora se dava conta disso. — Mas sua mãe está
bem. Não foi enfarte nem ataque cardíaco. Está em observação por enquanto, ficará internada
mais alguns dias.
Raphael tinha deixado-a tão irritada ao telefone que só agora estava conseguindo perceber que
nada sabia sobre o estado de Célia.
— Raphael voltará logo, Anthony.
Havia poucos minutos, não queria que Raphael retornasse. Mas agora desejava demais que ele
estivesse ali.
— Seria melhor para todo o mundo que Raphael não voltasse nunca mais! — Anthony
afirmou, furioso. — Toda vez que ele vem, nos traz problemas. Você já deve ter notado os estragos que
meu irmão consegue fazer.
— Jéssica está voltando — Anne preveniu-o quando ouviu a menina descendo a escada. — Por
favor, não esqueça que ele é pai dela.
Anthony deu uma risada desdenhosa.
— E mesmo? Tem certeza disso? E será que ele tem? — acrescentou com ironia.
Anne calou-se e olhou-o, aterrorizada, ao perceber o que Anthony estava insinuando. O caso que ele
tivera com Joana em Londres... Será que tinha terminado depois que ela se casou com Raphael? Eles
estavam juntos quando aconteceu o acidente com o barco. Ele e Joana:..
Anne voltou-se para Jéssica quando ela entrou na biblioteca. Os cabelos negros e cacheados, os olhos
azuis, as feições tão parecidas com as de Raphael.
— Ah, sim! — Anne suspirou em resposta às insinuações de Anthony. — Raphael tem certeza.
E eu também. E não acho que ele seja um causador de problemas, Anthony. Mas você, sim. Por que
não telefona aos hospitais para saber como está sua mãe?
Anne virou-se sorrindo para Jéssica e agradeceu-lhe pela gentileza:
— Obrigada, meu anjo.
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— É o que vou fazer, Anne! Foi bom seu fim de semana? O insulto implícito na
pergunta era tão claro que Anne olhou-o com desprezo. Como pudera achar algum dia aquele homem
atraente? Anthony não passava de um menino mimado que não tinha o menor" respeito pelos senti-
mentos alheios.
— Muito bom. Lembre-se de sua mãe.
— Estou indo. Mas, se eu fosse você, não levaria muito a sério as coisas que aconteceram em
Londres. Por mais que nos odiemos, Raphael e eu temos muita coisa em comum. — E, com aquela
última provocação, saiu da sala para telefonar.
Anne sabia muito bem ao que Anthony se referia. Raphael envolvera-se com Margaret. Pelo visto, ainda
estavam envolvidos. O que não impediu que eles se amassem tanto na noite anterior.
Anne fechou os olhos para evitar as lágrimas. Sobreviveria a tudo aquilo. Já superara tantas coisas
difíceis na vida que não seria Raphael a conseguir destruí-la.

CAPITULO XI

Jéssica estava na cozinha ajudando a sra. Wilson a assar um bolo, e Anne aproveitou para ler um
pouco na biblioteca.
Foi então que ouviu Raphael e Anthony discutindo em algum lugar da casa.
Anthony ainda não fora para o hospital e, infelizmente, por várias razões, Raphael acabou
chegando antes.
— Estou lhe dizendo que isso só interessa a mim — Raphael dizia, com toda a fúria.
Anne encolheu-se na poltrona quando percebeu que se aproximavam da biblioteca. A porta
batendo indicava que tinham escolhido o lugar mais discreto da residência para continuar a
discussão. Ela estava na poltrona, de costas para a porta, e eles não a,viram.
O que fazer? Se continuasse ali, escutaria tudo. Mas, se notassem a sua presença, talvez se
voltassem contra ela. Isso já acontecera antes.
— Você sabia? — Raphael perguntou num tom de voz muito baixo. — Célia também sabia?
— E um assunto familiar, Raphael.
— E eu sou o chefe desta família!
— Só quando lhe interessa — Anthony desafiou-o, com ironia. — E você bem sabe que não é
sempre.
— Eu lhe fiz uma pergunta, Anthony. Você sabia que Margaret esperava um filho seu quando
saiu desta casa?
Anne levou o maior susto de sua vida. Jamais esperara ouvir uma coisa dessas. Então Margaret
esperava um filho de Anthony!
— É claro que eu sabia.
— E Célia? Também?
— Sabia, sabia, sabia! — Anthony confirmou, com impaciência. — Por que acha que mamãe
teve tanta pressa em marcar o casamento para o» Natal? Para que nada me impedisse de casar
com Davina!
— Mesmo com outra mulher esperando um filho seu!
— Margaret engravidou porque quis. Ela nunca me disse que sua religião proibia o uso de
anticoncepcionais. E agora não vai tirar a criança pela mesma razão. Uma boba, isso é que ela é...
Ai! — A ironia de Anthony foi interrompida pelo ruído seco de um soco, seguido pela queda de um
corpo ao chão.
Raphael tinha batido nele! Anne não viu nada, mas podia adivinhar o que acontecera. Teria feito o
mesmo se fosse Raphael. Na verdade, suas mãos estavam crispadas, prontas para fazer isso mesmo.
Margaret esperava um filho de Anthony e, para ele, isso não passava de uma inconveniência, algo de
que ela poderia livrar-se com facilidade.
— Você quebrou meu dente, seu idiota! — Anthony tentou levantar-se.
— Sorte sua por ter sido só um dente! Tenho vontade de arrebentá-lo inteiro! Você é a
vergonha desta família, e quero que saia desta casa!
— Não pode me expulsar! Nosso pai deixou bem claro no testamento que esta casa é sua, mas
minha mãe tem o direito de viver aqui até morrer.
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— Ela está morrendo, Anthony!
Fez-se um profundo silêncio. Anne imaginava o que Anthony estaria sentindo. Ela própria tinha
levado um choque.
— O que disse, Raphael?
— Célia está à beira da morte. Tem um câncer terminal. Ela já sabia, por isso tentou apressar
seu casamento. Quer vê-lo você casado antes de morrer!
— Não acredito em você, Raphael.
— Não precisa acreditar. Célia mesma vai contar-lhe tudo.
Anne podia imaginar a perplexidade de Anthony. Era uma pessoa tão egoísta que só a mãe
poderia gostar dele.
E Célia estava morrendo... Anthony sentia dificuldade em aceitar um fato que nem Anne
conseguia aceitar. Na verdade, tudo o que ouvira lhe parecia irreal. Embora respondesse a muitas de
suas questões.
— Essa é a verdade, Anthony. — Raphael parecia mais calmo agora.
— Preciso vê-la.
— Ela está esperando você.
Anne percebeu que Anthony dirigiu-se à porta, mas parou antes de abri-la.
— Como foi que descobriu que Margaret estava grávida? Você não tem nada com isso!
— Mas vou ter de sustentá-la até a criança, seu filho, nascer. Estou falando sério, Anthony.
Você pode visitar sua mãe quando quiser, até que ela morra. Depois disso, não quero vê-lo aqui
nunca mais.
— Quando eu me casar com Davina, e com todo o dinheiro dos pais dela, não precisarei mais
voltar aqui! — Anthony saiu batendo a porta.
Anne não sabia o que fazer: se corria para Raphael para confortá-lo ou se ficava onde estava para
que ele não soubesse que tinha ouvido uma conversa tão particular entre dois irmãos.
Anthony era mesmo como Anne imaginava que fosse, e até pior. Pouco se importava que sua
relação com Margaret tivesse gerado uma criança, e ainda magoava Raphael, que agora sabia que
Margaret o traíra com seu próprio irmão.
— Pode sair agora — Raphael disse, tranquilo.
Anne gelou. Ela não movera um dedo desde que os dois entraram ali. Se Anthony não estava mais
lá, Raphael só podia estar falando com ela. Então ele sabia desde o começo que Anne estava ali.
— Sei que está aí desde que entrei, Anne. Reconheceria seu perfume em qualquer lugar. Além
disso, vi seus cabelos por cima da poltrona antes de você afundar dentro dela.
Anne levantou-se devagar, pôs o livro com cuidado sobre a mesinha e virou-se para ele. Mas levou
um susto quando o viu jogar-se, exausto, no sofá. Não mais com a arrogância de sempre, mas
completamente desgastado. Também, diante do que tinha acabado de acontecer, não era para menos!
— Que dia! — Raphael desabafou, passando a mão pela cabeça. — O que você faria no meu
lugar?
Anne não conseguiu responder de imediato.
— Que confusão, hein?
Raphael ficou olhando para ela por um longo momento, então seus lábios iniciaram uma lenta
curva até exibirem aquele sorriso que Anne já tinha aprendido a amar. Como era bom vê-lo rir!
Sobretudo num momento tão grave.
— Uma confusão e tanto — Raphael assentiu, ainda sorrindo, embora com o olhar muito sério.
Anne sentou-se aos pés dele.
— Mas tudo tem solução. Margaret terá a criança, mas seria muito pior se Anthony quisesse
se casar com ela... e ela aceitasse! — Olhava ansiosa para Raphael, tentando aliviar seu
sofrimento.
— Isso é verdade. A pobre moça iria cometer o maior erro de sua vida. Margaret não merece
esse destino.
Anne tentou sorrir, mas não foi muito bem-sucedida. Amava Raphael e tentava confortá-lo por ter
perdido seu amor.
— Mas sempre há um jeito para tudo — ela disse, quase chorando.
Raphael baixou a cabeça e encarou-a.
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— E que jeito é esse?
Anne não soube o que responder. Amava sem ser correspondida. Se Raphael ficasse a seu lado ou
fosse embora, daria no mesmo: continuaria amando-o do mesmo modo.
Raphael estendeu a mão para ela.
— Não queria que você soubesse de tudo desse jeito, Anne, mas não sei ia conseguir lhe
contar. Sabia que iria sofrer quando soubesse.
Anne lutava contra as lágrimas e um nó na garganta.
— A culpa não é sua, Raphael. Mas eu já sabia sobre Margaret.
— Que ela estava grávida?
— Isso não. Mas sabia o que você sente por ela.
— O que eu sinto? Anne, do que é que você está falando?
Ficar assim perto dele já estava se tornando quase insuportável. Afinal, Anne também tinha amor-
próprio. Não muito, é verdade, porque por pouco não fizera amor com Raphael, mesmo sabendo o que
ele sentia por outra mulher. Mas desejara muito.
— É muito triste o que está acontecendo com Célia... — Anne mudou de assunto.
Agora era possível entender muita coisa: tanto repouso, o fato de ela ter emagrecido muito desde
que Anne a conhecera, a pressa de que Anthony se casasse logo com Da-vina... Não era só por causa
da gravidez de Margaret, mas por saber que Raphael e Anthony acabariam se matando se
vivessem na mesma casa.
— É mesmo muito triste, Anne. Quando o médico me contou, percebi que gostava dela, que sentiria
sua falta se morresse.
— Que bom que isso aconteceu!
— Também acho — Raphael admitiu. — Culpei-a tanto por ter tomado o lugar de minha mãe
que nem percebi que me afeiçoei a Célia. Mas consegui dizer-lhe isso hoje.
— Fico feliz por isso também.
— Nós conversamos hoje como jamais tínhamos feito em toda a vida. Célia me contou uma
coisa que eu não sabia. Mamãe teve depressão pós-parto depois que eu nasci. Se até hoje ninguém
sabe como tratar isso, imagine há trinta e nove anos. Foi numa dessas crises depressivas que ela se
jogou do ancoradouro. Eu nunca soube disso. Meu pai não me contou.
E em todos esses anos tirei conclusões erradas.
David Diamond devia ter conhecido Célia antes da morte da mulher. Raphael nunca aceitara esse
casamento, e, quando Anthony nasceu, o mais fácil fora culpar Célia pela morte da mãe. Mas ele
estava errado.
Então fora a mãe de Raphael quem se matara naquele ancoradouro...
— Seu pai quis proteger você, Raphael. Não queria que uma criança inocente se sentisse
responsável pela morte da mãe. A depressão pós-parto pode acontecer a qualquer mulher, e a
criança não tem nenhuma culpa nenhuma.
Raphael olhou para ela com uma expressão sofrida.
—Você está certa. Foi isso o que papai e Célia decidiram. E foi por isso que minha madrasta
guardou segredo até hoje. Talvez tivesse sido melhor para.todos se tivesse me contado. —
Raphael estava muito arrependido por tê-la odiado tanto, apesar de Célia só ter tentado protegê-lo.
Era uma tragédia. Mas Anne tinha certeza de que ainda havia tempo para uma reconciliação. Na
verdade, eles já tinham feito isso.
— Bem... — Raphael ajeitou-se no sofá. — Agora me diga o que pensou sobre meu... como foi
mesmo que disse? Meus sentimentos por Margaret.
Anne sabia que ele não desistiria com facilidade. Mas não estaria percebendo quanto isso a
magoava? Pelo jeito, não, porque parecia disposto a obter uma resposta.
Ela se levantou e começou a andar na frente da lareira.
— Vi como você ficou quando soube que Margaret tinha ido embora.
— Eu já sabia que ela havia partido. Encontrei uma carta dela no jornal esperando por mim.
Anne parou por um momento e recomeçou a andar.
— Você estava louco para saber por que Margaret tinha ido embora.
— Não estava louco, apenas interessado.
— Estava muito interessado em saber por que Margaret tinha se demitido, Raphael. Fomos
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para Londres neste fim de semana porque...
— Por quê, Anne? Por que acha que a levei comigo?
— Para não deixar Jéssica aqui sozinha.
— Isso também, é verdade. Quando eu soube que minha filha tinha sofrido um acidente,
lembrei-me de cinco anos atrás, quando Joana morreu. Minha mulher estava com Anthony no barco,
sabia?
— Jéssica me contou. — Mas não iria dizer o que Anthony insinuara. Joana estava morta, e
remexer em velhas mágoas não adiantaria de nada.
Raphael sorriu.
— Anthony não se comporta muito bem como amante.
Ele poder ter lhe dado sua versão dos fatos, mas tenho certeza de que nada disse a seu respeito.
— Suspirou quando Anne balançou a cabeça. —Joana e Anthony já se conheciam antes de nós nos
casarmos, e Anthony tentou reatar a relação depois do casamento. Não éramos os mais apaixonados
do mundo, mas Joana não aceitou e ele ficou enlouquecido. Não tenho certeza absoluta de que a
morte dela tenha sido acidental. E então, quando Jéssica caiu do cavalo...
Anne olhou-o, horrorizada. Raphael não podia pensar que o próprio irmão seria capaz de uma
barbaridade daquelas.
— Até hoje concedi a Anthony o benefício da dúvida. Joana sabia nadar muito bem, ao
passo que ele detesta água desde criança. Essa foi a justificativa dele por não ter tentado salvá-la
quando ela caiu do barco. Desde então, tenho tentado me convencer de que Anthony disse a verdade.
Mas fiquei apavorado quando você me contou que Jéssica tinha caído do cavalo. Minha filha monta
muito bem, assim como a mãe dela era ótima nadadora.
— Acha que Anthony tentou...
— Sim. James diz que a culpa foi dele, pois já anda esquecendo as coisas e admitiu que não
se lembrava de ter ajudado Jéssica a montar, e muito menos de ter ajustado a sela como deve ser.
Jéssica está triste por James ter ido embora, mas foi ele quem tomou essa decisão.
Sem dúvida, a melhor. E Jéssica entenderia quando Anne lhe explicasse, mais tarde.
Assim como Anne entendia agora que a versão de Anthony sobre sua relação com Joana era
apenas mais um traço de sua mente vingativa. Anne não tinha a menor dúvida de que Raphael falara
a verdade. Lembrou-se de como Anthony reagira ao perceber que ela estava gostando de seu
irmão. Raphael tinha razão: quanto mais longe Anthony ficasse da família, melhor.
— Agora, me diga, Anne. Está pensando que estou apaixonado por Margaret? E isso, não é?
Anne não conseguia encará-lo.
— Não era a ela que você se referia quando disse que aceitaria falar com você ao telefone, mas
não pessoalmente?
— Era. E agora entendo por que não queria me ver.
— Por causa da relação dela com Anthony?
— Sim, de certo modo.
— Como assim? Não entendo. — E não entendia mesmo.
A única explicação era que, na ausência de Raphael, Margaret tinha se envolvido com o irmão dele.
— Acho que você não vai gostar de saber, Anne.
Assim como não estava apreciando toda aquela conversa.
Era terrível discutir o que ele sentia por outra mulher. E Raphael estava percebendo isso, e
também o amor o que Anne sentia por ele. E isso era humilhante.
— Por que não diz logo, Raphael? — Anne suspirou.
— Ontem à noite, quando estávamos juntos...
— Precisa me lembrar disso?
— Eu disse que você não iria gostar.
— É mesmo necessário?
— Se quiser saber tudo sobre Margaret, e por que ela não quis me receber, eu acho que sim.
— Bem, então, vamos lá.
Raphael ergueu o queixo de Anne para olhar bem em seus olhos.
— Gostaria que a noite de ontem não tivesse acon tecido, Anne?
— Não, não!
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— Fico feliz de ouvir isso. — Raphael revelou, aliviado.
— Fica mesmo?
— Oh, Anne, é claro que sim! — Abraçou-a. — Ainda não percebeu que amo cada pedacinho de
você, que só levei vocês duas a Londres porque não ia conseguir ficar sem sua presença nem por
alguns dias?
Anne achou que estava ouvindo coisas. Só podia ser. Raphael não acabara de dizer que a amava.
Ele não tinha feito isso. Ou será que sim?

CAPITULO XII

— Eu te amo, Arme Fletcher. Há quanto tempo não digo isso a ninguém! Os olhos dela
arregalaram-se. Era só o que tinha a fazer.
—Mas... e Margaret? — perguntou, desesperada.
Raphael sorriu.
— Por essa pergunta, posso imaginar o que anda passando por essa linda cabecinha, mas juro
por tudo o que me é sagrado que não sei de onde você tirou essa ideia. Para mim, Margaret foi
babá de Jessy, e nada mais.
— Mas...
— Nada além disso, Anne, nunca. Não digo que não tive outras mulheres depois que Joana
morreu, mas foram poucas, e Margaret não está entre elas. Não, eu estava esperando por uma
ruivinha que me fizesse rir e despertasse meu desejo. — Raphael sorria como nunca tinha feito
antes, o amor dançando naqueles olhos tão azuis. — Eu te amo, Anne. Quero me casar com você,
ter filhos. Sinto apenas não ter uma família melhor para oferecer-lhe, mas é a única que possuo.
Quando tivermos nossos bebés, então...
— Está me pedindo em casamento? — Ela não estava acreditando no que ouvia.
— Claro que sim! Afinal, já nos deitamos na mesma cama e não posso comprometer minha
reputação.
Anne gargalhou.
— Não é tão mal assim. Pretendo parar de viajar. Já é hora. Na verdade, eu viajava tanto
porque não conseguia ficar nesta casa. Se você estiver aqui, não vou querer mais ir embora. Quero
escrever o livro, que está na minha cabeça há anos, mas nunca tive vontade de parar para fazê-lo.
Agora tenho. — Raphael afastou-se para olhá-la. — Quero que me diga se estou indo muito depressa
ou querendo muita coisa. Se você não quiser o mesmo que eu, por favor, diga logo. Se é a Anthony
que você ama...
Casar-se com Raphael. Ficar com ele e Jéssica para sempre. Ter seus próprios filhos!
— Oh, Raphael! — Anne encostou a cabeça no peito largo. — Eu não amo Anthony. Nunca amei.
Quero me casar com você, porque também te amo. Não há nada melhor para mim do que ficar a
seu lado para sempre.
Anne abraçou-o com tanta força que seus braços doeram. Raphael respirou aliviado.
— Graças a Deus, Anne! Por um momento, você me deixou preocupado. Mas não poderia imaginar
tudo aquilo que houve entre nós ontem à noite se você não me amasse.
— Nada teria acontecido.
Raphael baixou a cabeça para beijá-la.
Mais tarde, quando ambos estavam sentados no sofá, voltaram a falar sobre Margaret.
— Lembra-se de que não fizemos amor ontem? — Raphael olhava-a de uma maneira tão
provocante que a fez corar.
— Foi melhor assim. Nossa primeira noite será na lua-de-mel. Como deve ser. Como você
merece que seja.
— E Margaret? — ela insistiu, antes que o assunto fosse evitado outra vez.
— Quando conversamos, Anne, entendi por que Margaret não quis conhecer-me. Ela está grávida
de cinco meses. Já se nota bem a gravidez.
Raphael não amava Margaret. Ele só queria deixar tudo esclarecido, ainda mais depois da carta
que recebeu dela comunicando sua demissão.
— Precisamos ajudá-la, Raphael. Essa criança faz parte da sua família.
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Anne queria muito ajudá-la. Como também cuidar de Célia até que ela não precisasse mais.
Com o tempo, Raphael lhe falaria de sua infância, de seu pai, da mãe que não conhecera, do
casamento que não tinha sido o maior amor do mundo. E Anne se lembraria sem mágoas de sua infância
solitária, das crianças do orfanato, do sentimento de não pertencer a ninguém nem a um lugar.
Porque agora tudo era diferente. Sentia que pertencia a Raphael e viveria com ele para sempre.
Sua vida mudaria. Seria amada, protegida. A sra. Diamond.
Enfim, chegou o dia do casamento.
E Raphael, após ter se negado a passar a noite da véspera num hotel, ideia de Célia, estava no
quarto de Anne havia uma hora. Entrou para levar-lhe uma xícara de café e não saiu mais.
Ele ergueu a cabeça para olhá-la:
— Anne, eu... — Mas parou quando alguém bateu de leve na porta.
— Anne, você já acordou? — Era Célia. — Já é hora de começar a se arrumar.
— Meu Deus! — Raphael pulou do leito, com a camisa amassada, para fora da calça, os cabelos
despenteados. — Célia deve conhecer algumas superstições sobre antigas noi vas, e vai me pôr para
fora daqui!
— Raphael? — Célia chamou, desconfiada. — Você está aí?
Anne abafou a risada no travesseiro ao ver a expressão dele.
— Entre, Célia — ela convidou, apesar do pavor de Raphael.
— Eu ouvi sua voz — Célia ralhou com ele, já dentro do aposento. — Não sabe que dá azar
ver a noiva antes da cerimónia?!
— Viu só, Anne? Eu não disse que ela conhece todas as histórias? Um monte de crendices! As
mulheres desta família não são famosas por sua sorte. Por isso mesmo quase não pedi Anne em
casamento.
— Isso sim é que é crendice — Célia interrompeu-o. Ainda estava muito frágil, mas a doença tinha
se estabilizado. — Eu já lhe contei sobre a morte de sua mãe, Raphael. A de Joana foi um
acidente. Além disso, eu sou uma Diamond, e seu pai e eu vivemos muito felizes durante trinta
anos.
Anne viu, nos últimos três meses, a relação daqueles dois teimosos se transformar em profunda
amizade. E Célia prontificou-se a ajudar no que fosse preciso para o casamento, desde escolher o
vestido de noiva, o vestido de dama de honra de Jéssica, a cerimónia, até a recepção.
O casamento de Anthony e Davina acontecera no mês anterior. Anthony continuou visitando a mãe,
mas ficou longe de Anne e Raphael. Davina não permitiu mais que ele viajasse sozinho. Na
verdade, a aparência e a voz infantil de Davina desapareceram de um dia para o outro para dar
lugar a uma mulher muito mais dominadora do que Célia já fora um dia.
E, com o casamento de Anthony realizado, e seu futuro garantido, Célia dedicou-se por inteiro ao
enlace de Raphael e Anne, que aceitou, aliviada, sua ajuda. Na verdade, o comportamento distante
de Célia nada mais era que uma forma de proteger-se. O passado, por fim, encontrou seu lugar, as
barreiras ruíram e Célia revelou-se uma excelente mãe adotiva para Raphael e também para Anne.
Todos sentiriam muita saudade quando ela partisse.
— Eu sei que vocês foram muito felizes — Raphael tocou com gentileza o ombro de Célia. —
Assim como sei que Anne e eu também seremos.
Anne também não duvidava disso. Os três meses que passara ao lado dele foram mais que
suficientes para garantir um futuro cheio de alegria.
Jamais imaginara o que aconteceria quando foi trabalhar naquela casa. Anne e Raphael formariam
outra família, com Jéssica e Célia incluídas naquele círculo de amor.
Agora Anne estava para se tornar a sra. Diamond, esposa e mãe.
Sua felicidade estava completa.
Para sempre!

FIM

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