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LEITURAS

TOMISTAS
PAULO EMILIO BORGES DE MACEDO
MAURICIO MOTA (ORGS.)

LEITURAS
TOMISTAS

Rio de Janeiro
2015
Copyright © 2015

Mauricio Mota
Paulo Emilio Borges de Macedo

Revisão

Mauricio Mota
Paulo Emilio Borges de Macedo

Revisão Técnica

Marianna Seixas
Mauricio Mota

Produção Editorial

Marianna Seixas

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá


ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio e forma, seja ele impresso,
digital, áudio, visual sem a expressa autorização por escrito dos organizadores
sob penas criminais e ações civis.

ISBN:
Í NDICE

Presentation --------------------------------------------------------------------------- 11

Apresentação ------------------------------------------------------------------------- 19

Primeira Parte : Jusnaturalismo Tomista e Suas Leituras

I. A anterioridade da prudência em relação à Justiça


Daniel Nunes Pêcego---------------------------------------------------------------- 29
Introdução ----------------------------------------------------------------------------- 29

1. A virtude da justiça --------------------------------------------------------------- 30

1.2. Direito, objeto da justiça -------------------------------------------------- 35


2. Virtude da prudência ------------------------------------------------------------- 38

3. A prudência pessoal e a prudência política --------------------------------- 42

3.2. As espécies de prudência ------------------------------------------------- 42


Conclusão ------------------------------------------------------------------------------ 45

Referências ---------------------------------------------------------------------------- 48

II. Diferenças entre a teoria da lei natural em Tomás de Aquino e


Francisco Suárez: problemas gnosiológicos e metafísicos
Marcus Boeira ------------------------------------------------------------------------- 51

1. A escolástica ibérica: a universidade de Salamanca como ponte entre


o clássico e o moderno -------------------------------------------------------------- 54

2. Da lei natural em Tomás de Aquino ------------------------------------------ 68


3. Da lei natural em Francisco Suárez e sua relação com a origem do
poder político -------------------------------------------------------------------------- 75

Referências ----------------------------------------------------------------------------- 88

III. Notas sobre direito e justiça: Da Doutrina da Participação de


Santo Tomás de Aquino aos Princípios Fundamentais de
Gustav Radbruch
José Ricardo Cunha ------------------------------------------------------------------ 91

1. Primeira Parte ---------------------------------------------------------------------- 91

2. Segunda Parte---------------------------------------------------------------------- 98

Referências --------------------------------------------------------------------------- 104

IV. Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre


Renato José de Moraes ----------------------------------------------------------- 105

Introdução---------------------------------------------------------------------------- 105

1. Visão geral do pensamento de MacIntyre depois de 1981 ------------ 106

2. Tomás de Aquino na virada de MacIntyre em After virtue ------------ 108

3. O aprofundamento no tomismo nos anos subsequentes -------------- 113

4. O tomismo nas três versões rivais da ética ------------------------------- 117

5. A importância da metafísica tomista na filosofia moral --------------- 120

6. A descoberta das normas éticas e das virtudes pela razão ----------- 124

Conclusão----------------------------------------------------------------------------- 127

Referências --------------------------------------------------------------------------- 131


Segunda Parte : O Jusnaturalismo Tomista nas
Instituições Jurídicas

I. Direito de propriedade em Tomás de Aquino


Mauricio Mota ------------------------------------------------------------------------ 135

Introdução ---------------------------------------------------------------------------- 135

1. A Justiça Aristotélica ------------------------------------------------------------ 136

2. A propriedade em Tomás de Aquino ---------------------------------------- 149

3. O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino -------------------------- 156

4. A função social da propriedade em Tomás de Aquino ----------------- 162

Conclusão ----------------------------------------------------------------------------- 175

Referências --------------------------------------------------------------------------- 177

II. O direito da guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador


da escolástica espanhola
Paulo Emilio Borges de Macedo ------------------------------------------------- 179

Introdução ---------------------------------------------------------------------------- 179

1. A questão herdada por Suárez------------------------------------------------ 182

2. O propósito do De Bello -------------------------------------------------------- 194

3. A Reinterpretação de Santo Tomás ----------------------------------------- 200

Conclusões ---------------------------------------------------------------------------- 211

Referências --------------------------------------------------------------------------- 213


III. Espécies de justiça e o Problema da Punição
Marcos Paulo Fernandes de Araújo --------------------------------------------- 215

Introdução---------------------------------------------------------------------------- 215

1. A virtude de justiça-------------------------------------------------------------- 219

2. O crime, a pena e a natureza do bem -------------------------------------- 221

2.1. Mal do crime e mal da pena -------------------------------------------- 224


3. A qual justiça, a pena? --------------------------------------------------------- 225

3.1 Uma analogia: razões de bem e espécies de justiça --------------- 226


3.2 Direito penal e espécies de justiça: a solução de Santo Tomás de
Aquino à luz de outras passagens da Suma Teológica ----------------- 229
3.3 Pena: débito ou crédito? ------------------------------------------------- 234
4. Fundamentação da pena com base nos clássicos: uma teoria ainda
atual ----------------------------------------------------------------------------------- 237

Referências --------------------------------------------------------------------------- 239

IV. Direito internacional: o que é justo nas relações entre os


indivíduos organizados em Estados
Rafael Zelesco Barreto ------------------------------------------------------------- 241

Introdução---------------------------------------------------------------------------- 241

1. O direito em Santo Tomás----------------------------------------------------- 247

1.1 Justiça geral e particular -------------------------------------------------- 249


1.2 Justiça distributiva e comutativa --------------------------------------- 254
1.3. Justiça, direito e lei -------------------------------------------------------- 260
1.4. Direito natural e direito positivo--------------------------------------- 267
1.4.1. A natureza das coisas ----------------------------------------------- 267
1.4.2. A lei natural ------------------------------------------------------------ 268
1.4.3. O direito natural ------------------------------------------------------ 273
1.4.4. Lei natural e direito natural ---------------------------------------- 276
1.4.5. A função do direito positivo --------------------------------------- 279
1.5. Justiça e Equidade --------------------------------------------------------- 281
1.6. Conclusão: o direito para Santo Tomás de Aquino ---------------- 285
2. O direito em Santo Tomás e o direito internacional --------------------- 287

2.1. Definição e fim do Estado ------------------------------------------------ 288


2.2. A ação do Estado no plano internacional ---------------------------- 291
2.3. Justiça geral e particular no direito internacional------------------ 294
2.4. Justiça distributiva e comutativa no direito internacional ------- 300
2.5. Lei, direito e justiça no direito internacional ------------------------ 302
2.6. Direito natural, direito positivo e direito internacional ---------- 307
2.7. Justiça e equidade no direito internacional ------------------------- 315
Conclusão ----------------------------------------------------------------------------- 324

Bibliografia ---------------------------------------------------------------------------- 327


Presentation

This oeuvre consists of various papers that present the


timeliness of the Thomist Legal Philosophy and the influence of
Thomas Aquinas in modern positive law. Hence, this is not a book
on the history of ideas that seeks to contextualize the thinking of a
writer in his own time. The works displayed here demonstrate the
vitality and good health that this philosophy enjoys at the
beginning of the 21st century. The Angelic Doctor is the most
important reference to the study of Natural Law. Fairly studied in
American and European universities on Western political
development, the contemporary classic textbook from Passarin d'
Entrèves1 quotes Aquinas more than any other author. Indeed, he
is the major reference to Natural Law in Western thought.
However, rather than to recognize his importance, this book seeks
to demonstrate his actuality.
In general, Brazilian Law Schools ignore Thomist Legal
Philosophy. With the rare exception of a John Finnis, whose works
are read with relative curiosity, Thomism is considered a
"medieval" thinking, in the worst sense that this term may have,
as obscure and outdated. But just search for the most quoted
contemporary works of Natural Law to discover that the universe
of Thomistic Jurists is much larger: among others, Germaine
Grisez, Pamela Hall, Benedict Ashley, Ralph McInerny, Joseph
Boyle, Patrick Lee and Robert George.

1
PASSARIN D’ENTRÈVES, A. Natural Law: an Introduction to Legal Philosophy.
Revised ed. London: Hutchinnson, 1970.
11
But what makes so many contemporary lawyers turn to the
Thomistic Natural Law? What makes it so useful? Without much
effort, one can respond that Law, Moral and Reason are
inextricably intertwined. Aquinas defines law as "a certain rule
and measure of actions according to which someone is driven to
act or not act in a particular manner"2. And this induction or
prohibition can only move rational beings towards good because
it is based on God Himself. The Thomist Law consists thus of a
reasonable ordering principle that stems from divinity. Since it
comes from God, its study in the domain of Theology is justifiable.
But this is quite a different notion that the idea of law that lawyers
use. Aquinas thinks of Law as an action of divine substance (all
laws find their substance in God), not as a norm proclaimed by an
authority holding political power.
Another significant feature of the Thomistic Natural Law is
the subtleties that later authors overlooked. Aquinas distinguishes
Law from jus. The Treatise of Law must be read along with the
Treatise of Grace, since both Law and Grace are external
principles that guide men towards rectitude. For the Angelic
Doctor, the study of jus is part of the Treatise on Justice; the focus
of analysis as far as justice is concerned is a right situation, the
iustum, that refers to Aristotle's dikaion. The jus is an individual
entity, whilst the lex is an universal. The jus is a res, something
that exists in the real world. The lex is an exemplary cause, the
design towards which the thing leans to, in conformity with the
Maker's plans, but not the thing itself3. The confusion between the
two terms is Modern and has its roots in Ockhanism. The
distinction, though, is ancient. Romans saw their Law as lex, as a

2
“(...) lex quaedam regula est et mensura actuum, secundum quam inducitur
aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur (...)”(ST. 1-2 q. 90 a.1).
3
See BASTIT, Michel. Naissance de la loi moderne: la pensée de la loi de saint
Thomas à Suarez. Paris: Presses Universitaires de France, 1990. p. 163.

12
list of obligations4. The jus was a situation, a specific state of things
that one might find just (although not something that belongs to
an individual, a quality: the idea of jus as a subjective right would
only emerge with Suárez and Grotius).
Furthermore, many legal experts have discovered the
profound impact of non-legal conceptions on the Thomist Legal
Philosophy. This is not surprising. Aquinas’ theory of Law is
embedded in a broader philosophical and theological context. For
instance, the doctrine of Natural Law requires a normative
conception of nature, friendly to the Aristotelian telos, as opposed
to the mechanistic vision prevailing today. For Thomas Aquinas,
Law is one of the ways through which justice can be attained. But
this does not refer to all kinds of laws: only to human positive law.
Others types of law fulfill these and others goals. Eternal Law is
the design through which divine wisdom orders its creation:
“Eternal Law is nothing if not divine wisdom directing all acts
and movements"5, even those acts that are not human-made.
However, other laws are not a Platonic kind of participation of the
idea on the singular object; Natural and Human laws are not an
imperfect reflection of Eternal Law – one that becomes even more
imperfect as the distance grows. Rather, they represent the divine
order in each level of reality.
Laws should not be considered in a descending order,
starting with the Eternal Law, but in an order that is consistently
in tension with the law of a truly perfect being. (…) Far from being
a sign of humanity's degradation, human order becomes a symbol
of this fundamental tension towards perfection.6

4
See VILLEY, Michel. Le Droit et le droit de l’Homme. 2.ed. Paris: Presses
Universitaires de France, 1990. p. 125.
5
“(...) lex aeterna nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod
est directiva omnium actuum et motionum” (S.Th. 1-2 q. 93 a.1).
6
“Les lois ne sont plus alors à considérer dans l’ordre descendant à partir de la
loi éternelle mais dans une ordre en tension vers la loi d’un être réellement
parfait. (...) Loin d’apparaître comme l’indice d’une dégradation de plus en plus

13
According to Aquinas, justice and the jus are concrete
singulars that meet in the human order. That is how they relate to
the law. As the divine project can be felt in all planes of existence –
and the Eternal Law is manifested through Natural Law and,
then, through Human Law –, the jus, part of the worldly order, is
eventually conformed to the lex. In other words, Natural and
human laws represent Eternal Law in different planes of reality.
Thus Natural and positive jus express concrete manners through
which God orders everything.
Finally, the Thomistic Natural Law proves to be fairly
modern because, despite the theistic source, yet there is a truly
human sphere, and that appeals to the more contemporary
audience of secular lawyers. According to Aquinas, the law is a
product of the intellect, not the willingness, and orders to the
common good7. God created Natural Law at the same time he
created man and everything else, and Natural Law arises from the
nature of things created. Law in general is the dynamo, the engine
that drives things as they are towards what they should become,
and Natural Law drives man towards his moral perfection. God
has designed the law in his mind when he made all things, as its
final cause, but He did not promulgated law from a decree of His
will, as if it were something aside the act of creation. God created
Natural Law, but He is not its legislator. This is quite significant:
since Natural Law governs moral actions, there is an objective
morality. There is good and evil in itself, and there is no need to
resort to the will of God to acknowledge that. One only needs to
perceive things by reason. Various late Scholastics advanced this
idea and proclaimed what became known as the "impious

accentuée, il devient le signe de cette tension fondamentale vers la perfection.”


(BASTIT, Michel. Op. Cit., p. 49).
7
S.Th. 1-2 q. 90 a.1 and a.2.

14
hypothesis".8 God exists, but human actions do not need Him as a
foundation.
Aquinas does not dedicates a specific study, or even a
question, to the notion of common good, but refers to it in so
many works (De Regno, De Caritate, Ehticorum ad Nicomachum,
Summa contra Gentiles, Summa Theologica, Commentarius in librum
beati Dyonisii de Divinis Nominibus, Quaestiones quodlibetales,
Politicorum), that it is possible to unveil it. To Aquinas, the
common good is a metaphysical conceptual scheme that
participates in the idea of good in general. And, "good is what
pleases everyone"9. All things, rational or not, animated or not,
lean towards good. Hence, good in general coincides with God,
the ultimate good. It is the theist translation of the Aristotelian
telos.
Yet there is a diversity of goods: moral, spiritual,
intellectual, material, etc., and common good relates only to the
well-being of the social body. It is not opposed to good in general,
but strives to realize less noble human needs. In spite there exists
a Theistic Metaphysics in Aquinas, the study of social life and the
Law may go without God. Henceforth, the Thomistic Naturalism
does not require faith and can reach a broader audience.
This book is divided in two parts. The first is entitled "The
Thomistic Naturalism and its Readings" and focuses on the
Thomist Legal Philosophy. In the opening work, "The Precedence
of Prudence Regarding Justice," Daniel Nunes Pêcego seeks to
establish the relations between the virtues Justice and Prudence,

8
There are versions of this hypothesis in several authors, such as Francisco de
Vitoria and Francisco Suárez. But the most famous variant was immortalized by
the "Scholastic" Hugo Grotius: "what we just said would take place in a certain
way, even if one agrees with that, what cannot be granted without a great
crime, that is, that God does not exist or that the human business are not
object of His care" (“Et haec quidem quae im diximus, locum haberent etiamsi
daremus, quod sine summo scelere dari nequit, non esse Deum, aut non curari
ab eo negotia humana”, De Jure Belli ac Pacis. prolegomena 11).
9
“Bonum est quod omnia appetunt” (S.Th. 1-2 q. 94 a. 2).

15
demonstrating the precedence of latter over the former, according
to a certain reading of Aquinas. Then, Marcus Paulo Rycembel
Boeira, in "Differences between the theory of Natural Law in
Thomas Aquinas and Francisco Suárez: gnosological and
metaphysical endeavors", compares Aquinas’ Natural Law with
that of one of the most important exponents of Spanish
Scholasticism, Francisco Suárez. Although the basis was
Thomism, the author shows that a few gnosological and
metaphysical changes may link the Suarezian Natural Law to
Modernity. José Eduardo Cunha writes an "Essay on Law and
Justice: from the doctrine of participation in St. Thomas Aquinas
to the Main Principles of Gustav Radbruch". Almost a personal
insight, the author argues that the doctrine of participation
permits one to grasp the relationships between the Law and
Justice. Finishing this section, in the paper "Thomas Aquinas and
the philosophy of Alasdair MacIntyre", Renato José de Moraes
establishes the close genealogy between Aquinas and MacIntyre
and arrives to the conclusion that the Scot’s criticism on
contemporary Social Philosophy is Thomist-based.
The second part is called "The Thomistic Naturalism in
Legal Practice" and deals with the Thomistic influence in Positive
Law. In the paper "Property rights on Thomas Aquinas", Mauricio
Jorge Pereira da Mota analyzes the concept and the theoretical
foundations of the social function of property in light of Aquinas
and in secondarily Aristotle. He then shows that this
acknowledgement allows new and original ways to comprehend
property in today Civil Law. Then, I wrote "The Law of War in
Francisco Suárez: the civilizing project of the Spanish
Scholasticism". I sought to reconstruct the intent of Suárez to save
a very ancient Christian tradition of its destruction: the Just War
doctrine, a direct ancestor of International Law. In order to cope
with the demands of the brave new world, the Iberian author had
to modify the foundations of the Law of War: from a religious
doctrine, it became a legal theme. In the text "Species of Justice
and the Punishment Issue", Marcos Paulo Fernandes de Araújo
writes a Criminology paper that is Thomist oriented: he analyses

16
the essence of crime according to Classical Realism. The oeuvre
closes with "International Law: what is fair amongst individuals
organized in States". Rafael Zelesco Barretto argues that a
Thomistic view on International Law enables a more profound
understanding of contemporary issues, such as jus cogens and the
principles of territorial integrity and the pacta sunt servanda.
Good reading!

Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo10

Rio de Janeiro, March 21, 2015

10
Masters in International Law from the Federal University of Santa Catarina
and PhD in International Law at the State University of Rio de Janeiro . He is a
professor at the Federal University of Rio de Janeiro and the State University of
Rio de Janeiro , where he is vice - coordinator of the graduate school program .
Member of Area Commission of Qualis / CAPES , lawyer and international law
consultant of the Naval War College.

17
Apresentação

A presente obra compõe-se de trabalhos que mostram a


atualidade da Filosofia Jurídica Tomista e a influência de Tomás
de Aquino no direito positivo moderno. Não é, portanto, um livro
de história das ideias que busca contextualizar o pensamento de
um escritor no seu tempo. Os textos aqui apresentados
demonstram a vitalidade e a boa saúde que essa filosofia desfruta
no início do século XXI. O Doutor Angélico constitui a mais
importante referência ao estudo do Direito Natural. O já clássico
manual de Passarin d’Entrèves11, bastante utilizado nas
universidades americanas e europeias sobre o jusnaturalismo no
desenvolvimento político ocidental, cita o Aquinate mais do que
qualquer outro autor. De fato, ele constitui a principal referência
para o Direito Natural no pensamento ocidental. Todavia, aqui,
mais do que se reconhecer a sua importância, procura
demonstrar-se a sua atualidade.
As faculdades de Direito brasileiras, de um modo geral,
ignoram a Filosofia Jurídica tomista. Com a rara exceção de um
John Finnis, cujas obras são lidas com relativa curiosidade, o
tomismo é considerado um pensamento “medieval”, na pior
acepção que este termo pode encerrar, obscuro e ultrapassado.
Porém, basta procurar os trabalhos contemporâneos de Direito
Natural mais citados para descobrir que o universo de juristas
tomistas é bem maior: entre outros, Germaine Grisez, Pamela

11
PASSARIN D’ENTRÈVES, A. Natural Law: an Introduction to Legal Philosophy.
Revised ed. London: Hutchinnson, 1970.
19
Hall, Benedict Ashley, Ralph McInerny, Joseph Boyle, Patrick Lee
e Robert George.
Mas o que faz tantos juristas contemporâneos se voltarem
para o jusnaturalismo tomista? O que o torna tão profícuo? Sem
muito esforço, é possível responder que Direito, Moral e Razão se
combinam de modo inextricável. Santo Tomás define a lei como
“certa regra e medida dos atos segundo a qual alguém é induzido
a agir ou coibido de fazer algo”12. E essa indução ou coibição só
pode mover os seres racionais para o bem, pois se fundamenta em
Deus. A lei tomista consiste, portanto, num princípio ordenador
racional que provém do próprio Deus. Uma vez que se trata de
algo que procede de Deus, justifica-se o seu estudo dentro da
Teologia. Mas, perceba-se que essa noção de lei difere bastante
daquela que os juristas de hoje manipulam. O Aquinate a concebe,
de fato, como uma ação da substância divina (todas as leis são
consubstanciais a Deus), não como uma norma emanada de uma
autoridade que detém o poder político.
Outras características significativas do jusnaturalismo
tomista são as sutilezas, que autores posteriores atropelaram.
Santo Tomás diferencia direito de lei. O Tratado das Leis deve ser
lido em conjunto com o Tratado da Graça, pois tanto as leis como
a graça constituem princípios externos ao homem que o movem
para a retidão. O estudo do Direito insere-se, no Doutor Angélico,
no Tratado da Justiça; o objeto de análise da virtude justiça é o
direito, o iustum, que corresponde ao dikaion aristotélico. O jus é
um ente particular, mas a lex é universal. O jus é res, algo que
existe de fato. A lex é a causa exemplar, o projeto, aquilo para o
qual a coisa tende em conformidade com o plano na mente do
Criador, mas não a coisa propriamente dita.13 A confusão entre os
dois termos é moderna e possui raízes no ockhanismo. Porém, a

12
“(...) lex quaedam regula est et mensura actuum, secundum quam inducitur
aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur (...)” (ST. 1-2 q. 90 a.1).
13
Cf. BASTIT, Michel. Naissance de la loi moderne: la pensée de la loi de saint
Thomas à Suarez. Paris: Presses Universitaires de France, 1990. p. 163.

20
distinção é antiga. Os romanos mesmos interpretavam o seu
direito como lex, como uma tábua de obrigações.14 O próprio jus é
uma situação, um determinado estado de coisas que se pode
considerar justo (embora não algo que pertence ao indivíduo, uma
qualidade: essa ideia de jus como direito subjetivo irá aparecer
apenas posteriormente em Suárez e Grotius).
Ademais, muitos juristas têm descoberto o profundo
impacto de conceitos que não são jurídicos sobre a Filosofia
Jurídica tomista. Isso não deve causar surpresa. O jusnaturalismo
de Santo Tomás insere-se numa conjuntura filosófica e teológica
muito mais ampla. A doutrina da Lei Natural, por exemplo, exige
uma concepção normativa da natureza, familiar ao telos
aristotélico, em oposição à visão mecanicista prevalecente hoje. A
lei resume-se, pois, a uma das modalidades ou formas de se
realizar a justiça. Mas isso não é verdade para todos os tipos de
lei: somente para a lei humana positiva. As demais formas de lei
cumprem esta e outras finalidades. A lei eterna consiste no projeto
ordenador da razão divina sobre toda a criação: “a lei eterna não é
outra coisa senão a razão da divina sabedoria enquanto dirige
todos os atos e movimentos” 15 (grifo nosso), mesmo aquelas ações
que não partem dos seres humanos. Cabe observar que as demais
leis, no Aquinate, não se resumem a uma participação de tipo
platônica da ideia sobre o singular concreto; as leis naturais e
humanas não constituem um reflexo cada vez mais imperfeito,
conforme a distância aumenta, da lei eterna. Expressam, antes, a
própria ordem divina em cada nível da realidade.
As leis não devem ser consideradas dentro de uma ordem
descendente a partir da lei eterna, mas numa ordem em tensão
com a lei de um ser realmente perfeito. (...) Longe de ser um

14
Cf. VILLEY, Michel. Le Droit et le droit de l’Homme. 2.ed. Paris: Presses
Universitaires de France, 1990. p. 125.
15
“(...) lex aeterna nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod
est directiva omnium actuum et motionum” (S.Th. 1-2 q. 93 a.1).

21
indício de degradação cada vez mais acentuada, a ordem humana
torna-se o símbolo dessa tensão fundamental para a perfeição.16

A justiça e o direito, em Santo Tomás, são singulares


concretos que se encontram na ordem humana. É nessa medida
que eles se relacionam com a lei. Como o projeto divino se espraia
por todos os planos – e a lei eterna passa a realizar-se pela lei
natural e, depois, pela lei humana –, o jus, inserto na ordem
terrena, termina por se conformar à lex. Em outras palavras, as leis
natural e humana constituem a própria lei eterna em planos
distintos da realidade. O direito natural e o direito humano
expressam, pois, modalidades concretas de realização da
ordenação de Deus.
Por fim, o jusnaturalismo tomista revela-se bastante
moderno porque, apesar da origem teísta, ainda assim, há um
espaço verdadeiramente humano, e isso agrada a plateia mais
contemporânea de juristas laicos. Segundo o Aquinate, a lei é
produto do intelecto, não da vontade, e ordena-se ao bem
comum17. Deus criou a lei natural no momento em que Ele fez a
Criação e o homem, e a lei natural decorre da natureza das coisas
criadas. A lei em geral é o dínamo, o motor que impulsiona as
coisas como elas são para o que elas devem ser, e a lei natural
impulsiona o homem para a sua perfeição moral. Deus concebeu a
lei em sua mente quando fez todas as coisas, como sua causa final,
mas Ele não a promulgou com um decreto da sua vontade, como
algo apartado da Criação. Deus criou a lei natural, mas não é seu
legislador. Isso gera uma consequência muito importante: uma

16
“Les lois ne sont plus alors à considérer dans l’ordre descendant à partir de la
loi éternelle mais dans une ordre en tension vers la loi d’un être réellement
parfait. (...) Loin d’apparaître comme l’indice d’une dégradation de plus en plus
accentuée, il devient le signe de cette tension fondamentale vers la perfection.”
(BASTIT, Michel. Naissance de la loi moderne: la pensée de la loi de saint
Thomas à Suarez. Paris: Presses Universitaires de France, 1990., p. 49).
17
S.Th. 1-2 q. 90 a.1 e a.2.

22
vez que a lei natural rege as ações morais, existe uma moralidade
objetiva. Existem o bem e o mal em si mesmos, e não há
necessidade de se recorrer à vontade de Deus para perceber isso.
Basta perceber o sentido das coisas pela razão. Alguns escolásticos
posteriores avançaram esta ideia e engendraram o que ficou
conhecido como a “hipótese impiíssima”.18 Deus existe, mas as
ações humanas não precisam dEle como fundamento.
Santo Tomás não dedica um estudo específico, ou mesmo
uma questão, ao bem comum, mas recorre tanto a essa noção, em
tantos textos (De Regno, De Caritate, Ehticorum ad Nicomachum,
Summa contra Gentiles, Summa Theologica, Commentarius in librum
beati Dyonisii de Divinis Nominibus, Quaestiones quodlibetales,
Politicorum), que se apresenta possível reunir seus traços
essenciais. O bem comum, no Aquinate, é um esquema conceitual
metafísico que participa da ideia do bem em geral. E, “bom é
aquilo que a todos apetece” 19. Todas as coisas racionais ou
irracionais, animadas ou inanimadas tendem ao bem. O bem
entendido de um modo geral, pois, coincide com Deus, o supremo
bem. É a tradução teísta do telos aristotélico.
Mas há uma diversidade de bens: morais, materiais,
intelectuais, espirituais, etc., e bem comum visa tão-somente a
sobrevivência do corpo social. Ele não se contrapõe ao bem em
geral; apenas visa concretizar algumas necessidades humanas
mais comezinhas. Isso significa que, embora no Aquinate haja
uma metafísica teísta, o estudo da vida social e o Direito

18
Há versões desta hipótese em diversos autores, como Francisco de Vitória e
Francisco Suárez. Mas a variante mais famosa foi imortalizada no “escolástico”
Hugo Grotius: “O que acabamos de dizer teria lugar de certo modo, mesmo que
se concordasse com isso, o que não pode ser concedido sem um grande crime,
isto é, que não existiria Deus ou que os negócios humanos não são objeto de
seus cuidados.” (“Et haec quidem quae im diximus, locum haberent etiamsi
daremus, quod sine summo scelere dari nequit, non esse Deum, aut non curari
ab eo negotia humana”, De Jure Belli ac Pacis. prolegomena 11).
19
“Bonum est quod omnia appetunt” (S.Th. 1-2 q. 94 a. 2).

23
prescindem de Deus. Dessa maneira, o jusnaturalismo tomista não
requer fé e pode atingir um público mais amplo.
Este livro é dividido em duas partes. A primeira se intitula o
“Jusnaturalismo Tomista e as suas Leituras” e versa sobre a
Filosofia Jurídica Tomista. No trabalho de abertura, “A
Anterioridade da Prudência em relação à Justiça”, Daniel Nunes
Pêcego procura estabelecer as relações entre justiça e prudência,
demonstrando a anterioridade desta em relação àquela, tendo
como base as considerações feitas por Tomás de Aquino sobre o
tema. A seguir, Marcus Paulo Rycembel Boeira, em “Diferenças
entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco
Suárez: problemas gnosiológicos e metafísicos”, compara a lei
natural do Aquinate com a de um dos mais importantes expoentes
da Escolástica Espanhola, Francisco Suárez. Embora o
fundamento fosse Santo Tomás, o autor mostra que algumas
alterações gnosiológicas e metafísicas aproximam muito mais a lei
natural suareziana da modernidade. José Eduardo Cunha
apresenta o artigo “Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina da
participação de Santo Tomás de Aquino aos Princípios
Fundamentais de Gustav Radbruch”. Quase um texto pessoal, o
autor mostra como a doutrina da participação permite
compreender as relações entre Direito e Justiça. Por fim, Renato
José de Moraes, no artigo “Tomás de Aquino e a filosofia de
Alasdair MacIntyre”, estabelece a estreita genealogia entre o
pensamento de Aquino e de MacIntyre e mostra como esse
sistema de ideias permite a crítica que o escocês faz da filosofia
prática contemporânea.
A segunda parte chamada “O Jusnaturalismo Tomista nas
Instituições Jurídicas” trata da influência tomista em institutos de
direito positivo. Mauricio Jorge Pereira da Mota, no trabalho
“Direito de propriedade em Tomás de Aquino”, analisa o conceito
e os fundamentos teóricos da função social da propriedade à luz
do pensamento de Tomás de Aquino, e, de modo secundário, do
pensamento aristotélico. Mostra também como esse retorno às
raízes permite novas e originais maneiras de compreender o
instituto no Direito Civil contemporâneo. Logo depois, este

24
prefaciador escreve “O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o
projeto civilizador da Escolástica Espanhola”. Busquei reconstruir
o intento de Suárez para salvar uma tradição cristã muito antiga
da sua destruição, a doutrina da guerra justa, ancestral direta do
Direito Internacional. Para fazer frente às exigências dos novos
tempos, o autor ibérico precisou alterar o fundamento do direito
da guerra: de doutrina religiosa, ela se tornou jurídica. Em
seguida, num trabalho quase de “Criminologia tomista”, Marcos
Paulo Fernandes de Araújo, no texto “Espécies de justiça e o
problema da punição”, investiga a natureza do crime para o
realismo clássico. A obra se encerra com “Direito internacional: o
que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em
Estados” de Rafael Zelesco Barretto. Ele mostra como um
fundamento tomista possibilita uma maior compreensão de
institutos do Direito Internacional contemporâneo, como o jus
cogens e os princípios da integridade territorial e do pacta sunt
servanda.
Boa leitura!

Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo20

Rio de Janeiro, 21 de março de 2015

20
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo é Mestre em Direito Internacional
pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutor em Direito Internacional
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É professor adjunto da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, onde é vice-coordenador do programa de pós-graduação. Membro da
Comissão de Área do Qualis/CAPES, advogado e consultor de Direito
Internacional da Escola de Guerra Naval.

25
PRIMEIRA PARTE
____________________________

JUSNATURALISMO TOMISTA
E SUAS LEITURAS
I. A ANTERIORIDADE DA PRUDÊNCIA EM
RELAÇÃO À J USTIÇA

Daniel Nunes Pêcego21

Sumário: Introdução. 1. A virtude da justiça. 1.2. O direito, objeto da justiça. 2.


A virtude da prudência. 3. A prudência pessoal e a prudência política. 3.1. As
espécies de prudência. Conclusão. Referências.

Introdução

Muito se tem tratado sobre o tema da justiça em sede de


Teoria do Direito. Na realidade, pode-se falar de um fenômeno
maximalista das teorizações sobre a justiça no campo jurídico de
tal modo que, para muitos, falar de justiça significa praticamente
tratar do direito. A visão clássica, mormente a de inspiração ou
filiação tomista, no entanto, procura definir cada um dos
conceitos, o de justiça e o de direito, ligando-os, porém, entre si,
de tal modo que um está necessariamente presente na definição da
outra. Trata-se de conceitos diferentes, mas não absolutamente
independentes um do outro.
Se esta é a situação quanto à justiça e ao direito, um aspecto
bastante negligenciado nas discussões jurídicas, sobretudo no que
diz respeito à aplicação do direito (mas igualmente no campo da

21
Daniel Nunes Pêcego é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Especialista em Filosofia Medieval pela
Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. É também Professor Adjunto e
Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ - Campus Seropédica).
29
Leituras Tomistas

produção de leis, que, na realidade, é mais apropriada às áreas da


Teoria ou Filosofia Políticas) é aquele acerca do papel da
prudência. A primeira e mais importante das virtudes cardeais, a
qual forneceu parte do nome clássico da própria Ciência Jurídica
(Jurisprudência), é amplamente ignorada mesmo pelas obras que
tratam da problemática decisional.
Pois bem, tendo como base a obra de Tomás de Aquino,
especialmente a Suma Teológica, este trabalho tratará das virtudes
da justiça e da prudência, procurando demonstrar que a
prudência apresenta uma relação de primariedade em relação à
justiça. Essa conclusão, como se verá, tem importantes
consequências no que diz respeito, por exemplo, ao direito
natural.

1. A virtude da justiça

O termo latino iustitia deriva de iustum, adjetivo de ius. Os


juristas romanos estabeleceram uma interpretação verbal, fazendo
derivar ius de iustitia22. Esta derivação, mais do que foneticamente
correta, é real, uma vez que a justiça é efetivamente princípio de
realização do direito.
Filologicamente, porém, essas considerações não são exatas,
pois é mais razoável esperar que iustum e iustitia derivem da
forma mais simples (ius). Ainda assim, Tomás de Aquino –
prescindindo do significado etimológico de ius, – dava a esse

22
Cf. Digesto, 1, 1, 1 pr. (JUSTINIANO. Digesto. Livro I. 2 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, [2000], p. 15). Uma observação metodológica: as obras que
apresentam um sistema de citação já clássico (como as do Digesto, por
exemplo) são assim referenciadas. Indica-se igualmente, porém, a localização
do trecho segundo a paginação das edições modernas. Exceção para a Suma
Teológica, a qual foi referenciada apenas pela notação tradicional.

30
A anterioridade da prudência em relação à justiça

termo, bem como a seus derivados, o significado vulgar de


“ajuste” ou “igualdade com outro” 23.
Quanto ao seu sentido real, devem-se considerar as acepções
básicas da justiça. Primeiramente, a justiça geral, indicada pelo
Aquinate tendo como base Santo Anselmo24. Nesse sentido geral e
amplíssimo, a justiça é o mesmo que retidão moral, a devida
ordenação de todos os movimentos da alma entre si e em relação a
Deus, na linha do entendido pelos Padres da Igreja e pelos
Escolásticos, com fundamentação bíblica, mas também por escolas
filosóficas como a platônica25.
Um segundo sentido estrito e próprio de justiça é a sua
consideração como virtude cardeal, ou seja, a prática das obras da
justiça, dando a cada um o que é seu. Este sentido poderá ser
entendido ainda em duas acepções.
Pode significar, primeiramente, a ordem objetiva da justiça,
da justiça realizada. A justiça assim entendida se identifica com as
exigências da lei, um objetivo de ordem social e segurança
jurídica, ou mesmo com o direito natural. Obviamente que esta
acepção não representa o sentido próprio da justiça como virtude,
mas apenas a justiça objetivada e realizada.26
A segunda acepção é a que mais interessa aqui. Trata-se da
justiça em sentido subjetivo, em sua percepção formal, segundo a
definição de Ulpiano, assumida por Tomás de Aquino e por ele
comentada em seu “Tratado da Justiça” 27: “Iustitia est constans et
perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi”.28

23
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 57, a. 1, r. Cf. também URDAÑOZ,
Teófilo. Introducción al Tratado de la Justicia. In: AQUINO, Tomás de. Suma
Teológica. Tomo VIII. Madri: BAC, 1956, p. 243.
24
Cf. Idem, Ibidem, II-II, q. 58, a. 4, s.c.: “A justiça é a retidão da vontade,
retidão observada por causa dela mesma”.
25
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., pp. 243-244.
26
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., p. 245.
27
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 58, a. 1, r.
28
Cf. Digesto, 1,1,1,10 pr. (JUSTINIANO. Op. cit., p. 19): “Justiça é a vontade
constante e perpétua de dar a cada um o seu direito”.

31
Leituras Tomistas

A definição é deliberadamente apropriada pelo Aquinate,


mas deve ser bem compreendida. Sendo assim, num sentido mais
amplo, é correto definir as virtudes por seus atos próprios e com
vistas à sua matéria e objeto. É que a virtude é um princípio de
atos bons e deve, consequentemente, ser definida por sua atuação
própria, o que resta evidente pela referência à vontade de dar a
cada um o seu direito. A vontade se refere à disposição firme e
constante de dar o direito. Ora, é próprio de toda virtude ser uma
disposição que incline de modo firme e permanente a seus atos.
Assim, ficam evidenciados tanto o hábito virtuoso quanto a sede
da justiça, residente na vontade. Essa disposição permanente se
refere ao objeto, implicando o propósito de sempre e em qualquer
circunstância atuar de modo justo. A referência à vontade
constante designa a firmeza subjetiva, a perseverança no
propósito, sem a qual não se chega a ser propriamente virtuoso.29
De modo bastante original, Tomás de Aquino localiza a sede
da justiça na vontade. Em geral, a doutrina anterior – levando em
consideração a proposta tripartite de Platão30 (razão, apetite
irascível e apetite concupiscível) – teve grande dificuldade em
apontar a faculdade própria da justiça. Por isso, segundo essa
linha, a justiça era entendida como uma virtude geral31, originada
da concórdia de todas as virtudes, e como que a sua plenitude.
Assim também Aristóteles, que apresenta uma noção de vontade
um tanto obscura, que não parece se incluir no racional por
essência – a justiça residiria propriamente na vontade, mas teria
por sujeito o apetite sensível32.
O Aquinate, porém, interpreta Aristóteles corrigindo-o e,
utilizando-se da tradição agostiniana por via do já citado Anselmo

29
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., pp. 245-246.
30
Cf. MARÍAS, Julian. Op. cit., p. 60.
31
Cf. WOLF, Úrsula. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2010,
p. 98.
32
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., p. 255

32
A anterioridade da prudência em relação à justiça

da Cantuária33, acaba por afirmar que a justiça retifica e dirige os


atos da vontade e, por conseguinte, o hábito desta potência. Com
efeito, as operações exteriores ordenadas ao bem dos outros
advêm do princípio de qualquer ação, ou seja, do apetite, este
apenas podendo ser o intelectivo e não o sensível, pois, neste caso,
o bem exterior, consistente na proporção e ordenação aos outros,
somente é captado pela razão. O apetite sensível, ao contrário, não
pode se dirigir ao bonum alterius, o qual é necessariamente um
bem racional34.
Trata-se, por conseguinte, do aperfeiçoamento da vontade
no que diz respeito à tendência ao bem dos outros35. Essa
dimensão de alteridade, característica da justiça, é especialmente
sublinhada pelo Aquinate36.
A virtude da justiça tem sua sede na parte nobre da alma, o
apetite racional, na faculdade da vontade37, pois “não somos
chamados justos, pelo fato de conhecermos corretamente [...],
somos, ao contrário, chamados justos pelo fato de agirmos com
retidão38”. As demais virtudes morais têm sua sede no apetite
sensível (irascível ou concupiscível39), ao qual pertencem as
paixões, matéria dessas virtudes. Por isso – e porque o bem
comum almejado pela justiça é superior ao bem particular40, a
justiça pode ser considerada a mais excelsa das virtudes morais41,

33
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 58, a. 4, s. c.
34
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., p. 255
35
Cf. RHONHEIMER, Martin. La perspectiva de la moral: Fundamentos de la
Ética Filosófica. Madri: Rialp, 2000, p. 246.
36
Cf. RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado General de Filosofía del Derecho. 4 ed.
Cidade do México: Porrúa, 1970, p. 484.
37
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II q. 58, a. 12, r. Cf. também MONTEJANO,
Bernardino. Curso de Derecho Natural. 8 ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2005, p.
100.
38
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II q. 58, a. 4, r.
39
Cf. Idem. S.Th. II-II q. 58, a. 12, r. e S.Th. II-II q. 58, a. 9, r.
40
Cf. Idem. S.Th. II-II q. 58, a. 12, r.
41
Cf. Idem. S.Th. I-II q. 66, a. 4, r. Cf. também Montejano, Bernardino. Op. cit.,
p. 100.

33
Leituras Tomistas

não se ignorando que, de certo modo, todas as virtudes morais


assumem caráter pessoal, de ligação com um interlocutor. Mas,
sem dúvida, a noção de dever moral se mostra mais clara na
justiça42.
O objeto da justiça – “o seu”, o seu direito “– é o que fornece
o específico dessa definição”. Santo Tomás entende como
equivalentes a expressão do jurista latino “ius suum unicuique
tribuendi” e a forma mais antiga “suum cuique” que aparece nos
textos dos autores citados acima, pois afirma que o ato próprio da
justiça é dar a cada um o seu43. O “seu” é exatamente o direito
objetivado, a coisa mesma devida a alguém, seja ela corpórea ou
incorpórea44.
É de se observar que a fórmula e o objeto nela previsto se
aplicam a todas as espécies de justiça, não apenas àquela chamada
comutativa. Isso se dá porque o termo “suum” comporta não
somente as coisas referidas ao simples domínio de propriedade,
mas equivale a tudo o que se ordena ao outro, o que é devido a
outrem45.
Todo ato externo é eminentemente social e por isso todo o
campo da vida social é próprio da virtude da justiça46. A justiça
regula o teor e natureza dos atos externos47, exclusivamente
considerando o que é devido ou não a outrem e
independentemente de disposições afetivas, uma vez que
comporta igualdade que só se dá em relação aos outros48.
Enquanto nas demais virtudes a medida é o ânimo do
agente, na justiça a medida é a própria coisa, aquilo que se faz49.

42
Cf. PIEPER, Josef. Virtudes fundamentais. Lisboa: Aster, 1960, p. 88.
43
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 58, a. 11, r.
44
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., pp. 246-247.
45
Cf. Ibidem, p. 247.
46
Cf. MONTEJANO, Bernardino. Op. cit., p. 93.
47
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II q. 58, a. 11, r.
48
Cf. Idem. S.Th. II-II q. 58, a. 2, r.
49
Cfr. HERVADA, Javier. Introducción crítica al Derecho Natural. Bogotá: Temis,
2000, p. 156.

34
A anterioridade da prudência em relação à justiça

Trata-se de um meio-termo real, objetivo, medium rei, “certa


igualdade de proporção da realidade exterior com a pessoa
exterior50”. Daí se afirmar que as notas características da justiça
são a alteridade, o débito e a igualdade51.
Como decorrência de o ato de justiça se inscrever no âmbito
moral, na sua espécie boa o princípio dos atos justos
necessariamente será um hábito virtuoso. Assim, a obra de justiça,
a entrega do direito, é um bem não apenas para o outro52, mas
também para o próprio sujeito53. E isso se dá assim, pois o valor da
bondade advém da condição de que os atos sejam regulados pela
regra da razão54. A razão formal do justo, portanto, sem deixar de
ter um critério objetivo de coisa exterior, é uma medida racional
como em qualquer outra obra virtuosa55.
A justiça é uma virtude cardeal56, apresentando-se como a
principal e mais árdua no gênero das virtudes que retificam as
ações exteriores, que devem ser cumpridas em relação ao
próximo. A supremacia da justiça é especialmente verdadeira no
que diz respeito à justiça legal, dada a proeminência do bem
comum em relação ao bem particular. Mas mesmo a justiça
particular é superior às demais virtudes morais, dado que reside
na vontade e que aperfeiçoa tanto o agente quanto os demais57.

1.2. Direito, objeto da justiça

Começa Tomás de Aquino a análise do objeto da justiça, o


direito, seguindo não apenas o seu método corrente, mas também

50
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II q. 58, 10, r.
51
Cf. RODRÍGUEZ LUÑO, Angel. Ética. 5 ed. Pamplona: EUNSA, 1991, p. 227.
52
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 58, a. 12, r.
53
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 58, a. 3, r.: “A virtude torna bons os atos humanos e o
próprio homem”.
54
Loc. cit.
55
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., p. 254.
56
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. I-II, q. 61, a. 4, r.
57
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 58, a. 12, r

35
Leituras Tomistas

a ordenação tradicional proposta tanto pelo Corpus Iuris Civilis,


como pelo Decreto de Graciano, os quais são, juntamente com
Aristóteles, as fontes utilizadas nesta questão58.
Segundo Bernardino Montejano59, o Aquinate indica quatro
significados para o termo “direito”: primeiro, o etimológico,
citando Isidoro de Sevilha60; depois, o objetivo, enquanto objeto da
justiça; o normativo, como ordenamento jurídico ou conjunto de
normas e, por fim, como a arte de discernir o justo (jurisprudência,
a arte do jurista). O sentido objetivo é o que realmente interessa
nesta análise, pois ressalta a ligação necessária entre a virtude da
justiça e o direito.
O Doutor Angélico conclui que por essa mesma noção
comum, o direito se identifica como objeto da justiça. Com base
nela também concluirá a sua essência e o seu conteúdo formal61. Se
a justiça – ao contrário das demais virtudes, que aperfeiçoam o
homem em relação a si mesmo – é aquela que o ordena no que diz
respeito a outrem, implicando numa certa igualdade, segue-se que
o seu objeto é o justo (iustum). Santo Tomás promove um jogo
semântico entre os termos latinos iustum (justo) e ius (direito),
para concluir que o direito é objeto da justiça62.
Segundo Carlos Massini Correas, trata-se de uma inovação
conceitual do Aquinate, uma vez que nem Aristóteles e tampouco
o Direito Romano estabeleceram claramente o direito como objeto
da justiça63, apesar de terem sido sempre conceitos obviamente
solidários64.

58
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., p. 178.
59
Cf. MONTEJANO, Bernardino. Op. cit., p. 93.
60
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 57, a. 1, s.c.
61
Cf. URDAÑOZ, Teófilo. Op. cit., p. 183.
62
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 57, a. 2, r.
63
Cf. MASSINI CORREAS, Carlos I. Filosofia del Derecho. Tomo II: La Justicia.
Buenos Aires: Lexis Nexis: 2005 p. 75.
64
Cf. VILLEY. Michel. O direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins
Fontes, 2007, p. 35.

36
A anterioridade da prudência em relação à justiça

Deve-se sublinhar que esse objeto da justiça é, em relação ao


das demais virtudes, o mais independente das modificações
circunstanciais e, portanto, mais apto a ser fixado definitivamente
num conjunto ordenado de leis65.
Segundo a doutrina tomasiana, portanto, o direito é uma
coisa (res) devida a alguém, coisa esta a ser dada por um ato de
justiça. Sendo assim, o hábito da justiça – repetição de atos justos –
consiste em dar (entregar, devolver, não tirar, etc.) a outrem o
direito – a coisa – que lhe fora previamente atribuída por uma lei
(entendida aqui no sentido mais amplo possível).
Significa dizer, consequentemente, que a atribuição do
direito, tanto pela natureza (lei natural), quanto pela vontade
humana (lei positiva) – a definição, portanto, do que é de cada um
– se dá anteriormente ao ato de justiça. Nesse sentido realista,
entende-se o direito como algo objetivamente devido a alguém,
decorrente de uma atribuição anterior à própria execução do ato
de justiça66. O direito é, assim, anterior à justiça, que o pressupõe67.
Nos dizeres de Javier Hervada, “onde não há um direito existente,
a justiça não é invocável” 68.
Essa conclusão, aparentemente banal, não é desimportante
para a doutrina e a prática jurídicas. De fato, a consideração do
direito como objeto da justiça e, portanto, anterior ao ato justo,
somada à percepção – evidente a todos, com a exceção teórica de
um Positivismo radical – de que se pode estar frente a um direito
positivo injusto, leva inexoravelmente à conclusão de que deve
haver um direito prévio ao positivo, que seja fundamento deste.
Sendo o direito anterior ao ato de justiça, seria contraditória a
referência a um “direito injusto”, exceto se houver um direito

65
Cf. PIEPER, Josef. Op. cit., p. 38.
66
Cf. HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de Filosofia do Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, pp. 95-100.
67
Cf. Ibidem, p. 74.
68
Cf. Idem. O que é o direito? : a moderna resposta do realismo jurídico: uma
introdução ao direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 25.

37
Leituras Tomistas

atribuído anteriormente à própria determinação promovida pela


lei positiva. Trata-se, pois, do direito natural, atribuído por uma
lei natural69.

2. Virtude da prudência

Na concepção tomasiana, a prudência desempenha um


importantíssimo papel, sendo a primeira das virtudes morais,
uma vez que é a que dirige e modera as demais70. Para tratar da
prudência, Tomás de Aquino se apoia na Filosofia Clássica
(notadamente em Aristóteles), mas também no conteúdo revelado
pelas Sagradas Escrituras e pela Tradição, bem como na doutrina
patrística71.
Ao tratar da etimologia do termo prudência, o Aquinate
adota a solução proposta por Isidoro de Sevilha, segundo a qual
“prudens” viria de “porro videns” 72, ou seja, a característica daquele
que é perspicaz ao prever acontecimentos futuros e incertos. Na
realidade, ainda que esta informação não seja muito exata do
ponto de vista filológico, tampouco chega a ser incorreta. De
qualquer modo, o termo latino “prudentia” procede do adjetivo
“prudens”. Este adjetivo deriva de “providens” ou de “providendo”,
que significava originalmente a capacidade de prever o futuro73.
A prudência em si mesma, segundo a lição de Tomás de
Aquino, pode ser definida como a virtude do comando e governo.
Trata-se de um hábito da razão prática destinado a regular a ação

69
Cf. Ibidem, pp. 26-27.
70
Cf. RAMÍREZ, Santiago. Introducción al Tratado de la Prudencia. In: AQUINO,
Tomás de. Suma Teológica. Tomo VIII. Madri: BAC, 1956, pp. 3-9, p. 3.
71
Cf. BASSO, Domingo F. P. La fuente del equilíbrio moral y jurídico. Buenos
Aires: Educa, 2005, p. 9 e RAMÍREZ, Santiago. Op. cit., 1956, p. 5.
72
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 49, a. 6, obj. 1.
73
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 12.

38
A anterioridade da prudência em relação à justiça

e a fazer atuar segundo o que convém em todas as áreas da vida


humana, seja em relação a si mesmo, seja quanto aos demais74.
Como já indicado pela própria etimologia, a prudência é
uma virtude cognitiva, ainda que suponha certa intervenção do
apetite. De fato, como é óbvio, não se trata de um conhecimento
sensitivo, uma vez que é próprio da prudência prever o futuro
fundando-se no conhecimento do passado e do presente, o que
não é possível aos sentidos75. Pode-se definir, assim, a prudência
como um hábito intelectivo prático – pois seus objetos são as
coisas contingentes, móveis e temporais – que versa sobre o
passado, o presente e o futuro.
A distinção virtual entre razão teórica e razão prática não se
refere a uma diferenciação de potências, mas de funções dentro de
uma mesma potência. Assim, o intelecto se diz especulativo ou
teórico quando se ordena apenas ao conhecimento ou à
consideração da verdade76. Sendo em si especulativo, poderá ser
dito prático por extensão, ao ordenar a verdade que conhece à
práxis77.
O prático se diferencia do teórico, portanto, pelo fim ao qual
se ordena78, ou seja, a verdade operativa enquanto operativa ou
ordenada à ação. O fim da razão teórica não é senão o próprio
saber. Já o fim da razão prática é alguma obra ou operação. O
intelecto prático, no entanto, está ordenado e aplicado à
determinada coisa particular, enquanto que a razão teórica se
inclina, em especial, ao universal79.
Se o fim da razão teórica é o saber enquanto tal, o da razão
prática é dirigir a ação. Sendo assim, a verdade, bem próprio da

74
Cf. PÈGUES, Thomas. Dictionnaire de la Somme Theologique de Saint Thomas
d’Aquin e du Commentaire français litteral: P(eine) – Z. Cadillac: Saint-Rémi,
1935, p. 978.
75
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 13.
76
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 79, a. 11, r.
77
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 14.
78
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 79, a. 11, r.
79
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 14.

39
Leituras Tomistas

inteligência, é considerada de modo diversificado em uma e outra


razão. A verdade da razão teórica é tomada da conformidade com
a realidade como tal. Por outro lado, a verdade para o
entendimento prático é estabelecida pela comparação com o
apetite reto. Isso porque, se o seu fim é dirigir, a verdade se dá
nela pela comparação com o princípio diretivo, ou seja, o apetite
de acordo com a retidão do fim das coisas morais.
Os autores são praticamente unânimes em considerar a
prudência como uma virtude, dado o seu caráter de hábito
operativo ordenado ao bem moral do sujeito, supondo um fim
correto e tendo como função determinar os meios moralmente
bons para o referido fim.
O Aquinate considera a prudência como virtude ao mesmo
tempo intelectiva e moral, uma vez que se trata de uma virtude
retificadora tanto da razão prática no conhecimento da verdade,
quanto do apetite na persecução do bem.
Tomás afirma que a verdade prudencial, própria da razão
prática, pertence ao gênero de verdade prático tomada, não da
conformidade com a realidade, como se dá na razão especulativa,
mas da adequação ao apetite reto80.
Exatamente por causa dessa participação do apetite reto
natural, a virtude da prudência é uma virtude moral. A
inteligência por si só não é sujeito de uma virtude moral, mas
poderá o ser enquanto imperada pela vontade. Em outros termos,
pode-se afirmar que a prudência é uma virtude materialmente
intelectiva e formalmente moral81.
É materialmente intelectiva, pois se encontra na inteligência
prática como em seu próprio sujeito eletivo com relação ao
conhecimento do universal de onde parte o seu raciocínio. É
virtude formalmente moral enquanto razão reta reguladora do

80
Cf. Ibidem, pp. 22-23.
81
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. I-II, q. 13, a. 1, r. Cf. também BASSO, Domingo F.
P. Op. cit., p. 24.

40
A anterioridade da prudência em relação à justiça

operável, pois depende do apetite reto natural na apreciação


intelectual do singular concreto.
A prudência apresenta três tipos de atos (o conselho, o juízo
eletivo e o império), uma vez que se trata de uma virtude
intelectivo-prática, cujo objeto próprio é o agir humano. Sendo
assim, é de se supor que, enquanto virtude intelectiva, conheça
perfeitamente a verdade prática (conselho e eleição), mas que,
enquanto virtude prática, deva aplicar a verdade conhecida aos
atos concretos (império) 82. É preciso deliberar previamente para
julgar acerca dos meios mais idôneos para um determinado fim
prático. A falta de uma dessas fases acarretará um desvio na
prática da prudência83.
Como, porém, a função mais importante da prudência é
aplicativo-prática, é evidente que seu ato principal é o império. E,
de fato, é este o ato que a distingue das demais virtudes
intelectivas, tanto teóricas quanto práticas. O conselho e o juízo se
ordenam ao império como preâmbulos, sempre precedendo a
este84.
O império apenas se dá na razão prática, pois se ordena
imediatamente à operação e, portanto, não pode consistir num
mero juízo. Por isso, a razão prática acrescenta este terceiro ato
enquanto preceitua ou ordena que se proceda à ação, recordando
que o fim da prudência é determinar o que se deve fazer. Trata-se
de um ato do entendimento, cuja eficácia se dá por força da
vontade85.

82
Cf. Ibidem, p. 39.
83
Cf. MASSINI CORREAS, Carlos I. La Prudencia Jurídica: Introducción a la
gnoseología del Derecho. 2 ed. Buenos Aires: Lexis Nexis: 2006, pp. 48-49.
84
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 40.
85
Cf. Ibidem, p. 39.

41
Leituras Tomistas

3. A prudência pessoal e a prudência política

Tomás de Aquino distingue dois tipos de prudência, a


pessoal e a política (ou social). Assim como a prudência pessoal
dirige as ações humanas no governo de si mesmo, a política se
ocupa do governo da sociedade. A relação da prudência pessoal
com as virtudes morais é análoga àquela existente entre a
prudência política e a justiça legal, que ordena todos os atos dos
indivíduos ao bem comum86. Assim como a justiça legal se
distingue especificamente da justiça particular (comutativa ou
distributiva), a prudência política difere especificamente da
pessoal87.
No que diz respeito ao objeto próprio da prudência política,
seu objeto material são as operações sociais, enquanto que o objeto
formal é a verdade prática das conclusões referidas à direção
dessas mesmas operações ao bem comum da sociedade.
Precisamente – e isso deve ser sublinhado, dada sua relevância – a
regra normativa da justiça legal é a prudência política. Por sua
vez, a justiça legal tem como objeto todas aquelas ações que o
homem deve ordenar ao bem comum88.

3.2. As espécies de prudência

O Aquinate aponta quatro espécies de prudência no


respectivo Tratado da Suma Teológica. São as chamadas partes
subjetivas de uma determinada virtude89. A primeira delas é
denominada como regnativa (real ou régia). Expressa, assim, o ato

86
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 50, a. 1, ad 1.
87
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 45.
88
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. I-II, q. 96, a. 3, r.; S.Th. II-II, q. 58, a. 6, r. e S.Th.
II-II, q. 50, a. 1, ad 1.
89
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 48, a. único.

42
A anterioridade da prudência em relação à justiça

geral de reger ou governar90. É possível também observar a


utilização da expressão “prudência legislativa”. Neste caso, a
ênfase maior é dada à função principal da autoridade, que é a de
produzir leis (em sentido amplíssimo, entendidas como qualquer
tipo de ordenação) 91.
O sujeito principal desta espécie de prudência é o legislador,
o qual exerce a autoridade suprema na sociedade civil.
Considerando-se que a noção mais exata de divisão de poderes
ainda não existia à época de Tomás, é óbvio que são considerados
sujeitos dessa parte subjetiva da prudência, ainda que
secundários, todos os que exercem alguma autoridade política,
como magistrados em geral, ministros, subordinados, etc.92. Como
afirma Tomás de Aquino, “a justiça e a prudência são as virtudes
mais apropriadas ao governante” 93. Todos, portanto, que exercem
alguma potestade, devem possuir estas duas virtudes, não
podendo se dar uma sem a outra.
A prudência legislativa apresenta íntima relação com a
justiça legal, a qual também dirige, exercendo seu influxo sobre as
virtudes pessoais tanto do governante quanto dos governados,
uma vez que todas elas devem estar de alguma forma a serviço do
bem comum.
Essa vinculação entre a prudência legislativa e a justiça legal
se dá em todos os âmbitos e funções da autoridade civil, ou seja,
enquanto propriamente legisla, administra ou julga. Todos esses
atos de poder pertencem à justiça governativa, assim como todos
os atos de conselho e deliberação em matéria política ou de
governo. Mas, em especial, se lhe aplica o ato de mandato ou
império, tanto legislativo quanto executivo, ou seja, ordenando
uma conduta de modo genérico ou específico.

90
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 1, ad 2.
91
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 1, ad 3.
92
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 1, ad 3.
93
Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 1, ad 1.

43
Leituras Tomistas

Por isso, a lei civil deve ser considerada como ato eleito pela
prudência legislativa e imperado pela justiça legal. Não por acaso,
a definição de lei que propõe Tomás de Aquino94 é a de ser ato
desta espécie de prudência sob a moção da justiça governativa ou
legal95.
Por outro lado, a prudência política ou civil é a que se
encontra nos governados, em complementação àquela
legislativa96. Sua função, segundo o Aquinate, não é a de
participar diretamente no regime público dos governantes, uma
vez que se trata de prudência própria dos que devem
obedecer. Está intimamente ligada à justiça legal, a qual se
atribui aos governados executivamente e aos governantes
“arquitetonicamente” 97. Esta espécie de prudência é a razão que
dirige todas as ações dos governados no serviço da sociedade e as
subordina ao bem comum.98.
Ao cumprirem prudentemente as leis, os governados
satisfazem assim os seus deveres sociais, uma vez que, enquanto
membros livres de uma comunidade política, devem dirigir-se
ativamente a si mesmos para o bem comum. Por isso, precisam
participar da retidão do governo para se regerem eles mesmos no
seguimento dos governantes99.
Sendo assim, além da prudência comum ou geral, pela qual
“o homem se dirige a si mesmo, com vista ao próprio bem”, é
igualmente necessária uma prudência política, pela qual se dirige
“com vistas ao bem comum” 100. Ainda que os governados sejam
dirigidos pelos preceitos dos que governam, “se movem a si
mesmos pelo livre-arbítrio” 101, pois a prudência política

94
Cf. Idem. S.Th. I-II, q. 90, a. 4, r.
95
Cf. Idem. S.Th. I-II, q. 90, a. 2, ad 3.
96
Cf. Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 2, r.
97
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., pp. 82-83.
98
Cf. Ibidem, p. 83.
99
Cf. AQUINO, Tomás de. S.Th. II-II, q. 47, a. 12, ad 3.
100
Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 2, ad 3.
101
Idem. S.Th. II-II, q. 50, a. 2, r.

44
A anterioridade da prudência em relação à justiça

pressupõe a deliberação e o juízo próprio juntamente com o


império sobre si mesmo102.

Conclusão

Já no momento da produção legislativa, considerando-se a


lei e o direito positivos, fica evidente a anterioridade da prudência
em relação à justiça. Deve-se haver um direito anterior ao ato de
justiça e este é definido e atribuído por uma lei prévia, é correto
afirmar que a produção da lei é anterior ao ato de dar o direito a
quem lhe cabe.
Pois bem, fazer uma lei positiva é papel do legislador
humano, seja ele o povo como um todo atuando diretamente,
sejam seus representantes ou o monarca, etc. Como a produção da
lei envolve a inteligência e a vontade e, finalmente, fixa uma
ordem, ela deve ser praticada sob a égide da prudência. Atuando
prudentemente ao fazer uma lei, o legislador praticará em seguida
um ato de justiça, ao fixar pela e na lei positiva o objeto a ser dado,
dentro das conclusões e determinações possíveis, tendo como base
a lei natural e os direitos naturais por esta atribuídos. Resta
evidente, portanto, que a prudência é anterior ao ato de justiça. A
lei civil é, dessa forma, ato eleito pela prudência legislativa e
praticado pela justiça legal.
Por outro lado, na fase decisional propriamente judicial, no
ato de proferir uma sentença, demonstra-se novamente a
anterioridade da justiça. A função do jurista e, em especial, a do
jurista por antonomásia que é o juiz, consiste exatamente em dizer
o justo, praticar a jurisdictio, a jurisdição. Não é, portanto, mera
casualidade que a Ciência do Direito tivesse sido conhecida entre

102
Cf. BASSO, Domingo F. P. Op. cit., p. 83.

45
Leituras Tomistas

os romanos como “Jurisprudência” 103, a prudência própria dos


que trabalham com o direito, os jurisprudentes104.
Em outras palavras, tratava-se da tarefa daqueles que são
chamados a dizer o direito, em caso de controvérsia, analisando
prudencialmente a lei e os argumentos aduzidos105. A dimensão
prudencial da tarefa do jurista, mormente do juiz, significa que
este não pode recorrer apenas ao estatuto abstrato de um direito,
mas que deva decidir caso a caso, observando em cada situação o
contexto normativo e as circunstâncias particulares106.
Assim, em caso de controvérsia, o juiz será chamado a, com
base nas provas apresentadas e na legislação aplicável à matéria,
determinar o direito de cada uma das partes. Note-se que a tarefa
do magistrado ao determinar o direito a ser dado não é
propriamente a de praticar o ato de justiça - que o será por outrem
(a parte perdedora, voluntariamente, ou um órgão estatal [oficial
de justiça, etc.]) -, mas o de indicar a conduta justa a ser praticada.
Para os jurisprudentes, “o direito é obra do homem (...) e,
sob outro aspecto, objeto de seu conhecimento” 107. Por isso, ainda
segundo os romanos, “o jurista há de ter pleno conhecimento da
realidade (das coisas divinas e humanas108), para fazer atuar a
justiça, que é o fim essencial da iurisprudentia” 109.
A determinação do justo, portanto, não é propriamente um
ato de justiça, mas sim de uma virtude intelectiva anterior à

103
Cf. VILLEY, Michel. Op. cit., s\d., pp. 72-73..
104
Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. 3 ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001, pp. 90-91.
105
Cf. HERVADA, Javier. Op. cit., 2006, pp. 14-15.
106
Cf. SERNA, Pedro et al. La interpretación constitucional de los derechos
fundamentales: Una alternativa a los conflictos de derechos. Buenos Aires: La
Ley, 2000, p. 56.
107
OLIVEIRA FILHO, Benjamim. Introdução à Ciência do Direito. 5 ed. Rio de
Janeiro: Konfino, 1973, p. 352.
108
Cf. Digesto 1, 1, 10, 2 (JUSTINIANO. Op. cit., p. 19): “Jurisprudência é o
conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto”.
109
MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Vol I. 13 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 78.

46
A anterioridade da prudência em relação à justiça

mesma justiça. Trata-se da prudência, a reta razão do agir a qual


indica a conduta justa a ser praticada.
Se isso fica bem compreendido, é eliminada qualquer
possível acusação de tautologismo imputável à formulação
clássica da justiça, causada por uma leitura deontológica. A
sentença “deve-se fazer o que se deve fazer” (ou “deve-se dar a
cada um o que é seu”) é evidentemente tautológica, mas não o é a
sentença “fazer o que deve ser feito” (“dar a cada um o que é
seu”).
A formulação clássica da justiça não é tautológica, porque
não é deontológica, não indica um dever de conduta, mas a
conduta propriamente dita a ser praticada. Ela é a prática de um
dever que foi imposto anteriormente. E dever, porque o justo, o
direito a ser dado pela justiça é, antes de tudo, algo devido. O que
é deontológico, o que indica um dever de conduta, é a virtude da
prudência, na sua fase imperativa, sobretudo. O preceituar é o
mais próprio da virtude da prudência, que, como explicado acima,
encontra o seu ato principal exatamente na etapa imperativa, após
a fase intelectiva da deliberação e juízo. A prudência afirma: “Dá
isto àquela pessoa!” e o homem prudente, ao dar a cada um o seu,
torna-se assim também justo.

47
Referências

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48
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WOLF, Úrsula. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2010.

49
II. D IFERENÇAS ENTRE A TE ORIA DA
LEI NATURAL EM T OMÁS DE A QUINO
E F RANCISCO S UÁREZ : PROBLEMAS
GNOSIOLÓGICOS E META FÍSICOS

Marcus Boeira1

Introdução. 1. A escolástica ibérica: a universidade de Salamanca como ponte


entre o clássico e o moderno. 2. Da lei natural em Tomás de Aquino. 3. Da lei
natural em Francisco Suárez e sua relação com a origem do poder político.
4. Problemas gnosiológicos e metafísicos na compreensão da lei natural em
Suárez. .Referências.

Introdução

Entre os filósofos do Direito é notória a classificação das


escolas jusnaturalistas em três grandes períodos: antigo, medieval
e moderno. O chamado jusnaturalismo antigo, expressão atribuída
a suposta escola grega de direito natural, tem raízes na
cosmologia. Por isso, é também denominado jusnaturalismo
cosmológico. O jusnaturalismo medieval é chamado, pela grande
maioria dos comentaristas, de jusnaturalismo teológico, em razão
da posição ocupada por Deus na concepção da lei eterna e, assim,

1
Marcus Paulo Rycembel Boeira. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela
Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco). Professor de Filosofia do
Direito na Faculdade de Direito da PUCRS. Coordenador do curso de Direito do
Centro Universitário Metodista do Sul- IPA. Professor de Filosofia Política do
Instituto Internacional de Ciências Sociais- SP. Membro do Conselho editorial
da Communio: Revista Internacional de Teologia e Cultura.
51
Leituras Tomistas

da lei natural. Por fim, o jusnaturalismo moderno é designado


como jusnaturalismo antropológico, em virtude da mirada
metodológica ao ser humano como tal, aos seus postulados
racionais, tomando-o como um ente plenamente autônomo e
independente.
Entendemos, todavia, que essa classificação é imprecisa e,
por vezes, conduz a erros graves. As teorias do direito natural não
podem assumir a cronologia como critério de diferenciação, pois
se assim fosse jamais poderíamos afirmar que os gregos
entendiam a razão como princípio ordenador da alma e das
faculdades humanas em geral, o que de fato é bastante presente
nos Diálogos de Platão e, sobretudo, nas Éticas de Aristóteles2.
Nem mesmo poderíamos afirmar que os medievais tomavam a
razão como meio das operações do intelecto, nas suas variadas
finalidades, o que é indubitavelmente presente não só na opera
omnia tomista, como também em Alberto Magno e Boaventura.
Ainda, estaríamos incapacitados de citar a extraordinária
quantidade de autores modernos que colocavam Deus no topo de
suas concepções de Direito e Moral, como o próprio Grotius, mas
também Pufendorf, Leibniz e, como não poderia deixar de citar, os
autores da Escola de Salamanca. Em suma, não podemos aceitar a
classificação proposta pelo fato de que, tomando os autores do
período a partir de seus escritos, veremos o quão distante ela está
da realidade documental a que se reporta. Por isso, preferimos
antes descer aos textos dos autores propriamente ditos e,
começando por eles, procurar extrair elementos comparativos
concretos, procurando então estabelecer uma classificação e,

2
Por não ser o objeto central desse artigo, não teceremos maiores
considerações sobre a distinção invariavelmente feita pelos comentaristas de
Aristóteles quanto às suas obras exotéricas e esotéricas, o que não só não
negamos, como afirmamos veemente, sobretudo quanto àquelas relativas a
matéria moral. Para maiores esclarecimentos, remetemos o leitor a obra de
DÜRING, Ingemar. Aristóteles. 2ª ed. México: Fondo de cultura económica,
1990, p. 677 e seguintes.

52
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

porque não, uma comparação entre seus respectivos escopos


teóricos.
Claramente, não seria possível traçar nesse pequeno artigo
uma comparação entre todos os autores. Por isso, preferimos
eleger dois: o maior representante da primeira escolástica e o
maior da segunda. Tomás de Aquino (1225-1274) e Francisco
Suárez (1548-1617).
No presente artigo, assim, serão expostas algumas
diferenças gnosiológicas entre a teoria tomista e a teoria
suareziana da lei natural. Não há dúvida de que a Escola de
Salamanca (séculos XVI e XVII) foi decisiva para agravar o
distanciamento teórico entre as duas propostas jusnaturalistas,
razão pela qual é indispensável abordar seu desenvolvimento e
sua contextualização histórica na primeira etapa, buscando
pavimentar o caminho para uma compreensão mais profunda da
noção de lei natural segundo Tomás de Aquino – predominante
na primeira escolástica – e depois, a teoria de Francisco Suárez –
de grande repercussão no mundo católico tridentino e peninsular,
tendo em vista as diferenças existentes entre essas duas visões.
O esclarecimento dessas diferenças facilitará o entendimento
sobre os antagonismos subsistentes entre a concepção tomista,
predominante na baixa idade média, e a visão suareziana, que de
certo modo prepara a noção moderna sobre o direito natural e
sobre a Filosofia do direito como um todo. Por isso, o artigo em
questão evoca não apenas as raízes históricas do problema, raízes
que se originam já na era medieval com o nominalismo e o
voluntarismo, mas ainda tem como pretensão responder às
distinções almejadas com base nos postulados morais e
gnosiológicos de ambos os autores, cotejando a filosofia do direito
com a epistemologia e a moralidade.
O artigo, então, está dividido em quatro partes. Na primeira,
procuraremos explicar o desenvolvimento e a contribuição
histórica da Escola de Salamanca para a concepção moderna de
Direito, buscando, com isso, enriquecer o horizonte imaginativo
sobre o qual os rudimentos de uma teoria da lei natural alcançam
maior sofisticação e melhores resultados. Na segunda, buscaremos

53
Leituras Tomistas

apresentar a teoria de Tomás de Aquino sobre a lei natural. Na


terceira, expomos a teoria de Francisco Suarez sobre o direito
natural, realocando a discussão jurídica para o terreno da origem
do poder político, vez que em Suarez um tema está ancorado no
outro. Por fim, tentaremos oferecer algumas respostas para ambas
as teorias a partir dos pressupostos metafísicos e gnosiológicos
dos dois autores, tentando, dessa maneira, ofertar ao leitor uma
compreensão mais rica e profunda dos fundamentos do direito
natural.

1. A escolástica ibérica: a U niversidade de Salamanca


como ponte entre o clássico e o moderno

A Universidade de Salamanca foi fundada em 1218 e sua


relevância para a filosofia do direito e para a história cultural é
inquestionável. Todavia, foi só no final do Século XV e inicio do
Século XVI que a Universidade ganhou notoriedade cultural
global, já que no período nascia um grupo de teólogos e filósofos
devotados a resgatar as heranças da escolástica da baixa idade no
campo da teologia, da filosofia e das artes liberais em geral.
Assim, no panorama cultural europeu aparece como genuína
continuação da escolástica nos tempos modernos, autêntico elo
entre o medievo e a modernidade. Em seus pátios interiores, os
institutos nascidos na era moderna foram analisados sob a
vigilância da base teológica e filosófica herdada do primeiro
escolasticismo.
No que tange ao tema do direito político, a lei positiva e as
novas formas de organização do poder político sofreram uma
abordagem dentro dos parâmetros tradicionais. Enquanto
legatários de uma fonte iniciada na época dos primeiros cristãos –
Sagradas Escrituras – e continuada pela patrística e escolástica,
a Escola de Salamanca procurou conciliar os cânones
teológico-políticos desenvolvidos até o cinquecento com as novas

54
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

compreensões sobre o significado da lei humana e a legitimidade


das instituições políticas3.
Por isso, é possível afirmar que a Escola de Salamanca
promoveu uma verdadeira conciliação entre a teologia política
clássica e os institutos da era moderna, sobretudo se
considerarmos a era moderna como a época dos descobrimentos.
Frente a toda dialética travada entre a tradição e a modernidade, a
Universidade de Salamanca apareceu, em meados do século XVI,
como sendo o epicentro do chamado siglo de oro na Espanha,
momento histórico em que o renascimento em expansão era
acautelado por um resgate da tradição do pensamento católico
medieval, revisitado para propiciar base filosófica para os
problemas surgidos no início da era moderna4.
A era moderna é marcada por uma variedade de
acontecimentos que acabaram por fazer emergir sobre a Europa
um conjunto de concepções sobre o cosmos e sobre a natureza.
Eventos como a reforma protestante, o renascimento e o
sensualismo, o panteísmo de Giordano Bruno na Itália, o

3
BELDA PLANS expõe com clareza que “a escola de Salamanca é, em primeiro
lugar, uma escola teológica, é dizer, não se trata de uma escola de Direito,
Filosofia ou Economia; é uma escola, um movimento ou grupo formado por
intelectuais que são antes de tudo teólogos de profissão (professores
universitários da Faculdade de Teologia), os quais dedicam sua atividade
científica essencialmente ao estudo e à docência da Teologia. É certo que, como
veremos, possuem uma noção ampla e abarcante do que seja Teologia e seu
objeto, o qual lhes leva, por vezes, a estudar muitos temas sociopolíticos,
jurídicos, econômicos, que parecem próprios da cidade temporal; muito embora
eles os estudem desde uma formalidade teológica, aplicando à luz dos
princípios revelados às realidades humanas e terrenas; em todo caso, a teologia
é como que o ponto de partida ou núcleo impulsor dos estudos em outros
campos. Assim, pois, originariamente, há de se afirmar ser uma Escola
Teológica, e só derivadamente (secundariamente) se a pode qualificar de
jurídica, filosófica ou econômica, ao estudá-la nessas perspectivas derivadas”.
BELDA PLANS, Juan. La Escuela de Salamanca y la renovación de la teología en
el siglo XVI. 1ª ed. Madrid: BAC, 2000, p. 156.
4
GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. Iglesia, sociedad y derecho. 1ª ed. Salamanca:
Universidad Pontificia, 2000, p. 281 e seguintes.

55
Leituras Tomistas

nominalismo em expansão na França, em suma, um amplexo de


teorias e situações que, em sentido histórico, tornaram possível
uma inversão na filosofia da história até então em vigor.
Tais acontecimentos provocaram uma revolução no
pensamento humano, em oposição à escolástica, cujo legado
realista era apoiado na exegese dos textos bíblicos em consonância
com a filosofia primeira de Aristóteles. A gnosiologia constituía o
âmago do pensamento moderno em ataque à ontologia clássica,
apoiada no direito natural, na ética das virtudes e na ontologia,
todas essas dimensões da tradição escolástica genuína, cujo princípio
político constitutivo estava em conceber o poder a partir de tais
postulados e o Direito como decorrência da lei eterna participada
na criatura racional, na promoção da axiologia jurídica e política
sustentada na concepção teleológica de uma ordem política e
social fomentada pela ordem do cosmos, em suma, de uma
realidade política informada pelos princípios do direito natural5.
A substituição da verdade objetiva tão cara à filosofia
clássica por novos caminhos epistemológicos trazia não apenas
uma ruptura com a original cosmovisão ocidental, senão também
o início de um longo caminho rumo ao subjetivismo, que
começava a florescer em uma Europa dominada por mudanças e
câmbios de ordem jurídico-política.
Frente a tal situação, marcada pelo relativismo filosófico e
também pelos inícios do moderno Estado absoluto, por um lado
secularizado, por outro apoiado na tese reformista do direito
divino dos reis, Francisco de Vitória (1492-1546) 6 surge como
contraponto ao racionalismo puro da modernidade. Sua formação
dominicana lhe proporcionara o necessário contato com o
realismo filosófico, o qual se empenhou em divulgar, opondo-se

5
VON HIPPEL, Ernst. História de la filosofia política: volume I. 1ª ed. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1962, p. 80 e seguintes.
6
Vencedor da cátedra prima da Universidade de Salamanca, engajado em
resgatar o paradigma clássico das lições de Tomás de Aquino, a fim de
contrapor às novidades modernas com base na tradição.

56
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

às teses racionalistas e ao contratualismo prêt-à-porter em ebulição.


Promove um retorno ao tomismo e à tradição, bem como à
ortodoxia teológica dos medievais, no sentido de concretizar uma
harmonização entre a base teológica tradicional e os problemas
práticos e científicos enfrentados nos auspícios do novo tempo.
Vitória promove a renovação da teologia e, com isso, uma
nova escolástica, firmada na tradição e adaptada para enfrentar os
problemas da modernidade em ascensão. Sua obra firma-se nos
princípios do direito natural, base axiológica do ius gentium, ou
seja, do direito das gentes, ferramenta jurídica utilizada para a
expansão do império espanhol sobre as índias e que, ao mesmo
passo, propagava a concepção de dignidade da pessoa para além
dos muros da Europa peninsular.
Tal cosmovisão jurídica acabara por fornecer as bases de um
sistema jurídico apto a ser aplicado em todo o orbe católico
conhecido da época: o velho e principalmente o novo mundo, na
visão eurocêntrica que marcava a cultura de então. Por suas
contribuições tanto no direito público interno e internacional
assim como também no direito canônico eclesiástico, Vitória
assumia a condição de precursor de uma geração de alunos e
discípulos que apareceram na Universidade de Salamanca, lugar
onde lecionou a partir do ano de 1526.
Desse grupo de alunos nasceu a Escola de Salamanca,
voltada para o resgate da teologia anunciada pela tradição
escolástica, apoiada nas lições de Tomás de Aquino. Vitória, ainda
que formado em Paris e, assim, conhecedor do nominalismo
herdado por Guilherme de Ockham, conheceu profundamente as
principais correntes do tomismo, vinculando-se ao mesmo não só
por identidade de ordem religiosa, já que era dominicano, mas,
sobretudo, por convicção intelectual. Tendo obtido o título de
doutor em 1522, migra para Valladolid, onde se empenha em
explicar e interpretar a Suma Teológica de Tomás. Após essa
estada é indicado pela ordem dominicana para disputar a cátedra

57
Leituras Tomistas

prima de Pedro de Leon em Salamanca, por ocasião do


falecimento do mesmo, a qual não só vence como também inicia
uma longa jornada intelectual naquela universidade7.
Diz Delgado que Vitória

“en Salamanca consiguió gran prestigio por la


profundidad y nítida exposición de las
cuestiones de la Suma en sus relecciones
ordinarias, y sobre todo por sus relecciones o
exposiciones solemnes y públicas. Así se
convertió en el maestro por excelencia de las
relecciones”8.

Vitória expõe suas obras em duas formas: nas Lecturas e nas


Relecciones. Ambas, de fato, consistiram em manifestar um resgate
do tomismo para dentro do imaginário intelectual da época, de
maneira a fornecer as bases teológico-políticas para uma nova
disseminação do catolicismo cultural em larga escala, reatando,
assim, o nexo entre o medievo e a modernidade.
As modernas teorias do Estado e do direito positivo, nesse
diapasão, viam-se fundamentadas no direito natural9, de maneira
que as bases expostas pela reforma protestante, cuja teoria política
consistia na tese de que os reis eram mandatários diretos de Deus,
sem a intermediação da sociedade civil, começavam a ser
duramente criticadas.
Vitória, então, aparece no cenário intelectual como o grande
iniciador do resgate da tradição medieval. No que diz respeito às
teorias do direito e do poder, a importância da Vitória é
incomensurável. Suas obras mais relevantes sobre filosofia
jurídica e política são: De Indis, publicada entre 1538 e 1539,

7
BELDA PLANS, Juan. La Escuela de Salamanca y la renovación de la teología en
el siglo XVI. 1ª ed. Madrid: BAC, 2000, p. 156 e seguintes.
8
DELGADO, Luis Frayle. Estudio preliminar. Sobre el poder civil, sobre los indios,
sobre el derecho de la guerra. 2ª ed. Madrid: Tecnos, 2007, p. XI.
9
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 1ª ed. São
Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 414.

58
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

relativa à situação da América espanhola, bem como sobre a


legitimidade da autoridade hispânica sobre as terras indígenas;
mais tarde, publica De Jure Belli, obra em que trata sobre a
legitimidade e licitude das guerras, em especial sobre a autoridade
competente para decidir sobre as mesmas. Após, em 1528, publica
De Potestate Civile. Nessa última obra formula a clássica tese sobre
a origem do poder, fundamental para a compreensão da
legitimidade política baseada na teoria do direito natural.
Vitória, assim, é o precursor da Escola de Salamanca,
formada por intelectuais empenhados em resgatar o tomismo e
fornecer as bases tanto para a continuidade da tradição no
ocidente, como também em expor as teses necessárias para o
tratamento dispensado aos descobrimentos na América10. Juristas
e teólogos renomados, dentre os quais Diego de Covarrubias
(1512-1577), Fernando Vásquez (1509-1566), Melchior Cano (1509-
1560), Domingo de Soto (1494-1560).
Até meados de 1550, os dominicanos dominavam o cenário
intelectual na Europa. Porém, seus antigos rivais, os jesuítas, tão
logo o século XVI entrou em sua segunda metade, passaram a
ocupar o maior número de cátedras e bancos acadêmicos. Diz
Skinner que nessa época, os jesuítas fundaram inúmeras
universidades em toda a Europa, além de ingressarem em
instituições antes dominadas pelos dominicanos. Dentre os
jesuítas dessa geração, inúmeros autores de peso surgiram no
campo jurídico, político e filosófico das ciências. Dentre esses,
Francisco Suárez, que veremos adiante, é considerado o maior
dentre àqueles que investigaram o campo da filosofia jurídico-
política11.

10
BROWN SCOTT, James. The spanish origin of the international law: Francisco
de Vitória and his law of nations. 1ª ed. New Jersey: The Lawbook Exchange
Ltd., 2000, p. 74 e seguintes.
11
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Op. cit., p.
416.

59
Leituras Tomistas

A Sociedade de Jesus, assim, disseminava-se dentre as


universidades espalhadas por toda a Europa, especificamente na
Itália, na França e particularmente na península Ibérica. Na
Espanha, a Universidade de Salamanca assistia um predomínio
extraordinário dos jesuítas já na mudança de curso do século XVI.
Diversos autores da teologia, da filosofia e da politologia
apareciam nesse novo cenário de resgate da tradição, resgate esse
iniciado pelos dominicanos e continuado pelos jesuítas.
Dessa forma, a Escola de Salamanca formava-se a luz da
modernidade, em meio a todas as contrariedades e impedimentos
que não só as circunstâncias, senão também as heranças culturais
do renascimento italiano estavam provocando no seio do universo
intelectual europeu. Suas principais finalidades, então, não se
assentavam apenas em resgatar a tradição, mas sim em combater
o que consideravam os erros teológicos da reforma, atacando as
interpretações reformadas do evangelho, bem como o
racionalismo e o empirismo, escolas epistemológicas associadas à
visão antropológica predominante na modernidade. Voltavam-se,
também, contra as teses que procuravam justificar a
institucionalização de reinos contrários à autoridade espiritual da
Igreja de Roma, empenhada em manter a unidade e a conservação
da tradição cristã. No que tange ao último ponto, cabe referir que
a Escola de Salamanca não só fomentou uma determinada
filosofia jurídico-política a ser aplicada nos descobrimentos –
razão pela qual é chamada também de Escuela de La Paz –, como
também serviu de meio apologético católico à impugnar a exegese
jurídica protestante do direito divino dos reis, particularmente a
partir do pensamento do Cardeal Roberto Bellarmino, na Itália, e
do próprio Suárez, em Salamanca e Coimbra.

Importa notar, além disso, que Salamanca se


destacou como um centro de estudos voltado
para a promoção da paz. Em uma Europa
ameaçada pela desintegração cultural e política
advinda com a reforma e o Estado Moderno,
assistia-se um enorme risco de guerra total e
instabilidades políticas de toda ordem. A

60
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

situação social demandou dos baluartes da


escolástica tardia uma postura decisiva nos
rumos do continente em meio a tantas
novidades. Portanto, uma das principais
preocupações a que se detiveram os
salamanticensis foi o problema da paz e da
ordem na seara das relações entre os Estados
em formação. Dentro disso, Vitória foi o
precursor também dos estudos sobre a paz,
finalidade tão indispensável para a ordem
jurídico-política na Europa e também para a
nova geografia da cristandade, com a
descoberta do novo mundo. Afirma Pereña que
“o magistério de Vitória torna Salamanca
indiscutivelmente a primeira cátedra europeia
sobre a paz. Vitória deu ao ensino da teologia
um sentido dinâmico, e de atualização política.
Introduziu como texto básico a Suma Teológica
de São Tomás, centrando suas explicações nos
tratados sobre as leis e nos comentários à
justiça e ao direito. Através desses foi
abordando os problemas mais agudos da
convivência humana que dialeticamente
culminaram em suas reeleições teológicas. Por
seu método e suas preocupações, sua teologia
moral desembocou em ética social e filosofia
política”12.

Importa dizer, dentro disso, que o ponto de partida para as


relecciones foi a teologia. Porém, diferentemente da teologia
escolástica radicada nas sumas e sentenças, Vitória promoveu
uma descida teológica em direção aos problemas concretos de seu
tempo, dada a necessidade de se adentrar nos problemas práticos
e nas circunstâncias reais, pelo que não passaram os primeiros

12
PEREÑA VICENTE, Luciano. Corpus hispanorum pace: estudo preliminar ao
tratado “de jure belli”, de Francisco de Vitória. 1ª ed. Madrid: Escuela Española
de La Paz – C.S.I.C., 1981, p. 63. *Tradução livre do autor.

61
Leituras Tomistas

escolásticos. Diante disso, a realidade concreta da existência


política e histórica de então exigiu uma descida para a análise da
ética e da política, razão pela qual as teses desenvolvidas tanto
pelo próprio Vitória como também por seus discípulos buscaram
responder aos problemas específicos da era moderna. O aspecto
decisivo da teologia vitoriana, assim, é que a mesma não se
restringe a ser uma teologia canônica e jurídica, senão também
uma teologia moral e política, articulada dinamicamente e voltada
para o tratamento dos problemas práticos enfrentados em seu
tempo histórico. Diz ainda Pereña que

“sua influência deriva principalmente de sua


penetração psicológica e da consciência íntima
que Vitória tinha da realidade de seu tempo. Se
situa ante as crises que provocam a
desintegração da Europa cristã, o
descobrimento da América e o desequilíbrio
social da Espanha” 13.

Portanto, o desenvolvimento de teses voltadas para a


solução de problemas não apenas locais como ainda
internacionais fazia-se presente nas Relecciones de Vitória e nas
obras de seus sucessores diretos e indiretos. Os problemas
envolvendo a communitas orbis demandavam uma busca concreta
pela paz na Europa e no Novo Mundo, a partir de uma solução
teórica em que a teologia moral via-se inteiramente entronizada
na filosofia política.
A paz, dessa forma, era não apenas um ideal utópico, mas
uma finalidade concreta nas soluções encontradas por Vitória e
seus discípulos. Tal solução dos problemas reais advindos com as
desordens na Europa e com os descobrimentos pela paz fez com
que Vitória articulasse uma análise realista e bastante tomista
acerca de temas como guerra justa ou injusta, tiranicídio ou ainda

13
PEREÑA VICENTE, Luciano. Corpus hispanorum pace: estudo preliminar ao
tratado “de jure belli”, de Francisco de Vitória. Op. cit., p. 63.

62
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

legitimidade política. Para isso, precisou estabelecer como ponto


de partida três dimensões de análise segundo os quais estabeleceu
os cimentos de suas relecciones: os direitos da pessoa, o Estado
(república) e a comunidade internacional (communitas orbis). Vitória
nos diz, assim, que “quia finis belli et pax et securitas reipublicae
est”14, de modo que a república, cujo objetivo concreto é a paz, em
momentos de desordem, autoriza a declaração de guerra para o
desenvolvimento e mantimento da paz internacional. Em tal
situação, resta claro um empenho não só dos homens envolvidos,
senão também do Estado – reipublicae – e da comunidade
internacional.
Por essa razão, a articulação entre a república, a comunidade
internacional e o ser humano tinham como finalidade o
estabelecimento da ordem civil e da liberdade a partir da
concretização da paz. Dessa maneira, a busca da paz levou a
necessidade de ofertar não apenas algumas análises dos
problemas surgidos, mas, sobretudo, soluções concretas. Para isso,
as saídas fornecidas para a Europa e para os descobrimentos
estariam no Ius Gentium, ao passo que, para combater as teses
políticas do direito divino dos reis desenvolvidas pelos
reformadores, a solução estaria na formulação da teoria política da
translatio imperii, que sustenta a legitimidade da república no
consentimento da sociedade civil acerca da autoridade política,
base essa que influenciou não apenas as monarquias ibéricas,
senão que foram fundamentais para a evolução das ordens
políticas nas Américas, sobretudo a partir do período das
emancipações nas Américas espanhola15 e portuguesa16.

14
Tradução livre do autor: “o fim da guerra é a paz e a seguridade da
república”. VITÓRIA, Francisco de. Relectio de iure belli: I 2. Corpus hispanorum
pace: estudo preliminar ao tratado “de jure belli”, de Francisco de Vitória. Op.
cit., p. 107.
15
STOETZER, O. Carlos. Las raices escolasticas de la emancipación de la America
española. Op. cit., p. 259 e seguintes.
16
Sobre a emancipação da América portuguesa e seu embasamento na teoria
da translação, ver BOEIRA, Marcus P.R. A Legitimação do Imperador segundo a

63
Leituras Tomistas

A Universidade de Salamanca, assim, formatava o rumo das


soluções para os problemas enfrentados nos auspícios da era
moderna. Seu período de apogeu se centra nos séculos XVI e XVII,
momento em que a península ibérica, particularmente Salamanca,
se torna o epicentro do mundo intelectual católico antirreformista,
formador de uma autêntica escola cuja tradição começa em Vitória
e termina em Suárez.
Após a docência de Vitória, a maior parte das cátedras em
Salamanca foi conquistada por seus discípulos diretos ou
indiretos, que progressivamente formaram as gerações de
intelectuais da Universidade. Segundo a classificação de Pereña
Vicente, podemos dividir a Escola de Salamanca em três gerações:
a primeira geração iniciada pelo próprio Vitória e terminada por
Domingo de Soto (1526-1560); a segunda geração, de Pedro de
Sotomayor a Bartolomé de Medina (1560-1584); a última, de
Domingo Bánez a Francisco Suárez 17.
Ocorre que, em todas as gerações, a coluna vertebral sobre o
qual se apoiaram os inúmeros teólogos, canonistas, juristas e até
mesmo literários da Escola de Salamanca foi a paz como
finalidade das soluções propostas. Por essa razão, a Escola de
Salamanca também é denominada de Escola da Paz, como vimos,
vez que a paz aparece na obra desses autores como o fio condutor
comum sobre o qual se sustentavam as teses formuladas, mesmo
aquelas que demonstravam certas diferenciações teóricas de
fundo. Em todos os autores, tanto naqueles que influenciaram
decisivamente como também nos de menor contribuição, a paz
surgia como o elemento condicionante da validade das teses
apresentadas em matéria prática. Nos problemas relativos à

Constituição do Império de 1824: fundamentos e translação. Tese de


Doutorado apresentada para obtenção do título de doutor junto ao
Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, em 29 de maio de 2012.
17
PEREÑA VICENTE, Luciano. Corpus hispanorum pace: estudo preliminar ao
tratado “de jure belli”, de Francisco de Vitória. Op. cit., p. 65.

64
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

justiça ou injustiça das guerras, tanto no que tange às guerras


europeias, como ainda nos conflitos operados nos descobrimentos,
a paz condicionava a aceitação geral das formulações
apresentadas. Por isso, a base que começava em Vitória, enquanto
resgatava a tradição dos princípios de Direito Natural para a
definição do Ius Gentium18, também tinha como pretensão a
concretização da paz à luz do evangelho, da teologia moral e
política, bem como com base no sustento da articulação entre a
república e a comunidade internacional.
Assim, a Universidade de Salamanca foi um autêntico
baluarte na luta contra a política de repressão19, cujas gerações de
intelectuais dinamizavam suas teses com fundamento na paz, paz
essa indispensável para a solução dos graves problemas da era
moderna em expansão. Portanto, os mestres da primeira geração
prepararam o caminho para o desenvolvimento da teoria política
da paz internacional, assim como para o estabelecimento das
bases de uma filosofia política marcada pelo realismo filosófico.
Os cimentos desse edifício teórico foram plantados por Vitória,
ainda que tenham sido explorados de modo decisivo por seus

18
CRUZ CRUZ, Juan. Fragilidad humana y lei natural: cuestiones disputadas en
el silo de oro. 1ª ed. Pamplona: EUNSA, 2009, p. 131 e seguintes. Na segunda
parte do trabalho, tratando especificamente da diferença entre direito natural
e direito das gentes, dentro da projeção da lei natural nas obras de Vitória,
Soto e Luis de León, diz o autor: “o direito natural não se deve à opinião
humana, senão à uma força inata ligada à religião, à piedade, à gratuidade, ao
desagravo, ao respeito, à verdade (...). O direito das gentes, ainda que pareça
reduzir-se ao natural, na realidade é um direito positivo diretamente derivado
daquele, sendo sua última aplicação o direito legal e escrito. Se o direito natural
é de todos os homens entre si, o direito das gentes, em cambio, compete à
todos os da mesma nação”.
19
PEREÑA VICENTE, Luciano. Teología de la represión y la escuela de
Salamanca, artigo publicado na obra Derecho canónico y pastoral en los
descubrimientos luso-españoles y perspectivas actuales. XX semana Luso-
Española de Derecho Canónico, celebrada en Braga del 15 al 20 de Septiembre
de 1986. Salamanca: Universidade Pontifícia, 1989, p. 173 e seguintes.

65
Leituras Tomistas

discípulos posteriores, nas gerações que o sucederam na escola da


paz de Salamanca.
Dessa geração, o último dos doutrinadores da escola foi
Suárez, considerado o maior expoente intelectual de toda a escola.
Em Suárez, o clímax da escola se torna presente, pois o mesmo
elabora uma filosofia jurídica e política autêntica, fruto tanto de
seu gênio individual como ainda por sua capacidade de articular
as teses de seus antecessores à luz da tradição direta dos
escolásticos, dos documentos da Igreja, bem como da filosofia
primeira de Aristóteles.
Suárez aparece já ao final da escola, sendo o grande herdeiro
da tradição iniciada em Vitória, embora guarde autonomia
intelectual frente ao mestre de escol. É considerado o mais
profundo intelectual da Escola de Salamanca, ainda que sua
estada em Coimbra também o caracterize como intelectual
pertencente à escolástica portuguesa.
Sua obra De Legibus pode ser entendida como a exposição de
um mosaico das teses desenvolvidas por seus antecessores em
Salamanca, em particular no que tange ao Direito Natural e a
filosofia política20. O autor demonstra a interação existente entre a
teologia, o direito e a política, de modo que a ciência teológica
passa a ser encarada como um campo de investigação elástico, que
na modernidade alcança na realidade prática as razões para seu
desenvolvimento. A teologia, assim, não se contenta com os
problemas eclesiásticos e filosóficos, senão que busca atingir os
aspectos contingentes da realidade, de maneira a descer aos
problemas particulares a fim de fornecer soluções concretas para
os problemas enfrentados pelas ciências práticas. Nesse sentido,

20
PEREÑA sustenta que “aquele esforço dialético e político da Escola espanhola
da Paz culmina no Tratado De Legibus de Francisco Suárez. Nele se integram
organicamente as conquistas científicas de todo o século e através dele a Escola
se incorporou no pensamento europeu”. (Tradução livre do autor). PEREÑA
VICENTE, Luciano. Corpus hispanorum pace: estudo preliminar ao tratado “de
jure belli”, de Francisco de Vitória. Op. cit., p. 68.

66
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

em acordo com a metodologia utilizada por seus antecessores,


Suárez afirma, logo no início de seu Tratado, que

“a ninguém deve surpreender que um teólogo


se dedique a escrever sobre leis. O alto grau
que a teologia possui e que advém d`Aquele
que constitui seu mais elevado objeto, dissipa
qualquer motivo de surpresa. E mais, se
prestarmos atenção, nos daremos conta de que
falar de leis entra dentro do âmbito da teologia,
de tal forma que não poderia o teólogo esgotar
até o fundo a matéria teológica, se não se
detém a estudar as leis. Com efeito, um dos
muitos aspectos que o teólogo precisa
examinar em Deus é aquele relativo ao fim
último a que tendem todas as criaturas
racionais e que n’Ele se embasa toda a sua
felicidade”21. E mais adiante completa: “Pois
bem, toda vez que esse caminho de salvação
radica nas ações livres e na retidão dos
costumes, retidão moral que depende em
grande medida da lei como regra da conduta
humana, daí que o estudo das leis afete a
grande parte da teologia e que, ao ocupar-se

21
SUAREZ, Francisco. De legibus. 1ª ed. Madrid: Edição do Corpus hispanorum
pace – Escuela Española de la Paz – C.S.I.C., 1971, p. 2. O texto original possui a
seguinte redação: “nulli mirum videri debet si homini theologiam profitenti
leges incidant disputandae. Theologiae namque eminentia ab eius subiecto
eminentíssimo derivata omnem excludit rationem admirandi. Imno si res ipsa
recte dispiciatur, palam erit ita legum tractationem theologiae ambitu concludi,
ut theologus subiectum eius exhaurire non valeat, nisi legibus considerandis
immoretur. Deus enim ut multis aliis titulis a theologo, ita illo expendi debet,
quod ultimus sit finis ad quem tendunt creaturae rationis participes et in quo
única illarum felicitas consistit”.

67
Leituras Tomistas

esta das leis, não faça outra coisa senão


contemplar a Deus mesmo como legislador”22.

Das observações expostas por Suárez, resta claro que a


teologia, no que tange ao estudo do direito, começa pela
concepção jurídica de que Deus é o Legislador Universal, mas que
tal Direito não se resume a um conjunto sentencial de cânones,
senão que influencia decisivamente o campo da realidade,
realidade essa sobre a qual se insere para regular e ordenar.
Assim, percebe-se na metodologia utilizada por Suárez um
profundo senso de realismo, de maneira que os princípios do
Direito Natural se orientam para a definição prática da ordem
moral e política concreta.

2. Da lei natural em Tomás de Aquino

Tomás de Aquino é conhecido como principal referência


teórica da primeira escolástica e, quiçá, como maior teólogo da
história da Igreja Católica. Sua teoria da lei natural é tratada
principalmente na Suma de Teologia I-II, q. 90 a 98, mas também
em outras partes de sua opera omnia.
A teoria do direito natural herdada dos gregos e aprimorada
pelos padres da Igreja Cristã, sobretudo por Agostinho de Hipona,
terá em Tomás de Aquino seu tratamento mais bem acabado em
comparação com o período anterior.
Em perspectiva histórica, o advento do cristianismo e, mais
tarde, sua incorporação ao império romano sempre tivera como
base constitutiva a separação entre Igreja e Império, ou melhor,
entre a autoridade espiritual e o poder temporal dos imperadores.

22
SUAREZ, Francisco. De legibus. Op. cit., p. 3. O texto original possui a seguinte
redação: “Quoniam igitur huius salutis via in actionibus liberis morumque
rectitudine posita est, quae morum rectitudo a lege tanquam ab humanarum
actionum regula plurimum pendet, idcirco legum consideratio in magnam
theologiae partem cedit et dum sacra doctrina de legibus tractat, nihil profecto
aliud quam Deum ipsum ut legislatorem intuetur”. (Tradução livre do autor).

68
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

A tese das duas espadas – a do Papa e a do Imperador –


representativas do corpo místico de Cristo estiveram na ordem
constitutiva e no imaginário da sociedade medieval.
Ao mesmo passo, a natureza humana também passava a ser
vista, dentro da cultura cristã em expansão, a partir da visão
beatífica da criação, segundo a qual o homem, imagem e
semelhança de Deus, é uma criatura racional acentuada por sua
natureza boa (bonum natura). A antiga distinção grega e imperial
entre homens livres e escravos perdia sentido já ao final do
Império e nascimento das jurisdições medievais. Na antiguidade,
a posição social definia a condição humana de cada um. Com a
expansão da cristandade, a escravidão foi acabando pouco a
pouco, dando lugar a uma nova forma de lidar com o trabalho: a
servidão. O servo medieval era um trabalhador assalariado,
diferentemente do escravo romano. Sua condição era muito mais
aberta e mais propícia para a liberdade do que a da escravidão, já
que possuía salário (pecúnia) e tinha liberdade religiosa para o
exercício da fé. A própria noção de natureza humana, agora,
passava a ser vista de outra forma: o homem é um ser racional,
dotado de dignidade, individualidade, singularidade. Sua
substância é vista como uma junção de matéria e forma, corpo e
alma, algo que a tradição católica irá tomar como fundamento
antropológico de sua cosmovisão. Disso, surge o ideal de
dignidade da pessoa humana, a noção de que a pessoa humana
possui um valor inestimável em razão de sua origem e concepção.
E, disso, a universalidade do humano posiciona-o como
fundamento e finalidade da ordem política, moral e jurídica. O
Direito, tal como nos Romanos, deve seguir a ordem divina e se
adequar a ela. É obra do homem a serviço de Deus. Ganha força,
nesse contexto, a noção de lei. E, assim, há uma separação entre a
lei eterna e a lei humana, mas uma subordinação da segunda à
primeira, já que sendo o homem um produto da criação, sua
atividade volta-se para os fins dados pelo criador para sua
plenitude e realização.
No século XIII, portanto, já na baixa idade média,
praticamente um milênio depois do fenômeno da entronização do

69
Leituras Tomistas

cristianismo nas sendas do Império Romano, agora totalmente


inexistente no ocidente, Tomás de Aquino dará um tratamento
ainda mais sofisticado para a teologia e antropologia cristãs, bem
como para os problemas jurídicos, éticos e gnosiológicos, sob a
guarda da filosofia aristotélica. Será considerado, por muitos
historiadores, como o maior expoente intelectual da história da
Igreja na idade média. Independentemente disso, o certo é que
Tomás enfrentou uma variedade de temas, que se estendem desde
os assuntos teológicos fundamentais, até elementos de filosofia
política e teoria física. Grandemente inspirado pela filosofia de
Aristóteles, a quem considerava “o filósofo”, nosso autor tinha
predileção pela articulação do conhecimento com a realidade
sensível, assumindo a máxima aristotélica de que todo
conhecimento humano começa pelos sentidos e toma forma
mediante um ato de abstração dos particulares.
No campo da gnosiologia e ciente das propriedades da
ciência e da filosofia como tal, afirmava que certas operações
intelectuais são inteiramente baseadas na razão, e dela dependem.
É que a alma possui cinco potências, das quais a mais alta e nobre
é a intelectual23. Assim, o intelecto ocupa posição de destaque
dentre as faculdades humanas. E, como tal, pode ser dividido
segundo dois tipos de operações: a razão teórica, destinada ao
conhecimento das coisas universais e invariáveis, dos primeiros
princípios da ciência e da filosofia; e a razão prática, voltada para
o conhecimento das coisas contingentes, parciais e concretas. A
razão prática, assim, é aquela que capta o bem devido a uma dada
ação particular e que, aperfeiçoada pela virtude intelectual da
prudência, dirige o agente para um fim excelente. Ou seja, é a
razão prática que opera intelectivamente de modo a tornar o
agente apto a excelência em determinado campo da atividade
prática. O bem agir, assim, é o fim da operação prática. A ação
concreta se atualiza segundo sua virtude própria.

23
AQUINO, Tomás de. Cuestiones disputadas sobre el alma (Quaestionis
disputatae de anima). 2ª ed. Pamplona: EUNSA, 2001.

70
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

Como se vê, a teoria do conhecimento prático em Tomás é


basicamente um reposicionamento da Ética das Virtudes de
Aristóteles dentro do cristianismo. Apenas acresce que a fé é a luz
natural da razão, de modo que a inteligência passa a ser encarada
como um ente aperfeiçoado pelas virtudes teológicas, a saber, pela
fé, pela esperança e pela caridade.
O Direito, nesse diapasão, insere-se no campo do
conhecimento prático. Para Tomás, o direito positivo é derivado
da lei natural, que se configura como participação da lei eterna na
criatura racional. Porém, essa subordinação não ocorre de forma
arbitrária. Antes pelo contrário. Há uma série de atos e operações
que o intelecto deve realizar de modo a adequar plenamente o
direito positivo à lei natural.
Para Tomás, a lei natural contém muitos preceitos. Esses
preceitos são análogos aos princípios primeiros da razão prática.
Princípios, portanto, evidentes e indemonstráveis, já que
justificam e fundamentam todas as operações da racionalidade
prática. O primeiro princípio da razão prática é “fazer o bem e
evitar o mal”. O ser humano, assim, tem um apetite natural para o
bem. Assim, sua razão opera de modo a captar o bem devido a
cada circunstância concreta, realizando no seu âmbito pessoal a
vida boa. Ao assim proceder, realiza concretamente o bem comum
no seu âmbito particular, de modo a tornar os princípios da razão
prática realizados em concreto24.
Tomando os primeiros princípios da razão prática como
preceitos da razão, podemos dizer que constituem ordens da
razão para o agente prático. Nesse sentido, os primeiros princípios

24
AQUINO, Tomás de. Suma de Teologia I-II: q.94, a. 2. 1ª ed. Madrid: BAC,
1955, p. 128. Tradução livre do autor: “A ordem dos preceitos da lei natural é
paralela à ordem das inclinações naturais. Com efeito, o homem, em primeiro
lugar, sente uma inclinação ao bem, que é o bem de sua natureza. Essa
inclinação é comum a todos os seres a que apetece a própria conservação em
conformidade com a respectiva natureza. Em razão dessa tendência, pertence à
lei natural todos os preceitos que contribuem a conservar a vida do homem e a
evitar seus obstáculos”.

71
Leituras Tomistas

correspondem aos preceitos da lei natural, já que ordenam o ser


humano para sua plenitude existencial. São anteriores à própria
moral, pois fundamentam a moralidade. Quando Tomás afirma
que a lei natural contém muitos preceitos e que são análogos aos
princípios práticos, quer com isso dizer que possuem como objeto
as inclinações naturais do ser humano para agir bem, para agir de
acordo com sua natureza de criatura racional.
É nesse sentido, portanto, que os não crentes podem,
segundo o autor, agir em conformidade à lei natural,
interpretação essa inspirada nas lições de São Paulo e nos
primeiros Padres da Igreja, conforme disposto nas Sagradas
Escrituras, particularmente na Carta aos Romanos, cap. 1, bem
como no magistério da Patrística.
Sendo a lei natural identificada pela operação racional que a
inteligência prática exerce, é fundamental reconhecer que é a
razão prática que a decifra e torna-a uma lei para o agente.
Acima, afirmamos que a lei humana se subordina à lei
eterna. Como ocorre essa operação? Para o autor, a lei natural é
definida como “a participação da lei eterna na criatura racional”.
Assim, é ela quem viabiliza o elo entre a criatura e o criador. E,
como é uma lei da razão, é imperioso que esteja presente no
sistema jurídico criado e concebido pela sociedade humana.
Portanto, o legislador humano, na elaboração e constituição da
norma, deve observar de que modo sua própria inteligência
prática realiza a operação de detectar os princípios evidentes da
racionalidade. Além disso, também deve cotejar esses princípios
com a conduta aceitável no âmbito social, a conduta do homem
racional prático em sua dimensão de sociabilidade, o que
poderíamos aqui chamar, junto com John Finnis, de homem
razoável25. Na sociedade, as circunstâncias concretas impõem, por
vezes, certa flexibilidade no trato com os princípios aludidos.
Assim, é mister que o legislador, na elaboração do direito positivo,

25
FINNIS, John. Natural law and natural rights. 2ª ed. Oxford: Clarendon Press,
2011, p. 127 e seguintes.

72
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

leve em consideração essa razoabilidade exigida, em virtude da


equidade. A essa razoabilidade podemos dizer que suas regras
concretas constituem a própria moralidade, ou melhor, o próprio
“direito natural”. Portanto, para Tomás de Aquino, o Direito
Natural é o conjunto das regras da moralidade, derivadas
da lei natural (pré-moral, cujos preceitos são evidentes e
indemonstráveis) e que fundamentam o direito positivo humano
em uma sociedade ordenada para o bem comum. A moralidade é
entendida como o produto dos princípios per se nota, que dirigem
o agente racional prático ao bem devido à sua circunstância
concreta e que instituem o elo entre os preceitos da lei natural e a
comunidade política a que se destinam tais bens humanos. É,
assim, a própria mediação entre o justo natural e o justo político.
De qualquer modo, Tomás aduz que o direito positivo
humano (lex humana) só terá validade se derivar do direito natural
segundo duas exigências: primeiro, respeitando o procedimento
próprio do sistema formal de elaboração de regras daquela
comunidade social em particular e a legitimidade do autor para
instituir essas regras; segundo, possuindo conteúdo de justiça, a
saber, inteiramente baseado nos preceitos da lei natural e, assim,
no próprio direito natural26.
Acima da lei natural, Tomás coloca outras duas espécies de
leis: a lei eterna e a lei divina. A lei eterna simboliza a lei do
criador. Lei, portanto, que alude à própria inteligência divina, a
própria ordem do universo impressa nas coisas criadas. A lei
eterna, portanto, é a lei de Deus que ordena todos os entes para
seu fim correspondente, segundo a hierarquia estabelecida na
criação do mundo. A lei divina, por outro lado, representa a lei
que o próprio Deus instituiu para seu povo. É a legislação passada
ao povo de Deus pelo próprio Deus. Segundo o autor, a lei divina
corresponde ao decálogo, bem como a todas as normas

26
TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.94, a. 2. Op;Cit., p. 128 e
seguintes.

73
Leituras Tomistas

estabelecidas no Pentateuco, nos cinco primeiros livros das


Sagradas Escrituras.
A lei eterna, assim, participa no ser humano de duas
maneiras: primeiramente, através da lei divina, observada na
leitura do livro sagrado e instituidora de mandamentos divinos
para o homem. Segundo, mediante a lei natural, inscrita na
própria inteligência e no coração, conduzindo o homem, pela
razão, para sua excelência enquanto criatura de Deus.
Há, portanto, quatro classes de leis, segundo Tomás: a lei
eterna, a lei divina, a lei natural e a lei humana, todas destinadas
ao aperfeiçoamento ordenador da sociedade tendo em vista o bem
comum.
Os adventos da reforma, do Estado moderno, dos
descobrimentos do novo mundo e o desenvolvimento do
comércio internacional colocaram em xeque a antiga sociedade
corporativa, típica da era medieval. Na sociedade corporativa, a
unidade temporal e espiritual era garantida pela simbologia do
corpo místico de Cristo, em sua faceta temporal garantida pelos
reis e imperadores, e em sua faceta espiritual, sob a guarda do
sumo pontífice.
Com a reforma, a quebra da unidade espiritual da Igreja se
fazia latente. Os reformadores, sobretudo Martinho Lutero,
empreenderam uma ofensiva contra os padrões teológicos da
escolástica medieval, sintetizados acima no pensamento de
Tomás. Para Lutero, a lei natural é a própria manifestação da
vontade de Deus para o ser humano. Assim, ela se clarifica tanto
nas instituições humanas, tais como a família e a organização
política, como também na própria revelação divina, através da
palavra inscrita na Bíblia. As duas funções primordiais da lei para
Lutero são: como lei civil, a lei impõe condutas obrigatórias para
os ímpios, contendo a tendência natural para o pecado (já que
para Lutero, a queda do paraíso implicou na queda da “natureza”
humana), instituindo a ordem necessária para a manutenção da
sociedade política e para a proclamação do evangelho; como lei
teológica, quando a lei expõe de maneira clara a condição
pecaminosa do ser humano, seu estado de afastamento daquilo

74
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

que é esperado por Deus. Assim, sendo expressão da vontade de


Deus, a lei tem um sentido condenatório para o homem, já que em
si mesma simboliza a bondade divina, a graça manifesta. Porém,
quando comparada com a vida humana, expõe cristalinamente o
estado em que se encontra a humanidade após a queda. Para
Lutero, a política e a lei só são necessárias em razão da queda do
paraíso, pois servem de instrumentos de correção e coerção27.
A concepção luterana é oposta à tomista. Para Tomás,
mesmo antes da queda, a lei natural e a política eram atributos
necessários para o ser humano, em razão de sua natural
sociabilidade. Ora, a sociabilidade é uma condição anterior à
própria queda, vez estar presente como condição para a realização
das próprias faculdades do ser humano. Assim, o bem comum e a
lei natural são correspondentes à pessoa mesmo antes da queda.

3. Da lei natural em Francisco Suá rez e sua relação


com a origem do poder político

Antes de adentrarmos no cerne da lei natural para Suárez, é


forçoso reconhecer que a lei humana para o autor é produto da
vontade política, o que impõe ao investigador de sua obra um
trato comum entre os âmbitos da filosofia do direito e da filosofia
política. Em parte por sua influência voluntarista e nominalista,
por outro lado em razão de sua contrapartida protestantismo,
Suárez empreende uma teoria do direito inteiramente conectada
ao problema da ontologia do político, algo que Lutero terá
igualmente em alta conta, ainda que proporcione um tratamento
unificador e coativo para a relação do direito com a sociedade e o
poder.
Contra essa visão, os contrarreformistas tentarão restituir o
papel da escolástica na dianteira da cultura cristã. A chamada

27
LUTERO, Martinho. Obras selecionadas – volume 6: Da autoridade secular,
até que ponto se lhe deve obediência. 1ª ed. São Leopoldo: Editora Sinodal,
1996, p. 80 e seguintes.

75
Leituras Tomistas

Escola de Salamanca, como vimos, tentará contrapor a visão


teológica dos reformadores, articulando os grandes temas do
direito, da moral e da política com os aspectos da teologia católica.
Tendo dentre seus principais expoentes Francisco de Vitória,
Domingo de Soto e Francisco Suárez, os salamanticenses irão
resgatar a noção tomista da lei natural, mas com certas influências
filosóficas destoantes da primeira escolástica. As influências mais
decisivas nas obras dos autores de Salamanca são o nominalismo
de Guilherme de Ockham e o voluntarismo de J. Duns Scott.
Tomando Francisco Suárez como o maior expoente
intelectual da Escola de Salamanca e como um dos pilares de
nosso artigo, é mister que analisemos sua concepção de direito
natural. Em seu De Legibus ac Deo Legislatore, Suárez articula uma
teoria da lei natural com base em Tomás de Aquino para conferir
um tratamento deontológico aos seus preceitos. Segundo o autor,
a lei natural também é entendida como a participação da lei eterna
na criatura racional. A lei eterna, como para Tomás, também
representa a governação de todo universo, toda aferição de
medida do justo e do perfeito presentes na mente de Deus. Da
mesma forma, a lei divina é compreendida como um efeito da lei
eterna, uma lei outorgada pelo próprio Deus no Pentateuco, ao
que Suárez denomina de lei positiva divina.
Em Suárez, contudo, percebemos rudimentos do que seria
mais tarde a regra de ouro do positivismo. Para o autor, a lei
humana é entendida como concebida e promulgada pelo
legislador humano, a partir de um ato de império. Ou seja, é o ato
de decisão do legislador humano que, analogamente ao
Legislador Divino, impõe uma determinada regra para sua
comunidade, tendo na lei natural uma ordenação racional. Assim,
a lei humana, como em Tomás, encontra seu fundamento na lei
natural. Esta, por sua vez, contém inúmeros preceitos. Todavia, o
granadino atribui uma nova compreensão para esses preceitos.
Para ele, os preceitos são regras morais obrigatórias, que fornecem
ao agente um imperativo de conduta. Não são princípios da
racionalidade prática, evidentes e indemonstráveis, como

76
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

ensinava Tomás, mas princípios demonstráveis, obrigatórios para


o agente e para todos indistintamente.
A teoria do direito natural segundo Suárez encontra na
mente do legislador uma espécie de código impresso, que impõe
determinados comportamentos sociais ao restante da sociedade. A
este, cabe à tarefa de transpor para a lei humana positiva os
preceitos da lei natural presentes na razão, através de um ato
soberano de vontade que promulga a lei positiva, introduzindo-a
no sistema jurídico. Para o autor, é esse ato que ratifica uma lei
como positiva, transformando o Direito num meio de estabelecer
positivamente o direito natural para a sociedade, estipulando
normas morais como jurídicas.
Em comparação com Tomás de Aquino, Suárez está muito
mais próximo do positivismo, pois em sua teoria já há um
significado focal no ato de decisão da autoridade que cria e
concebe a regra, embora na dependência dos preceitos da lei
natural presentes na razão prática. A avaliação dos meios
adequados de acordo com as circunstâncias particulares não
depende apenas da captação pelo intelecto prático do bem devido
ao contexto específico do agente, mas da necessária adequação da
correção do comportamento à retidão moral, manifesta na
vontade do agente. Os preceitos da lei natural, assim, são
demonstráveis, já que correspondem às ações conforme a retidão
moral. Pela lei eterna, Deus concebe desde a eternidade condutas
moralmente aceitáveis, independentemente das circunstancias
particulares onde o agente possa estar. Não há um juízo
deliberativo necessário para a intelecção do bem devido, mas uma
aplicação dedutiva do que é correto e uma negação do que é
incorreto.
A teoria de Suárez, portanto, identifica a lei natural com o
direito natural, tratando-os como sinônimos. Enquanto a lei
natural corresponde à consciência dos atos humanos em
conformidade à retidão moral, o direito natural estabelece o
conjunto de regras intrínsecas e imediatas que conformam o
interior do agente aos seus atos externos. Ao legislador, cabe
apenas transpor para o sistema jurídico essas regras. Sua

77
Leituras Tomistas

legitimidade para tanto advém do consenso popular, isto é, da


aceitação e do reconhecimento da comunidade civil que o
compreende como autoridade legitimada para emitir a lei. Como
se vê, as raízes do positivismo já estavam às claras na teoria
suareziana da lei natural e da autoridade política.
Uma investigação mais rigorosa sobre a teoria da lei natural
em Suárez exigiria de nós maior aprofundamento em suas
principais influências a esse respeito, como Ockham, Scott,
Gregorio de Rimini, Torquemada, bem como as fontes canônicas e
romanas, presentes na narração do De Legibus ac Deo Legislatore.
Além disso, também seria indispensável um mergulho nas
posições que assumiu no debate que travou com Gabriel Vásquez,
teólogo jesuíta, sobre a origem e fundamento da lei natural.
Todavia, sendo nossa proposta a mera constatação das
divergências do autor com Tomás quanto aos fundamentos da lei
natural, deixaremos tais exigências para um artigo posterior.
Do ponto de vista da história intelectual da biografia de
Suárez, não obstante o fato de que os temas concretos das
realidades intramundanas tenham lhe inquietado desde os tempos
de estudante em Salamanca, é salutar que praticamente toda a sua
Opera Omnia sobre filosofia do Direito e Política tenha se
desenvolvido nos cursos e leituras durante o período em que
esteve em Coimbra como catedrático. Seu magistério ali encontrou
terreno fértil para a produção daquilo que veio a ser o grande
arcabouço de uma teoria do direito político arraigada na tradição,
mas com projeções modernas, sobretudo frente ao advento do
Estado como unidade de poder.
Dentro disso, a filosofia política suareziana toma corpo no
sentido de ofertar o perfilhamento de uma ordem social concreta,
dividida em comunidades; do homem para a família, e desta para
a unidade política, respeitando a visão aristotélica da comunidade
perfeita. Enquanto as primeiras demandam a existência da última,
esta é plenamente autárquica, bastante em si, pois representa a
sedimentação de um organismo sociopolítico perfeito.
Isso se deve ao fato de que cada ser humano é
ontologicamente político. Sua inclinação para a vida social

78
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

reclama a existência de múltiplos níveis para sua autorrealização.


O desenvolvimento integral da pessoa se dá quando há uma
articulação entre sua liberdade política, o direito natural e o
conjunto de condições para a atualização de suas potencialidades,
na perspectiva da tradição. Assim, por imperativo de Direito
Natural, a plenitude da organização social humana se concretiza
quando da configuração da unidade de poder, chamada por
Suarez de “comunidade política perfeita”.28
Dessa forma, se o ser humano se realiza politicamente, o faz
tendo por base a comunidade. Pois assim o homem, por sua
condição política de ser membro de uma comunidade, faz nascer o
Estado. Como afirma Pereña, “obedecendo a impulsos naturais de
perfeição, o povo livremente se constitui em Estado como ordem
política concreta e histórica de convivência”29.
Nessa acepção, Suárez parte da constatação de que a
realidade política é fruto de uma articulação entre a comunidade
política perfeita e as comunidades imperfeitas, em níveis
diferenciados de realização da pessoa humana, em acordo a lei
natural. Para concluir assim, Suárez recorre às lições clássicas,
sobretudo de Aristóteles, para a formulação dos princípios
políticos indicados30.

28
SUAREZ, Francisco. Defensor fidei III: principatus politicus. 1ª ed. Madrid: CSIC
– Corpus Hispanorum de Pace, 1965, p. 18.
29
PEREÑA VICENTE, Luciano. Genesis suazeriana de la democracia, in
Introdução ao De legibus de civili potestate de Francisco Suarez. 1ª ed. Madrid:
CSIC – Corpus Hispanorum de Pace, 1975, p. XXIV.
30
Interessante notar o que afirma ELORDUY a esse respeito: “el concepto
suaceriano de pueblo se funda en los principios eternos y absolutos de la
sociabilidad humana. El pueblo como tal, prescindiendo de toda configuración
política y entendido en toda su universalidad conforme a la revelación Cristiana,
tiene un valor anterior a la autoridad humana e Independiente de ella. Al
perfeccionamiento social progressivo en el orden natural y sobrenatural deben
servir como medios las diversas estructuras políticas y jerárquicas. La autoridad
ha sido puesta por Dios en la naturaleza y en la Historia para fomentar en el
pueblo la unidad total del reino de Dios sometida al único poder absoluto que es
el domínio de Dios. Entre Dios y el pueblo está la jerarquia, escalonada en

79
Leituras Tomistas

Diz o granadino que

“se deduz da necessidade desta comunidade e


de seu poder, e por conseguinte de seu fim, que
é a conservação da comunidade política e
humana. Já que o homem por natureza se
inclina à comunidade política e necessita muito
especialmente dela para a conveniente
conservação de sua vida, como disse muito
bem Aristóteles, São Crisóstomo demonstra
largamente que foi também assim disposto por
Deus para fazer possível o amor e a paz entre
os homens. Não se pode conservar a
comunidade dos homens sem a justiça e sem a
paz; e tampouco pode se manter a justiça e a
paz sem um governante que tenha poder para
mandar e castigar. É, portanto, necessário na
comunidade humana um soberano que a
mantenha em obediência”.

Dentro disso, em Coimbra, particularmente durante o


período compreendido entre seu primeiro curso como docente de
teologia, em 1602, quando apresentou a Disputatio VII, e
posteriormente em 1612, quando já apresentava o Livro III do De
Legibus, Suárez expõe de forma mais incisiva sua teoria política,
segundo a qual a comunidade política encontra na lei natural seu
ponto de apoio, e na autoridade o elo entre seu desenvolvimento e
sua conservação natural31.

diversos grados”. ELORDUY, Eleuterio. La soberania popular segun Francisco


Suarez, texto de introdução a obra Defensor fidei III: principatus politicus. 1ª ed.
Madrid: CSIC – Corpus Hispanorum de Pace, 1965, p. XXIX.
31
PEREÑA, com base em arquivos da Universidade de Coimbra, sustenta que
SUAREZ expôs seus dois cursos, o primeiro em 1602, e o segundo em 1612, da
seguinte maneira: 1º Curso de 1602 (Disputatio VII: temas – necessidade do
poder político, sujeito do poder político, causa eficiente do poder político,
soberania popular, poder universal do Imperador, Soberania temporal do Papa,
Direito nacional e direito civil imperial, poder legislativo – função de soberania,

80
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

Em Suárez, portanto, a ontologia do poder é, na verdade,


uma projeção da lei natural para as relações sociais, assim como
no pensamento político da primeira escolástica, representada por
Tomás de Aquino. Porém, avançando na investigação sobre as
categorias morais e políticas aí referidas, o autor abordará os
fundamentos ontológicos do poder político evocando elementos
do nominalismo, do voluntarismo, como também de correntes
filosóficas já divulgadas ao seu tempo. Tanto em sua Metafísica –
base genética de toda sua opera omnia – quanto na filosofia moral,
Suárez irá articular um voluntarismo potencial correspondente às
possibilidades de expressão da liberdade civil e política pelo
homem livre com os vínculos objetivos e com a realidade da
criação, de modo que a ordem criada por Deus vê-se aberta
para atualizações possíveis, atualizações essas que realizam a
comunidade política em sua dimensão histórico-social. Portanto, é
o poder político um atributo da criação divina e, por assim dizer,
de direito natural, ademais da presente teoria voluntarista na
concepção suareziana do poder civil. Assim aduz o próprio
Suarez:

“tudo o que é direito natural procede de Deus


como autor da natureza. Agora bem: o poder
político é de direito natural; logo, procede de
Deus como autor da natureza (...). Pois, sendo
este poder justo e legítimo, é impossível que
não esteja em consonância com o direito

poder político e religião. 2º Curso de 1612 (Principatus de Coimbra – De


Legibus): mantiveram-se os mesmos pontos, com acréscimo de outros quatro:
o mito da liberdade cristã, matéria da lei civil, forma da lei civil, obrigação da lei
civil. PEREÑA VICENTE, Luciano. Genesis suazeriana de la democracia, in
introdução ao De Legibus – de civili potestate de Francisco Suarez. Op. cit., p.
XXVII. Nos pontos do curso de SUAREZ sobre iurisprudentia, se percebe uma
descida da teologia moral e política rumo ao direito civil, acompanhando a
tendência da segunda escolástica portuguesa, afeita aos aspectos contingentes
e específicos da ordem concreta, tal como já se praticava também em
Salamanca pelas mãos dos mestres de Suárez.

81
Leituras Tomistas

natural; e sendo necessário para a conservação


da sociedade humana, a qual deseja a mesma
natureza do homem, também por esta razão é
de direito natural que exige tal poder. Pois
bem, assim como Deus é autor da natureza e,
portanto, do direito natural, assim também é
autor deste poder soberano. Porque como diz o
filósofo, o que dá a forma dá também o que
dela se segue”32. E conclui: “indubitavelmente,
o direito natural outorga de per si
imediatamente o poder para a comunidade,
mas não prescreve terminantemente que dito
poder permaneça sempre nela, nem que seja
exercido imediatamente por ela, senão
unicamente enquanto a mesma comunidade
não haja resolvido outra coisa ou até que não
tenha sido realizado legitimamente a mudança
derivada de sua própria potestade. Há um
exemplo na liberdade do homem, a qual se
opõe à escravidão. Pois a liberdade é de direito
natural, já que o homem nasce livre em virtude
unicamente do direito natural e não pode ser
reduzido à servidão sem algum título legítimo.
Agora bem, o direito natural não prescreve
que todo homem permaneça sempre
livre ou não proíbe absolutamente que um
homem seja reduzido a servidão, senão que
unicamente proíbe que isto se faça sem o livre
consentimento do homem ou sem um motivo e
poder justos. Assim mesmo a comunidade
política perfeita é livre por direito natural e não
está sujeita a nenhum homem fora dela, senão
que ela mesma em sua totalidade tem o poder
político que é democrático, enquanto não se
mude. Todavia, pode ser privado de tal poder

32
SUAREZ, Francisco. Defensor Fidei III: Principatus Politicus. Op. cit., p. 11.
Tradução livre do autor.

82
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

ora por vontade própria, ora por quem tenha


para isso um título legítimo e poder justo
passar a uma pessoa determinada ou a um
senado “33.

Nesse diapasão, o voluntarismo, segundo o qual o homem


possui uma ampla margem para agir concretamente e, de acordo
com seu consentimento ou por título justo, há a atualização de
suas potencialidades existenciais, a comunidade humana abre-se
para a articulação entre a justiça e a injustiça, entre a ordem e a
desordem, entre a perfeição e a imperfeição, sendo um âmbito de
possibilidades para o agir humano em conexão com o direito
natural34. Dentro disso, a lei para Suárez aparece como comando e
preceito. Como afirma Cabral de Moncada, “é um comando e
pressupõe a sua livre aceitação por um ente dotado de liberdade e
de consciência” 35.

33
Idem, p. 22. Tradução livre do autor.
34
ARBOLEYA argumenta que “a vontade é ativa quanto ao exercício ou não de
um ato e quanto à especificação do mesmo. ‘Completam vim activam et
dominativam illorum actuum, diz Suárez em seu Tratado ‘De Gratia’. Por isso,
na mesma reside a liberdade. Suárez destaca a vontade livre, não só da
natureza, senão também da inteligência”. ARBOLEYA, Enrique Gomez. Estudios
de teoría de la sociedad y del Estado. Op. cit., p. 274.
35
Diz o autor que “Suárez ocupa um lugar à parte, embora ainda claramente
vinculado aos conceitos dominantes na sua época. A particularidade deste
pensador deriva dos pressupostos voluntaristas das suas concepções. A
concepção da lei em SUAREZ, já dentro das concepções renascentistas, é
claramente voluntarista, neste aspecto retomando parcialmente o ensinamento
nominalista e afastando-se do intelectualismo racionalista de Santo Tomás
para quem a lei é ‘analogia’ ou seja, participação na medida transcendente e
objectiva da ordem das coisas. Para o granadino, pelo contrário, a lei é
comando e preceito. Efectivamente, Suárez, na sua crítica ao aquineense,
distingue a lei das inclinações naturais do homem para o bem que apenas por
metáfora se podem com ela confundir”. A lei, assim, “depende da vontade de
um organismo soberano. A lei é constitutiva, não mera expressão de uma
ordem prévia, como em Santo Tomás”. CABRAL DE MONCADA, Luis. Ensaio
sobre a lei. 1ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 28.

83
Leituras Tomistas

A despeito da influência de Tomás de Aquino no


pensamento do granadino, principalmente na filosofia política e
na metafísica, há inúmeros pontos de divergência entre ambos. No
caso aqui analisado, o voluntarismo representou, na teoria do
direito, um ponto saliente de ruptura entre os dois.
Há, nessa perspectiva, diversas formas de realização do
justo na comunidade política, como por exemplo, na deliberação
sobre os regimes políticos mais apropriados. Pode, aí, a
comunidade eleger qualquer dos regimes políticos, desde que
demonstrem aptidão para serem instituições positivas adequadas
à situação concreta de cada agrupamento social. Diz o autor que

“só a razão natural não determina como


‘necessária’ uma destas formas de governo (...).
Não se baseando tal instituição positiva na
natureza humana, em abstrato prescindindo da
fé ou da revelação divina, se conclui que
estas formas de governo não procedem
imediatamente de Deus”36.

São, antes, projeções da própria vontade política da


comunidade humana, manifestada na eleição de sua forma
política particular.
Assim, no que tange a formulação de sua ontologia política,
Suárez encabeçou uma geração de intelectuais e alunos da
Universidade de Coimbra que imbuídos das contribuições dos
antecessores, deram continuidade àquilo que os mestres
salamantinos haviam começado pouco tempo antes. No caso
específico aqui abordado, o perfilhamento mais expressivo da
teoria suareziana do poder foi construído na universidade a partir
de seus cursos conimbricenses. Enquanto professor de teologia,
Suárez dedicou-se quase integralmente ao estudo do direito
canônico e civil, como também ao tema corrente do ius gentium.
Foi teólogo por formação e filósofo por vocação, além de jurista,

36
SUAREZ, Francisco. Defensor fidei III: principatus politicus. Op. cit., p. 21 e 22.

84
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

atividades estas decorrentes de sua cátedra de docente na


Universidade portuguesa. Como tal, mergulhou no estudo do
direito clássico romano, bem como de inúmeros ordenamentos
jurídicos medievais, inclusive daqueles concernentes aos reinos da
baixa idade média, sistemas esses compatíveis com sua proposta
jurídico-política de que o povo (comunidade civil) é fundamento
do poder político e categoria de direito natural37.
Ademais, também estudou ordenações específicas dos
reinos ibéricos, assim como também as ordenações de Portugal.
Segundo o levantamento bibliográfico realizado por Pereña e pela
equipe de pesquisadores da Universidade de Salamanca, Suárez
teria, em sua fase científica (1602-1608) se utilizado das seguintes
fontes jurídicas em suas investigações:

37
Afirma Elorduy que “o mérito da obra de Suarez, ademais do esforço
ideológico que supõe, está em ter vislumbrado a força social do povo, como
criador de vinculações prepolíticas e prejurídicas, partindo da análise da
tradição cristã valorada nas circunstâncias históricas de seu século. Sua teoria
sobre a comunidade político-social coroa as discussões medievais da Igreja e do
Império, e é de importância vital na crise atual da humanidade (...). Suarez
recorreu aos ensinamentos da tradição cristã e primitiva, seguindo a Vitória, e
prosseguiu até o fim a discussão entre os direitos políticos dos povos
organizados em Estados e das nações estruturadas com meras organizações
sociais comunitárias, como existiam na Espanha e no Ocidente antes da invasão
romana, reiterando-se uma situação similar no Norte da Espanha com o
advento da monarquia visigótica. Na subestrutura do povo se havia conservado
sempre formas como conventus, merindades e anteigrejas, organizações
subestatais, que Suarez conheceu com todo o vigor (...). Sem o substrato dessas
organizações prepolíticas ocidentais seria difícil explicar-se a teoria da
comunidade pre-estatal descrita por Suarez no Defensor fidei (...). Suarez as foi
analisando à medida em que se manifestavam as largas gestões que
precederam a composição do Defensor fidei em contato com a Sé Apostólica,
com Belarmino, com a Corte espanhola e com os escritos e atos do monarca
inglês (Jaime I) (...). Suarez defendeu com a tradição medieval que a potestade
política é outorgada por Deus diretamente ao povo, e pelo povo aos
governantes”. ELORDUY, Eleuterio. La soberania popular segun Francisco
Suarez, Op. cit., p. XXII a XXXII.

85
Leituras Tomistas

“Decretales, Digesta, Glossa Ordinaria, Decretum,


Codex, Auténticas, Instituciones, Constituciones,
Partidas, Ordenaçoes de Portugal, Concilio
Tridentino, Leyes de Toro, Nueva Reconpilación,
Breviario Romano, Decisiones de la Rota, Bulas,
Concilio Constantiense, Concilium Maguntinum”,

Além de outros textos de civilistas, glossadores, canonistas e


decretalistas, bem como de juristas nacionais e obras de teólogos e
padres da Igreja38.
Enxerga-se em Suárez uma atenção especial ao desenho
jurídico-político tanto da história das unidades existentes como
também das ordenações legitimadoras dos reinos de seu tempo,
em especial de Espanha e Portugal, locais onde viveu. Sua
maturidade jurídica, adquirida em Coimbra, lhe permitiu
sistematizar uma teologia jurídica que relaciona a teologia moral
com a teologia política, sintetizando, assim, o nexo entre Deus –
como supremo legislador –, o homem – como elo de
potencialidades – e a comunidade civil.
As inúmeras projeções da lei natural, assim, alcançaram o
campo das relações entre a moral, o direito e o poder, em uma
disputatio bastante presente nos cursos salamanticensis e
conimbricensis. É em meio a isso que Suárez elaborará sua filosofia
política, é dizer, sua tese sobre a ontologia do direito político.
Nesse intento, irá definir de modo bem mais acabado uma
justificativa para a existência da comunidade política em
comparação a seus antecessores, os professores salamantinos.
Com efeito, embora tente oferecer soluções para o célebre tema da
institucionalização do poder, oscila entre o fator
institucionalizador e o fator personalizador.

38
PEREÑA VICENTE, Luciano. Genesis suareziana de la democracia, in
Introdução ao De Legibus de civili potestate de Francisco Suarez. Op. cit., p.
XXXVI.

86
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

Como aponta Pereña, em Suárez se compreende uma

“insuficiente institucionalização da vontade do


soberano e do Estado mesmo. Suárez flutua e
busca equilíbrios difíceis entre matizes
personalistas e parcialmente voluntaristas
(sobretudo em função do princeps soberano) e
matizes estruturais e objetivo-institucionais
como ‘regnum’, ‘officium’, ‘munus’, ‘magistrus’.
Flutua também entre uma concepção territorial
e juspublicísta do Estado e uma configuração
pessoal e quase-patrimonial do mesmo em
função das prerrogativas da monarquia e
nidnastia reinante”39.

Tal flutuação, todavia, não impede Suárez de expor, já


perante os auspícios do Estado moderno, uma doutrina
substantiva de Direito Público, podendo-se afirmar, assim, que no
granadino encontramos uma teoria do “Estado”, embora o mesmo
Suárez denomine-o de potestas civilis40.

39
PEREÑA VICENTE, Luciano. Genesis suareziana de la democracia, em
Introdução ao De legibus-de civili potestate de Francisco Suárez. Op. cit., p. XLV.
40
SUAREZ, Francisco. Defensor fidei III: principatus politicus. Op. cit., p. 44.

87
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88
Diferenças entre a Teoria da Lei Natural em Tomás de Aquino e Francisco Suárez: problemas
gnosiológicos e metafísicos

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89
Leituras Tomistas

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90
III. N OTAS SOBRE DIREITO E JUSTIÇA :
DA D OUTRINA DA P ARTICIPAÇÃO
DE S ANTO T OMÁS DE A QUINO
AOS P RINCÍPIOS F UNDAMENTAIS DE
G USTAV R ADBRUCH

José Ricardo Cunha1

Sumário: 1.Primeira Parte. 2.Segunda Parte. Referências.

1. Primeira Parte

Direito e justiça são coisas distintas e podem ser estudados


separadamente, como de fato o são. Contudo, é preciso reconhecer
que entre ambos devem estabelecer uma relação que não é apenas
de entrosamento. Do ponto de vista ontológico, o quid jus como
diria Kant, há uma ligação mais profunda e visceral onde a justiça
fundamenta e oferece sentido ao direito. Por isso Radbruch foi
inequívoco ao afirmar que a idéia de direito não pode ser
diferente da idéia de justiça2, não de uma justiça que se mede pela
medida do direito positivo,

“mas duma justiça que é, ela, a medida do


próprio direito positivo e pela qual este tem de

1
José Ricardo Cunha é Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ
2
- RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1979, p.
86.
91
Leituras Tomistas

ser aferido.”3 Continua afirmando que “a


justiça comutativa, sendo a justiça que tem
lugar entre pessoas com iguais direitos,
pressupõe necessariamente um acto anterior de
justiça distributiva pelo qual se reconheceu aos
interessados seu igual direito, a mesma
capacidade de comércio, o mesmo status. Isso
mostra-nos que a justiça distributiva representa
a forma primitiva de justiça. Ora é nela que
precisamente vamos encontrar agora a idéia de
justiça com relação à qual deve orientar-se o
conceito de direito.”4

O direito é justo quando se encontra a serviço da idéia de


justiça, buscando, assim, a justa medida nas relações interpessoais
e, para isso, tratando igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais.
Quando falo em direito justo não pretendo concluir que
todo o direito positivo é justo ou, mais precisamente, que toda a
norma jurídica está eticamente legitimada por uma moralidade
intrínseca. Longe disso, o reconhecimento da complexidade
própria que marca o direito como instituição social e como teoria,
nos impede de adotar apriorismos quanto ao sentido das normas.
É na processualidade, interna e externa, que os sentidos
específicos das prescrições normativas vão sendo definidos, de
acordo com o contexto de cada caso específico. Além disso, uma
análise política um pouco mais criteriosa pode atestar que a
produção social do direito positivo se vincula a um jogo de forças
que nem sempre produz resultados que satisfazem um juízo ético.
Assim, embora o direito positivo não seja sempre justo, ele deveria
sê-lo. Direito, como já dito, não deve ser confundidos com a justiça
mesma, mas ele deve participar dela.

3
- RADBRUCH, Gustav. Ob. Cit., p. 88.
4
- RADBRUCH, Gustav. Ob. Cit., p. 90.

92
Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina de participação de Santo Tomás de Aquino aos princípios
fundamentais de Gustav Radbruch

A palavra chave para compreender esse processo é


participação, ato ou efeito de participar que, por sua vez, pode ser
genericamente entendido como “tomar parte”. Este “tomar parte”
possui significados mais simples como “ter em comum”
(participar uma informação; dar parte à polícia) e outros mais
profundos, como aquele que é expresso pela palavra grega
metékhein, que indica algo como “co-ter”, “ter com” ou,
simplesmente, um “ter” em oposição a um “ser”; o que sugere
algo como “ter” pela dependência – participação – com outro que
“é”. Santo Tomás de Aquino é uma indispensável referência
teórica para a melhor compreensão desse processo, pois
aprofunda esse pensamento que vem desde a filosofia grega.
Trata-se da doutrina da participação. Na Suma Contra os Gentios,
assim se posiciona:

Como os efeitos não têm a plenitude de suas


causas, não lhes compete (quando se trata da
‘verdade da coisa’) o mesmo nome e definição
delas. No entanto (quando se trata da ‘verdade
da predicação’), é necessário encontrar entre
uns e outros alguma semelhança, pois é da
própria natureza da ação, que o agente
produza algo semelhante a si (Aristóteles), já
que todo agente age segundo o ato que é. Daí
que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a
outro título e segundo outro modo
(plenamente) na causa. Daí que não seja
unívoca a aplicação do mesmo modo para
designar a mesma ratio na causa e no efeito.
Assim, o sol causa calor nos corpos inferiores
agindo segundo o calor que ele é em ato: então
é necessário que se afirme alguma semelhança
entre o calor gerado pelo sol nas coisas e a
virtude ativa do próprio sol, pela qual o calor é
causado nelas: daí que se acabe dizendo que o
sol é quente, se bem que não segundo o mesmo
título pelo qual se afirma que as coisas são
quentes. Desse modo, diz-se que o sol – de

93
Leituras Tomistas

algum modo – é semelhante a todas as coisas


sobre as quais exerce eficazmente seu influxo;
mas, por outro lado é-lhes dessemelhante
porque o modo como as coisas possuem o calor
é diferente do modo como ele se encontra no
sol.5

De acordo com a doutrina tomista, podemos falar de uma


importante via de mão dupla entre coisas distintas, sendo que esta
via as aproxima ou liga, ao mesmo tempo que mantém as
respectivas diferenças. Assim, conforme o exemplo de Tomás de
Aquino, um ferro em brasa tem calor porque participa do fogo que
é calor; um objeto iluminado tem luz por participar da luz que é a
fonte luminosa. Ou seja, aquilo que tem, tem porque participa de
algo que é, que é a plenitude daquilo que é tido. O que pode
parecer complicado torna-se simples quando se pensa no
cotidiano: perceba-se o simples ato de colocar uma garrafa de
cerveja num isopor com gelo. A cerveja ficará gelada, passando a
ter uma qualidade que é do gelo sem tornar-se gelo, ao mesmo
tempo que o gelo jamais deixará de ser gelo para transforma-se
em cerveja, nem se pode qualificar o gelo de gelado pois ele é a
fonte da gelidez. Finalmente, a cerveja está gelada! Isso é um fato
de participação da cerveja no gelo que dizemos com naturalidade;
com a mesma naturalidade que descrevemos qualquer outro fato
de participação através da estrutura gramatical de que dispomos:
o particípio. Pensando a doutrina da participação no contexto da
filosofia do direito, é possível alcançar uma compreensão mais
adequada acerca do binômio direito/justiça.
Mesmo que seja plausível esperar que nem toda norma do
direito positivo seja intrinsecamente justa, a filosofia do direito ao
longo do tempo já apresentou boas razões para acreditar que o
direito positivo deve ser justo, isto é, ele deve ter com a justiça

5
AQUINO, Tomás de. Suma Contra os Gentios. I, 29,2. Tradução espanhola:
AQUINO, Tomás de. Suma Contra los Gentiles. Volume 1. Madrid: La Editorial
Catolica, S.A., 1967, pp. 176-177.

94
Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina de participação de Santo Tomás de Aquino aos princípios
fundamentais de Gustav Radbruch

participando dela. Esse dever ter com a justiça se caracteriza, antes de


tudo, como uma exigência da consciência ética marcada pela
necessidade de proteção do indivíduo contra qualquer forma de
violência opressora e, por conseguinte, pelo respeito à dignidade
humana. Porém, esse dever ter com a justiça também é da ordem da
epistemologia jurídica na medida em que se apresenta como uma
característica própria da idéia de direito. O processo de
conhecimento do direito e, por consequência, de sua atividade
reguladora e de sua finalidade social, implica o conhecimento da
participação do direito na justiça. Evidente que justiça é um
conceito muito mais amplo, e neste sentido mais pleno, que o
direito; isso faz com que a participação do direito na justiça ocorra
de forma flexível. Voltando ao exemplo da cerveja: “gelado” é
uma qualidade tida que depende do nível de contato com a fonte:
o gelo. Pode-se ter da cerveja “estupidamente gelada” àquela “só
um pouquinho gelada”. Da mesma forma ocorre no direito
positivo: este será mais ou menos justo de acordo com seu grau de
participação na justiça, o que resultará da conexão de diversos
fatores. Isso não poderia ser diferente uma vez que o direito
positivo é uma organização complexa onde a conquista dos
valores resulta de uma ação livre e não de uma ordem necessária.
A epistemologia jurídica pensada nesse contexto nos revela dois
aspectos fundamentais: 1) O direito se caracteriza por uma
aspiração à valores – principalmente à justiça – que é própria da
sua natureza normativa; 2) A realização da justiça no direito
positivo não se dá nunca de forma linear e uniforme, já que
depende do grau de contato, de participação, deste naquela. Por
isso, o direito justo é aquele que supõe não apenas um canal de
participação com a justiça, mas, também, a maximização dessa
participação.
Se reconhecemos que há um direito positivo mais ou menos
justo, parece razoável admitir também que o direito positivo pode
romper visceralmente com a justiça, manifestando-se na forma de
um antidireito. Nesse sentido, a reflexão crítica de Roberto Lyra
Filho:

95
Leituras Tomistas

“A legislação abrange, sempre, em maior ou


menor grau, Direito e Antidireito: isto é,
Direito propriamente dito, reto e correto, e
negação do Direito, entortado pelos interesses
classísticos e caprichosos continuístas do poder
estabelecido.”6

Karl Larenz7, recordando lição de Rudolf Stammler, afirma


que sendo o direito justo uma forma peculiar do direito positivo,
há que se supor que também pode existir a forma de um direito
positivo injusto ou parcialmente injusto. Essa suposição obriga o
jurista ao exame ético constante da norma jurídica, em busca dos
fundamentos internos que a legitimam:

La cuestión de la ‘justicia’ de un Derecho


equivale a la de si está ‘internamente fundada’
o si está objetivamente justificada su pretensión
de ser obedecido o su pretensión de vigencia
normativa. Stammler dice que pensando de un
modo consecuente nadie puede esquivar la
cuestión de la fundamentación interna de lo
jurídicamente decidido y, finalmente – y de un
modo señalado –, la de todo el Derecho.8

A tarefa que se coloca para o jurista de examinar as bases de


justificação interna da norma jurídica, não é outra se não a busca
dos fundamentos de validade da norma, já que a aplicação de
qualquer dispositivo jurídico deve acontecer com base num
direito válido. No entanto, esta validade não pode ser reduzida ao
aspecto meramente formal da vigência técnica já que o direito,
como fenômeno complexo, apresenta outras dimensões que se
articulam reciprocamente. Assim, o conceito em si de validade é

6
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 8.
7
LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Civitas
Ediciones, 1985, p.21.
8
LARENZ, Karl. Ob. Cit., pp. 21-22.

96
Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina de participação de Santo Tomás de Aquino aos princípios
fundamentais de Gustav Radbruch

complexo. Aarnio invoca a classificação de Wróblewski para


atestar esta complexidade:

“Jerzy Wróblewski ha denotado estas tres


concepciones con los términos validez sistémica,
validez fáctica y validez axiológica. En lo que
sigue, esta misma distinción será denotada con
los términos validez sistémica, eficacia y
aceptabilidad de las normas jurídicas. ‘Tener
vigencia’ puede, pues, tener cada uno de estos
tres significados.”9

Tal posicionamento é bastante conhecido entre nós –


brasileiros – graças aos estudos de Miguel Reale sobre o
tridimensionalismo jurídico que, em síntese, mostram que se o
direito possui as dimensões normativa, fática e axiológica, a
validade da norma deve ser concebida em correspondência direta
com tais dimensões, ou seja, como vigência, eficácia e
fundamento.10 Portanto, é tarefa precípua e indeclinável do jurista,
do operador jurídico, a análise acerca da validade da norma
jurídica para concluir pela não validade – ao menos para a
aplicação em determinado caso concreto – da norma que não se
sustente sobre valores e princípios aceitáveis. Em suma: o direito
injusto, embora podendo existir no plano do ordenamento jurídico
positivo, não é válido sob o ponto de vista axiológico, razão pela
qual deixa de ser norma aplicável ao caso concreto. Nessa linha,
António Braz Teixeira ao definir as categorias ontológicas do
direito assim se manifesta:

“Por último, o sentido ou conteúdo axiológico,


elemento individualizador de todo o ser do
domínio da cultura ou do espírito objectivado,

9
AARNIO, Aulius. Lo Racional como Razonable. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1991, p. 71.
10
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1995, pp.
105-116.

97
Leituras Tomistas

é a categoria do Direito que marca a sua


essencial referência a valores, princípios ou
ideais e a necessária relação que mantém com a
Justiça, sua razão de ser e garantia e
fundamento de sua validade.”11

2. Segunda Parte

Como ser da cultura, o ser humano não nasce pronto e


acabado, mas vai se forjando na medida de sua relação com o
mundo, ou seja, na medida em que vai produzindo o mundo
como seu, dando-lhe sentido específico a partir do universo de
valores que institui. A garantia de tais valores e a possibilidade de
sua concreção realiza-se através do direito. De efeito, há que se
considerar que a superação da concepção que reduz o direito à
mera forma sem considerar seus fundamentos axiológicos de
validade surge, antes de mais nada, como tarefa ética
humanizante.12 Na verdade, a própria natureza humana se define
por essa mediação institucional com o direito e a justiça, consoante
conhecida lição de Aristóteles:

Mas, assim como o homem civilizado é o


melhor de todos os animais, aquele que não
conhece nem justiça nem leis é o pior de todos.
Não há nada, sobretudo, de mais intolerável do
que a injustiça armada. Por si mesmas, as
armas e a força são indiferentes ao bem e ao
mal: é o princípio motor que qualifica seu
uso. Servir-se delas sem nenhum direito e
unicamente para saciar suas paixões rapaces ou
lúbricas é atrocidade e perfídia. Seu uso só é
lícito para a justiça. O discernimento e o

11
TEIXEIRA, António Braz. Sentido e Valor do Direito: introdução à filosofia
jurídica. Portugal, s.l., Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, p. 110.
12
VAZ, Henrique Lima. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola,
1993, p. 146.

98
Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina de participação de Santo Tomás de Aquino aos princípios
fundamentais de Gustav Radbruch

respeito ao direito formam a base da vida


social...13

Sendo o direito a base da vida social, é necessário que seja


um poder legítimo. Sua força institucional deve se radicar na
legitimidade de seus valores, afim de que a ordenação por ele
proposta – quer no plano abstrato da lei, quer no plano concreto
da sentença – seja suporte adequado para uma sociedade livre e
igualitária. O poder jurídico, que é também político, necessário à
ordem social deve ser um poder legítimo, onde o exercício da
força seja regido pela justiça e onde a hybris da violência dê lugar à
equidade da díke.14 Esse é, exatamente, o sentido proposto para o
direito pela metodologia construtivista de Rudolf von Ihering. Na
famosa conferência proferida em 1872 na Sociedade Jurídica de
Viena, Ihering enfatiza a necessidade de luta pelo direito sempre
que a sua violação representar um desrespeito à pessoa humana15,
mostrando, com isso, que o respeito à pessoa humana é,
realmente, o fundamento e o fim último do direito. Para tanto
identifica o direito não com uma simples idéia, mas com uma
“força viva” movida pela luta e baseada na justiça:

Por isso a justiça sustém em uma das mãos a


balança com que pesa o direito, enquanto na
outra segura a espada por meio da qual o
defende. A espada sem a balança é a força
bruta; a balança sem a espada, a impotência do
direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro
estado de direito só pode existir quando a
justiça sabe brandir a espada com a mesma
habilidade com que manipula a balança.16

13
ARISTÖTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 6.
14
VAZ, Henrique de Lima. Ob. Cit., p. 137.
15
IHERING, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998,
p. 45.
16
IHERING, Rudolf von. Ob. Cit., p. 53.

99
Leituras Tomistas

É claro que o direito tem e deve ter a potência da força.


Entretanto a força, para que não seja pura violência arbitrária deve
estar legitimada pelos fundamentos éticos da ordem jurídica, por
sua capacidade de realizar a justiça. Por isso mesmo, não se pode
confinar a idéia de direito às concepções meramente formalistas,
pois a juridicidade requer, para além da pura forma, um
compromisso material e efetivo com os valores e princípios
consagrados historicamente e presentes no ordenamento jurídico.
A balança a que se refere Ihering é o ícone maior desse
compromisso, pois mostra claramente que a aplicação da norma
jurídica deve basear-se num ideal de igualdade, proporção ou
equilíbrio. É a serviço dessa igualdade que deve estar a força do
direito, fazendo o mais preciso possível a justiça jurídica, pois
como nos lembra Giorgio Del Vecchio:

“À balança acresce, como atributo


característico da justiça, a espada; a qual na
mão da justiça não é apenas símbolo de poder,
mas também de precisão: a espada propõe-se,
mais do que ferir, cortar nitidamente a matéria
da contenda em duas partes iguais, segundo a
[mencionada] teoria aristotélica”.17 Ainda
dentro da perspectiva de legitimação recíproca
entre justiça e força, afirma Pascal: “A justiça
sem a força é impotente, a força sem a justiça é
tirânica. A justiça sem a força será contestada,
porque há sempre maus; a força sem a justiça
será acusada. É preciso, pois, reunir a justiça e
a força; e, dessa forma, fazer com que o justo
seja forte, e o que é forte seja justo”.18

Na mesma perspectiva, Rousseau usa a metáfora de um


bandido armado para dizer que este também possui um poder

17
DEL VECCHIO, Giorgio. A Justiça. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 155.
18
PASCAL, Blaise. Pensamentos. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1979, p. 113.

100
Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina de participação de Santo Tomás de Aquino aos princípios
fundamentais de Gustav Radbruch

real ou uma força e a obediência que se presta é puro ato de


violência; já o direito deve ser obedecido quando repousado sobre
poderes legítimos.19
Assim sendo, não pode haver sanção aceitável sem o
fundamento nos valores éticos que estão na sociedade e na
própria ordem jurídica. Gustav Radbruch, nesse mesmo diapasão,
afirma que o conceito de direito somente pode ser entendido
numa realidade social cujo sentido é achar-se ao serviço de
determinados valores.20 Negar essa dimensão axiológica da
realidade jurídica seria concordar com a utilização do direito
como simples instrumento da força ou violência opressora,
lavando as mãos quanto às possíveis e drásticas consequências.
Esse foi um dos problemas centrais do positivismo jurídico.
Afirma Radbruch:

Esta concepção da lei e sua validade, a que


chamamos Positivismo, foi a que deixou sem
defesa o povo e os juristas contra as leis mais
arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas.
Torna equivalentes, em última análise, o direito
e a força, levando a crer que só onde estiver a
segunda também estará o primeiro.21

É esta ambiguidade instrumental da força que a impede de


ser colocada na posição de fundamento maior do direito, já que
pode tanto ser instrumento do justo quanto do injusto. Além do
mais, convém recordar que qualquer norma jurídica pode ser
cumprida espontaneamente, sem recurso à força. Cumprimento
esse que resulta de uma internalização do dever normativo, que
decorre, dentre outros fatores, de um reconhecimento por parte da

19
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1978, p. 26.
20
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1979, p.
86.
21
RADBRUCH, Gustav. Ob. Cit., p. 415.

101
Leituras Tomistas

consciência ética dos sujeitos dos valores contidos na norma. Por


isso, a justiça e não a força, diferentemente do que pensam alguns
positivistas, ocupa o lugar de meta-síntese do direito. São
contundentes as afirmações de Radbruch:

“Direito quer dizer o mesmo que vontade


e desejo de justiça... Quando as leis
conscientemente desmentem essa vontade e
desejo de justiça, como quando arbitrariamente
concedem ou negam a certos homens os
direitos naturais da pessoa humana, então
carecerão tais leis de qualquer validade, o povo
não lhe deve obediência, e os juristas deverão
ser os primeiros a recusar-lhes o caráter de
jurídicas...
Há também princípios fundamentais de direito
que são mais fortes do que todo e qualquer
preceito jurídico positivo, de tal modo que a lei
que os contrarie não poderá deixar de ser
privada de sua validade. Há quem lhes chame
direito natural e quem lhes chame direito
racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se,
no seu pormenor, envoltos em graves dúvidas.
Contudo o esforço de séculos conseguiu extrair
deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas
chamadas declarações dos direitos do homem e
do cidadão, e fê-lo com um consentimento de
tal modo universal que, com relação a muitos
deles, só um sistemático ceticismo poderá
ainda levantar quaisquer dúvidas”.22

O reconhecimento de princípios fundamentais do direito, de


natureza moral, e o compromisso com valores tais como a
dignidade humana e o bem comum, revelam claramente como a
justiça pode e deve ser compreendida como meta-síntese da razão

22
RADBRUCH, Gustav. Ob. Cit., pp. 416-417.

102
Notas sobre Direito e Justiça: da doutrina de participação de Santo Tomás de Aquino aos princípios
fundamentais de Gustav Radbruch

jurídica, ao mesmo tempo que apontam para superação da crise


provocada pelo raciocínio disjuntivo do positivismo jurídico que
insistiu na separação entre ética e direito.
Encerro com a reflexão de Lima Vaz:

As sociedades políticas contemporâneas


encontram no âmago da sua crise a questão
mais decisiva que lhes é lançada, qual seja da
significação ética do ato político ou da relação
entre ética e direito. Na verdade, trata-se de
uma questão decisiva entre todas, pois da
resposta que para ela for encontrada irão
depender o destinos dessas sociedades como
sociedades políticas no sentido original do
termo, vem a ser, sociedades justas. A outra
alternativa que se esboça no horizonte é a
dessas sociedades como imensos sistemas
mecânicos dos quais a liberdade terá sido
eliminada e que se regularão apenas por
modelos sempre mais eficazes e racionais de
controle do arbítrio dos indivíduos, já então
despojados da sua razão de ser como homens
ou como portadores do ethos.23

23
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo:
Loyola, 1993, p. 180.

103
Referências

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1979.

AQUINO, Tomás de. Suma Contra los Gentiles. Volume 1. Madrid: La Editorial

Catolica, S.A., 1967.

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.

LARENZ, Karl. Derecho Justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Civitas

Ediciones, 1985.

AARNIO, Aulius. Lo Racional como Razonable. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1991.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1995.

TEIXEIRA, António Braz. Sentido e Valor do Direito: introdução à filosofia

jurídica. Portugal, s.l., Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

VAZ, Henrique Lima. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola,

1993.

ARISTÖTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

IHERING, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.

DEL VECCHIO, Giorgio. A Justiça. São Paulo: Saraiva, 1960.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Os Pensadores. São Paulo:

Abril Cultural, 1978.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1979.

104
IV. T OMÁS DE A QUINO E A FILOSOFIA DE
A LASDAIR M AC I NTYRE

Renato José de Moraes1

Introdução. 1. Visão geral do pensamento de MacIntyre depois de 1981.


2. Tomás de Aquino na virada de MacIntyre em After virtue. 3. O
aprofundamento no tomismo nos anos subsequentes. 4. O tomismo nas três
versões rivais da ética. 5.A importância da metafísica tomista na filosofia
moral. 6. A descoberta das normas éticas e das virtudes pela razão. Conclusão.
Referências.

Introdução

Um ensaio publicado em 1995, do filósofo escocês Alasdair


MacIntyre, tem por título: “Natural law as subversive: the case of
Aquinas” [A lei natural como subversiva: o caso de Tomás de
Aquino], o qual remete a uma faceta da obra de MacIntyre que se
tornou cada vez mais distinta e relevante no seu pensamento: o
emprego da filosofia de Tomás de Aquino para fundamentar uma
crítica da modernidade e propor um encaminhamento distinto às
filosofias morais e políticas predominantes nas universidades e no
ambiente cultural de hoje.
Neste trabalho, procuraremos mostrar como o pensamento
de MacIntyre é uma atualização do tomismo. Não no sentido de
modificá-lo e adaptá-lo a moldes contemporâneos, e sim no de
renová-lo e torná-lo vivo para responder aos questionamentos
contemporâneos.

1
Renato José de Moraes É doutorando do PPGF – UFRJ
105
Leituras Tomistas

O testemunho de MacIntyre sobre a relevância do tomismo


ganha importância, porque ele iniciou sua carreira adotando uma
visão de mundo totalmente diferente da de Tomás, ou seja, o
marxismo. MacIntyre não é alguém que deseja proteger sua forma
de pensar; ao contrário, abandonou o que veio a considerar falho,
em favor de uma postura que explicava melhor os problemas da
modernidade.
Ademais, chegou a Tomás não diretamente, e sim a partir de
Aristóteles. Como veremos, MacIntyre tornou-se tomista aos
poucos. Em vários aspectos, foi aprimorando sua compreensão,
tanto geral como de pontos específicos, do sistema de Tomás.
MacIntyre, considerado um dos maiores pensadores de hoje
em dia2, é uma prova cabal de que a tradição tomista continua
tendo muito a nos dizer. O que é confirmado pelos trabalhos de
autores como Terence Irwin, Giuseppe Abbà e John Finnis.

1. Visão geral do p ensamento de M acIntyre depois de


1981

A partir da publicação de After virtue (1981), há uma


guinada no itinerário de MacIntyre, que o afasta do marxismo dos
seus anos iniciais, a ponto de considerá-lo exaurido como tradição
política3. Há, em escritos anteriores, indícios do que viria a ocorrer
nesta obra, isto é, a proposta de subverter o pensamento
preponderante contemporâneo de forma clara e sistemática,
assinalando seus limites e carências. Essa tarefa é levada a cabo
pela recuperação de noções e conceitos de aristotélicos e, em um
segundo momento, tomistas. A teoria clássica da filosofia moral e
política, iniciada pelos gregos e desenvolvida pelos medievais,
adquire uma roupagem diferente e procura dialogar com as linhas
de pensamento em voga na nossa época.

2
TAYLOR, Charles, 1989, p. ix.
3
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 262.

106
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

Nesse diálogo, MacIntyre considera que a tradição clássica –


representada primordialmente por Aristóteles e Tomás de Aquino
– é superior às suas congêneres, por ser capaz de responder a
questões que estas não teriam recursos para contestar, além de
poder indicar os motivos das limitações das tradições rivais.
O conceito de tradição é central na obra de MacIntyre. Não
nos interessa desenvolvê-lo aqui; apenas assinalamos que não se
trata de um conjunto de pressuposições estáticas e imutáveis, que
passam de geração a geração, sem análise crítica nem
aprofundamento. Ao contrário, cada tradição é constituída por
pensadores que compartilham de posturas fundamentais, por
obras que vão aperfeiçoando umas as outras através do debate e
da ampliação de escopo, e na qual despontam textos que passam a
ser referência de outros posteriores. É algo vivo e que deve ser
enriquecido continuamente.
Segundo MacIntyre, qualquer racionalidade se dá sempre
dentro de determinada tradição, de modo diferente ao modo
como se manifestará em outra tradição. Daí a dificuldade para que
uma entenda a outra, pois os pressupostos, o alcance e a natureza
da razão são diversos em cada linha configurada em uma
tradição. Apesar disso, há pensadores capazes de se colocarem
dentro de uma tradição distinta, enxergando com os olhos dos que
fazem parte dela.
Assim, estão em condições de descobrir os pontos fracos
dessa tradição em que se adentraram, ou seja, onde ela não
apresenta as respostas de que, ao contrário, a sua tradição
originária dispõe. Ou o contrário: verão que sua nova posição é
capaz de solucionar problemas para os quais não tinham resposta
na tradição originária. Será superior a tradição que puder resolver
aporias da outra, além de conseguir explicar o motivo dessas
aporias4.

4
Sobre as tradições, dentre vários outros textos, MACINTYRE, 1988, p. 8-10.

107
Leituras Tomistas

O centro da tradição clássica seria justamente Tomás de


Aquino. Não que seja um pensador que não possa ser
aperfeiçoado; ao contrário, é desejável que a tradição aristotélico-
tomista se torne viva, mais abrangente, inovadora e coerente.
Porém, é forçoso reconhecer o papel fundamental da filosofia do
autor da Suma teológica, que foi mal interpretada por vários
séculos, inclusive por seus seguidores, o que dificultou que se
reconhecesse a sua força e inteligibilidade.
A recuperação e fortalecimento dessa tradição é a proposta
subversiva de MacIntyre. Segundo ele, estamos em um mundo à
beira da crise, em parte similar – com todas as limitações que essas
comparações trazem consigo – ao da época de dissolução do
Império Romano5. A solução propugnada por ele é a de voltarmos
a pequenas comunidades virtuosas, onde pudéssemos viver em
conformidade ao preconizado pela tradição clássica. A partir
dessas comunidades de virtude, toda a civilização poderia ser
vivificada.
É importante salientar que MacIntyre é um pensador “em
progresso”, cujos livros posteriores vão corrigindo aspectos
relevantes dos anteriores. Uma constante é que essa correção vai
sempre na direção de uma adesão mais firme ao pensamento de
Tomás de Aquino, ao mesmo que o atualiza e mostra sua
importância.

2. Tomás de Aquino na virada de M acIntyre em After


virtue

Em After virtue (1981), apesar de Tomás de Aquino possuir


uma posição relevante na argumentação de MacIntyre, não é de
forma alguma a figura central, perdendo esse posto para
Aristóteles. Podemos compreender esse livro como uma crítica
histórico-filosófica ao projeto iluminista de justificação racional da

5
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 263.

108
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

ética. MacIntyre parte do que considera a confusão


contemporânea no campo da moral, no qual não é possível
estabelecer consensos nem critérios para solucionar as
divergências entre as várias concepções de certo e errado e as suas
aplicações práticas.
Ele expõe e aponta as raízes do emotivismo, vigente em
importantes círculos culturais a partir das primeiras décadas do
século XX. Tal corrente sustenta que os juízos morais ou estéticos
são mera exteriorização de um sentimento ou uma preferência
subjetiva, sem quaisquer notas que permitissem decidir por um
sentimento em detrimento de outro, sendo todos frutos de
“intuições”. Os juízos morais e estéticos se refeririam a qualidades
não-naturais, acrescentadas às coisas físicas e ações humanas pelo
observador.
Segundo MacIntyre, os argumentos do emotivismo são
difíceis de sustentar, uma vez submetidos a um escrutínio
rigoroso. Ao formular um juízo estético, dificilmente uma pessoa
pretende significar que esteja simplesmente exteriorizando um
movimento da sua subjetividade. Antes, pretende indicar algo que
está no objeto, que como reflexo gera no sujeito um determinado
sentimento6.
Apesar de sua limitação teórica, o emotivismo, formulado
por Moore, foi adotado por largas parcelas da intelectualidade
europeia, pois era uma resposta para inquietações daquela época.
Em outras palavras, afirmava o que muitos desejavam escutar.
Além disso, e mais importante, seu impacto é devido em grande
parte ao naufrágio do projeto iluminista de justificação racional da
ética, de cujos destroços o emotivismo aproveitará para impor seu
irracionalismo e sentimentalismo. Sem a derribada da ética
iluminista, o próprio surgimento do emotivismo seria dificultado.
O projeto do iluminismo europeu, dos séculos XVII e XVIII,
procurou construir uma fundamentação racional e universal para

6
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 15-6.

109
Leituras Tomistas

a moral, em contraposição à tradição clássica. Almejava chegar a


critérios universais e racionais, que permitiriam que qualquer
pessoa, desprovida de preconceitos e da ignorância, chegasse às
noções morais certas, que pudessem ser justificadas em todos os
tempos e lugares. Seria o trabalho de uma razão desvinculada da
tradição, comum a todos os seres humanos.
Na óptica de MacIntyre, coube a Soren Kierkegaard (1842)
demonstrar que o projeto iluminista se encontrava fragilizado e
ferido de morte7. Ao insistir na opção voluntária e fundamental a
um tipo de vida determinado – a ética –, em oposição a outro tipo
de vida – a estética –, sem uma base conceitual ou intelectual que
justifique essa opção, o pensador dinamarquês indica que a ética
não é mais, na sua base última, um campo conhecido e ponderado
pela razão. Antes, é uma escolha fundamentalmente arbitrária.
Essa admissão da derrota da razão no plano da ética abre a fresta
para o emotivismo.
Nietzsche foi um adversário virulento e implacável do
projeto iluminista. De acordo com MacIntyre, surgirá com
Nietzsche uma nova tradição, que, ao se contrapor ao liberalismo
individualista, pensará estar atingindo de morte toda a filosofia
anterior. Entretanto, as afirmações de Nietzsche seriam de fato
eficazes apenas contra o pensamento iluminista, mas não
atingiriam a tradição clássica, que sairia incólume e até fortalecida
do embate com as outras tradições.
A proposta de MacIntyre para se contrapor ao emotivismo e
seus assemelhados é tornar a entender a ética na formulação de
Aristóteles, que foi assimilada e desenvolvida pelos pensadores
que seguiram a tradição do Filósofo grego8. Essa via permitiria
uma compreensão racional da filosofia moral, ainda que em

7
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 39-41.
8
Sobre a ruptura entre a ética clássica e a moderna, na obra de MacIntyre,
interessantes as observações de LUTZ, 2008, p. 91-9. No entanto, o autor
parece colocar no pensamento de MacIntyre distinções e afirmações que ele
não realizou de maneira tão explícita, ao menos na época de After virtue.

110
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

moldes diversos do Iluminismo, salvando-a da devastação que


representaria o pensamento ético contemporâneo.
Em 1981, o pensador escocês sustentava que as virtudes
eram conhecidas, exercidas e aperfeiçoadas dentro das práticas
sociais. Essas práticas são qualquer forma de atividade
cooperativa humana, coerente e complexa, estabelecida
socialmente, cujos bens internos a essa forma de atividade são
obtidos no curso da tentativa de alcançar os padrões de excelência
apropriados para aquela forma de atividade. Nessa busca da
excelência, os poderes humanos e as concepções de fins e bens
envolvidos são sistematicamente ampliados e aprimorados9. O
jogo de xadrez e o futebol são exemplos dessas práticas, assim
como o interpretar a música por instrumentos, a marcenaria ou
conduzir a sociedade política.
Além da noção de prática social, para a compreensão e
restabelecimento das virtudes seria fundamental a concepção da
vida humana como uma narrativa, na qual os eventos individuais
se explicam e justificam com base no que aconteceu antes e no que
virá no futuro. Sem a narrativa da vida como pano de fundo, as
ações humanas, vistas apenas atomisticamente, seriam
ininteligíveis10.
Em um prólogo publicado em 2006, MacIntyre reexamina
sua obra de 1981 e traz à luz considerações importantes. Quando
escreveu After virtue, ele era um aristotélico, mas não um tomista.
Posteriormente, tornou-se um tomista, porque se convenceu que
Tomás era, em certos aspectos, um aristotélico melhor que
Aristóteles.
Tal evolução levou a alterar seus pontos de vista anteriores
ao menos em três aspectos. Primeiro, verificar a necessidade de
uma fundamentação metafísica para as virtudes, que não
poderiam ser explicadas apenas nos termos de práticas, tradições
e unidade narrativa das vidas humanas. É porque os seres

9
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 187.
10
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 204-5.

111
Leituras Tomistas

humanos têm um fim, ao qual são direcionados em razão da sua


natureza específica, que as práticas e tradições podem funcionar
como fazem. Elas não são propriamente o fundamento, mas
derivações.
Segundo, reconhecer que a concepção dos seres humanos
como virtuosos ou viciosos necessita também uma base biológica,
ainda que não especificamente aristotélica. Estudar essa estrutura
biológica, relacionada à animalidade do ser humano, é parte do
seu livro Dependent rational animals (1999).
Terceiro, o autor alcançou uma melhor compreensão das
virtudes da dependência, chegando à discussão sobre a
misericordia. Ao contrário dos gregos, que propugnavam o homem
altivo e magnânimo, independente de todos, como o modelo a ser
seguido, Tomás e a tradição cristã sublinharão a importância de
ser ajudado e de reconhecer a necessidade que temos dos outros11.
Como podemos ver, os três pontos modificados representam
uma aproximação à visão tomista das virtudes e da vida moral.
Não é uma ruptura com Aristóteles, mas um aprimoramento,
sendo que o primeiro aspecto – a importância de fundamentar
metafisicamente as virtudes – parece-nos o mais decisivo.
After virtue é a adesão a um novo paradigma, em muitos
aspectos oposto ao anterior, o marxismo. O rompimento com a
filosofia de Marx deveu-se, em boa parte, a MacIntyre identificar
no autor alemão alguns dos mesmos problemas existentes na
modernidade em geral. Por exemplo, a concepção atomista do
homem, que é defendida pelo marxismo, ao sustentar que o ápice
da sociedade humana ocorrerá quando todos puderem fazer o que
quiserem, sabe-se lá em qual base12. O marxismo não era uma
solução em relação à modernidade, mas compartilhava dos
defeitos desta, por provir do pensamento de autores influenciados
por concepções iluministas.

11
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. x-xi.
12
MACINTYRE, Alasdair, 2007, p. 261.

112
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

MacIntyre, em 1981, emprega a tradição clássica para


desferir uma série de críticas à modernidade, atingindo inclusive
Nietzsche e seus sequazes. Essa sua “subversão” já tem sua
fisionomia bem delineada, mas ganhará contornos mais fortes e
definidos com o aprofundamento do autor na filosofia e teologia
elaboradas por Tomás13.

3. O aprofundamento no tomismo nos anos


sub sequentes

Outro livro ambicioso de MacIntyre é Whose justice? Which


rationality? (1988), que pretende tratar do conteúdo da justiça e
das suas aplicações, com a percepção de que essa tarefa depende
de uma análise das formas de racionalidade existentes no mundo
moderno, que muitas vezes competem entre si e dificultam
qualquer tentativa de diálogo.
É uma obra que, partindo de Homero e chegando a Rawls,
compara quatro tradições: a aristotélica e a agostiniana, que vão
ser sintetizadas, de maneira peculiar, por Tomás de Aquino; a do
calvinismo escocês e a do liberalismo moderno14.
Cada uma dessas tradições tem a sua forma de raciocinar e
de compreender a justiça; não atentar a isso impede o
entendimento mútuo e faz com que uma se torna surda à outra.
Ao mesmo tempo, é possível verificar que uma tradição sobrepuje
uma distinta, quando ela supera melhor seus conflitos internos e
consegue discernir as causas das falhas da outra tradição, que a
levam ao letargo ou à implosão.

13
De maneira diversa ao exposto neste artigo e à visão do próprio MacIntyre,
BAVISTER-GOULD, 2008, p. 55–74, sustenta que o filósofo escocês não evoluirá
simplesmente do aristotelismo para o tomismo, mas apresentará uma fratura
com o que escrevera em 1981. Assim, After virtue seria, em aspectos
importantes, um trabalho com intuições posteriormente abandonadas ou não
desenvolvidas.
14
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 10-1.

113
Leituras Tomistas

Ao se referir a Tomás de Aquino, MacIntyre coloca-o em


uma espécie de encruzilhada da história do pensamento15. No
século XIII, o pensamento aristotélico torna a ocupar um posto de
destaque no mundo europeu, gerando imensas dificuldades e
abrindo amplas oportunidades. Era um novo sistema de
pensamento, poderoso e convincente, mas que não havia sido
elaborado por estudiosos que conhecessem a fé cristã, e em muitos
pontos aparentava afastar-se dela. O antagonismo entre a tradição
agostiniana, predominante entre os professores de teologia e com
uma história consagrada dentro do cristianismo, e a aristotélica, à
qual aderiram inúmeros professores da Escola de Artes de Paris,
era algo esperado e inevitável.
Segundo MacIntyre, Tomás de Aquino aceitará o que
considera valioso em ambas as tradições e forjará algo original,
que englobará aspectos importantes da teologia anterior a ele,
bem como elementos herdados diretamente do aristotelismo.
Buscará inclusive expurgar o que seriam erros defendidos pelos
comentadores árabes e judeus de Aristóteles, além de propor uma
interpretação do mestre do Liceu mais conforme com a doutrina
cristã.
O empreendimento de Tomás de Aquino, em sua amplitude
e ambição, bem como pelo seu êxito, é algo singular na história da
filosofia. Ele não apenas escreveu e desenvolveu uma tradição; foi
capaz de integrar duas, que em princípio se mostravam
irreconciliáveis. Também chama atenção que, em suas obras, ele
procure utilizar os argumentos de todas as posições conhecidas
sobre cada tema, na época. A partir delas, busca uma
compreensão mais ampla e profunda do problema, a melhor que
se poderia conseguir por então, justamente através do embate
aberto e respeitoso entre posturas bastante diversas16.
Na esteira de Aristóteles, Tomás considera que a habilidade
de fazer juízos morais corretos tem como pré-requisito a aquisição

15
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 168.
16
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 172.

114
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

substancial das virtudes. O desenvolvimento de uma capacidade


de raciocínio prático consistente é inseparável da educação no
exercício das virtudes morais17. A pesquisa moral pressupõe uma
experiência suficiente de paixão e julgamento, bem como uma
mente não turvada pelo imediatismo das paixões18.
Há uma diferença significativa entre Tomás de Aquino e
Aristóteles. O primeiro considera que a principal experiência do
homem em relação à lei divina é a desobediência, uma tendência
que não pode ser erradicada nem pela melhor educação moral. Há
um conluio da vontade com o mal moral, gerando a mala voluntas,
no sentido propugnado por Agostinho, bastante mais perversa
que a mera akrasia aristotélica. O único remédio para essa moléstia
é a graça divina, e tal solução é claramente cristã.
Tomás acrescenta à filosofia moral de Aristóteles os temas
centrais da psicologia de Agostinho. Há a integração do que é
aristotélico em uma estrutura agostiniana e paulina, o que se
mostra no tratamento das virtudes, que, se compreendidas apenas
do ponto de vista do Estagirita, seriam incapazes de aperfeiçoar os
seres humanos de modo que eles possam atingir o seu telos.
Aristóteles, por não contar com o fim sobrenatural do homem, não
entendeu adequadamente qual seria esse telos, que se completaria
além desta vida. Ademais, as virtudes naturais só podem ser
perfeitas quando informadas pela caritas, que é um dom da graça
divina19.
Não é possível esboçar a concepção genuinamente tomista
de lei natural e do seu conhecimento sem tratar de questões como
a existência, natureza ou vontade de Deus. Tais temas podem ser
alcançados pela razão, quando utilizada retamente. A religião é
parte da virtude da justiça; portanto, quem não acredita em Deus

17
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 176.
18
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 178.
19
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 181-2.

115
Leituras Tomistas

nem lhe presta reverência, não pode obedecer de maneira plena à


lei natural20.
Segundo Tomás, o fim último dos seres humanos é o estado
de perfeita felicidade, que é a contemplação de Deus na visão
beatífica. Os homens que não descobrem essa finalidade terminam
frustrados e desajustados. Para ele, a conclusão aristotélica, de que
a vida virtuosa na polis e a contemplação do que é eterno pela
teoria seriam a felicidade perfeita, é um equívoco. Algo não
apenas incompleto, mas seriamente defeituoso21.
A discussão da lei, em Tomás, desemboca no tratamento da
graça, porque só esta pode remediar a natureza humana e levá-la
a cumprir os preceitos morais alcançáveis pela razão. A graça é a
solução única para o problema da desobediência à lei,
desobediência que o homem conhece por experiência diuturna.
Podemos afirmar que, na óptica de Tomás de Aquino, a maior
deficiência da concepção aristotélica da teleologia da vida humana
não é propriamente um erro de teoria, mas algo derivado da
deficiência da própria natureza humana em si, deficiência que foi
identificada por Agostinho. O homem não é capaz de chegar, sem
a ajuda de Deus, àquilo para que está destinado22.
Por outra parte, Tomás concorda com Aristóteles em que o
exercício da prudentia é condição para as demais virtudes. Através
dela, é possível saber onde e como aplicar os preceitos gerais da
lei natural aos casos particulares, ciente de que estes, em sua
variedade e mutabilidade, não podem ser previstos perfeitamente
com anterioridade. É necessário fazer um balanço, em cada
evento, do que ele tem de específico e do que nele é geral, a fim de
resolvê-lo da maneira mais virtuosa, adequada23.
Todo o tratamento de MacIntyre sobre Tomás de Aquino, na
obra a que nos estamos referindo, denota a compreensão da

20
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 188.
21
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 192-3.
22
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 205.
23
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 195-6.

116
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

filosofia tomista. Há um nítido avanço nesse ponto em relação a


After virtue. Entretanto, o filósofo ainda se nomeia um “cristão
agostiniano”, e não um tomista24.

4. O tomismo nas três versões rivais da ética

Em 1988, MacIntyre foi o responsável por proferir as


Conferências Gifford, em Edimburgo. A partir da sua participação
nesses debates, ele escreveu Three rival versons of moral enquiry
(1990). Nesta obra, Tomás de Aquino já ocupará o posto central,
ao redor do qual gira uma tradição que, no decorrer do livro, terá
que se ver com a genealogia de Nietzsche e o iluminismo
enciclopedista.
A tradição tomista, a genealogia nietzschiana e o iluminismo
são três visões da ética que, ou se digladiam, ou simplesmente
ficam fechadas em si mesmas, sem interesse nem condições de
entender umas às outras. No caso do embate, não logram
sobrepujar as adversárias, nem convencê-las de que estão no erro.
Decai-se em um diálogo de surdos-mudos. Esse é o diagnóstico de
MacIntyre, que procura indicar seus motivos e possíveis remédios.
Para sua análise, MacIntyre escolhe um documento
fundamental para cada uma das versões da pesquisa moral. Na
iluminista, é a nona edição da Encyclopaedia Britannica, que
começou a ser publicada em 1873 e sintetiza o ambiente intelectual
de Edimburgo na época de Adam Gifford, o mentor da série de
conferências com seu nome. Para a genealogia, é Zur Genealogie der
Moral, de Nietzsche, publicado em 1887, ano da morte de Adam
Gifford. Por fim, a tradição é representada pela Encíclica Aeterni
Patris, publicada por Leão XIII em 187925.
A opção pela Aeterni Patris é significativa. Acredito que não
é devida somente à proximidade cronológica com os outros
escritos fundamentais escolhidos, mas também porque ela fez

24
MACINTYRE, Alasdair, 1988, p. 10.
25
MACINTYRE, Alasdair, 1990, p. 24-5.

117
Leituras Tomistas

reviver a tradição tomista, na qual se incluem os trabalhos dos


comentadores do frade dominicano. A citada encíclica propõe o
estudo de Tomás de Aquino na teologia e na filosofia católicas,
por considerá-lo o autor capaz de prover o pensamento cristão
dos necessários recursos intelectuais para debater e superar as
linhas filosóficas incompatíveis com a fé.
Além de tratar do próprio Tomás de Aquino, MacIntyre se
refere extensamente ao tomismo – melhor, aos vários tomismos.
Esse plural se deve a que, por um erro de enfoque e por influência
das escolas modernas, os tomistas quiseram fazer seu trabalho a
partir de premissas diferentes das do seu mestre medieval,
tomando-as emprestadas de categorias de filosofias recentes.
Característico disso é colocar, no centro do sistema, a preocupação
com a epistemologia, na esteira de Descartes e Kant, quando
Tomás considera a noção de ente a mais fundamental e primeira.
MacIntyre propõe um tomismo fiel ao do iniciador da
escola. Dever-se-ia trabalhar de modo similar a como Tomás
construiu sua filosofia, dentro de uma tradição que ele ampliou e
aperfeiçoou, ao comparar e corrigir posturas diversas sobre cada
tema em disputa no seu tempo.
Para tanto, ele empregou exemplarmente a dialética, tão
bem exemplificada nas questiones disputatae. Nelas, as várias
opiniões sobre uma matéria predeterminada eram expostas, para
finalizar na síntese do mestre, tomando de cada posição o que
permanecia válido depois do embate com os outros pontos de
vista. Tal sistema permitia alcançar conclusões perfectíveis,
abertas, que aguardavam novos dados e reflexões para incorporá-
las e se aperfeiçoarem; não considerava obter juízos fechados e
definitivos, raramente possíveis de se conseguir nas matérias
humanas.
Um equívoco dos tomistas do século XIX, dentre os quais se
destaca Kleutgen, foi pretender elevar o tomismo a um sistema

118
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

fechado, similar ao kantiano e a outros idealismos26. Teríamos


então um sistema a mais, a disputar com os outros existentes.
Entretanto, isso já é aceitar os termos do debate propostos pelos
modernos. Para Tomás de Aquino, a discussão se faria sem pontos
intocáveis, e o embate permitiria que todos avançassem um pouco
na obtenção da verdade.
Nesse ponto de vista, a filosofia é uma arte, uma techne, que
tem suas regras para ser exercida e obter seus melhores
resultados. Não é uma tarefa na qual qualquer um pode se
imiscuir sem um treinamento prévio nem pressupostos, dentre os
quais se incluem virtudes específicas, como a prudência, a
honestidade, a abertura, a laboriosidade, a capacidade de escutar,
a ciência etc.27.
Essa compreensão da tradição tomista, no ponto de vista de
MacIntyre, permite que ela entre em contato com os outros
sistemas filosóficos, compreenda-os e os supere, no sentido de
prover respostas a problemas e aporias que as outras tradições
trazem em seu bojo, e que não são capazes de eliminar com seus
recursos próprios28.
Nesta obra de 1990, MacIntyre assume-se tomista, utilizando
essa vertente filosófica para rebater o iluminismo e a genealogia
nietzschiana, e também para propor uma nova visão da pesquisa
moral em nosso tempo. Seu tomismo difere em vários pontos da
linha dominante no pensamento católico a partir da encíclica de
Leão XIII.
Por vir de uma escola bastante distinta, MacIntyre abordou
o pensamento de Tomás com outros olhos, depois de ter sido
influenciado pela leitura de Aristóteles. Isso lhe dá uma força que
frequentemente falta nos tomistas tradicionais, que porventura
conhecem pouco a filosofia moderna e se prendem a questões
demasiado estreitas de interpretação do pensamento do teólogo

26
MACINTYRE, Alasdair, 1990, p. 73-4.
27
MACINTYRE, Alasdair, 1990, p. 127-30.
28
Cf. MACINTYRE, Alasdair, 1990, cap. 8 e 9.

119
Leituras Tomistas

italiano, sem fazer dele algo vivo e relevante. Tal crítica não atinge
pensadores como Cornelio Fabro e Etienne Gilson, mas
principalmente o tomismo didático, materializado em manuais e
livros de divulgação, que não possuíam o devido rigor29.
Em Three rival versions of moral enquiry, MacIntyre utiliza o
tomismo como um instrumento, que permite descobrir os
equívocos da modernidade e torná-los inteligíveis, em suas idas e
vindas. Além disso, apresenta soluções novas, no sentido de que
pouco conhecidas na contemporaneidade, e antigas, porque
fundadas na tradição iniciada por Platão, desenvolvida por
Aristóteles e esposada Tomás de Aquino.

5. A importância da metafísica tomista na filosofia


moral

Em 2006, MacIntyre publicou duas importantes coletâneas


de ensaios: The tasks of philosophy e Ethics and politics. A primeira
contém trabalhos que vão de 1972 a 2002, que permitem distinguir
a evolução do pensamento do autor. A segunda traz artigos
lavrados entre 1985 e 1999, quando, segundo explica no prefácio,
MacIntyre já tinha as convicções filosóficas de um aristotélico
tomista, o que foi para ele mesmo inicialmente uma surpresa30.
Daí que todos os escritos desta coletânea expressem esse ponto de
vista filosófico, ainda que de maneiras distintas31.
Em The tasks of philosophy, os artigos mais relevantes para o
tema do tomismo de MacIntyre são três. “First principles, final ends,
and contemporary philosophical issues”, originariamente de 1990, é
uma exposição dos compromissos filosóficos que trazem consigo a
adesão ao tomismo, especialmente em temas metafísicos, como os
primeiros princípios e as causas finais. Pontos que são fortemente

29
Cfr. MACINTYRE, Alasdair. 2009, p. 153-4.
30
BAVISTER-GOULD, 2008, p. 56, discorda que MacIntyre tenha mantido a
mesma estrutura de pensamento, desde After virtue até seus livros recentes.
31
MACINTYRE, Alasdair. 2006 (b), p. vii.

120
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

rejeitados por parcela importante do pensamento moderno.


MacIntyre mira de modo especial os filósofos analíticos e pós-
modernos, tentando assinalar a natureza dos desacordos entre eles
e os tomistas32.
É um texto denso, não diretamente voltado para a ética, e
sim para a metafísica. No entanto, conforme uma constante na
obra de MacIntyre desde 1981, ele sustenta existir uma ligação
íntima entre todos os campos da filosofia, com a consequente
dependência mútua. Os erros em teoria do conhecimento
acarretam desvios na política, os desacertos em ética têm muitas
vezes suas raízes em miopias na metafísica. “First principles, final
ends and contemporary philosophical issues” apresenta a metafísica
tomista que subjaz à pesquisa moral do nosso autor, indicando
que é impossível separar totalmente uma da outra, o que é
tentação constante nos filósofos tomistas e não-tomistas.
Os outros dois escritos giram em torno da encíclica Fides et
ratio, de João Paulo II, publicada em 1998. A partir dela, MacIntyre
procura indicar quais são as tarefas da filosofia, compreendida de
acordo com a visão tomista, e qual é a noção de verdade
necessária para a existência de uma filosofia cristã. São textos que
visam responder a uma aparente contradição: por um lado, a
encíclica reconhece que a filosofia possui autonomia, que necessita
ser respeitada pelos que a praticam, sob pena de malbaratá-la; por
outro, afirma que certas noções filosóficas, notadamente as
referentes à verdade, preconizadas por Tomás de Aquino, são
necessárias para um pensamento conforme com a fé cristã. Como
conjugar a autonomia com a necessidade de admitir uma
determinada concepção básica de mundo?33
Em ambos os textos, MacIntyre afirma que a teoria do
conhecimento de Tomás de Aquino pressupõe a existência de uma
ordem externa na realidade, que não depende do ser humano.
Este só pode conhecer porque recebeu desta ordem externa a

32
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. xi-ii.
33
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 197-8.

121
Leituras Tomistas

possibilidade de fazê-lo. Afinal, o homem é parte do mundo.


Ademais, o conhecimento exige não só entender os objetos
isoladamente, mas reconhecer a posição deles dentro de todo o
cosmos, em uma ordenação que transcende a mente humana.
A verdade é a adequação entre o intelecto e a coisa,
definição que Tomás de Aquino tomou do filósofo judeu Isaac
Israeli34. Para conceber as coisas como são, temos que discriminar
nelas as propriedade que possuem como partes da ordenação
divina do universo. Nossa mente tem por finalidade entender, é
uma inclinação que está colocada nela por natureza; ela deve se
adequar à realidade, que a ela preexiste. E nessa realidade há uma
ordenação, realizada pelo Criador.
A concepção tomista de mundo conduz a reconhecer a
existência de Deus, necessária para tornar consistente a própria
busca da verdade. Nem sequer buscaríamos a verdade, em
sentido forte, se não tivéssemos antes admitido que ela existe e
possui sua raiz em uma ordenação anterior ao nosso
conhecimento. Na visão de mundo de Tomás de Aquino, não
podemos caracterizar as propriedades semânticas dos predicados
adequadamente sem ter feito antes compromissos metafísicos,
pressupostos por nossas explicações35.
Ademais, o aperfeiçoamento de uma pesquisa não se
resume a formular novas e melhores teorias, mas abrange também
aprimorar as mentes dos pesquisadores, dos teorizadores. Dentre
as virtudes fundamentais para o intelecto, destaca-se a sapientia,
que permite captar os primeiros princípios, os quais possibilitam
entender como as diferentes ciências se relacionam umas com as
outras e como cada uma contribui para a visão integrada do
universo natural e do lugar dos seres humanos nele36.
Os objetos são perceptíveis per se, não somos nós que os
tornamos perceptíveis ao categorizá-los. Eles se encaixam ou não

34
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 185.
35
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 185-6.
36
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 186-7.

122
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

em nossas categorias, mas não são estas que os criam e classificam.


A noção que descobrimos uma ordem de coisas inteligível, cuja
ordenação independe de nossos desejos, vontades, escolhas e
projetos, contrapõe-se frontalmente a teses centrais do
pragmatismo e nominalismo contemporâneos37. E também aos
idealismos derivados de Kant, podemos acrescentar.
Cada indivíduo pertence a uma espécie, e por sua natureza
está dirigido a um fim específico, em vista do qual se desenvolve.
Nosso entendimento não compreende totalmente esse
direcionamento, enquanto não reconhece em Deus a causa
primeira e o fim último de tudo38.
Segundo MacIntyre, a modernidade não admite que os seres
humanos tenham seu lugar em uma ordem das coisas inteligível,
nem que eles sejam dotados de uma natureza determinada e dada,
a qual necessita ser educada e desenvolvida, permanecendo
sempre a mesma, ainda que se expresse diferentemente no tempo
e nas culturas. Ao contrário, os pensadores modernos sustentam
que os seres humanos individuais definem-se a si mesmos através
de seus atos de escolha, que modificam também o sentido que as
coisas e os outros seres humanos têm para eles. Indivíduos que
aprendem a se re-imaginar dessa forma, tornando-se aquilo que
imaginam, não conseguem compreender-se como tendo um fim
último, um bem para o qual estão dirigidos por sua natureza
essencial, e não por suas escolhas voluntárias ou afetivas39.
Na medida em que a escolha se torna soberana, a pesquisa
filosófica é tida por excêntrica, e as posições tomistas são
praticamente ininteligíveis. Isso ocorre no mundo de hoje, em que
os argumentos da tradição clássica não conseguem se fazer valer,
nem ser corretamente entendidos40. Encontramos aqui a noção,
cara a MacIntyre, da dificuldade de salvar a modernidade, cujos

37
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 190.
38
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 191.
39
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 195-6.
40
MACINTYRE, Alasdair, 2006 (a), p. 196.

123
Leituras Tomistas

fundamentos chegariam a impedir que os remédios de que ela


necessita sejam descobertos, e até mesmo de perceber que está
doente. Afinal, a escolha é, no sentido moderno, algo arbitrário,
cujo motivo é pouco mais que o capricho ou a opção voluntarista.

6. A descoberta das normas éticas e das virtudes pela


razão

Em Ethics and politics, há dois ensaios voltados diretamente


ao pensamento de Tomás de Aquino. No primeiro, “Natural law as
subversive: the case of Aquinas”, MacIntyre faz uma interpretação
original de Tomás, ao contrapor seu pensamento à prática política
de Luís IX, da França, e Frederico II, da Alemanha. Ambos os
soberanos, apesar de bastante diferentes entre si, convergiram em
fortalecer o poder central nos seus reinos, além de impor as leis,
promulgadas por eles, sobre os costumes locais, muitas vezes
imemoriais. Por considerarem as suas funções de um ponto de
vista teológico, creditavam a si mesmos uma quase
infalibilidade41; no caso de Frederico II, chegou a equipar as
críticas ao Imperador e a seus projetos com os sacrilégios, pois ele
havia recebido sua autoridade diretamente de Deus42.
Os dois reis pensavam que deviam acabar com os vícios dos
seus súditos através das leis, o que os levou a ampliar a
intervenção do governo na vida da sociedade, por meio da
proibição dos jogos, das tavernas, alcançando inclusive os jograis
e menestréis, todas essas realidades tidas por próximas de más
condutas e intemperanças43.
Contrariamente, Tomás de Aquino sustentou que não cabe à
lei humana coibir todo o vício, apesar de ela ter por finalidade
tornar os seres humanos bons. Há âmbitos nos quais ela não deve
penetrar, cabendo-lhe proscrever somente os vícios mais graves

41
MACINTYRE, 2006 (b), p. 46.
42
MACINTYRE, 2006 (b), p. 53.
43
MACINTYRE, 2006 (b), p. 55-7.

124
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

para a sociedade. Se fizesse o contrário, ela exigiria demais dos


homens comuns, o que, em vez de educá-los, fá-los-ia desistir do
aprimoramento, pois este lhes pareceria demasiado custoso e
impraticável. Terminaria por provocar nos imperfeitos exatamente
aqueles males que almejava prevenir44.
Para Tomás, a autoridade de fazer a lei humana pertence a
todo o povo, ou a alguém agindo em nome de todo o povo. Se a
lei humana choca-se em algum aspecto com a lei natural, ela não
será, nesse ponto, propriamente lei, mas corrupção de lei. Como a
lei natural pode ser alcançada pela razão, qualquer ser racional é
capaz de reconhecê-la, e não somente peritos ou profissionais
especializados45. Portanto, as normas principais que regem a
sociedade e a vida dos indivíduos podem ser descobertas e
debatidas pela massa dos cidadãos.
Os que não reconhecem o que é a lei natural, nem como ela
funciona, tampouco podem entender o que é o bem comum.
Colocar a própria autoridade, seja como legislador, jurista ou
conselheiro, no lugar da autoridade da lei natural, é um grave
equívoco, que mina a legitimidade dos governantes46.
O costume tem considerável importância, pois é uma lei
formulada pelo povo, o qual julgou seu conteúdo conveniente e
justo. O costume tem força de lei e deve ser modificado apenas
quando houver motivos sérios, proporcionais. Abolir um costume
diminui a efetividade da lei em geral, sua força de obrigar47.
Reconhecemos uma visão em certo sentido democrática da
lei natural, à qual a lei do soberano deveria se amoldar. Trata-se
de algo pertencente e acessível a todas as pessoas, e não pode ser
usurpado nem mesmo pelo governante. É uma concepção distante
da voluntarista ou, empregando uma expressão anacrônica,
positivista.

44
MACINTYRE, 2006 (b), p. 46-7.
45
MACINTYRE, 2006 (b), p. 47-8
46
MACINTYRE, 2006 (b), p. 48-51.
47
MACINTYRE, 2006 (b), p. 51.

125
Leituras Tomistas

O artigo “Aquinas and the extent of moral disagreement” é


importante especialmente por apresentar a gênese e o
desenvolvimento das virtudes. São temas explorados em outros
livros de MacIntyre, mas trazidos aqui à baila para solucionar o
problema do desacordo moral a respeito de temas concretos. Além
disso, versa sobre os fundamentos do raciocínio moral, os
caminhos a serem trilhados para que ele alcance o resultado mais
satisfatório possível.
MacIntyre sublinha que, para resolver dificuldades geradas
pela multiplicidade de posturas morais, é necessário passar do
raciocínio prático para o teórico, no qual se há de estudar quais
são os bens humanos. Sem um consenso sobre o que seja a
plenitude do homem, não se consegue obter uma noção razoável
da moralidade e das suas regras48. Faltando essa noção, é
impossível solucionar problemas de fundo, que separam visões
morais abrangentes e amplas.
Esse estudo teórico não é feito de maneira exclusivamente
individual. Demanda a participação de vários, unidos por um
mesmo ideal e dispostos a seguir procedimentos de discussão. A
deliberação em conjunto é importante para se atentar a aspectos
que indivíduos isolados não perceberiam49.
Tal deliberação, para ser efetiva, necessita partir de certos
pressupostos, como a importância da verdade e a admissão da
possibilidade de o participante no debate estar em erro; a prática
das virtudes necessárias para uma pesquisa boa pelos
interessados; um ascetismo moral e intelectual, que permita
propor os próprios pontos de vista e escutar os demais de forma
desapaixonada; a segurança de que posso me expressar sem que
minha vida e minha propriedade venham a ser lesadas, em
consequência do que falei; ter a confiança de que os outros falam a
verdade, e eu mesmo ser fiel a ela. Esses procedimentos, e outros

48
MACINTYRE, 2006 (b), p. 75-6.
49
MACINTYRE, 2006 (b), p. 73.

126
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

similares, devem ser mantidos por todo o tempo e pela totalidade


dos participantes da pesquisa racional50.
Esses preceitos para o debate racional são os mesmos da lei
natural. Em outras palavras, para solucionar de maneira racional
os problemas de desacordo moral, necessito partir de certas regras
que tornem essa empreitada viável. Não são uma imposição ou
escolha arbitrária, mas normas de conduta que fazem possível a
pesquisa honesta, compartilhada e continuada da verdade. São
pressupostos, aos quais chego racionalmente e posso justificar,
tendo em vista o que pretendo obter51.
Sendo importantes para o debate moral, essas regras
mostram sua necessidade em outros campos das atividades
humanas, a fim de torná-las consistentes e enriquecedoras. São
preceitos cuja aplicação deve ser ampla, e são obtidos pela
observação e raciocínio. Eles formam a lei natural, no sentido
preconizado por Tomás de Aquino e defendido por MacIntyre.

Conclusão

A obra de MacIntyre traz para o debate atual o pensamento


de autores antigos e modernos, mostrando suas debilidades e
virtudes. Procura colocar-se por cima das modas intelectuais, ao
mesmo tempo em que sorve do pensamento clássico o essencial da
sua postura.
A desilusão com a modernidade, a partir de uma
compreensão aprofundada de Aristóteles, deu em parte origem às
afirmações e raciocínios elaborados em After virtue. Esse trabalho
representa uma quebra, uma reviravolta. É um primeiro passo em
um novo caminho, que será amadurecido em obras posteriores.
Por então, como vimos, o autor não é ainda tomista, embora se
aproxime disso por meio da tradição aristotélica.

50
MACINTYRE, 2006 (b), p. 77-80.
51
MACINTYRE, 2006 (b), p. 80-1.

127
Leituras Tomistas

Após esse primeiro marco, continuará a progressiva adesão


ao tomismo, que já não sofrerá interrupção nem diminuição.
Antes, será quase plena em Whose justice? Which rationality?, para
enfim ser assumida sem peias em Three rival versions of moral
enquiry. No período em que escreveu esses três livros, MacIntyre
também produziu artigos importantes, que esclarecem e
desenvolvem aspectos do seu pensamento. Vários desses artigos
foram recolhidos nos volumes The tasks of Philosophy e Ethics and
Politics, nos quais percebemos os frutos cada vez mais maduros da
cosmovisão tomista nesse filósofo.
MacIntyre buscou engendrar uma crítica à modernidade, na
qual inclui a obra de Marx e de Nietzsche, ao mesmo tempo em
que valoriza intuições desses autores. Ademais, mostra que os
pensadores modernos partem de tradições distintas da clássica,
tradição esta que frequentemente desconhecem, e muitas vezes
nem têm consciência disso. Para eles, a filosofia aristotélico-
tomista se tornou obscura, com parâmetros que seriam inclusive
absurdos, fundados em uma metafísica que não é entendida por
quem espose uma visão positivista ou materialista.
Porém, se os contemporâneos pudessem entrar no âmago da
filosofia aristotélica, seriam capazes de enxergar a própria
modernidade de uma maneira diferente, rica, a partir de um
ponto de vista externo a ela. A tradição clássica, de modo
primordial na sua vertente tomista, apresentaria soluções e
aperfeiçoamentos ao nosso modo de pensar, inclusive com o
descarte de pontos de partida assumidos quase que
unanimemente pela filosofia moderna.
Em um escrito de 1999, Dependent rational animals, MacIntyre
comenta que necessitava corrigir suas posições prévias sobre as
relações entre Aristóteles e Tomás de Aquino. Confessa haver se
confundido pelo modo caridoso com que Tomás interpreta e cita
Aristóteles, subestimando assim o grau e a importância da
diferença que existe entre os dois em relação ao tema da
dependência do ser humano em relação aos outros. Tal
dependência seria uma característica do homem reconhecida e
apreciada por Tomás, enquanto Aristóteles a tinha por um defeito.

128
Tomás de Aquino e a filosofia de Alasdair MacIntyre

Este aspecto, à primeira vista simples, mostraria que Tomás


não simplesmente complementou, mas também corrigiu
Aristóteles em um nível maior ao que MacIntyre antes atentara52.
Pode-se então concluir que há pontos em que é necessário recorrer
a Tomás de Aquino para fortalecer a tradição aristotélica, a fim de
purificá-la e torná-la mais coerente.
Hoje, existem muitos grupos estudando a filosofia de
Aristóteles, mas poucos, no âmbito universitário, dedicados ao
tomismo. Com isso, uma série de questões fica sem resposta no
seio dos aristotélicos, quando, na verdade, já foram meditadas e
em boa medida resolvidas por Tomás e seus seguidores.
Tomás conduziu a filosofia de Aristóteles para adiante, e de
um modo legítimo. Legítimo porque permanece fiel aos princípios
fundamentais elaborados pelo seu predecessor, ao mesmo tempo
em que traz soluções para problemas existentes no âmbito do
aristotelismo. Não há dúvida de que Tomás valeu-se de tradições
diferentes da aristotélica, em específico a agostiniana; mas isso
não representou uma traição, e sim um enriquecimento e uma
modernização. De certo modo, ainda que com bem menos
radicalidade, é o que MacIntyre faz com o próprio tomismo, ao
empregá-lo para compreender e propor soluções para questões
atuais. A diferença é que MacIntyre não sugere alterações
significativas à filosofia de Tomás; ao contrário, ele mesmo é
quem se modifica, à medida que compreende melhor o legado do
autor da Summa theologiae.
Não considero fundamentada a crítica de Enrico Berti, o
estudioso de Aristóteles da Universidade de Pádua, no sentido de
que MacIntyre “negligencia quase completamente a contribuição
específica de Aristóteles à determinação de uma racionalidade
prática”, por ter reduzido a filosofia prática de Aristóteles à teoria
das virtudes53. Se duvido que essa crítica fosse válida mesmo para
After virtue, de 1981, quando MacIntyre trata de aspectos

52
MACINTYRE, 1999, p. x-xi.
53
BERTI, 1997, p. 271.

129
Leituras Tomistas

metafísicos importantes54 – ainda que ele mesmo não os valorize


suficientemente na ocasião –, ela se torna cada vez mais
improcedente em relação às obras posteriores.
Nos textos que analisamos acima, MacIntyre emprega a
razão, no sentido aristotélico, para extrair as regras morais e o
conteúdo das virtudes. O mesmo está presente nos livros
Dependent rational animals e God, philosophy, universities, sendo que
este último traz, em um par de páginas, uma exemplificação
certeira da deliberação dos agentes racionais55.
Concluímos com a consideração que Tomás foi fiel a
Aristóteles, recebendo, ampliando e desenvolvendo o pensamento
do mestre. MacIntyre o percebeu, e, quando isso aconteceu,
utilizou Tomás como base da crítica à modernidade e de uma
proposta para o pensamento ético, de modo que as divergências
fundamentais, que atrapalham a nossa vida em sociedade, possam
ser dilucidadas por meio de critérios racionais e devidamente
justificados. Assim, a filosofia de MacIntyre enriqueceu-se, ao
mesmo tempo em que trouxe um ar de novidade e renovação para
o tomismo nos dias de hoje.

54
Por exemplo, no cap. 5 – Why the Enlightenment project of justifying
morality had to fail, em MACINTYRE, 2007, p. 51-61.
55
MACINTYRE, 2009, p. 90-2.

130
Referências

BAVISTER-GOULD, Alex. “The uniqueness of After Virtue (or ‘Against

Hindsight’)”. Analyse & Kritik, 30, 2008, p. 55–74.

BERTI, Enrico. Aristóteles no século XX. trad. de Dion Davi Macedo. São Paulo:

Edições Loyola, 1997.

D’ENTRÈVES, Alexander Passerin. Natural law: an introduction to legal

Philosophy. New Brunswick: Transaction Publishers, 2009.

LUTZ, Christopher Stephen. “From voluntarist nominalism to rationalism to

chaos: Alasdair MacIntyre’s critique of modern Ethics”. Analyse & Kritik,

30, 2008, p. 91-9.

MACINTYRE, Alasdair. After virtue. 3. ed. Notre Dame: University of Notre

Dame Press, 2007.

______.Ethics and Politics: selected essays, v. 2. Cambridge: Cambridge

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______.God, philosophy, universities: a selective History of the Catholic

philosophi-cal tradition. Plymouth: Rowman & Littlefield Publishers, Inc.,

2009.

______.Dependent rational animals: why human beings need the virtues.

Chicago: Open Court, 1999.

______.The tasks of Philosophy: selected essays, v. 1. Cambridge: Cambridge

Uni-versity Press, 2006.

______.Three rival versions of moral enquiry. Notre Dame: University of Notre

Dame Press, 1990.

______.Whose justice? Which rationality? Notre Dame: University of Notre Dame

Press, 1988.

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2003. v. 3 e 4.

131
SEGUNDA PARTE
_____________________________________

O JUSNATURALISMO TOMISTA
NAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS

133
I. D IREITO DE PROPRIEDADE EM
T OMÁS DE A QUINO

Mauricio Mota1

Sumário: Introdução. 1. A Justiça Aristotélica. 2. A Propriedade em Tomás de


Aquino. 3. O Direito de propriedade em Tomás de Aquino. 4. A função social da
propriedade em Tomás de Aquino. Conclusão. Referências.

Introdução

Para Tomás de Aquino, o sistema de apropriação privada


subordinado a um regime de uso comum constitui a base da
ordem política, assim como em Aristóteles. Nesse contexto, o
princípio da apropriação privada enquanto princípio moral
reclama a sua articulação com outro princípio de ordem moral,
qual seja, o que institui o dever dos membros da comunidade
política concorrerem individualmente para o uso comum das
coisas2.
Nesse texto buscou-se explicitar um referencial teórico-
filosófico no pensamento de Tomás de Aquino acerca da
propriedade e da função social da apropriação dos bens
exteriores. Intenta-se aqui responder a quatro perguntas básicas:
a) existe uma função social dos bens?; b) existe um direito dos

1
Mauricio Mota é Doutor em Direito Civil pela UERJ, professor de História do
Direito da Faculdade de Direito da UERJ, professor de Teoria da Justiça do
Mestrado e Doutorado em Direito da Faculdade de Direito da UERJ e
Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
2
BRITO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa
democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2007, p. 173.
135
Leituras Tomistas

homens à apropriação em comum dos bens exteriores, sem


especificação de direito de propriedade particular por parte de
indivíduos, famílias ou grupos, ou seja, os bens exteriores devem
se destinar a uma finalidade comum?; c) se os bens exteriores são
destinados aos homens em comum, quais são os fundamentos
pelos quais é lícito possuir as coisas como próprias?; d) válidas as
duas afirmativas anteriores, essas assertivas se aplicam a toda
sorte de bens ou somente àqueles que não fossem bem
administrados, supérfluos ou que, por qualquer razão, pela
extensão ou pelo mau uso, prejudicarem a outrem?
Discute-se aqui não só o ponto de partida da nossa reflexão,
ou seja, a teoria aristotélica da propriedade e sua fundamentação
na sociedade política, como a apresentação teórica do pensamento
de Tomás de Aquino acerca da propriedade e, finalmente, os
fundamentos teóricos a nosso ver mais relevantes para a função
social da propriedade, superando-se um certo anacronismo
teórico que ainda concebe o direito de propriedade como um
direito meramente subjetivo.

1. A Justiça Aristotélica

Para os gregos, o direito é um objeto exterior ao homem,


uma coisa, a mesma coisa justa (ipsa iusta res) que constitui o
término do atuar justo de uma pessoa, a finalidade da virtude da
justiça. A conduta justa do homem justo (dikaios) é a justiça em
mim, subjetiva, enquanto que o direito (dikaion) é a justiça fora de
mim, no real, a própria coisa justa, objetiva. O direito está assim
fora do homem, in re, nas coisas justas, de acordo com uma
determinada proporção, o justo meio objetivo.
O direito é, desta forma, uma relação entre substâncias, por
exemplo, entre casas e somas em dinheiro que, numa cidade,
repartem-se entre seus proprietários. O direito é, com efeito, uma
coisa exterior que se extrai de uma natureza relacional entre duas
ou mais pessoas que disputam bens, encargos e honras.
Assim, em um litígio, o direito será a justa parte que
corresponde a cada uma das pessoas envolvidas nele, o que

136
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

significa reconhecer que não somente resulta impossível concebê-


lo à margem das relações interpessoais (por exemplo, na solidão
de Robinson Crusoé em sua ilha) senão que, também, este direito
é necessariamente finito, limitado (é a parte justa de uma relação
concreta)3.
Aristóteles intenta, em Ética a Nicômaco, formular uma
definição universal de justiça (dikaiosunê). A justiça (dikaiosunê)
pode ser definida em dois sentidos principais denominados justiça
geral e justiça particular. Por justiça geral, designa-se por justo
toda conduta que parece conforme à lei moral; e, nesse sentido, a
justiça inclui todas as virtudes, é uma virtude universal.
Aristóteles não rejeitou totalmente essa acepção ampla, antes
mostrou a sua razão de ser por que podíamos ser levados a
qualificar toda virtude, mesmo a temperança e a coragem, com a
palavra justiça. O sentido geral de justiça corresponde, deste
modo, à condição que os gregos chamavam dikaios, o homem
justo. O qualificativo dikaios expressava a pessoa que possuía uma
superioridade moral em relação à maioria das outras por ter
adquirido o conjunto das virtudes morais.
Aristóteles observava que esse sentido geral de justiça não
tinha uma relação direta com o direito, uma vez que não cabia aos
juízes conduzir os cidadãos à perfeição moral, mas resolver os seus
litígios relativos aos bens e cargas presentes na vida social. A
justiça geral, nessa acepção larga, aplica-se a toda conduta
conforme à lei moral; nesse sentido a justiça geral é a própria
moralidade, inclui todas as virtudes, é a virtude universal.
A justiça particular, pelo contrário, é uma parte da justiça
geral e, tomada nesse sentido, não se refere ao dikaios (o homem
justo), mas ao to dikaion (a coisa justa). Uma pessoa teria a virtude
da justiça em sentido particular se praticasse o justo, não se fosse
justo: repetindo, o dikaios seria a justiça em mim, subjetiva; o
dikaion é a justiça fora de mim, na realidade, objetiva. Da
constatação e estudo da virtude da justiça particular à definição da

3
CABANILLAS, Renato Rabbi-Baldi. La filosofía jurídica de Michel Villey.
Pamplona: Universidad de Navarra, 1990, p. 158/160.

137
Leituras Tomistas

tarefa judicial vai pouco espaço: analisar a justiça particular é


definir a arte do direito.
O ato próprio da justiça particular é não ficar com mais, nem
com menos do que lhe corresponde, de modo que seja bem
realizada, numa comunidade social, a repartição dos bens e das
cargas. Dizemos de um homem que ele é justo especialmente para
significar que ele tem o hábito de não tomar mais do que a sua
parte dos bens que se disputam em um grupo social ou menos que
sua parte do passivo, dos encargos, do trabalho.
A definição do direito traça os três aspectos essenciais da
tarefa judicial ou da arte do direito: 1) a repartição, b) os bens
externos, c) o grupo social. A repartição é o objetivo da arte do
direito; os bens externos a sua matéria; e o grupo social o seu
campo de aplicação.
O dikaion (direito), em grego clássico, é uma palavra de
gênero neutro, que indica uma coisa e não uma pessoa. Significa,
portanto, a coisa justa, e não a pessoa justa. A coisa justa é aquela
que deve ser atribuída à pessoa que a merece. A conduta justa do
homem justo (dikaios) é a justiça em mim, subjetiva, o direito
(dikaion) é a justiça fora de mim, no real, a própria coisa justa,
objetiva. O direito está assim fora do homem, in re, nas coisas
justas, de acordo com uma determinada proporção, o justo meio
objetivo.
Em um litígio, o direito será a justa parte que corresponde a
cada uma das pessoas envolvidas nele. Pode ser uma vantagem ou
uma desvantagem. Na visão aristotélica, a atribuição de uma
sanção é um direito. Por exemplo: o direito penal não tem por
função - ainda que alguns o pretendam - proibir o homicídio, o
roubo ou o infanticídio; essas proibições competem à moral. Um
jurado ou o Código Penal repartem as penas, a cada um a pena que
lhe corresponde.
O to dikaion é uma proporção (reconhecida como boa) entre
coisas repartidas entre pessoas; um proporcional (termo neutro),
um analagon. O direito consiste numa igualdade, um igual (ison).
Aristóteles acrescenta também ao to dikaion o justo meio
(meson). O justo meio é o que exige maior esforço. É mais fácil
deixar completamente de beber do que ficar na medida justa. O
justo meio não é uma baixada, mas um pico, o mais difícil de
atingir, entre dois lados de facilidade. A virtude da justiça está no

138
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

justo meio: se sou justo é porque eu não sou nem muito ávido de
aumentar minha parte, nem muito desleixado para não fazer valer
meus direitos. O direito é, pois, um "meio", um justo meio
objetivo, nas coisas, in re.
Para os gregos, o kosmos é ordenado, implica uma ordem. O
mundo não é somente constituído de causas eficientes ou por suas
causas materiais, mas também por causas formais ou finais. Como
o vaso do oleiro, ele é formado em função de uma finalidade.
Pode-se dizer que cada ser particular tem uma natureza. E esta
natureza é o que este deve ser, sua forma, seu fim, segundo o plano
da Natureza. Como explica Aristóteles:
A sociedade que se formou da reunião de
várias aldeias constitui a Cidade, que tem a
faculdade de se bastar a si mesma, sendo
organizada não apenas para conservar a
existência, mas também para buscar o bem-
estar. Esta sociedade, portanto, também está
nos desígnios da natureza, como todas as
outras que são seus elementos. Ora, a natureza
de cada coisa é precisamente seu fim. Assim,
quando um ser é perfeito, de qualquer espécie
que ele seja - homem, cavalo, família -, dizemos
que ele está na natureza. Além disso, a coisa
que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e
se aproxima mais do objetivo proposto deve
ser considerada a melhor. Bastar-se a si mesma
é uma meta a que tende toda a produção da
natureza e é também o mais perfeito estado.4

Num sentido próximo, a palavra natureza pode também


designar esse princípio, essa força, esse instinto inato que,
segundo tal filosofia, impulsiona o ser a realizar seu fim. A
observação da natureza é, portanto, mais que a observação dos
fatos da ciência moderna. Não é neutra e passivamente descritiva,

4
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 4.

139
Leituras Tomistas

implica o discernimento ativo dos valores. Isso equivale a distinguir o


que é justo segundo a natureza do que é, do mesmo ponto de
vista, ruim e injusto.
Aristóteles distinguia duas fontes das quais o direito
poderia provir: a natureza (physis) e o convênio humano (nomos).
O direito natural é a coisa justa proveniente da natureza das coisas
tomada em si mesma e também no modo em que se encontram
dispostas na vida social. O direito positivo é a coisa justa posta,
estabelecida socialmente pelo convênio humano, em consonância
com o que se percebe na natureza. A solução jurídica de um caso
concreto deve, normalmente, ser obtida através do recurso
conjunto a estas duas fontes, que não são consideradas opostas,
mas complementares: por um lado o estudo da natureza e, num
segundo momento, a precisa determinação do legislador ou do
juiz. Não há, portanto, oposição entre o justo natural e as leis
escritas do Estado; ao contrário, as leis do Estado exprimem e
completam o justo natural. O direito natural é um método
experimental. O direito natural para Aristóteles é flexível, não tem
conclusões rígidas, avança por posições flutuantes e mais ou
menos vagas.
Aristóteles distingue as duas espécies de operações onde a
justiça procura se exercer: a justiça distributiva e a justiça
comutativa.
O ofício primeiro da justiça é o de proceder à distribuição
dos bens, das honras e dos encargos públicos entre os membros da
polis. Nas distribuições, o devido se determina em relação à
finalidade do repartido e à relação dos sujeitos com essa
finalidade. O que mede a igualdade da repartição é a proporção
entre os sujeitos distintos e os bens repartidos. A igualdade no
tratamento dos doentes não está em dar a todos eles os mesmos
medicamentos, mas está em dar a cada um os medicamentos de
que necessita. Essa é a igualdade proporcional, uma igualdade
geométrica entre duas frações.
Na tarefa de atribuir um determinado benefício ou uma
determinada carga a uma pessoa, é preciso, em primeiro lugar,
atentar para o objetivo que aquele benefício ou carga vem a

140
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

cumprir na conjuntura social em que se encontra e, num segundo


momento, verificar se aquela pessoa ocupa uma situação social
condizente com a finalidade inscrita ao benefício ou à carga
naquela conjuntura social. Deste modo, a justiça distributiva
consiste em tratar os verdadeiramente iguais como iguais e os
desiguais como desiguais na medida em que se desigualam.
São os seguintes os critérios da distribuição: a) a condição; b)
a capacidade das pessoas em relação aos encargos; c) a aportação
de bens à coletividade e d) a necessidade.
A condição terá relevância quando em uma coletividade
existam diversas formas ou tipos pertencentes a ela (classes e
membros) Ex: é diferente na família a condição do pai e do filho.
Ao pai se deve então coisas diversas (respeito, obediência etc.).
Também em relação às funções diversas ocupadas pelos distintos
membros da coletividade são pertinentes coisas diversas.
Corresponde a cada qual o que pertence à sua função.
A proporção de justiça, no que atine à capacidade das
pessoas em relação aos encargos, consiste em impor as cargas e
distribuir as funções proporcionalmente à capacidade. Ex:
correção da tabela de imposto de renda, não se taxando o mínimo
existencial como renda tributável.
Na aportação de bens à coletividade é justo que quem mais
aporta à coletividade deve receber mais. Ex: é justo que quem
mais trabalha receba um maior salário.
Finalmente, na necessidade, é justo que receba mais quem
mais o necessita. Mas só é justo esse critério quando a necessidade
está em relação com a finalidade da coletividade e se combina com
os restantes critérios. Quando não se dão as indicadas condições, o
remédio da necessidade não é próprio da justiça, senão de outras
virtudes como a solidariedade, a liberalidade ou a misericórdia.
A justiça comutativa é a outra espécie da justiça particular, a
que zela pela retidão das trocas, pela igualdade aritmética em
matéria de intercâmbio de bens. No intercâmbio de bens, a relação
de igualdade dá-se quando a coisa que se deve dar é igual em
quantidade e qualidade (ou valor) à que saiu da esfera do sujeito
de atribuição. Na sanção em decorrência do intercâmbio de bens,

141
Leituras Tomistas

o ofício do juiz é o de calcular uma restituição igual ao dano que


foi suportado. A igualdade absoluta entre as coisas na justiça
comutativa tem sua base na igualdade entre as pessoas, tal como
se apresentam nessas relações de justiça. Em efeito, todas as
pessoas se apresentam perante o outro em sua nuda condição, que
é exatamente igual em todos. O campo de aplicação do justo é a
cidade; para Aristóteles o direito se realiza levando-se em
consideração o conjunto da cidade.
O direito antigo, assim pensado, não é rigorosamente
individual; não supõe para o indivíduo somente um ativo, só
vantagens; meu direito, isso que me deve ser dado, isso que eu
mereço, não é "subjetivo", não se refere somente a um indivíduo,
implica necessariamente uma relação entre indivíduos. É o
resultado de uma repartição. Na dicção de Aristóteles, o direito
apenas é um atributo da minha pessoa, não é exclusivamente meu
na medida em que é primordialmente o bem de outrem:

Considera-se que a justiça, e somente ela entre


todas as formas de excelência moral, é o ‘bem
dos outros’; de fato, ela se relaciona com o
próximo, pois faz o que é vantajoso para os
outros, quer se trate de um governante, quer se
trate de um companheiro da comunidade 5.

O direito - o justo de cada um - emerge de uma repartição


concreta, é uma proporção (justa, um igual [ison] ou analagon,
termo gramaticalmente neutro). Essa igualdade expressa,
consoante a matemática grega, uma cosmovisão integrada da
totalidade, não a constatação de uma simples equivalência de fato
entre quantidades, mas revela a harmonia, o valor do justo, uma
certa ordem que se discerne no caso mesmo e que se acha em
conexão, em última instância, com a ordem geral do mundo que é
a matéria da justiça geral. O direito nesse contexto não é, senão,

5
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília : Universidade de Brasília,
2001, p. 93.

142
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

uma coisa exterior ao sujeito, uma certa igualdade que reside nas
coisas, na realidade, in re, e que se extrai da observação da
natureza:

É uma outra passagem da Ética, que trata do


conhecimento do conteúdo da justiça. Sabe-se a
primeira resposta de Aristóteles: nós extraímos,
de resto, o justo da observação da natureza: ele
é as leis constituídas segundo a natureza. Há
um justo, há um direito natural. Ao método
subjetivo, que pretende deduzir a justiça dos
princípios da razão interna, vem se opor um
outro método, que a procura fora de nós
mesmos, no mundo exterior. Nós estamos aqui
no coração da doutrina do direito natural
(tradução livre).6

O direito não pode ser estimado senão do processo de


interrogação da natureza, de tentar reencontrar a ordem que ela
acolhe; ordem esta objetiva, e, portanto, jurídica. Para o direito
antigo, só a natureza é suscetível de dar às questões dos juristas
respostas substanciais.
No que concerne ao direito de propriedade, Aristóteles
prevê três combinações entre a propriedade e o seu uso: a)
propriedade privada e uso comum; b) propriedade comum e uso
privado e c) propriedade e uso comuns7. Ele não cogita da
propriedade privada e de uso privado. Para Aristóteles, a
justificação da propriedade diz respeito à perspectiva da política,
ou seja, ela é encarada como um requisito para a vida virtuosa do
cidadão. Três são os argumentos desenvolvidos por Aristóteles na
Política para justificar a propriedade. Na Política, I.4-10, ele
defende a propriedade na perspectiva da casa; depois, na Política
II.5, é discutido o sistema de propriedade que melhor convém à

6
VILLEY, Michel. Abrégé du droit naturel classique. Archives de Philosophie
du Droit. Paris, n. 06, p. 25-72, 1961, p. 45.
7
ARISTÓTELES. A Política. op. cit., p. 19-31.

143
Leituras Tomistas

cidade; e, por fim, na Política VII.9-10, é estabelecida uma conexão


entre propriedade e cidadania.
Na perspectiva da casa, Aristóteles apresenta uma
justificação instrumental da propriedade: aquele que está à frente
do governo da casa necessita da propriedade para desempenhar a
sua função, a qual consiste em prover ao sustento desta. Três
aspectos sobressaem no tratamento da propriedade nesse âmbito
da casa: a propriedade é uma relação dominial, um dos poderes
do senhor da casa sobre escravos, mulher e filhos; o segundo
aspecto é o de que a propriedade é uma propriedade do senhor da
casa, para realizar as funções desta e não do indivíduo enquanto
tal; o terceiro aspecto é o de que essa aquisição da propriedade é
natural em contraposição às aquisições artificiais, derivadas do
comércio. Aristóteles contrasta a arte de aquisição que visa
satisfazer às necessidades da casa e o caráter ilimitado das formas
de aquisição próprias do comércio8.
Aristóteles condena a aquisição artificial ou crematística que
ele identifica com o comércio. Esclarece que as coisas possuem
dois usos, um que é próprio e conforme à sua destinação e outro
desviado para algum outro fim. Para ele, o comércio é artificial e,
assim, a propriedade deve assegurar uma vida boa e não se
destina à troca ilimitada9.
Na Política II.5, Aristóteles justifica a propriedade já não no
contexto da casa, mas no âmbito da cidade e intenta responder à
seguinte pergunta: deve a propriedade ser tida em comum pelos
cidadãos ou em privado?
Aristóteles justifica a sua preferência pela opção que consiste
em combinar a propriedade privada e o uso comum com base nas
seguintes razões: a) a propriedade comum dá origem a discussões
e reclamações sobre o modo de distribuir as coisas; b) a
propriedade comum favorece a negligência de cada um no

8
BRITO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa
democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2007, p. 69-71.
9
ARISTÓTELES. A Política. op. cit., p. 23.

144
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

tratamento das coisas de todos e, pelo contrário, a propriedade


privada estimula que cada um se dedique ao que lhe é próprio; c)
a propriedade privada estimula os prazeres naturais, em
particular o amor próprio; d) a propriedade privada favorece a
amizade, pelo prazer que constitui ajudar e obsequiar os amigos;
e) a propriedade privada torna possível o exercício das virtudes,
como a generosidade e a moderação10.
Deste modo Aristóteles professa o entendimento que a
propriedade deve ser, de um modo geral, privada, mas comum
quanto ao seu uso. O uso comum não altera a natureza
essencialmente privada da propriedade, mas antes a pressupõe.
Assim, Aristóteles não é um defensor do caráter sagrado da
propriedade privada. Impõem-lhe limites. Embora prefira, pelas
razões apontadas atrás, a propriedade privada, combina-a com o
uso comum e com a partilha não obrigatória do uso dos bens,
assente no exercício da virtude da generosidade. Aliás, o Estado
ideal de Aristóteles assegura alguns serviços públicos a todos os
cidadãos, ricos ou pobres: educação, refeições, justiça e segurança.
Cabe, também, aos cidadãos mais ricos a distribuição de uma
parte das suas receitas pelos cidadãos mais pobres, não como uma
exigência do Estado, mas como uma conseqüência dos bons
costumes. Aristóteles dá o exemplo de Esparta, onde a posse da
propriedade é individual, mas onde se faz o uso comum dela
quando necessário. Aí, os escravos são usados em comum e,
quando necessário, também os cavalos. Embora cada cidadão
tenha a sua propriedade, uma parte dela é para uso dos amigos,
outra parte para uso de todos e, por fim, uma terceira parte só
para uso pessoal.
Finalmente, Aristóteles aponta uma outra razão de peso
para explicar sua preferência pela propriedade privada dos bens e
pelo seu uso comum: além do mais, há um imenso prazer gerado
pela posse da propriedade. Outra razão derivada daquela é o

10
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 73.

145
Leituras Tomistas

prazer que os amigos tiram da ajuda prestada aos amigos. Aqui,


Aristóteles invoca a importância da virtude da amizade para a
vida boa e a eudaimonia. Sem propriedade privada, os amigos ver-
se-iam incapazes de acudir às necessidades dos amigos e de
colocar ao serviço deles alguns dos bens: um ponto adicional é
que se tira grande prazer fazendo favores aos amigos, aos
estranhos e aos sócios e isto só é possível quando se tem
propriedade própria. Sem propriedades privadas, os cidadãos
ficariam impedidos de exercer duas virtudes essenciais à vida boa:
a amizade e a liberalidade.
Por fim, Aristóteles define o âmbito subjetivo da
propriedade, ou seja, quem deve ser proprietário. Para Aristóteles,
a cidadania deve ser restrita, no contexto da melhor cidade,
àqueles que têm a capacidade natural, a virtude e a
disponibilidade de desempenhar as funções militares e judicial-
deliberativas. Segundo Aristóteles, é conveniente que as
propriedades estejam em mãos dessas pessoas, pois é necessário
que os cidadãos tenham uma abundância de recursos e estas
pessoas (os militares e os que deliberam) são os cidadãos. As
classes vulgares, dos trabalhadores manuais, não participam da
cidadania. Por outro lado, a felicidade da cidade, necessariamente
acompanhada da virtude, deve ser extensível a todos os cidadãos
e não apenas a alguns. Assim, na cidade ideal, todos os cidadãos
devem ser proprietários e apenas eles o devem ser, tanto mais que
os membros das classes vulgares são escravos ou estrangeiros11.
Para Aristóteles, a propriedade justifica-se no âmbito da
política e os regimes políticos são naturais. Se a política tem como
finalidade a vida justa e feliz, isto é, a vida propriamente humana
digna de seres livres, então é inseparável da ética. É inconcebível
para ele a ética fora da comunidade política, pois nela a natureza
ou essência humana encontra sua realização mais alta. Aristóteles
valoriza a praxis definindo-a como ação voluntária de um agente

11
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 76/77.

146
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

racional em vista de um fim considerado bom. A praxis por


excelência é a política. Considerava ele na Ética a Nicômaco:

Se, em nossas ações, há algum fim que


desejamos por ele mesmo e os outros são
desejados só por causa dele, e se não
escolhemos indefinidamente alguma coisa em
vista de uma outra (pois, nesse caso, iríamos ao
infinito e nosso desejo seria fútil e vão), é
evidente que tal fim só pode ser o bem, o
melhor dos bens. Se assim é, devemos abarcar,
pelo menos em linhas gerais, a natureza do
Bem e dizer de qual saber ele provém.
Consideramos que ele depende da ciência
suprema e arquitetônica por excelência. Ora, tal
ciência é manifestamente a política, pois é ela
que determina, entre os saberes, quais são os
necessários para as Cidades e que tipos de
saberes cada classe de cidadãos deve possuir…
A política se serve das outras ciências práticas e
legisla sobre o que é preciso fazer e do que é
preciso abster-se; assim sendo, o fim buscado
por ela deve englobar os fins de todas as
outras, donde se conclui que o fim da política é
o bem propriamente humano. Mesmo se
houver identidade entre o bem do indivíduo e
o da Cidade, é manifestamente uma tarefa
muito mais importante e mais perfeita
conhecer e salvaguardar o bem da Cidade, pois
o bem não é seguramente amável mesmo para
um indivíduo, mas é mais belo e mais divino
aplicado a uma nação ou à Cidade12.

Assim, Aristóteles subordina o bem do indivíduo ao bem da


polis. Esse vínculo interno entre ética e política significava que as
qualidades das leis e do poder dependiam das qualidades morais

12
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. op. cit., p. 17.

147
Leituras Tomistas

dos cidadãos e vice-versa, das qualidades da Cidade dependiam


as virtudes dos cidadãos. Somente na Cidade boa e justa os
homens poderiam ser bons e justos; e somente homens bons e
justos são capazes de instituir uma Cidade boa e justa.
Deste modo, para Aristóteles não há virtude sem
propriedade, mas, ao mesmo tempo, não há propriedade sem
virtude. Para Aristóteles há um caráter inconciliável entre
comércio e vida política e, pelo contrário, uma conexão íntima
entre a casa como unidade econômica e a cidade. A aquisição
ilimitada, característica do comércio, é inconciliável com a vida
política orientada para a virtude13.
Portanto, Aristóteles coloca limites à propriedade privada,
submetendo-a ao interesse comum. Aliás, toda a ética aristotélica
constitui a defesa da primazia do bem comum face aos interesses
particulares. Ele distancia-se de Platão ao estabelecer os requisitos
para a unidade cívica da polis. Esta não passaria, como para
Platão, pelo estabelecimento de leis forçando o comunismo, mas
por uma educação pública através da qual se forma o caráter dos
cidadãos e, ao mesmo tempo, se permite que os mesmos atuem
com independência, designadamente através do controle de sua
propriedade. Uma vez que a educação ética constitui uma tarefa
absolutamente necessária ao processo de aquisição das virtudes
do caráter pelas novas gerações, tal empreendimento não pode ser
deixado entregue apenas às famílias. Aristóteles defende que a
educação deve ser uma tarefa da polis e que as leis devem ser um
instrumento de promoção das virtudes do caráter, punindo,
quando necessário, os comportamentos considerados vis e
exortando as pessoas a obedecerem à retidão, impondo os
necessários corretivos a quem se desviar dela.
Em conclusão, para Aristóteles a propriedade encontra-se
subordinada à política, é condição necessária de existência da polis
e, precisamente por esta razão, a cidade não pode violar as vidas

13
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 88.

148
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

privadas dos cidadãos e deve respeitar a sua propriedade, sob


pena de subverter as bases de sua própria existência14.

2. A propriedade em Tomás de Aquino

Resgatando o pensamento grego, Tomás de Aquino


considera também que a natureza humana age em direção a um
fim. Esse fim, porém, não é apenas a realização do homem na
polis, a eudaimonia. O finalismo de Tomás de Aquino não termina
na perfeição do Estado. Para Tomás, o animal vive e o homem vive
para. Não apenas para a polis, mas para um destino superior e
transcendente: o novo céu e a nova terra. É o prestígio, o
engrandecimento e, ao mesmo tempo, a superação da filosofia
grega. Para ele, a civitas é um meio, não um fim:

Sendo o fim último da vida humana a


felicidade ou a beatitude (cujo objeto é o sumo
bem, soberano e infinito - Q.2, art.VIII), há de
por força, a lei dizer respeito, em máximo grau,
à ordem da beatitude.
Demais a parte ordenando-se para o todo,
como o imperfeito para o perfeito; e sendo cada
homem parte da comunidade perfeita,
necessária e propriamente, há de a lei dizer
respeito à ordem para a felicidade comum.15

A referida idéia do homem como parte, estar subordinado


ao todo social, é expressa em termos bastante semelhantes
daqueles preconizados por Aristóteles. A subordinação moral do
indivíduo à sociedade, a superioridade metafísica e moral do
corpo social sobre o individual, do bem comum sobre o bem
particular é perfeitamente fundamentada, eis que:

14
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 91.
15
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. I. II. v. 4. São Paulo: Edições Loyola,
2005, q. 90, a.2.

149
Leituras Tomistas

a sociedade desfruta, pois, de uma


superioridade ontológica sobre o indivíduo. É
graças a ela, com efeito, que o homem pode
conservar-se, e expandir as fontes de sua
natureza; o homem necessita do concurso da
sociedade para ser plenamente homem. É
graças a ela ainda que o homem pode
desenvolver suas qualidades especiais e
individuais como artesão, patrão, magistrado,
homem político. Em uma palavra, a sociedade,
na sua complexidade, realiza a perfeição
máxima da espécie. Ela tem, pois, valor em si e
por si; ‘Ela é soberanamente digna de ser
amada’, e seu bem, sendo o bem da espécie, a
coloca acima do bem dos indivíduos.16

Deste modo, em Tomás de Aquino não ocorre a diluição da


pessoa dentro do contexto social. A superioridade do todo social
só existe na medida em que proporciona às partes condições de,
em conjunto, perfazendo o próprio todo, alcançar esse fim do
modo mais perfeito. Assim, à autoridade social, na qualidade de
representante desse todo, não é lícito exigir das partes
subordinação naquilo que contrarie a ordem natural das mesmas
partes relativamente aos fins a que se destinam. Entende assim
Tomás de Aquino que toda lei contrária à razão é mais uma
iniqüidade que uma lei e, em tese, não obriga no foro da
consciência:

As leis injustas podem sê-lo de dois modos.


Um modo, por contrariedade ao bem
humano... E o podem ser: pelo fim, como
quando um chefe impõe leis onerosas aos
súditos...; Ou também pelo autor, quando
impõe leis que ultrapassam o poder que lhe foi

16
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. I. II. v. 4. São Paulo: Edições Loyola,
2005, q. 50, 4.

150
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

concedido; ou ainda pela forma, p. ex., quando


impõe desigualdade, ônus ao povo... E estas
são, antes, violências que leis, pois como diz
Santo Agostinho, não se considera lei o que não
for justo.
Por onde tais leis não obrigam no foro da
consciência, salvo, talvez, para evitar escândalo
ou perturbações... (naturalmente, entendemos
nós, quando isso venha a constituir um mal
maior). De outro modo, as leis podem ser
injustas por contrariedade com o bem divino...
E tais leis de modo algum devem ser
observadas, porque, como diz a Escritura,
importa obedecer antes a Deus que aos
homens. 17

Na questão das relações entre o todo social e as pessoas que


lhe são partes, o todo ali referido é do tipo prático, que se realiza
em função de um fim, em virtude da consecução de um bem. Na
verdade, é um conjunto de forças individuais, particulares, que se
articulam e se unem sob uma ordem comum, na perspectiva de
produzir um fim transcendente, superior a todas as energias
particulares das quais ela é produto. Na verdade, seria a junção
das partes, que se unem sob uma direção comum, formando um
todo, visando uma realização coletiva. Assim, cada pessoa, sem
renunciar à procura do seu próprio bem, contribui com a sua
força, fornece parte da sua energia, submetendo-se consciente e
voluntariamente ao conjunto e à sua finalidade.
A discussão da propriedade em Tomás de Aquino se dá nos
quadros da lei natural, na qual tem a sua referência mais
expressiva.
Consoante bem gizado por Daniel Pêcego, a definição
tomista de lei é essencialmente “certa regra e medida dos atos,

17
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. I. II. v. 4. op. cit., q. 96, 4.

151
Leituras Tomistas

segundo a qual alguém é levado a agir ou apartar-se da ação”.18 Como a


razão é a norma suprema dos atos humanos, cabendo a ela
ordená-los ao fim, patenteia-se que a lei é algo pertencente à
razão.
Nesse sentido, a lei natural nada mais é do que o exercício
participativo da criatura racional na lei eterna, mediante certos
princípios comuns. É natural porque não procede de fatores
culturais, mas da estrutura psicológico-moral do ser humano. Por
isso, pode ser dita universal e imutável. Pode ser definida como o
conjunto de leis racionais que expressam a ordem das tendências
ou inclinações naturais aos fins próprios do ser humano, aquela
ordem que é própria do homem enquanto pessoa. Por isso, Tomás
poderá afirmar que os preceitos do Decálogo são os primeiros
preceitos da lei, aos quais a razão natural presta imediato
assentimento como aos princípios mais evidentes de todos.
O homem tem um ser objetivo e, na medida em que a ordem
moral é a ordem do ser, a moralidade consiste em uma ordem
objetiva e não um mero produto imanente da consciência. A lei
natural expressa as exigências objetivas da natureza humana,
necessidades de bem e de justiça. Essa lei natural tem papel
semelhante, na razão prática, ao exercido pelos primeiros
princípios indemonstráveis naturalmente conhecidos da razão
teórica. A partir desses preceitos gerais da lei natural são
produzidas conclusões para dispor mais particularmente das
coisas. Uma das funções específicas da lei natural é de ser a base
do ordenamento jurídico e da ordem política. Segundo Javier
Hervada, o que é a Constituição para o sistema de leis positivas –
critério de validade e inspiração – o é a lei natural em relação a
todo o sistema.

18
PÊCEGO, Daniel Nunes. A lei e a justiça na Suma Teológica. Revista Aquinate.
Eletrônica. 2008, vol.6, p.160-178. ISSN 1808-5733. pp. 165/167. Disponível
em: http://www.aquinate.net/revista/edicao_atual/Artigos/06/Artigo%209-
Pecego.pdf . Acesso em 05.02.2014.

152
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

Por isso também, a verdadeira lei, seja ela promulgada por


toda a multidão, seja por quem lhe faz as vezes, sempre se ordena
para o bem comum e não ao “fim do indivíduo enquanto tal”.
Como ela é um ato da razão e apela à liberdade humana,
demanda ser de algum modo conhecida, daí a necessidade de sua
promulgação. A lei tem como efeito próprio tornar bons aqueles a
quem ela é dada. Nesse sentido, é conveniente enumerar entre os
atos próprios da lei o “ordenar” atos virtuosos, “proibir” atos
viciados, “permitir” atos indiferentes e “punir”, induzindo a que
seja obedecida.
O modo pelo qual o homem chega ao conhecimento da lei
natural é assemelhado àquele pelo qual alcança o conhecimento
dos primeiros princípios da razão especulativa. Não é um
conhecimento infuso, inato ou dado por uma graça especial, nem
mesmo um conhecimento dedutivo. São princípios auto-evidentes
e indemonstráveis, cuja retidão a inteligência percebe
imediatamente. O entendimento humano é capaz de conhecer
verdadeiramente a lei natural ao conhecer a natureza humana e
suas inclinações naturais.
Os meios de captação da lei natural não são o raciocínio e a
argumentação, mas o conhecimento por evidência. A razão prática
apenas transforma em preceito a inclinação natural. Assim, o que
provém dos primeiros princípios por via de dedução é
pertencente aos ius gentium. O que provém por determinação
pertencerá à lei humana. A determinação é uma opção entre as
distintas possibilidades que se abrem ao homem para cumprir
muitos preceitos da lei natural. A conclusão dedutiva, porém, se
dá através de um juízo silogístico prático19.
Embora apenas uma pequena seção da Suma Teológica seja
especialmente consagrada ao tema da propriedade, a discussão
desta se espraia, em oportunidades diversas, em todo o texto do
Aquinate.

19
PÊCEGO, Daniel Nunes. idem.

153
Leituras Tomistas

Como explicado, Tomás de Aquino afirma a base para o seu


tratamento da lei natural em princípios auto-evidentes da prática
consoante à reta razão. O primeiro princípio da razão prática é
fundado sobre a noção de bem; o bem é o que todas as coisas
procuram. Portanto, o bem é para ser feito e o mal evitado (bonum
est faciendum et prosequendum, et malum vitandum)20. Todos os
outros preceitos da razão prática fundam-se nesse princípio. Esse
princípio auto-evidente, interpretado pela razão prática dos
homens, corresponde às inclinações naturais da humanidade.
Deste modo, o homem, assim como todas as criaturas, visa à auto-
preservação do seu próprio ser, consoante a sua natureza, e este
preceito se coaduna com a lei natural.
Entretanto, naquilo que é pertinente à propriedade privada,
a aplicação do princípio universal de fazer o bem e evitar o mal
está sujeito às condições e às circunstâncias de cada caso. Em
princípio, é justo e certo agir de acordo com a razão e a isso, por
exemplo, segue-se que as mercadorias confiadas a outrem devem
ser restituídas ao seu proprietário. Agora, isso é verdade para a
maioria dos casos, mas pode acontecer que, em um caso
específico, isso seria prejudicial e, por conseguinte, irrazoável.
Deve-se arrestar, por exemplo, armamentos de estrangeiros, se
eles são requeridos com a finalidade de lutar contra a pátria21.
Assim, há uma necessidade quanto aos bens de um exercício
prático da sabedoria ou prudência, uma vez que os princípios
gerais do direito natural não podem ser aplicados a todos os
homens da mesma forma, tendo em vista a grande variedade de
assuntos humanos e, conseqüentemente, surge a diversidade das
leis positivas entre os diversos povos.
A propriedade e seus regimes podem variar muito devido à
pluralidade das circunstâncias e condições humanas. Para
Aquino, é a inclinação conatural, não aprioristicamente a dedução
racional, mas um exercício da razão prática, conatural de

20
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. I. II. v. 4. op. cit., q. 94, 2.
21
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. I. II. v. 4. op. cit., q. 94, 4.

154
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

conhecimento, aquilo que fornece as razões humanas para a


descoberta dos preceitos do direito natural e que aprende a agir
de acordo com esses princípios.
Para Tomás de Aquino, a propriedade não pertence à
primeira categoria, aos princípios auto-evidentes. Sendo a justiça a
vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu, a regra de
justiça corresponde às relações dos homens uns com os outros.
Porém, toda justiça é concernente a certas relações externas, a
saber, de distribuição e de troca de bens externos, quer sejam
coisas ou obras. Dadas essas características, da natureza corpórea
das trocas, é impossível conter esse "meum" e "tuum" (meu e teu)
em termos puramente abstratos. Assim, a propriedade assumiu o
seu lugar na ordenação humana das coisas.
Deste modo, o direito assume dois sentidos. Um absoluto
primário, como o da relação dos pais para com os filhos, uma
relação proporcional para a nutrição e o bem-estar das crianças,
uma característica compartilhada com as outras criaturas
inferiores, não racionais. Em seguida, outro sentido relativo
secundário derivado do primeiro, como no caso da propriedade:
uma coisa é naturalmente compatível com outra pessoa não
considerada absolutamente, mas de determinada maneira em
relação às outras.
Se um determinado lote de terras, considerado
absolutamente, não tem nenhuma razão para pertencer a um
homem mais do que a outro, considerado em relação à forma de
uso da terra e à adaptabilidade à cultura agrícola, é certo que há
uma certa proporção a ser de propriedade de um e não de outro
homem, como Aristóteles demonstrou.
Assim, em Tomás de Aquino a instituição da propriedade
deriva da lei natural, mas não se eleva a uma lei da natureza em si
mesma porque não tem a qualidade de mútua imediação entre as
pessoas, imediação esta que forma a base adequada para o direito
natural.

155
Leituras Tomistas

3. O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

Ao discutir a propriedade, Tomás de Aquino começa por


indagar, na questão 66 da Secunda secundae da Suma Teológica, “se
é natural ao homem possuir coisas externas”22. Frisa ele a natureza
dupla das coisas externas. Em primeiro lugar diz que o domínio
principal sobre todas as coisas pertence a Deus que, em sua
providência, destinou ao homem o natural domínio dos bens
externos dado que este, por sua razão, é capaz de utilizá-los para
sua utilidade, uma vez que os seres menos perfeitos existem para
os mais perfeitos. Isso significa que o homem, colocado em uma
posição superior na ordem ontológica, tem uma natural soberania
das coisas externas no que diz respeito a fazer a utilização das
mesmas, que se destinam ao sustento do corpo do homem23.
No que se refere à relação do homem com os bens exteriores,
a este compete uma dupla atribuição. A primeira, o poder de gerir
e dispor dos bens. Tem o homem o poder de adquirir bens e
distribuí-los e, assim, é lícito este possuir alguma coisa como
própria. Constitui-se em princípio fundamental à vida humana
por três razões. Primeiro é que cada um é mais solícito em
administrar o que lhe pertence, do que o comum a todos.
Segundo, as coisas humanas são mais bem cuidadas quando cada
um emprega o seu cuidado em administrar uma coisa
determinada. Terceiro, porque cada um cuidando do que é seu de
maneira mais satisfatória, reina a paz entre os homens, uma vez
que as querelas surgem com mais freqüência onde não há divisão
das coisas possuídas24.
Portanto, Aquino, seguindo Aristóteles, assegura, consoante
a prudência, a legalidade e a necessidade da propriedade privada
no âmbito da atual condição humana em termos de maior

22
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II. II. v. 6. São Paulo: Edições Loyola,
2005, q. 66, 1.
23
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 156.
24
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 158.

156
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

benefício para o bem comum e, ainda, na orientação dos bens para


a ordem, eficiência, segurança e paz, não desconectada dos
valores instrumentais da moderna liberdade. Assim, o estado de
direito obriga à conclusão que o regime da propriedade privada
provê, via de regra, o melhor meio para o florescimento da
sociedade humana.
A segunda atribuição que compete ao homem em relação
aos bens exteriores é quanto ao uso deles. Aqui, Tomás de Aquino
reduz significativamente a extensão e o alcance do regime da
propriedade privada da propriedade: “sob esse aspecto, o homem
não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas como
comuns, neste sentido que, de bom grado, cada um as partilhe
com os necessitados”25. A idéia do Aquinate não é minar aquilo
que foi dito antes sobre a natureza da propriedade privada, mas
sim para colocá-la em um quadro equilibrado, no qual os poderes
de utilização estejam em consonância com o bem-estar da
comunidade, do qual o homem é parte. O tratamento da
propriedade não é completo sem a direção externa e inclinação
pela qual o direito de uso da propriedade está necessariamente
obrigado - sua teleologia. Deste modo, a principal exigência da
justiça, a de dar a cada um o que é seu, significa algo bem além de
um libertário atomismo que ignora o bem comum: “os bens
temporais outorgados por Deus ao homem são, certamente, de
sua propriedade; o uso, ao revés, deve ser não somente seu, senão
também de quantos possam sustentar-se com o supérfluo dos
mesmos”26.
Assim, Aquino acrescenta ao dictum aristotélico que é
melhor ter a propriedade privada, mas fazer o uso dela comum.
Os princípios da filantropia e assistência de bem-estar
humanitária surgem para Aquino não como uma achega a uma

25
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 158.
26
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II. II. v. 5. São Paulo: Edições Loyola,
2005, q. 32, 5.

157
Leituras Tomistas

teoria de governo, mas sim como uma característica da


propriedade privada27.
Portanto, o outro lado da moeda da posse privada dos bens
externos era a obrigação, que Aristóteles também já tinha
reconhecido, como a justificação primária da propriedade privada,

27
Como bem se expressa, com fundamento no Aquinate, Leão XIII em 1891 em
sua Encíclica Rerum Novarum: “E não se apele para a providência do Estado,
porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o
homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua
existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o
facto de que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar,
porque Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem
confusamente todos juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa,
unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem em particular,
mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às
instituições dos povos. Aliás, posto que dividida em propriedades particulares,
a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, atendendo a que não
há ninguém entre os mortais que não se alimente do produto dos campos.
Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar,
com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às
necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma
parte lucrativa cuja remuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da terra,
com os quais ela se comuta. De tudo isto resulta, mais uma vez, que a
propriedade particular é plenamente conforme a natureza. A terra, sem dúvida,
fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação
da sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las
sem a cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem,
consumindo os recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar
esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da
natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua
pessoa, a ponto que, com toda a justiça, esse bem será possuído de futuro
como seu, e não será lícito a ninguém violar o seu direito de qualquer forma
que seja.”

158
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

de criar o espaço para o exercício das virtudes da caridade e da


assistência aos desvalidos.
A legitimidade da propriedade se funda a partir da
distinção entre o “poder” (potestas) de gerir as coisas e delas
dispor e o dever moral de utilizá-las (usus) em proveito de todos.
Ao estabelecer que é permitido e mesmo necessário que o homem
possua as próprias coisas, Tomás faz da propriedade um
verdadeiro “poder”, um verdadeiro direito, de tal modo que o
roubo será caracterizado como uma injustiça, pois atenta contra
esse direito. O “uso” (usus) exprime a finalidade a perseguir e a
maneira de realizar o exercício desse poder. É porque possui o
verdadeiro poder e o verdadeiro direito de possuí-los que o
homem deve utilizar os bens como “sendo comuns”, numa
disposição virtuosa de “compartilhá-los com os necessitados”.
“Poder” e “uso” formam uma espécie de dupla instância do
mesmo direito-dever do qual o homem está investido, no plano
ético e jurídico28.
Nessa explicação compatibilística da propriedade, o
interesse privado individual do proprietário e o maior interesse
público da sociedade ocupam uma harmônica coexistência teórica.
A summa divisio entre privado versus público aparece como uma
falsa dicotomia fora da orientação da virtude que assegura a
prevenção do colapso em um atomístico egoísmo.
Os bens que alguns têm em superabundância são devidos
assim, por direito natural, para o sustento dos pobres, como
esclarece Aldo Francisco Migot:

Os bens que o homem tem são legítimos desde


que tenham a finalidade de lhe garantir o um
espaço vital digno e suficiente para a vida
pessoal e social. Se os bens, por direito natural,
pertencem a todos, cada indivíduo tem direito
à sua parte, sem o que não se cumpriria a

28
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 158, nota d.

159
Leituras Tomistas

destinação universal, ao menos se se considerar


que possuir e desfrutar tudo em comum não é
prescrição de direito natural, nem é possível na
prática.
Tudo o que ultrapassa a necessidade do espaço
vital e tudo aquilo que não é bem administrado
ou que, por qualquer razão, pela extensão ou
pelo mau uso, prejudicar a outrem, deve ser
submetido aos critérios da comunidade, isto é,
do bem comum. Salientando que o comum e o
que é direito de todos, segundo Tomás, é
sempre prioritário29.

Assim sendo, evidentemente, grande parte do argumento


tomista de compatibilidade depende da manutenção de um curso
aristotélico de moderação, definido dentro de uma ordem de
valor, no qual o ganho de propriedade nunca é permitido se
suficiente para tornar-se um fim em si mesmo, mantendo-se a
finalidade da vida virtuosa sempre claramente em vista.
Provavelmente, consoante Tomás de Aquino, a capacidade de
qualquer Estado para implementar em suas leis as regras morais
que conduzam à excelência irá mudar amplamente segundo “a
grande variedade de assuntos humanos”. Mas desde que os
direitos humanos sejam enquadrados tendo em vista toda a
multidão de seres humanos, “a maioria dos quais não está em
virtude perfeita”, as leis atingirão os seus objetivos e a
propriedade será regulada conforme a natureza das coisas.
Para Tomás de Aquino, o sistema de propriedade privada
subordinado a um regime de uso comum constitui a base da
ordem política, como em Aristóteles. Nesse contexto, o princípio
da propriedade privada enquanto princípio moral reclama a sua
articulação com outro princípio moral, o dever dos membros da

29
MIGOT, Aldo Francisco. A propriedade: natureza e conflito em Tomás de
Aquino. Caxias do Sul: EDUCS, 2003, p. 89.

160
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

comunidade política concorrerem individualmente para o uso


comum das coisas30.
Tomás de Aquino, ao tratar na questão 32 da Secunda
secundae do dever de privação em benefício de outrem esclarece
que: 1) é dever de justiça pôr os bens supérfluos em comum com
aqueles que se encontrem em extrema necessidade; 2) é dever de
justiça suportar que quaisquer bens próprios sejam usados por
alguém em situação de extrema necessidade; 3) é apenas ato
superrogatório pôr em comum, ativa ou passivamente, o
supérfluo em relação àqueles que estão em situação de
necessidade, embora não extrema31.
Há que se atentar também em Tomás de Aquino para a
singularidade do objeto, a terra. A terra é um recurso que se pode
explorar com exclusividade, mas não é propriamente uma
mercadoria. Ela tem conotações sociais, culturais e ideológicas que
a tornam singular32. Deste modo, não há possibilidade de se falar
em uma propriedade da terra que leve a uma completa
despersonalização e autonomização como mercadoria.

30
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 173.
31
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 176/177.
32
Como se vê em Fustel de Coulanges: “Como o caráter de propriedade privada
está manifesto em tudo isso! Os mortos são deuses que pertencem apenas a
uma família, e que apenas ela tem o direito de invocar. Esses mortos tomaram
posse do solo, vivem sob esse pequeno outeiro, e ninguém, que não pertença à
família, pode pensar em unir-se a eles. Ninguém, aliás, tem o direito de privá-
los da terra que ocupam; um túmulo, entre os antigos, jamais pode ser mudado
ou destruído; as leis mais severas o proíbem. Eis, portanto, uma parte da terra
que, em nome da religião, torna-se objeto de propriedade perpétua para cada
família. A família apropriou-se da terra enterrando nela os mortos, e ali se fixa
para sempre. O membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente:
Esta terra é minha. — E ela lhe pertence de tal modo, que lhe é inseparável,
não tendo nem mesmo o direito de desfazer-se dela. O solo onde repousam
seus mortos é inalienável e imprescritível. A lei romana exige que, se uma
família vende o campo onde está o túmulo, continua no entanto proprietária
desse túmulo, e conserva eternamente o direito de atravessar o campo para
nele cumprir as cerimônias do culto” COULANGES, Fustel de. A cidade antiga.
São Paulo : Martins Fontes, 1987, cap. VI – O direito de propriedade.

161
Leituras Tomistas

Mesmo no Ocidente, na antiga Atenas, a posse da terra e a


cidadania estavam indissoluvelmente ligadas, pois apenas os
cidadãos podiam possuir terras e apenas os donos de terras
podiam ser cidadãos: não-cidadãos podiam se dedicar às finanças
e ao comércio, arrendar terras e minas, mas não podiam possuir
imóveis33.
Em Tomás de Aquino, portanto, o reconhecimento da
propriedade privada não exonera o proprietário da
responsabilidade moral por exigências de justiça, que não é assim
encarada como um problema exclusivo do sistema político34.

4. A função social da propriedade em


Tomás de Aquino

Em Direito Civil divergem os doutrinadores em conceituar


quais são os fundamentos teóricos que fariam afinal com que o
direito de propriedade obrigasse, superando-se a noção de direito
subjetivo, que, afinal, expressaria, mais do que o próprio direito
em si, a liberdade do homem.
Há autores que, ainda no plano do subjetivismo, irão propor
a transmutação moderna do conceito de direito subjetivo pelo de
situação jurídica, como em Paul Roubier:

(...) Chegado a esse ponto de nossa exposição,


nós começamos a tomar consciência, mais
claramente do que não havíamos ainda visto
até agora, do entrecruzamento de direitos e
deveres que caracteriza a organização jurídica.
É esse entrecruzamento que conduziu, nos
autores contemporâneos, a tomar por base de
suas construções a noção de situação jurídica
mais do que aquela do direito subjetivo. A
situação jurídica se apresenta a nós como

33
PIPES, Richard. Propriedade e liberdade. São Paulo: Record, 2001, p. 129.
34
BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 251.

162
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

constituindo um complexo de direitos e


deveres; ora, esta é uma posição infinitamente
mais freqüente que aquela de direitos
existentes no estado de prerrogativas
desimpedidas, ou de deveres aos quais não
correspondam nenhuma vantagem (tradução
livre)35

Também é o caso de Pietro Perlingieri:

no vigente ordenamento não existe um direito


subjetivo - propriedade privada, crédito,
usufruto - ilimitado, atribuído ao exclusivo
interesse do sujeito, de modo tal que possa ser
configurado como entidade pré-dada, isto é,
preexistente ao ordenamento e que deva ser
levada em consideração enquanto conceito, ou
noção, transmitido de geração em geração. O
que existe é um interesse juridicamente
tutelado, uma situação jurídica que já em si
mesma encerra limitações para o titular36

Esse último autor classifica mesmo a propriedade como uma


situação subjetiva complexa centro de interesses que enfeixa

35
“Arrivés à ce point de notre exposé, nous commençons a prendre
conscience, plus nettement qu’on ne l’a encore fait jusqu’ici, de
l’entrecroisement des droits et des devoirs, qui caractérise l’organisation
juridique. C’est cet entrecroisement qui a abouti, chez les auteurs
contemporains, à prendre pour base de leurs constructions la notion de la
situation juridique plutôt que celle de droit subjectif. La situation juridique se
présente à nous comme constituant un complexe de droits et de devoirs; or,
c’est là une position infiniment plus fréquente que celle de droits existant à
l’état de prérrogatives franches, ou de devoirs auxquels ne correspondrait
aucun avantage”. ROUBIER, Paul. Droits subjectifs et situations juridiques. Paris:
Dalloz, 1963, p. 52.
36
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 121/122.

163
Leituras Tomistas

poderes, deveres, ônus e obrigações, e cujo conteúdo depende de


interesses extraproprietários, apurados no caso concreto:

Em substância, portanto, a propriedade não é


tão somente um poder da vontade, um direito
subjetivo que compete sem mais nada a um
sujeito, mas é, ainda mais, uma situação
jurídica subjetiva complexa (tradução livre) 37

Não obstante, esta abordagem, ao não aprofundar os


fundamentos teóricos do porquê a propriedade obriga, resvala em
uma solidariedade definida abstratamente e funda-se, em
derradeiro, na positividade constitucional:

Em um sistema inspirado na solidariedade


política, econômica e social e no pleno
desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o
conteúdo da função social assume um papel do
tipo promocional, no sentido de que a
disciplina das formas de propriedade e as suas
interpretações deveriam ser atuadas para
garantir e para promover os valores sobre os
quais se funda o ordenamento. E isso não se
realiza somente finalizando a disciplina dos
limites à função social. Esta deve ser entendida
não como uma intervenção ‘em ódio’ à
propriedade privada, mas torna-se ‘a própria
razão pela qual o direito de propriedade foi
atribuído a um determinado sujeito’, um
critério de ação para o legislador, e um critério
de individuação da normativa a ser aplicada
para o intérprete chamado a avaliar as

37
“In sostanza, quindi, la proprietá non è piú soltanto un potere della volontà,
un diritto soggettivo che spetta tout-court ad un soggeto, ma è ancor piú di una
situazione giuridica soggetiva complessa”. PERLINGIERI, Pietro. Introduzione
alla problematica della proprietà. Camerino: Jovene, 1971, p. 101.

164
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

situações conexas à realização de atos e de


atividades do titular38.

Uma coisa é o problema da conformação do


estatuto proprietário, outra é aquela da
expropriação. [...] Não é possível, portanto,
chegar a propor um estatuto proprietário
conformativo que seja substancialmente
expropriativo (fala-se em conformação da
propriedade privada quando os limites legais
não tocam o conteúdo mínimo; de
‘expropriação’ no caso oposto). A conclusão
pela qual é preciso falar em conteúdos
mínimos da propriedade deve ser interpretada
não em chave jusnaturalista, mas em relação à
reserva de lei prevista na Constituição, a qual
garante a propriedade, atribuindo à lei a tarefa
de determinar os modos de aquisição, de gozo
e os limites, com o objetivo de assegurar a
função social e torná-la acessível a todos39.

Deste modo, cabe enfrentar o problema complexo da


fundamentação teórica da função social da propriedade, tendo
como elemento norteador e prático a concepção tomista acerca do
direito de propriedade.
Neste autor, cabe ressaltar que existe um conflito sobre bens
e sobre os títulos de atribuição quanto ao uso destes. Como
definido em Tomás de Aquino, a propriedade é propriedade
segundo o uso e não segundo a substância mesma dos bens. Uma
propriedade é legítima se está em conformidade com os limites
impostos pelo bem comum, pela destinação universal, sempre
anterior a qualquer uso particular. Deste modo, a função social
existe, primeiramente, nos bens objeto do direito de propriedade,

38
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
constitucional. op. cit., p. 226.
39
Idem, p. 231.

165
Leituras Tomistas

para depois se ver destacada e atingida plenamente com o


exercício do direito de propriedade sobre eles, conforme o estatuto
proprietário reconheça ou não a função social deste direito:

A terra é, reconhecidamente, bem de produção;


e o que a terra produz ou pode produzir está
intimamente ligado à sobrevivência dos seres.
A obrigação de fazê-lo e o modo de atingir este
desiderato estão na base do campo de atuação
do Direito Agrário e, conseqüentemente, no
fenômeno agrário.
Começa-se com a denominada função social da
terra, por alguns equivocadamente
denominada função social da propriedade, em
Direito Agrário, trocando o continente pelo
conteúdo, pois a função social da terra é o
gênero, do qual a função social da propriedade
é
espécie, como o são também a função social da
posse, a função social dos contratos etc. 40

Cada coisa que existe na natureza tem uma função natural.


A solução jurídica de um caso concreto deve, normalmente, ser
obtida através do recurso conjunto a estas duas fontes, que não
são consideradas opostas, mas complementares: por um lado o
estudo da natureza e, num segundo momento, a precisa
determinação do legislador ou do juiz. A função de cada bem
expressa a ordem das tendências ou inclinações naturais aos fins
próprios do ser humano, aquela ordem que é própria do homem
enquanto pessoa. A terra visa a garantir ao homem um espaço
vital digno e suficiente para a vida pessoal e social. Também os
bens supérfluos de uma pessoa são todos tidos em comum, no

40
LIMA, Getúlio Targino. A posse agrária sobre bem imóvel, São Paulo: Saraiva,
1992, p.42.

166
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

sentido em que o respectivo dono tem o dever de justiça de dispor


deles para o benefício daqueles em necessidade, como os pobres41.
Como pontua Judith Martins-Costa, a atribuição de função
social aos bens enseja, em nossa mente antropocêntrica, centrada e
concentrada na idéia de ‘direito subjetivo’, um verdadeiro giro
epistemológico, para que passemos a considerar o tema a partir do
bem, da res, e de suas efetivas utilidades42.
A questão, portanto, a ser enfrentada é a de se existe um
direito dos homens a apropriação em comum dos bens exteriores,
sem especificação de direito de propriedade particular por parte
de indivíduos, famílias ou grupos. Por certo que sim, como
salientam Aristóteles e Tomás de Aquino. A instituição da
propriedade privada é do domínio do ius gentium, faz parte do
direito comum das comunidades humanas, e está regulada pela
política da cidade que pressupõe a necessidade da instituição da
propriedade privada para uma vida social justa. Alguma divisão
da propriedade entre grupos e indivíduos – mas ainda não uma
divisão específica e detalhada a qual releva o direito positivo – é
um requisito moral prévio à decisão humana43.
Contudo, se isso é verdade, cabe indagar: em uma
concepção tomista de direito de propriedade, se os bens exteriores
são destinados aos homens em comum, quais são os fundamentos
pelos quais é lícito possuir as coisas como próprias? Trata-se do
confronto entre a propriedade sem função social com a posse com
função social.
Via de regra, em nosso sistema jurídico, concebidos os
julgamentos de maneira estritamente formal, o direito positivo
sempre tratou como digno de proteção definitiva o direito de

41
FINNIS, John. Aquinas: moral, political and legal theory. Oxford: Oxford
Universitary Press, 1998, p. 191.
42
MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes teóricas do novo Código Civil Brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2002, p. 148.
43
FINNIS, John. Aquinas: moral, political and legal theory. Oxford: Oxford
Universitary Press, 1998, p. 200.

167
Leituras Tomistas

propriedade, conferindo à posse uma proteção meramente


provisória, reconhecido aos possuidores tão-somente o direito ao
recebimento das benfeitorias e acessões realizadas na coisa44.
Para Tomás de Aquino, ao revés, os bens são
originariamente destinados a todos em comum. Assim, concorrem
a estes o proprietário reivindicante e os possuidores utilizadores.
Sobre a propriedade é reconhecida, como qualidade intrínseca,
uma função social, fundada e justificada precisamente pelo
princípio da destinação universal dos bens. O homem realiza-se
através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume
como objeto e instrumento as coisas do mundo e delas se
apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa
e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem
empenha-se não só para proveito próprio, mas também para dos

44
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação
Cível nº 1996.001.01195. 3ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Antonio
Eduardo F. Duarte. Julgamento em 14 de maio de 1996. Ação reivindicatória.
Cumulação com perdas e danos. Prova do domínio. Posse injusta caracterizada.
Retenção por benfeitoria. Inadmissibilidade. Ausência de cerceamento de
defesa e de julgamento "ultra petita". Denunciação da lide ao alienante.
Descabimento. Apelos improvidos. O registro imobiliário prova o domínio e,
sendo o imóvel devidamente individuado, procede a reivindicatória contra o
terceiro que injustamente o detém, visto que tal ação deve ser proposta em
face de quem quer que se oponha em antagonismo com o direito de
propriedade, porquanto, na disputa entre a posse e a propriedade, prevalece o
direito de propriedade (Codigo Civil, artigo 524). Evidenciada a invasão e a
clandestinidade, justa não pode ser a posse, o que não autoriza a alegação de
ignorância de se estar praticando o ato, para pretender o reconhecimento do
direito de retenção por benfeitorias, inclusive em tais hipóteses, tanto mais
quando já integrantes do bem imóvel reivindicado, assim como impõe-se aos
invasores a obrigação de indenizar as perdas e danos decorrentes e pleiteadas.
Nessas circunstancias, afastado fica o julgamento "ultra petita", como também,
porque desnecessária a prova pericial, inocorre a alegação de cerceamento de
defesa, descabendo, ademais, a denunciação da lide ao alienante, uma vez que
não se acha presente a hipótese do artigo 70, inciso I do CPC.

168
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua


família, da comunidade de que faz parte, e, em última instância,
da humanidade inteira, além disso, colabora para o trabalho dos
outros, numa cadeia de solidariedade que se alarga
progressivamente.
A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial
como agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil;
pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou
serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho
que não provém da expansão global do trabalho humano e da
riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração,
da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do
trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e
não pode receber tutela jurídica.
Portanto o direito de propriedade não é um absoluto formal,
mas só se justifica se a ele é dado um uso social e na medida dessa
justificação, mormente naquela classe de bens que não se destina
primordialmente ao mercado, como é o caso da terra.

O cumprimento da função social da


propriedade, deste modo, consubstancia um
requisito preliminar, uma causa para o
deferimento da tutela possessória; sem causa,
inexiste garantia possessória constitucional à
propriedade que descumpra sua função social:
A funcionalização da propriedade é introdução
de um critério de valoração da própria
titularidade, que passa a exigir atuações
positivas de seu titular, a fim de adequar-se à
tarefa que dele se espera na sociedade. (...)
Pode-se dizer, com apoio na doutrina mais
atenta, que a função social parece capaz de
moldar o estatuto proprietário em sua essência,
constituindo ‘il titolo giustificativo, la causa
dell´attribuzione’ dos poderes do titular, ou
seja ‘il fondamento dell´attribuzione, essendo
divenuto determinare, per la considerazione
legislativa, il collegamento della posizione del

169
Leituras Tomistas

singolo con la sua appartenenza ad um


organismo sociale45.

Como preleciona Marcos Alcino de Azevedo Torres, o


direito de propriedade é, em substância, a sua utilização, ou seja, a
posse com o qual este é exercitado. O título gera o ius possidendi e
não exercido, porque não foi transmitida a posse ou não havia
posse para transmitir, ou tendo sido transmitida, não ocorreu a
utilização da coisa pelo novo titular, sua posse será apenas civil,
com base na espiritualização da posse que o direito civil admite.
Enquanto permanecer a coisa sem utilização de terceiros, o título
jurídico permitirá que o titular coloque em prática o direito à
posse, transformando-o efetivamente em posse, possibilitando o
cumprimento da função social da propriedade, antes descuidada.
Essa posse artificial, meramente civil (normalmente posse do
proprietário), em confronto com a posse real, efetiva (quando essa
última for qualificada pela função social) deve ceder a esta46.
O ganho de propriedade nunca deve ser permitido se
suficiente para tornar-se um fim em si mesmo. Deve-se manter a
finalidade da vida virtuosa sempre em vista e, deste modo, à
propriedade que não exerce sua função em confronto com a posse
com função social não se deve dar tutela jurídica.
Por último, resta responder, para a exposição completa da
função social da propriedade em Tomás de Aquino, se assertivas
acima expostas aplicam-se a toda sorte de bens ou somente
àqueles que não fossem bem administrados ou supérfluos.
Para Tomás de Aquino, desenvolvendo o direito aristotélico,
o conceito de direito é prioritariamente concebido como algo que
pertence ao outro. Assim, existem preceitos de justiça, cada um

45
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Função social da propriedade e
legalidade constitucional: anotações à decisão proferida pelo Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul (AI 598.360.402 – São Luiz Gonzaga) Revista
Direito, Estado e Sociedade. v. 09, n. 17, ago/dez de 2000, p. 48-49.
46
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto
em torno da função social. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2007, p. 373.

170
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

impondo a mim e à minha comunidade um dever a todos sem


discriminação47. Deste modo os direitos de propriedade privada
são válidos porque necessários para a prosperidade e o
desenvolvimento, mas são sujeitos a um dever de distribuir, direta
ou indiretamente, os superflua – isto é, tudo além do que alguém
necessita para manter a si próprio e sua família em um estado de
vida apropriado para ele e sua vocação. Pois os recursos do
mundo são, “por natureza”, comuns; isto é, os princípios da razão
não identificam qualquer um como tendo uma prerrogativa
anterior a eles, a não ser em razão de algum plano costumeiro ou
outro socialmente positivado para a divisão e apropriação de tais
recursos. E tais planos não poderiam ser autorizativos
moralmente, a menos que reconhecessem algum dever de que se
distribuíssem os superflua48.
Ruy Azevedo Sodré, em sua tese de doutorado na
Faculdade de Direito da USP, esclarece a distinção entre o
suficiente e o superabundante dos bens apropriados:

Todo homem tem direito absoluto à


quantidade de bens necessários ao
preenchimento dos deveres inerentes à sua
condição social. É o que se denomina de
propriedade humana. O direito à vida por

47
As virtudes anexas da justiça mandam pagar o que se deve a determinadas
pessoas para com as quais se está obrigado por alguma razão especial. Da
mesma maneira a justiça propriamente dita faz pagar a todos em geral o que
lhes é devido. Após os três preceitos pertencentes à religião pelos quais se
paga o que se deve a Deus; e após o quarto, que pertence à piedade, e que se
faz pagar o que se deve aos pais e que inclui todas as dívidas procedentes de
alguma razão especial; era necessário dar seqüência aos preceitos relativos à
justiça propriamente dita, que obriga a render indistintamente a todos os
homens o que lhes é devido. AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6.
op. cit. p. 710.
48
FINNIS, John. Direito natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no
contexto do juspositivismo analítico. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2007, p.
55.

171
Leituras Tomistas

parte do pobre é superior ao direito de


superabundância do rico. É a única exceção ao
direito de propriedade: exceptio in rebus
extremis.
Na propriedade do superabundante,
distinguem-se os dois elementos: o social – usus
– os bens exteriores devem ser detidos em
proveito da comunidade, e o individual –
procuratio et dispensatio – isto é, fazê-los
produzir e distribuí-los proporcionalmente às
necessidades de cada um. Esta gerência é
remunerada. É a propriedade ativa49.

Essa distinção fica clara, por exemplo, no caso de um


conflito entre proprietários e posseiros em torno de lotes de
terrenos, proprietários esses que, por anos a fio, negligenciaram a
efetiva ocupação e produtividade dos terrenos, permitindo, por
omissão, que ali se instalassem posseiros, edificassem barracos e aí
surgisse uma favela.
Deste modo, os lotes de terreno eram disputados pelos
proprietários e pelos possuidores. Esses possuidores nada tinham
além dos bens de moradia (barracos) edificados sobre os terrenos
(A favela adquire vida própria, dotada de equipamentos urbanos. Lá
vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Lá existe uma outra
realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo
exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são
prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados). Para todos os
efeitos de direito esses possuidores estão em situação de
necessidade extrema. Para os proprietários, os bens, ao revés, são
evidentemente superflua. Não diligenciaram estes em reavê-los por
anos a fio; jamais exerceram a posse efetiva dos mesmos para

49
SODRÉ, Ruy Azevedo. Função social da propriedade privada. Tese de
Doutorado em Filosofia do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. São Paulo: Empresa gráfica da Revista dos Tribunais, s/d., p. 169.

172
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

qualquer finalidade útil. Têm deles apenas a posse artificial,


meramente civil.
O direito de propriedade é, dessa forma, em substância, a
sua utilização, ou seja, a posse com o qual este é exercitado. O
título gera o ius possidendi e não exercido, porque não foi
transmitida a posse ou não havia posse para transmitir, ou tendo
sido transmitida, não ocorreu a utilização da coisa pelo novo
titular, sua posse será apenas civil, com base na espiritualização
da posse que o direito civil admite. Enquanto permanecer a coisa
sem utilização de terceiros, o título jurídico permitirá que o titular
coloque em prática o direito à posse, transformando-o
efetivamente em posse, possibilitando o cumprimento da função
social da propriedade, antes descuidada. Essa posse artificial,
meramente civil (normalmente posse do proprietário), em
confronto com a posse real, efetiva (quando essa última for
qualificada pela função social) deve ceder a esta50. A tessitura da
função social, tanto na propriedade quanto na posse, está na
atividade exercida pelo titular da relação sobre a coisa à sua
disposição. A função social não transige, não compactua com a
inércia do titular. Há que desenvolver uma conduta que atende ao
mesmo tempo à destinação econômica e à destinação social do
bem51.
A função social da posse, porém, está em um plano distinto,
pois a função social é mais evidente na posse e muito menos na
propriedade, que mesmo sem o uso pode se manter como tal. O
fundamento da função social da propriedade é eliminar da
propriedade privada o que há de eliminável, ou seja, tem
limitações fixadas no interesse público, com a finalidade de
instituir um conceito dinâmico de propriedade. O fundamento da
função social da posse, por sua vez, revela uma expressão natural
da necessidade:

50
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto
em torno da função social. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2007, p. 373.
51
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. op. cit., p. 308.

173
Leituras Tomistas

A função social da posse como princípio


constitucional positivado, além de atender à
unidade e completude do ordenamento
jurídico, é exigência da funcionalização das
situações patrimoniais, especificamente para
atender as exigências de moradia, de
aproveitamento do solo, bem como aos
programas de erradicação da pobreza,
elevando o conceito da dignidade da pessoa
humana a um plano substancial e não
meramente formal. É forma ainda de melhor se
efetivar os preceitos infraconstitucionais
relativos ao tema possessório, já que a
funcionalidade pelo uso e aproveitamento da
coisa juridiciza a posse como direito autônomo
e independente da propriedade, retirando-a
daquele estado de simples defesa contra o
esbulho, para se impor perante todos52.

Portanto, a função social do instituto da posse é estabelecida


pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho,
para a moradia, ou seja, para as necessidades básicas que
pressupõem a dignidade do ser humano.
Neste sentido, a função social da posse não significa uma
limitação ao direito de posse, mas a exteriorização do conteúdo
imanente da posse. Isso nos permite uma visão mais ampla do
instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia, em alguns
aspectos, diante de outros institutos jurídicos, como por exemplo,
o direito de propriedade.
Assim, o direito à propriedade dos bens pressupõe algum
uso válido para estes no decorrer do tempo e quando confrontada
a propriedade sem função social de bens supérfluos com a posse
com função social desses mesmos bens, a propriedade deve ceder

52
ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua
conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002,
p. 40.

174
O Direito de Propriedade em Tomás de Aquino

à posse porque, como asseverava Tomás de Aquino, só será ato


superrogatório pôr em comum, ativa ou passivamente, o
supérfluo em relação àqueles que não estão em situação de
necessidade extrema. Para todos os outros, em litígio, impõe-se o
dever de justiça de distribuição dos bens.

Conclusão

Tomás de Aquino, como visto, tratou a propriedade de


maneira objetiva, a partir da teoria da justiça. A legitimidade da
propriedade se funda a partir da distinção entre o “poder”
(potestas) de gerir as coisas e delas dispor, e o dever moral de
utilizá-las (usus) em proveito de todos. Ao estabelecer que é
permitido e mesmo necessário que o homem possua as próprias
coisas, Tomás de Aquino faz da propriedade um verdadeiro
“poder”, um verdadeiro direito, de tal modo que o roubo será
caracterizado como uma injustiça, pois atenta contra esse direito.
O “uso” (usus) exprime a finalidade a perseguir e a maneira
de realizar o exercício desse poder. É porque possui o verdadeiro
poder e o verdadeiro direito de possuí-los que o homem deve
utilizar os bens como “sendo comuns”, numa disposição virtuosa
de “compartilhá-los com os necessitados”. “Poder” e “uso”
formam uma espécie de dupla instância do mesmo direito-dever
do qual o homem está investido, no plano ético e jurídico.
Os bens que o homem tem são legítimos desde que tenham
a finalidade de lhe garantir o espaço vital digno e suficiente para a
vida pessoal e social. Se os bens, por direito natural, pertencem a
todos, cada indivíduo tem direito à sua parte, sem o que não se
cumpriria a destinação universal, ao menos se se considerar que
possuir e desfrutar tudo em comum não é prescrição de direito
natural, nem é possível na prática.
Tudo o que ultrapassa a necessidade do espaço vital e tudo
aquilo que não é bem administrado ou que, por qualquer razão,
pela extensão ou pelo mau uso, prejudicar a outrem, deve ser
submetido aos critérios da comunidade, isto é, do bem comum.

175
Leituras Tomistas

Fundado nesse sólido referencial teórico do Aquinate é


possível conceber que no confronto entre a propriedade sem
função social com a posse com função social, o direito de
propriedade é, em substância, a sua utilização, ou seja, a posse
com o qual este é exercitado. O título gera o ius possidendi e não
exercido, porque não foi transmitida a posse ou não havia posse
para transmitir, ou tendo sido transmitida, não ocorreu a
utilização da coisa pelo novo titular, sua posse será apenas civil,
com base na espiritualização da posse que o direito civil admite.
Enquanto permanecer a coisa sem utilização de terceiros, o
título jurídico permitirá que o titular coloque em prática o direito
à posse, transformando-o efetivamente em posse, possibilitando o
cumprimento da função social da propriedade, antes descuidada.
Essa posse artificial, meramente civil (normalmente posse do
proprietário), em confronto com a posse real, efetiva (quando essa
última for qualificada pela função social) deve ceder a esta.

176
Referências

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1992.

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177
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Justiça do Rio Grande do Sul (AI 598.360.402 – São Luiz Gonzaga) Revista

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Droit. Paris, n. 06, p. 25-72, 1961.

178
II. O DIREITO DA GUERRA EM F RANCISCO
S UÁREZ : O PROJETO CIVILIZADO R DA
ESCOLÁSTICA ESPANHOL A

Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo1

Introdução. 1. A questão herdada por Suárez. 2. O propósito do De Bello. 3. A


Reinterpretação de Santo Tomás. Conclusões. Referências.

Introdução

Francisco Suárez, um dos maiores escritores da escolástica


espanhola, nasceu em Granada, em 5 de janeiro de 1548 e morre
em Lisboa, em 24 de setembro de 1617. Proclamado pela Igreja
como Doctor Eximius et Pius, foi um dos fundadores do direito
internacional. O internacionalista norte-americano James Brown
Scott, numa feliz analogia, considera Francisco de Vitória o
expositor inicial, Francisco Suárez o filósofo, e Hugo Grócio o
sistematizador.2
Todavia, consoante Pierre Mesnard – autor de uma
importante obra sobre a história da filosofia política –, “nós

1
Doutor em Direito, Professor Adjunto de Direito Internacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), vice coordenador do programa de mestrado e doutorado em
Direito desta última, membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional
(SBDI), e autor dos livros Guerra e Cooperação Internacional, Hugo Grócio e o
Direito: o jurista da guerra e da paz e de O nascimento do direito internacional.
2
Cf. SCOTT, J. B. The Catholic Conception of International Law. Washington
D.C.: Georgetown University Press, 1934. pp. 183-184.
179
Leituras Tomistas

[filósofos políticos] fomos, com frequência, injustos em relação a


Suárez”3. O pensamento de Francisco Suárez influenciou
sobremaneira a teologia católica e protestante, mas ele foi relegado
entre os filósofos e os juristas. Sua maior obra jurídico-política, o
De Legibus ac Deo Legislatore, acabou tão-somente por ganhar pó
nas estantes das bibliotecas. Já o seu segundo maior texto neste
gênero, a Defensio Fidei, foi, até mesmo, proibido em França e
chegou a ser queimado na Inglaterra, tamanha a polêmica que
causou. Isso deveria ser um indicativo das ideias que o escritor
defende. Mesmo assim, por um bom tempo, os livros de Francisco
Suárez não obtiveram acesso às academias de Direito e de
Filosofia.
Somente na segunda metade do século XIX, quando se
descobre que Hugo Grócio não detém, com exclusividade, a
paternidade do direito internacional, os textos jurídicos e políticos
de Suárez são revitalizados. Percebe-se, então, que Suárez não é
apenas um grande teólogo – um dos maiores do chamado “século
de ouro” da Espanha e o mais importante da segunda vaga da
escolástica espanhola –, mas também antecipou teses jurídico-
políticas bastante modernas como o contrato social, a origem
popular do poder e a doutrina do tiranicídio. Além disso, o
escritor apresenta uma noção de direito natural que se ajusta às
mudanças históricas, o que salva o jusnaturalismo suareziano de
uma das mais contundentes críticas que o positivismo desfere
contra o direito natural moderno. Tão original é o pensamento do
autor que ele desenvolveu uma concepção sofisticada e original de
jus gentium que ultrapassou a órbita cultural romana na qual os
trabalhos sobre o tema ainda estavam inseridos.4
Cabe observar que um internacionalista de hoje não
conseguiria reconhecer o seu objeto de estudo nos textos de

3
“On a souvent été injuste pour Suarez.” (MESNARD, Pierre. L’Essor de la
Philosophie Politique au XVIe Siècle. 3. ed. Paris: J. Vrin, 1977. p. 40).
4
Vide a obra BORGES DE MACEDO, Paulo Emílio. O nascimento do direito
internacional. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.

180
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Suárez. Desavisado, ele encontraria apenas comentários à Suma


Teológica de Santo Tomás de Aquino. Tampouco o seu direito
internacional estaria em qualquer escritor do início do século
XVII. Autores deste tempo ocuparam-se de temas bastante
distintos daqueles que se leem nos sumários dos manuais
contemporâneos. Eles se debruçaram sobre a doutrina da guerra
justa, o direito de guerra medieval, da qual o jus gentium
representa somente uma das suas fontes.
Suárez, no entanto, merece destaque precisamente por ser
um comentarista bastante sistemático de Santo Tomás. O estudo
da guerra no Aquinate encontra-se num tratado diferente daquele
em que ele se volta para o Direito (e diferente também daquele em
que ele se volta para as leis), no Tratado da Caridade. Assim,
Suárez teve a oportunidade de se debruçar sobre o direito das
gentes em dois momentos distintos da sua vida e sob dois ângulos
bem diversos: quando redigiu o seus comentários sobre a caridade
e, posteriormente, no De Legibus (Suárez unificou os tratados da
Lei e do Direito). Essa primeira fase do pensamento suareziano
pelo direito das gentes inicia-se com o seu magistério no colégio
romano (1580-1585). Apesar desse contato precoce, o estudo da
guerra corresponde, de modo paradoxal, tanto à mocidade
intelectual de Suárez, como à sua maturidade. Ele foi pensado e
redigido, na sua maior parte, em 1584, mas foi revisto e publicado
somente em 1621. Esse lapso de tempo permitiu que a mensagem
da obra não destoasse daquela do Tratado das Leis.
Assim, o jus gentium que o autor expõe no seu estudo sobre
a guerra não consiste numa versão preliminar e ainda incompleta
do seu pensamento final. Todavia, o Tratado da Caridade de
Suárez possui uma finalidade muito diferente daquela do seu
Tratado das Leis, e, dessa maneira, o direito das gentes cumpre
uma função também bastante distinta. Mesmo antes da existência
do que hoje denominamos de direito internacional, os juristas e
padres buscavam minimizar os efeitos da guerra, limitar o seu
alcance e estabelecer requisitos para a sua legitimidade. Esse
corpo de ideias era universal por causa do seu fundamento: a
religião cristã, que era aceita como a “Verdade” por todos os

181
Leituras Tomistas

povos europeus. Entretanto, a Reforma Protestante alterou esse


quadro de maneira drástica, e o próprio cristianismo passou a
apresentar versões. Em consequência, a teologia católica (inclusive
a teologia político-jurídica) não poderia mais ser universalizada.
Este foi o desafio de Suárez: evitar que os preceitos da
guerra justa se perdessem em meio ao relativismo. O jurista de
Coimbra é um pensador da segunda vaga da escolástica
espanhola; os grandes problemas da sua vida não são mais
aqueles do tempo de Francisco de Vitória: as Grandes
Navegações, a descoberta do Novo Mundo e o direito dos índios.
Ele teve de lidar com a Reforma; foi o teólogo mais importante da
Contra-Reforma. Quando o rei Jaime I obriga mais um juramento
de fidelidade na Inglaterra (o que afastaria o poder do Papa
mesmo em questões espirituais) e inicia uma polêmica com o
Cardeal Belarmino, Roma recorre ao seu teólogo mais importante
da época que eleva a discussão e escreve uma obra científica de
mais de oitocentas páginas, a Defensio Fidei Catholicae adversus
anglicanae sectae errores.
Então, se as verdades não fé não constituíam mais um
terreno comum, o que impediria o relativismo de destroçar o
direito da guerra?

1. A questão herdada por Suárez

A guerra justa representa a via mediana entre o repúdio


total da guerra, como ocorre em correntes idealistas, e a aceitação
incondicional da violência para o engrandecimento do Estado,
segundo concepções próprias do realismo político, como se os reis
e as potestades não se sujeitassem à Moral e às leis da natureza.
Os partidários da guerra justa reconhecem que a guerra constitui
um mal, mas há males ainda piores, como o assassinato de entes
queridos e a profanação de cemitérios e lugares sagrados pelas
mãos de soldados invasores. Trata-se de uma tradição universal:
foi desenvolvida por teólogos e canonistas cristãos, mas também
por juristas leigos.

182
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

A maioria dos historiadores credita as origens dessa


doutrina ao jus fetiale do colégio dos fetiales romanos. Este corpus
juris existiu desde os dias dos reis até o final da era republicana.
Os feciais eram sacerdotes, reunidos em uma espécie de
corporação, aos quais eram encarregados de uma série de
obrigações, em parte religiosas e em parte jurídicas (o jus sacrum).
Entre diversas obrigações, cuidavam daquelas relativas ao início
de uma guerra. Duas condições de natureza processual
revelavam-se indispensáveis: uma notificação oficial ao oponente,
com uma insistência para a satisfação do dano ou da ofensa
dirigida a Roma, acompanhada de um devido prazo de resposta, e
uma declaração formal de guerra. Esta última ocorria numa
cerimônia religiosa bastante elaborada, na qual se devia recitar,
com uma impostação de voz adequada, determinadas fórmulas
legais, e terminava com o arremesso de uma lança embebida em
sangue na fronteira do território inimigo. Roma não podia entrar
em guerra sem a aprovação prévia e explícita dos feciais, pois os
deuses só favoreciam o bellum iustum et pium. Contudo, como
eram subordinados aos chefes políticos, eles buscavam sempre
uma justificativa para as hostilidades (v.g., a violação de um
tratado ou da imunidade de embaixadores, infração de direitos
territoriais ou ofensas contra Estados aliados).5
A influência do direito dos feciais na doutrina da guerra
justa, no entanto, revela-se tão elusiva que se torna difícil
estabelecer uma correlação. O desenvolvimento posterior que ela
recebe no Medievo pouco lembra as suas origens romanas. O
direito de guerra medieval não denota formalismo algum, nem
mesmo subserviência à autoridade política. De Roma, apenas
parece haver sobrevivido a ideia de poder predicar-se a justiça ou
a injustiça de determinados conflitos armados. As guerras não se
apresentavam mais como acontecimentos naturais ou fatalidades

5
Cf. FUSINATO, G. Le droit international de la République Romaine. RDILC –
Revue de droit international et de législation comparée, pp. 273 e ss., 1885.

183
Leituras Tomistas

e passaram a ingressar o domínio das ações moralmente


relevantes.
Outros autores6 encontram, no direito de guerra medieval,
influências dos hebreus do Antigo Testamento, e, de maneira
inegável, é possível detectar reminiscências helênicas. Entretanto,
parece haver um consenso de que se trata de uma doutrina
especificamente cristã e que se inicia propriamente com Santo
Agostinho (354-430). Influências anteriores são – como haveriam
de ser – devidas, mas incidem de forma incidental no principal
problema desta tradição: a justiça de uma guerra.
De questões meramente procedimentais com os antigos, a
doutrina da guerra justa adquire uma conotação substantiva
durante todo o Medievo. A guerra e toda a violência e a
destruição que lhe advêm consistem num problema moral
bastante sério para o cristianismo; além de os cristãos sempre se
engajarem em contendas contra não-cristãos e, até mesmo, contra
cristãos, os textos sagrados podem induzir ao erro. De um lado, há
os ensinamentos de Cristo sobre a paz e “dar a outra face” aos
inimigos, o que poderia gerar uma interpretação pacifista radical
que rejeita qualquer guerra, mesmo aquelas defensivas; de outro,
Deus revela-se o “senhor dos exércitos”, o que poderia legitimar
qualquer guerra santa.
Contudo, para o cristianismo, a guerra não representa um
mal em si mesmo. Segundo os maestros espanhóis, os males que se
sucedem pela guerra são acidentais à sua natureza, e haveria
maiores inconvenientes se ela não fosse permitida.7 Ademais,
nenhum concílio proibiu os cristãos, de maneira definitiva, de
participar de uma guerra. Há, sem dúvida, algumas restrições: o
Concílio de Nicéia proscrevia o combate logo após o batismo; em

6
Cf. VANDERPOL, Alfred. La Doctrine Scolastique du Droit de Guerre. Paris:
Pédone, 1919. pp. 160-170.
7
Cf. SUÁREZ, R. P. Francisci. Opera Omnia. Editio Nova. Parisiis: Ludovicum
Vivès, 1858. Tomus XII. De Fide, Spe et Charitate. Tratactus de Charitate.
Disputatio XIII. De Bello, 1, 2. Este texto será doravante chamado DB.

184
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Isaías, não se pode matar nem morrer sobre a montanha santa – e,


por interpretação extensiva, lugares sagrados. A explicação dessa
concepção decorre do fato de que a guerra não se opõe à paz, mas
sim à má paz, aquela que perdura em detrimento da justiça e do
direito. Existe uma diferença substancial entre os conceitos de paz
e de tranquilidade. Esta é paralisia, a paz é harmonia. Harmonia
sempre pressupõe um equilíbrio, a balança da justiça. Dessa feita,
a “verdadeira” paz apoia-se no Direito.
A guerra justa corresponde a uma tradição eminentemente
cristã, porque ela é desenvolvida e reelaborada por autores da
cristandade europeia. Após a sua origem com Santo Agostinho,
ela é retomada por outros Pais da Igreja, por Santo Isidoro de
Sevilha e o Papa Nicolau I. Houve, então, um hiato, e a guerra
justa não recebeu mais atenção durante a Alta Idade Média.
Somente depois das teses serem condensadas no Decreto Gratiano,
na metade do século XII, o assunto volta a interessar os
pensadores. Escrever sobre a guerra torna-se bastante popular na
Baixa Idade Média. Os canonistas e os teólogos começam a
esmiuçar as teses até elas adquirirem a sua formulação clássica em
Santo Tomás de Aquino. Em virtude do interesse do Aquinate, a
guerra justa se torna referência obrigatória para todos os
escolásticos. Por esse motivo, Alfred Vanderpol prefere
denominá-la de a “doutrina escolástica do direito da guerra”.8

8
Cf. VANDERPOL, Alfred. Op. Cit., p. 285. São autores dessa tradição, além de
Santo Agostinho, Santo Isidoro de Sevilha (560-636), o Papa Nicolau I, com a
sua carta aos búlgaros, o bispo Rufin, no tratado De bono pacis (1056), Yves de
Chartres (1040-1116) e Abelardo (1079-1142). Na metade do século XXII, há o
decreto do monge Jean de Gratian. Então, surgem Santo Tomás, Raimundo de
Peñaforte (1180-1275), Inocêncio IV (1243-1254), Hostiensis (Henri de Suse:
início do século XXIII-1271), Alexandre de Halès (1170-1245), Henri de Gand
(início do século XXIII-1293) e São Boaventura (1221-1274). Depois, no século
XIV e XV, passam a surgir obras cujos títulos remetam à guerra: João de
Legnano (início do século XXIV-1383) – De Bello (1360), Henri de Gorychum –
De Bello Justo (1420), Santo Antonio de Florença (1389-1459), Alphonse
Tostate (1400-1455), Martin de Lodi – De Bello (século XV), Gabriel Biel (1425-
1495), Sivestre Prierias (1456-1523), Thomas de Vio (Cajetan: 1468-1534),

185
Leituras Tomistas

A Igreja, como instituição, nunca aceitou as teses de um


pacifismo extremado. Os cristãos não cessavam de engrossar as
fileiras das legiões muito antes dos Editos de Roma e de Milão. É a
sua numerosa presença no exército que se tornaria a causa
principal das últimas perseguições por parte dos romanos. E,
como haveria de ser, nasce no exército o movimento que
culminaria nos Editos de tolerância de Constantino e de Licinius
de 313, os quais não consideraram pecado a profissão militar. A
compatibilidade do serviço militar com o cristianismo era
considerada tamanha que um dos Pais da Igreja, Santo Atanásio,
chegou a pregar que, numa guerra justa, seria permitido e, até
mesmo, glorioso, dar a vida.9
Ocorre que os primeiros escritos da guerra justa, em
verdade, ocupavam-se da guerra apenas de modo secundário. O
primeiro problema dos Pais da Igreja não foi com a guerra em si,
mas com a legitimidade de uma função pública, o serviço militar,
em face da moral cristã. Dessa maneira, as afirmações de Santo
Agostinho consistem numa manifestação tardia dessa
preocupação. Na célebre passagem do Contra Faustum manichaeum,
em que ele defende a campanha de Moisés contra as investidas de
Faustus de Milev, a guerra não constitui a questão central, mas a
obediência incondicional às ordens divinas, insondáveis, porém
justas: “não se deve estranhar ou se horrorizar ante o fato de

Guilherme Mathiae – Libellus de Bello Iustitia Iniustitiave (1533), Josse


Clichthove (1472-1543). Depois, com as Grandes Navegações despontam os
nomes de Francisco de Vitória, Francisco Suárez e Balthasar de Ayala – De Jure
et Officiis Bellicis et Disciplina Militari (1582). Deste período, são nomes
menores: A. Guerrero – Tratactus de Bello Justo et Injusto (1543), Diego de
Covarruvias (1512-1577), Domingos de Soto (1494-1560), F. Martini – De Bello
et Duello (1589), Gabriel Vasquez (1551-1604), Domingos Bañez (1528-1604),
Roberto Berlarmino (1542-1621), Leonardo Lessius (1554-1623), Gregório de
Valencia (1561-1603), Luís de Molina (1536-1600), P. Belli – De re Militari et
Bello (1558), Alberico Gentili – De Jure Belli (1598) e o próprio Hugo Grócio – De
Jure Belli ac Pacis (1625).
9
Cf. NYS, Ernest. Les Origines du Droit International. Bruxelles, Paris: Alfred
Castaigne, Thorin et fils, 1894. p. 45.

186
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Moisés ter empreendido guerras, porque não o fez por crueldade,


mas por obediência e respeito às ordens divinas”.10
No De civitate Dei, a guerra torna-se alvo de críticas porque
representa um dos principais instrumentos do imperialismo
romano. Santo Agostinho a usa como cavalo-de-batalha dentro da
luta maior contra os falsos valores cantados por Virgílio: a
grandeza ilusória de Roma resulta da superbia, não da pietas. O
célebre verso do poeta figura no prefácio mesmo do livro.11 De
fato, a crítica de Agostinho não se volta contra a guerra em si, mas
contra toda a moral pagã. É a partir da pax e da noção conexa de
ordo naturalis que se estabelece a unidade de sua concepção. Tal
como em sua Teodicéia, em que o mal se reduz a uma ausência do
bem, sem possuir uma consistência própria, a guerra não passa de
uma idéia reflexa dos conceitos positivos de pax e ordo. A vontade
humana é livre para se submeter à ordo, pela pietas, ou de se opor a
ela pela superbia. A pietas conduz à pax ordinata que está em
harmonia com a ordo naturalis; a superbia leva à pax perversa, a paz
da cidade diabólica. A guerra para ser justa deve cindir este tipo
de paz e construir uma melhor, mais adequada à ordo naturalis, o
que corresponde à vontade divina.12
Como reação à avidez feudal pelo combate, a Igreja iria
posicionar-se contra a guerra. Contudo, a sua hostilidade resumia-
se à guerra entre fiéis. Procurava-se reduzir a violência e a
destruição da guerra. Proibiram-se os clérigos de derramar
sangue. Um concílio impôs aos companheiros de Guilherme, o
Obras de San Agustin Conquistador uma penitência de um ano
para cada pessoa assassinada, outra de quarenta dias por aqueles

10
“(...) nec bella per Moysen gesta miretur aut horreat, quia et in illis divina
secutus imperia non saeviens, sed oboediens fuit (...)” (AGOSTINHO. Obras de
San Agustin. Trad. Pío de Luis. Edição bilíngüe. Madrid: BAC, 1993. t. XXXI.
Escritos antimaniqueos. Contra Fausto. p. 604. Livro XXII. 74).
11
Cf. AGOSTINHO.. Trad. José Moran. Edição bilíngüe. Madrid: BAC, 1958. t.
XVI. La Ciudad de Dios. p. 62. Livro I. Praefatio.
12
Cf. TRUYOL y SERRA, Antonio. El Derecho y el Estado em San Agustin. Madrid:
Revista de Derecho Privado, 1944. pp. 57-70.

187
Leituras Tomistas

feridos e outra ainda de três dias por aqueles que se desejou ferir.
Cumpre salientar que não se questionava a legitimidade da guerra
em si; apenas a guerra injusta era considerada um verdadeiro
castigo de Deus.13
Os historiadores costumam considerar o livro XVIII das
Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha uma referência obrigatória
na Alta Idade Média. O autor distingue quatro espécies de guerra:
justum bellum, injustum bellum, civile bellum e plusquam civile bellum
(aquela entre generais unidos por laços de família). “Justa é a
guerra que é declarada para reaver coisas que tenham sido
subtraídas ou para repelir os inimigos”. E, por sua vez, “injusta é a
guerra que provém de um furor e que não foi iniciada por uma
razão legítima”.14 Nesta definição, há, portanto, dois requisitos
para a justiça de uma guerra: uma declaração e uma causa justa.
Esta pode ser a repulsa de um inimigo, o que caracteriza uma
guerra defensiva, ou a vindicação de um bem roubado, uma
espécie do gênero maior da injúria.
Não obstante a importância que essa definição iria adquirir
posteriormente – sobretudo porque seria reproduzida no Decreto
Gratiano –, o jurista suíço Peter Haggenmacher ressalta que essa
fórmula representava um lugar-comum da literatura antiga e não
era propriamente nuclear à tradição da guerra justa. Ele
demonstra, em sua tese, que o bispo de Sevilha desejava retomar
duas frases de Cícero, não o pensamento de Santo Agostinho
sobre a guerra15, o qual teria pouca ou mesmo nenhuma

13
Cf. NYS, Ernest. Op. Cit., p. 46.
14
“Justum bellum est quod ex praedicto geritur de rebus repetitis aut
propulsandorum hostium causa.” E “Iniustum bellum est quod de furore, non de
legitima ratione inititur.” (ISIDORUS HISPALENSIS EPISCOPUS. Etymologiarum
sive Originum Libri XX. ed. W. M. Lindsay. Oxford: Clarendon Press, 1911. XVIII,
De bello et ludis, I, 2).
15
Perceba-se a profunda semelhança com as frases de Isidoro: “Illa iniusta bella
sunt, quae sunt sine causa suscepta. Nam extra ulciscendi aut propulsandorum
hostium causa bellum geri iustum nullum potest. (...) Nullum bellum iustum
habetur, nisi denuntiatum, nisi dictum, nisi de repetitis rebus.” (CICERÓN. De la

188
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

repercussão nesse período. Cumpre salientar que o mesmo não se


aplica às noções agostinianas de pax e iustitia, as quais integram o
cerne do agostinianismo político. A concepção cristã de justiça
enraíza-se no Ocidente, desde o fim do Império, graças à função
privilegiada que diversos papas desempenhariam na organização
política dos monarcas francos e germânicos.
Somente no século XII, a doutrina da guerra justa começa a
se consolidar. Em Bolonha, no ano de 1140, o monge Graziano
redige a Concordia discordantium canonum que marca o início do
direito canônico clássico. A guerra constitui objeto de uma porção
substancial da obra, a Causa XXIII, e, desde então, torna-se tema
obrigatório para as futuras gerações de teólogos e canonistas. O
Decreto Gratiano mostra-se uma obra tanto de Direito como de
Teologia, o que o deixa suscetível a variadas interpretações.
Consiste numa consolidação sobre diversos temas – entre os quais
a guerra – na qual Graziano reúne uma gama de referências da
Patrística. Todas as passagens que são tradicionalmente
associadas com a doutrina da guerra justa se encontram num
mesmo local. Se a razão assistir a Haggenmacher – e tanto
Agostinho como Isidoro não houverem debruçado-se sobre a
guerra justa –, então é a partir do Decreto que começa essa
tradição. O simples fato de codificar todo o pensamento cristão
sobre a guerra já denota a pretensão de investigar este tema por
ele mesmo. As citações foram retiradas do seu contexto original e
passaram a valer por elas mesmas, como uma regra universal.
Trata-se de uma atitude mais genérica, característica do
pensamento do período em face das auctoritates: nestas, deve
sempre buscar-se normas de caráter geral, sem nem mesmo
atentar para o conjunto maior em que se inseriam. Graziano
chega, inclusive, a assimilar os trechos da Patrística às decisões

République – Des Lois. Trad. Charles Appuhn. Edição bilíngüe. Paris: Garnier
Frères, 1954. p. 164. Livro III, 23). Confira também HAGGENMACHER, Peter.
Grotius et la doctrine de la guerre juste. Genève, Paris: Heige, Presses
Universitaires de France, 1983, p. 23.

189
Leituras Tomistas

dos concílios e aos decretais dos papas: todos correspondem a


cânones.16
A causa XXIII do Decreto Gratiano intitula-se De re militari et
bello e divide-se em oito questões. A primeira questão aborda, de
maneira direta, fato inédito, a moralidade das guerras em si
mesmas: an militare sit peccatum? (“é pecado fazer a guerra?”).
Apesar de invocar diversos preceitos do Evangelho que
recomendam a doçura e proíbem a vingança, o autor admite que a
guerra pode ser legítima. Algumas guerras revelam-se
necessárias, e essa necessidade acaba por escusar a violência.17
No entanto, a necessidade não basta para conferir
legitimidade a uma guerra. Graziano empresta do tratado de
Santo Agostinho contra os maniqueístas uma enumeração de
todas as coisas repreensíveis num conflito: o desejo de destruir, a
crueldade da vingança, o espírito implacável e violento, a
selvageria no combate, a paixão de dominar e todos os outros
excessos semelhantes. Engajar-se numa guerra, por si só, não
equivale a um pecado, mas a mesma não deve ser conduzida com
crueldade e cupidez, e sim com a finalidade de buscar a paz. Há,
no decreto, duas definições de guerra justa, aquela de Isidoro de
Sevilha, já citada, e outra emprestada de Santo Agostinho: “Tem-
se o costume de chamar de guerra justa aquelas cuja finalidade é
vingar as injustiças, ao castigar uma cidade ou um país que não
puniu uma ação ilícita cometida por um dos seus, ou ao restituir
aquilo que foi tomado de modo injusto.”18 Portanto, justa é a
guerra cuja finalidade é a busca da paz, que vinga uma “in-júria”
e que restitui um bem tomado injustamente.

16
Cf. HAGGENMACHER, Peter. Op. Cit., pp. 24-25.
17
Cf. GRATIANUS. Decretorum Codex. Venetiis: Nicolai Jenson Sallici, 1477.
Causa XXIII, I, 1.
18
“Iusta enim bella definiri solent, quae ulciscuntur injurias, si gens vel civitas
plectenda est quae, vel vindicare neglexerit quod a suis improbe factum est, vel
reddere quod per injurias ablatum est.” (GRATIANUS. Decretorum Codex. Causa
XXIII, II, 1).

190
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Cumpre salientar que, quando Graziano retoma a definição


do bispo de Sevilha, introduz uma sutil modificação. Ele substitui
a expressão ex praedicto, que implica a necessidade de uma
declaração, por ex edicto, o que pressupõe a existência de uma
autoridade que ordene que se faça a guerra.19 Assim, de modo não
muito expresso, começa a se formar a noção – que iria ser
desenvolvida posteriormente por São Raymundo de Peñaforte e
Santo Tomás de Aquino – de que a guerra justa requer a
promulgação de uma autoridade legítima.
Embora no Decreto Gratiano a guerra seja, de fato, analisada
em si mesma, ressalta Haggenmacher que a finalidade de
Graziano não parece ter sido investigar a justiça na guerra. Se a
causa XXIII for considerada como um todo, então o tema maior se
revela como a legitimidade do poder coercitivo entre cristãos, no
domínio da fé. A guerra consiste num dos modos de exercício
desse poder. As três primeiras questões que versam sobre a guerra
são as mais breves, em especial a própria questão que conceitua
guerra justa. As duas questões medianas recebem, pela amplitude,
a maior atenção, e são consagradas ao poder vindicativo e à sua
última conseqüência, a pena capital infligida por um juiz. O poder
coercitivo, portanto, corresponde ao centro do problema. As três
primeiras questões possuem um caráter preliminar e descartam
uma objeção fundamental, as duas medianas versam sobre o
assunto mesmo, a sexta e a sétima tratam das conseqüências
imediatas da repressão, e a oitava aborda um questão particular, o
emprego de armas pelos clérigos. Esta interpretação da causa
XXIII também é corroborada pela história, pois foi adotada pelos
principais decretistas do século XII nos seus comentários.20
Ainda assim, mesmo que a causa XXIII não encerre uma
doutrina da guerra justa, em virtude das especificidades de sua
composição – abordar a guerra em si e reunir uma massa de
referências patrísticas sobre o assunto – ela representa um dos

19
Cf. NYS, Ernest. Op. Cit., p. 100.
20
Cf. HAGGENMACHER, Peter. Op. Cit., pp. 26-27.

191
Leituras Tomistas

agentes mais decisivos para a sua emergência. De Graziano a


Santo Tomás de Aquino, a doutrina da guerra desenvolve-se de
maneira orgânica e contínua. Se, nos Pais da Igreja, a temática era
tratada de passagem e se, no Decreto Gratiano, ela se insere num
tema maior, entre os legistas, os canonistas e os decretalistas, ela
conquista autonomia.
Merece destaque, na primeira metade do século XIII, a
coleção de decretais que um dominicano espanhol, São
Raymundo de Peñaforte, sob as ordens do Papa Gregório IX,
reuniu. Nela, o autor estabelece cinco requisitos para a guerra
justa (persona, res, causa, animus e auctoritas), os quais, mais tarde,
serão condensados por Santo Tomás em apenas três. Pouco
depois, dois outros autores produzem seus comentários aos
decretais gregorianos: o Papa Inocêncio IV, um dos maiores
juristas a ocupar o assento de Pedro, no Apparatus in quinque libros
decretalium, e Henri de Suse, conhecido como Cardinalis Hostiensis,
na Summa Áurea.21
Então, entre 1263 e 1269, Santo Tomás de Aquino redige a
sua Suma Teológica e confere a formulação clássica da doutrina da
guerra justa. Sua obra exerceria influência sobre teólogos,
moralistas e, embora o Aquinate não fosse jurista, também sobre
canonistas. A sua investigação acerca da guerra encontra-se
condensada na questão 40 da secunda secundae do Tratado da
Caridade, e ela se resume a quatro artigos. O primeiro versa sobre
o problema da licitude da guerra; o segundo indaga se acaso seria
lícito aos clérigos guerrear; o terceiro questiona tanto se seria
legítimo aos combatentes usar de estratagemas, como se seria
legal combater em dias festivos. Mas é no primeiro artigo mesmo
que se encontra o cerne de sua concepção. Para haver justiça numa
guerra, é necessário preencher três condições:

Primeira, a autoridade do príncipe, por cujo


mandato se permite fazer a guerra. Não cabe à

21
Cf. HAGGENMACHER, Peter. Op. Cit., p. 38.

192
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

pessoa privada declarar guerra, porque pode


expor seu direito perante um tribunal superior.
(...).
Requer-se, em segundo lugar, justa causa, a
saber: que aqueles que são impugnados
mereçam, por alguma culpa, essa impugnação.
(...).
Terceiro, requer-se que seja reta a intenção dos
combatentes: que se intente ou se promova o
bem, ou que se evite o mal. (...).

Em razão da autoridade que o pensamento de Santo Tomás


iria adquirir com o tempo, estas três condições passam a
caracterizar a doutrina escolástica da guerra justa.
Cabe observar que juristas leigos também voltam os seus
interesses ao direito da guerra. No final do século XIII, a questão é
analisada por Cino de Pistóia e diversos juristas franceses da
escola de Orléans. No início do século seguinte, reforça a doutrina
o grande jurista medieval Bártolo de Sassoferrato, que incorpora
as teses de Inocêncio IV. Um discípulo de Bártolo, Iohannes de
Lignano, em 1360, escreve a primeira obra a tratar exclusivamente
do direito da guerra: Tratactus de bello, de represaliis et de duello.
Lignano inicia uma tradição que irá culminar em Gentili e Grócio.
Este livro adquire uma conotação bastante prática porque sofreria
diversas vulgarizações, como a de Christine de Pisan, William
Caxton e o famoso trabalho de Honoré Bonnet, L’Arbre des
Batailles, todas redigidas em idioma vulgar. A partir de então até a
época de Grócio, começam a surgir obras que versam
especificamente sobre o direito da guerra, como os tratados de
Martin de Lodi, Juan Lopes, Pierino Belli, Balthasar Ayala e
Heinrich Bocer. Ocorre, pois, uma progressiva consolidação do
corpo doutrinário da guerra justa.22
Embora o livro de Lignano consolide de uma vez a doutrina
da guerra justa, ele nada mais faz do que compilar as conclusões

22
Cf. HAGGENMACHER, Peter. Op. Cit., pp. 39-40.

193
Leituras Tomistas

de seus predecessores. Ele introduz um período de estagnação na


disciplina, dominado por uma casuística bastante estéril, à exceção
de alguns progressos isolados – como o de um Lucas de Penna ou
o de um Raphael Fulgosa. A partir do século XVI, ainda que o
interesse só tenha aumentado, não serão os juristas a desenvolver
o direito de guerra, mas os teólogos. Haggenmacher menciona as
contribuições de Martinho Lutero e de Erasmo23, mas elas se
apresentam um tanto excêntricas à tradição da guerra justa. Os
principais escritores desse período acerca do tema são mesmo o
italiano Thomas de Vio – vulgo Cajetano – e os escolásticos
espanhóis. Entre estes, não há dúvidas, Francisco Suárez ocupa
uma posição de destaque.

2. O propósito do De Bello

Cumpre salientar que, embora o objeto analisado consista no


“direito” de guerra – um jus –, esse estudo se insere no Tratado da
Fé, da Esperança e da Caridade – em especial, neste último. Pode
parecer estranho ao leitor atual que um livro sobre uma das três
virtudes teologais contenha um trabalho sobre um dos ramos do
Direito; entretanto, para Suárez, isso não fugia à normalidade: só a
caridade supre as limitações da justiça e do Direito. Ainda que se
busque determinar a justiça, a guerra constitui uma realidade que
perpassa este domínio e acaba em outro.
É que havia questões jurídicas para as quais o Direito não
possuía resposta. Na Idade Antiga, o cético Carneades direcionou
seus ataques contra a doutrina da lei natural dos estoicos. Ele
granjeou fama, com o seu método de demonstração dos prós e dos
contras, ao ridicularizar a noção de justiça. Um dos seus
argumentos mais célebres foi o caso limítrofe que ficou conhecido
como o “paradoxo de Carneades”. Num naufrágio, duas pessoas
nadam até uma tábua para se salvarem, mas ela só comporta uma.

23
Cf. HAGGENMACHER, Peter. Op. Cit., p. 42.

194
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Quem, neste exemplo, tem o direito à tábua? Num caso extremo


de necessidade e de autopreservação, segundo o cético, a resposta
seria, ao mesmo tempo, ninguém e ambos. Hoje, os ordenamentos
jurídicos encerram a figura do “estado de necessidade” para
situações como essa, e qualquer um dos náufragos poderia tomar
a tábua para si e ainda se encontraria ao abrigo dessa excludente
de ilicitude. Mas essa resposta não satisfaria um antigo, pois se
acreditava que a justiça poderia assistir apenas a um. Assevera
Rommen24 que, somente dezessete séculos depois, Suárez daria a
solução correta. O Direito não pode funcionar em situações de
extrema escassez ou absoluta abundância de bens, pois pressupõe
distribuição. No exemplo citado, a ordem da justiça e do Direito
termina e se inicia o governo da caridade.
Em Santo Tomás, a paz corresponde a um efeito interior em
consequência à caridade. A guerra, por sua vez – em conjunto com
o ódio, a acídia, a envídia, a discórdia, a porfia, o cisma, a rinha, a
sedição e o escândalo –, é um vício contrário à caridade. Para um
teólogo, determinar a justiça numa guerra importa não tanto para
aferir a injúria, mas porque constitui um pecado contra uma das
três virtudes teologais. A investigação da justiça ou da injustiça de
uma guerra é um meio para um fim de natureza teológica muito
mais importante. Uma guerra injusta, além de ferir o Direito, fere
a caridade. Francisco Suárez repete essa mesma ordem e não
aborda o direito da guerra no tratado em que ele discorre sobre as
leis e a justiça, o De Legibus, mas na última disputatio do Tratado
sobre a Fé, a Esperança e a Caridade. É assim que um teólogo
estuda o Direito.
Nas disposições concretas e específicas sobre o direito da
guerra, o autor não se mostra muito original; em seu texto, ele
sintetiza todos os trabalhos da segunda escolástica sobre a guerra
justa. Este foi o seu mérito e o seu intento. Trata-se, sobretudo, de
uma concepção católica e espanhola. Ainda assim, causa espanto o

24
Cf. ROMMEN, Heinrich. The Natural Law. Tradução para o inglês de Thomas
Hanley. Indianápolis: Liberty Fund, 1998, p. 18.

195
Leituras Tomistas

fato de, desde Francisco de Vitória, os maestros espanhóis


pregarem uma tolerância muito grande com outros povos e
religiões – sobretudo a muçulmana – e reprovarem a sede de
conquista ibérica. Suárez, por exemplo, não hesita em admitir a
possibilidade de justiça numa guerra de um soberano não cristão
contra um príncipe cristão. Segundo Vitória, visto que a
autoridade decorre não da religião, mas da natureza, todos os
povos, mesmo os infiéis, possuem títulos válidos de domínio. Os
índios, portanto, também exercem soberania e se encontram em
“domínio pacífico de suas coisas públicas e privadas. Logo (salvo
outro óbice em contrário), devem ser considerados verdadeiros
senhores e, nessas circunstâncias, não se pode despojá-los de suas
posses”25. Dessa forma, o direito de guerra da Escolástica
Espanhola obstrui os títulos de propriedade dos espanhóis na
América e retira dos monarcas católicos o monopólio da justiça.
De fato, à primeira vista, a “escola espanhola da paz” (termo
empregado por Luciano Pereña) parece pouca espanhola e pouco
católica. Contudo, a “hispanidade” e a “catolicidade” representam
muito mais do que a mera defesa de uma política de Estado ou de
uma concepção de mundo ultrapassada. O grande dilema do
século XVI mostra-se a dissociação inexorável entre as duas
cidades, a terrena e a de Deus. Todo o esforço intelectual de
Suárez é o de combater Maquiavel nos seus próprios termos. A
ideia de Império havia perdido lastro com os tempos históricos, e
existiam tantas soberanias como o número de Estados. A Espanha,
para o autor, constituía a chave da crise e a última esperança de
reconstrução da cristandade europeia. Ela deveria converter-se no
império a serviço da religião, da justiça e da civilização. Todos os
príncipes católicos, por imperativo da fé, podiam proteger a

25
“(...) in pacifica possessione rerum et publice et privatim. Ergo omnino (nisi
contrarium constet) habendi sunt pro dominis. Neque in dicta causa
possessione deturbandi” (VITORIA, Francisco de. Obras de Francisco de Vitória.
Relecciones Teologicas. Editadas por Teofilo Urdanoz. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1960, De Indis, Relectio 1, 5. p. 651).

196
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Igreja. Mas somente um Estado grande e forte, como a Espanha,


conseguiria se insurgir contra o cisma da terra e salvar a
civilização cristã.26
Para uma verdadeira missão civilizatória – uma empresa
que precisava ser tanto católica como espanhola –, Suárez
concebeu o De Bello. E, se ele parece pouco católico e pouco
espanhol, é porque ele deve ser lido à luz do capítulo dezoito do
Tratado sobre a Fé, que Luciano Perenã denomina de o “Tratado
da Intervenção”. Ele versa sobre os meios justos de coação para
converter os infiéis, e sua principal mensagem resume-se ao dever
dos pagãos de ouvir e tolerar a fé cristã.27 Não se trata de uma
obrigação de conversão – a qual pressupõe uma adesão livre –,
mas de suportar a evangelização. A religião católica encerra a
Verdade, e não se pode impedir a sua divulgação. A fim de
garantir a pregação, o papa pode comissionar os príncipes
católicos para intervirem e promoverem a guerra. Dessa maneira,
o projeto da segunda escolástica termina sim por justificar a
política imperial espanhola tanto na conquista da América como
da Ásia.
Ainda assim, isso representa um avanço considerável em
relação à visão anterior sobre “os bárbaros a circundar o Império
cristão e europeu”. A soberania e os títulos de domínio dos infiéis
não se apresentam inferiores aos dos cristãos. A política dos povos
pagãos possui o mesmo valor daquela dos que professam a
verdadeira fé. A lição da separação das duas cidades foi bem
aprendida. Porém, Suárez sabia bem que, sem a ação do Direito
(bem como da Caridade), essa dissociação resultaria no
relativismo ético e na falta de religião. Se a defesa da cristandade

26
Cf. PEREÑA, Luciano. Estudio Preliminar. In: SUÁREZ, Francisco. Guerra
Intervención Paz Internacional. Tradução para o castelhano de Luciano Pereña.
Madrid: Espasa-Calpe, 1956. p. 10.
27
Cf. PEREÑA, Luciano. Estudio Preliminar. In: SUÁREZ, Francisco. Guerra
Intervención Paz Internacional. pp. 19 e ss., bem como toda a segunda parte da
obra, intitulada El Derecho de Intervención.

197
Leituras Tomistas

europeia não podia mais se fazer nos moldes antigos, tampouco a


civilização, todos aqueles séculos de uma cultura centrada na
razão e na emancipação do homem, podia ficar sem abrigo. O
direito da guerra e o jus gentium em geral, pois, constituem
valiosos instrumentos na luta da civilização contra a barbárie.
Dessa feita, o De Bello dirige-se aos moralistas para a
formação das suas consciências. Este, portanto, constitui o motivo
do caráter casuístico do estudo e de sua localização no Tratado da
Caridade. O tom e a destinação consistiam numa resposta a
Alberico Gentili para quem o estudo da guerra não integra o ofício
do moralista.28 Este escritor, em outro trecho, ao passar por cima
de todas as sutilezas dos escolásticos, havia asseverado que a
justiça de uma guerra não guarda relações com a religião, como se
eles houvessem esposado posição tão rudimentar. Gentili termina
essa observação com a famosa advertência: “Teólogos, em coisas
que não vos dizem respeito, calai!”29 Trata-se de uma resposta à
afirmação de Vitória, descrita anteriormente, acerca da hipertrofia
da função do teólogo. Não há dúvidas de que Francisco Suárez
não poderia deixar de reafirmar a concepção da escola espanhola
em face de tão grosseiro ataque do jurista italiano de Oxford. O
direito de guerra escolástico não era um mero panfleto de defesa
do catolicismo. Tratava-se de um edifício teórico sofisticado e
repleto de nuanças que identificava a justiça na guerra não com a
religião, mas com a civilidade entre os povos. A grande sutileza,
que se revela de difícil percepção, é o fato de que se identifica
civilização com as religiões monoteístas e, em especial, com o
cristianismo.
Isso requer explicação. Para regular o fenômeno da guerra,
não se contava apenas com princípios decorrentes da natureza.
Embora boa parte do direito da guerra se circunscrevesse à lei
natural, havia algumas práticas que escapavam a esse domínio. Os

28
Cf. GENTILI, Alberico. De Iure Belli Libri Tres. Hannover: G. Antonius, 1612.
Disponível na internet em <http://gallica.bnf.fr>. Acesso em julho, 2012, I, 1, 1.
29
“Silete theologi in munere alieno!” (GENTILI, Alberico. Op. Cit. I, 12, 4).

198
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

códigos de cavalaria e a honra militar, bem como alguns


procedimentos em relação aos despojos e à captura de nobres –
normas positivas, portanto – eram reconhecidos como vinculantes.
Escrever sobre a existência de um sistema jurídico de preceitos
aplicáveis a todos os povos equivalia aceitar a ideia de um direito
natural. No entanto, demonstrar a validade de um corpo jurídico
de normas bastante precisas e concretas, em especial com vigência
numa situação tão extrema como a guerra, significava defender
um direito positivo comum. Além disso, esse direito não poderia
mais ser o direito romano medieval: a própria decadência deste e
a descoberta de povos não europeus – os quais nunca conheceram
aquele direito – impediam isso.
Ainda que muitas normas de direito da guerra pertencessem
ao direito positivo – e a sua aplicação ultrapassasse os limites da
lei civil –, isso não implicava a sua validade universal. No século
XIII, distinguiam-se quatro tipos diferentes de guerra, cada qual
com regulamentação própria, de acordo com a sua natureza e com
o inimigo.30 Com a separação das duas cidades e a descoberta dos
povos americanos, o direito da guerra corria o sério risco de nunca
se tornar universal. Poderia conservar-se a existência de guerras
diferentes, cada qual com as suas normas, conforme o contendor.
Nem todos os preceitos deste ramo eram morais; portanto,
escapavam à lei natural, universal por excelência. A maneira pela
qual os teólogos espanhóis conseguiram universalizar esse direito

30
Eram elas: a guerre mortelle, também chamada de “guerra romana” na qual
não se faziam prisioneiros, nem se aceitavam os resgates. Ocorriam, em geral,
contra não-cristãos. Já o bellum hostile se dava entre cristãos e se reconhecia
diversas regras de civilidade: limites aos maus tratos, o resgate de nobres
prisioneiros, etc. A guerre couverte acontecia entre dois nobres vassalos ao
mesmo suserano. Não havia restrições em relação à morte do inimigo, mas a
propriedade deveria ser resguardada. Além dessas três formas, existia ainda o
cerco, que pela sua natureza, encerrava preceitos próprios. (Cf. STACEY,
Robert. The Age of Chivalry. In: HOWARD, Michael; ANDREOPOULOS, George, e
SHULMAN, Mark (org.). The Laws of War: constraints on warfare in the
Western World. New Haven, London: Yale University Press, 1994. pp. 32-39).

199
Leituras Tomistas

foi a de encontrar regras racionais que pudessem propiciar a paz.


É possível compreender o direito de guerra da segunda escolástica
como uma justificativa tanto da política externa da Espanha,
quanto da expansão cristã. Mas também é possível compreendê-lo
como um esforço para propagar a civilidade. Como não se podia
mais universalizar a religião, universalizou-se a civilização. Cabe
observar que a civilização que se conhecia florescia dos valores
cristãos e europeus. Mas era esta a alternativa ao relativismo.

3. A Reinterpretação de Santo Tomás

O Doutor Exímio – parece evidente – não menciona de


forma expressa os termos “civilização” ou “civilidade”, mas eles
correspondem ao sentido geral de todas as suas prescrições
casuístas em direito da guerra. É a opção clara por uma ótica que
perpassa o Direito e atinge a caridade que possibilita ao autor
universalizar noções que não possuem um teor exclusivamente
moral. A fim de que se possa perceber isso, faz-se necessário um
exame mais detalhado desses preceitos. Suárez principia a sua
obra ao fornecer um conceito bastante operacional de guerra: “a
luta exterior que se opõe à paz externa se chama propriamente
guerra, quando se estabelece entre dois soberanos e dois
Estados”.31 Essa definição, embora curta, desvela algumas noções
fundamentais para quem estuda a guerra do ponto de vista da
caridade. O fato de a guerra consistir numa luta exterior que se
opõe a uma paz externa contrapõe-se a perturbações da alma, por
conseguinte, interiores. A guerra corresponde a um vício social,
não individual, o que a distingue de diversas outras corrupções da
paz. Ainda, por constituir uma luta entre Estados, a guerra se
diferencia da sedição (o combate entre o soberano e o seu povo)
ou da rixa e do duelo (entre particulares).

31
“Pugna exterior, quae exteriori paci repugnat, tunc proprie bellum dicitur,
quando est inter duos principes, vel duas respublicas” (SUÁREZ, Francisco. DB,
Proemium).

200
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

O primeiro problema que Suárez precisa enfrentar refere-se


à ideia de que a guerra poderia ser intrinsecamente má. Isso pode
destroçar toda a construção da guerra justa. Correlata a esta
questão, encontra-se a objeção sobre se não há algum óbice ao
cristão de fazer a guerra. O teólogo granadino precisa determinar,
pois, se a guerra não se contrapõe primeiro à natureza humana e
depois à religião cristã. Ele se vale, portanto, de diversas
passagens bíblicas, que já constavam do Decreto Gratiano, para
demonstrar que Deus não quis proibir a guerra. E, naqueles
trechos em que parece haver uma condenação, Suárez mostra que
se dirigia a crítica a outra circunstância, não à guerra em si.32
Além de lícita, há situações em que a guerra é obrigatória,
sob a ótica da caridade. Nas guerras defensivas, todos aqueles que
podem combater possuem o dever de defender a pátria.
Tampouco a guerra agressiva consiste num mal em si mesmo. Este
tipo de guerra, para Suárez, não corresponde a uma expansão
imperialista. A diferença entre a guerra defensiva e a agressiva
reside na injúria. Quando esta se encontra em curso, a resposta do
outro Estado toma a forma de uma guerra defensiva; quando já se
perfectibilizou, a de uma guerra agressiva.33 Dessa feita, nenhuma
guerra em si mesma, quer seja defensiva ou agressiva, atenta
contra a natureza ou o Evangelho.
Como haveria de ser, Suárez retoma as três condições de
justiça numa guerra de Santo Tomás: “primeiro, poder legítimo
para fazer a guerra. Segundo, uma causa justa ou um título
jurídico. Terceiro, que se observe um modo digno e a equidade no
começo da luta, durante as hostilidades e depois da vitória”34.
Fora desses requisitos, deve condenar-se a guerra porque, embora
não constitua um mal em si mesma, ela traz consigo diversos

32
Cf. DB. 1, 2.
33
Cf. DB. 1, 3-5.
34
“Primum, ut sit a legitima potestate. Secundum, ut justa causa, et titulus.
Tertium, ut se vetur debitus modus, et aequalitas in illius initio, prosecutione, et
victoria” (DB. 1, 7).

201
Leituras Tomistas

males. A morte e destruição que toda guerra encerra precisam ser


justificados por um bem maior. Isso não significa a adesão à
máxima de que “os fins justificam os meios”. Contudo, alguns fins
justificam sim alguns meios. Todo o objetivo do restante da obra
vai ser o de aferir quais fins e quais meios são esses. Perceba-se
que o autor modifica um pouco a última condição da “intenção
reta” do Aquinate. Como a guerra versa sobre as ações exteriores,
pode perceber-se a intenção reta somente pelo comportamento
dos contendores na condução das hostilidades.
Suárez passa a analisar, pois, a primeira condição. Como
qualquer pessoa se encontra autorizada pelo direito natural a se
defender, o problema da autoridade legítima não abrange as
guerras defensivas, somente as agressivas. E a autoridade repousa
naquele que detém a soberania. Cumpre salientar que, se o
soberano não se manifesta, a decisão retorna ao povo.35
A guerra deve ser declarada pelo soberano, primeiro,
porque cabe a ele a defesa do Estado. Segundo, porque essa
faculdade (a de declarar guerra) integra o poder de jurisdição. Seu
exercício pertence à justiça vindicativa, “de máxima necessidade
numa república para castigar os malfeitores. Assim, como o chefe
do Estado pode castigar a seus próprios súditos quando fazem
mal a outro, pode também vingar-se de outro soberano cujo
Estado lhe ficou sujeito em razão de um delito”36. A jurisdição do
soberano incide sobre os seus súditos, porque estes integram o seu
povo, mas se estende a um terceiro Estado em decorrência de um
delito. Trata-se de uma concepção penal da guerra: esta representa
uma espécie de sanção criminal. Como não há um juiz superior
aos dois príncipes que possa julgar a contenda, e se quem ofende
não quer reparar, a guerra constitui o único meio possível.

35
Cf. DB. 2, 1.
36
“(...) quae maxime necessaria est in republica ad coercendum malefactores;
unde sicut supremus princeps potest punire sibi súbditos quando aliis nocent,
ita potest se vindicare de alio principe, vel republica, quae ratione delicti ei
subditur” (DB. 2, 1).

202
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Num sistema jurídico primitivo, a autotutela parece consistir


na única maneira de se fazer justiça. É uma forma defeituosa, mas
possível de realizar a justiça. “O que faziam os juristas e teólogos
do século XVI senão acomodar a uma circunstância histórica os
princípios imutáveis e eternos da justiça e do direito natural?”37
Atente-se ao fato de que a lei natural concede a todos os
indivíduos o direito de se defender, mas não o poder de
jurisdição. Essa é a razão pela qual os particulares podem sempre
se defender, mas nunca declarar uma guerra. Em Suárez, não
existe analogia possível entre a guerra e a rusga do particular.
A causa justa para uma guerra corresponde sempre a uma
injúria bastante grave, que não se pode vingar nem reparar de
outra forma. Em princípio, a conservação própria e de seus
direitos justifica o combate. Porém, faz-se necessário que o delito
seja bastante sério: os motivos que os pagãos levantam (a ambição,
a avareza, a vanglória e a ostentação) não servem, porque
qualquer Estado pode invocá-los, o que conduziria ao absurdo de
existir uma guerra justa para ambos os lados.38 Há três classes de
injúrias graves. A primeira ocorre quando um príncipe se apodera
das propriedades do outro; a segunda, quando se nega direitos
consagrados de jus gentium, como o trânsito por uma via pública
ou o intercâmbio internacional, e a terceira, quando a injustiça fere
a reputação ou a honra (dano moral). Essas injúrias constituem
causa de guerra se perpetuadas tanto contra o soberano, como o
povo, ou, ainda, um terceiro aliado. Neste caso, este último, além
do direito, deve manifestar a vontade de reagir por meio da
guerra. Cabe ressaltar que a satisfação da injúria serve até o limite
da indenização do dano, bem como da punição do culpado.39 Em

37
“Qué hacían los juristas y teólogos del siglo XVI sino acomodar a una
circunstância histórica los principios inmutables y eternos de la justicia y el
derecho natural?” (PEREÑA, Luciano. Estudio Preliminar. In: SUÁREZ, Francisco.
Guerra Intervención Paz Internacional. p. 46).
38
Cf. DB. 4, 1.
39
Cf. DB. 4, 3-4

203
Leituras Tomistas

Suárez, a punição constitui uma das modalidades dêonticas da lei


e, portanto, pode ser realizada, de modo justo, pelo Estado
ofendido.
Uma vez que o trabalho versa sobre duas virtudes, pode
haver uma situação bastante interessante em que a causa seja
justa, mas, ainda assim, contrária à caridade. Suárez afirma que se
deve considerar, quando se encontra em face de uma guerra, o
dano do Estado contra o qual se faz a guerra, o dano do Estado
que empreende a mesma, e um dano o qual pode vir a ocorrer
contra toda a Igreja. Neste último caso, há uma evidente
dissociação entre a caridade e a justiça. Ainda que um rei cristão
possua um título justo, na persecução de seu direito, ele pode vir a
enfraquecer outro soberano cristão que esteja a segurar o avanço
dos inimigos da fé. Aqui, o papa pode valer-se de seu poder
indireto de ingerência para impedir que a contenda se consume.
Em relação ao primeiro tipo de dano, não há obrigação de restituir
porque eles foram provocados em virtude da má vontade do
Estado ofensor de fornecer uma satisfação. Mas se, após a vitória,
o ofendido cobrar uma indenização de que não precisa, e a qual o
agressor não pode satisfazer sem gravíssimos inconvenientes, ele
peca contra a caridade. No segundo caso, se o soberano ofendido
se lançar à guerra sem considerar os danos que pode vir a sofrer,
ele atenta contra tanto a caridade, como a justiça que deve ao seu
povo. Ele expõe o seu reino a uma destruição que não guarda
proporção com os bens lesados.40
Trata-se de uma situação muito interessante, pois representa
uma verdadeira concessão que a doutrina da guerra justa faz ao
realismo político. O soberano não deve, ainda que, em princípio, a
justiça lhe assista, embarcar em aventuras temerárias que possam
vir a colocar o seu reino em perigo. Suárez justifica a sua posição
pelo fato de que o príncipe deve zelar pelo bem comum e, neste
caso, o remédio poderia matar o enfermo. Ele ainda observa que

40
Cf. DB. 4, 6.

204
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

essa condição só se aplica em guerras agressivas, porque, nas


defensivas, não há alternativa senão o combate. Acrescenta que
esse critério se refere mais a uma probabilidade do que à certeza
da vitória. Esta, não raro, não se permite desvelar antes da
contenda. Por vezes, sequer interessa ao bem comum esperar por
um grau de certeza absoluta. Além disso, se a exigência fosse da
certeza, nunca um soberano mais fraco poderia declarar guerra a
outro mais forte.41 Nas ações coletivas, não se lida com certezas,
mas com probabilidades e esperanças.
A seguir, Suárez analisa se os príncipes cristãos possuem
outro título justo de guerra além daqueles prescritos na lei
natural. Trata-se de saber se o fato de se professar a fé verdadeira
confere alguma regalia que os pagãos não dispõem, se a guerra é
“mais justa” aos cristãos do que a outros povos. Em princípio,
Suárez responde de forma negativa. Não aceitar a religião
verdadeira não confere nenhum justo título para a guerra, pois a
conversão pressupõe uma adesão interna e não se pode obtê-la
por meio da força. Por conseguinte, a idolatria também não
constitui causa legítima. “Deus não deu a todos os homens o
poder de vingar as injúrias cometidas contra Si, porque poderia
fazê-lo facilmente se quiser”42.
No entanto, se um chefe de Estado obriga, pela força, os seus
próprios súditos a praticarem a idolatria, haveria um título justo
de intervenção por parte de outro príncipe cristão. Neste caso, a
ofensa não atinge a Deus propriamente, mas aos inocentes que
desejam professar a verdadeira fé. Neste momento, Suárez e todos
los maestros espanhóis, cujo pensamento ele sintetiza, revelam o
cerne da escola espanhola da paz. Esse título “não é exclusivo dos

41
Cf. DB. 4, 7-8.
42
“Deus enim non dedit omnibus hominibus potestatem vindicandi suas ipsius
injurias, quia ipse facile id potest” (DB. 5, 1).

205
Leituras Tomistas

cristãos, mas é comum a todos os infiéis que prestam culto a um


único Deus”.43
Eis aqui a maneira como o direito da guerra pode constituir
um mínimo ético. É o monoteísmo, não mais a religião cristã, que
representa a civilidade. É fácil perceber o por quê. O politeísmo
que os europeus conheciam era o paganismo antigo e algumas
escassas notícias das religiões africanas. Em todas elas,
encontrava-se presente a ideia de sacrifícios humanos e de
canibalismo, o que já era considerado bárbaro. Ademais, tanto o
islamismo como o judaísmo, as outras duas grandes religiões
monoteístas, pregavam valores de amor mútuo e respeito ao
próximo, com os quais os cristãos conseguiam identificar-se. Fora
das religiões reveladas, a civilidade não era uma certeza.
A prova de que o argumento de Suárez se centra na
civilização, não na religião, é o fato dele radicalizar o raciocínio.
Príncipes cristãos, portanto, podem intervir em Estados não
cristãos para defender aquele povo de seu soberano idólatra. Mas
podem intervir também em Estados cristãos, se o príncipe se
converteu ao paganismo e resolveu forçar a conversão do seu
povo. E reis muçulmanos podem fazer o mesmo tanto com outros
soberanos muçulmanos que tenham se desviado, como, até
mesmo, com príncipes cristãos. Em nome do monoteísmo e da
civilização, Suárez permite que soberanos não cristãos
intervenham em Estados cristãos.44
Desde Vitória, os escolásticos sabiam que os índios
possuíam títulos justos de propriedade e de domínio de suas
terras. Suárez pondera a concepção aristotélica da escravidão
natural, mas não aceita uma aplicação geral da tese, porque
“existem muitos infiéis melhor dotados do que certos cristãos e

43
(...) non proprius Christianorum est, sed communis cum iis infidelibus, qui
unum tantum Deum colerent” (DB. 5, 3).
44
Cf. DB. 5, 3.

206
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

mais dispostos para a vida política”45. Não se pode, portanto,


privar os infiéis de suas posses, nem de seu governo de modo
justo. Para que isso fosse possível, não bastaria que um
determinado povo fosse menos inteligente. Faz-se necessário que
ele se mostrasse tão atrasado que

vivessem mais como feras do que como


homens (...), [um povo desprovido de qualquer
esboço de organização política, cujos membros
passeiam] inteiramente desnudos, que se
alimentam de carne humana, etc. Se essa classe
de homens existir, é possível sujeitá-los por
meio da guerra não para destruí-los, mas para
organizá-los de modo humano e para que
sejam governados com justiça. Mas este título
raramente ou nunca deve ser admitido, exceto
quando ocorre a morte de inocentes e outros
crimes parecidos. Dessa forma, este título
ajusta-se melhor à idéia de defesa do que a de
guerra agressiva.46

De todo o modo, se existir semelhante título, ele se estende a


todos os reis que desejam defender a civilização, não somente aos
cristãos.
Há – sem dúvida – limites para essa tolerância religiosa. Se
um Estado não cristão deseja se submeter à lei de Cristo, mas o
governante impede, os soberanos cristãos poderiam defender os
inocentes. Porém, se a civilização não se encontrar em perigo, o
mesmo direito não se estende a outras religiões monoteístas. Se

45
“(...) multos esse infideles ingeniosiores fidelibus, et aptiores ad res políticas”
(DB. 5, 5).
46
“(...) potius ferarum more quam hominum vivat, (...) nudi prorsus incedunt,
carnibus vescuntur humanis, etc. Et si qui tales sunt, debellari poterunt, non ut
interficiantur, sed ut humano modo instituantur, et juste regantur. Raro tamen
aut nunquam admittendus est talis titulus, nisi ubi intercedunt occisiones
hominum innocentum, et símiles injuriae: quare potius titulus hic revocatur ab
bellum defensivum, quam aggressivum” (DB. 5, 5).

207
Leituras Tomistas

este mesmo Estado quiser receber a religião maometana e seu


regente não permitir, e neste lugar não se pratica nenhuma
barbárie como canibalismo ou sacrifícios humanos, não haveria
direito por parte dos soberanos turcos de intervir.47 A civilização
identifica-se com o monoteísmo, mas só o cristianismo encerra a
Verdade. E a Verdade pode ser defendida por aqueles que a
conhecem e aqueles somente.
Outro obstáculo, no que se refere ao estudo das causas
justas, que os doutrinadores da tradição do direito de guerra
precisavam defrontar-se corresponde ao da bilateralidade da
justiça numa guerra. Se dois soberanos possuíssem direito a um
mesmo bem, ambos apresentariam um título legítimo. Ocorre que
um teólogo não poderia aceitar isso, pois implica que a vontade de
Deus não seria unívoca, ou a Sua criação imperfeita. Os maestros
espanhóis resolveram esse problema ao apelar para uma
dimensão que Suárez haveria de descobrir nas suas Disputações
Metafísicas: a subjetividade. A justiça, de um ponto de vista
objetivo, permaneceria una, e apenas um lado possuiria, de fato,
um título justo; todavia, se houvesse uma ignorância invencível,
um erro escusável, então haveria, de maneira subjetiva, a
bilateralidade da justiça.
Desse modo, haveria uma obrigação, por parte de cada lado,
em evitar o erro ao máximo. Suárez aceita esse dever. Ele mostra
que existem, em cada contendor, três classes de pessoas
envolvidas numa guerra: o governante, os políticos e os chefes
militares (os quais se encarregariam da estratégia), e os soldados.
Parece lógico supor que essas pessoas se encontram em uma
ordem decrescente de obrigação de diligência na investigação
sobre a justiça da guerra. O soberano deve sempre agir com mais
cuidado. O segundo escalão deve perscrutar com a mesma
atenção se a sua opinião for solicitada; caso contrário, deverá agir
como os soldados. E estes, em geral, devem obedecer aos

47
Cf. DB. 5, 7.

208
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

comandos, salvo se a injustiça for manifesta.48 O estrito


cumprimento do dever legal constitui uma escusa importante,
mas não os exime de toda obrigação moral.
Entre todas essas pessoas, paira sobre o príncipe a
responsabilidade maior. Suárez passa a ensinar algumas regras
para evitar o erro. Se os dois lados possuem direito a uma mesma
coisa, o soberano deve comportar-se como um juiz e, assim, julgar
a qual dos dois a probabilidade favorece. Mais uma vez, o autor
compara a guerra a um procedimento judicial. Se a destruição da
guerra equivale a uma sanção penal, este procedimento de
investigação e atribuição do direito corresponde a um “ato de
justiça distributiva pela qual deve ser preferida a parte mais
digna”49. Se houver igual probabilidade ou uma incerteza muito
grande, o bem deve permanecer com o possuidor, conforme as
normas jurídicas vigentes à época. Se a dúvida precede a posse, o
possuidor posterior deve dar ao outro lado a satisfação
proporcional à dúvida. Apenas na hipótese de igual dúvida – e
ninguém possuir a coisa –, Suárez aceita a bilateralidade da
justiça. Trata-se de uma ignorância invencível. Ainda assim, os
dois reis devem evitar a guerra, dividir a coisa ou buscar outro
procedimento para a atribuição do bem, como o arbitral. Nesta
situação, não há perigo de injustiça; portanto, a arbitragem
apresenta-se como o melhor meio para a resolução do problema.
Somente se uma das partes se recusar a qualquer uma dessas
soluções, ocorrerá a guerra, e ela será justa (apenas
subjetivamente) para ambos os lados.50
Em relação à última condição – o comportamento digno
antes, durante e depois das hostilidades –, Suárez também
distingue obrigações diferenciadas para cada classe de pessoas.
Aqui, o jurista de Coimbra arrola várias hipóteses de jus in bello;

48
Cf. DB. 6, 1-7.
49
“(...) ille est actus justitiaedistributivae, in qua dignior est praeferendus” (DB.
6, 2).
50
Cf. DB. 6, 2-5.

209
Leituras Tomistas

são diversas prescrições bastante pontuais e de difícil


agrupamento. Ele se propõe a responder as seguintes perguntas: o
que se permite fazer aos inimigos?; como deve se portar o rei com
os seus soldados e vice-versa?; como cada classe de pessoa deve
tratar aqueles que os abrigam durante as expedições militares?. O
autor encontra respostas bastante humanas, em face do padrão de
violência da época. Descobre que a reparação deve ser aceita
mesmo com a guerra já em curso, desde que ela ainda não
pendesse, de forma inexorável, para um dos lados. E esta
satisfação inclui a restituição da coisa, a indenização dos danos e o
castigo dos culpados, mas deve agir-se com parcimônia para não
impedir a paz futura. Distingue entre combatentes (todos os que
efetivamente tomam parte das hostilidades e os que poderiam
tomar) e não combatentes (mulheres, crianças e velhos). Mostra
que se deve proteger a vida dos inocentes. Demonstra ainda que,
depois da guerra, quando o vencedor for cobrar a indenização e
punir os culpados, pode dispor dos bens dos inocentes, mas nunca
de suas vidas. Recomenda, todavia, sempre a moderação.51
A seguir, Suárez passa a abordar as chamadas “guerras
mistas” e as “guerras privadas”, nas quais uma ou ambas as
partes não são autoridades públicas e, assim, legítimas. A
primeira delas, a sedição, nem sempre se apresenta injusta.
Quando o príncipe passa a governar não para o bem comum, mas
para o seu bem pessoal, ele se transforma num tirano, e a guerra
do povo contra o seu governante torna-se lícita.52 Por sua vez, a
guerra privada por excelência é o duelo, que equivale à luta de
particulares que ocorre sobre certas condições públicas. Mas há
outra que se dá às escondidas: a rixa. Em ambas, matar alguém
sob autoridade privada revela-se injusto.53

51
Cf. DB. 7. in totum.
52
Cf. DB. 8, 2.
53
Cf. DB. 9, 2.

210
O Direito da Guerra em Francisco Suárez: o projeto civilizador da escolástica espanhola

Conclusões

O direito de guerra escolástico não refletia as normas da


guerra vigentes à época. Los maestros espanhóis escolheram
algumas regras que constituíam uma prática corrente, mas
prescreveram outras que, embora nem sempre decorressem do
direito natural, representavam preceitos que humanizavam a
guerra e dificultavam a sua ocorrência. Não pretendiam acabar
com a mesma porque, na ausência de um juiz universal, ela
cumpre uma função importante de justiça distributiva. Porém,
procuravam fazer da paz o objetivo principal da guerra. Ela não é
um simples fato, mas a realização cruenta do direito a serviço da
paz internacional.
Ainda assim, a guerra justa escolástica representa mais do
que um direito. Se fosse somente um jus, essa construção teórica
se circunscreveria a um determinado continente e tempo. A
justiça, por si mesma, não bastaria para fundamentar o direito da
guerra. Como esse ramo contém preceitos positivos, não se
poderia universalizar a justiça. Dessa forma, o Doutor Exímio
recorre a outra virtude que, embora possua origens religiosas, é
comum a todo povo que atinge um determinado grau de
progresso espiritual: a Caridade. Isso permitiu que o direito da
guerra não se tornasse um direito particular.
Embora o cristianismo não pudesse mais ser universalizado
por causa da Reforma, visto vez que o direito da guerra extrapola
o jus e ingressa no domínio da caridade, o relativismo dá lugar a
uma ordem objetiva de valores. Por isso, essa ordem pode ser
prevista e descrita de antemão, ainda que o estudo resulte numa
obra casuísta. As regras singulares desse tratado, embora de difícil
reunião, todas possuem um fundamento não propriamente
religioso, mas de civilidade.
Por isso, Francisco Suárez pode pensar a guerra sempre em
função da paz. O direito de guerra compreende normas que visam
salvaguardar, entre os povos, a convivência pacífica e harmoniosa
posterior. Na disputação número onze do Tratado da Caridade, o

211
Leituras Tomistas

autor distingue dois aspectos da paz: um positivo, a harmonia de


vontades e unidade de critérios, de fins e de palavras, e outro
negativo, a renúncia a todos os atos que possam dissolver essa
harmonia. Luciano Pereña traduz esses dois elementos como a
justiça – a qual dá ordem e sentido para a atividade dos homens e
das gentes – e o princípio da humanidade – que modera aquela ao
promover laços mais profundos entre os homens, relações de
amor e de amizade.54 Apenas a justiça e a humanidade juntas, o
Direito e a Caridade, podem prescrever regras universais de
civilidade. Na ausência de uma religião válida para todos os
povos, é a civilização que fundamenta o direito internacional.

54
Cf. PEREÑA, Luciano. Estudio Preliminar. In: SUÁREZ, Francisco. Guerra
Intervención Paz Internacional. p. 36.

212
Referências

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213
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214
III. E SPÉCIES DE JUSTIÇA E O P ROBLEMA
DA P UNIÇÃO

Marcos Paulo Fernandes de Araujo

Introdução. 1. A virtude de Justiça. 2. O crime, a pena e a natureza do bem.


2.1. Mal do crime e mal da pena. 3. A qual Justiça, a pena? 3.1 Uma analogia:
razões de bem e espécies de justiça. 3.2 Direito penal e espécies de justiça: a
solução de Santo Tomás de Aquino à luz de outras passagens da Suma
Teológica. 3.3. Pena; débito ou crédito? 4. Fundamentação da pena com base
nos clássicos: uma teoria ainda atual.Referências.

Introdução

A questão “por que punir?” suscita, ainda hoje em dia,


respostas muito diversas. O certo é que muitas delas e,
principalmente as dominantes até mesmo nas faculdades de
direito, costuma promover um deslocamento da questão do
âmbito jurídico, para o âmbito político (ou de política-criminal), o
que não raro resulta de considerações mais ou menos ideológicas,
tendentes a promover uma ou outra agenda. Por conseguinte, o
universo da justiça penal acaba por se constituir, como bem
reparou Francesco d’Agostino, “em um mundo separado, […]
privado […] de um sentido unitário no interior daquele senso
global que deveria governar todo o ordenamento jurídico.”1

1
D’AGOSTINO, Francesco. O problema da justiça penal. In: Quæstio Iuris:revista
do Programa de Pós-Gradução em Direito da UERJ, Rio de Janeiro, n. 2, p. 191-
210, set. 2005, p. 191.
215
Leituras Tomistas

Neste capítulo, pretende-se apresentar o problema da justiça


penal sob uma perspectiva oriunda dos marcos do realismo jurídico
clássico sobre a natureza da pena, integrando-a, como prática de
justiça, no esquema clássico das espécies de justiça tal como
concebido por Aristóteles – com sua classificação de justiça legal e
justiça particular, subclassificada, esta, entre as modalidades
comutativa e distributiva.
Afinal, a justiça, enquanto elemento constitutivo do direito
penal, é uma categoria que, desde o nascimento daquilo que se
pode chamar o direito penal moderno – com a obra do marquês
de Beccaria, Dos delitos e das penas2, publicada pela primeira vez na
segunda metade do século XVIII – passou a perder importância na
consideração dos filósofos e dos juristas no ocidente e, mais
especialmente, nos países de tradição do civil law.
Não que isso tenha ocorrido da noite para o dia,
absolutamente, como bem o evidenciam os escritos de Kant e
Hegel, defensores de concepções retributivas. Porém, as
considerações de Beccaria – que, inegavelmente, contribuiu para
uma redução da brutalidade das penas – já apontavam nesse
sentido. Tal autor realizou algo semelhantemente a Hume com
sua falácia naturalista, mas, ao passo que este teria estabelecido a
‘irracionalidade’ da lei natural, em razão de ela não poder ser
extraída dos ‘fatos’ tal como uma conclusão de premissas, aquele
estabeleceu como princípio a irracionalidade da retribuição
segundo o mal praticado, já que o mal não poderia ser desfeito 3,
convertendo-o portanto em elemento de nenhuma importância
quando da apenação do culpado, em detrimento da vantagem que
este pudesse ter auferido, que deveria ser a medida cuja pena
deveria ultrapassar4, a fim de demonstrar que ‘o crime não

2
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998.
3
Ibid, p.84-85
4
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998,
p. 116.

216
Espécies de Justiça e o problema da punição

compensa’, o que não é exatamente uma retribuição pela obra,


mas antes uma espécie de ‘contra-compensação’ ao seu produto.
Essa postura do jurista milanês, como se poderá vislumbrar,
a partir das explicações que serão apresentadas a seguir, toma por
ponto de partida a teoria do contrato social5 de Hobbes, visão esta
que, segundo Abbà, marca, em caráter definitivo, “o ingresso do
sujeito utilitário” na filosofia moral ocidental6. Essa forma de
encarar a racionalidade prática e, portanto, a justiça, tem por
corolário o defini-la em termos de bens de eficácia. “O que
distingue este tipo de justiça?” A esta pergunta pretendeu
responder MacIntyre na passagem a seguir, em que procura
diferenciá-la da concepção de justiça baseada em bens da
excelência:

Em condições normais de vida nas sociedades


humanas, cada pessoa só pode esperar ser
eficaz em tentar obter o que quer, seja o que
for, se estabelecer algum tipo de cooperação
com outras pessoas, e se essa cooperação
permitir a todos em geral ter expectativas
racionalmente bem-fundadas, uns em relação
aos outros. Assim, será necessário um tipo de
vida social governado por regras, e será
importante, se a obediência às regras deve ser
um meio para alcançar os bens de eficácia, que
a desobediência acarrete a aplicação de
penalidades. Uma penalidade bem-concebida
deve associar à desobediências às regras um
custo avaliado em termos de bens de eficácia,
de forma que para a maioria das pessoas, a
maior parte do tempo, a penalidade pese mais

5
Ibid, p. 64-67
6
ABBÀ, Giuseppe. História crítica da filosofia moral. Tradução de Frederico
Bonaldo. São Paulo: Ramon Llull, 2011, p. 347 e ss.

217
Leituras Tomistas

que qualquer benefício que possa advir da


desobediência.7

Esta visão tende a considerar como bem comum apenas o


útil e, portanto, a equiparar a constituição do direito penal à do
8

direito civil, em que as relações sinalagmáticas são observadas em


relação à vantagem que uma das partes aufere em detrimento da
outra e não como – pelo menos assim se costuma entender – no
direito penal, segundo a culpabilidade do agente, isto é, o grau de
reprovabilidade de sua conduta.
Pretende-se, nas seções a seguir, investigar mais a fundo a
questão do crime e da pena, sob a perspectiva do realismo jurídico
clássico. Neste domínio, a partir das noções metafísicas ensinadas
pelos grandes nomes da filosofia clássica – dentre as quais se
encontram a noção de bem, tal qual tratada por Aristóteles e
Agostinho, assim como a teoria das quatro causas e a teoria da
justiça emanadas também da pluma do Estagirita e sintetizadas
por Tomás de Aquino – serão buscadas respostas para as
seguintes perguntas:
 De um ponto de vista metafísico qual é a natureza
do crime?

7
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? 2. ed. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 47.
8
O Marques de Beccaria, note-se, antecipa em algumas décadas o que virão a
ser mais tarde os ensinamentos de Jeremy Bentham. Seu utilitarismo mostra-se
muito claro nas seguintes passagens: “Abra-se a história e veremos que as leis,
embora sejam ou devam ser pactos de homens livres, a maior parte das vezes
foram apenas instrumento das paixões de uma minoria, ou nasceram tão-só de
uma fortuita e passageira necessidade; veremos que elas não são já ditadas por
um frio observador da natureza humana que em um só ponto concentrasse os
actos de uma multidão e os analisasse segundo este princípio: a máxima
felicidade repartida pelo maior número.” (itálicos do autor) Op. cit., p. 61-62.
“Se o prazer e a dor são os motores dos seres sensíveis, se entre os motivos
que impelem os homens mesmo para as mais sublimes acções o invisível
legislador incluiu o prémio e a pena, […].” Op. cit., p. 75.

218
Espécies de Justiça e o problema da punição


Em relação às formas de justiça discernidas pela
teoria aristotélica – comutativa, distributiva e legal
– onde o crime encontra seu respectivo lugar?
Para tanto, a sequência proposta é o tratamento da virtude
da justiça na primeira seção, o tratamento da questão do mal, do
crime e da pena em uma segunda seção e, finalmente, algumas
considerações sobre a relação entre o direito penal e as espécies de
justiça tal como propostas pelo realismo jurídico clássico.

1. A virtude de justiça

As virtudes, segundo o vocabulário clássico, são hábitos


operativos que aperfeiçoam o agente humano, capacitando-o a
agir constantemente segundo os ditames da reta razão, para
buscar o bem. “A virtude humana torna bons os atos humanos e o
próprio homem”9.
Dentre todas as virtudes humanas, há quatro que, na
tradição filosófica do ocidente, desde há muito adquiriram um
estatuto especial, em relação a todas as outras, são elas as
chamadas virtudes cardeais, e teriam sua origem na palavra latina
cardo, que significa eixo. São portanto, virtudes que funcionam
como eixo em torno do qual se articulam as demais virtudes
humanas. Em número de quatro, segundo a tradição filosófica,
chamam-se temperança, fortaleza, justiça e prudência.
“Qualquer virtude [leciona S. Tomás], por sua própria
natureza, ordena seu ato ao seu próprio fim; mas que seja
ordenada a um fim ulterior, sempre ou algumas vezes, isso não
lhe vem da sua natureza própria, mas se faz necessário o influxo
de uma outra virtude” 10.
Esse fim ulterior deve ser, necessariamente, uma outra
pessoa, já que seria indigno de uma pessoa ordenar-se a uma
coisa, porque o fim das coisas é servir ao homem. Esta outra

9
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica IIa-IIae, q. 58, art. 3,r.
10
Ibidem, q. 58, art. 6, ad 4.

219
Leituras Tomistas

virtude é, dentre as quatro principais, a justiça, pela qual é próprio


ordenar o homem no que diz respeito a outrem. “As demais
virtudes, ao contrário [escreve S. Tomás], aperfeiçoam o homem
somente no que toca a si próprio. Com efeito, temos por justo em
nosso agir aquilo que corresponde ao outro”11. A justiça, portanto,
é a virtude que aperfeiçoa o homem em relação aos outros.
Neste sentido, pode-se distinguir entre vários ‘outrens’ cujo
bem pode ser o fim dos atos de justiça. Ora, “o movimento se
especifica pelo termo a que ele tende. Eis por que à justiça legal
compete ordenar ao bem comum o que é das pessoas privadas: ao
contrário, pertence à justiça particular, através da distribuição,
ordenar o bem comum às pessoas particulares”12.
Esta operação, i. e., a distribuição, porém, não é a única a se
inserir no domínio da justiça particular. Além da justiça
distributiva, existe também a comutativa. Poder-se-ia pensar que
elas só se diferenciassem porque uma destina-se ao bem de um
outro apenas, ao passo que a outra é sempre multitudinária;
ambas, porém, segundo escreve o Aquinate, “se distinguem, não
só pela unidade e multiplicidade, mas pela natureza mesma da
dívida, diversa de cada uma: pois uma coisa é dever a alguém um
bem comum, e outra, dever-lhe o que é próprio”13.
Também os modos de igualdade que ambas estas justiças
comportam são distintos. Afinal, ao passo que na justiça
comutativa as operações dizem respeito à igualdade de uma coisa
a outra – sendo ambas redutíveis a um denominador comum –, a
justiça distributiva busca operar distribuindo as coisas às pessoas,
segundo uma certa razão, isto é, conforme os méritos (no sentido
amplo de títulos) destas – ou seja, pressupõe uma diferenciação
entre coisas e pessoas.
Estas considerações, ainda que sucintas, parecem suficientes
para prosseguir no itinerário previsto, iniciando o tratamento da

11
Ibidem, q. 57, art. 1, r.
12
Ibidem, q. 61, art. 1, ad 4.
13
Ibidem, q. 61, art. 1, ad 5.

220
Espécies de Justiça e o problema da punição

questão da natureza do crime e da pena, mediada pela noção de


bem, a fim de que se possa, posteriormente, relacionar de algum
modo o direito penal, e os principais atos que a ele dizem respeito
– a saber, seu injusto, chamado crime, e seu ato de justiça próprio,
chamado pena – às espécies de justiça elencadas pela tradição
aristotélica.

2. O crime, a pena e a natureza do bem

A pena, segundo soemos entender, pelo menos no que diz


respeito ao âmbito jurídico, é um suplício, um sofrimento, ou, ao
menos, um constrangimento que se dirige àqueles que praticaram
uma conduta criminosa, i. e., um injusto penal, e disso são
culpados. Ela consiste em uma espécie de coerção do poder estatal
que visa não à promoção (isto é, pró –para frente, moção –
movimento) de uma determinada conduta, mas refere-se sempre a
uma conduta pretérita, e perfeitamente acabada.
Como já anunciado, não se trata do escopo deste escrito
deter-se em uma mera visão jurídica do que seja a pena, mas
mergulhar em suas raízes metafísicas. Ora, é sabido de todos (ou,
pelo menos, deveria sê-lo) que o crime, assim como a pena, é um
mal, e no caso deste, inclusive moral14.
Em uma concepção metafísica clássica, é também corrente a
afirmação da inexistência do mal, senão como ente de razão. Isto
é, o mal não possui existência, mas é apenas uma percepção da
privação de um bem, ou antes a privação de um bem percebida.

14
Isso até mesmo um prócere do iluminismo tardio como FERRAJOLI consegue
reconhecer, como pode-se observar na seguinte passagem: “um fato não deve
ser proibido se não é, em algum sentido, reprovável; mas não basta que seja
considerado reprovável para que tenha de ser proibido”. Direito e Razão. 2 ed.
rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 422. Tal obra parece dar
a entender, em linhas gerais, que no pensamento anterior ao iluminismo,
pressupunha-se o pecado (mal moral) como condição suficiente para a
aplicação de penas pela autoridade política, o que jamais encontrou espaço no
ensinamento de Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino.

221
Leituras Tomistas

Para uma investigação sob um prisma metafísico dessas categorias


que representam ‘males’ é imprescindivel, uma vez que o mal não
se define por si mesmo, apresentar uma concepção de bem.
A natureza do bem, segundo a formulação de Agostinho em
seu comentário ao livro do Gênesis, baseada em um trecho das
Sagradas Escrituras, mais exatamente do livro da Sabedoria (Sb
11, 20), em que se afirma de Deus: “tudo dispuseste com medida,
número e peso”, baseia-se em uma tripla característica do bem, a
saber: o modo, a espécie e a ordem. Assim, o mal, a contrario sensu,
consiste na privação de modo, espécie e ordem, por parte de uma
determinada natureza, i. e., de um ente, que não realiza
plenamente sua perfeição.
À concepção agostiniana, S. Tomás vem acrescentar a teoria
das três espécies de bem (útil, deleitável e honesto) –
desenvolvida por Aristóteles, e que não era de todo
desconhecida15 do Bispo de Hipona – e a Teoria das Quatro
Causas. Na visão tomista, essas três características – modo, espécie
e ordem – são como que causas pelas quais um ente pode ser
chamado bom. A primeira delas, o modo, é designada por um
nome que evoca pequenez (de onde, escreve Agostinho, se origina
o adjetivo módico, e outros como moderado e modesto), e
funciona, segundo o Aquinate, como causa material ou eficiente,
ou seja, como pressuposto necessário para que algo seja bom, está
em potência para o bem – tanto passivamente, a fim de que se torne
outra coisa, como ativamente, participando instrumentalmente de
uma transformação. Quanto a ‘espécie’, nome que evoca tanto a
inteligibilidade do ente

15
AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 2. ed. Tradução, organização, introdução
e notas Nair de Assis Oliveira ; revisão de Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus,
1995 (Patrística), p. 140. A classificação agostiniana algo se aproxima da de
Aristóteles quando, em matéria de bem-moral, o bispo de Hipona reconhece o
livre-arbítrio como bem médio (correspondente, pois, ao útil), entre os bens
mínimos que constituem “diversas espécies de corpos” (correspondentes à
categoria do deleitável) e os grandes bens, “as virtudes pelas quais as pessoas
vivem honestamente” (correspondentes à categoria do bem honesto).

222
Espécies de Justiça e o problema da punição

(Já que os entes são conhecidos pela sua espécie) quanto a


noção de beleza (pense-se nos adjetivos ‘especioso’ e ‘formoso’, por
exemplo), diz respeito à causa formal do bem. A última dessas
causas, a ordem, representa a causa final do bem, pois se pela
causa formal um determinado ente é, por sua harmonia, agradável
aos olhos, pela sua perfectividade atrai o agente moral a si,
atuando como causa final. Ela é, portanto, a causa que confere
sentido ao bem, e que possui maior razão de bem16.
A cada uma dessas causas do bem corresponde uma espécie
de bem, segundo a classificação ensinada por Aristóteles em sua
Ética a Nicômaco. Ao modo, que comporta as causas material e
eficiente, corresponde o bem útil; à espécie que, corresponde à
causa formal, corresponde o bem deleitável e, finalmente, à ordem,
correspondem a causa final e o bem honesto.
Porém, como afirmado na Suma Teológica, estas três
categorias não se opõem umas às outras, visando apenas designar
razões de bem, já que a distinção entre elas operada não advém da
consideração de realidades opostas, mas por conceitos opostos17,
de maneira que os três conceitos podem encontrar-se em uma
mesma realidade, ou não. Assim, o deleitável é apetecido somente
enquanto causa de prazer, ainda que seja desonesto ou prejudicial;
o útil, é apetecido enquanto leva a um resultado, ainda que não
proporcione deleite, como o remédio amargo; o honesto, por sua
vez, é aquele tipo de bem que, em si mesmo, contém a causa de
ser desejado.
Deve-se notar que, embora seja possível predicar de entes
que sejam observados separadamente sob cada uma dessas razões
de bem a palavra ‘bem’, não se lhes predica de uma mesma
maneira, isto é, univocamente, mas analogicamente, por

16
S Th., Ia, q. 5, art. 5, r e De veritate, q. 21, art. 6.
17
S. Th, Ia, q. 5., art. 6, ad 2.

223
Leituras Tomistas

proporcionalidade18: afinal, diz-se primeiramente do honesto,


posteriormente do deleitável e, finalmente, do útil.

2.1. M al do crime e mal da pena

Em relação ao mal da pena, escreve S. Tomás: “tudo que se


insurge contra uma ordem, conseqüentemente será reprimido pela
mesma ordem ou pelo que a preside. […] Esta repressão é a
pena”19. Nesse sentido, pode-se pensar no caso do remorso, fruto
da própria ordem que o ser humano encontra em si, ou no
exemplo do sistema imunológico de um animal debelando uma
ameaça microbiana, fruto da ordem do próprio organismo; aquele
que preside uma determinada ordem pode ser retratada na figura
de um pai que castiga os filhos, pois a família é a primeira ordem
social.
Afinal, aqueles que “[…]se apegam desordenadamente a
algum bem criado, incorrem na separação do bem criado e de
outros, que não quiseram […]”20. Ora, para que sejam
reintegrados na ordem, é justo que sofram a punição, pois “[…] o
mal é privação da ordem. Ora, afasta-se mais da ordem a culpa do
que a pena; porque a culpa é em si mesma desordenada, mas
ordena-se pela pena”21 porque, “o bem útil se ordena ao que é
deleitável e ao que é honesto como a seu fim; e, assim, dois são os
seus bens principais, a saber, o honesto e o deleitável; aos quais se
opõem os dois males: sem dúvida alguma, a culpa ao honesto e a
pena ao deleitável”22.

18
S. Th., Ia, q.5, art. 6, ad 3.
19
S. Th., Ia-IIæ, q. 87, art. 1, r.
20
Sobre o Mal, q. 1, art. 4º, ad 1.
21
Sobre o Mal, q. 1, art. 5º, s. c. 2.
22
Sobre so Mal, q. 1, art. 4º, ad 12.

224
Espécies de Justiça e o problema da punição

As sociedades humanas, como bem salientou Giuseppe


Graneris (e muito anteriormente, de certa forma, Aristóteles23, em
sua crítica à República, de Platão), são realidades que não podem
ser tomadas na mesma acepção de entidade e de unidade que os
próprios seres humanos, a não ser por analogia. “A sociedade
recebe sua própria existência da ordem finalista, porque ela é
união ordenada de indivíduos que se unem e se ordenam
orientando-se a um fim” 24. Sua natureza é a de uma unitas ordine,
unidade de ordem.
Deste modo, no caso das sociedades humanas, a pena será
dirigida àqueles cujos atos se voltaram contra a ordem, ou seja,
aqueles que praticaram um ato culpável, contrário ao bem
honesto, e que deverão ajudar a restabelecer a ordem, pela
privação de algum bem deleitável. Afinal, a sociedade política,
segundo Aristóteles, constitui-se em torno ao honesto.25

3. A qual justiça, a pena?

A partir de todas estas considerações, pretende-se responder


à seguinte pergunta: o crime, enquanto injusto, e a pena, enquanto
ato de justiça, estão inseridos em que ordem de justiça, dentre as
apontadas pela tradição clássica – comutativa, distributiva ou
legal?
Para Aristóteles, por exemplo, não resta dúvida de que o
crime é ato de injustiça contrário à justiça comutativa. Santo
Tomás, nesse particular26, subscreve inteiramente a lição do
Estagirita, como se verá adiante.
Esta seção do artigo consiste numa apresentação de algumas
razões para uma reconsideração desse ponto de vista, a partir do

23
A Política, Livro II, 1261a e ss.
24
GRANERIS, Giusepe. Contribución Tomista a la Filosofía del Derecho. Buenos
Aires: EUDEBA, 1977, p. 141.
25
A Política, 1280b-1281a.

225
Leituras Tomistas

próprio ensinamento metafísco-moral de Santo Tomás de Aquino,


pois as considerações metafísicas acima apresentadas podem,
unidas às definições da pena forecidas pelo Aquinate, segundo
aqui se supõe, ajudar a precisar o lugar específico da pena na
teoria clássica da justiça.

3.1 U ma analogia: razõ es de bem e espécies de justiça

Esteve-se comentando, na seção 3, acerca do entendimento


tomasiano do conceito de bem, que, promovendo uma síntese dos
entendimentos aristotélico e agostiniano, proporcionou uma
explicação da natureza do bem superior àquelas outrora obtidas
pelas correntes das quais se serviu.
A síntese operada teve por principal mérito a união de uma
concepção bíblica – extraída do livro da Sabedoria, em que dizia-
se que Deus tudo criou com medida, número e peso; e que,
posterioremente desenvolvida por Agostinho e, portanto, sem
deixar de ser cristã, passou à consideração de número, peso e medida
como espécie, ordem e modo – com uma concepção pagã, do bem
como útil, deleitável e honesto, formulada por Aristóteles – que,
como mencionado acima, era de algum modo, familiar ao bispo de
Hipona – observada sob o prisma da teoria das quatro causas,
também do Estagirita.
Devidamente considerados estes aspectos, abre-se, ao que
parece, uma possibilidade de estabelecer uma analogia entre as
três razões de bem, segundo as quais de algo pode-se predicar que
é ‘bom’, ou ‘um bem’: modo, espécie e ordem, e as três formas de
justiça distinguidas pelo Filósofo, em sua Ética a Nicômaco – geral,
distributiva e comutativa – distinção esta também adotada por S.
Tomás de Aquino.
Começando a conceituação pela categoria mais simples, a
justiça comutativa, pode-se observar, em primeiro lugar, que ela
trata duas espécies de atos de justiça, que abarcam,
respectivamente, aquelas relações que tratam da contraprestação,
diante de uma vantagem proporcionada por outrem ou que

226
Espécies de Justiça e o problema da punição

envolvem uma reparação por um dano, no mais das vezes


infligido a outrem de maneira injusta, porém não-intencional.
Deve-se notar que os bens envolvidos nesse tipo de atos de
justiça, o de contraprestação e o de reparação, comportam sempre
uma compensação pelo bem de que uma das partes dispôs
voluntariamente, em vantagem da outra, ou que perdeu
involuntariamente, com responsabilidade da outra.
Pode-se facilmente constatar, no caso das trocas, que os bens
envolvidos certamente são bens disponíveis, isto é, bens que estão
para a consecução de outros bens. Como já visto, o bem que está
para a consecução de outro pertence à categoria do útil. O bem útil
relaciona-se com a categoria do modo, na filosofia agostiniana a
qual, segundo Santo Tomás, representa tanto a causa material,
quanto a eficiente em relação às outras causas de bem (deleitável e
honesto).
Ora, um bem que é causa material está para outro bem como
aquilo que será transformado neste; o bem que é causa eficiente é
aquele bem cuja operação – normalmente instrumental em relação
ao agir humano – imprime sobre o material a forma que,
alcançada, representará um novo bem deleitável ou honesto.
A peculiaridade do bem enquanto mercadoria e, portanto,
cambiável, é que, ao contrário dos bens que servem de matéria ou
de instrumento de transformação, ele não sofre, nem opera
nenhuma transformação substancial no bem a ser adquirido em
troca dele. Por outro lado, pode-se dizer que os bens enquanto
negociáveis – e, portanto, úteis – constituem o principal aspecto
daquilo que podemos chamar a justiça comutativa, pois são
redutíveis, por convenção (e daí a palavra grega nomisma), a uma
mesma causa material, i. e., o dinheiro. Este, funciona, de igual
modo, e também por mera convenção, como causa eficiente, das
trocas, embora isso só se refira ao mundo jurídico, uma vez que o

227
Leituras Tomistas

dinheiro, enquanto matéria, normalmente é objeto de bem pouca


serventia27.
Não por acaso, também, é essa redução convencional do
valor de qualquer bem a uma unidade mínima igual para todos –
essa comensurabilidade – que torna aritimético o modo próprio de
igualdade da justiça comutativa.
Quando, por outro lado, se está a tratar do valor que cada
bem tem em relação às pessoas que deles se servem, está-se a falar
da justiça distributiva, que diz respeito à adequação de uma certa
qualidade de bens às pessoas. Ou seja, os bens não estão para a
consecução de outros bens exteriores, mas para o próprio bem da
pessoa que dele se serve no seu dia-a-dia. A incomensurabilidade
aritmética desses bens em relação às pessoas dá lugar a um modo
de igualdade geométrica na avaliação da harmonia com que são
distribuídos na sociedade segundo as necessidades ou outras
espécies de méritos das pessoas.
Pode-se pensar, então, que os bens enquanto deleitáveis
estão mais relacionados com a harmonia social, pois são para o
bem-estar das pessoas e não para a aquisição/transformação de
outros bens. Essa relação é muito particularmente evidenciada por
um evento histórico recente: a reabilitação da justiça distributiva
ocorreu justamente no período do chamado Estado de bem-estar
social.
Afinal, a justiça distributiva não serve a que as pessoas
propriamente enriqueçam, mas apenas que lhes seja
proporcionado um certo bem-estar. É por isso que os direitos
enquanto objetos de atos de justiça distributiva devem ter por

27
No caso dos metais, pela sua resistência e condutividade elétrica, é verdade,
não é bem assim; mas no caso do papel, talvez sirva no máximo para dele se
fazerem origames ou sobre ele serem feitas anotações tal juízo se aplica. A
modernidade – embora as letras de câmbio, origem do papel moeda, datem de
fins da Idade Média – tornou o dinheiro ainda mais material do que ele era
anteriormente, afinal, o dinheiro agora é de papel, e este vem da madeira, e
qualquer semelhança entre esta palavra e a palavra ‘matéria’ não é mera
coincidência.

228
Espécies de Justiça e o problema da punição

destinatário final o titular/beneficiado, constituindo-se um desvio


que seja utilizado como fonte de mais ganhos. Pode-se pensar, por
exemplo, no caso de imóveis entregues a pessoas carentes no
âmbito de programas de habitação.
Finalmente, no que diz respeito à justiça geral, ou legal, que
tem por característica determinar aquilo que cada cidadão deve de
si para o bem-comum, pode-se dizer que se refere
primordialmente ao bem-honesto, cuja característica mais
relevante é a consideração da ordem, e não apenas dos aspectos do
deleitável e do útil. Consiste mais na consideração dos fins de uma
ação perpetrada do que na avaliação de coisas ou méritos pessoais
(entendidos estes em sentido amplo, e referidos a coisas).
Neste sentido, ela preserva uma peculiaridade, em relação
às outras, posta em evidência por S. Tomás no seguinte parágrafo:

Quanto ao 3º, deve-se dizer que o bem comum


vem a ser o fim das pessoas particulares que
vivem em comunidade, como o bem do todo o
é de cada parte. Ora, o bem de uma pessoa
particular não é o fim da outra. Eis por quê a
justiça legal, que se ordena ao bem comum,
pode estender-se às paixões interiores, pelas
quais o homem se dispõe de certo modo em si
mesmo, mais do que a justiça particular que se
ordena ao bem de outra pessoa em particular.

3.2 Direito penal e espécies de justiça: a solução de


Santo Tomás de Aquino à luz de outras passagens da
Suma Teológica

Quanto ao problema do direito penal (bem como os atos


humanos que se encontram abarcados por ele), S. Tomás
claramente o insere dentro do âmbito da justiça comutativa, que

229
Leituras Tomistas

regula os intercâmbios entre duas pessoas28 e que podem ocorrer


de modo voluntário, ou involuntário. O primeiro não interessa
aqui, por não dizer respeito àquilo que normalmente se conhece
como o âmbito do direito penal, apenas o segundo.
Acerca deste modo de intercâmbio, diz o Aquinate que
consiste em servir-se de coisa, pessoa ou obra de outrem, contra a
vontade deste. Os exemplos empregados por ele, em relação às
coisas são o furto, no qual se retira algo de outrem sem violência, e
a rapina (roubo), no qual se lhe tira um bem mediante violência.
No que toca às pessoas, exemplifica as situações com as agressões
à sua dignidade ou a seu corpo. Não chega a dar exemplo de uma
situação correspondente ao ‘servir-se de obra’, mas pode-se
pensar em episódios como o estelionato, por exemplo, em que,
mediante fraude, alguém se serve da obra de outrem para
benefício próprio.
Inclui, portanto, diversos atos que podemos classificar hoje
em dia como crimes no âmbito da justiça comutativa, pois,
conclui: “Em todos esses tipos de ações, voluntárias ou
involuntárias, o meio-termo se determina da mesma maneira que
é a igualdade da compensação.” 29
Para provar que o Aquinate estava errado, é necessário
provar ou que: o modo de determinação do meio-termo não
estava correto, ou que não é o modo de determinação do meio
termo que define a natureza da justiça.
Quanto à primeira dessas proposições, pode-se evocar a
própria passagem da Suma que versa acerca do modo de
consideração do meio-termo na justiça comutativa e na justiça
distributiva, o Aquinate levanta uma dificuldade que faz entrever a
imprecisão que torna falha a inclusão da punição dentre os atos da
justiça comutativa.
Tal dificuldade se exprime da seguinte maneira:

28
S. Th., IIa IIæ, q. 61, art. 3, r.
29
S. Th., IIa IIæ, q. 61, art. 3, r.

230
Espécies de Justiça e o problema da punição

Ademais, na justiça distributiva o meio-termo


se estabelece atendendo-se à diferente
dignidade das pessoas. Ora, a dignidade da
pessoa é também levada em conta na justiça
comutativa, por exemplo, nas punições. A pena
é mais grave para quem fere o príncipe do que
para quem fere uma pessoa privada30.

A isto responde o Aquinate que:

Quanto ao 3º, deve-se dizer que nas ações e


paixões, a condição da pessoa determina a
quantidade no plano da realidade; com efeito, é
maior injúria ferir o príncipe do que uma
pessoa privada. E, assim, a condição da pessoa,
na justiça distributiva, é considerada em si
mesma; porém, na comutativa, ela intervém
enquanto diversifica as coisas. 31

A resposta de S. Tomás, conquanto formalmente correta,


não parece satisfatória, pois já deixa entrever que, no campo das
ofensas e das punições, os títulos jurídicos não se consideram
exatamente da mesma maneira como no das transações
comerciais. Aliás, sequer poderiam: se as pessoas podem ser
tomadas como quantidades no âmbito da justiça comutativa,
segundo a importância e prestígio de que desfrutem perante a
comunidade política, não é senão por uma analogia de
proporcionalidade. Coisas e pessoas jamais poderiam ser
equiparadas de maneira estrita.
Um elemento que serve de indício para uma consideração
distinta e, ao que tudo indica, mais correta para o problema do
príncipe agredido, é sugerida no artigo 4º da mesma questão:

30
S. Th., IIa IIæ, q. 61, art. 2, 3.
31
S. Th., IIa IIæ, q. 61, art. 3, ad 3.

231
Leituras Tomistas

Quem fere o príncipe não é punido apenas por


uma ferida semelhante, mas por penalidade
maior. – De forma semelhante, quem causa
dano aos bens de alguém, contra a vontade
deste, sofreria menos do que o mal que fez, se
apenas restituísse o bem roubado, pois tendo
prejudicado a outrem, não teria sido
prejudicado em seus próprios bens. Por isso,
será punido, sendo obrigado a restituir mais,
também porque não prejudicou apenas a
pessoa privada, mas também a república,
infringindo a segurança da proteção que ela
oferece.

Ora, se em toda a agressão a pessoa está subentendida um


prejuízo ao bem-comum, é notório que toda matéria penal, que
comporta em si alguma forma de ofensa à pessoa, terá por
natureza, concomitantemente, o significar um prejuízo também à
comunidade política, que tem também por fim promover uma
vida digna aos seus cidadãos. Além disso, à medida em que a
pessoa injuriada for mais importante para o bem-comum, como,
presume-se, é o caso do príncipe, nesta mesma medida deverá
também variar que a gravidade do crime perpetrado.
Portanto, o crime não pode ser apenas considerado um ato
de injustiça entre particulares, já que comporta igualmente uma
ofensa à república, que tem, entre seus propósitos, oferecer
proteção àqueles que dela participam. Ora, em se tratando de
agressão de um particular à coisa comum, deve ser interpretado
como pertinente à justiça legal, que trata daquilo que as partes
devem ao todo. Como explica Francesco D’Agostino:

[…] exatamente por que quem pune reconhece


(implicitamente) a dignidade de quem é
punido, o punir não é mais ação, por assim
dizer, privada, que concerne somente ao
ofendido e ao ofensor, mas pública; uma ação
que reafirma (paradoxalmente) a universal
paridade dos seres humanos (e, portanto, tanto

232
Espécies de Justiça e o problema da punição

dos juízes como dos julgados), como chamados


e destinados à liberdade.32

Outro argumento favorável a esta conclusão, extraído da


própria Suma Teológica diz respeito às matérias consideradas pela
virtude da justiça. Afinal, toda a virtude tem por escopo retificar
não apenas o ser humano em si mesmo e seus atos, mas também
as coisas pertinentes à prática de tais atos, através de outros atos.
Dentre tudo o que pode ser considerado como matéria da
virtude, i. e. as coisas externas, os atos exteriores e as paixões
interiores, apenas os dois primeiros podem ser considerados como
matéria principal da justiça, pois “as paixões interiores não nos
colocam imediatamente em relação com outrem”.
Não obstante esse fato, explica S. Tomás que:

[…] o bem comum vem a ser o fim das pessoas


particulares que vivem em comunidade, como
o bem do todo o é de cada parte. Ora, o bem de
uma pessoa particular não é o fim da outra. Eis
por quê, a justiça legal, que se ordena ao bem
comum, pode estender-se às paixões interiores,
pelas quais o homem se dispõe de certo modo
em si mesmo, mais do que a justiça particular
que se ordena ao bem de outra pessoa em
particular. 33

Também esta passagem representa, portanto, um ponto de


apoio para a afirmação de que o crime é ato oposto à justiça legal.
Afinal, não há outro ramo do direito que se permita a tal ponto
perscrutar a influência das paixões humanas sobre a conduta,
senão aquele referente às punições dos atos criminosos.

32
D’AGOSTINO, Francesco. O problema da justiça penal. In: Quæstio
Iuris:revista do Programa de Pós-Gradução em Direito da UERJ, Rio de Janeiro,
n. 2, p. 191-210, set. 2005, p. 198.
33
S Th., IIa IIæ, q. 58, art. 9, ad 3.

233
Leituras Tomistas

3.3 Pena: débito ou crédito?

Outra questão que merece aqui ser tratada diz respeito à


posição própria da comunidade política em relação ao indivíduo
apenado na relação jurídica que entre eles se estabelece após o
cometimento do crime.
Como se não bastasse a afirmação de Hegel, no § 100 de suas
Lições de Filosofia do Direito34, de que a pena é um verdadeiro
direito do apenado, seria possível pensar, também do ponto de
vista do realismo jurídico clássico, que a pena realmente é um direito
do réu, pois lhe seria uma coisa devida. Isto está, de certa maneira,
correto, mas não sob todos os aspectos.
A encarar-se dessa maneira o problema, realmente se
haveria de crer que a comunidade política figuraria como
devedora, e aquele a que se está condenando como credor, de uma
singular ‘obrigação’, que se destacaria das demais pelo seu
distinto grau de portabilidade, já que via de regra este último – o
credor – viveria a esquivar-se de receber seu tão merecido crédito
das mãos do devedor.
Esta analogia com o direito privado, de fato, pode não
parecer muito justificada. Essa imperfeição reside, nesse caso, em
que nas obrigações privadas deve-se algo a um credor como
próprio e, no caso da obrigação de punir do poder público, a coisa
devida, a pena, é algo tão próprio que só pode ser devida ao réu
(não se tratando, pois, de justiça distributiva, já que não pode
haver realocação do bem, isto é, a punição do inocente, com a

34
HEGEL, G. W. F. Princípios de filosofia do direito. Tradução de Orlando
Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores., 1990, pp 103-104: “A pena com que se
aflige o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si
da vontade do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito. E
é preciso acrescentar que, em relação ao próprio criminoso, constitui ela um
direito, está já implicada na sua vontade existente, no seu acto. Porque vem de
um ser de razão, este acto implica a universalidade que por si mesmo o
criminoso reconheceu e à qual se deve submeter como ao seu próprio direito.”
.

234
Espécies de Justiça e o problema da punição

função de difundir o temor por toda a sociedade, a fim de que não


se pratique mais crimes, o que corresponderia a uma redução da
pena ao mero papel preventivo geral) , mas é, ao mesmo tempo
algo tão comum, que não é devido ao réu somente por ele (o que
poderia reduzir o papel da pena ao mero papel preventivo
especial, no sentido pedagógico da pena), mas algo devido a ele,
em favor de toda a comunidade, da qual faz parte.
Pode-se dizer então, por exemplo, que da mesma maneira
que o devedor que deixa de cumprir uma prestação de fazer para
com o credor torna-se passível do cumprimento forçado dessa
prestação – a qual, como já se viu, pode vir a ser transformada em
sua causa material, i. e., a uma certa quantia em dinheiro –, o
cidadão, que figura como devedor de certos atos nas relações de
justiça legal, ao praticar um crime, descumpre sua obrigação em
relação à comunidade política, e assim também, continua a
ostentar uma dívida. Deste modo, assim como no caso de uma
obrigação de fazer pode haver redução da dívida à causa material,
que é o dinheiro, ocorre também relativamente à obrigação
jurídica de honestidade, correspondente à seara do direito penal,
em que a dívida pode-se ver reduzida à causa eficiente de todos
os atos, qual seja, a liberdade da vontade, que figura (como o
dinheiro para as mercadorias) como bem-médio35 em relação a
outros bens, em algumas de suas operações, por meio de
constrangimento físico (encarceramento).
De outra maneira, é importante destacar, a punição pode
atingir somente os meios materiais que auxiliam o seu exercício, i.
e., a consecução de bens, ou seja, o dinheiro, pois “a supressão de
meios pecuniários suprime as oportunidades de escolha”36. Isto de
fato costuma ocorrer, segundo qualquer um pode constatar,
naqueles crimes de menor importância. Desse modo poder-se-ia
afirmar que a causa material, que é o dinheiro, tem maior razão

35
Cf., acima, n. 14.
36
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p.
258.

235
Leituras Tomistas

em ser chamado de módico, pois é menor, prestando-se a


supressão de sua posse/propriedade à punição dos crimes menos
relevantes para o bem-comum.
Uma espécie de punição intermediária entre a privação de
meios de aquisição e a limitação física da liberdade poderia
consistir na privação de direitos – licenças, habilitações,
permissões – que embora não constitua limitação física de maneira
atual, pode vir a sê-la, no caso da apreensão do apenado durante a
prática de um dos atos cuja permissão legal lhe havia sido
retirada.
Além disso, seria possível objetar que a dívida partiria do
poder público, que necessitaria recorrer à violência para aplicar a
pena. Ora, esta violência não se encontra tanto na própria
natureza da pena – que consiste, como afirmado acima, em ser
uma privação –, quanto deriva da própria prestação da jurisdição
e do monopólio da coerção reservados ao poder público, que pode
ter de utilizar os meios coercitivos de que dispõe, seja para punir,
seja para fazer cumprir um ato de justiça por meio de outra
espécie de sanção, como, por exemplo, no caso de uma obrigação
de fazer.
Afinal, conquanto a pena seja uma privação, não é sempre
que se configura a necessidade de o poder público promover o
cumprimento desse ato de privação por meio da violência –
embora ela, em si já represente uma espécie de violência contra a
habitual tendência do ser humano para a liberdade, residente na
vontade. A penitência é, pois, em si, ato da justiça legal, sendo
devida com maior razão pelo réu à comunidade, que por esta a
ele, já que este continua a manter a liberdade de submeter-se, ou
não, à apenação, ao passo que o poder público não pode dispor da
pena como bem entende, escolhendo deixar de aplicá-la ou
mesmo decidindo aplicá-la a outrem, como ocorreria naquele caso
dos bens da justiça distributiva, que são coisas comuns
distribuídas aos particulares e a estes devidas, enquanto passíveis
de apropriação.

236
Espécies de Justiça e o problema da punição

4. Fundamentação da pena com b ase nos clássicos:


uma teoria ainda atual

Dadas as considerações tecidas acima, não seria de todo


inapropriado admitir que as questões propostas foram
respondidas de maneira satisfatória. O embasamento metafísico
da teoria de Santo Tomás parece ter sido bem sucedido em
responder à questão sobre o mal e, ademais, a colocar no seu
devido lugar a pena enquanto ato de justiça legal – e não
comutativa, como preconizado por Aristóteles e pelo próprio
Aquinate.
Tal teoria, ao contrário do que se poderia pensar e do que,
efetivamente, pensam muitos, não se embasa em idéias
ultrapassadas. Como ressaltado por René Ariel Dotti ,37 a teoria do
delito que, após alguns anos de causalismo-naturalista e uma
breve transição neokantista veio a prover o melhor modelo
explicativo do delito foi justamente o finalismo de Hans Welzel,
embebido dos ensinamentos de Aristóteles, Santo Tomás e Hegel,
todos tributários da teoria retributivista da pena.
A teoria ora apresentada, portanto, é a mais adequada ao
atual estágio de aplicação da dogmática jurídico-penal, haja vista
que, malgrado o surgimento do funcionalismo na década de 1960,
o finalismo ainda persiste como teoria predominante no Brasil e
em muitos outros países, pelo menos no que diz respeito às
aplicações didáticas e práticas.
De todo o modo – e por que não? –, não poderia vir a se
demonstrar a fundamentação metafísica apresentada por Santo
Tomás capaz de ir ainda mais além, servindo de base até mesmo
uma formulação própria da teoria do delito que se articule de
maneira mais relevante com as formulações referentes à

37
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 386.

237
Leituras Tomistas

aquilatação da gravidade dos crimes, por exemplo?38 Uma teoria


do delito baseada na metafísica clássica é um horizonte a ser
considerado, ainda que não pretenda se prestar ao espírito do
século, mas apenas proporcionar uma explicação das realidades
circundantes mais integradora.

38
Essa integração de teoria do delito e dosimetria da pena já vem sendo
intentada no Brasil por Luiz Regis Prado, por exemplo, (não, por evidente, com
base nas lições do realismo jurídico clássico) no seu Curso de direito penal
brasileiro. (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 5 ed. rev. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005), bem alguns de seus discípulos (cf. CASTRO,
Renato de Lima. A graduação do injusto e da culpabilidade. In: Revista Forense,
Rio de Janeiro, v. 375, p. 453-469, set./out. 2004).

238
Referências

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Bonaldo. São Paulo: Ramon Llull, 2011.

AGOSTINHO, Santo. A natureza do Bem. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2007.

______. O livre-arbítrio. 2. ed. Tradução, organização, introdução e notas Nair de

Assis Oliveira ; revisão de Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995

(Patrística).

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998.

CASTRO, Renato de Lima. A graduação do injusto e da culpabilidade. In: Revista

Forense, Rio de Janeiro, v. 375, p. 453-469, set./out. 2004.

D’AGOSTINO, Francesco. O problema da justiça penal. In: Quæstio Iuris: Revista

do Programa de Pós-Gradução em Direito da UERJ, Rio de Janeiro, n. 2, p.

191-210, set. 2005.

DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 3. ed. rev. e ampl. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006.

FINNIS, John. Lei naturais e direitos naturais. São Leopoldo: Unisinos, 2006.

GRANERIS, Giuseppe. Contribución tomista a la filosofía del derecho. Buenos

Aires: EUDEBA, 1977.

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade?. 2. ed. São Paulo:

Loyola, 2001.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 5 ed. rev. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2005.

AQUINO, Tomás de. Sobre o mal. Tradução de Carlos Ancêde Nougué.

Apresentação: Paulo Faitanin. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005.

______. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005.

239
Leituras Tomistas

______. Quaestiones disputatæ de veritate. In:

http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html. Acessado em 20 jan

2014.

240
IV. D IREITO INTERNACIONAL : O QUE
É JUSTO NAS RELAÇÕES ENTRE OS
IND IV ÍDUOS ORGAN IZAD OS EM E STADOS

Rafael Zelesco Barretto1

Introdução. 1. O Direito em Santo Tomás. 1.1 Justiça geral e particular. 1.2.


Justiça distributiva e comutativa. 1.3. Justiça, direito e lei. 1.4. Direito natural e
direito positivo. 1.4.1 A natureza das coisas. 1.4.2 A lei natural. 1.4.3. O direito
natural. 1.4.4. Lei natural e direito natural. 1.4.5. A função do direito positivo.
1.5. Justiça e equidade. 1.6. Conclusão: o direito para Santo Tomás de
Aquino.2. O direito em Santo Tomás e o direito internacional. 2.1 Definição e
fim do Estado. 2.2. A ação do Estado no plano internacional. 2.3. Justiça geral e
particular no direito internacional. 2.4. Justiça distributiva e comutativa no
direito internacional. 2.5. Lei, direito e justiça no direito internacional. 2.6
Direito natural, direito positivo e direito internacional. 3.7 Justiça e equidade
no direito internacional. Conclusão. Referências.

Introdução

Este trabalho consiste na aplicação do conceito de direito


desenvolvido por Santo Tomás de Aquino à realidade do direito
internacional. O objetivo será examinar se a teoria da justiça
aristotélico-tomista é compatível com o direito que governa as
relações da sociedade internacional.
À primeira vista, parece que há um abismo entre ambos,
alimentado sobretudo pela passagem do tempo. Com efeito, o
jusnaturalismo clássico é bastante anterior à formação da

1
Mestre e doutorando em direito internacional pela UERJ. Professor substituto
de Direito Internacional Público na UFRJ.
241
Leituras Tomistas

comunidade dos Estados. Esta, por sua vez, é comumente


identificada como sendo o pressuposto material indispensável à
existência do direito internacional. Ora, se Santo Tomás (seguindo
Aristóteles) elaborou suas teorias sobre o direito em plena Idade
Média, seus ensinamentos a princípio não seriam aplicáveis à
relação entre Estados. O jusnaturalismo tomista, assim, não teria
modo de explicar juridicamente o fenômeno das regras que
obrigam os atores da sociedade internacional.
Tal conclusão intuitiva é de certo modo reforçada quando se
pesquisa o tratamento dado por Santo Tomás de Aquino, em sua
Suma Teológica, a uma das questões mais pungentes para os
internacionalistas de qualquer época: o regramento da guerra.
Sabe-se que o Aquinate desenvolve a tradicional teoria da guerra
justa, conhecida no mínimo desde Santo Agostinho, de uma
maneira muito prudente, afirmando a possibilidade teórica de que
um conflito armado seja levado a cabo por justiça, mas sem deixar
de impor diversas restrições ao jus ad bellum dos príncipes.
Interessante é notar em que ponto da Suma se trava esta
discussão: o mestre dominicano está na primeira seção da
segunda parte de sua obra (Prima Secundae), em pleno “Tratado da
Caridade”. Sim, para o Doutor Angélico, a guerra consiste antes
de mais nada em um pecado contra a caridade cristã. A não ser
que se trate de uma luta por justiça, o que motiva o estudo feito na
40ª questão da Prima Secundae.
Observa-se assim que, em sua obra magna, Santo Tomás
situou o problema central do direito internacional – a guerra – a
muitas páginas de distância seja do Tratado da Lei, seja do
Tratado da Justiça. A difícil questão que provavelmente
atormentou a consciência de mais de um nobre medieval, saber se
o combate contra seu vizinho encontraria boa acolhida aos olhos
de Deus, foi considerada pelo Doutor Angélico como uma dúvida
sobretudo de retidão interior: ao fazer a guerra, estaria o príncipe
agindo por caridade ou com concupiscência?
Em um dos apartados finais deste artigo, examinar-se-á com
mais vagar a doutrina tomista da guerra justa. Por ora, basta
salientar que Aquino não menciona a existência de tratados

242
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

anteriores proscrevendo o combate ou de um costume


internacional que deslegitimava as operações bélicas. Também
não faz referência a interesses vitais dos Estados, segurança
nacional, direitos humanos ou qualquer dos diversos conceitos
jurídicos com os quais os políticos de todos os séculos buscaram
justificar o recurso às armas. Ao invés, trata da questão, poder-se-
ia dizer, colocando-se na posição de um confessor que deve dizer
ao guerreiro que o procura se cometeu ou não uma falta contra
Deus, pela qual deveria pedir perdão. Não há uma teoria das
relações internacionais subjacente à sua análise; Santo Tomás
preocupa-se com almas individuais, não com interesses
geopolíticos e políticas nacionais.
Com isso, parece que estas páginas estão fadadas ao
fracasso. O monge italiano não tinha como conhecer ou prever a
complexa realidade global dos últimos cinco séculos e, assim, não
se preocupou em absoluto em esclarecer os meios pelos quais os
Estados pudessem basear sua convivência em comum na justiça.
Outra crítica imaginária ao projeto deste trabalho poderia
muito bem partir de um autor cujo centenário se celebra neste ano,
e que sem dúvida é uma voz que merece ser ouvida em qualquer
estudo jurídico sobre Santo Tomás depois do século XX. Boa parte
dos créditos pelo ressurgimento do interesse pela teoria clássica
do direito natural na América Latina nos últimos trinta anos cabe
ao filósofo, romanista e historiador do direito Michel Villey. Em
suas obras, o autor francês se pronuncia animadamente pela
perenidade do jusnaturalismo clássico, denunciando o que
enxerga como os males do subjetivismo típico da modernidade e
concluindo pela superioridade das filosofias do Estagirita e do
Aquinate perante os positivismos e pós-positivismos que
dominam o panorama jusfilosófico atual. Tratando-se de um
veemente advogado do Doutor Angélico que viveu em pleno
século XX, é interessante saber, pois, o que pensava Michel Villey
sobre a problemática do direito internacional: Há um lugar para o
direito internacional em uma teoria jurídica autenticamente
tomista?

243
Leituras Tomistas

A arte de ‘atribuir a cada um a parte que lhe


cabe’ não se aplica às relações internacionais.
No conflito entre Israel e seus vizinhos,
teríamos bastante dificuldade em afirmar a
quem pertence, de acordo com a justiça, tais
pedaços disputados da Palestina. A
comunidade entre nações é demasiado vaga,
inorgânica, para que a pergunta receba uma
resposta. Não há lugar aqui para o jogo da
justiça em sentido estrito. Qual a única coisa
que se pode exigir de Israel e de seus inimigos?
Que respeitem certas leis comuns que são
regras de moralidade (justiça ‘geral’). Devem
obedecer às seguintes prescrições: não torturar,
não bombardear civis ou fazer reféns, mostrar
um certo espírito de paz, um mínimo de
humanidade – e, na medida do possível, se as
coisas não mudaram muito, observar as
tréguas, os tratados, manter as promessas.
Aplicação de uma certa moral comum que,
entretanto, pode ser rompida a qualquer
momento com base na avaliação da relação das
forças oponentes.2

Nada de direito internacional, portanto. Para Villey, o que se


designa popularmente por este rótulo não é mais que um conjunto
de considerações de moralidade, humanidade e conveniência.
Não é por nada que o parágrafo acima transcrito é encerrado com
uma menção ao antigo secretário de Estado norte-americano
Henry Kissinger.

2
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pags. 83-
84. Em outra obra, ao comentar o pensamento de Francisco de Vitoria, o
mesmo autor afirma que “a construção de um ‘direito’ internacional é um sinal
da corrupção da teoria autêntica do direito natural”. VILLEY, Michel. A
formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
pag. 385.

244
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

A reticência do autor francês para com o direito


internacional explica-se em parte por seus próprios
particularismos3, mas em parte também por uma aparente
impossibilidade de aplicar a teoria da justiça de Santo Tomás ao
direito internacional. Com efeito, constitui um aspecto por vezes
negligenciado no estudo do Aquinate sua abordagem do direito a
partir da teoria das virtudes: direito é o resultado de uma busca
sincera, honesta, sobre o que deve ser feito em determinados
casos. É difícil imaginar o Estado preocupando-se em amealhar
virtudes, ou o governo de um país contemporâneo muito
interessado em saber o que deve ser feito, caso não corresponda
ao interesse nacional egoísta. Aplicar a doutrina tomista ao direito
internacional pareceria fornecer aos governantes de hoje um
excelente depósito de pretextos para imputarem injustiças a seus
vizinhos e desvincular-se de obrigações positivas previamente
assumidas.
Em contrapartida, este texto procurará argumentar pela
compatibilidade entre o jusnaturalismo clássico e o direito
internacional. Ao contrário do que muitos autores apresentam na
história do pensamento jurídico4, pensa-se aqui que não será
preciso esperar até que Francisco de Vitoria e Francisco Suárez
transponham as conclusões de Santo Tomás para a Idade
Moderna para que o tomismo se aproxime do direito
internacional. Pensa-se que a teoria jurídica do Doutor Angélico
contém em si todas as condições necessárias para aplicação a
qualquer tipo de realidade humana, incluindo aí as relações que
ultrapassem fronteiras.

3
Villey interpreta Santo Tomás de modo especial entre os jusnaturalistas
atuais, enfatizando o papel da prudência do juiz na determinação do que é o
direito, em detrimento da função da lei que, para ele, estaria mais próxima da
moral.
4
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, pags. 383-389. BARCÍA TRELLES, Camilo. Francisco de
Vitoria et l’école moderne du droit international. In: Recueil des cours de
l’Académie de Droit International de la Haye, vol. 17 (1927-II), pags. 109-342.

245
Leituras Tomistas

Não se deseja, por outro lado, fazer uma espécie de


“necromancia” de Santo Tomás e procurar imaginar o que ele
“diria” sobre a realidade internacional do século XXI. O Doutor
Angélico se movia em um contexto completamente distinto, e o
intuito deste artigo não é comparar as entidades políticas
medievais com o Estado contemporâneo. Trata-se tão somente de
recorrer a seus escritos buscando uma teoria do direito que não
recue perante o desafio apresentado pela sociedade internacional
dos dias de hoje.
As páginas a seguir foram assim ordenadas: após esta
introdução, será apresentada a doutrina jurídica de Santo Tomás.
Esta será estudada a partir de cinco distinções que, além de
parecerem úteis e didáticas, também são encontradas no
pensamento do autor estudado, embora não na ordem aqui
proposta: trata-se das separações entre justiça geral e particular5,
entre justiça distributiva e comutativa6, entre lei, justiça e direito7,
entre direito natural e direito positivo8 e entre lei e equidade9. No
apartado seguinte, tomar-se-á cada uma destas diferenciações a
fim de examinar se estas mantêm seu sentido no âmbito do direito
internacional público. Para isto, buscar-se-á, a fim de clarificar o
exposto, lançar mão de alguns exemplos concretos nos quais a
doutrina tomista será experimentada: os grandes postulados
internacionais da inviolabilidade territorial, da obrigatoriedade
dos tratados, do respeito às regras da diplomacia e do jus cogens
serão brevemente estudadas a partir de um ponto de vista
jusnaturalista. Da mesma forma, fatos recentes como a intervenção
da Organização do Tratado do Atlântico Norte na Guerra Civil

5
AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. Madri: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001, II-II q.58 a.7.
6
Ibidem, II-II q.61 a.1.
7
Ibidem, II-II q. 57 a.1, q.58 a.1 ad 5.
8
Ibidem, I-II q. 95.
9
Ibidem, II-II, q. 66, a. 5, q. 69, a. 4, ad 3. Ver também: AQUINO, Tomás de.
Commentary on the Nicomachean Ethics. Chicago: Henry Regnery Company,
1964, Livro V, pars. 1078-1090.

246
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Líbia e a controvérsia sobre o asilo diplomático concedido pelo


Brasil ao ex-senador boliviano Roger Pinto serão mencionados.
Devido à natureza e escopos deste trabalho, tais casos não
poderão ser aprofundados com a minúcia desejada, pois se trata
somente de conferir maior clareza à discussão teórica encetada.

1. O direito em Santo Tomás

A filosofia jurídica de Santo Tomás de Aquino pode ser


encontrada principalmente em duas partes da Suma Teológica: no
Tratado da Lei, compreendido na Prima Secundae, questões 90 a 97,
e no Tratado da Justiça, que está nas questões 57 a 79 da Secunda
Secundae. Sobretudo no segundo trecho, Santo Tomás retoma de
modo mais ordenado e detalhado a discussão encetada por
Aristóteles acerca da virtude da justiça como uma parte da ética.
Desta forma, os “Comentários” do Doutor Angélico à “Ética a
Nicômaco”, particularmente as páginas referentes ao Livro V
desta, também serão de valia no exame de seus ensinamentos
sobre o direito. Outra fonte importante será o opúsculo De Regno10,
obra política inacabada dedicada pelo mestre dominicano ao rei
do Chipre como repositório de conselhos para o governo de sua
nação.
Em relação às duas partes da Suma que serão estudadas,
vale ressaltar sua localização dentro do esquema geral da obra
magna de Santo Tomás: esta, concebida para ser uma introdução à
teologia para “os que estão iniciando” seus estudos11, divide-se em
três grandes partes. A primeira refere-se a Deus. A segunda trata
do homem, estudado enquanto imagem de Deus e orientado para
Ele. Esta segunda parte, por sua vez, está dividida em duas: a

10
AQUINO, Tomás de. Do Reino ou Do Governo dos reinos ao rei de Chipre. In:
(mesmo autor) Escritos Políticos de Santo Tomás de Aquino, tradução de
Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995
11
AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. Madri: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001, Prólogo.

247
Leituras Tomistas

primeira seção (Prima Secundae) trata dos fins do ser humano e das
características gerais dos atos humanos, os quais devem ser
realizados visando alcançar o fim do homem. A segunda seção
(Secunda Secundae) desenvolve o tema dos atos humanos
especificando as virtudes pelas quais estes devem guiar-se. Por
fim, a terceira parte centra-se na figura de Jesus Cristo, como a
pessoa na qual se dá o encontro entre Deus e o homem. Assim, a
Suma Teológica possui uma estrutura circular: começa tratando
de Deus, logo a análise desce ao homem, criatura mais perfeita de
Deus, para depois estudar o modo pelo qual Deus se inclina até
alcançar o ser humano fazendo com que este possa chegar até
Deus.
Neste quadro, as questões que interessam para um estudo
jurídico encontram-se na segunda parte da Suma, referente aos
atos humanos. O Tratado sobre a Lei está na parte dedicada aos
atos humanos em geral, isto é, a todas as circunstâncias que
influem na conduta dos indivíduos. O estudo do Aquinate neste
ponto divide-se em dois: primeiro ele trata dos atos em si mesmos,
analisando a vontade racional que move o homem e as diversas
paixões que agem sobre este. Depois, escreve sobre os princípios
que podem orientar os atos humanos. Estes princípios são os
hábitos bons, chamados virtudes, e os hábitos maus, ou vícios, que
são princípios internos, já presentes no homem e para os quais ele
possui inclinação (embora possa lutar contra inclinações más). E
também existem princípios extrínsecos ao homem, isto é, que
atuam a partir de fora, de outro sujeito, em relação a ele. Santo
Tomás faz uma breve referência ao diabo, que pode efetivamente
tentar o homem, insinuando princípios incorretos para a ação.
Outros princípios extrínsecos são a lei e a graça. O Tratado sobre a
Lei, portanto, almeja investigar de que forma alguns preceitos
externos obrigam o homem e até que ponto este pode descobrir
tais preceitos e decidir quando guiar-se por eles.
O Tratado sobre a Justiça é encontrado na parte seguinte,
dedicada ao estudo dos atos humanos em particular. Aqui, Santo
Tomás se empenha em distinguir entre as diversas condutas
usando como critério a matéria moral à qual se dirigem. Cada

248
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

aspecto da moralidade corresponderá a uma virtude. Logo, o


estudo cinge-se a um exame das variadas virtudes,
compreendidas como meio de especificar os atos humanos. O
exame começa com as virtudes teologais, que falam de Deus: fé,
esperança e caridade. Em seguida, vêm as virtudes cardeais, que
são as quatro mais importantes no que se refere à vida do homem
em sociedade: prudência, justiça, fortaleza e temperança. A justiça
é, pois, estudada como uma virtude, um hábito bom que deve ser
adquirido pelo homem para que este conduza uma vida boa em
sociedade e perante Deus.
As cinco distinções que serão feitas a partir de agora não
correspondem à sequência linear da exposição tomista na Suma. A
ordem de apresentação equivale, grosso modo, à ordenação seguida
por Aristóteles no Livro V da Ética a Nicômaco, obra
superlativamente citada pelo mestre dominicano nesta parte.

1.1 Justiça geral e particular

O que é a justiça? Trata-se, segundo Santo Tomás, da virtude


que induz a dar a cada um o que lhe é devido. Sendo uma virtude,
é um bom hábito, que se pode adquirir ao longo da vida e que
pode crescer ou diminuir no individuo de acordo com suas ações
mais frequentes. É importante notar que entregar a cada um o que
lhe é devido é um componente essencial de toda e qualquer
virtude – tanto as que se orientam diretamente a Deus, como a
virtude da fé, como aquelas que se dirigem aos outros homens,
como a virtude da alegria, por exemplo. Dado que o homem é um
animal social, que só encontrará felicidade e realização fora de si
mesmo, todo bom hábito moral que se pode desenvolver terá
necessariamente um componente “centrífugo”, que o impelirá
para além de seu egoísmo pessoal.
Então, a justiça possui um componente que é, de certa
forma, comum a toda virtude: dar a cada um o que lhe é devido.
Quando se considera, por exemplo, que o homem nasce e vive em
sociedade, parece evidente que o indivíduo deve algo à sociedade.
É um dever moral do cidadão tratar bem seus semelhantes,

249
Leituras Tomistas

interessar-se na medida do possível pela sorte de sua sociedade,


preocupar-se com os demais, buscar educar, de acordo com suas
circunstâncias pessoais, os mais jovens etc. Em síntese, ser uma
boa pessoa não é só algo a que se deve aspirar por intuição
subjetiva, mas um dever verdadeiro que cada pessoa tem para
com os demais que formam a sociedade, pois sem esta o sujeito
não se desenvolveria propriamente como ser humano racional.
As virtudes, os bons hábitos que o homem pode adquirir,
têm por função auxiliá-lo a atingir sua realização pessoal, a qual
estará indissoluvelmente ligada à realização de seus próximos.
Não é possível ser feliz sozinho. É por isso que toda e qualquer
virtude possui um componente social, além de suas exigências
individuais. Há uma parte da virtude que se refere aos outros.
Esta parte também pode ser descrita como uma exigência de “dar
a cada um o que lhe corresponde”, pois há uma verdadeira
obrigação moral (não jurídica) de retribuir de alguma forma,
sendo uma boa pessoa, tudo aquilo que já se recebeu da
sociedade.
É por isso que o Doutor Angélico, na esteira de Aristóteles,
propõe uma primeira divisão no conceito de justiça: enquanto
virtude, a justiça pode ser geral ou especial. Será geral enquanto
parte integrante de todo e qualquer hábito bom. Neste sentido,
será a parte da virtude que impelirá em direção aos outros, que
ajustará o indivíduo aos demais.
Mas a justiça possui igualmente outro sentido: pode
consistir em uma virtude autônoma, na qual o suum cuique tribuere
não representa somente uma parte, mas o essencial. Esta justiça
particular, sendo também uma virtude, ordena o homem em um
aspecto específico de sua existência. Seu rasgo distintivo está em
que se ordena diretamente às coisas, e indiretamente ao bem
comum. As outras virtudes, nas quais a justiça (geral) compõe
somente uma parte, e não o essencial, também se ordenam
indiretamente ao bem comum, como última finalidade social. Sua
diferença para com a justiça particular está na ordenação direta:
elas se interessam primeiramente pelas outras pessoas, e não pelas
coisas.

250
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Dito de outro modo: ao contrário das demais virtudes, a


justiça particular busca primeiramente ordenar o homem em
relação às coisas, sempre que estas digam respeito igualmente a
outros homens: Em palavras de Santo Tomás, ela “ordena-se a
outro”, mas “não versa sobre toda a matéria da virtude moral,
porém somente sobre as ações e coisas exteriores, com relação a
certa razão especial do objeto, isto é, na medida em que, por elas,
um homem se coordena com outro.”12 A justiça particular “ordena
o homem sobre as coisas que se referem a outra pessoa singular”13.
As demais virtudes ordenam o homem primeiramente em relação
a si mesmo e aos outros, e somente consideram as coisas a partir
desta finalidade.
Em relação à expressão “dar a cada um o que lhe é devido”,
pode-se afirmar que a justiça particular enxerga o “devido” como
um bem exterior, um verdadeiro objeto que corresponde a algum
titular, enquanto que a justiça geral o entende como uma
qualidade interior, que deve ser posta à disposição dos demais.
Como se vê, são realidades complementares.
A justiça particular é a “justiça dos juristas”14, aquela que se
relacionará com as diversas coisas que as pessoas podem ter,
perder, adquirir, trocar ou receber. Já a justiça geral será a “soma
das virtudes”15, indicando o que o homem deve ser para
corresponder a sua natureza humana na vida em sociedade.
Como a justiça particular ordena a relação entre dois ou
mais homens e as coisas, ela incide sobre a parte exterior da ação
humana; preocupa-se mais com a conduta do homem que com a
intenção com a qual esta conduta foi realizada. A propriedade de

12
AQUINO, Tomás de. op.cit. II-II, q. 58, a. 8. Todas as citações da Suma
Teológica foram livremente traduzidas.
13
Ibidem, II-II, q. 58, a. 7.
14
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pags.
64-65.
15
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de António de Castro Caeiro. São
Paulo: Atlas, 2009, 1129b.

251
Leituras Tomistas

alguém pode ser respeitada por outrem, por exemplo, por motivos
utilitários, egoístas etc. Mas o fato é que o respeito à propriedade
torna aquela relação justa, porque a relação original entre sujeitos
e bem não foi arbitrariamente alterada.
Já a justiça geral refere-se mais ao interior do indivíduo,
buscando aperfeiçoar sua intenção (a moral cristã fala em “retidão
de intenção”). Para que se adquira uma virtude como piedade,
coragem, alegria, paciência, generosidade etc., não é relevante que
se possua muitos bens. As coisas podem ser necessárias para
alguma virtude (como a generosidade), mas não são o principal. É
possível, por exemplo, realizar o ato da generosidade (dar uma
esmola). Porém, se tal ação não for acompanhada por uma
intenção correspondente, o indivíduo não terá sido virtuoso. No
exemplo da esmola, imagine-se uma alta quantia doada por
razões de promoção pessoal, por medo de sofrer um assalto, para
exibir superioridade etc. Por maior que tenha sido o objeto da
ação, a falta da intenção correspondente tornará tal ato
moralmente nulo, ou até nocivo. Já uma quantia muito menor
pode ser ofertada com um espírito generoso, caso haja a real
preocupação com o receptor da doação. Neste caso, ter-se-ia a
virtude. Portanto, as coisas são ou irrelevantes ou secundárias nas
virtudes. A exceção está na virtude da justiça particular.
Nesta, como já dito, o quadro muda. A intenção passa a
contar menos (embora nunca seja irrelevante, pois senão o ato
seria irracional). O que importa, para a justiça particular, é saber
se cada um recebeu aquilo que lhe correspondia. O motivo
interior pelo qual recebeu ou deixou de receber não é tão
importante quanto a realização do ato. Neste sentido, apenas
desejar não pagar uma dívida não é uma injustiça. E pagá-la
impelido unicamente pelo medo de sofrer sanções legais também
não é injusto. A justiça, no sentido aqui examinado, está no
resultado da ação: o pagamento da dívida é uma exigência da
justiça.
Esta distinção entre a justiça como virtude autônoma (justiça
particular) e o aspecto centrífugo das demais virtudes (justiça
geral) é extremamente útil para saber se, em algum caso concreto,

252
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

houve ou não uma injustiça com a qual o direito deva preocupar-


se. Como já dito, os juristas examinarão somente a justiça
particular. Algo foi subtraído arbitrariamente de alguém? Dever-
se-á reparar tal situação. Mas, se não houver a introdução
repentina de um desequilíbrio na relação entre homens e coisas, o
caso deixa de interessar ao direito, por mais que se possa falar
muitas vezes em “injustiça” no sentido moral. Deixar de ajudar
algum necessitado, por exemplo, dificilmente será de interesse da
justiça particular, por mais que tal omissão possa ser relevante do
ponto de vista de outras virtudes e da moral como um todo.
Interessante observar, neste ponto, que Santo Tomás por
vezes utiliza um sinônimo para justiça geral já encontrado em
Aristóteles: fala em “justiça legal”. É preciso esclarecer que se trata
de outro desdobramento da mesma ideia: o Estagirita e o
Aquinate coincidem em que a principal função da lei é fazer com
que os cidadãos sejam boas pessoas. Embora o homem seja livre e
a lei não possa forçar ninguém a ser virtuoso, seu papel é
promover a virtude, fazendo com que os cidadãos, na medida do
possível16, ajam de acordo com os bons hábitos indispensáveis à
convivência, ainda que alguns só a obedeçam por medo ou
costume, e não de modo consciente. Assim, cabe à lei promover a
prática generalizada da virtude. Portanto, justiça legal, isto é,
decorrente da lei, corresponde à justiça geral:

O ato de qualquer virtude pode pertencer à


justiça, enquanto esta ordena o homem ao bem
comum. E neste sentido se chama a justiça de
virtude geral. E, posto que pertence à lei
ordenar ao bem comum, como antes se
expressou [...], segue-se daí que tal justiça,
denominada geral no sentido mencionado, se
chame justiça legal, isto é, porque por meio

16
ARISTÓTELES, op.cit., 1130a.

253
Leituras Tomistas

dela o homem concorda com a lei que ordena


os atos de todas as virtudes ao bem.17

Uma vez delimitado o campo de aplicação da justiça


particular, é preciso ter em mente que, doravante, o termo
“justiça” será empregado nesta última acepção, reservando-se
“justiça geral” para quando se necessitar mencionar a justiça
presente em todas as virtudes.

1.2 Justiça distributiva e comutativa

Justiça é dar a cada um o que é seu. Como isso pode ser


feito? Santo Tomás explica que a justiça trata de certas operações
exteriores realizadas pelas pessoas18. Uma vez que o ser humano
está sempre em sociedade, suas ações só podem ser bem
compreendidas se analisadas em conjunto com seu contexto
social. Assim, o indivíduo pode ingressar em relações de dois
tipos: com outros sujeitos particulares ou com a sociedade como
um todo. No primeiro caso, sua relação comportará uma lógica de
troca; no segundo, tratar-se-á de uma distribuição19.
A conduta exigida pela justiça variará de acordo com a
espécie de relação envolvendo coisas na qual o indivíduo
ingressou. Por isso, costuma-se usar termos diferentes para
denominar a justiça correspondente a cada situação: operações de
troca entre particulares são reguladas pela justiça comutativa,
enquanto que casos de distribuição entre o todo e as partes da
sociedade ordenam-se pela justiça distributiva. Não são duas
outras espécies de justiça, ao lado da geral e da particular, mas são
operações da justiça particular.
Ambas buscarão o mesmo resultado, que é o objetivo da
justiça em sentido estrito: a igualdade, uma certa proporção

17
AQUINO, Tomás de. op.cit. II-II q. 58 a.5.
18
AQUINO, Tomás de. op.cit. II-II q. 61 a.3
19
Ibidem, II-II q. 61 a.1

254
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

correta entre coisas e pessoas: “A matéria da justiça é a operação


exterior enquanto esta, ou a coisa da qual se faz uso, tiver a
respeito da outra pessoa a devida proporção. E, em consequência,
o meio da justiça consiste em certa igualdade da proporção da
coisa exterior à pessoa exterior.”20 Porém esta igualdade será
determinada de modo diverso, de acordo com aquela das duas
situações da qual se trate.
No caso da justiça comutativa, esta regula relações de troca
entre sujeitos iguais entre si. Portanto, a igualdade requerida é de
tipo aritmético, na qual as quantidades postas na relação por cada
uma das partes sejam equivalentes. A justiça aqui está em sair de
uma operação de intercâmbio com o mesmo patrimônio do qual
se dispunha antes de ingressar nela. Caso haja acréscimo de
patrimônio por causa da relação de troca, esta não foi justa, pois o
que se ganhou corresponderá ao que a outra parte perdeu. Para
que os dois integrantes da relação se tratem reciprocamente como
iguais, a troca não deverá comportar variação patrimonial: o que
um oferece deve ter o mesmo valor do que o outro propõe em
troca.
Esta formulação levanta alguns problemas. Por exemplo,
como saber qual é o valor correto das coisas que serão trocadas?
Ao tratar especificamente das injustiças que se pode cometer na
compra e venda, Santo Tomás oferece algumas indicações sobre
isto.
A princípio, o preço das coisas deve respeitar seu valor: “Por
conseguinte, se o preço excede o valor da coisa ou se, pelo
contrário, a coisa excede o valor do preço, desaparecerá a
igualdade da justiça”21. Toda fraude no que diz respeito a isto é
absolutamente injusta. Tratando da fixação do preço, o
dominicano, fiel ao seu método, analisa a natureza da instituição
da compra e venda, concluindo que foi estabelecida
essencialmente para utilidade comum das partes embora,

20
Ibidem, II-II q. 58 a.10.
21
AQUINO, Tomás de. op.cit. II-II q. 77 a. 1.

255
Leituras Tomistas

acidentalmente, um dos contratantes possa ver no negócio uma


utilidade maior que outro. Portanto, o preço há de ser estabelecido
por ambos, devendo respeitar o valor essencial do objeto, porém
podendo variar a partir de circunstâncias específicas da relação,
como uma eventual vinculação afetiva entre o vendedor e o bem,
a qual pode ser compensada com um aumento na quantia
monetária pedida. Santo Tomás também lembra que o preço das
coisas muitas vezes não está definido com exatidão, sendo
encontrado a partir de estimações aproximadas. Nestes casos, uma
ligeira variação no preço não contraria a justiça22.
Contudo, a mudança no preço da coisa poderá ser tolerado
ainda que não haja uma correspondência total entre este e o valor
real do bem, e nem uma justificativa específica aplicável. Isto
ocorre, de acordo com o mestre italiano, porque a sociedade não é
composta somente de homens virtuosos e a lei humana deve,
portanto, contentar-se em proibir aquilo que destrói a convivência
social, sem pretender proibir todas as condutas contrárias à
virtude. Pode aceitar-se, portanto, que haja alguma discrepância
entre o que a coisa de fato vale e o preço pela qual é negociada.
Obviamente, isto não se aplica se a diferença for excessiva: preços
irrisórios ou extorsivos podem, além de moralmente condenáveis,
ser combatidos pela lei23.
No artigo 4º da questão 61 do Tratado da Justiça, ele indaga
se o justo (isto é, o ato exigido pela justiça) é o mesmo que a
reciprocidade. Em apoio a esta tese, aduz primeiramente algumas
passagens bíblicas do Antigo Testamento que chancelavam a Lei
do Talião. Outra razão pela qual, segundo o Doutor Angélico, se
poderia pensar que o justo equivale ao recíproco está na própria
natureza das duas operações da justiça. Tanto na comutativa
quanto na distributiva, não haveria sempre uma relação de troca
envolvida? Pois o critério para distribuir os bens da comunidade
entre os indivíduos não seria, preferencialmente, o aporte de cada

22
Ibidem, II-II q. 77 a. 1 ad 1.
23
Ibidem.

256
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

um à sociedade? Portanto – parece concluir Santo Tomás – como o


todo distribui as coisas às partes de acordo com a contribuição
destas ao bem comum, haveria aqui também uma relação de
reciprocidade: o indivíduo sofreria algo pela comunidade, para
em seguida ser recompensado na medida do que sofreu. Contudo,
essa tese não merece o endosso do autor da Suma, o qual estava
somente seguindo o método empregado em toda esta obra, que
consiste em citar primeiro as opiniões com as quais não
concordava, para em seguida respondê-las.
Em relação à Lei do Talião, ele afirma que a justiça
comutativa pode exigir outras coisas além da simples
reciprocidade: nem sempre castigar alguém aplicando-lhe
exatamente o que fez conduzirá a um resultado proporcional.
Justiça e reciprocidade não se confundem, portanto.
A resposta de Santo Tomás ao outro argumento invocado –
o de que a justiça distributiva também se regeria pela
reciprocidade – é interessante para desfazer um equívoco que
pode surgir da leitura do Tratado da Justiça. Santo Tomás explica
que a justiça distributiva não consiste em trocas. Se o indivíduo
recebe alguma coisa da comunidade em retribuição a uma
prestação dele, não se estaria falando em justiça distributiva, mas
comutativa.

[A esta objeção] deve ser dito: Que se a alguém


que serviu à comunidade se lhe retribui algo
pelo serviço prestado, isto não seria próprio da
justiça distributiva, e sim da comutativa, pois
na justiça distributiva não se determina a
igualdade entre o que alguém recebe e o que
entregou, mas em relação com o que deve
receber, segundo a condição de ambas as
pessoas.24

24
AQUINO, Tomás de. op.cit, II-II q. 61 a.4 ad 2.

257
Leituras Tomistas

Ora, a partir da dicotomia entre as operações da justiça,


poder-se-ia pensar que a comutativa só ocorre nas relações entre
particulares, e a distributiva estaria em todas as transações
envolvendo o poder público. Isto não é assim, porém. O que
importa para saber se há uma troca ou uma distribuição não é a
natureza dos agentes envolvidos, e sim a ação que está sendo
realizada. Portanto, é possível existir a justiça comutativa em uma
relação indivíduo-Estado, sempre que o Estado agir da mesma
maneira que uma pessoa particular (por exemplo, nos dias de
hoje, quando um órgão público adquire algum bem de um
fornecedor privado). Uma situação inversa seria mais difícil de
imaginar, embora não impossível: quando um professor distribui
as notas para seus alunos, ou quando um empregador é proibido
de atribuir salários distintos a funcionários homens e mulheres
que executem a mesma função, se cuida da justiça distributiva nas
relações privadas.
Já a justiça distributiva também busca a igualdade, porém
de outro modo: ela se rege por uma igualdade geométrica,
proporcional. Com efeito, cabe à justiça distributiva repartir os
bens da coletividade de acordo com o mérito de cada um. Nas
palavras do Aquinate, “na justiça distributiva, se dá a uma pessoa
tanto mais dos bens comuns quanto mais preponderância dita
pessoa tiver na comunidade”25. Vê-se logo porque dita igualdade
será proporcional: por mais que todos os componentes da
sociedade sejam iguais em dignidade, a repartição se fará de
acordo com algum critério específico. E este fator pode
“preponderar” em alguns mais que em outros, justificando a
atribuição diferenciada dos bens, na medida em que cada qual
corresponder ao critério da divisão.
A grande questão aqui é saber como se haverá de encontrar
o critério correto. Santo Tomás imita Aristóteles26 ao deixar o

25
Ibidem, II-II q. 61 a.2.
26
“Todos concordam que a justiça nas partilhas deve basear-se num certo
princípio de distribuição de acordo com o mérito. Mas o sentido do princípio de

258
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

problema em suspenso: “Esta preponderância se determina na


comunidade aristocrática pela virtude; na oligárquica, pelas
riquezas; na democrática, pela liberdade e nas outras, de outra
forma.”27 Como saber?
Ao tratar de alguns aspectos mais específicos da justiça,
Santo Tomás se detém na chamada acepção de pessoas,
apresentada como o vício que se opõe à justiça distributiva. Esta
figura é interessante porque aquele que faz acepção de pessoas
peca exatamente contra o que parece ser o maior problema da
noção de justiça nas distribuições: a correção do critério. Com
efeito, a acepção de pessoas corrompe a justa distribuição ao
torná-la dependente de fatores pessoais dos destinatários dos
bens. Fatores esses que não correspondem ao motivo da
distribuição: “Na justiça distributiva se consideram as condições
pessoais que constituem a causa da dignidade ou do débito; em
contrapartida, na acepção de pessoas se consideram as condições
que não concorrem para tal causa.”28 Para que a justiça
distributiva seja realizada e que não haja acepção de pessoas,
portanto, é necessário determinar precisamente qual a causa da
distribuição. Isto é: o que se está distribuindo? Por que se está
distribuindo? Qual a finalidade da distribuição?29 O critério a ser
empregado na distribuição depende diretamente da natureza e
das circunstâncias desta. É por isso que tanto o Aquinate quanto o

distribuição por mérito envolve controvérsia e não é o mesmo para todos. Para
os democratas é a liberdade, mas para os oligarcas, é a riqueza, ou ainda o
berço. Contudo, para os aristocratas, é a excelência. A justiça é, portanto, uma
espécie de proporção. A proporção não existe apenas como relação peculiar
entre a unidade numérica [formal], mas é própria da quantidade numérica em
geral. Isto é, a proporção é uma equação entre relações e implica pelo menos
quatro termos.” ARISTÓTELES, op.cit., 1131a.
27
AQUINO, Tomás de. op.cit., II-II q. 61 a.2.
28
Ibidem, II-II q. 63 a.1 ad 1.
29
Note-se que para Santo Tomás, da mesma forma que para Aristóteles, a
causa de algum ente ou conduta está diretamente ligada à sua finalidade.
Todos os seres, naturais ou artificiais, possuem algum fim, o qual determina e
condiciona sua existência.

259
Leituras Tomistas

Estagirita se abstém de indicar um único critério decisivo. Para


usar imagens contemporâneas, pode-se entender facilmente que a
distribuição de condecorações pelo comando das forças armadas
de um país não pode seguir o mesmo critério das distribuições de
assistência social, de exigências urbanísticas, de tributos ou de
processos entre as varas de um tribunal. De acordo com o
propósito de cada uma destas repartições, características distintas
serão valoradas nos destinatários. Nos exemplos dados, a
distribuição guiar-se-á, respectivamente, por fatores de coragem
ou obediência, necessidade, aspectos físicos, riqueza e, no caso da
distribuição de processos, especialização mesclada à
aleatoriedade.
Por fim, consigne-se que a mecânica da distribuição pode
estar prevista em comando legal, ou direito positivo, o qual pode
especificar a proporção em que aqueles que satisfizerem certos
requisitos receberão o objeto da divisão. Contudo, tal
normatização não pode desrespeitar a finalidade da distribuição.
Este limite é uma exigência de direito natural. Mais à frente tratar-
se-á de modo detalhado da distinção entre direito natural e
positivo.

1.3. Justiça, direito e lei

Na primeira questão do Tratado da Justiça30, Santo Tomás


inquire se o direito é o objeto da justiça. Entre os argumentos
contrários a tal relação, ele alinha um retirado de Santo Isidoro de
Sevilha, segundo o qual a lei seria uma espécie de direito. Tal
correspondência, se aceita, levaria à conclusão de que nenhum
destes dois se regeria pela virtude da justiça, mas pela prudência.
Santo Tomás recorda aqui que Aristóteles situava a arte de legislar
no âmbito desta última virtude.

30
AQUINO, Tomás de. op.cit., II-II q. 57 a.1.

260
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Contrariamente a isto, o mestre dominicano argumenta que


a lei não é o direito, mas uma certa razão deste. A lei seria uma
ideia sobre o que é o direito, que preexistiria em primeiro lugar na
mente do legislador e, posteriormente, na fórmula escrita. Mas a
lei não se identifica com o direito, pois este é a parte justa, a parte
que cabe a cada um em determinada relação. O direito é uma
coisa. É aquilo que deve ser entregue ao outro (ou que não deve
ser retirado dele). Enquanto que a lei é um preceito teórico acerca
do que constituirá a parte do outro nas situações reais. A lei
determina o direito, pois só é possível dar a cada um a parte que
lhe cabe quando se conhece o que deve caber a cada um. E a lei
tem por função imediata definir limites, dizer o que corresponde
aos diferentes indivíduos em suas relações envolvendo coisas e
outros indivíduos.
Quando Santo Tomás afirma sinteticamente que “a lei é uma
regra e medida dos nossos atos”31, afirma exatamente isto: a lei
visa medir a realidade, determinando o que corresponde a cada
um, para que depois todas as relações humanas (envolvendo bens,
caso se tratem de relações jurídicas) sejam avaliadas pela medida
estabelecida pela lei.
Dito de outro modo, a lei é uma ideia acerca do que é justo.
Neste ponto, a definição de Santo Isidoro está correta: a lei
realmente pertence ao domínio da prudência. Não é por outra
razão que, inclusive nas democracias contemporâneas, não é
necessário ser jurista para ser legislador: o requisito é ser prudente
nas coisas que dizem respeito ao povo (daí o povo ser a melhor
instância para julgar a aptidão dos legisladores, através das
eleições), embora seja certo que, na elaboração dos projetos
legislativos, o bom legislador também deva ouvir a voz dos
juristas, de modo a evitar criar uma lei que retire dos indivíduos
os direitos que eles já possuem. Mas a lei é, essencialmente, o
resultado de um processo especulativo. Por isso Santo Tomás é

31
Ibidem, I-II, q. 90, a. 1.

261
Leituras Tomistas

coerente ao afirmar, no início do Tratado sobre a Lei, tratar-se de


um resultado da operação da razão prática32. Também
corresponde a esta ideia o reconhecimento de que a lei somente
tem em vista as generalidades, aquilo que ocorre na maior parte
das vezes, podendo falhar em casos particulares, o que será
remediado, como posteriormente se verá33, pela equidade34.
A definição da lei é fornecida pelo Doutor Angélico
utilizando o já clássico método das quatro causas: assim, ao fim da
questão 90 da Prima Secundae, fica estabelecido que ela “não é
senão uma ordenação da razão [causa material] ao bem comum
[causa final], promulgada [causa formal] por aquele que tem o
cuidado da comunidade [causa eficiente]35.
Surge aqui uma dúvida a respeito da lei injusta: se toda lei
visa o bem comum, uma norma que o contrarie merece o nome de
lei? Deve ser obedecida? O Aquinate endereça esta questão
sumamente importante36 através de uma pergunta que
seguramente era muito ouvida pelos padres ao confessar seus fiéis
que se queixavam de leis extorsivas: “A lei humana obriga no foro
da consciência?” A resposta do Doutor Angélico é muito
característica de seu pensamento e do caráter prudente de seus
escritos: ao iniciar a resposta com “parece que a lei humana não
obriga no foro da consciência”, ele dá voz, em três argumentos,
aos que contestavam a existência de uma força vinculante
intrínseca na lei humana. A primeira destas razões diz respeito à
superioridade da lei divina, que seria a única apta a influenciar o
tribunal da consciência (outro tema candente no tempo de Santo
Tomás, no qual as lutas entre imperador e Papa pelo poder
temporal haviam atingido um novo ápice com Luis da Baviera e

32
Ibidem, I-II, q. 90, a. 1, ad 2.
33
Ver item 2.5, “Justiça e equidade”.
34
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II, q. 96, a. 6.
35
Ibidem, I-II q. 90 a.4. As expressões entre colchetes foram acrescentadas.
36
Ibidem, I-II q. 96 a.4.

262
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

João XXII)37. A segunda e a terceira possuem uma atualidade


interessante: quando as leis humanas violam a lei de Deus, ou
causam opressão e violência, é lícito desobedecê-las?
Segundo o Aquinate, leis humanas injustas serão aquelas
que violarão ao menos um dos elementos fundamentais antes
mencionados. A injustiça pode residir na causa formal da lei,
quando esta atentar diretamente contra o bem comum, ou na
causa eficiente, se o legislador tiver atuado para além de sua
competência, ou ainda na causa formal, caso a lei não reparta as
cargas e ônus da vida social de modo equitativo entre os súditos.
Nestes casos, a lei será injusta.
Repare-se, antes de passar à conclusão do raciocínio do
mestre dominicano nesta área, que a justiça deve aqui ser
entendida como vinculação ao bem comum, pois só uma lei
ordenada a tal finalidade repartirá os bens e cargas sociais de
modo adequado ao homem. Os três possíveis defeitos da lei acima
indicados são, além de características nocivas, verdadeiras
deficiências da lei, uma vez que afastam um exemplar de sua
definição conceitual. Uma lei injusta, portanto, será menos lei que
uma norma justa38. Diferente da concepção moderna de lei, que a
entende como um simples comando da autoridade, a adequação
da lei ao bem comum não é, para Tomás, uma característica
secundária, que pode estar ausente ou presente, mas um
componente essencial da mesma. Isto não significa, contudo, que
uma lei desatenta ao bem comum perca completamente sua
normatividade.
A lei injusta, por mais que não mereça mais o nome de lei
pode, ainda assim, ser considerada como tal em certo sentido, isto
é, na medida em que promove, se não diretamente o bem comum,

37
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, pags. 221-225.
38
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II q. 95 a. 2: “A lei positiva humana tem força de
lei enquanto deriva da lei natural. E, se estiver em algum desacordo com a lei
natural, já não é lei, mas corrupção da lei.”

263
Leituras Tomistas

ao menos outros bons fatores que aproximarão a sociedade do


bem comum. Por exemplo, em linguagem atual, uma lei que
estabeleça algum privilégio tributário injustificado pode
contribuir para a ordem social, na medida em que, na ausência de
tal regra, grassaria a incerteza sobre tal matéria e a arbitrariedade
dos executores da lei não teria limites. A norma injusta seria,
então, preferível à situação de anomia. É evidente que este
raciocínio não pode ser aplicado em todo e qualquer caso: há
situações em que a lei é tão inadequada à sociedade que sua
desobediência é a melhor opção. Porém, o que deve ser reforçado
é que a simples injustiça da lei não lhe retira o caráter legal,
apenas o enfraquece. A resposta de Santo Tomás à questão sobre a
obrigatoriedade da lei injusta, portanto, é modulada: naquelas
“leis que impõem aos súditos um gravame injusto”, ele está
“dispensado de obedecer”, desde que isto não cause um mal
maior à sociedade: “sempre que possa elidi-la sem escândalo e
sem causar um dano maior”39. “Escândalo” aqui deve ser
entendido como mau exemplo; o fato de uma certa lei ser injusta
não pode servir de trampolim para enfraquecer a exigência de
obediência às demais normas.
Estando, pois, claro que a lei é a medida do direito,
antecedendo-o em uma sequência lógica, cabe perguntar qual a
relação da justiça com estes dois conceitos. A resposta é fornecida
na primeira questão do Tratado sobre a Justiça, a mesma que foi
examinada no início desta seção. Relembre-se que a questão
consistia em saber se o direito era o objeto da justiça. Conclui-se
ali pela afirmativa, após o autor analisar de perto a virtude da
justiça particular, afirmando que a esta caberia ordenar o homem
naquelas coisas que dizem respeito ao outro40. Porém,
diferentemente das demais virtudes, a justiça particular se exerce
nos atos humanos, independentemente das condições interiores
do agente. A justiça exige somente que o ato seja justo. Logo, o

39
Ibidem, I-II q.96 a.4 ad 3.
40
Ibidem, II-II q.57 a.1.

264
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

objeto da justiça em sentido estrito não são as paixões interiores


do homem (que são disciplinadas e ordenadas pelas demais
virtudes), mas o mesmo objeto sobre o qual se exerce a conduta
humana. Sendo uma virtude, um hábito bom, a justiça
corresponde a uma exigência de ação. A ação exigida pela justiça
terá o indivíduo agente por sujeito, um bem por objeto imediato e
outra pessoa por objeto mediato. Logo, o objeto da justiça é uma
coisa, que deverá ser entregue ao outro. Trata-se daquilo que
corresponde ao outro em uma relação envolvendo pessoas e bens.
O qualificativo “justo” será atribuído, assim, ao ato humano que
respeitar a exigência de justiça. E esta exigência concerne
prioritariamente a um bem exterior, uma coisa, sobre a qual certa
conduta humana deve incidir. Assim, o justo é o objeto da justiça.
De acordo com a linguagem da época do Aquinate, “justo”
era tomado como sinônimo de “direito”: “O termo ‘direito’ foi
empregado primeiro para significar a própria coisa justa”41.
Portanto, o direito, como objeto devido ao outro, é objeto da ação
justa e objeto da justiça. A relação aventada por Santo Tomás foi
comprovada.
Entre os termos “lei”, “direito” e “justiça”, portanto, a
relação é a seguinte: a lei, como regra e medida dos atos humanos,
estabelece o que corresponde a cada um em abstrato, de acordo
com o que ocorre na maior parte dos casos. Ao fazê-lo, a lei
estabelece qual a medida do direito. Isto é, quanto será devido ao
outro. O direito é a concretização da regra abstrata da lei em um
caso concreto. A ideia sobre qual a parte devida a cada um,
presente na lei, é confrontada com as circunstâncias reais de uma
relação humana. Aplicando-se a medida legal ao caso, chega-se ao
direito, isto é, à parte devida. Porém não basta definir o direito. É
preciso agir a partir desta conclusão. Entra em cena, então, a
virtude da justiça: o hábito bom que impele o homem a seguir o
direito, entregando, de fato, a seu semelhante o que lhe pertence.

41
AQUINO, Tomás de. Op.cit. II-II q.57 a.1 ad 1.

265
Leituras Tomistas

De acordo com as circunstâncias do caso, esta operação de entrega


pode revestir o caráter de uma distribuição ou de uma troca,
exigindo da pessoa que busca a justiça raciocínios diferentes em
cada uma destas situações.
Todo este esquema lastreia-se na ideia de igualdade: as duas
operações da justiça (distributiva e comutativa) procuram cada
uma um certo tipo de igualdade; o direito “é uma ação adequada
a outro42 segundo certo modo de igualdade”.
Até aqui, o raciocínio de Santo Tomás pode parecer
convincente do ponto de vista formal, porém excessivamente
indeterminado no que tange ao conteúdo material do direito. Com
efeito, se é à lei que compete distinguir entre o justo e o injusto,
isto significa que toda lei é justa? Sabe-se que não, pois já se viu
que Santo Tomás examina o problema da lei injusta. Porém, se a
justiça consiste, em última análise, em seguir a exigência que se
depreende da lei, como é possível falar em justiça da lei? Isto não
seria uma impossibilidade lógica? Neste ponto, é preciso fazer
uma análise valorativa do conteúdo da lei: nem toda lei será justa
e nem sempre, portanto, o comando legal deverá ser tomado como
parâmetro para a ação correta. Sendo a lei humana uma criação do
legislador, é evidente que este pode falhar em certos casos, seja

42
A versão em espanhol consultada para este trabalho traz: “es una acción
adecuada a otra según cierto modo de igualdad”. Sem embargo, parece que o
termo “otra” não deve referir-se a “una acción”, como se depreende da leitura
do texto. É mais provável que a terminação no feminino seja um erro da
tradução, e que o texto correto deveria ler-se “acción adecuada a otro", no
masculino, referindo-se a um outro indivíduo. O direito seria, portanto, uma
ação adequada a outro indivíduo. Tal interpretação está em consonância com o
que o Aquinate já dissera sobre a justiça no artigo anterior – “Lo primero de la
justicia, dentro de las demás virtudes, es ordenar al hombre en las cosas que
están en relación con el otro” – e também com as frases imediatamente
seguintes ao trecho impugnado. Comprove-se: “El derecho o lo justo es una
acción adecuada a otro según cierto modo de igualdad. Pero algo puede ser
adecuado a un hombre en un doble sentido: primero [...] En un segundo sentido,
algo es adecuado o de igual medida a otro por convención o común acuerdo, es
decir, cuando uno se considera contento si recibe tanto.” Grifos acrescentados.

266
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

por ignorância ou por malícia. E então a lei não dará a cada um o


que lhe é devido, tomando e entregando os bens de modo
arbitrário. Quando isto se dá, a lei poderá até, como visto acima,
ser desobedecida ou tomada simplesmente como uma imposição
da força, sem qualquer racionalidade intrínseca que justifique sua
pretensão de obediência. Porém como saber se o cidadão se
encontra perante um destes casos?

1.4. Direito natural e direito positivo

A doutrina jurídica do Aquinate fornece meios para avaliar


a compatibilidade da lei com o bem comum. Para isso, é preciso
compreender que Santo Tomás não considera a lei humana como
a única fonte do direito. Segundo ele, o direito procede tanto da
vontade dos homens quanto da natureza, que é erigida em
portadora de reais princípios jurídicos. Isto se desenvolve na
teoria do direito natural, da qual se fará uma breve exposição
neste apartado.

1.4.1. A natureza das coisas

O direito é o resultado da ação adequada a outro indivíduo.


Esta adequação pode ser resultado de dois fatores: pode provir da
convenção ou da natureza. No segundo caso, estar-se-á diante do
direito natural. Para saber o que é o direito natural, é preciso
atentar para o sentido da expressão “natureza” aqui empregada
por Santo Tomás: esta designa o modo de ser das coisas. As coisas
– incluindo o homem – são de uma certa maneira, e estão
ordenadas a uma certa finalidade. Conhecendo o modo como as
coisas são, e compreendendo qual sua finalidade, é possível
avaliar se determinada conduta está ou não de acordo com as
exigências da natureza humana.

267
Leituras Tomistas

O direito natural possui uma dupla base: por um lado,


radica na natureza das coisas43. Como todo ser possui uma
finalidade, pode-se avaliar a justiça de uma distribuição ou troca
analisando a natureza do que está sendo repartido ou permutado.
Assim, exemplificativamente, uma distribuição de sanções penais
por um juiz que lançasse mão de gostos pessoais como critério é
claramente injusta, por violar a natureza da sanção, isto é, o fim
com o qual foi proposta. Da mesma forma, o preço estabelecido
em uma troca será injusto se equivaler ao preço de outro objeto,
de valor expressamente inferior. Pois isto também violará a
natureza das trocas.
Em última análise, pode-se dizer que a natureza das coisas
serve para proteger a igualdade que deve ser buscada em toda
relação jurídica. Como os bens possuem um valor intrínseco, que
se relaciona com sua utilidade para os seres humanos mas não
depende totalmente da subjetividade de cada um, é possível
considerar as condutas humanas a partir do parâmetro do modo
de ser, do propósito e da finalidade das coisas, evitando assim
julgar as ações por critérios personalistas que redundariam no
tratamento desigual das partes.

1.4.2. A lei natural

A outra base do direito natural é a lei natural. Ao contrário


do que muitas vezes se pensa, por influência da chamada Escola
Moderna do Direito Natural44, lei natural e direito natural não se
igualam. A lei natural é definida por Santo Tomás45 como
participação da lei eterna na criatura racional. Admitindo-se que o
mundo é governado pela razão divina, e relembrando-se o que se
viu ao diferenciar lei de direito, fica claro que o conceito de lei,

43
AQUINO, op.cit., II-II q.57 a.2.
44
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pags.
111-112.
45
AQUINO, op.cit., I-II q.91 a.2.

268
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

entendida como um desígnio racional, pode descrever o modo em


que a providência divina sustenta todas as coisas. Portanto, existe
uma lei eterna, chamada deste modo porque Deus não está sujeito
à ação do tempo46. As criaturas são reguladas e medidas pela lei
eterna, sem que possam ter consciência disto ou cooperar com
suas finalidades. Já o homem, única criatura racional, possui uma
relação diferente com a lei eterna: ele participa da mesma, isto é,
embora estando sujeito à lei natural e não podendo ditar-se
normas naturais próprias, o homem pode descobrir esta lei
através do uso livre e progressivo de sua razão. As demais
criaturas são meros objetos da lei eterna, pois são regulados por
ela e não possuem autonomia deliberativa nem consciência
própria. O homem, porém, não só pode ser cada vez mais
consciente de que existe uma lei natural, como pode também
decidir desobedecê-la em certa medida. É assim que ele participa
da lei eterna: descobrindo-a através de sua razão natural, e
decidindo obedecê-la na prática.
Como se vê, o âmbito da lei natural é bastante grande,
abarcando todos os aspectos que podem ser objeto de decisão do
ser humano. Neste sentido, os aspectos da lei eterna que o homem
descobre na natureza, mas sobre os quais não tem qualquer
ingerência, como as chamadas “leis da física”, só podem ser
compreendidas como lei por assimilação, da mesma forma que se
afirma que os animais obedecem à “lei do instinto”. A advertência
que Santo Tomás faz contra este uso demasiado lato do conceito
baseia-se em que a lei, sendo uma regra e medida dos atos
humanos, faz parte da razão. As características físicas da natureza
e o comportamento dos animais irracionais só condicionam a ação
humana em seu aspecto exterior, parecido ao das criaturas
“brutas”47. A lei natural, pelo contrário, influencia a ação humana
de modo mais específico: exige que o homem participe dela, ou
seja, que amolde voluntariamente sua ação aos ditames da

46
Ibidem, I-II q.90 a.1.
47
Ibidem, I-II q.91 a.2 ad 3.

269
Leituras Tomistas

mesma. Neste sentido, é uma inclinação que não vincula de modo


físico, mas de modo obrigatório. O homem pode desrespeitar a lei
natural, no sentido de que tem a capacidade para fazê-lo. Mas não
deve fazê-lo, sob pena de trair sua finalidade precípua, que Santo
Tomás, na esteira de Aristóteles, identifica com a felicidade48
(especificamente a felicidade da contemplação de Deus no
Paraíso49).
Como o ser humano possui um modo de ser que é dinâmico,
ele se inclina para a lei natural de forma a alcançar sua finalidade.
O homem pode conhecer a lei natural a partir de suas inclinações
naturais, desde que respeite a ordem de importância destas. O
Doutor Angélico identifica50 a mais profunda das inclinações
naturais no preceito “faze o bem e evita o mal”, base da razão
prática e análogo ao princípio da não contradição no campo da
razão teórica. Em seguida, o homem pode apreender o princípio
de conservação de sua vida. Estão ainda “as coisas que a natureza
ensinou a todos os animais”, como a procriação, a educação dos
filhos etc., que podem ser conhecidas através da mera existência
humana. Por fim, o homem encontra em si uma inclinação de
índole racional, que lhe é própria e que diz respeito à busca pela
verdade, ao interesse por Deus, à vida social etc. Destas primeiras
inclinações derivam os preceitos da lei natural.
Pode-se afirmar, com base no que Santo Tomás dirá
posteriormente acerca da relação indissolúvel entre justiça e
igualdade entre os homens, que a percepção desta igualdade
essencial também faz parte dos primeiros preceitos da lei natural.
Pode-se situá-la entre as inclinações racionais, aquelas que são
exclusivas dos homens. É por isso que a igualdade de valor é um
preceito imutável que será sempre buscado pelo direito natural,
como adiante se verá.

48
Ibidem, I-II q.1 a. 8.
49
Ibidem, I-II q.3 a. 8.
50
Ibidem, I-II, q. 94 a. 2.

270
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Isto posto, toda conduta que exige alguma decisão racional


do homem é governada pela lei natural, entendido este governo
de acordo com a ideia de participação acima explicada. Em termos
contemporâneos, isto equivale a dizer que a lei natural abrange a
totalidade da moral. Incluem-se aí as partes da política atinentes
ao exercício do poder, o direito, a etiqueta, as várias éticas
profissionais, aquilo que se chama de vida moral em sentido mais
estrito etc.:

Todas as inclinações de qualquer das partes da


natureza humana, tanto a concupiscível como a
irascível, na medida em que se submetem à
ordem da razão, pertencem à lei natural e se
reduzem a um único primeiro princípio [...] E
assim, os preceitos da lei natural, considerados
em si mesmos, são muitos, porém todos eles
coincidem na mesma raiz.51

Desta forma, a lei natural também constitui uma primeira


ordenação naquele aspecto da vida humana que é a relação entre
pessoas envolvendo coisas. Existem alguns preceitos da lei natural
que constituem a medida de qualquer ação humana, enquanto tais
ações são fruto de decisões racionais dos indivíduos, orientadas ao
bem destes. Como a lei é a regra e medida dos atos racionais, e
como todo homem pertence à mesma espécie e possui uma
natureza comum, segue-se que toda ação humana, incluindo as
que se relacionam às coisas, deverá respeitar alguns limites
básicos, correspondentes aos preceitos da lei natural.
Trocas e distribuições não poderão, então, ser feitas
desrespeitando os princípios básicos da igualdade entre os seres
humanos, da dignidade natural dos homens, da constituição da
família, da solidariedade social etc. Da mesma forma, leis
humanas não poderão confrontar a lei natural, pois isto iria contra
o próprio fim da sociedade humana, que é o bem comum. Uma lei

51
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II, q. 94 a. 3 ad 2.

271
Leituras Tomistas

que permitisse arbitrariedades, discriminações ou violência sem


motivo afrontaria a lei natural. Tal norma entraria no campo das
“leis injustas”, com as consequências já estudadas no apartado
anterior.
Contudo, a lei natural não é um limite sempre muito claro
ao direito positivo. Em primeiro lugar, por referir-se, como já
exposto, a uma matéria demasiado larga, contendo preceitos
adequados à vida moral do ser humano, mas nem sempre
juridicamente exigíveis. Como saber, pois, se determinada
reivindicação da lei natural deve ou não ser reforçada com os
instrumentos do direito?
Em segundo lugar, ocorre que, frequentemente, os ditames
da lei natural, mesmo quando tratam de matéria claramente
jurídica, assumem um caráter tão abstrato e inconclusivo que
dificilmente solucionam as disputas entre pessoas envolvendo
bens. Tome-se, por exemplo, o postulado fundamental da
conservação da vida, identificado por Santo Tomás como uma das
primeiras conclusões às quais o homem, no exercício de sua
capacidade racional, pode chegar. O princípio de conservação da
vida conduziria, a princípio, a afirmar uma proibição geral de
toda forma de homicídio. Porém a prática mostra um quadro bem
diferente, com numerosos casos nos quais esta proibição geral
parece não se aplicar. No caso de legítima defesa, própria ou de
terceiro, matar alguém não soa injusto. Da mesma forma, o
soldado que, em cenário de guerra, ataca e elimina um combatente
inimigo não é considerado criminoso. Além disso, nos Estados em
que existe pena de morte ou onde esta foi recentemente abolida,
ninguém pensaria em condenar o carrasco como assassino. Por
fim, o médico que, buscando salvar um paciente de um mal
futuro, porém previsível, executa uma cirurgia de alto risco que
porventura resulte em óbito, não incide (excluindo a hipótese de
erro médico) no tipo penal do homicídio na forma de dolo
eventual. São todos casos que aparentemente desafiam a proibição
geral de atentar contra a vida. Mas não parecem injustos.
O mesmo raciocínio poder-se-ia aplicar aos demais preceitos
da lei natural: a relação entre pais e filhos é uma das mais naturais

272
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

que se possa conceber. Contudo, haverá ocasiões em que esta


relação pode ser desrespeitada: pais podem perder a guarda dos
filhos, filhos podem ser legalmente proibidos de herdar, o Estado
pode impor limites à liberdade dos pais de educar os filhos, etc.
Da mesma forma, a relação de propriedade pode ser excepcionada
por desapropriações, pela tributação estatal, pela interdição de
uma pessoa etc.
Fica claro, assim, que a lei natural, considerada apenas em si
mesma, é de todo insuficiente para estabelecer limites ao direito
positivo ou ao comportamento dos indivíduos nas relações sobre
as coisas. É necessário outro limite, que se fundamente na lei
natural, porém que opere com a mesma lógica das relações entre
pessoas iguais. Esta é a tarefa do direito natural.

1.4.3. O direito natural

O direito natural pode ser definido como aquilo que é


devido ao outro por uma exigência natural. Tal como o direito, do
qual é espécie, o direito natural tem um significado nuclear e
primário, ao qual se ajuntaram posteriormente outros sentidos.
Frise-se que este caráter equívoco da expressão é observado até
mesmo em Santo Tomás que, no Tratado sobre a Lei, equipara
direito natural a lei natural52, enquanto que, no Tratado sobre a
Justiça, segue Aristóteles na definição do direito natural como o
objeto ou resultado da ação, ao invés de como o princípio exterior
que orienta a mesma53.
Contudo, uma leitura atenta dos trechos indicados mostrará
que, no primeiro caso, a expressão “direito natural” está sendo
utilizada em sentido figurado, em respeito à autoridade de
Graciano e de Santo Isidoro, cujas palavras o Aquinate utiliza na
solução da questão, e que confundem direito e lei naturais. Nesta
parte do Tratado sobre a Lei, Santo Tomás investiga se a lei

52
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II, q. 94 a.4 sed contra, Resp. e ad 1.
53
Ibidem, II-II q. 57 a.2.

273
Leituras Tomistas

natural é a mesma para todos. Sua resposta é que ela é a mesma


no geral, podendo diferir em suas aplicações particulares. Para
testar a correção de sua resposta, constrói um argumento contrário
a partir de dois trechos da “Ética a Nicômaco”54: “Como está
escrito no Livro V da Ética, entende-se por justo o que é conforme
à lei. Porém no mesmo livro afirma-se também que nada é tão
universalmente justo que não deixe de sê-lo para alguns. Logo, a
lei, incluindo a natural, não é a mesma para todos.” O argumento
é forte e atual55, porém o Aquinate o supera quando demonstra
como as duas passagens de Aristóteles referem-se a realidades
distintas. Ao afirmar que o justo não tem caráter universal, o
Estagirita não está negando a lei natural (conceito que, de resto,
não utiliza), e sim falando das conclusões que podem ser
derivadas dos princípios naturais, “as quais são retas na maioria
dos casos, porém falham algumas vezes”56. Isto é, o que
Aristóteles afirmava que era mutável não era a lei natural, e sim o
direito natural.
O Aquinate indica aqui que “lei natural” seria um termo
mais amplo, enquanto que “direito natural” tem a ver com a
aplicação da lei natural no caso concreto. Esta distinção
fundamental deve ser mantida em mente, pois permitirá
compreender a breve análise que será empreendida sobre o direito
natural no Tratado sobre a Justiça.
Porém é preciso recordar que, na discussão analisada, Santo
Tomás está interessado na lei, e não no direito (ao qual, como se
sabe, será reservado um tratamento posterior, na Segunda Seção
da Segunda Parte da Suma). O grande teólogo reveste aqui a capa
do moralista, não a toga do jurista. O foco do exame está em
entender como a lei natural, princípio exterior impresso por Deus

54
Ibidem, I-II q. 94 a.4 obj.2.
55
Trata-se da recorrente confusão entre os conceitos de direito e lei naturais. A
respeito, ver PORTELA, Jorge Guillermo. La justicia y el derecho natural, 2ª ed.
Arequipa: Universidad Católica San Pablo, 2006, pags. 50-51.
56
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II q. 94 a. 5 ad 2.

274
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

no coração dos homens, pode mover a ação destes sem


transformá-los em autômatos. O direito, repita-se, é somente um
dos desdobramentos da lei natural, que versa sobre diversas
outras matérias passíveis de decisão racional por parte do
indivíduo. O Tratado sobre a Lei não é um escrito sobre o direito,
mas sobre moral, dentro da qual, no exame tomista, encontra-se o
direito como um de seus elementos. É por isso, talvez, que o
Aquinate parece não se importar muito em manter a clareza
conceitual na distinção entre “lei” e “direito” natural neste ponto.
Ele não se rebela contra o Decreto de Graciano e emprega as duas
expressões como sinônimas57.
A conclusão esboçada neste exame da passagem do Tratado
da Lei, acerca da diferença, em Santo Tomás, das expressões
“direito natural” e “lei natural” é confirmada na leitura do
“Tratado sobre a Justiça”, em especial do artigo 2º da questão 57,
que indaga “se o direito se divide convenientemente em direito
natural e direito positivo”58.
No corpo da resposta do dominicano, é interessante notar
que o vocábulo “lei” está ausente. Quando Santo Tomás define o
direito natural da maneira já apontada, ele o toma por uma ação e
por um “algo”, isto é, um objeto. Pode-se aventar que ele
pretendia mesmo manter-se fiel a Aristóteles, definindo o direito
como a coisa devida. E quando o Aquinate menciona o direito
positivo, ele tampouco recorre ao conceito de “lei”. Direito
positivo é definido como aquilo que é “adequado e de igual
medida a outro por convenção ou por comum acordo, isto é,
quando alguém se considera contente se receber tanto”. Ele
diferencia o direito positivo oriundo do contrato privado daquele
oriundo da lei, descrevendo este último como o acordo realizado
“por convenção pública, como quando todo o povo consente em
que algo se tenha como adequado e ajustado ao outro, ou quando

57
Isto pode ser visto também na questão seguinte, quando o Decreto é
novamente citado como argumento favorável a Santo Tomás (“Sed contra...”)
58
AQUINO, Tomás de. op.cit. II-II q. 57 a.2.

275
Leituras Tomistas

isto é ordenado pelo governante, que tem o cuidado sobre o povo


e representa sua pessoa. E a isto se chama direito positivo.”59 Ora,
parece evidente que o modo de o governante estabelecer o que
será tido “como adequado e ajustado ao outro” é através da lei.
Por que razão, então, Santo Tomás não a menciona aqui? Pode
tratar-se de uma simples escolha de estilo. Mas também pode ser
reflexo do esquema conceitual que o Doutor Angélico tinha em
mente. Ao tratar da lei, na parte anterior da Suma, ele a estudou
como o princípio externo que movia a ação do homem. Já o direito
é estudado enquanto objeto da justiça, uma virtude que move a
ação humana desde dentro, como princípio intrínseco60. Assim
sendo, tomando o direito positivo em sua acepção primária, este
não é exatamente o conteúdo de uma lei, e sim o que a lei (ou
acordo privado) exige em uma determinada situação concreta.
Pois somente o objeto de uma exigência concreta pode mover o ser
humano a uma ação justa. A lei contém imperativos ou
recomendações genéricas. Mas a operação de trazer tais preceitos
à realidade concreta, convertendo-os em princípios individuais
para ação em circunstâncias específicas, é o que gera o direito. Por
isso, ao falar em “direito” positivo, Santo Tomás não viu
necessidade de retomar o conceito de lei. Embora o direito
positivo a pressuponha, ele não se esgota na lei. O direito positivo
é o que é devido a cada um por uma exigência da convenção
expressa na lei.

1.4.4. Lei natural e direito natural

Nota-se então a diferença entre direito e lei, que será


refletida nos conceitos “lei natural” e “direito natural”: da mesma
forma que a lei não é o direito, a lei natural não se identifica com o
direito natural. Diante das circunstâncias muitas vezes
complicadas nas quais se desenvolvem na sociedade as relações

59
Ibidem, II-II q. 57 a.2.
60
Ibidem, I-II, Introdução à q. 49.

276
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

humanas sobre coisas, é conveniente que a lei humana estabeleça


alguns parâmetros e divisões, definindo – em abstrato, frise-se – o
que cabe a cada um. A aplicação disto ao caso concreto será
denominada “direito”. Analogamente, a lei natural estabelece, a
partir das primeiras determinações necessárias da razão prática,
algumas diretrizes para o agir do homem, inclusive no campo das
relações envolvendo coisas e outras pessoas. A aplicação destas
diretrizes ao caso concreto será denominada “direito natural”.
Logo, o direito natural não é um sinônimo da lei natural. Ele
a pressupõe, tomando-a como fundamento. Mas o direito natural
é um objeto, enquanto que a lei natural é um postulado da razão
prática.
O exposto fica mais claro ao analisar-se uma das objeções
que o professor da Universidade de Paris enfrenta contra sua tese
da divisão entre direito natural e positivo. O argumento contrário
é assim construído: “O que é natural é imutável e idêntico para
todos. Porém, nas coisas humanas, não se encontra nada assim,
porque todas as regras do direito humano falham em certos casos
e não têm força em todas as partes. Logo, não existe um direito
natural.”61 Santo Tomás responde afirmando que a natureza do
homem é mutável e, portanto, “aquilo que é natural ao homem
pode falhar às vezes”62. O exemplo que ele dá merece ser
transcrito:

Há igualdade natural no fato de que se devolva


o depositado ao depositante; e, por
conseguinte, se a natureza humana fosse
sempre reta, esta deveria ser sempre
observada. Porém, uma vez que a vontade do
homem se perverte às vezes, há alguns casos
nos quais o depositado não deve ser devolvido,
a fim de que um homem com vontade perversa
não o utilize mal; como, por exemplo, se um

61
Ibidem, op.cit., II-II q. 57 a.2 obj. 1.
62
Ibidem, II-II q. 57 a. 2 ad 1.

277
Leituras Tomistas

louco ou um inimigo do Estado exige as armas


depositadas.

A lei natural e o direito natural são perceptíveis nesta


imagem: a igualdade natural exige que o objeto depositado seja
devolvido. Esta é uma conclusão que se pode alcançar
empregando os primeiros postulados da razão prática a um caso
hipotético de depósito. Como afirmava o Aquinate em trecho
anterior, a lei trata do que ocorre na maioria dos casos, nos quais
efetivamente não haverá obstáculos a que a devolução da coisa
seja o direito. Contudo, é possível surgir alguma situação como as
descritas por Tomás, na qual a lei e o direito divergirão: a lei,
como uma ideia prévia, abstrata e (se for uma lei positiva)
expressa em uma fórmula escrita, continuará a exigir a devolução
do bem. Porém a obediência neste caso conduziria a uma situação
injusta: o objeto do preceito legal não é mais o objeto da justiça.
Este último deixou de identificar-se com o objeto da lei. A lei
segue exigindo a devolução, enquanto que o direito já não se
encontra mais no retorno da coisa ao seu proprietário.
Este exemplo mostra que a lei natural e o direito natural
diferem claramente. A lei natural é composta de primeiros
princípios. Trata-se das conclusões iniciais às que o homem pode
chegar quando aplica sua razão à realidade, em busca de saber o
que deve fazer para realizar-se. Sendo composta de primeiras
conclusões, a lei natural não pode consistir no término do
raciocínio, e sim em seu marco inicial. A partir daí, um dos
diversos campos em que os princípios da lei natural serão
aplicados é o campo das relações envolvendo coisas. Neste, a lei
natural será objeto de sucessivas concretizações e determinações,
efetuadas pela lei positiva em todos os campos nos quais a
sociedade pode optar por uma ou outra solução conformes à lei
natural. Por fim, a última concretização destes princípios será
efetuada pelo indivíduo perante um caso concreto que o chama à
ação. Deve devolver o bem tomado em depósito ou não? A
pergunta aqui não é genérica – não se deseja saber se o conceito de
depósito inclui a restituição – mas específica e prática: um

278
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

determinado objeto, pertencente a uma determinada pessoa, que


está na posse de um outro sujeito, por força de um determinado
acordo feito em certas circunstâncias, deve, levando em conta o
contexto atual, ser devolvido ao proprietário? Esta é a pergunta do
direito.
O modo de respondê-la será procurando-se o fundamento
do direito. O que este deve preservar? Qual parte da lei natural é
mais geral que todos os princípios dos quais derivam os preceitos
gerais? Retorne-se a Santo Tomás: a justiça implica em certa
igualdade em relação ao outro. Portanto, será esta igualdade que o
direito preservará. Uma ação será justa sempre que realizar a
igualdade naquelas relações entre as pessoas que digam respeito
às coisas. Trata-se de considerar a todos como iguais e atribuir-
lhes o mesmo valor.
Como as circunstâncias da vida humana são múltiplas e
mutáveis, e como os homens podem criar e integrar infinitas
relações envolvendo os mais variados bens, nem sempre tratar a
todos da mesma maneira conduzirá ao mesmo resultado concreto.
O direito poderá variar sempre neste ponto. Contudo, o preceito
natural da igualdade de valor jamais variará.

1.4.5. A função do direito positivo

A distinção entre direito natural e direito positivo, então,


refere-se basicamente à origem da exigência de justiça: quando
esta origem basear-se nos primeiros princípios descobertos pela
razão humana, pode-se falar em direito natural. Quando a
exigência se baseia também em diretrizes mais específicas,
formuladas por indivíduos em acordo ou pelos representantes da
comunidade, então se está diante do direito positivo.
Porém não se pode esquecer que o direito natural necessita
da complementação do direito positivo. Santo Tomás reconhece

279
Leituras Tomistas

isto explicitamente ao debater a utilidade das leis positivas63.


Como as leis naturais são muito vagas e iniciais, e como o direito
natural pode ser muito difícil de determinar no caso concreto, é
necessário para o bem da sociedade que se instituam algumas leis
ou outras normas positivas, que indiquem claramente alguns
parâmetros mais concretos para a divisão das coisas. Assim, o
direito positivo complementa o direito natural de duas maneiras:
por via de conclusão e por via de determinação. No primeiro caso,
o direito natural estabelece claramente o que é a coisa justa, e o
direito positivo é necessário para dar-lhe eficácia. Por exemplo, às
leis naturais que impõem a conservação da vida e a vida em
sociedade corresponde a proibição legal do homicídio. No
segundo caso, as leis e o direito naturais deixam ao ser humano
uma margem para que ele escolha a melhor maneira de
determinar-se. Para seguir no exemplo do homicídio, pode-se
entender que a lei natural proíbe o homicídio em geral. O direito
natural o proibirá na maior parte dos casos, ressalvando aqueles
nos quais o ato de matar é necessário ou não fere a igualdade
substancial entre os homens. Porém como as exigências naturais
podem ser difíceis de determinar, cabe ao direito positivo
concretizá-lo, recorrendo para isto à vontade discricionária
(embora não arbitrária) do legislador. A pena para o crime de
homicídio, por exemplo, variará no tempo e no espaço de acordo
com os vários direitos positivos, todos eles adaptando as
exigências naturais aos seus contextos sociais. Da mesma forma, a
exceção da legítima defesa pode ser expressa de diversas
maneiras: através de um artigo legal, de uma construção
jurisprudencial, um princípio jurídico reconhecido e transmitido,
um conto antigo, uma tradição religiosa etc. O direito positivo
encontrará a melhor maneira de concretizar o direito natural,
ainda que o modo eleito divirja daquele que outras sociedades
empregaram. Neste caso, pode-se afirmar com Santo Tomás que o

63
Ibidem, I-II q. 95 a.1.

280
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

direito positivo torna justas aquelas matérias que eram neutras


pelo direito natural: “A vontade humana pode, por comum
acordo, converter algo em justo naquelas coisas que, em si, não
têm nenhuma oposição ao direito natural.”64
O direito positivo traz certeza aos comandos vagos e
imprecisos que provém da natureza do homem e das coisas. Com
isso, permite o emprego da força em auxílio do dever jurídico.
Além disso, realiza-se de forma mais acabada a igualdade entre os
cidadãos, dado que todos saberão exatamente quais as obrigações
legais que lhes incumbem. Por fim, o direito positivo tem a
importante função de encerrar temporariamente a discussão sobre
o teor e a melhor maneira de concretizar o direito natural. É
evidente que os debates sobre a realização dos direitos das
pessoas jamais se esgotarão. Contudo, é preciso que, de tempos
em tempos, alguns marcos sejam erigidos e comunicados a todos
os cidadãos, que deverão ater-se aos mesmos, ainda que
discordem sobre seu mérito. A discussão sobre a melhor maneira
de concretizar o direito natural pode persistir no plano teórico,
dado que “as leis humanas não podem alcançar aquela
infalibilidade que têm as conclusões científicas obtidas por
demonstração. Porém tampouco é necessário que toda medida
seja absolutamente infalível e certa, mas somente enquanto couber
em seu gênero”65. Porém, enquanto o direito positivo não evoluir,
o marco para a resolução dos casos concretos, ao qual todos
deverão dar atenção, será a norma positiva vigente.

1.5. Justiça e Equidade

Quando trata da lei humana, Santo Tomás não desconhece


que esta, provindo da razão do legislador, esteja impregnada das
limitações da racionalidade humana. Assim, o legislador edita
uma norma pensando em regular a divisão dos bens presentes em

64
Ibidem, II-II q. 57 a.2 ad 2.
65
Ibidem, I-II q. 91 a.3 ad 3.

281
Leituras Tomistas

uma certa situação. Contudo, quando surge um caso concreto


correspondente à situação prevista pelo legislador, a realidade é
frequentemente muito mais complexa e cheia de nuances do que o
autor da lei poderia haver imaginado. Daí que a lei não possa,
segundo o Doutor Angélico, aspirar a abarcar absolutamente
todos os casos que venham a existir. Ela deve contentar-se em
prever o que ocorre na maior parte das vezes66. Isto é, deve fazer
referência às características que quase sempre estarão presentes
nos casos, abstraindo o quanto possível daqueles fatores que só às
vezes aparecem. O problema surge quando um caso, que parece
corresponder à intenção do autor da lei e deveria ser regulado
pela norma, possui algumas características que fogem do padrão
geral descrito pela norma. O Aquinate menciona casos como este
afirmando que “ocorre com frequência que cumprir uma norma é
proveitoso para o bem comum na generalidade dos casos,
enquanto que é sumamente nocivo em um caso particular”67. O
que fazer diante disso? Qual a solução justa?
A resposta está na frase anterior ao trecho recém citado,
retirada do Digesto de Justiniano, uma das principais referências
de Santo Tomás em direito romano: “Nem as normas do direito
nem o sentido da equidade permitem ser extremo na severidade e
dureza da interpretação, convertendo em prejudicial o que foi
saudavelmente instituído para a utilidade comum dos homens.”
O Aquinate explica estas palavras afirmando que quando o teor
da lei conduzir a uma solução que não pareça correta em um caso
particular, então tal aplicação deve ser afastada. Trata-se, como
fica claro no trecho do jurisconsulto romano transcrito, da ideia da
equidade.
A equidade é um tema pouco tratado pelo mestre
dominicano na Suma, porém ele lhe dedica alguns pensamentos
ao comentar a Ética a Nicômaco de Aristóteles. Assim, ele define

66
Ibidem, I-II q. 96 a. 6 ad 3.
67
Ibidem, I-II q. 96 a.6.

282
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

equidade como uma diretriz geral da justiça68, que promove um


retorno da lei ao direito natural69. Como a lei reconhecidamente
não está em condições de prever todos os casos e, assim, nem
sempre poderá fornecer uma resposta adequada, a equidade pode
ser utilizada como uma avaliação da situação real a partir dos
parâmetros da justiça natural. Seria como que uma janela a ser
aberta para o direito natural naqueles casos excepcionais em que a
solução dada pela lei viole a igualdade entre as partes.
Este uso da equidade, porém, deve obedecer a alguns
parâmetros, que podem ser encontrados na obra magna do
Aquinate. Em primeiro lugar, a equidade só pode ser utilizada
através de um método de análise casuístico, respondendo às
especificidades de um caso concreto tendo em vista realizar a
igualdade natural de valor que deve haver entre as pessoas em
suas relações envolvendo bens. Em segundo, somente à
autoridade compete dispensar do cumprimento da lei nestes
casos70, pois é à autoridade que compete o principal cuidado com
o bem comum, e a dispensa da lei só pode dar-se se motivada pela
mesma causa final que a lei, isto é, o bem comum. Em terceiro
lugar, a equidade consiste em tratar desigualmente pessoas que
estiverem em condições desiguais, na medida em que esta

68
AQUINO, Santo Tomás de. Commentary on the Nicomachean Ethics. Chicago:
Henry Regnery Company, 1964, Livro V, par. 1078.
69
Ibidem, par. 1082
70
AQUINO, Santo Tomás de. Suma de Teología. Madri: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001, I-II q.97 a.4. Note-se que Santo Tomás pensava principalmente
na figura do príncipe como a autoridade legitimada a dispensar do
cumprimento das leis. Isto é coerente com o estado de coisas de sua época, na
qual os juízes eram vistos basicamente como executores do poder do
governante e garantidores de suas leis. Acredita-se, porém, que isto seja uma
discussão secundária frente aos conceitos aqui estudados por Santo Tomás, e
que seu ensinamento não sofra nenhuma perda caso se “transfira” este poder
de dispensar do governante ao juiz, como exige o atual Estado de Direito
(excetuados aqueles casos nos quais o governante segue imbuído do “poder de
dispensar”, como na concessão de indultos, perdões, passaportes especiais
etc.).

283
Leituras Tomistas

desigualdade for relevante para a relação em questão71. Por fim, é


preciso ressaltar que a equidade é sempre benéfica, isto é, trata-se
da aplicação da lei modificada pelas circunstâncias, mas também
temperada pela misericórdia. Santo Tomás segue aqui Aristóteles,
que relaciona a equidade com a modéstia72. Esta relação faz
sentido pois, ao aplicar a equidade, o juiz afasta o uso escorreito
da lei, situando-se um pouco na posição de legislador. Isto é
perigoso, como lembram os dois filósofos73. Pois, desprovido do
arrimo legal, o julgador estará sujeito às influências de seus
sentimentos, que podem ser decisivas em sua sentença. Desta
forma, o melhor parece ser que a equidade, quando for utilizada
em substituição à norma legal, o seja sempre em benefício do mais
fraco, ou daquele que teria o maior prejuízo com a sentença
contrária. Este não é o único critério para o uso da equidade, mas
deve ser levado em conta. Santo Tomás parece fazê-lo ao afirmar a
possibilidade de o juiz absolver alguém contrariamente à letra da
lei74, mas negar ao magistrado o poder de condenar sem acusação
prévia por parte de um terceiro, mesmo nos casos em que o juiz
tivesse certeza sobre a comissão de um delito75.
Mais adiante, o Doutor Angélico mencionará expressamente
a equidade ao tratar de dois casos específicos: ao afirmar que o
direito não pune, por equidade, aquele que se apropriar de algo
que encontrou76, e ao afirmar que, apesar de o juiz dizer o direito

71
Ibidem, I-II q. 97 a.4 ad 2: “Não há acepção de pessoas quando não se trata
igualmente pessoas desiguais. Por isso, quando a condição de uma pessoa
exigir razoavelmente que se lhe confira um tratamento especial, não haverá
acepção de pessoas em outorgar-lhe a graça especial de que necessita.”
72
“Não será [o homem equitativo] tão rigoroso na aplicação intransigente da
lei que se torne obsessivo, mas, embora a tenha do seu lado, será
suficientemente modesto ao ponto de ficar com uma parte menor do que lhe
seria devido. Isto é, mantém-se equitativo. Esta disposição do caráter é, então,
a equidade.” ARISTÓTELES, op.cit., 1138a.
73
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II q.95 a.2 ad 2, onde cita Aristóteles.
74
Ibidem, II-II q.67 a.4 ad 1.
75
Ibidem, II-II q. 67 a.3.
76
Ibidem, II-II, q. 66, a. 5.

284
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

em sua sentença, a equidade impõe que a parte vencida possa


apelar77.

1.6. Conclusão: o direito para Santo Tomás de Aqui no

Esta parte pode ser concluída fazendo-se uma breve síntese


do que foi exposto até o momento.
Santo Tomás aborda o direito a partir de dois princípios
externos que influenciam a ação humana: a lei como um elemento
que age sobre todo ato humano, e a virtude da justiça como um
bom hábito que deve ser buscado e aperfeiçoado nas ações
humanas que envolvam os demais indivíduos.
Em relação à justiça, esta pode ser melhor compreendida se
dividida em dois: a justiça geral ordena todo ato humano aos
outros. Trata-se da parte de qualquer virtude que se refere às
demais pessoas. Pode-se traduzi-la em linguagem atual por
“excelência moral”. Já a justiça particular é uma virtude
autônoma, não uma parte de toda e qualquer virtude. A justiça
neste sentido estrito é o hábito de dar a cada um o que é seu.
Consiste em ordenar a conduta do ser humano nas ações que
envolvam pessoas e coisas. Seu parâmetro é a igualdade, pois visa
ajustar uma pessoa à outra.
O objeto da virtude da justiça particular não é uma perfeição
interior, como nas demais virtudes, mas um bem exterior. Trata-se
daquilo que deve ser entregue ao outro, o resultado da ação justa.
Isto pode ser chamado de “o justo” ou, em outras palavras, de
direito. Direito é, pois, o objeto da justiça, aquilo sobre o qual se
exerce a ação justa.
A lei, por sua vez, enquanto princípio exterior que rege os
atos humanos em geral, vem a ser a regra e medida das ações. A
lei indica quando uma conduta está de acordo e quando fere o
bem comum. Toda lei pode ser definida por quatro causas, ou

77
Ibidem, II-II, q. 69, a. 4, ad 3.

285
Leituras Tomistas

elementos: sua causa material é a razão do legislador, sua causa


formal é a promulgação, sua causa eficiente é a autoridade do
legislador e sua causa final consiste no bem comum. Existem uma
lei eterna, pela qual Deus governa o mundo, uma lei natural,
composta de diversos preceitos que dizem respeito ao modo de
ser do homem e que ele pode descobrir através do uso de sua
razão, e uma lei humana, livremente criada pelas sociedades
respeitando a lei natural.
A lei estabelece uma primeira divisão das coisas. Alguns
bens já estão divididos por lei natural, outros necessitam da
regulação específica da lei positiva para serem repartidos entre os
seres humanos. A partir da divisão efetuada pela lei, será possível
distinguir o que cabe a cada um nas relações entre pessoas que
envolvam bens. Em outras palavras, a lei determina qual o direito
de cada um. Conhecendo o direito do outro, a virtude da justiça
impõe que este seja respeitado.
Em relação ao conteúdo da lei, este é determinado, em
primeiro lugar, pela razão e pela vontade do governante, de modo
que seja adequada às circunstâncias específicas de sua
comunidade. Porém tal vontade não pode ser arbitrária. Ela se
encontra limitada pela lei natural. Esta, enquanto participação do
ser humano racional na ordem divina da Criação, já se encarregou
previamente de repartir alguns bens por todos os homens. Tais
bens podem ser descobertos, em abstrato, observando-se a
natureza humana e as relações mais básicas dos homens entre si e
com as coisas. Diante de um caso concreto, a lei natural origina o
direito natural, uma exigência do modo de ser dos homens
considerando as circunstâncias particulares do caso e o preceito
universal da igualdade entre todos. A lei natural constitui, assim,
a diretriz mais ampla e inicial, enquanto que o direito natural
provê o comando concreto, adequado àquele caso.
Frequentemente o direito natural não regulará uma situação em
detalhes, somente especificará a lei natural. Nestes casos, que são
a grande maioria, o direito natural será realizado através do
direito positivo, que transporá as exigências da lei e do direito
naturais à realidade de cada tempo e sociedade. A lei humana

286
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

deve respeitar sempre as normas abstratas da lei natural, e a


solução que dá a um caso concreto não pode se opor ao que o
direito natural exigiria.
Nos casos em que a lei humana não respeitar estes padrões,
será injusta, e estará violando um de seus elementos
configuradores, que é a vinculação final ao bem comum. Não será
uma lei, portanto, mas uma lei deturpada. Estas categorias,
contudo, não são absolutas e facilmente determináveis. Pode-se
dizer que a lei positiva estará cada vez mais irreconhecível e será
cada vez menos lei à medida em que se afastar do bem comum.
Acerca da necessidade de obediência a uma lei deturpada, o
Aquinate é cauteloso, afirmando que o grau de adesão esperado a
uma lei decresce na medida em que ela é injusta. Porém, uma lei
claramente incompatível com o bem comum deveria ser
obedecida, caso a desobediência redunde em um mal maior para a
comunidade ou na descrença geral da população em relação ao
ordenamento jurídico.
Podem existir casos em que, apesar de a lei positiva estar de
acordo com a lei e o direito naturais em quase todas as soluções
que prevê, tal correspondência não ser alcançada em alguma
situação particular. Neste caso, Santo Tomás afirma que o juiz
pode invocar a equidade para aliviar ou suspender o
cumprimento estrito da lei naquele caso concreto. A equidade
seria uma intervenção direta do direito natural para corrigir as
inevitáveis imperfeições da lei positiva que só se manifestarão
com sua aplicação a um caso concreto.

2. O direito em Santo Tomás e o direito internacional

Após o estudo da doutrina tomista do direito, é preciso


agora verificar sua aptidão para descrever o direito internacional
tal como este se apresenta nos dias que correm. Como seria uma
teoria jusnaturalista do direito internacional baseada nos
ensinamentos do Aquinate? Tentar-se-á esquematizar uma visão
tomista do direito internacional tomando por base as cinco
distinções acima examinadas.

287
Leituras Tomistas

2.1. Definição e fim do Estado

Antes, porém, deve ser feita rápida menção ao que Santo


Tomás entende por Estado, dado que este é o sujeito mais atuante
do direito internacional contemporâneo. Na Suma Teológica, não
se encontra nenhum capítulo dedicado especialmente a discutir a
forma e as características das comunidades humanas. Contudo, o
Aquinate trata destes temas no Tratado sobre a Lei, ao falar da lei
humana.
Santo Tomás define o Estado como a comunidade política
perfeita78. É interessante notar que, no esquema da Suma, ele
reserva a palavra “estado” prioritariamente para referir-se aos
estados nos quais o cristão pode viver, isto é, vida ativa e vida
contemplativa, estado secular, religioso etc.79 Quando trata do que
hoje se entende por “Estado político”, o termo mais comumente
usado é o de “civitas”, cidade. No estudo dedicado ao rei do
Chipre, o Aquinate mantém a mesma ideia, mas, em deferência ao
homenageado, ali se fala em “reino”. O fato é que o Doutor
Angélico não desconhece que a comunidade política pode
revestir-se de diferentes formas, desde um império até uma
cidade livre, passando por todos os variados modos de
organização típicos do feudalismo. Na Suma Teológica, ele opta
por não manifestar nenhuma preferência por qualquer regime
político, possivelmente reconhecendo que os indivíduos possuem
um grande grau de liberdade para escolher a forma em que
conviverão80. A discussão aflora, contudo, no De Regno, onde o
Aquinate segue o clássico esquema aristotélico da tripartição tanto
das formas de governo puras quanto das corruptas. Sua

78
Ibidem, I-II q. 90 a.2.
79
“Tratado dos Estados da Vida Cristã”, na Suma, II-II qs. 179-189. Contudo, em
I-II q. 90 a. 3 ad 3, o teólogo utiliza “Estado” para referir-se à comunidade
política perfeita.
80
FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: Oxford
University Press, 1998, pag. 219, onde o autor fala que esta é uma opção
metodológica de Santo Tomás.

288
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

preferência vai para o regime monárquico, porém se baseia


sobretudo em argumentos tirados da experiência e não chega a
descartar absolutamente as duas outras formas puras de
governo81.
O fato é que Santo Tomás estuda a comunidade política com
seu habitual enfoque de teólogo: o que lhe interessa é saber como
o Estado contribuirá para que os indivíduos possam atingir a vida
boa, isto é, uma vida virtuosa. Neste contexto, concebe o Estado
como uma comunidade organizada segundo uma finalidade
específica, que é o bem comum dos cidadãos:

Se, pois, a multidão dos livres é ordenada pelo


governante ao bem comum da multidão, o
regime será reto e justo, como aos livres
convém. Se, contudo, o governo se ordenar não
ao bem comum da multidão, mas ao bem
privado do governante, será injusto e perverso
o governo.82

Comentando as ideias políticas do Aquinate, John Finnis


especifica o que o dominicano provavelmente entendia por bem
comum quando afirmava residir aí a finalidade do Estado. Para
Finnis83, o bem comum não é a mera soma dos diversos bens que
os indivíduos buscam, nem uma imposição forçada da virtude a
todos os cidadãos.
Trata-se, na verdade, de algo menos ambicioso. É certo que
existe um bem comum em sentido amplo, correspondente à
comum felicidade proporcionada por todos os cidadãos que
conduzirem uma vida boa. Porém este bem não pode ser
diretamente obtido pela atividade estatal – depende do emprego

81
AQUINO, Santo Tomás de. Do Reino ou Do Governo dos reinos ao rei de
Chipre. In: (mesmo autor) Escritos Políticos de Santo Tomás de Aquino,
tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, cap. 3.
82
Ibidem, cap. 2, par. 5.
83
FINNIS, op.cit., pags. 221-228.

289
Leituras Tomistas

que cada qual resolver fazer de sua própria liberdade. E este bem
comum que decorre da moralidade interior de cada pessoa é
promovido pela obediência à lei divina. Contudo, Santo Tomás é
bastante claro ao afirmar que o objeto da lei humana não abarca
toda a vida moral dos cidadãos – inclusive porque isto afetaria a
liberdade do ser humano84. Ao tratar dos efeitos da lei, mantém
que esta ordena os indivíduos ao bem comum da cidade, porém
admite que alguns cidadãos não são virtuosos. Em relação a estes,
a lei poderá somente exigir obediência, não cumprimento por
verdadeira adesão interior85. Fica claro, pois, que a lei não
determina a vida moral do indivíduo, apenas a ilumina em certos
aspectos.
E o que a lei pode exigir de todo e qualquer cidadão,
independentemente de sua moralidade pessoal? Segundo o
Aquinate,

é preciso saber que um é o fim a que se propõe


a lei humana, e outro o da divina. O fim da lei
humana é a tranquilidade temporal do Estado.
Ela alcança isto coibindo os atos exteriores
naquilo em que possam alterar a paz do
Estado. Porém a lei divina objetiva conduzir
todos os homens ao fim da eterna felicidade, o
que é impedido por qualquer pecado ou ato,
seja exterior, seja interior. Por isso, o que basta
para a perfeição da lei humana, a saber, que

84
AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. Madri: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001, I-II q. 96 a.3: Até mesmo a lei eterna de Deus respeita a
liberdade humana.
85
Ibidem, I-II q. 92 a. 1 ad 3: “É impossível alcançar o bem comum do Estado se
os cidadãos, ao menos os governantes, não forem virtuosos porque, em
relação aos outros, basta, para lograr o bem comum, que sejam virtuosos no
tocante a obedecer quem governa.”

290
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

proíba a infração e aponte seu castigo, não é


suficiente para a perfeição da lei divina.86

Em outra passagem, o mestre dominicano assevera que não


cabe à lei humana prescrever todos os atos de todas as virtudes,
isto é, todas as condutas virtuosas que o homem pode exercer. A
lei humana deve contentar-se em ordenar os cidadãos ao “bem
comum da justiça e da paz”87. Portanto, é a este bem comum
específico relacionado com a justiça e a paz no plano da
comunidade que se ordenam as leis positivas.
Como visto anteriormente, ao tratar da definição tomista de
lei, é preciso recordar que toda atividade de governo somente
corresponderá a um verdadeiro governo caso seja feita
objetivando o bem comum. Pode-se concluir, então, que o Estado
somente agirá de acordo com seu fim caso o faça em benefício da
“multidão”.

2.2. A ação do Estado no plano internacional

Até o momento, seguiu-se a Santo Tomás de modo – espera-


se – fiel através das páginas da Suma Teológica e do De Regno. A
partir de agora, traçar-se-á algumas conclusões retiradas das
premissas tomistas apresentadas. Imagina-se que estas conclusões
guardem correspondência com o pensamento do Aquinate, porém
é importante ressalvar que não foram elaboradas por Santo
Tomás. O assunto examinado neste apartado refere-se ao
relacionamento entre os Estados. Santo Tomás oferece algum
parâmetro para tal?
Diante do que se estudou até agora sobre a ação do Estado, e
tendo em mente que esta deve sempre guiar-se pelo bem comum
da multidão, isto é, pela prevalência da paz e da justiça no seio da
comunidade, parece que o Aquinate não seria indiferente ao modo

86
Ibidem, I-II q. 98 a. 1.
87
Ibidem, I-II q. 96 a. 3.

291
Leituras Tomistas

como os Estados se relacionam entre si. O principal parâmetro


neste aspecto continuaria sendo o bem da multidão. A política
exterior de um Estado é livre desde que ele tome decisões visando
o bem comum. Ao tomar tais decisões, entrará em contato com
outros Estados, que objetivarão o bem comum de suas próprias
populações. Surgindo uma relação interestatal, compete aos
governantes observarem, em primeiro lugar, o benefício da
multidão a seu cargo.
Contudo, como a igualdade entre os seres humanos
transcende fronteiras, e como toda relação jurídica deve respeitar
a lei natural que estabeleceu tal igualdade, o Estado não pode agir
desinteressando-se totalmente do bem comum da outra
comunidade. Embora a responsabilidade primária de um
governante seja para com seu povo, ele velará também pelo bem
comum dos outros povos, não a partir de elaboração de leis e
políticas públicas, mas respeitando os direitos dos demais
Estados, que refletirão os direitos dos indivíduos. O Doutor
Angélico também recorda, ao comentar a Ética a Nicômaco88, que
as diversas civitates devem manter-se em relações mutuamente
ajustadas. A razão que ele dá para isso é um paralelismo com o
fato de que o bem de cada indivíduo seja mais facilmente
alcançável na comunidade. O mesmo se daria então em relação
aos bens próprios a cada civitate, que seriam assegurados com
maior garantia em uma convivência ordenada89.
Por conseguinte, uma relação envolvendo bens que
ultrapasse fronteiras também é uma relação pautada pelo direito.
E o Estado, ao agir em nome de sua população, integrará um dos
polos de uma relação jurídica, na qual outro Estado se encontrará

88
FINNIS, op.cit., pags. 114-115.
89
Note-se que Santo Tomás não menciona a figura do Estado universal,
embora seu raciocínio pudesse conduzi-lo a isto. É preciso lembrar que seu
estudo sobre a política partia sempre da realidade, e Santo Tomás não via
(como, de resto, tampouco nos dias de hoje) possibilidade de que a cidade ou o
Estado fossem substituídos por um ente único.

292
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

no polo oposto e o direito em disputa, no centro. Tudo o que vale


para uma relação jurídica comum, entre indivíduos, descrita nas
cinco distinções feitas no presente trabalho ao estudar o direito em
Santo Tomás, também valerá para a relação jurídica internacional.
Neste sentido, a relação jurídica internacional será aquela
em que os bens políticos de duas comunidades se ajustem entre si.
Resta somente uma aclaração a fazer, antes de passar ao
exame de cada uma das cinco marcas do direito tomista em sua
aplicação ao direito internacional. O esclarecimento diz respeito
ao papel do Estado na relação jurídica internacional. Ao contrário
do que a doutrina clássica do direito internacional defende, o
Estado não é, em uma abordagem tomista, um sujeito autônomo
de direito, caso se queira empregar esta expressão em sentido
estrito. O Estado não passa de um ente necessário, porém
artificial, criado por diversos indivíduos que vivem relativamente
próximos para desempenhar algumas tarefas que as pessoas,
sozinhas, não conseguiriam.
Esta conclusão é reforçada pelos resultados do acurado
exame que John Finnis faz da doutrina política de Santo Tomás. O
autor australiano é minucioso ao notar que, na exposição do
Aquinate, as questões formais sobre o Estado – sua origem, seus
membros, suas fronteiras, suas vicissitudes e dissolução – não
aparecem90. Em compensação, Santo Tomás promove uma
abordagem do Estado a partir da intenção do seu governante:
quais são as maneiras corretas de se governar, de limitar o
governo, de obrigar, etc.91 Isto é, o Estado não é digno de um

90
Tais questões são tratadas no De Regno embora, diga-se, de modo mais
rústico e baseado mais em dados empíricos limitados (experiências da Idade
Média e citações literárias dos autores romanos) do que nas rigorosas
deduções de princípios racionais que caracterizam o resto de sua obra. Ali,
Santo Tomás se limita a seguir Aristóteles para os elementos formais, chegando
até ao estudo da influência do clima sobre os habitantes das cidades, tópico
popular desde a Antiguidade até a Idade Moderna.
91
FINNIS, op.cit., pag. 221.

293
Leituras Tomistas

exame em si, mas é analisado somente a partir de sua finalidade,


relacionada indissoluvelmente com o bem estar de sua população.
Em Santo Tomás, não se concebe que o Estado tenha outro
fim que não promover os direitos de seus habitantes. Um Estado
totalitário que se voltasse diretamente contra estes seria, em sua
visão, a expressão de um governante deturpado e o reflexo do
puro uso da força, e tanto o conceito de “Estado” quanto o de
“governo” caberiam mal nesta situação.
É por isso que, para saber onde está o justo em uma relação
jurídica internacional, seja necessário verificar quais são os
direitos da população que estão envolvidos na disputa. Somente a
partir da determinação destes será possível analisar o que
compete a quem na esfera internacional.

2.3. Justiça geral e particular no direito internacional

A primeira distinção que se fez ao expor a doutrina jurídica


de Santo Tomás foi entre justiça geral e justiça particular. Esta
diferenciação também se mantém nas relações jurídicas
internacionais?
A resposta parece ser positiva. Tomando-se justiça geral e
particular no sentido acima exposto, não há porque negar que o
direito internacional também se beneficia da distinção. Nas
relações entre as sociedades estatais, cada comunidade deve
ordenar-se à outra. Faz sentido afirmar que, tal como ocorre com
os indivíduos, a justiça geral também se faz presente entre os
Estados. Pois cada um destes deve, em suas relações recíprocas,
ordenar-se ao bem dos demais. Como já visto anteriormente, os
dados naturais da finalidade do ser humano, da sociabilidade
deste e da necessidade de conservação da vida impõem ao homem
não só a convivência com os que lhe são próximos, mas também
uma certa coexistência social com os integrantes de outros
círculos. A política exterior de um Estado, desta forma, deve
orientar-se não só ao bem estar de sua população, mas à boa
convivência entre todos os membros da comunidade universal,
considerados tanto individualmente como em seus agrupamentos

294
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

estatais. Isto é, as relações além-fronteiras podem e devem ser


marcadas pela justiça geral. Esta será entendida como o aspecto
das virtudes do bom governo e do bom convívio que se referem
aos outros. É indubitável que o relacionamento entre os
integrantes da sociedade internacional do século XXI deixa muito
espaço a condutas pautadas pela generosidade, pela sede de
saber, pela coragem, pela amizade etc. Uma política estatal que
preze por estes valores estará conforme à justiça geral e se
aproximará mais da lei natural, aperfeiçoando a própria
comunidade nacional e contribuindo para conduzir seus
habitantes a sua realização pessoal (embora o componente
estritamente individual do uso racional da liberdade humana
nunca possa ser prescindido).
Antes de prosseguir, recorde-se que Michel Villey situava
todo o direito internacional neste âmbito, considerando que as
relações internacionais poderiam apenas reger-se por uma moral
internacional. Esta é uma percepção comum entre os juristas que
não se dedicam habitualmente ao direito das gentes. Portanto, é
de muito interesse saber se a virtude da justiça particular, que foi
associada especificamente ao direito, possui aplicação nas relações
da sociedade internacional. É possível dar a cada um o que é seu
nas relações internacionais? Expressando à maneira tomista, deve-
se responder que sim, desde que façam duas distinções
pertinentes:
Em primeiro lugar, para que exista um “o que é seu” em
disputa, é preciso que a controvérsia radique em algum bem.
Deve haver uma “coisa” suscetível de repartição ou atribuição
para que se possa falar em justiça no sentido estrito. Assim,
disputas sobre território, recursos naturais, mercadorias,
tratamento a indivíduos etc. possuem a materialidade suficiente
para poder ser examinadas pelo prisma da justiça particular. Já
controvérsias sobre história ou que se deem exclusivamente sobre
a orientação política ou as alianças de um país podem ser
analisadas pelo prisma da justiça geral (a política também faz
parte da moral), porém não são definidas pela descoberta do
objeto que pertence ao outro.

295
Leituras Tomistas

Em segundo lugar, aquilo que é de cada um só pode ser


determinado caso se considere que os Estados são agrupamentos
de indivíduos. Uma relação jurídica entre Estados é composta por
dois ou mais agrupamentos de indivíduos, que disputam algum
bem em prol de toda a comunidade. Só há sentido em falar sobre
direito internacional quando as disputas nesta área forem
analisadas como disputas entre grupos de indivíduos separados
por fronteiras nacionais e representados pela figura do Estado.
Pois só neste cenário será possível inquirir sobre o que é de cada
um.
Pelo contrário, considerando-se o Estado como sujeito único
de direito internacional, como faz a doutrina internacionalista
tradicional, a pergunta sobre o que é do Estado perde sentido,
dado que este é um sujeito artificial (embora necessário) e, pois,
não tem nada de próprio em sentido estrito. O Estado só possui
aquilo que os indivíduos que o conformam lhe atribuíram, através
do ordenamento jurídico nacional ou do costume. Contudo, esta
construção humana dos atributos do Estado está sujeita às
mesmas limitações que atingem a lei positiva, já estudadas: o
Estado pode receber poderes que sejam nocivos à comunidade, ou
configurar-se de modo pouco atento aos interesses dos demais
países, ou ainda ser estabelecido de um modo que, em algumas
circunstâncias concretas, deixe de corresponder ao bem comum de
seus habitantes.
É forçoso reconhecer que o Estado só possui uma coisa de
essencial ou natural: é formado por seres humanos. Tal é a única
característica que estará presente em toda e qualquer formação
estatal, e o único elemento que pode explicar e dar sentido de
finalidade a este tipo de convivência humana.
Assim sendo, as relações internacionais podem ser avaliadas
pelo parâmetro do direito caso sejam feitas estas duas ressalvas:
somente relações que envolvam prioritariamente bens podem ser
consideradas jurídicas; e os direitos e deveres dos Estados devem
sempre ser considerados direitos e deveres dos indivíduos que os
conformam – na expressão cara ao Aquinate, da “multidão”.
Alguns exemplos podem esclarecer o que se acaba de expor:

296
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Tome-se de início um dos principais postulados do direito


internacional do século XXI: a inviolabilidade das fronteiras
estatais. Por qual razão um Estado não pode ter sua integridade
territorial desrespeitada por outro, caso este último apresente um
interesse nacional premente para justificar o atropelo dos limites
com seu vizinho? A resposta é simples, embora modifique o
tradicional enfoque centrado no Estado: o território de um país
não pode ser invadido porque aquele território foi atribuído a
outro Estado; isto é, a sua população. A parcela de terra envolvida
pelos limites da comunidade estatal é a porção que corresponde
àquele grupo de indivíduos que lá habita. Tais indivíduos
possuem este território de modo coletivo, e podem decidir o que
fazer com ele – construir uma cidade ou uma estrada, explorar os
recursos naturais ou preservá-los, dividir a terra entre os cidadãos
ou mantê-la nas mãos do Estado, ou até não fazer nada e reservar-
se a oportunidade de vir a fazê-lo quando houver necessidade. O
modo como aquela comunidade deliberará e determinará como
aproveitar o território também será estabelecido por aquela
sociedade nacional. E, da mesma forma que, entre os indivíduos,
alguns nascem com muito e outros com pouco, sem mérito algum
de sua parte, também no mundo dividido entre Estados alguns
indivíduos nascem em territórios maiores e mais ricos que outros.
Importa, no entanto, fazer a mesma consideração que se faz ao
analisar as relações individuais que envolvem bens: as coisas já
estão repartidas, seja pela lei ou pela natureza. Importa manter
esta repartição nas relações privadas (ou modificá-la em relação a
toda a comunidade, mas esta será tarefa da justiça geral e da
política, como visto), pois qualquer modificação contrária à
vontade dos envolvidos produzirá uma desigualdade, na qual
uma das partes será tratada como inferior à outra.
Portanto, o território do Estado não pode ser violado porque
isto feriria os direitos que todos os habitantes daquele Estado
possuem sobre o território. Tais direitos não são necessariamente
direitos de propriedade privada – terras públicas tampouco
podem ser invadidas, e uma agressão estrangeira a uma
propriedade privada nacional constitui uma agressão aos direitos

297
Leituras Tomistas

de todos os cidadãos. São os direitos que se exercem sobre todo o


território estatal, independentemente do que as leis internas
dispuseram sobre sua divisão. Pois não é exagero dizer que,
dentro do Estado, cada qual também se beneficia em certa medida
da propriedade alheia, seja porque esta produz coisas úteis aos
cidadãos, seja devido aos impostos que o governo arrecada a
partir daquela propriedade, seja ainda porque ela pode ser
redistribuída, sempre que as regras instituídas pela comunidade a
respeito sejam observadas92.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado a outro rasgo
fundamental do direito das gentes dos dias atuais: a
obrigatoriedade dos tratados, expressa pelo vetusto brocardo pacta
sunt servanda. É certo que devem ser cumpridos, porém por quê?
Uma resposta simplesmente utilitária estaria longe de ser
satisfatória, dada a expressiva desigualdade econômica, política
etc. que separa os países do globo. Em um cenário de atores tão
díspares entre si, qual a justificativa para cumprir um tratado
desvantajoso que se tenha concluído com um Estado
sensivelmente mais fraco?
É certo que a justiça geral aparece fortemente aqui: não
manter-se dentro dos limites do que foi acordado é uma conduta

92
Acredita-se que uma análise da declaração de independência do Kosovo por
esta perspectiva seria extremamente interessante: até que ponto uma
comunidade regional pode dispor de seu território em detrimento do restante
da sociedade nacional, e em que medida atos do governo central dirigidos
contra uma minoria estabelecida em alguma base territorial são suficientes
para justificar o desprendimento deste território sob a alegação de que a
liderança nacional não pode mais representar os cidadãos daquela minoria?
Não é possível aprofundar neste exame, porém aventa-se que a questão
determinante seja: As violações aos direitos fundamentais dos kosovares pelo
governo da Sérvia (Ex-Iugoslávia) foram de tal monta a justificar o fim do
controle de Belgrado sobre o Kosovo? A independência somente pode ser
reconhecida como “aquilo que é devido” aos kosovares se ficar demonstrado
que sua manutenção na Sérvia violava direitos básicos da população; o
histórico da guerra do Kosovo precisa ser estudado em detalhes para que se
possa responder.

298
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

mentirosa e imoral, e o governo em questão será devidamente


lembrado disto por seus pares. Porém trata-se somente de uma
questão moral, de cortesia? Cumprir os tratados seria algo
simplesmente bom, ou também algo devido?
Mais uma vez se é socorrido pela distinção entre as justiças
geral e particular: descumprir um acordo consiste em uma
conduta viciada. Mas não se pode esquecer que a justiça particular
pode fazer parte de sua homônima mais ampla. Assim, deve-se
responder que o cumprimento dos tratados é uma verdadeira
exigência da justiça em sentido estrito, sempre que tais tratados
versarem sobre coisas que podem ser devidas a alguém. Os
habitantes dos Estados pactuantes não podem ser lesados em seu
patrimônio comum, o que ocorreria se uma das partes não
honrasse a obrigação que voluntariamente se impôs, seja esta uma
prestação ou uma conduta. Caso o acordo não tenha
materialidade, como por exemplo nos diversos protocolos de boas
intenções que são assinados rotineiramente quando da visita de
um chefe de Estado a outro, seu eventual descumprimento não
afrontará direitos dos habitantes do Estado, pois não terá havido
nenhuma despesa que os onerasse, nem tampouco alguma
expectativa criada a partir do entendimento ordinário do texto do
instrumento internacional.
É importante ressaltar novamente que o exame deve centrar-
se nos direitos da população envolvida, os quais presumir-se-ão
estar sendo atendidos pelo governo de sua sociedade. Em
consequência, no caso de um tratado que afronte claramente o
bem comum, como um tratado dispondo sobre a agressão a um
território, submetendo o Estado a uma potência estrangeira ou
entregando recursos naturais a preço irrisório, a questão de sua
validade resolver-se-á do mesmo modo que Santo Tomás tratava
do problema da obediência a uma lei injusta.
Por fim, para mencionar outro exemplo, pode-se justificar o
respeito às normas do direito internacional diplomático afirmando
que é direito dos habitantes do Estado acreditante que seu
diplomata possa servir bem ao seu governo, sem interferências
externas. E é direito da população do Estado acreditado que a

299
Leituras Tomistas

diplomacia não seja utilizada como disfarce para interferências


externas na política de seu país, cujas decisões cabem somente
àquela comunidade.

2.4. Justiça distributiva e comutativa no direito


internacional

Já se viu como a exigência da virtude da justiça particular é


correspondida na prática da conduta humana através de uma
destas duas ações: uma troca ou uma distribuição justas. O mesmo
vale para o direito internacional? Na sociedade internacional
também existe a orientação das pessoas entre si (fundamento da
justiça comutativa) e entre o indivíduo e o todo (onde reside a
justiça distributiva)?
A resposta é positiva, desde que se mantenha fidelidade ao
postulado de reconhecer no Estado a comunhão de interesses dos
indivíduos que o compõem.
Neste caso, o exame é facilmente iniciado pela justiça
comutativa: enquanto que nos demais ramos do direito os
indivíduos se ordenam uns aos outros, o direito internacional
apresenta uma ordenação entre grupos de indivíduos. Feita esta
pequena distinção, o quadro não se altera mais e a lógica é a
mesma: tal como a justiça comutativa regula as trocas entre
indivíduos dentro de uma sociedade, orientando-as à igualdade
em sentido aritmético entre os patrimônios envolvidos na
transação, assim também a mesma operação da justiça regulará as
permutas entre grupos de indivíduos componentes da sociedade
global, orientando-as de modo semelhante à igualdade aritmética
entre o antes e o depois da relação de troca. No direito
internacional, é bastante fácil perceber a operação desta justiça,
dado que a sociedade global funciona com uma lógica de
cooperação uma vez que, como sabido, inexiste a instituição de
um governo universal.
Mas também há lugar para a justiça distributiva no direito
internacional. Por mais que falte uma instância que represente o

300
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

interesse da coletividade mundial e cuja responsabilidade


primária seja “o bem da multidão” em escala planetária, ainda
assim existem algumas exigências que o indivíduo (ou o Estado
em seu nome) podem fazer ao “todo” da comunidade
internacional. O exemplo mais claro deste âmbito no qual será
aplicada a justiça distributiva é constituído pelos direitos
humanos: sabe-se que há uma obrigação da comunidade
internacional como um todo de proteger os direitos básicos das
pessoas. Embora tal obrigação seja subsidiária em relação à
exigência primária neste campo, que recai sobre cada Estado
nacional em relação a sua respectiva população, a
responsabilidade secundária da comunidade internacional se
mantém. É possível formular tal exigência de maneira tomista
dizendo que todo indivíduo tem direito a ser protegido em seus
aspectos mais fundamentais. Seria uma manifestação da justiça
distributiva, pois, que cada pessoa recebesse uma proteção
equivalente do direito e das instituições internacionais.
Outro exemplo refere-se a um “todo” menor: os Estados da
América Latina acordaram, por convenção93 ou por costume
regional, em conferir a todo indivíduo perseguido por razões
políticas em um Estado a possibilidade de obter asilo diplomático
sendo recebido em missões diplomáticas de outros Estados latino-
americanos. Embora seja verdade que a concessão ou não do asilo
diplomático é uma liberdade do Estado da missão, não há
discricionariedade na outorga do salvo conduto correspondente
por parte do Estado territorial. Trata-se de uma obrigação que
incumbe aos Estados em vista de normas de direito internacional
cujos beneficiários são os indivíduos: é uma manifestação da
justiça distributiva, pois um Estado destes continentes deverá

93
A Convenção de Caracas sobre Asilo Diplomático de 1954 foi ratificada por
Argentina, Brasil, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador,
Guatemala, Haiti, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
Outros seis países da região a assinaram quando de sua conclusão, porém não
a ratificaram até o momento.

301
Leituras Tomistas

respeitar o asilo concedido por outro Estado da região, mas a


exigibilidade não perdurará se o solicitante for um outro Estado.
A proporcionalidade na justiça distributiva fica bastante
clara no caso da punição a crimes internacionais: quando um
tribunal internacional sentencia, ele o faz aplicando normas de
direito internacional (geralmente expressas no tratado constitutivo
da corte) a um indivíduo singular. Na fixação da pena, o
magistrado atenderá às circunstâncias do crime e do autor do fato
para determinar uma sanção que seja proporcional ao delito
cometido. Será injusto condenar indivíduos que agiram de modo
desigual a uma mesma pena. Está aí a igualdade geométrica,
proporcional, exigida pela justiça distributiva.

2.5. Lei, direito e justiça no direito internacional

Como visto, Santo Tomás distinguia entre lei e direito


afirmando ser aquela a razão deste. O mesmo pode ser dito no
estudo do direito internacional? É certo que sim. Na maioria das
relações interestatais, seria impossível determinar o que cabe a
cada parte caso as obrigações recíprocas não estivessem já fixadas
em tratados. É a partir da convenção – lei entre as partes94 – que os
países envolvidos adquirem certeza sobre o que devem fazer e o
que podem exigir do outro pactuante. O direito consuetudinário
possui aqui a mesma função. O costume é um modo de fixar as
obrigações que são devidas por uns Estados a outros, tomando-se

94
“Em um segundo sentido, algo é adequado ou de igual medida em relação a
outro por convenção ou comum acordo, isto é, se alguém se considera
satisfeito se recebe tanto. Isto, certamente, pode ocorrer de duas maneiras:
uma primeira, por certo convênio privado, como o que se estabelece por um ato
entre pessoas privadas; e a segunda, por convenção pública, como quando
todo o povo consente em que algo se tenha como adequado ou ajustado a
outro, ou quando isto é ordenado pelo governante, que tem o cuidado do povo
e representa sua pessoa. E a isto se chama direito positivo.” AQUINO, Tomás
de. op.cit. II-II q. 57 a.2 (grifos acrescentados).

302
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

por critério a repetição de certas práticas e a crença em sua


correção por parte dos agentes.
Portanto, na ausência de determinações por tratado ou
costume, os atores no plano internacional não têm como conhecer
e executar seus deveres para com os outros. Não se pode falar em
justiça internacional sem que os direitos de cada qual sejam
especificados.
Neste ponto, vale fazer uma observação a respeito da
natureza do tratado e do costume, e de sua classificação como
“lei”. É importante ressaltar que se toma aqui o vocábulo “lei” em
sentido amplo, como “direito positivo”, isto é, uma diretriz que foi
posta (escolhida) pela vontade humana. Não significa
necessariamente uma norma posta por escrito. Isto porque, para
efeitos de dizer o que é de cada um, tanto a lei escrita quanto uma
norma consuetudinária ou até um princípio não expresso
cumprem o mesmo objetivo (embora seja evidente que o texto
escrito o faça muitas vezes de modo mais completo).
Porém, um tratado não parece ser uma lei. Segundo a
descrição de Santo Tomás, uma lei é uma ordenação da razão
promulgada por aquele que tem a seu cargo o bem comum da
sociedade. Destes elementos, o único que parece apresentar-se
indiscutivelmente nos tratados é a chamada causa formal da lei,
ou seja, sua promulgação. Com efeito, tanto o costume
internacional quanto a Carta das Nações Unidas95 rechaçam, hoje,
os outrora populares tratados secretos. Mas os demais requisitos
da lei não aparentam, em um primeiro exame, encontrar-se no
tratado. Um tratado é um acordo entre países. Não é querido por

95
Carta das Nações Unidas: “Artigo 102. 1. Todos os tratados e todos os
acordos internacionais concluídos por qualquer membro das Nações Unidas
depois da entrada em vigor da presente Carta deverão, dentro do mais breve
prazo possível, ser registados e publicados pelo Secretariado.
2. Nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não lenha
sido registado em conformidade com as disposições do n.º 1 deste artigo
poderá invocar tal tratado ou acordo perante qualquer órgão das Nações
Unidas.”

303
Leituras Tomistas

uma autoridade superior, que sequer existe no plano


internacional, e que não poderia, então, ter em vista o bem comum
da sociedade universal. Por isso, tampouco se pode ver no tratado
uma ordenação da razão, eis que é fruto de mera combinação das
vontades daqueles que serão regulados por tal instrumento.
Tratar-se-ia, quando muito, de uma acomodação racional de
desejos contrapostos, mas não de uma ordenação racional de
condutas em vista de um mesmo fim como exige o Aquinate. Nos
instrumentos internacionais, pelo contrário, cada contratante
enxerga um objetivo específico que deseja obter com a assinatura
do convênio.
Esta postura, entretanto, não é correta. O tratado pode ser
equiparado à lei, bastando que se façam algumas considerações
sobre sua natureza e sobre as características da lei delineadas por
Santo Tomás. É verdade que o tratado não é promulgado por
nenhum tipo de autoridade superior aos Estados. Contudo, como
já foi visto acima, o direito positivo pode, segundo o pensamento
tomista, originar-se tanto de uma regra quanto de uma
convenção96. No caso do tratado, é evidente que consiste em uma
convenção. Quando os integrantes de uma sociedade entram em
acordo sobre o que compete a cada qual, e decidem formalizar tal
acordo, a parte justa fica determinada pelos termos do convênio e
a partir daí será obrigatória tanto em virtude da convenção quanto
em virtude do direito natural, que estabelece que os pactos devem
ser cumpridos.
O caráter jurídico do tratado pode ainda ser justificado de
outro modo: de acordo com Javier Hervada, a sociedade também
possui o poder de ditar normas a si mesma. Referindo-se aos
tratados que não necessitam da edição de uma lei interna para
adquirir sua plena eficácia, ele afirma que

são leis acordadas, isto é, não nascidas de um


ato unilateral de um órgão de poder, mas do

96
AQUINO, Tomás de. op.cit. II-II q. 57 a.2.

304
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

pacto ou convênio entre sociedades perfeitas,


representadas pelos órgãos que, segundo a
ordem jurídica de cada uma delas, tenham a
faculdade de negociar, concluir e dar valor
jurídico a esses pactos.97

Portanto, como o corpo social mantém o poder de


normatizar-se a si mesmo, o tratado pode ser enxergado como
meio de os habitantes de um Estado manifestarem sua vontade
através de um convênio com outra sociedade política. Neste caso,
é o próprio Estado – na verdade, a comunidade através de seus
representantes – que cria normas para seus habitantes. Um tratado
cujo conteúdo possa ser imediatamente aplicado, e que não
preveja uma normatização a nível nacional para que possa
produzir efeitos, será obrigatório em relação aos Estados
contraentes não em virtude de algum poder superior, mas porque
as obrigações ali dispostas passam a ser devidas aos cidadãos de
todas as partes contratantes. Confiando a seus representantes
políticos a faculdade de representá-los na criação de normas
internacionais, os indivíduos também se fazem credores de uma
obrigação, incumbente a seus dirigentes, de guiar-se pelo que foi
decidido no tratado. Da mesma maneira que a justiça distributiva
e a comutativa exigem que o cidadão cumpra a lei, de modo a não
ocupar arbitrariamente uma posição superior à dos demais,
também se deverá exigir do governante que cumpra as normas
que pactuou com outros Estados. É importante ressaltar que esta
justificativa não vale para aqueles tratados que impõem uma
obrigação legiferante ao país, pois o conteúdo destes ainda pode
ser examinado – e rejeitado – pelo corpo legislativo do Estado.
Em relação ao costume internacional, pode-se defender sua
juridicidade baseando-se em uma questão específica da Suma
voltada à consuetudo no direito98: Santo Tomás lembra que o

97
HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, pag. 278.
98
AQUINO, op.cit., I-II q. 97 a.3.

305
Leituras Tomistas

homem não manifesta sua vontade somente com palavras, mas


também com atos. Quando tais atos demonstrarem ser a expressão
de uma conduta deliberada, as pessoas e o Estado ficam
vinculados pelos mesmos:

A reiteração, com efeito, dos atos exteriores


expressa de um modo muito eficaz a inclinação
interior da vontade e os conceitos da razão,
pois o que se repete muitas vezes demonstra
proceder de um juízo racional deliberado. Eis
aqui porque o costume tem força de lei,
derroga a lei e interpreta a lei.

Desta forma, por mais que o direito internacional não leve


em conta qualquer autoridade superior aos Estados, ainda assim a
precedência lógica da lei sobre o direito, e deste sobre a justiça,
permanece. Para que se saiba o que compete a cada comunidade
política, é necessário antes verificar se algum tratado ou costume
se encarregou de repartir os bens em disputa.
Em relação aos princípios gerais do direito, que também
podem ser utilizados como fonte do direito internacional99, estes
podem compreender-se como regras gerais extraídas do direito
natural por um primeiro exercício racional de concretização.
Seriam uma primeira tentativa de adaptar o direito natural a
condições determinadas de espaço e tempo. Embora o conceito de
“princípio geral do direito” tenha sido criado pela ciência do
direito de inspiração positivista dos últimos séculos, a ideia em
questão não parece estar muito longe do resultado da discussão
empreendida por Santo Tomás sobre as primeiras concretizações
da lei natural. Ao propor-se a questão sobre a mutabilidade da lei

99
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, ao listar as fontes do direito
internacional em seu art. 38, menciona: “Artigo 38. 1. A Corte, cuja função é
decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem
submetidas, aplicará: [...] c. os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas
nações civilizadas.”

306
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

natural, o Aquinate afirma que, embora esta não possa modificar-


se em seus primeiros princípios, pode fazê-lo “no tocante aos
preceitos secundários, que [...] são como conclusões mais
determinadas derivadas imediatamente dos primeiros princípios”.
Neste caso, tais conclusões poderão variar ocasionalmente, em
casos particulares100, exatamente como se nota em relação aos
princípios gerais do direito.

2.6. Direito natural, direito positivo e direito


internacional

Em relação ao conteúdo do direito, a distinção importante


para Santo Tomás separava direito natural do direito positivo. No
direito internacional, a distinção se mantém, assim como a
exigência de adequação dos preceitos oriundos da vontade
humana às diretrizes da natureza do homem e das coisas. Em
outras palavras, o direito internacional também deve respeitar o
direito natural. A vontade dos Estados não pode ser o único
critério de juridicidade dos instrumentos internacionais.
De acordo com o que foi demonstrado acima, o objeto
devido ao outro é determinado, antes de mais nada, pelo modo de
ser do objeto em questão, pela razão da relação que lhe diz
respeito e pelas características fundamentais das partes
envolvidas. Tudo isso, se é verdade que dificilmente conduz a
uma solução única e certa para o caso concreto, também não pode,
com maior razão ainda, ser atropelado pelas soluções que a
vontade dos pactuantes ou dos demais integrantes da sociedade
alcançar.
A este raciocínio corresponde a ideia – que não constitui de
forma alguma uma novidade entre a doutrina internacionalista –
de que não é suficiente que um tratado reflita a real intenção dos
contratantes para ser reputado válido sem mais. A ciência do

100
AQUINO, Tomás de. op.cit. I-II q. 94 a.5.

307
Leituras Tomistas

direito internacional desenvolveu aqui o importante conceito de


jus cogens, ou normas imperativas, para fazer referência aos
princípios mais fundamentais da ordem jurídica universal, os
quais são insuscetíveis de ser derrogados ou alterados pela
vontade dos agentes da sociedade mundial. Vale notar, a este
respeito, que o jus cogens foi elaborado primeiramente como uma
restrição ao poder dos Estados de celebrar tratados, como
demonstra sua menção explícita na Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados, de 1969101. É sintomático que, para definir o
conteúdo do jus cogens, os juristas tenham enfrentado problemas
semelhantes aos dos filósofos do direito que se propunham a
enfrentar a interrogação pelo conteúdo do direito natural:

A Convenção de Viena previu o jus cogens, mas


não ousou definir o seu conteúdo. A
dificuldade nessa matéria acabaria, na prática,
inviabilizando o intento de codifica-lo em um
tratado internacional. [...] Diante da vertiginosa
dinâmica dos acontecimentos internacionais,

101
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: “Artigo 53 – Tratado em
Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus
cogens). É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com
uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente
Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma
aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um
todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser
modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma
natureza.
Artigo 64 – Superveniência de uma Nova Norma Imperativa de Direito
Internacional Geral (jus cogens).
Se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral,
qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se
nulo e extingue-se.”

308
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

não seria apropriado que as regras de jus cogens


tivessem caráter estático.”102

E, mais adiante: “O conceito de jus cogens pressupõe o


consenso em torno dos valores essenciais para a convivência
internacional. No mundo plural, do limiar do século XXI, é
complexa a tarefa de obter acordo sobre os valores essenciais que
devem orientar a vida internacional.”103 Pode-se aventar que uma
resposta tomista (ou jusnaturalista) a esta dificuldade iniciaria por
lembrar que as regras essenciais ao sistema jurídico internacional
não devem ser determinadas a partir de valores mais ou menos
compartilhados pelos integrantes da sociedade mundial, os quais
sempre podem conter influência de particularidades culturais,
interesse nacional ou pessoal, regime político específico etc. Na
verdade, o conteúdo do jus cogens pode muito bem ser visto como
outra vertente daqueles primeiros princípios que Santo Tomás
mencionava no apartado anterior. Dentre as primeiras conclusões
que a lei natural permite extrair, quando se busca o direito natural
em um caso específico, estão sem dúvida aqueles princípios gerais
do direito evocados na seção precedente. Mas também estão
normas de conteúdo, verdadeiras ideias de força que não podem
ser desrespeitadas pelos Estados.
Embora não se possa elaborar um estudo pormenorizado
sobre a diferença entre princípios gerais e as normas de jus cogens
neste espaço, suas distinções são assim resumidas: os princípios
são mandados de otimização, que não necessitam ser cumpridos
integralmente em todas as circunstâncias, enquanto que as normas
imperativas são regras não (necessariamente) escritas que não
admitem qualquer derrogação. Os princípios gerais refletem
valores presentes em todo o ordenamento jurídico internacional e
interno, podendo também ser determinados a partir de caracteres

102
AMARAL JR., Alberto do. Curso de Direito Internacional Público, 3ª ed. São
Paulo: Ed. Atlas, 2012, pags. 124-125.
103
Ibidem, pag. 129.

309
Leituras Tomistas

essenciais e repetidos nos vários sistemas normativos nacionais,


como por exemplo os princípios atinentes ao devido processo
legal. Já as normas de jus cogens referem-se especificamente ao
direito internacional, compondo limites à atuação estatal na
matéria, como é, ilustrativamente, a proibição do tráfico de
escravos. Por fim, os princípios são definidos também com
atenção ao aspecto formal – são traços essenciais ao
funcionamento de um sistema jurídico, qualquer que seja este.
Como são regras de otimização, são insuscetíveis de ser
transformados em lei, que é uma regra que exige cumprimento
estrito. Ainda quando um princípio for incorporado a um tratado,
ele manterá sua característica de princípio, em geral apoiado pela
redação da cláusula correspondente, que deixará claro que a
obrigação dos contraentes em relação ao princípio não se esgota
em um único ato de cumprimento. Por sua vez, o jus cogens pode
vir expresso nas mais variadas normas de direito internacional –
tratado, costume, jurisprudência, tratado não ratificado, doutrina,
resolução de organização internacional etc. – e fará com que tal
norma, independentemente de sua caracterização formal,
sobressaia por entre as demais.
Pode-se sintetizar tais diferenças afirmando que uma norma
de jus cogens sempre concretizará em parte algum princípio geral
do direito. Mas nem todos os princípios gerais são normas
imperativas, pois nem todos alcançam a essencialidade necessária
para ingressar nesta categoria.
Para concluir o tema do jus cogens, pode ser interessante
mencionar a tentativa de André de Carvalho Ramos de delimitar,
com base nas decisões da jurisprudência internacional, o rol destas
normas. Referido autor as agrupa em três grandes círculos: “a
proibição do uso ilegítimo da força, agressão e da guerra de

310
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

conquista”; “o princípio da autodeterminação dos povos”; e “as


normas cogentes de direitos humanos”104.
O jus cogens, então, é uma primeira concretização do direito
natural no campo do direito internacional. Porém é preciso
lembrar que as exigências oriundas da natureza do homem e das
coisas não se esgotam nas normas imperativas de direito das
gentes. O direito natural pode manifestar-se em casos concretos,
impondo limites à atuação de Estados ou organizações
internacionais.
Um bom exemplo é a atuação de órgãos das Nações Unidas
que pressionam os Estados membros no sentido de
descriminalizar a prática do aborto105. Por mais que maiorias
circunstanciais de países ou comitês de peritos apoiem tais
políticas permissivas em relação à morte do não nascido, estas
recomendações e resoluções jamais poderão derrogar o direito à
vida do nascituro. O aborto é uma violação grave do direito
natural, por exprimir uma desigualdade extrema entre os que
matam e o ser que é assassinado, que se encontra em posição de
total vulnerabilidade e dependência. Ainda que se faça constar de
um tratado (o que hoje ainda não é o caso) um alegado “direito ao
aborto”, o tratado não teria caráter jurídico, por afrontar o direito
natural.
Da mesma forma, quando o Conselho de Segurança da
ONU emitiu a Resolução 1973, de 2011106, autorizando os Estados
membros (na prática, a Organização do Tratado do Atlântico

104
RAMOS, André de Carvalho. Comentários ao artigo 53. In: SALIBA, Aziz Tuffi
(org.). Direito dos Tratados: Comentários à Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados (1969). Belo Horizonte: Arraes, 2011, pags. 458-466.
105
Catholic Family And Human Rights Institute: Dangerous Mischief at the
United Nations: Abortion as the Law of the World, disponível em: http://c-
fam.org/en/86-research/iorg/specialreports/688-dangerous-mischief-at-the-
united-nations-abortion-as-the-law-of-the-world, acesso em 20.04.2014.
106
Disponível em:
http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1973(2011),
acesso em 19.04.2014.

311
Leituras Tomistas

Norte – OTAN) a intervir na Guerra Civil Líbia para,


ostensivamente, proteger os civis líbios, foi possível enxergar uma
ocasião em que o direito positivo se sobrepôs indevidamente ao
direito natural. A Resolução mencionada estabelecia uma
proibição geral de voos no espaço aéreo líbio, a qual poderia
inclusive ser executada pela aviação da OTAN107. Tal proibição – e
o consequente ataque dos aliados à força aérea líbia – representou
um significativo desequilíbrio nas lutas que eram travadas na
guerra civil, passando os rebeldes a gozar de vantagem. A
linguagem vaga das cláusulas redigidas pelo Conselho de
Segurança108 também forneceu cobertura para o que foi
essencialmente um alinhamento dos países da OTAN com os
rebeldes do país magrebino, acarretando na intervenção armada
contra o governo do coronel Muammar Kadafi, na derrubada

107
Resolução 1973 do Conselho de Segurança: “6. Decides to establish a ban on
all flights in the airspace of the Libyan Arab Jamahiriya in order to help protect
civilians;
8. Authorizes Member States that have notified the Secretary-General and the
Secretary-General of the League of Arab States, acting nationally or through
regional organizations or arrangements, to take all necessary measures to
enforce compliance with the ban on flights imposed by paragraph 6 above, as
necessary, and requests the States concerned in cooperation with the League of
Arab States to coordinate closely with the Secretary General on the measures
they are taking to implement this ban, including by establishing an appropriate
mechanism for implementing the provisions of paragraphs 6 and 7 above”.
108
Resolução 1973 do Conselho de Segurança: “4. Authorizes Member States
that have notified the Secretary-General, acting nationally or through regional
organizations or arrangements, and acting in cooperation with the Secretary-
General, to take all necessary measures, notwithstanding paragraph 9 of
resolution 1970 (2011), to protect civilians and civilian populated areas under
threat of attack in the Libyan Arab Jamahiriya, including Benghazi, while
excluding a foreign occupation force of any form on any part of Libyan territory,
and requests the Member States concerned to inform the Secretary-General
immediately of the measures they take pursuant to the authorization conferred
by this paragraph which shall be immediately reported to the Security Council”.

312
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

deste, em sua execução e na instalação de um novo regime no


país109.
O desrespeito ao direito natural está na
desproporcionalidade que se observa entre o fim declarado
(proteger os civis dos riscos do conflito interno) e os meios
empregados (uma intervenção a favor de um dos lados de uma
guerra civil). Com isso, a Resolução 1973 do Conselho de
Segurança desrespeitou um dos mais caros princípios da ordem
internacional, a não intervenção em assuntos internos dos
Estados110.
É bom lembrar que a soberania estatal não pode ser vista
como um direito eterno e imutável do Estado. Na verdade, o
jusnaturalismo tomista recusa, como já se demonstrou, a
designação de algum direito natural como sendo imutável, pois o
que importa para a doutrina aqui analisada não é a existência de
direitos absolutos, mas a manutenção da igualdade no caso

109
INTERNATIONAL CRISIS GROUP: Popular Protest in North Africa and the
Middle East (V): Making Sense of Libya. In: Middle East/North Africa Report no
107, de 06.06.2011, disponível em:
http://www.crisisgroup.org/en/regions/middle-east-north-africa/north-
africa/libya/107-popular-protest-in-north-africa-and-the-middle-east-v-making-
sense-of-libya.aspx, acesso em 19.04.2014.
110
Carta das Nações Unidas: “Artigo. 2º. A Organização e seus Membros, para a
realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os
seguintes Princípios: [...]
4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça
ou o uso da força
contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado,
ou qualquer outra ação
incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. [...]
7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a
intervirem em assuntos que
dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os
Membros a submeterem
tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio,
porém, não prejudicará a
aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII.”

313
Leituras Tomistas

concreto. Desta maneira, a soberania líbia, embora não seja


incondicional, só poderia ser afastada caso os fatos que ocorriam
em seu território o justificassem. Embora este não seja o lugar para
conduzir um estudo detalhado da Guerra Civil de 2010-2011,
sabe-se que os danos causados aos civis não distavam muito do
que tais desafortunados normalmente sofrem em guerras civis no
continente africano. As notícias de verdadeiros massacres eram
comparativamente poucas, em detrimento dos combates nos quais
militares líbios enfrentavam guerrilheiros combatentes111.
De todo modo, a desproporcionalidade da intervenção – que
deveria orientar-se para a proteção de pessoas mas na prática foi
uma luta contra o governo de um país – pode bem ser medida
caso se tome para análise a situação atual da Líbia, já sem o
governo Kadafi e sob as novas autoridades. O país está
simplesmente degenerando para o caos, entre a formação e
derrubada de governos islamitas fanáticos e movimentos
separatistas em áreas ricas em recursos naturais112. A situação
sombria deste Estado do Maghreb deve ser também debitada dos
esforços conduzidos por europeus e norte-americanos com base
na Resolução 1973, bom exemplo de elaboração de lei positiva
com pouco amparo na realidade.

111
Um levantamento ilustrativo, feito a partir de relatos de diversas
fontes jornalísticas, pode ser encontrado em
http://en.wikipedia.org/wiki/Casualties_of_the_Libyan_Civil_War (acesso em
22.04.2014). Nele se contam aproximadamente 4.700 mortos entre os
combatentes rebeldes e o mesmo número para soldados do governo. A
estimativa de civis (não combatentes) mortos nos oito meses de 2011 em que
grassava a guerra civil é de 5 a 7 mil pessoas. As causas das mortes variam
entre ataques por forças do governo, por rebeldes, danos colaterais causados
pelos bombardeios da OTAN e naufrágios de refugiados no Mediterrâneo ao
tentar alcançar a Itália.
112
O International Crisis Group vem acompanhando a situação na Líbia após a
intervenção da OTAN. Conferir em: http://www.crisisgroup.org/en/publication-
type/crisiswatch/crisiswatch-database.aspx?CountryIDs=%7b28685262-BE79-
473E-B18E-ED22761A0F17%7d#results, acesso em 22.04.2014.

314
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Tal norma do Conselho, longe de definir o que compete a


quem no conturbado cenário líbio (proteger a população),
terminou por promover mudanças políticas pela força e lançar o
país em um cenário de instabilidade e sucessivas violações dos
direitos humanos.
Estes dois exemplos ilustram como o direito natural se
mantém sempre “na retaguarda” do direito positivo. O ideal é que
o recurso às diretrizes que emanam da busca por igualdade em
cada situação não seja necessário, vez que o direito positivo já se
encarregaria de deixar claro o que é de cada um. Porém, o direito
positivo pode falhar, seja por ignorância, seja por má-fé (o que os
críticos dizem que ocorreu no caso da intervenção da OTAN na
Líbia, na qual os interesses políticos de líderes europeus teriam se
revestido abusivamente do linguajar dos direitos humanos).
Nestes casos, o direito natural não muda, mas permanece como
um padrão de correção, a partir do qual se pode desfechar a crítica
às regras postas pela vontade do legislador.
Outro aspecto da aplicação do direito natural à realidade
internacional que pode ser extraído das duas ilustrações
apresentadas é a dependência deste direito em relação à realidade
objetiva das coisas. O que é devido a cada um dependerá sempre
da relação concreta entre pessoas (ou grupos destas) envolvendo
bens. Regras de direito positivo poderão ser avaliadas de modo
positivo ou negativo a depender do modo como conseguem
manter a igualdade essencial entre as pessoas em um caso
concreto. É neste sentido que se criticou a resolução do Conselho
que permitia a intervenção na Líbia: não pelo simples fato de
haver afastado a soberania do Estado árabe, mas por havê-lo feito
de modo atabalhoado quando isto não era exigido pelo conflito
interno líbio, terminando por prejudicar aqueles a quem tal
medida deveria beneficiar.

2.7. Justiça e equidade no direito internacional

A última distinção que se fez ao tratar da doutrina jurídica


de Santo Tomás dizia respeito à justiça e equidade. Aqui, como

315
Leituras Tomistas

visto, não se trata propriamente de uma distinção no sentido de


separar dois conceitos reciprocamente contrapostos ou
indiferentes um ao outro. Na verdade, a equidade aperfeiçoa a
prática da justiça, enquanto permite o recurso ao direito natural
durante a aplicação da lei positiva. Deve-se agora indagar se
também no direito internacional se encontra espaço para a
equidade.
Uma primeira resposta pode ser imaginada a partir da
menção explícita da equidade no Estatuto da Corte Internacional
de Justiça. Em seu artigo 38, universalmente citado pelos
internacionalistas por listar as fontes de direito internacional que o
tribunal aplicará na solução dos casos, pode-se ler:

Artigo 38
1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com
o direito internacional as controvérsias que lhe
forem submetidas, aplicará:
a. as convenções internacionais, quer gerais,
quer especiais, que estabeleçam regras
expressamente reconhecidas pelos Estados
litigantes;
b. o costume internacional, como prova de uma
prática geral aceita como sendo o direito;
c. os princípios gerais de direito, reconhecidos
pelas nações civilizadas;
d. sob ressalva da disposição do Artigo 59, as
decisões judiciárias e a doutrina dos juristas
mais qualificados das diferentes nações, como
meio auxiliar para a determinação das regras
de direito.
2. A presente disposição não prejudicará a
faculdade da Corte de decidir uma questão ex
aequo et bono, se as partes com isto
concordarem. (Grifos mantidos.)

Como se vê, a permissão dada aos magistrados da Corte


Internacional de Justiça para aplicarem a equidade fica muito
aquém do conceito tomista. Na letra do Estatuto, a equidade seria

316
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

uma fonte autônoma do direito, consistente no sentimento de


justiça dos juízes internacionais. Parece evidente que a opinião
subjetiva do juiz pode chocar-se com as demais fontes do direito
mencionadas no dispositivo, como os tratados ou o costume
internacional. Também deve lembrar-se que o recurso à própria
concepção sobre a solução correta do caso pode conduzir a
situações de injustiça objetiva, eis que a opinião do juiz,
diferentemente de um tratado ou um costume internacionais, não
pode ser previamente conhecida pelas partes, impondo portanto
aos Estados em controvérsia uma carga que não lhes incumbia.
Por estas razões, a regra do parágrafo 2º soa razoável ao
subordinar o uso deste tipo de equidade a uma permissão prévia
conferida por ambos os lados. Na prática, isto ocorreu poucas
vezes na jurisprudência da Corte113. Pode-se aventar que esta
última disposição do art. 38 foi pensada para algum caso
inusitado em que não houvesse um tratado ou costume regulando

113
No “Caso da Delimitação da Fronteira Marítima na Área do Golfo do Maine”
entre Canadá e EUA, decidido em 1984, a Corte, através de uma câmara
especial de cinco juízes criada para o julgamento, foi incumbida pelas partes de
traçar a linha divisória entre os dois Estados. Ao fazê-lo, declarou aplicar
diversos “princípios equitativos”. Frise-se que, neste caso, a Corte foi
especificamente autorizada a traçar a linha fronteiriça segundo o critério que
entendesse melhor e, além disto, as partes participaram da escolha dos
magistrados que comporiam a câmara de julgamento, manifestando
explicitamente sua recusa de certos juízes. Desta forma, a Corte estava
aplicando a equidade em condições cuidadosamente controladas pelos Estados
em questão. “A CIJ nunca deu uma decisão baseada exclusivamente na
equidade. [...] A equidade representa o perigo de ser uma noção imprecisa,
bem como conduzir à arbitrariedade. [...] A CIJ em diferentes casos tem
utilizado a equidade. Assim em 1970, no caso ‘Barcelona Traction’ ela adota
uma ‘aplicação razoável’ comandada por razões de equidade. No caso Tunísia
vs. Líbia (1982), ela adota, entre as várias interpretações aquelas que atende às
exigências da Justiça. No caso Burkina vs. Mali (1986) a equidade foi
considerada um método de interpretação. Em 1969, no caso da Plataforma do
Mar do Norte ela reconhece à equidade um caráter normativo e afirma que
não é uma justiça abstrata...” (sic) MELLO, Celso R.D.A. Curso de Direito
Internacional Público, vol. I, 15ª ed., pag. 331. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

317
Leituras Tomistas

a questão, e no qual os princípios gerais de direito fornecessem


respostas vagas ou contraditórias.
A equidade no jusnaturalismo clássico é, contudo, bem
diferente. Não se trata de uma figura oposta à lei, ou de uma
permissão dada ao julgador para ignorar o ordenamento e decidir
de acordo com seu feeling. A equidade, aqui, consiste em aplicar o
direito positivo aos casos de modo reflexivo, observando se a lei
realmente concretiza a igualdade entre as pessoas naquela
situação particular. O direito positivo deve contar com uma
presunção de correção: a princípio, não há porque duvidar de que
uma lei ou precedente judicial estão de acordo com o direito
natural. Porém tal presunção não pode ser absoluta. Nos casos em
que ficar patente que a aplicação da lei não resultará em uma
repartição justa dos bens em disputa, a lei deverá ser
excepcionada.
Isto vale também no campo do direito internacional, já que o
direito internacional positivo padece da mesma deficiência
inevitável que os demais ramos. Também no ius gentium, quando
uma norma positiva não consegue abarcar determinado caso
concreto, ou quando a solução dada pelo texto legal for
claramente injusta, atuará então a equidade.
Celso Mello reconhece tal diferença, ao mostrar-se114 de
acordo com a opinião segundo a qual

todo juiz ou árbitro ao decidir o faz ‘com uma


certa equidade’, mesmo quando ele não
recebeu poderes das partes para decidir por
equidade. Ela tem sido considerada uma
‘justiça individualizada’, bem como serve de
crítica ao direito positivo estimulando o
aperfeiçoamento do DIP.115

114
MELLO, op.cit., pag. 330.
115
As citações dentro do texto de Mello referem-se à obra de V.D.Degan,
“L’équité et le droit international”, 1970.

318
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Nota-se neste trecho a separação entre a equidade


mencionada no Estatuto da CIJ e a equidade como conceito
jurídico básico, já defendida por Aristóteles e Santo Tomás de
Aquino.
Um exemplo de sua aplicação no direito internacional é
dado pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a
qual permite que um tratado não seja cumprido ou até mesmo que
seja declarado extinto quando as circunstâncias sob as quais fora
concluído se houverem modificado de tal modo que a aplicação
da norma se torne demasiado gravosa para uma ou mais das
partes. Literalmente:

Artigo 61
Impossibilidade Superveniente de
Cumprimento
1. Uma parte pode invocar a impossibilidade
de cumprir um tratado como causa para
extinguir o tratado ou dele retirar-se, se esta
possibilidade resultar da destruição ou do
desaparecimento definitivo de um objeto
indispensável ao cumprimento do tratado. Se a
impossibilidade for temporária, pode ser
invocada somente como causa para suspender
a execução do tratado.
2. A impossibilidade de cumprimento não
pode ser invocada por uma das partes como
causa para extinguir um tratado, dele retirar-
se, ou suspender a execução do mesmo, se a
impossibilidade resultar de uma violação, por
essa parte, quer de uma obrigação decorrente
do tratado, quer de qualquer outra obrigação
internacional em relação a qualquer outra parte
no tratado.
Artigo 62
Mudança Fundamental de Circunstâncias
1. Uma mudança fundamental de
circunstâncias, ocorrida em relação às
existentes no momento da conclusão de um

319
Leituras Tomistas

tratado, e não prevista pelas partes, não pode


ser invocada como causa para extinguir um
tratado ou dele retirar-se, salvo se:
a) a existência dessas circunstâncias tiver
constituído uma condição essencial do
consentimento das partes em obrigarem-se
pelo tratado; e
b) essa mudança tiver por efeito a modificação
radical do alcance das obrigações ainda
pendentes de cumprimento em virtude do
tratado.
2. Uma mudança fundamental de
circunstâncias não pode ser invocada pela
parte como causa para extinguir um tratado ou
dele retirar-se:
a) se o tratado estabelecer limites; ou
b) se a mudança fundamental resultar de
violação, pela parte que a invoca, seja de uma
obrigação decorrente do tratado, seja de
qualquer outra obrigação internacional em
relação a qualquer outra parte no tratado.
3. Se, nos termos dos parágrafos anteriores,
uma parte pode invocar uma mudança
fundamental de circunstâncias como causa
para extinguir um tratado ou dele retirar-se,
pode também invocá-la como causa para
suspender a execução do tratado.

Trata-se de uma abertura para a equidade, que poderá ser


invocada, na forma dos dispositivos transcritos, quando o
contexto fático que norteou a tomada de decisão dos contraentes,
e nos quais estes se basearam para indicar o que considerariam
uma relação igualitária, é substancialmente alterado, de uma
forma que não poderia ter sido prevista quando da conclusão do
acordo. Neste caso, a continuidade da observância da convenção
seria injusta, pois uma ou ambas as partes poderiam ver-se
incumbidas de prestações com as quais elas não contavam à época
do acordo. Isto poderia facilmente redundar em desigualdade,
pois os ônus e bônus da relação original seriam redistribuídos de

320
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

modo aleatório, rompendo o equilíbrio convencionado pelas


partes.
Um caso ilustrativo no qual a equidade pode jogar um papel
importante é a concessão de asilo diplomático, pelo Brasil, ao ex-
senador boliviano Roger Pinto em 2013. Dizendo-se perseguido
politicamente pelo governo de seu país, este ingressou na
embaixada brasileira em La Paz e ali pediu asilo, que lhe foi
concedido pelo governo brasileiro. Contudo, ao ser solicitado seu
salvo-conduto às autoridades bolivianas, estas o negaram116,
argumentando que se tratava de um criminoso comum. O Brasil
se baseava, na época, na Convenção de Caracas sobre Asilo
Diplomático, de 1954, que impõe ao Estado territorial (onde se
situa a embaixada) o dever de conceder o salvo-conduto ao
asilado, sempre que o Estado da missão diplomática o requeira117.
Embora fosse verdade que a Bolívia não ratificara tal convenção,
ela se via obrigada a respeitar o asilo diplomático em virtude do
robusto costume regional latino-americano sobre a matéria.
Durante sua conturbada história, o próprio país andino já havia
assistido a diversos casos de ex-presidentes e políticos que
buscavam asilo em embaixadas estrangeiras, sempre concedendo-
lhes a liberdade para que se retirassem logo do país118. Da mesma

116
LAFER, Celso. Asilo diplomático – o caso do senador Roger Pinto.
In: O Estado de São Paulo, ed. 15.09.2013, disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,asilo-diplomatico-o-caso-do-
senador-roger-pinto,1074867,0.htm, acesso em 19.04.2014.
117
Convenção de Caracas sobre o Asilo Diplomático: “Artigo IV. Compete ao
Estado asilante a classificação da natureza do delito ou dos motivos da
perseguição. [...]
Artigo XII. Concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado
para território estrangeiro, sendo o Estado territorial obrigado a conceder
imediatamente, salvo caso de força maior, as garantias necessárias a que se
refere o Artigo V e o correspondente salvo-conduto.”
118
BOCCANERA, Jorge. Antonio Arguedas: un destino latino-americano.
Clarín.com, edição de 12.03.2000, disponível em:
http://edant.clarin.com/suplementos/zona/2000/03/12/i-00801e.htm, acesso
em 19.04.2014. REVISTA VEJA. Os militares lideram as esquerdas. Entrevista

321
Leituras Tomistas

forma, a Bolívia disponibilizou suas missões diversas vezes para


que perseguidos em outros países nelas encontrassem asilo, com a
emissão do correspondente salvo-conduto. Logo após o golpe de
1964 no Brasil, por exemplo, opositores do novo governo
brasileiro encontraram abrigo na embaixada daquele país então no
Rio de Janeiro119. Neste diapasão, é sintomático que, um mês antes
do episódio envolvendo o ex-senador Roger Pinto, o presidente
boliviano Evo Morales houvesse oferecido asilo ao conhecido
ativista e divulgador de dados do governo norte-americano
Edward Snowden120. Portanto, havia um costume internacional
bastante claro que obrigava a Bolívia, e ao qual esta já havia
aderido por sua prática em numerosas ocasiões. O ex-senador
passou mais de um ano na embaixada brasileira, sem que o
governo andino permitisse sua saída. Em agosto de 2013, o
encarregado de negócios da missão pátria resolveu remediar a
situação por conta própria. Retirou Roger Pinto furtivamente da
embaixada escondido no porta-malas de um veículo oficial e
conduziu o mesmo até a fronteira brasileira. Ao ingressar em
território nacional, o ex-senador teve sua presença logo divulgada,
causando protestos do governo vizinho. Como avaliar
juridicamente a ação do representante brasileiro?

com o General Alfredo Ovando Candía, veiculada em 22.10.1969, disponível


em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/entrevista_22101969.shtml, acesso
em 19.04.2014. JORNAL DO BRASIL. Ovando Candía deixa asilo em Embaixada.
Notícia veiculada em 08.10.1970, disponível em:
http://news.google.com/newspapers?nid=1246&dat=19701008&id=seJQAAAAI
BAJ&sjid=nQ8EAAAAIBAJ&pg=4720,3338423, acesso em 19.04.2014.
119
EXÍLIO, in: Historica – Revista On Line do Arquivo Público do Estado de São
Paulo, Seção “Imagens de Uma Época”, edição de out./2008, disponível em:
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/imagemepoca/anteriores/outub
ro2008/, acesso em 19.04.2014.
120
PÚBLICO. Venezuela, Bolívia e Nicarágua oferecem asilo a Snowden.
Notícia veiculada em 06.07.2013, disponível em:
http://www.publico.pt/mundo/noticia/venezuela-e-nicaragua-oferecem-asilo-
a-snowden-1599457, acesso em 19.04.2014.

322
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

Em rápida análise, pois este texto deve ater-se a seu tema


central, pode-se verificar que a denegação do salvo-conduto pelas
autoridades bolivianas consistiu em uma omissão ilícita perante o
direito internacional, haja vista o costume latino-americano
vigente sobre a matéria. Contudo, a ação unilateral do diplomata
brasileiro também pode ser questionada, eis que a Convenção de
Viena sobre Relações Diplomáticas é clara ao determinar que a
missão e as imunidades diplomáticas não podem ser utilizadas
para interferir nos assuntos domésticos do Estado acreditado121.
Como resolver a situação?
Parece que um caminho aceitável seria fazer incidir aqui o
instituto da equidade, no sentido amplo desenvolvido acima. Uma
vez que a Bolívia não cumpriu com sua obrigação de conceder o
salvo-conduto ao ex-senador Roger Pinto, devem ser consideradas
as violações aos direitos humanos do asilado, obrigado a passar
mais de 450 dias122 no restrito espaço da embaixada brasileira. Da
mesma forma, o Brasil também teve seus direitos violados, eis que
deveria poder proceder à retirada do político do território
boliviano. Acresça-se o dano causado ao regular funcionamento

121
Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, art. 41: “1. Sem prejuízo
de seus privilégios e imunidade todas as pessoas que gozem desses privilégios e
imunidades deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditado.
Têm também o dever de não se imiscuir nos assuntos internos do referido
Estado.
2. Todos os assuntos oficiais que o Estado acreditante confiar à Missão para
serem tratados com o Estado acreditado deverão sê-lo com o Ministério das
Relações Exteriores ou por seu intermédio ou com outro Ministério em que se
tenha convindo.
3. Os locais da Missão não devem ser utilizados de maneira incompatível com
as funções da Missão tais como são enunciadas na presente Convenção em
outras normas de direito internacional geral ou em acordos especiais em vigor
entre o Estado acreditado.”
122
PORTAL G1. Entenda o caso do senador boliviano Roger Pinto.
Notícia veiculada em 26.08.2013, disponível em:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/08/entenda-o-caso-do-senador-
boliviano-roger-pinto.html, acesso em 19.04.2014.

323
Leituras Tomistas

da embaixada devido ao ônus de manter, por tempo indefinido, o


asilado em suas instalações. Neste sentido, a atitude unilateral
tomada pelo encarregado de negócios brasileiro da embaixada em
La Paz parece encontrar-se respaldada pela equidade, sendo uma
derrogação, no caso específico, das disposições da Convenção de
Viena sobre Relações Diplomáticas e do costume internacional
que proíbem que a diplomacia atue materialmente em situações
que competem exclusivamente ao governo local. Caso tais normas
fossem seguidas no caso de Roger Pinto, nada poderia ser feito
após a omissão da Bolívia, e a situação se tornaria desigual e
injusta para o Brasil e o ex-senador. A viagem secreta que tirou o
político de seu país natal representou, é certo, uma interferência
do Brasil em assuntos bolivianos, e um uso irregular do veículo
diplomático. Contudo, quando se tem em mente que a equidade
visa exatamente proteger o mais fraco e que, na situação sob
análise, este era indubitavelmente o indivíduo, e não qualquer um
dos Estados envolvidos, tem-se que o direito natural, aqui, gerou
uma exceção pontual e restrita aos preceitos do direito positivo,
que proibiriam o Brasil de tomar qualquer medida que pusesse
fim ao confinamento de Roger Pinto devido à oposição – ilegal –
da Bolívia.
Vistos estes dois exemplos do uso da equidade no direito
internacional, pode-se passar às conclusões destas páginas.

Conclusão

Este trabalho tinha por objetivo verificar a compatibilidade


entre a teoria jusnaturalista do direito como expressa por Santo
Tomás de Aquino e o direito internacional. É possível afirmar que
referida harmonia existe, e que o direito natural possui
aplicabilidade no campo das relações internacionais.
O jusnaturalismo torna patente uma grande necessidade do
estudo dos internacionalistas, que é a consideração do indivíduo
como sujeito mais importante – embora não seja o mais atuante –
da ordem internacional. Tomando a pessoa humana como base do
sistema do direito das gentes, os direitos e deveres dos Estados

324
O que é justo nas relações entre os indivíduos organizados em Estados

deverão ser relidos à luz dos indivíduos aos quais tais relações
jurídicas correspondem. Em condições normais, valerá a
presunção de que a posição do Estado corresponde aos interesses
da generalidade de seus habitantes. Porém isto pode ser afastado
no caso de governos despóticos ou medidas autoritárias, que
afrontem claramente os direitos dos cidadãos.
Uma vez que se mantenha o indivíduo como centro da
ordem internacional, o direito natural encontrará espaço para
atuar, limitando a discricionariedade dos Estados e de seu direito
positivo sempre que tais vontades desconsiderarem ou atuarem
contrariamente à igualdade original existente entre todos os seres
humanos.
Isto posto, caso se deseje definir o direito internacional em
termos tomistas, ver-se-á que seu conceito central é o de uma
conduta de um grupo de indivíduos organizados em Estado
adequada a outro indivíduo ou grupo de indivíduos organizados
em Estado e relacionada a coisas. Caso se prefira colocar a ênfase
no objeto da relação, pode-se defini-lo por aquilo que um grupo
de indivíduos deve a outro123.
Este seria o sentido nuclear da expressão direito
internacional. Contudo, Santo Tomás lembra que “direito” é um
vocábulo que possui diversos significados, a maioria dos quais
muito próximos entre si124. Portanto, entender “direito

123
Segue-se a distinção entre direito internacional público e privado: o Direito
Internacional Público trata das relações nas quais predomina a organização em
grupo, enquanto que o Direito Internacional Privado trata daquelas nas quais
predomina o elemento individual. É por isso que os estudiosos destas áreas
costumam encontrar-se em alguns temas, como o estudo da nacionalidade, da
condição jurídica do estrangeiro e do direito dos tratados. Trata-se de uma
delimitação de contornos não completamente exatos. O critério de distinção é
antes quantitativo que qualitativo. De resto, o enfoque jusnaturalista sob o
qual se desenvolveu este texto considera que as divisões entre os vários
campos do direito são acidentais e motivados por uma maior necessidade de
especialização em setores específicos. Contudo, o direito possui uma essência
única, que é a do objeto devido ao outro.
124
AQUINO, op.cit., II-II q.57 a.1 ad 1.

325
Leituras Tomistas

internacional” como um conjunto de preceitos que regulam a


relação dos Estados entre si125 não é incorreto, mas é uma
definição parcial. Excetuando-se o caso atípico em que haja
violação grave ao direito natural, as regras de direito positivo
efetivamente indicam a solução jurídica para as disputas. Daí que
compreender o direito internacional como conjunto de regras não
se afaste totalmente do sentido central do termo. Mas é importante
não perder de vista que o mais importante não são as normas, e
sim a conduta que estas impõem, e a igualdade que deve ser
alcançada por meio destas condutas.
Assim, o direito internacional é uma manifestação a mais do
conceito geral do direito. Seu caráter jurídico fica definitivamente
comprovado. E sua função é claramente estabelecida: manter a
igualdade natural de valor que há entre as pessoas,
especificamente nos casos de relações nas quais os indivíduos se
organizem em grupos (seja em um ou nos dois polos da relação) e
disputem por bens ou condutas exteriores.

125
É a definição mais comum encontrada na doutrina atual. Ver, por exemplo,
MELLO, op.cit., pag. 77; AMARAL JR., op.cit., pags. 17 ss.; SOARES, Guido F.S.
Curso de Direito Internacional Público, 2ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2004, pags.
21 ss.; DUPUY, Pierre-Marie. Droit international public, 8ª ed. Paris: Dalloz,
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330

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