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EDWARD T.

HALL

,."
A DIMENSAO
OCULTA

Tradução de Miguel Serras Pereira

c:J1d,
~ eu..
Rua Sylvio Rebelo, n~ 15
1000 Lisboa - Telef. 8470775
© Edward T. Hall
Título: A DIMENSÃO OCULTA
Título Original: TH E HIDDEN DIMENSION
Autor: EDWARD T. HALL
Tradutor: MIGUELSERRAS PEREIRA
Capa: Arranjo de Jorge Colombo sobre foto com Edward T. Hall

© Relógio d' Água e tradutor para esta edição


Composição: Intergráfica, Publicidade e Artes Gráficas, Lda. COLECÇÃO ANTROPOS
Impressão e acabamento: Arco Íris, Artes Gráficas, Lda.

Depósito Legal N.· 12988/86


x
As distâncias no ser humano

As aves e os mamiferos não só possuem territórios que ocupam e


defendem contra os indivíduos da sua própria espécie, mas observam
igualmente entre si uma série de distâncias constantes. Hediger classi-
ficou-as em distância de fuga, distância critica e distâncias pessoal e
social. Também o ser humano observa distâncias uniformes nas rela-
ções que mantém com os seus semelhantes. Com raras excepções, a
distância de fuga e a distância critica foram eliminadas das reacções
humanas. Mas é evidente que as distâncias pessoal e social continuam
a existir.
Quantas distâncias desse tipo possuem os seres humanos, e como
as distinguiremos? Em que é que uma distância difere de outra? A
resposta a estas perguntas não me parecia evidente quando comecei as
minhas investigações acerca do problema das distâncias no ser huma-
no. Pouco a pouco, todavia, os dados que recolhi convenceram-me de
que a constância das distâncias no ser humano é o resultado de modi-
ficações sensoriais cujos tipos foram descritos nos capitulos VII e VIII.
A intensidade da voz é uma fonte corrente de informação acerca da
distância que separa dois individuos. No decurso dos meus trabalhos
em colaboração com o linguista George Trager, comecei por observar
a existência de uma relação entre as modificações da voz e as' mudan-
ças das distâncias. O sussurrar é utilizado quando os interlocutores se
encontram muito próximos um do outro, e o grito é destinado a atra-
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vessar grandes distâncias; sendo assim, a questão que G. Trager e eu da de forma semelhante à dos outros animais. A sua percepção do es-
próprio colocávamos era a de determinar o número de posições vocais paço é dinâmica porque se encontra ligada à acção - ao que pode ser
que existem entre entre dois extremos. Procedemos da seguinte manei- realizado num dado espaço -, mais do que àquilo que pode ser visto
ra: Trager permanecia imóvel enquanto eu lhe falava a diferentes dis- por contemplação passiva.
tâncias. Quando concordávamos que uma transformação vocal se pro- A incapacidade geral de captar a importância dos numerosos ele-
duzira, medíamos a nova distância entre nós e estabelecíamos uma mentos que contribuem para criar o sentimento humano do espaço
descrição da situação. Foi assim que obtivemos as oito distâncias des- prende-se a duas concepções erróneas: de acordo com a primeira, exis-
critas em The Si/ent Language, no final do respectivo capítulo décimo. tiria para cada efeito uma causa identificável e única; de acordo com a
Observações ulteriores realizadas sobre indivíduos colocados num segunda, o ser humano está de uma vez por todas contido nos limites
contexto social persuadiram-me de que essas oito distâncias eram de- da sua pele. Quando nos libertamos da nossa aspiração à explicação
masiado complicadas. Bastavam quatro, a que chamei, distinguindo- única e quando conseguimos imaginar o homem prolongado por uma
-as, íntima, pessoal, social e pública - cada uma delas comportando série de campos de extensão constantemente variável, fornecendo-lhe
dois modos: modo próximo e modo longínquo. Esta escolha terminolô- indicações de toda a espécie, começamos a percepcionâ-lo a uma luz
gica foi deliberadamente feita por mim. Inspirava-se não só nos traba- inteiramente nova. É então que podemos começar a instruir-nos sobre
lhos sobre animais de Hediger, que pôs em evidência a continuidade o comportamento humano e, em particular, sobre os diferentes tipos
entre a infracultura e a cultura, mas destinava-se também a evocar o de personalidade. Porque existem não somente introvertidos e extro-
tipo de actividades e relações próprios de cada distância considerada, vertidos, tipos autoritários e tipos igualitários, apolíneos e dionisíacos,
associando-as assim a categorias específicas de actividades e relacio- bem como toda a infinidade dos tipos caracteriais, mas cada um de
nais. Notemos aqui que os sentimentos recíprocos dos interlocutores nós possui ainda um certo número de personalidades situacionais
um para com o outro, no momento analisado, constituem um factor aprendidas, cuja forma mais simples se liga aos nossos comportamentos
decisivo na determinação da sua distância. Assim, indivíduos forte- no decurso dos diferentes tipos de relações íntimas, pessoais, sociais e
mente encolerizados ou muito desejosos de convencerem o seu interlo- públicas. Certos indivíduos não desenvolvem nunca a face pública da sua
cutor aproximar-se-ão deste e accionarão, de certo modo, o «botão da personalidade e não podem, por conseguinte, vir jamais a preencher um
intensidade», gritando. Do mesmo modo, qualquer mulher saberá re- espaço público. São oradores medíocres, igualmente incapazes de dirigir
conhecer imediatamente que um homem está a começar a apaixonar- discussões de grupo. Numerosos psiquiatras sabem que outros indivíduos
-se por ela pela maneira como ele se aproxima. E se não experimentar têm problemas com as regiões íntimas da sua personalidade, sendo inca-
os mesmos sentimentos, a mulher saberá dar testemunho disso por pazes de suportar situações de promiscuidade.
meio de uma forma adequada de retraimento. Este género de conceito nem sempre é de fácil compreensão porque
a maior parte dos mecanismos ligados à apreensão das distâncias se
produz inconscientemente. Sentimos os outros próximos ou distantes,
O DINAMISMO DO ESPAÇO sem que nos seja sempre possível dizer qual a base de semelhante sa-
ber. Produzem-se tantos acontecimentos ao mesmo tempo que é difícil
Vimos no capítulo VII que, no ser humano, o sentido do espaço e seleccionar as fontes de informação que determinam as nossas reac-
da distância não é estático e tem muito poucas relações com a perspec- ções. Será o tom da voz, a atitude ou a distância do interlocutor? A
tiva linear elaborada pelos artistas do Renascimento e ainda ensinada opção por uma das alternativas necessita de uma observação minucio-
nos nossos dias na maior parte das escolas de arte e de arquitectura. sa, de longa duração, incidindo sobre uma grande variedade de situa-
Muito pelo contrário, podemos dizer que o ser humano sente a distân- ções no decurso das quais as mínimas transformações sejam regista-
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das. Ê assim que a percepção do calor corporal de outrem permitirá DISTÂNCIA ÍNTIMA
marcar a fronteira entre espaços íntimos e não íntimos. Um cheiro a
cabelos lavados de fresco e a visão de um rosto toldado pela excessiva A esta distância particular, a presença do outro impõe-se e pode
proximidade associar-se-ão com uma sensação de calor para criar a tornar-se mesmo invasora pelo seu impacto sobre o sistema perceptivo.
impressão de intimidade. Experimentando sobre nós próprios o contro- A visão (muitas vezes deformada), o cheiro e o calor do corpo do ou-
lo e registo dos diferentes modelos de informação sensorial, é possível tro, o ritmo da sua respiração, o cheiro e o sopro do seu hálito, consti-
determinarmos os pontos de estruturação do sistema de apreciação das tuem em conjunto os sinais irrefutáveis de uma relação de cometimen-
distâncias. De facto, trata-se de identificar um a um os elementos que to com um outro corpo.
constituem esses conjuntos particulares que são as zonas íntima, pes-
soal, social e pública.
As descrições apresentadas a seguir dos nossos quatro tipos de dis- Distância íntima - modo próximo
tância foram fixadas a partir de observações e entrevistas realizadas
com um conjunto de indivíduos adultos saudáveis de- tipo sem- Esta distância é a do acto sexual e a da luta, a do reconforto e a
-contacto, pertencentes à classe média e oriundos, na sua maioria, da da protecção. O contacto físico ou a sua iminência verosímil domina a
costa nordeste do continente americano. Uma forte percentagem dos consciência dos parceiros. O emprego dos receptores de distância é ex-
sujeitos observados era constituída por mulheres e homens dos meios tremamente reduzido, à excepção do olfacto e da percepção do calor
de negócios ou de profissões liberais. Muitos de entre os casos estuda- irradiado, que se intensificam. No decurso da fase de contacto máxi-
dos poderiam ser considerados como casos de intelectuais. As' entrevis- mo, os músculos e a pele entram em comunicação. A região pélvica,
tas eram eneutrass: os sujeitos não apresentavam qualquer sinal apa- as coxas e a cabeça podem participar neste contacto; os braços podem
rente de excitação, de depressão ou de cólera. O ambiente circundante rodear o parceiro. A visão precisa tolda-se, excepto no seu campo mais
não continha qualquer elemento anormal, como o excesso de tempera- longínquo. Quando a visão próxima é possível a esta distância mínima
tura ou de ruídos. Tratava-se de um primeiro estudo de carácter apro- - como acontece com as crianças -, a imagem torna-se forçosamente
ximativo. As nossas descrições parecerão certamente grosseiras quando aumentada e excita a quase totalidade da retina. Os pormenores sã
a observação proxémica tiver progredido e se conhecerem os mecanis- então percebidos com uma precisão extraordinária. O jogo dos múscu-
mos subjacentes à percepção diferencial das distâncias. Para mais, es- los ópticos, que envesgam a visão, reforça ainda a acuidade e a especi-
tas generalizações não se referem ao comportamento humano em ge- ficidade desta experiência visual que mais nenhuma distância propor-
ral; são válidas apenas para o grupo observado, que não coincide ciona. A esta distância íntima, a voz desempenha um papel menor no
sequer com a generalidade dos americanos. Os negros e os sul- processo de comunicação, o qual se realiza por outros meios. O mur-
-americanos, tal como os indivíduos pertencentes às culturas da Euro- múrio tem como efeito aumentar a distância. As eventuais manifesta-
pa meridional, possuem estruturas proxémicas diferentes. ções vocais são, na sua maior parte, involuntárias.
Cada uma das quatro distâncias descritas a seguir comporta duas
modalidades, a próxima e a longínqua, cuja descrição será em cada
caso precedida de Uma curta introdução. Ê de notar que as distâncias Distância íntima - modo afastado
medidas podem variar ligeiramente com a personalidade dos sujeitos e (distância de lS a 40 centímetros)
as características do ambiente. Por exemplo, um ruído intenso ou uma
luz fraca terão geralmente como efeito aproximar os indivíduos uns Aqui, cabeças, coxas, bacias não se encontram facilmente em con-
dos outros. tacto, mas as mãos podem juntar-se. A cabeça é vista como maior do
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que o natural e os traços são deformados. A possibilidade de focalizar que permitem retirar toda a verdadeira intimidade ao espaço íntimo
facilmente constitui para os americanos um carácter importante desta nos transportes públicos. A táctica de base consiste em permanecer tão
distância. Com efeito, a 15 ou 20 centímetros, a íris do outro aumenta imóvel quanto possível e, se for exequível, esquivar-se ao primeiro con-
sensivelmente. Distinguem-se nela os capilares da esclerótica e os po- racto estranho. Em caso de impossibilidade, os músculos das zonas em
ros parecem mais largos. A visão distinta (15 graus) inclui a parte su- causa devem permanecer contraídos. Com efeito, para os membros de
perior ou a parte inferior do rosto, que aumenta. O nariz torna-se grupos sem-contacto, distensão ou prazer são proibidos no contacto
mais comprido e pode parecer deformado, tal como os lábios, os den- corporal com estranhos. É por isso que, nos elevadores a abarrotar, as
tes e a língua. A visão periférica (de 30 a 180 graus) engloba os con- mãos devem ficar ao longo do corpo ou servir somente como meio de
tornos da cabeça e dos ombros e, com muita frequência, as mãos. segurar a barra de apoio. Os olhos devem, por seu lado, fixar o infini-
Uma parte da perturbação física experimentada pelos americanos to e não se demorarem mais do que um instante sobre seja quem for
quando há estranhos que entram inesperadamente na sua esfera ínti- de entre os presentes.
ma é sentida como uma distorção do sistema visual. Um dos indiví- Repitamos que estes modelos proxémicos americanos relativos à
duos estudados dizia: ~Essas pessoas chegam-se tão perto de si que o distância não têm qualquer valor universal. Assim, até as regras que
fazem entortar os olhos. Isso põe-me muito nervoso. Põem a cara tão determinam relações tão íntimas como o contacto corporal com outrem
perto da sua que você julga que os sente em si prôprio.» É quando a estão longe de ser constantes. Por exemplo, os americanos que tiveram
focalização precisa se torna impossível que se experimenta a sensação ensejo de entrar em contacto aprofundado com russos notam que mui-
muscular de entortar os olhos por se estar a olhar para um objecto de- tos dos traços típicos da distância íntima para os americanos caracteri-
masiado próximo. Expressões como: lGet your face out of mine» (Tire zam para os russos a distância social. Como teremos ocasião de ver no
a sua cara de cima de mim), ou «He shook his fist in my face (Ele agi- capítulo seguinte, as populações do Médio Oriente não mostram as
tou o punho na minha cara) revelam o modo como os americanos per- mesmas reacções intensas que se observam nos americanos quando,
cepcionam os limites do corpo. ocasionalmente, Ihes acontece sofrerem em público o contacto de es-
A distância de 15 a 45 centímetros, a voz é utilizada, mas conser- tranhos.
vando-se num registo mais abafado, que pode ser o do murmúrio.
Como escreve o linguista Martin Joos: ~Este modo íntimo de locução
,~I
evita dar ao destinatário informações que não provenham do próprio DISTÂNCIA PESSOAL
corpo do locutor. Trata-se simplesmente de (... ) lembrar ao receptor a
existência de algum sentimento (... ) situado no interior do emissor.» O O termo (distância pessoal», devido a Hediger, designa a distância
calor e o cheiro do hálito do outro são perfeitamente detectâveis, ainda fixa que separa os membros das espécies sem-contacto. Podemos ima-
que este tente dirigi-Ios para fora do campo perceptivo do sujeito. O ginar a coisa sob a forma de uma pequena esfera protectora, ou de um
subir ou descer da temperatura do corpo do outro começa a poder ser balão, que um organismo criasse à sua volta para se isolar dos outros.
percebido por alguns sujeitos.
A prática da distância íntima em público não é admitida pelos
adultos americanos da classe média, embora os respectivos filhos pos- Distância pessoal - modo próximo
sam ser observados mantendo contactos íntimos nos automóveis e nas (distância de 4S a 7S centímetros)
praias. Os transportes colectivos cheios podem colocar pessoas comple-
tamente estranhas em relações de proximidade que seriam normalmen- O sentido quinestésico da proximidade é em parte função das pos-
te consideradas íntimas; mas os utentes dispõem de armas defensivas sibilidades que a distância proporciona aos interessados de se agarra-
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A Dimensão Oculta 141

rem ou tocarem pelas suas extremidades superiores. A esta distância,


crescências e pequenas rugas, manchas do vestuário - tudo isto é
já não se verifica distorção visual dos traços do outro. No entanto, re-
bem visível também. A superfície coberta pela visão da fóvea não ul-
gista-se uma reacção sensível por parte dos músculos que controlam a
trapassa a da ponta do nariz ou de um olho, de tal modo que o olhar
actividade dos olhos. O leitor poderá fazer por si próprio a experiên-
tem que se deslocar à volta do rosto (a orientação do olhar é rigorosa-
cia, se olhar para um objecto a uma distância de 45 a 90 centímetros,
mente função de um condicionamento cultural). A visão clara de 15
tentando concentrar a atenção nos músculos oculares. Sentirá então a
graus recobre a parte superior ou a parte inferior do rosto, enquanto a
tensão exercida por esses músculos com vista aos dois olhos se mante-
visão periférica de 180 graus integra as mãos e a totalidade do corpo
rem fixados num ponto único, de modo a fazer coincidir as duas ima-
de uma pessoa sentada. Distingue-se o movimento das mãos, mas não
gens. Premindo ligeiramente com o dedo a superfície da pálpebra infe-
é possível contar os dedos. A altura da voz é moderada. O calor corpo-
rior para deslocar o globo ocular, torna-se possível darmo-nos conta do
ral não é perceptível. Embora o olfacto não entre normalmente em jo-
trabalho que esses músculos realizam para conservarem uma imagem
go para os americanos, intervém, apesar de tudo, num grande número
única e coerente. De um ângulo visual de 15 graus, percebemos com
de outros povos, que se servem de águas-de-cheiro para criarem o seu
uma nitidez excepcional a parte superior ou inferior de um rosto; os
ehalo» olfactivo. O cheiro do hálito pode ser, por vezes, perceptível a
planos e o volume dos rostos tornam-se mais acentuados; o nariz toma
esta distância, mas os americanos estão geralmente habituados a diri-
relevo e as orelhas achatam-se; a pilosidade do rosto, os cílios e os po-
gir o hálito para fora do campo respiratório dos outros.
ros são bem visíveis. O relevo dos objectos é particularmente pronun-
ciado: volume, matéria e forma apresentam uma qualidade sem igual
a qualquer outra distância. Do mesmo modo, as texturas são claras e DISTÂNCIA SOCIAL
nitidamente percebidas nas suas diferenciações. As posições respectivas
dos indivíduos revelam a natureza das suas relações ou dos seus senti- A fronteira entre o modo longínquo da distância pessoal e o modo
mentos. Uma esposa pode impunemente manter-se na zona de proxi- próximo da distância social marca, segundo as palavras de um dos su-
midade do marido, mas o mesmo não acontece com outra mulher. jeitos inquiridos, «o limite do poder sobre outrem». Os pormenores
íntimos do rosto já não são percepcionados e ninguém toca ou se espe-
ra que toque outrem, excepto se realizar um esforço determinado nesse
Distância pessoal - modo longínquo sentido específico. Para os americanos, a altura da voz é normal. A di-
(distância de 7S a 12S centímetros)
ferença entre os modos próximo e longínquo é mínima e as conversas
podem ouvir-se até seis metros. A esta distância, observei que, em mé-
A expressão inglesa manter alguém at arm's length (à distância do dia, a voz do americano é menos forte do que a do árabe, do espa-
comprimento do braço) sugere uma definição do modo longínquo da nhol, do indiano do Sul da Ásia, mas um pouco mais forte do que a
distância pessoal. Esta distância inclui-se entre o ponto que está preci- do inglês instruído, do asiático do Sudeste e do japonês.
samente para além da distância de contacto fácil e o ponto onde os de-
dos se tocam na condição dos dois indivíduos estenderem os braços si-
multaneamente. Trata-se, em suma, do limite do alcance físico em re- Distância social - modo próximo
lação a outrem. Para além dele, é difícil dar uma mão a alguém. A tal (distância de 1,20 a 2,10 metros)
distância, podemos discutir assuntos pessoais. A dimensão da cabeça é
bem percebida e os traços do outro surgem com clareza. Textura da A dimensão da cabeça é normalmente percepcionada; à medida
pele, cabelos brancos, pregas dos olhos, imperfeições dos dentes, ex- que nos afastamos do sujeito da observação, a região da fóvea do olho
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integra uma parte crescente da pessoa. A uma distância de 1,20 me- cerca de 3,60 metros, verificamos que os músculos oculares, habitua-
tros, um ângulo visual de 1 grau compreende uma superfície que não dos a manterem os olhos fixados num ponto único, deixam rapida-
vai além de um olho. Mas a 2,10 metros, a zona de visão aguda esten- mente de reagir. São os olhos e a boca do outro o que vemos com
de-se ao nariz e a uma parte dos olhos; ou são, em alternativa, por maior acuidade. Portanto, já não é necessário movermos os olhos para
exemplo, toda a boca, um olho e o nariz a ser percepcionados. Nume- captarmos o conjunto do rosto do interlocutor. No caso de entrevistas
rosos americanos olham alternadamente cada um dos olhos ou os dois, prolongadas, é mais importante manter o contacto visual a esta distân-
e a seguir a boca. O pormenor da pele e dos cabelos é percepcionado cia do que a uma distância mais próxima.
com nitidez. De um ângulo visual de 60 graus, a cabeça, os ombros e Este tipo de comportamento próximo é condicionado pela cultura e
o cimo do corpo são visíveis a uma distância de 1,20 metros. Esta dis- inteiramente arbitrário. É constrangedor para todos os interessados.
tância é a das negociações impessoais e o modo próximo implica, bem Não fixar o interlocutor equivale a negá-Io e a interromper a conversa;
entendido, mais participação do que o modo longínquo. As pessoas damo-nos conta de que as pessoas que conversam a tal distância esten-
que trabalham juntas praticam geralmente a distância social próxima. dem o pescoço e inclinam-se para um lado e para outro a fim de evita-
Esta vale também de modo corrente nas reuniões informais. A esta rem os obstáculos. Do mesmo modo, no caso de duas pessoas, das
distância, olhar de pé e a direito uma pessoa sentada evoca a impres- quais uma está sentada e a outra de pé, o contacto visual prolongado
são de dominação do homem que se dirige à sua secretária ou à sua a menos de 3,10 metros ou 3,60 metros revela-se fatigante para os
assessora. músculos do pescoço; é por isso que os subordinados evitam geralmen-
te esse desconforto aos seus patrões. Todavia, se os papéis forem inver-
tidos, e se o subordinado estiver sentado, acontece muitas vezes o pa-
Distância social - modo longínquo trão aproximar-se. Neste modo afastado, a voz é sensivelmente mais
(distância de 2,10 a 3,60 metros) alta do que no modo próximo, e, em geral, ouvimo-Ia facilmente de
uma sala vizinha, se a porta estiver aberta. Levantar a voz ou gritar
É a distância a que nos colocamos quando nos dizem: (Afaste-se pode ter como resultado reduzir a distância social a distância pessoal.
um bocado para lá para eu poder olhar para si». Quando as relações No plano próximo, o modo longínquo da distância social pode ser-
profissionais ou sociais decorrem segundo o modo longínquo, assumem vir para isolar ou separar os indivíduos. Assim, permite trabalhar sem
um carácter mais formal do que na fase de proximidade. Nos gabine- falta de cortesia na presença de outrem. Um exemplo particularmente
tes das personalidades importantes, a dimensão da mesa de trabalho preciso é o proporcionado pelas recepcionistas que devem preencher
instala os visitantes de acordo com este modo longínquo da distância uma dupla função: de anfitriãs e de dactilógrafas. Colocada a menos
social. Mesmo nos escritórios ou gabinetes de mesas estandardizadas, de três metros dos outros (mesmo queestranhos), a recepcionista sen-
as cadeiras dos visitantes acham-se colocadas a uma distância de 2,50 tir-se-ia demasiado envolvida para não sesentir virtualmente obrigada
metros ou 3 metros da pessoa que está por trás das mesa. O modo a conversar. Em compensação, se tiver mais espaço, poderá trabalhar
longínquo da distância social 'já não permite distinguir os pormenores com toda a liberdade, sem se sentir coagida a falar. Igualmente, os
mais subtis do rosto, como os vasos capilares dos olhos, por exemplo. maridos que voltam do trabalho têm muitas vezes o hábito de se senta-
Mas continuam a ser preceptíveis com nitidez a textura da pele, a rem, para ler o jornal e se distenderem a três metros ou mais das suas
qualidade dos cabelos, o estado dos dentes e o vestuário. A esta dis- esposas, porque é essa distância que Ihes permite não sentirem qual-
tância, nenhum dos sujeitos da minha investigação foi capaz de detec- quer constrangimento. Certas mulheres chegarão até ao ponto de dis-
tar o calor ou o cheiro corporais. De um ângulo de 60 graus, a silhue- porem as poltronas costas contra costas: solução sociófuga que Chick
ta inteira é percepcionada rodeada de um certo espaço. Para mais, a Young, o criador de Blondie, aprecia especialmente nos seus desenhos.
Edward T. Hall A Dimensão Oculta 145
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A disposição costas contra costas é uma boa solução para a falta de sident (1960), Theodore H. White apresenta-nos um excelente exemplo
espaço, porque permite que duas pessoas se isolem assim, se o preten- desta distância oficial, ao descrever, no momento em que a nomeação
de John F. Kennedy se tornou certa, o encontro deste último com o
derem, uma da outra.
grupo de personalidades que viera felicitâ-Io a casa.
«Kennedy entrou em passo de corrida na vil/a, com o seu andar li-
DISTÂNCIA PÚBLICA
geiro e rítmico, jovem e ágil, e saudou as pessoas que se encontravam
Diversas transformações sensoriais importantes se verificam quando no seu caminho. Depois, pareceu deslizar para longe delas, enquanto
passamos das distâncias pessoal e social para a distância pública, si- descia os degraus da vivenda, construída em vários planos, em direc-
tuada fora do círculo imediato de referência do indivíduo. ção a um canto onde o seu irmão Bobby e o seu cunhado Sargent
Shriver conversavam à espera dele. As outras pessoas que se achavam
na sala fizeram um movimento para avançarem na sua direcção. De-
Distância pública - modo próximo
(distância de 3,60 a 7,50 metros) pois pararam. Talvez uns dez metros as separavam dele, mas tratava-
se de uma distância intransponível. Aqueles homens mais velhos, cujo
A 3,60 metros, um indivíduo válido pode adoptar um comporta- poder se encontrava consolidado de havia muito, mantinham-se à par-
mento de fuga ou de defesa, se se sentir ameaçado. É mesmo possível te e observavam-no. Ele voltou-se ao fim de poucos minutos, viu-os a
que tal distância desencadeie uma forma de reacção de fuga vestigial, observarem-no e murmurou algumas palavras para o cunhado. Então,
mas subliminar. A voz é alta mas não atinge o seu volume máximo. Shriver atravessou o espaço que os separava dos outros e convidou-os a
Os linguistas observaram que esta distância implica uma elaboração aproximarem-se. Primeiro, Averell Harriman; depois, Dick Daley; de-
particular do vocabulário e do estilo, que provoca transformações de pois, Mike Di Salle; depois, cada um por sua vez, segundo uma ordem
ordem gramatical e sintáctica. O termo «estilo formal» adoptado por determinada pelo instinto e o critério do próprio candidato, todos pu-
Martin Joos parece adequado: «Os textos formais ... exigem uma pre- deram felicitá-lo, Mas ninguém podia atravessar sem ser convidado a
paração (. .. ) pode dizer-se, na verdade, que o orador pensa de pé.» O curta distância que se desdobrava entre o candidato e os outros, por-
ângulo do máximo de acuidade visual (um grau) cobre o conjunto do que lá estava aquela leve separação à volta dele, e os outros sabiam
rosto. A partir de 4,80 metros, o corpo começa a perder o volume e que se encontravam ali não como seus protectores, mas como seus pro-
parece achatar-se. A cor dos olhos começa a tornar-se indefinida; ape- tegidos. Não podiam aproximar-se sem convite prévio, porque estava
nas o branco da córnea é visível já. A cabeça surge muito abaixo da ali alguém que poderia muito bem vir a ser em breve Presidente dos
Estados Unidos.»
sua dimensão natural. De um ângulo de lS graus, a zona de visão dis-
tinta (em forma de losango) engloba os rostos de duas pessoas situadas A distância pública comum não se reserva apenas às personalida-
a 3,60 metros, enquanto que de um ângulo de 60 graus, inclui a totali- des políticas, mas p.9de ser utilizada igualmente por não importa
dade do corpo e um pouco de espaço à sua volta. As outras pessoas quem. Os actores, por ex~plo, sabem muito bem que, a partir de
são percepcionadas através da visão periférica. uma distância de 10 metros.ia subtileza dos cambiantes de sentido da-
dos pela voz normal escapa e se perde, tal como os pormenores da ex-
Distância pública - modo afastado pressão e dos gestos. Portanto, precisam não só de levantar a voz, mas
(distância de 7,50 metros ou maior) de exagerar e acentuar o conjunto do seu comportamento. O essencial
da comunicação não verbal é então garantido por gestos e posturas.
A distância de 9 metros é a que impõem automaticamente as per- Além disso, o ritmo da elocução afrouxa, as palavras são melhor arti-
sonalidades oficiais importantes. No seu livro The Making of The Pre- culadas e observam-se também mudanças estilísticas. É o estilo «gela-
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A Dimensão Oculta 147

do» definido por Martin Joos: (Estilo próprio dos indivíduos destinados
depois as noções de personagem público e de relações públicas. As re-
a manterem-se estranhos.» A tal distância, o indivíduo pode parecer
lações e os comportamentos (públicos» dos americanos e dos europeus
muito pequeno e, de qualquer modo, torna-se parte integrante de um
são diferentes dos praticados noutros lugares do mundo. Assim, para
quadro ou de um fundo específico. Graças à visão da fóvea, podemos
os primeiros, é implicitamente obrigatório tratar os estrangeiros segun-
fazê-lo entrar por completo no campo restrito da visão mais nítida
do certos modos determinados. De onde a existência das quatro cate-
(acuidade máxima). Mas, neste estádio, os seres humanos têm as di-
gorias principais de relações interindividuais (íntimas, pessoais, sociais
mensões de uma formiga; a ideia de um contacto possível com eles
e públicas) e das actividades e espaços que se lhes ligam. No resto do
deixa de ter sentido. O cone da visão de 60 graus integra o quadro dos
mundo, as relações interindividuais serão regidas por outras estrutu-
personagens, enquanto a visão periférica tem por principal função
ras: por exemplo, a estrutura dualista, familiar ou não familiar que se
adaptar a imagem do indivíduo aos movimentos laterais.
observa em Espanha e em Portugal, ou nas suas antigas colónias, ou
ainda o sistema das castas (e fora de castas) praticado na Índia. Os
PORQUÊ (QUATRO» DISTÂNCIAS? árabes e os judeus também estabelecem uma grande diferença entre os
que lhes são aparentados e os demais. Os meus estudos sobre os ára-
Para terminar esta descrição das zonas das distâncias comuns à bes levaram-me a pensar que eles organizam o seu espaço dnforrnals
nossa amostra com indivíduos americanos, convém acrescentar uma de acordo com um sistema muito diferente do que observei nos Esta-
última palavra acerca da classificação. Porquê quatro zonas e não seis dos Unidos. A relação do camponês árabe ou do fellah com o seu xe-
ou oito? Porquê até zonas? Como sabemos que' esta classificação é vá- que ou com o seu Deus não é de modo nenhum pública, mas, pelo
lida? Em função de que critérios a estabelecemos? contrário, íntima e pessoal, não comportando qualquer intermediário.
Como indiquei já acima (capítulo VIII), o homem de ciência exige Ainda muito recentemente, concebiam-se as exigências espaciais do
um sistema de classificação que possa, ao mesmo tempo, fornecer a homem em termos do volume do ar efectivamente deslocado pelo seu
melhor explicação dos fenómenos observados e (aguentar-se» o tempo corpo. Era geralmente ignorado o facto de a pessoa se encontrar pro-.
suficiente para ser útil. longada a todo o momento, por assim dizer, pelas zonas acima descri-
Cada sistema de classificação implica uma teoria ou hipótese laten- tas. A diversidade dessas zonas (e, de facto, a sua própria existência)
te referente à natureza e às estruturas fundamentais dos fenómenos só se revelou quando os americanos começaram a ter contactos conti-
observados. A hipótese subentendida pelo sistema de classificação pro- nuados com povos cuja organização sensorial é diferente. É assim que
xémico é a seguinte: o comportamento a que chamamos territorialída- um elemento definido como íntimo numa cultura dada pode tornar-se
de pertence à natureza dos animais e, em concreto, do ser humano. pessoal ou mesmo público numa outra. Foi perante fenómenos seme-
Neste comportamento, homem e animal servem-se dos seus sentidos lhantes que, pela primeira vez, o americano tomou consciência dos
para diferenciar as distâncias e os espaços. A distância escolhida de- seus próprios revestimentos espaciais, os quais lhe pareciam, anterior-
pende das relações interindividuais, dos sentimentos e actividades dos mente, óbvios.
indivíduos envolvidos na situação dada. O nosso sistema de classifica- A faculdade de identificar as diferentes zonas afectivas referidas,
ção quadripartida resulta de observações praticadas ora sobre o ser bem como as actividades, as relações e as emoções que se lhes encon-
humano ora sobre os animais. Os pássaros e os macacos possuem, tal tram respectivamente associadas, tornou-se hoje de uma considerável
como o homem, distâncias íntima, pessoal e social. importância. As populações do mundo inteiro invadem as cidades en-
O homem ocidental organizou as suas actividades e relações sociais quanto construtores e especuladores acumulam os habitantes em gi-
segundo um conjunto de distâncias determinado ao qual acrescentou gantescas caixas verticais que são, ao mesmo tempo, escritórios e resi-
dências. Se considerarmos o indivíduo humano à maneira dos antigos
148 Edward T. Hall

mercadores de escravos, e se medirmos a sua necessidade de espaço


em termos de limites corporais, negligenciaremos, sem dúvida, as con-
sequências que o excesso populacional pode implicar. Mas se conside-
rarmos que o homem se encontra como que rodeado por uma série de
«balõess invisíveis cujas dimensões são mensuráveis, a arquitectura
passa a surgir-nos de um ponto de vista radicalmente novo. Torna-se XI
então concebível que os indivíduos sejam sufocados pelos espaços onde
se vêem obrigados a viver e a trabalhar. Compreendemos que possam
ser constrangidos a comportamentos ou a manifestações emocionais Proxémia comparada
que são sinal evidente de um stress demasiado violento. Como nas leis
da gravitação, a influência que exercem dois corpos um sobre o outro das culturas alemã,
é inversamente proporcional não só ao quadrado, mas talvez mesmo
ao cubo, da distância que os separa. Ã medida que o stress se torna
inglesa e francesa
mais severo, a sensibilização à massa humana acumulada sobe por
igual - tal como a irritabilidade -, de tal modo que a exigência de
espaço não pára de crescer na função inversa da sua disponibilidade. Alemães, ingleses e franceses possuem numerosos traços culturais
Os dois capítulos seguintes tratarão dos sistemas proxémicos entre comuns, mas, apesar disso, as suas culturas reciprocas divergem em
povos de culturas diferentes. Visam preencher um duplo fim: trata-se, grande quantidade de pontos. Os mal-entendidos implicados por tais
em primeiro lugar, de esclarecer melhor a estrutura dos nossos com- divergências são tanto mais sérios quanto mais os americanos e os eu-
portamentos inconscientes e de contribuir assim para a melhoria das ropeus ssofisticadoss se orgulham de interpretarem correctamente os
nossas unidades de trabalho e de habitação, e até das nossas cidades; comportamentos respectivos. As diferenças culturais ligadas a compor-
em segundo lugar, trata-se de realçar a necessidade imperiosa que te- tamentos não conscientes são, deste modo, geralmente imputadas à
mos de melhorar a nossa compreensão de outras culturas. As estrutu- falta de jeito, à falta de educação ou à indiferença.
ras proxémicas traem a presença de diferenças fundamentais entre os
povos - diferenças que só podem ser ignoradas à custa dos maiores OS ALEMÃES
riscos. Há urbanistas e construtores americanos que actualmente ela-
Quando pessoas de países diferentes se acham em contacto repeti-
boram planos de cidades para outros países sem nada saberem das
do, começam a filosofar acerca das atitudes respectivas. Os alemães e
exigências locais em matéria de espaço e sem desconfiarem sequer de
os suíços-alemães não são excepção à regra. Intelectuais e membros
que essas exigências variam de uma cultura para outra. Correm o risco
das profissões liberais, a maior parte dos originários desses dois países
grave de impor a populações inteiras moldes que lhes não são, de ma-
com quem tive a ocasião de entrar em contacto, acabavam sempre por
neira nenhuma, adaptados. Mesmo no interior dos Estados Unidos, a
me dar o seu ponto de vista acerca da relação dos americanos com o
«renovaçâo urbana» e o conjunto dos crimes contra a humanidade co-
espaço e o tempo. Sublinhavam regularmente o rigor com que os ame-
metidos em seu nome dão testemunho de uma total incapacidade de
ricanos estruturam o tempo e a sua mania dos programas. Observa-
criação de ambientes agradáveis para as tão diferentes populações que
vam também que os americanos não reservam tempo para seu uso
afluem às nossas cidades.
próprio (facto igualmente notado por Sebastian de Grazia em Of Ti-
me, Work and Leisure).
150 Edward T. HalL
A Dimensão Oculta 151

Nem os alemães nem os suíços (sobretudo, os suíços-alemães) po- Em primeiro lugar, considera-se, nos Estados Unidos, que duas ou
dem ser considerados indiferentes ao tempo; por isso, tentei saber três pessoas que conversam entre si se encontram separadas dos outros
mais da sua concepção da relação dos americanos com o tempo. Di- por uma demarcação invisível. Só a distância isola um grupo de tal
zem que, para um mesmo lapso de tempo, os europeus têm horários natureza e o rodeia de um muro virtual, que garante o seu carácter
menos carregados do que os americanos, e acrescentam, em geral, que privado. Normalmente as vozes, no interior do grupo, devem permane-
os europeus se sentem menos «apertados» pelo tempo do que os ameri- cer um pouco surdas, a fim de não incomodarem os outros, mas se se
canos. É certo que os europeus consagram mais tempo a praticar to- tornarem mais altas, as outras pessoas agirão como se nada tivessem
das as actividades que implicam relações humanas importantes. Mui- ouvido. Deste modo, o carácter privado da conversa considera-se ponto
tos dos indivíduos europeus que observei notaram que, na Europa, são assente, tenha existido ou não de facto. O segundo tipo de comporta-
as relações humanas que contam, enquanto nos Estados Unidos, são mento é mais subtil: refere-se à definição do ponto preciso a partir do
os horários. Um certo número de entre eles desenvolveu a lógica de qual se considera que uma pessoa franqueou um limiar e penetrou nu-
tais impressões e ligou a maneira de lidar com o tempo à questão do ma sala ou divisão de uma casa. Assim, para a maior parte dos ameri-
espaço, que os americanos tratam com uma inacreditável indiferença. canos, falar do exterior de uma casa através de uma porta de rede
Relativamente às normas europeias, os americanos desperdiçam espaço iscreen-door) não significa de modo nenhum que se tenha penetrado
e raramente o organizam em função das necessidades públicas. De no interior da casa e de uma das suas divisões. Se o visitante permane-
facto, poderia parecer que, para os americanos, não há realmente ne- cer no limiar, mantendo a porta aberta para falar a uma pessoa que se
cessidades ligadas ao espaço. Sobrevalorizando horários e programas, encontra dentro, continua a ser considerado como estando fora de ca-
os americanos tendem a subvalorizar as necessidades individuais de es- sa. «Meter a cabeça na porta de um escritório» equivale igualmente a
paço. Devo acrescentar que nem todos os europeus têm pontos de vista ficar fora do gabinete. E ainda que o corpo todo do visitante se en-
tão penetrantes. Muitos contentam-se com dizer que, nos Estados Uni- contre no interior de uma divisão da casa, a partir do momento em
dos, se sentem apressados em matéria de tempo e que as nossas cida- que este continue apoiado à ombreira da porta, considera-se que con-
des têm falta de diversidade. Seja como for, estas observações, emana- serva um ponto de fixação ao exterior e que não penetrou completa-
das de europeus, deixariam prever que os alemães fossem mais sensí- mente no território alheio. Nenhum destes critérios espaciais é válido
veis do que os americanos à violação dos seus hábitos espaciais. para o norte da Alemanha. Nos casos acabados de referir em que o
americano pensa que permanece no exterior, já penetrou no território
do alemão, e, por definição, entrou na sua intimidade. A oposição
Os alemães e o problema da intrusão
destes dois tipos de estrutura surgiu-me com a maior das evidências
Nunca esquecerei a minha primeira experiência das estruturas pro- por ocasião da aventura que me proponho agora narrar.
xémicas alemãs numa época em que era ainda estudante. A minha
Num destes dias quentes de primavera, como só os proporciona a
educação, a minha posição social e o meu próprio ego foram agredidos
atmosfera alpestre e límpida do Colorado, num desses dias que nos fa-
e gravemente lesados por um alemão em circunstâncias que demons-
zem sentir felizes por estarmos vivos, achava-me no limiar de uma an-
traram que trinta anos de residência nos Estados Unidos e um perfeito
tiga cocheira transformada em habitação, de conversa com uma jovem
domínio da língua inglesa não haviam podido alterar os critérios ale-
que morava no apartamento de cima. O rés-do-chão fora convertido
mães da dntrusãos. Para compreensão completa da minha desventura,
em atelier de artista, mas a mesma entrada servia para os dois locatá-
é necessário recordar dois comportamentos americanos de base, óbvios
rios, a minha amiga e o alemão. Os ocupantes do apartamento tinham
nos Estados Unidos, e que, por isso mesmo, os americanos tendem a
que passar por um pequeno corredor, que levava à escada que dava
julgar universais.
152 Edward T. Hai} A Dimensão Oculta 153

para o andar superior. Dispunham, portanto, de uma espécie de «ser- na origem das leis alemãs, que proíbem fotografar estranhos em públi-
ventias no interior do território do artista. co sem o seu consentimento.
Enquanto, no limiar da entrada, eu continuava a minha conversa,
dei-me conta, tendo lançado um olhar à minha esquerda, de que a
cerca de 1S ou 20 metros, no interior do atelier, o artista e dois amigos A (esfera privada,
seus se encontravam igualmente em conversa.
O alemão estava colocado de tal modo que, olhando na minha di- Os alemães vivem o seu próprio espaço de comportamento como
recção, mal poderia ver-me. Eu dera pela sua presença, mas não que- um prolongamento do ego. Podemos encontrar um eco desse sentimen-
rendo nem impor-me nem interrompê-lo na conversa com os amigos, to no termo Lebensraum, impossível de traduzir pela sua excessiva ri-
apliquei inconscientemente a regra americana, e fiz como se as nossas queza de conotações. Hitler servia-se dele como de uma verdadeira
duas actividades - a minha conversa e a sua - não interferissem de alavanca psicológica para infundir nos alemães o espírito de conquista.
maneira alguma. Em breve, daria por que cometera um erro grave, Contrariamente ao do árabe, como veremos adiante, o Eu do alemão é
porque, em menos tempo do que o necessário para o dizer, o artista extraordinariamente vulnerável e porá em acção todos os meios para
deixara os seus amigos, atravessara o espaço que nos separava, afasta- proteger a sua (esfera privada». A Segunda Guerra Mundial forneceu
ra para o lado a minha amiga, e, com os olhos injectados de cólera, a prova disso aos soldados americanos que tiveram ocasião de observar
começara a invectivar-me. Com que direito entrara eu no seu atelier os prisioneiros alemães em toda uma série de circunstâncias muito di-
sem o cumprimentar? Quem me autorizara a estar ali? versas. Um dos casos foi observado no Middle West, onde os prisionei-
Senti-me tão profundamente atingido e humilhado que, passados ros alemães estavam alojados quatro a quatro em pequenos barracões:
trinta anos sobre o caso, ainda sinto a cólera ferver em mim quando o logo que conseguiram obter os materiais necessários, cada um dos pri-
recordo. Quando, graças aos meus trabalhos posteriores, adquiri uma sioneiros construiu uma divisória, de maneira a possuir o seu próprio
maior compreensão das estruturas do comportamento germânico, espaço. Em circunstâncias mais desfavoráveis, na Alemanha, no mo-
compreendi que, aos olhos de um alemão, me mostrara imperdoavel- mento da derrota da Wehrmacht, o afluxo de prisioneiros alemães
mente mal educado. Para ele, eu estava já dentro de casa, e, na medi- atingiu um tal débito que foi necessário juntá-Ios ao ar livre, cercados
da em que podia ver o que aí se passava, era considerado um intruso. somente por paliçadas. Pôde verificar-se então que qualquer soldado
Para o alemão, não é possível que alguém esteja numa sala sem estar que conseguisse arranjar os materiais necessários construía a. sua pró-
ao mesmo tempo na zona de intrusão dos seus ocupantes, e isto espe- pria minúscula unidade de alojamento, por vezes em nada maior que
cialmente quando os olhamos, seja qual for a distância. um pequeno abrigo de raposa. Os americanos surpreendiam-se por os
Pude recentemente corroborar estas experiências referentes ao sen- alemães não terem unido os seus esforços para resolução do problema
timento da intrusão visual nos alemães, no decurso de investigações in- do alojamento, pondo em comum os miseráveis recursos de que dis-
cidindo naquilo para que eles olham quando se encontram em situa- punham para construirem um abrigo colectivo mais vasto e eficaz para
ções íntimas, pessoais, sociais e públicas. Pedi aos sujeitos da pesquisa as glaciais noites de primavera de então. Posteriormente, observei por
que fotografassem separadamente um homem e uma mulher nas qua- várias vezes essa utilização para protecção de prolongamentos arqui-
tro situações atrás mencionadas. Um dos meus assistentes, que aconte- tectónicos. Nas casas alemãs com janelas, estas são arranjadas de ma-
ce ser alemão, apresentou-me as fotografias. (Na realidade, não temos neira a permitirem um isolamento visual. Os pátios individuais são ge-
o direito», disse ele, (de olhar para os outros quando se encontram à ralmente protegidos por sólidas vedações, mas, ainda que não estejam
distância pública, porque se trata de uma intrusão», Esta reacção vedados, são sagrados.
ilustra bem o comportamento cultural consuetudinário que se encontra A concepção americana da partilha do espaço é particularmente in-
154 Edward T. Hall A Dimensão Oculta 155

cômoda para os alemães. Não possuo documentos pessoais acerca do cientemente sólidas. O barulho da chave na fechadura é indistinto,
início da ocupação de Berlim em ruínas. Farei, por isso, apelo ao tes- suave ou totalmente inexistente. A prática americana da porta aberta e
temunho de um observador, para citar um exemplo cujo carácter ma- a prática alemã da porta fechada chocam-se especialmente nos gabine-
cabro é uma característica frequente dos contra-sensos culturais invo- tes das filiais das sociedades americanas e alemãs. O desconhecimento
luntários. desse facto elementar revelou-se como causa de fricção e sérios mal-
A crise do alojamento tinha atingido, então, em Berlim uma acui- -entendidos entre administradores alemães e americanos na Europa.
dade indescritíveJ. Para tentar remediar um pouco tanta miséria, as Foi assim que tive ocasião de ser consultado por uma companhia que
autoridades de ocupação da zona americana deram ordem aos berline- possuía sucursais em todo o mundo. A primeira questão a ser-me
ses que ainda tinham cozinhas e casas de banho intactas para as par- apresentada era: «Como conseguir que os alemães conservem as portas
tilharem com os 'seus vizinhos. Mas a ordem acabou por ter que ser deles abertasts Nos escritórios da firma em causa, as portas abertas
anulada porque os alemães, já hipertraumatizados, começaram a ma- traumatizavam os alemães e criavam a seus olhos uma atmosfera anor-
tar-se uns aos outros sob o efeito da colocação em comum dos dois malmente descontraída e pouco séria. As portas fechadas davam, pelo
serviços citados. contrário, aos americanos a ideia de uma conspiração geral, da qual se
Na Alemanha, os edifícios públicos e privados, tal como numerosos sentiam excluídos. Comprova-se o facto de uma porta aberta e uma
quartos de hotel, possuem muitas vezes portas duplas, destinadas a porta fechada continuarem a ter um sentido diferente em cada um dos
garantirem um isolamento sonoro maior. Além disso, a porta reveste- dois países.
se de grande importância para os alemães. Os que chegam aos Esta-
dos Unidos acham as nossas portas leves e frágeis. Uma porta fechada
e uma porta aberta não têm o mesmo sentido nos dois países. Nos seus A ordem no espaço
escritórios ou gabinetes, os americanos trabalham com as portas aber-
tas. Os alemães fecham-nas. Mas, na Alemanha, a porta fechada não O sentido da ordem e da hierarquia característico da cultura alemã
significa que quem está por trás dela deseje a tranquilidade ou esteja a marca também o modo como os alemães lidam com o espaço. Gostam
fazer seja o que for de secreto. Simplesmente, para os alemães, as por- das situações precisas e bem definidas e não suportam as pessoas que
tas abertas provocam um efeito de desorganização e desordem. A por- ultrapassam as filas de espera, que saem das «bichas» ou se recusam a
ta fechada garante e conserva a integridade da sala e assegura às pes- obedecer aos cartazes de proibição do tipo «acesso interdito» ou «reser-
soas a realidade de uma fronteira protectora que as preserva de con- vado às pessoas munidas de autorização». Algumas das suas reacções
tactos demasiado íntimos. Um dos indivíduos alemães que estudei ob- relativamente aos americanos são imputáveis à nossa desenvoltura pe-
servava: «Se não houvesse portas, discutiríamos muito mais vezes... rante todas as formas de interdição e 'de autoridade. No entanto, so-
Quando não podemos falar, retiramo-nos e fechamos a porta atrás de frem muito mais ainda com as violações da ordem cometidas pelos po-
nós ... Sem portas, eu teria estado permanentemente à mercê da minha lacos, os quais, pelo seu lado, sentem um certo prazer na desordem.
mãe». Para estes últimos, filas de espera e bichas são sinónimos de espírito
Sempre que um alemão começa a falar livremente do espaço inte- cegamente gregário ou de cega submissão. Aconteceu-me ver um pola-
rior das habitações americanas, não deixa de se queixar dos ruídos co furar uma fila diante de um café pelo simples prazer de «abalar um
que passam pelas paredes e as portas. Para muitos deles, as nossas bocado estes carneiros».
portas resumem o modo de vida americano. São delgadas e baratas; Como indiquei acima, os alemães dão provas de uma extrema pre-
raramente se encontram bem ajustadas, e falta-Ihes a realidade subs- cisão em matéria de distância de intrusão. Ao pedir um dia aos meus
tancial das portas alemãs. Quando se fecham, não se mostram sufi- alunos que me indicassem a distância a partir da qual se pode consi-
156 Edward T. HaU A Dimensão Oculta 157

cação não verbais, que podem ir da entoação britânica (muito afectada


derar que a presença de um terceiro vem perturbar a conversa de duas
para o ouvido americano), a certas formas, ligadas ao ego, de lidar
outras pessoas, não me foi possível obter qualquer resposta dos ameri-
com o tempo, o espaço e os objectos. Se alguma vez existiu uma dife-
canos. Todos estes sabiam indicar experimentalmente o momento a
rença proxémica entre duas culturas, é bem a que opõe os ingleses
partir do qual começariam a sentir-se perturbados, mas nenhum era
instruídos (saídos das public schools) e os americanos da classe média.
capaz de dar uma definição da intrusão em termos de distância nem
Uma das razões fundamentais desta divergência profunda reside no
explicar o modo como tomava consciência do facto. Todavia, dois dos
facto de, nos Estados Unidos, utilizarmos o espaço como modo de
meus alunos, um alemão e um italiano, tendo ambos trabalhado na
classificação das pessoas e das suas actividades, enquanto que, em
Alemanha, responderam sem hesitar que a distância de intrusão era
Inglaterra, é o sistema social que determina o standing dos indivíduos.
de 2,10 metros.
Nos Estados Unidos, o nosso endereço privado, bem como o do local
Muitos americanos têm a impressão de que os alemães se compor- onde trabalhamos, contribui decisivamente para a definição do estatu-
tam de maneira excessivamente rígida, intransigente e solene. Essa to social. Os Jones de Brooklyn ou de Miami não são tão in como os
impressão deve-se ao modo alemão de lidar com as cadeiras onde se Jones de Newport ou de Palm Beach. Greenwich e o Cabo Cod encon-
sentam. O americano não atribui importância ao modo como as pes- tram-se separados por um mundo de Newark e de Miami. As firmas
soas deslocam as suas cadeiras quando se sentam nelas. E se não fosse instaladas em Madison ou Park Avenue são superiores às da Sétima
esse o caso, não diria nada, porque consideraria falta de cortesia qual- ou Oitava Avenidas. Um gabinete na esquina de um edifício é mais
quer observação pessoal. Mas, na Alemanha, é absolutamente contrá- prestigiado do que um gabinete situado junto de um elevador ou na
rio aos usos deslocar uma cadeira. Os que o ignorassem seriam infor- ponta de um corredor comprido. O inglês, pelo seu lado, é educado no
mados disso pelo peso da maior parte dos móveis alemães. O célebre interior de um sistema social. Um lord continua a ser um lord qual-
arquitecto Mies van der Rohe, apesar de se ter rebelado várias vezes quer que seja o seu lugar de residência ou de trabalho, ainda que este
contra a tradição alemã na sua arquitectura, deu às suas admiráveis último seja o balcão de uma peixaria. Mas, além deste papel atribuído
poltronas um peso tal que apenas um homem robusto conseguirá des- às distinções de classe, ingleses e americanos diferem também pelo seu
locá-Ias antes de nelas se sentar. Para os alemães, um mobiliário leve é modo de organização e repartição do espaço.
sacrílego, não só porque não tem um ar sério, mas porque as pessoas, O americano médio, criado nos Estados Unidos, pensa que tem di-
deslocando-o, desarranjariam a ordem estabelecida e, em particular, a reito ao seu próprio quarto ou, em todo o caso, a uma parte de quar-
da (esfera privada». Referiram-me o caso de um jornalista alemão, re- to. Quando peço a americanos que desenhem uma sala ou um gabine-
sidente nos Estados Unidos, que fizera fixar no soalho, sã distância te ideal, é sempre para si próprios que eles o concebem e para nin-
conveniente», a cadeira reservada aos visitantes, porque era incapaz de guém mais; e se lhes pedirmos que desenhem o seu quarto ou o seu
suportar o hábito americano que consiste em adaptar a posição da ca- escritório real, quando acontece estes serem partilhados, desenham
deira à situação. apenas a parte que eles próprios ocupam, separando-a do resto por
meio de um traço de divisão. Os sujeitos masculinos e femininos en-
tendem-se para fazer da cozinha e do quarto de dormir as divisões que
OS INGLESES pertencem à esposa e à mãe, enquanto o território do pai é representa-
do pelo gabinete, a sala de trabalho e, quando este não existe, a ofici-
Tem-se dito dos ingleses e dos americanos que são dois grandes po- na caseira, a cave ou, por vezes, apenas um anexo ou a garagem.
vos separados pela mesma língua. As diferenças que se atribuem à lin- Quando uma americana quer estar sozinha, vai para o quarto e fecha
guagem não são tão imputáveis às palavras como a formas de comuni- a porta. A porta fechada é o sinal que quer dizer mão me incomo-
158 Edward T. HaU A Dimensão Oculta 159

derm ou «estou zangada». Seja em casa seja no escritório, um america_ go de intrusões. O seu testemunho é claro: «Dir-se-ia que, cada vez
no encontra-se disponível a partir do momento em que a sua porta es- que desejo estar sozinho, o meu companheiro de quarto tem que co-
tá aberta. Por outro lado, não se espera que ele se feche, mas que es- meçar a falar comigo. Pouco depois começa a querer saber o que é
teja, pelo contrário, constantemente à disposição dos outros. Só se fe- que eu tenho e porque é que estou furioso. Nessa fase, estou efectiva-
cham as portas para as conferências ou conversas privadas, para um mente furioso e consigo responder-lhe em conformidade,s
trabalho que exige concentração, para o estudo, o repouso ou o sono,
Foi-nos necessário algum tempo para conseguirmos definir a maior
os cuidados de higiene e as actividades sexuais. O inglês das classes
parte das estruturas culturais opostas, pertencentes aos mundos inglês
médias e superiores cresce, pelo contrário, numa nursery que compar-
e americano, que, no seu caso, entravam em conflito. Quando um
tilha com os seus irmãos e irmãs. Só o mais velho ocupa um quarto in-
americano quer estar sozinho, dirige-se a uma sala e fecha a porta; de-
dividual que abandona quando sai de casa e vai para o internato, por
pende, por conseguinte, dos elementos arquitectónicos para se isolar.
vezes com nove ou dez anos de idade. O facto de partilhar desde a in-
Para um americano, recusar-se a falar a uma pessoa que se encontra
fância um espaço comum em vez de possuir um quarto próprio parece
na mesma divisão que ele, infligir-lhe o «tratamento do silêncio», cons-
um pormenor banal, mas exerce, apesar de tudo, uma influência deci-
titui a forma suprema da rejeição e sinal evidente de um descontenta-
siva na atitude do inglês relativamente ao seu próprio espaço. Ê possí-
mento profundo. Mas o inglês que, desde a infância nunca teve uma
vel que não venha a dispor nunca de «um quarto só para si», coisa
sala só sua, não aprendeu a utilizar o espaço para se proteger dos ou-
com que não se ofende, porque não é algo que espere ou a que pense
tros. Dispõe de um conjunto de barreiras interiores, de natureza
ter direito. Mesmo os membros do Parlamento não possuem um gabi-
psíquica, que supõe que os outros saberão reconhecer quando ele o
nete próprio e tratam muitas vezes dos seus assuntos no terraço da Câ-
puser em funcionamento. Assim, quanto mais o inglês se entrincheira
mara sobre o Tamisa. Ê por isso que os ingleses se espantam com a
em presença de um americano, maior é o risco deste último irromper
necessidade que os americanos sentem de um lugar tranquilo para tra-
no seu mundo para se certificar de que tudo vai bem. A tensão persis-
balharem, em suma, de um escritório. Pelo seu lado, os americanos
tirá até os dois indivíduos aprenderem a compreender-se melhor. O
que trabalham em Inglaterra sentem-se contrariados por não poderem
que importa aqui é que as necessidades espaciais e arquitecturais de
dispor do espaço de trabalho que julgam necessário. Quanto ao papel
cada um dos casos citados não são, de maneira alguma, as mesmas.
da parede para a protecção do ego, a posição dos americanos situa-se
entre a dos ingleses e a dos alemães.
Esta oposição entre os comportamentos americano e inglês ganha
O telefone
todo o sentido quando nos lembramos de que o homem, como os ou-
tros animais, possui uma necessidade inata de se isolar de outrem de
tempos a tempos. As consequências dos conflitos entre os comporta- A diferença entre as barreiras psíquicas e as barreiras espaciais res-
mentos culturais ocultos são admiravelmente ilustradas pelo caso de pectivamente utilizadas por ingleses e americanos na protecção da inti-
um dos meus alunos, um inglês. Na altura, este experimentava, de midade traduz-se também por um uso muito diferente do telefone.
modo perfeitamente evidente, grandes dificuldades nas suas relações Não existe qualquer meio de protecção material, nem paredes, nem
com os americanos. Tudo corria mal e ressaltava do que ele dizia a portas, contra o telefone. E como é impossível saber pelo toque quem
ideia de que os americanos não tinham a mínima educação. Da análi- se encontra do outro lado do fio ou se a chamada é urgente, todos nos
se das suas queixas concluía-se que a irritação se devia em grande par- sentimos constrangidos a responder. Assim, por pouco que um inglês
te ao facto de os americanos não serem capazes de decifrar os índices sinta necessidade de se isolar, experimentará o toque do telefone como
subtis que assinalavam os momentos em que ele desejava estar ao abri- a intrusão de um importuno. Na impossibilidade de conhecer o estado
160 Edward T. Ball A Dimensão Oculta 161

de alma do seu interlocutor, os ingleses hesitam muitas vezes em tele- Os vizinhos


fonar; preferem enviar algumas palavras por escrito. Telefonar parece-
olhes mal educado e demasiado (premente». Uma carta ou um telegra- Os americanos que residem em Inglaterra manifestam uma cons-
ma levarão mais tempo a chegar, mas serão menos susceptíveis de cau- tância notável nas suas reacções relativamente aos ingleses. Se a maior
sar perturbação. O telefone serve para as actividades profissionais e parte de entre eles se sente ferida e surpreendida pela atitude dos in-
casos de urgência. gleses' é por ter sido informada pelas estruturas de vizinhança ameri-
Eu próprio utilizei tal método durante vários anos, quando morava canas e não interpretar correctamente as inglesas. Em Inglaterra, a
em Santa Fé (Novo México), durante a crise económica. Tinha-me dis- proximidade não significa nada. O facto de morarmos na porta ao la-
pensado de telefonar por razões financeiras. Além disso, agradava-me do da de outra familia não nos autoriza nem a visitar os seus mem-
a tranquilidade do meu refugiozinho de montanha e não queria ser in- bros, nem a conviver com eles, nem a pedir-lhes objectos emprestados,
comodado. Essa particularidade valeu-me ser objecto de algumas reac- nem a considerar os filhos deles como companheiros de jogos naturais
ções escandalizadas. As pessoas não compreendiam o meu modo de dos nossos próprios filhos. É dificil obter estatísticas precisas acerca
proceder. E mostravam-se de resto extremamente consternadas, quan- dos americanos que conseguem adaptar-se adequadamente ao meio
do, perguntando-me: ~Como é que posso entrar em contacto consi- inglês.
go?», eu respondia: ~Escreva-me duas linhas, passo pelo correio todos A atitude dos ingleses perante os americanos é incontestavelmente
os dias.» colorida pelo nosso antigo estatuto de colónia. Essa reacção é muito
Nos Estados Unidos, onde a maior parte dos cidadãos das classes mais consciente e será, portanto, muito mais facilmente invocada do
médias dispõe de salas só para si e se evadiram da cidade para os ar- que o direito tácito do inglês de defender a sua intimidade contras as
redores, conseguimos penetrar até ao mais intimo da sua privacidade agressões do mundo. Tanto quanto sei, de todos os que tentaram esta-
doméstica através do mais público dos instrumentos, o telefone. Não belecer relações com os ingleses na simples base da vizinhança, nunca
importa quem poderá telefonar-nos a qualquer momento. De facto, o conseguiram. É possível vir a travar relações com os vizinhos ingleses
tornâmo-nos tão facilmente atingíveis que foi necessário elaborar siste- e é possível até que essas relações venham a ser amigáveis; todavia, a
mas de protecção complexos para as pessoas mais ocupadas. vizinhança nunca será o motivo, porque, para os ingleses, as relações
sociais não são função das estruturas espaciais, mas do estatuto social.
Têm que se gastar uma habilidade e um tacto consideráveis para
filtrar as mensagens sem ferir ninguém. Hoje em dia, a tecnologia mo-
derna não sabe ainda adaptar-se à necessidade que os indivíduos sen- De quem é o quarto de dormir?
tem de se refugiar na solidão, para ficarem a sós consigo próprios ou
na companhia da familia. O problema vem do facto do toque não per- Em Inglaterra, na burguesia instalada, é o homem e não a mulher
mitir determinar a identidade do autor da chamada nem o grau de ur- que é considerado proprietário do quarto de dormir; sem dúvida, isso
gência da mensagem. Algumas pessoas retiram o nome da lista, mas destina-se a protegê-lo dos filhos pequenos que ainda não adquiriram
isso implica dificuldades relativamente a pessoas que venham de fora. os seus mecanismos de isolamento psíquico. É o homem e não a mu-
O governo americano adoptou a solução dos telefones especiais (em ge-
lher que possui um dressing room, bem como um gabinete para onde
ral, vermelhos) para as personalidades importantes. A dinha verme-
pode retirar-se. O homem inglês é muito dificil em matéria de vestuá-
lha» curto-circuita secretárias, pausas para o café e linhas ocupadas, e
rio e consagra muito tempo e atenção à compra do que veste. A mu-
encontra-se directamente ligada à Casa Branca, ao Departamento de
lher, pelo contrário, mostra a esse respeito uma atitude comparável à
Estado e ao Pentágono. do homem americano.

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