Você está na página 1de 6

A HERANÇA

(Ale Silva)

PERSONAGENS: Célia
Lídia
Márcia
Tia Lenita
Júlia

CENA I

Cenário único: sala de estar.


(entra d. Célia, vindo da rua, recolhendo algumas peça de roupa espalhadas pela
sala, em cima do sofá)
CÉLIA – Ai, meu Deus... Essas meninas, nem prá me ajudar... (chamando) Lídia!
Márcia! Bem que me disseram que ser mãe é padecer no paraíso... E eu estou
pagando dobrado por ter duas filhas...
LÍDIA – (entrando, sonolenta) Chamou?
CÉLIA – Lídia, você e sua irmã podiam me ajudar um pouco... Olha só a bagunça
que está esta sala. O quarto de vocês, não quero nem imaginar...
LÍDIA – Ah, mãe... agora não dá! Estou estudando!
CÉLIA – Com essa cara de sono? Conta outra!
LÍDIA – Ué... Não é a senhora que vive dizendo pra gente estudar, ser alguém na
vida e não sei mais o quê?!
CÉLIA – É... o problema é que vocês nunca ouvem o que eu digo. Cadê sua irmã?
LÍDIA – No quarto.
CÉILIA – Dormindo!
LÍDIA – Estudando...
CÉLIA – É incrível como vocês tomam gosto pelo estudo de uma hora para outra.
Principalmente quando se tem serviço para fazer. Só eu sei o quanto vocês
gostam de estudar. Com certeza fazem isso de olhos fechados... e roncando! Vá
chamar sua irmã.
LÍDIA – (gritando) Márcia, a mãe está chamando.
CÉLIA – (com olhar de reprovação) Se fosse pra gritar, eu mesma faria.
MÁRCIA – (entrando) O que foi?

1
LÍDIA – É que você está perdendo um dos melhores momentos das nossas vidas:
o sermão.
CÉLIA – Não é sermão! É uma súplica que faço a vocês. Eu preciso de ajuda para
manter essa casa em ordem. Não consigo fazer os serviços domésticos, cuidar de
vocês e trabalhar fora.
MÁRCIA – Tá bom! Também não precisa dramatizar tanto. A gente ajuda.
CÉLIA – (jogando as roupas que havia recolhido para o alto) Ótimo! Arrumem esta
sala! (vai saindo, pára) À propósito... amo vocês! (sai)
LÍDIA – Nós também te amamos!
MÁRCIA – (mesmo jogo de D. Celia) À propósito...
CÉLIA – (em off) O que foi?
MÁRCIA – Preciso de dinheiro! Para comprar umas coisas...
CÉLIA – (voltando) Eu também! Tem algum para me emprestar? (séria) Filha, eu
queria muito poder ajudar, mas não é tão fácil assim... o que eu ganho mal dá
para cobrir as despesas da casa...
MÁRCIA – É... A senhora nunca tem... (sai, chateada)
LÍDIA – Liga não, mãe! A Márcia está passando por uma febre de consumo: quer
comprar tudo o que vê pela frente...
CÉLIA – E eu, Lídia, estou passando por uma febre financeira... (o telefone toca.
Célia vai atender enquanto Lídia arruma a sala) Alô! Sim, ela mesma!... Pois
não... (improvisos ao telefone, depois de algum tempo:) Tudo bem... Muito
obrigada... Tchau!
LÍDIA – Quem era?
CÉLIA – Dr. Marcondes, advogado da tia Lenita.
LÍDIA – De quem?
CÉLIA – Tia Lenita... A irmã mais velha de sua falecida avó!
LÍDIA – Aquela ricaça, que tem várias fazendas em Minas?
CÉLIA – Ela mesma! Parece que estão preparando o testamento, ou coisa assim.
E nós somos os parentes mais próximos dela.
LÍDIA – Quer dizer então que a tia Lenita vai colocar a gente no testamento dela?

2
CÉLIA – Não sei direito... Ela vai passar uns dias aqui... aí a gente fica sabendo
dos detalhes.
LÍDIA – Mas... sendo da mesma família, por que tia Lenita sempre teve tanto
dinheiro e a vovó Carmem, que era irmã dela, não tinha onde cair morta?
CÉLIA – É uma longa história... Seu bisavô era um homem muito rico e também
muito severo. Quando mamãe disse que iria se casar com seu avô, Pedro, ele
ficou uma fera. Não admitia que uma de suas filhas, herdeira de uma grande
fortuna, se casasse com um empregado da fazenda. Aí os dois fugiram para se
casar e o vovô não a considerava mais como filha, tanto é que a tirou do seu
testamento e a fortuna foi dividida entre tia Lenita e tio Alfredo.
LÍDIA – E o tio Alfredo?
CÉLIA – Viúvo, sem filhos, morreu há alguns anos, num naufrágio quando voltava
de uma viagem à Europa. Seu corpo nunca foi encontrado... Agora, só resta tia
Lenita.
LÍDIA – E que vai passar toda sua fortuna para nós...
CÉLIA – Só mesmo um milagre desses para nos salvar financeiramente...
LÍDIA – Quando ela chega?
CÉLIA – Hoje à noite...
LÍDIA – Já?
CÉLIA – Pois é! Também achei estranho, mas... Deus escreve certo por linhas
tortas...
LÍDIA – Vai ver que no Céu não tem papel pautado...
CÉLIA – Em todo caso... Pobreza, nunca mais!

CENA II

(toca a campainha. Célia vai atender. Márcia e Lídia ficam esperando)


CÉLIA – Tia Lenita! É um prazer conhecê-la. Entre!
TIA LENITA – Obrigada... obrigada, minha filha... Parece que levei uma surra de
pau. Estou toda arrebentada...

3
CÉLIA – Sente-se! Fique à vontade! (Tia Lenita senta-se) Estas são suas
sobrinhas-netas: Márcia e Lídia! (improvisam cumprimentos) Eu vou fazer um
cafezinho. Fique à vontade, tia Lenita. Depois a gente conversa, com mais
calma... Afinal, temos muita coisa para falar, não é verdade?... (sai)
LÍDIA – E então, tia? Como foi de viagem?
TIA LENITA – Ai, um horror! Acho que não tenho mais idade para viagens...
MÁRCIA – (à parte) Acha?....
LÍDIA – (confidencialmente, para a irmã) Márcia, vê se colabora... A gente tem que
fazer a velha ficar à vontade.
MÁRCIA – Não se preocupe, pelo que estou vendo, ela já está bem à vontade.
(olha para Tia Lenita, que tirou os sapatos e colocou os pés sobre o sofá) E outra:
eu acho ridículo ficar paparicando uma velhinha gagá.
LÍDIA – Acontece que essa “velhinha gagá” tem muito dinheiro e vai colocar a
gente no testamento dela.
MÁRCIA – Bom... todo mundo tem seu preço, não é? (mudando de
comportamento) Titia... e então, fale um pouco da senhora.
TIA LENITA – Falar o que, minha filha?... O que uma pobre velha como eu tem
para falar?...
MÁRCIA – Com certeza, muito mais que a gente...
TIA LENITA – Vou fazer melhor! Vou mostrar algumas fotos que tenho aqui...
LÍDIA – Fotos?
TIA LENITA – Isso... das fazendas lá em Minas, das nossas festas de fim de ano...
(fica nostálgica) Que pena...
MÁRCIA – Pena por quê?...
TIA LENITA – Por nada.... por nada...
CÉLIA – (voltando) Que bom, titia, que vai ficar uns dias aqui com a gente...
TIA LENITA – Uns dias nada... Dr. Marcondes não falou?
CÉLIA – Falou o quê?
TIA LENITA – Como vocês são minha família, a partir de agora, vou morar aqui
com vocês.
TODAS – (surpresas) Morar?!

4
TIA LENITA – É... estou muito velhinha.... É preciso que tenha alguém sempre por
perto, sabe, pra quando eu morrer. Ai... agora eu queria descansar um
pouquinho....
CÉLIA – Venha, titia, eu a levo até seu quarto. (pega a mala da velha e a
acompanha, saindo de cena)
MÁRCIA e LÍDIA – (dando pulos de alegria) Estamos ricas! Estamos ricas!
LÍDIA – Já estou até me vendo... fazendeira!
MÁRCIA – Eu não quero nem saber de trabalhar... Quero só curtir, aproveitar o
máximo, passar a vida viajando... França.... Itália... Espanha... Suíça... (saem de
cena)

CENA III

(é manhã. Célia está deitada no sofá, lendo uma revista, quando Márcia entra.)
MÁRCIA – Ué, mamãe... não foi trabalhar hoje?
CÉLIA – Nem hoje, nem nunca mais! Deixei o emprego! A partir de agora vou
tomar conta da tia Lenita. (pausa) Não é pelo dinheiro... é que ela precisa de
alguém para tomar conta dela, coitada, e como você e sua irmã só sabem dormir...
MÁRCIA – Sei... (toca a campainha) Deixa que eu atendo! (abre a porta, aparece
uma moça vestida de secretária)
JÚLIA – Bom dia!
MÁRCIA – Bom dia!
JÚLIA – É aqui que mora D. Célia Junqueira?
MÁRCIA – É sim... Um momento! (chamando) Mãe, pra você...
CÉLIA – (indo atender) Pois não!?
JÚLIA – D. Célia Junqueira?
CÉLIA – Sim.
JÚLIA – Eu sou Júlia, secretária do dr. Marcondes, advogado da d. Lenita.
CÉLIA – Ah, sim... Ela comentou que o dr. Marcondes poderia vir aqui hoje.

5
JÚLIA – Pois é! Ele precisou fazer uma viagem de última hora e pediu para que eu
viesse em seu lugar, já que o que temos a resolver é coisa simples.
CÉLIA – Por favor, entre! (ela entra, fica mais à vontade. Lídia entra com Tia
Lenita, que faz uma cara de espanto ao ver a moça e volta rapidamente para o
quarto. Lídia e Márcia estranham. Sentam-se e ficam ouvindo a conversa entre
Célia e Júlia) Aceita alguma coisa, um café, quem sabe?...
JÚLIA – Não, obrigada... estou com um pouco de pressa. Acredito que a senhora
já deve estar à par de toda situação. Ou resta ainda alguma dúvida?
CÉLIA – Estou, estou sim... Conversei muito com tia Lenita, ontem à noite. Já
sabemos que ela vai morar aqui com a gente... estamos a par de tudo.
JÚLIA – Ótimo! Então só é preciso que a senhora assine aqui, para que o dr.
Marcondes dê entrada nos papéis e cuide, o mais rápido possível, da parte
jurídica.
CÉLIA – Pois não... (assina, sem mesmo ler) Mais alguma coisa?
JÚLIA – É só, obrigada! (levanta-se e vai saindo) Na semana que vem um
contador virá aqui para fazer o levantamento de todas contas e negociar um prazo
para o pagamento.
CÉLIA – (estranhando) Pagamento?
JÚLIA – É... Como d. Lenita perdeu tudo o que tinha, em maus negócios, a única
fazenda que restou, se for vendida, não vai dar para pagar nem a metade das
contas que tem. Os médicos, depois de examiná-la, concluíram que ela não tem
condições nenhuma de tomar qualquer decisão. Como a senhora passa a ser
responsável por ela, fica também sob sua responsabilidade cuidar dos seus bens,
ou nesse caso, quitar as dívidas! (todas olham para o quarto onde está Tia Lenita,
boquiabertas)
CÉLIA – (desesperada) Eu não acredito!!
JÚLIA – (percebendo o clima) Bom, se me dão licença eu já vou indo. Tenham um
bom dia! (sai)
CÉLIA – (furiosa) Tia Lenita!! (sai para o quarto)
LÍDIA – E a mamãe disse que Deus escrevia certo por linhas tortas...
MÁRCIA – Se for verdade... vai ter caligrafia ruim assim no inferno! (saem)

Você também pode gostar