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J O Ã O HUSS

NA HISTÓRIA DO ESPIRITISMO
WALLACE LEAL V. RODRIGUES

Há na História do Espiritismo alguns fatos que desafiam a argúcia do


pesquisador. Dia chegará, entretanto, que algum intelectual em me-
lhores condições, pesquisará na própria França, fazendo luz sobre esses
enigmas.

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Um deles reside nas reencarnações de Allan Kardec.
Todos sabemos que foi Zéfiro, um dos espíritos-protetores do Pro-
fessor Rivail quem lhe sugeriu a adoção do pseudônimo de Allan
Kardec. Ele, Zéfiro, o conhecera na encarnação em que assim se cha-
mara, decorrida nas Gálias, quando o Professor Rivail fora um drui-
da. A sugestão foi acatada, pois a entidade era uma das mais expe-
ditas no assessoramento às sessões, das quais as perguntas do Profes-
sor Rivail e as respostas e explicações dos Espíritos superiores, deram
nascimento ao conjunto de obras de onde nasceu o Espiritismo.

Mas, além dessa sugestão, sabe-se que muito mais o espírito Zéfiro
narrou a Kardec. Esses papéis não foram publicados. Consta que
parte deles veio ter ao Brasil, onde estão fechados em caixa-forte.
Outros ficaram com o sr. Leymarie, — mais particularmente em sua
livraria, em Paris. Depois foram levados, com alguns pertences de
Kardec, — seu relógio de bolso etc. — para a Maison des Spirites, recen-
temente vendida. No correr do Congresso Espírita de 1925, — do qual
vou me ocupar nesta tomada-de-vista, — talvez o mais importante
da História do Espiritismo, sei (por haver encontrado na estante de
Caibar Schutel uma relação do que estava exposto) que esse relógio,
outros objetos e papéis, ainda existiam e eram conservados. Depois
veio a Segunda Grande Guerra, Paris foi ocupada pelos nazistas e as
portas da Maison foram abertas a fim de que soldados ali se abrigas-
sem.

O sr. Hubert Forestier, recentemente desencarnado, e que substituiu


o grande Jean Meyer na direção da Revue Spirite e na administração
da Maison, não era homem de muitas falas e não sucedeu a Kardec
no sentido de contribuir o máximo possível para a difusão do Espi-
ritismo, objetivo, aliás, que era o da Societé que chegava a auxiliar
financiando o lançamento das obras básicas em línguas estrangeiras.
Prova disto tenho eu com, por exemplo, as edições em tcheco e
italiano.

Várias vezes tentei a aproximação mais íntima com Forestier. De


certa feita chegou a negar a sua foto para publicação no Brasil, e, a
cada vez que eu mencionava o material deixado por Allan Kardec, sua

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resposta era lacônica e fria, logo seguida por um ponto-final. A
Maison fora pillé pelos alemães
Compreende-se que os alemães tenham alimentado as lareiras de
Maison, com os livros de sua biblioteca, mas é incrível que as precio-
sidades ali existentes, tenham sido largadas para trás. Todavia, tudo
isto fica para o pesquisador que chegar a Paris com tempo e dinheiro
para as buscas necessárias. Toca-me agora tão apenas narrar o que
ouvi e li acerca das reencarnações do Codificador admirável.
For exemplo, Zéfiro teria contado que, como Allan Kardec, o profes-
sor vivera ao tempo da invasão das Gálias por César. Era um sacerdote
druida do culto ao carvalho. Desse culto nasceu a óstia, que era feita
das bolotas da árvore e ministradas aos fiéis. Por esse tempo também
viveu Vercingetorix, o herói-maior da Gália, vencido por Júlio César
mas que, ao tempo mesmo do Professor Rivail, renasceu de um tronco
gaulês como Wellington, que deveria tirar desforra sobre o antigo
César, agora vestido de Napoleão Bonaparte.
Os Espíritos do carvalho eram façanhudos e se manifestavam quando
os fiéis se davam as mãos em torno do tronco da árvore. O vento,
em suas ramas, — coisa que muitas vezes aconteceu na Fazenda San-
ta Maria, perto de Sacramento, ao tempo de Eurípedes Barsanulfo, —
soprava as vozes dos espíritos, quase todos belicosos. Até que um dia
Zéfiro criou o culto pacífico do pinheiro, no qual as Entidades não
apenas pregavam o bem e a paz, mas acendiam também luzes ex-
tra-terrenas. Parece que, enciumado, o sacerdote do carvalho termi-
nou por prender a Zéfiro e a sacrificá-lo na pedra-sagrada, abrindo-
-lhe o ventre e fazendo prognósticos quanto ao futuro, apalpando-lhe
as vísceras ainda quentes.
O tempo passou e a roda-da-reencarnação se moveu inexorável. E, —
sempre presente o carvalho, — o antigo sacerdote nasceu entre os
bosques de carvalhos da Boêmia, no dia 6 de julho de 1369, em Hu-
sinetz, vivendo vida inquieta, — da qual vamos nos ocupar, — e ter-
minando por morrer queimado pela Santa Igreja Católica, amarrado
a um pau de carvalho, em uma fogueira onde ardia achas deste
mesmo vegetal. Esta história pode ser levada mais longe, pois o Pro-
fessor Rivail, ao desencarnar com o rompimento de um aneurisma,

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deixou-se cair exatamente sobre uma mesa de carvalho, com os pés
em forma de tortilhões — e que só Deus sabe onde foi parar.
Aqui, entretanto, é hora de fazer um intermezzo.


De todos os homens que viveram ao tempo de Kardec, o principal é
Léon Denis, que, embora tenha encontrado o Professor Rivail duas
ou três vezes — uma quando Kardec visitou sua cidade. Tours, onde
pronunciou uma conferência sobre a obsessão em um jardim de casa
particular, iluminado a lampeão, pois que a polícia de Napoleão III
não admitia aglomeramentos e fechou as portas do salão alugado
para a noite; e outra quando visitou o professor em Paris. Léon Denis
é, — pelo menos ao nosso ver, — o principal porque, senhor de um
estilo leve e muito comunicativo, ele levou ao povo a Doutrina Espí-
rita, formando ao lado de homens que, em certa época, floresceram
na França e se tornaram célebres pelo trabalho de levar ao povo as
ciências ou o conhecimento, — como, por exemplo, Babinet e mesmo
Flammarion. Neste sentido Denis é inimitável.
Pois muito bem: recentemente traduzimos o livro de Mademoiselle
Claire Baumard, que foi sua secretária e amiga fiel nos anos de sua
cegueira, isto é de 1918 até a sua morte. As revelações contidas em
Léon Denis Intime e outras do próprio Denis, contêm informações
imensamente curiosas. Até 1925, por exemplo, o Espírito de Allan
Kardec se comunicava nas sessões de Denis, em Tours, como se vai ler
no livro que entregamos à Edicel Editora.
Em Le Génie Celtique et le Monde Invisible, ainda não lançado em
português porque, na obra de Denis esse é um livro que interessa mais
particularmente aos celtas, aos franceses, etc, encontramos um gran-
de número de comunicações de Kardec, quase sempre presente às reu-
niões do grupo de Tours. E a prova de que era realmente o Professor
Rivail, pode ser tida por este episódio: Denis fora convidado para
ser o Presidente do Congresso Espírita Internacional de 1925, como
de resto o foi. Ora, em uma das sessões em Tours, logo após ter rece-
bido o convite, apresentando-se o Espírito de Kardec, Denis reclamou:
estava velho, cego, enfermo; a viagem a Paris era muito cansativa e,

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também, cansativo, seria o Congresso Espírita Internacional. Porque
não convidaram Camille Flammarion?
E lá veio a resposta de Kardec, rápida e seca: "Camille Flammarion
não estará lá." Denis encheu-se de espanto: Mas como? Flammarion
não participaria do Congresso?
E o Espírito de Kardec, sem dar mais explicações: "Camille Flammarion
não estará lá!" E sucedeu que, realizando-se o Congresso de 6 a 13 de
setembro de 1925, não pôde realmente ser assistido por Camille
Flammarion, que desencarnara, inesperadamente, no Observatório de
Juvissy, em julho.
Aí está uma prova provada. Entretanto não apenas Kardec compa-
recia às sessões de Tours. Também, e regularmente, o Espírito de Je-
rônimo de Praga que era o guia espiritual de Denis.

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Ora, Jerônimo de Praga fora o grande e o melhor dos amigos de
João Huss, o antigo Allan Kardec. Aqui temos dois personagens. Va-
mos achar um te'rceiro antes de continuar a exposição. Quem fora
Denis? Dizia e escrevia ele que fora um monge com muito de guerrei-
ro. E eu me atrevo a concluir que ele se referia a John Wycliffe. Os
três, isto é, João Huss, Jerônimo de Praga e John Wycliffe foram tal-
vez, os mais importantes personagens da Reforma.

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Examinemos esse relacionamento.
Jerônimo de Praga era conterrâneo de João Huss e se dirigira à In-
glaterra para completar seus estudos teológicos. Ali foi aluno de Wy-
cliffe o primeiro a denunciar os excessos, a cobiça e a vilania da
Igreja Romana. Wycliffe comovia suas audiências, malhando e
denunciando a opressão e a decomposição religiosa, conscientizando o
povo e proclamando a necessidade de uma reforma. Ele convencia e
exaltava os ânimos.

Quando Jerônimo regressou a Praga, levava consigo os escritos de


Wycliffe e o fogo que o comunicara. Foi ao encontro de João Huss.
Reitor da Universidade de Praga e pregador altamente popular, com
imensas platéias, na chamada Igreja de Belém, Jerônimo não encon-

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trou Huss satisfeito com a Igreja, que explorava o povo ao ponto de
vender lugares à direita ou à esquerda do trono de Deus, variando
os preços conforme essa proximidade. Os dois amigos tiveram longas
conversas e Huss leu os escritos de Wycliffe. Grande pregador, em
breve Huss levantava o povo de seu país contra a Tirania de Roma.
Seria longo narrar os caminhos e descaminhos que levaram João Huss
a um Julgamento na cidade suíça de Constança. Sereno e tranquilo
enfrentou os seus julgadores. Jerônimo o acompanhara.

As autoridades eclesiásticas encontraram como condená-lo, embora


fosse um dos homens mais puros e admiráveis do seu tempo. Huss foi
levado à fogueira de lenha de carvalho, como já foi dito, e morreu,

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um mártir cristão, com o nome de Jesus nos lábios. Suas cinzas foram
atiradas ao Rio Reno. Tudo fora, por parte de Roma, uma intriga
cavilosa e terrível.

Jerônimo viu estarrecido aquela fogueira humana e, tal como sucedeu


a Pedro, não resistiu e pôs-se em fuga. Todavia, nas montanhas em
torno de Constança, conseguiu vencer os seus temores. Ele também

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um excelente orador, em praça pública, denunciou os julgadores de
João Huss, louvou a sua virtude e vituperou impiedosamente os des-
mandos da Igreja Romana. Foi preso e levado a julgamento. Negou-se
a arredar de sua posição: centenas de pessoas assistiram às suas ar-
remetidas firmes e corajosas contra o Clero. Como João Huss, foi en-
carcerado e torturado. Tudo infrutífero. Sentindo que perdiam ter-
reno, seus julgadores condenaram-no à morte. Foi queimado em praça
pública e igualmente, suas cinzas foram atiradas no Rio Reno. Jerô-

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nimo de Praga e João Huss morreram em 1415. John Wycliffe já ha-
via desencarnado, em 1384. Mas, para completar o quadro dessas almas
afins, nesse mesmo ano de 1415 o Concilio de Constança ordenou
que os ossos de Wycliffe, que fora enterrado no adro da igreja de
Lutterworth, fossem exumados, levados à fogueira, reduzidos a cinzas
e, em seguida, atiradas estas às águas do rio Swift.

O espaço de um artigo é pequeno demais para que se vá mais longe.


O que existe aqui entretanto, serve para mostrar como o progresso,
da Humanidade caminha sobre o sacrifício de grupos de Espíritos
heróicos. Vemos por estas anotações breves, um flash que ilumina o
passado distante de quase quinhentos anos, a bravura, em nome de
Cristo, destes vultos singulares.

Ao colocar o ponto-final neste artigo, nos lembramos das comovedoras


cartas que Eurípedes Barsanulfo e Cairbar Schutel se entretrocavam,
esses heróicos pioneiros do Espiritismo no Brasil, mutuamente se en-
corajando e trocando o calor da fraternidade verdadeira, enquanto
enfrentavam momentos difíceis e dolorosos.

E só assim caminha a Humanidade, vencendo a matéria e cada vez


mais ansiando pelo reinado do Espírito.

Anuário Espírita 1973 - IDE - Ano X - nº 10


Órgão do Instituto de Difusão Espírita de Araras - SP
Diretor: Salvador Gentile

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