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Resumo: Este artigo aborda o processo de criação do artista conceitual Paulo Bruscky a partir da
presença do carimbo em sua prática artística. Por meio de uma visita ao ateliê-arquivo do artista e do
uso da entrevista como ferramenta metodológica, propõe-se uma investigação acerca do contexto
de sua produção, suas referências, tendências poéticas, suportes utilizados, diálogos com outros ar-
tistas, posicionamentos frente à arte, cultura e política, com o intuito de compreender sua complexa
rede de criação.
Abstract: This article approaches the creative process of the conceptual artist Paulo Bruscky from the
presence of the rubber stamp in his artistic practice. Through a visit to the artist’s studio-archive and the
using of the interview as a methodological tool, an investigation is proposed about the context of his
production, his references, poetic tendencies, the medias, dialogues with other artists, opinions about
art, culture and politics, in order to understand his complex network of creation.
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Atravessando o corredor até chegar ao quin- em viagens. “Viajo e compro em feiras grandes
tal no fundo da casa, não é possível dar conta clichês antigos e mandou fazer o carimbo”, ele
de enumerar o que os olhos veem: armários de pontua (informação verbal)5.
ferro, caixas colecionadoras, livros, quadros, Essa coleção se reflete na prática artística
embalagens vazias, publicações, catálogos, de Paulo Bruscky, em que o carimbo não pas-
documentos, trabalhos, objetos, registros etc. sa despercebido. Esta afirmação compreende
Ainda que a memória, na maioria das vezes, seja duas vias: seja pelo expectador, ao entrar em
entendida na chave do passado, esse acúmulo contato com a produção de Bruscky; seja pelo
fala de uma presença ativa do artista pernam- próprio artista, ao dedicar atenção e intenção
bucano Paulo Bruscky1 nesse espaço e de sua sobre o objeto. Ainda assim, falar do “uso do ob-
múltipla e efervescente trajetória. jeto” não abarca a definição de carimbo em sua
Essa é uma das tantas descrições possíveis prática. Para Paulo Bruscky tudo é carimbo e/
ao adentrar o seu ateliê-arquivo, localizado no ou “o carimbo pra mim é tudo”, conforme define
bairro da Boa Vista, no Recife. Ao sentarmos na (informação verbal)6.
mesa da cozinha para conversar, o artista justi- Diante desse “tudo”, podemos iniciar pela sua
fica sua prática incansável: “[...] eu não acredito percepção sobre o carimbo enquanto exercício
em outras vidas, mas se eu tive, fui arquivista” de pressão de um objeto qualquer sobre uma
(informação verbal)2. Na casa – espaço híbrido superfície. Nesse sentido, Bruscky conta: “[...] fiz
que comporta seu ateliê-arquivo – também uns trabalhos no início dos anos 1970 com pneu
apreendemos seu modus operandi: “[...] eu de carro. Entintava e passava nos papéis que a
crio com o que apanho na rua, onde eu tô, em Formiplac transformou em fórmica com cores.
qualquer lugar. Levo uns sacos plásticos e vou Com tinta, acho que foi guache. Depois, lavava e
andando e apanhando coisas” (informação ver- passava outra cor” (informação verbal)7. Nesse
bal)3. procedimento, que envolve o gesto, o uso da tin-
Essas coisas a que Bruscky se refere vão desde ta guache e o pneu como substituto do pincel,
caixas de remédio a botões, que vão ganhando Bruscky problematiza o binômio pintura-escul-
novos sentidos no processo criativo do artista. tura e o uso de matérias-primas convencionais
Dentre tantos objetos, ao perguntar sobre os ca- no campo da arte. É importante ressaltar que
rimbos e “como tudo começou?”, ele responde: esse questionamento e o uso de novos meios
“[...] desde pequeno, eu já fazia [carimbos] com não é exclusivo da produção desse artista, mas
cajá” (informação verbal)4. Em seguida, aponta trata-se de uma característica que permeia as
para um canto na cozinha e completa: “essa es- práticas artísticas desde os anos 1960.
tante é quase toda de carimbo”. Além do pneu, o artista utiliza outras matri-
Sobre a estante de ferro e dentro de caixas de zes não convencionais, como o ferro de passar8
papelão, Bruscky tem uma coleção formada por e a sola de borracha de sapato – encontrada
centenas de carimbos. Além dos criados por ele, em uma das caixas junto a outros carimbos.
outros tantos foram adquiridos, principalmente
5 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015.
1 Nasceu em 1949, no Recife, Pernambuco. 6 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015.
2 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015. 7 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015.
3 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015. 8 O uso do ferro de passar dá origem às suas Ferro-
4 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015. gravuras (1975).
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tive contato. O grupo Gutai (Japão), eu tive
Bruscky percebe que não só os objetos, mas contato e tenho cerca de 200 obras deles,
o próprio corpo funciona como carimbo. Sua já eram Fluxus, na década de 1950. Eles têm
experimentação vai desde as superfícies mais trabalhos land art, sky art, que não eram
prováveis de contato, como a palma das mãos, reconhecidos, foram reconhecidos agora,
mas não trabalhavam em rede feito o Fluxus
a sola dos pés e as pontas dos dedos, até o uso
(BRUSCKY; MARSILLAC, 2014, p. 48)
da língua, quando em Performance Poema Lin-
guístico propõe “[...] pegar uma tesoura, cortar a
língua, umedecê-la em uma almofada de carim- Essa quantidade de trabalhos representa
bo e fazer composições carimbando-a em teci- uma pequena parte do imenso arquivo10 de arte
dos ou papéis” (BRUSCKY apud FREIRE, 2006, p. conceitual mantido por Bruscky e revela, se-
114). gundo Cristina Freire (2015, p. 36), “[...] o caráter
Nessa proposição, o que está em evidência é documental dessas práticas artísticas”. Tal ca-
o jogo intersemiótico e a possibilidade de uso racterística leva, não só Bruscky, mas diversos
do próprio corpo como linguagem visual. Sobre artistas a criarem arquivos, tais como Edgardo
essas características que perpassam constante- Antonio Vigo na Argentina, Clemente Padín no
mente sua produção, Bruscky comenta: “[...] por Uruguai e Klaus Groh na Alemanha. Por se tratar
ter estudado muito linguística, semiótica, por de uma produção que corre às margens “[...] dos
ter lido muito, faço uma fusão entre as lingua- circuitos hegemônicos e oficiais de produção e
gens e a questão visual. Eu domino um pouco circulação” (idem, 2015, p. 38), raros são os ar-
essas coisas, tenho facilidade, às vezes começo quivos institucionais, com destaque para o Mu-
a obra a partir da palavra ou da palavra a pró- seu de Arte Contemporânea da Universidade de
pria obra” (informação verbal)9. São Paulo (MAC USP).
Com a inserção de Paulo Bruscky na rede in- Compreendendo o MAC USP como agente ati-
ternacional de arte postal, em 1973, o uso do vo na rede internacional de arte postal, Bruscky
carimbo se intensifica na sua produção. A partir estabelece um frutífero contato com a institui-
de envelopes, cartões-postais, xerox-arte e poe- ção. No acervo desta, encontram-se corres-
sias visuais, o artista imprime sua marca, circula pondências entre Paulo Bruscky e o professor
suas ideias e estabelece contato com diversos Walter Zanini – diretor da instituição entre 1963
artistas e grupos, dentre eles o grupo Fluxus e e 1978 – além de diversos trabalhos do artista,
o grupo japonês Gutai. Com Robert Rehfeldt, dentre eles, cartões-postais, envelopes, xero-
artista Fluxus da Alemanha Oriental, Bruscky x-arte e até algas marinhas11. Nos postais e en-
manteve uma correspondência intensa durante velopes, em sua maioria, figuram carimbos com
anos, em que a resistência à censura de seus pa- desenhos diversos: de flor, tigre, coruja, formiga,
íses e a busca por liberdade são temas comuns cegonha, peteca e bola, pato etc. Sobre esses, o
entre eles. Dessas trocas, Bruscky contabiliza: artista comenta: “[...] na arte correio, eu compra-
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va carimbo para criança”. Era bastante comum me ditatorial. Nesse contexto, o carimbo do tro-
os artistas comprarem carimbos em papelarias, cadilho Urgente Gente Urgente Urge explicita a
vendidos em unidades, ou estojos com algum necessidade de ultrapassar as fronteiras impos-
tema específico – ciências, animais, flores, brin- tas pela ditadura militar. Já o carimbo Pa(t)ria
quedos etc. pode ser compreendido como a relação entre o
A produção de sentido a partir da palavra artista e o Brasil, sua pátria. Na composição, ao
é um artifício presente nos carimbos de Paulo suprimir a letra “t” com os parênteses, a palavra
Bruscky. Ao abrirmos as caixas no ateliê-arqui- pátria é dividida e sobra o paria, sujeito que está
vo, nos deparamos com os mais variados carim- à margem das conformações sociais estabeleci-
bos, onde o humor, a ironia, a poesia e o teor das.
político, ora se revezam, ora se fundem. Nos Ainda que inserido em um país marcado pelo
carimbos Cópia conforme o Original e Poema cerceamento de liberdades individuais na épo-
Burocrático, por exemplo, Bruscky traz o próprio ca, Bruscky resiste e anuncia A Arte ainda é a úl-
objeto – sua função e contexto original – como tima Esperança, carimbo que revela sua crença
assunto. Ao tratar de cópia e original, o contexto na arte como espaço de resistência e de liberda-
da arte se apresenta e a ideia de uma arte única de. Em Hoje, a Arte é este Comunicado, a arte se
e original se dissolve nessa produção seriada faz compreendida como canal de comunicação
provocada pela reprodução infinita do carimbo. entre os artistas, sobretudo, por meio da arte
Outra operação de Bruscky está na adição postal.
de novas camadas de sentido a partir da atua- Para além da comunicação por meio da arte
lização de frases existentes. É o caso dos carim- postal, Bruscky promoveu exposições, festivais
bos Atenção: Cuidado com o Vão entre o Trem e e discussões sobre o tema. Entre os eventos,
a Palavra, em que ele substitui “plataforma” por destacamos aqui a 1a Exposição Internacional
“palavra”. Ou a partir da frase icônica do filósofo de Arte Postal, em 1975, no Hospital Agamenon
francês René Descartes, “Penso, logo existo”, o Magalhães, em Recife. Organizada por Paulo
artista cria o carimbo Clico, logo dele(i)to, fazen- Bruscky e Ypiranga Filho – ambos funcionários
do referência à facilidade de apagar a existência do hospital na época – a exposição contou com
de conteúdos com as teclas do computador, a participação de trinta artistas de doze países,
apresentando isso como um deleite. Com o ca- dentre eles Unhandeijara Lisboa, Daniel Santia-
rimbo Você pode tirar o AR de TE?, Bruscky brinca go e Leonhard Frank Duch.
com a separação das sílabas da palavra “arte” Pertencente à geração de artistas que adere
e faz uma pergunta metafórica. Poazia, carimbo às práticas marginais e, para se sustentar, exer-
com a junção das palavras “poesia” e “azia”, dá ce atividades profissionais desvinculadas do
título a um trabalho de 1977 que apresenta o campo artístico (SAYÃO, 2015, p. 51), Bruscky
carimbo acompanhado de um saquinho de sal trabalhou no Hospital Agamenon Magalhães de
de fruta. 1971 a 1996 e fez desse espaço um laboratório
Os carimbos de teor político, por sua vez, re- de experimentações artísticas.
fletem o enfrentamento à censura instaurada Inclusa na gama de possibilidades do uso do
no Brasil – entre os anos de 1964 e 1985 – com carimbo por Bruscky está também a apropria-
a qual Bruscky sofreu diretamente ao ser preso, ção de carimbos institucionais. Aparelhos de
perseguido e ameaçado pelos agentes do regi- raio X, eletrocardiogramas, eletroencefalogra-
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mas, ataduras etc. são suporte e matéria incor- mos diversas composições visuais que apresen-
porados à sua produção. Dentro desse conjun- tam somente o carimbo como linguagem. Den-
to, incluem-se também os carimbos e papéis tre as mais variadas, destacamos aqui o Poema
timbrados da instituição. O artista também de Repetição (s/d). Feito a partir de sucessivas
cria carimbos utilizando o universo do hospital carimbadas, o artista cria uma linha central que
como assunto. É o caso dos carimbos Radium atravessa a superfície da folha e propõe um
Poema, Radium Arte e Autum Radium Retratum jogo metalinguístico a partir do gesto repetiti-
que aparecem junto à radiografia do crânio de vo – qualidade inerente ao carimbo. Essa pro-
Bruscky – um de seus muitos autorretratos. posta dialoga conceitualmente com uma ação
A quantidade e a diversidade dos carimbos de recente do artista feita no espaço Phosphorus
Bruscky, além de suas aplicações e desdobra- em São Paulo. Bruscky calculou o tempo que le-
mentos, chama a atenção do mexicano Ulises varia para preencher o papel com o carimbo Em
Carrión. Atento aos carimbos produzidos pelos Branco. Assim, foram catorze minutos “[...] até
artistas do Nordeste brasileiro, Carrión conside- encher o papel com o carimbo Em branco – sem
ra: deixar nenhum espaço em branco”, ele explica
Bruscky é provavelmente o mais prolífico (informação verbal)14.
do grupo. Ele faz composições complexas Além de composições em folhas soltas, o ar-
de carimbos impressos em vários suportes tista produz livros de artista que têm o carimbo
– cartões-postais, cartas, envelopes, mas
como linguagem principal. Com Dever de casa/1.
também guardanapos e fotografias. Ele pro-
jeta alguns de seus carimbos, mas ele tam- Exercícios de caligrafia (1978), por exemplo, Pau-
bém carimba com seu pé ou sua língua. Ele lo Bruscky subverte de forma lúdica um caderno
faz composições delicadas adequadas para de caligrafia. Em Rubberbook (1978), publicado
serem enquadradas, mas ele também cobre pela Stempelplaats, editora do holandês Aart
o verso de envelopes pardos com todos os
van Barneveld, Bruscky:
tipos de peças estampadas aleatórias (tra-
dução nossa).12 [...] faz um um carimbo de aproximadamente
18x12cm, e utiliza máscaras de papel para
criar falhas na estampa; depois aplica, em
outra cor, um carimbo de uma barata, como
No ateliê-arquivo de Paulo Bruscky13, além
se o inseto estivesse comendo a imagem.
das estantes e caixas com carimbos, encontra- Apesar de fazer parte de uma edição de 100
exemplares, o artista introduz pequenas mu-
12 Em texto publicado na publicação Rubber vol. 2 danças de posição dos insetos carimbados
n. 2, editada pela Stempelplaats. Texto original: “Brus- na página, tornando cada exemplar único
cky is probably the most prolific of the group. He makes (CADOR, 2010, p. 8).
complex compositions of stamp prints in various for-
mats – postcards, letters, envelopes, but also napkins
and photographs. He designs some of his stamps, but O interesse mútuo pelos carimbos foi um dos
he also stamps with his foot or his tongue. He makes
delicate compositions suitable for framing, but he also
motivos que estreitou a relação de Bruscky com
covers the back side of manila envelopes with all sorts o holandês. Além de realizar exposições e pu-
of random stampings”. blicações sob o selo da Stempelplaats, Bruscky
13 Não há como estabelecer uma certa cronologia
convidou Barneveld para o Festival de Inverno
ou raciocínio linear quando se trata dos carimbos de
Paulo Bruscky. Diante de tantas produções e experi- da Universidade Católica de Pernambuco – UNI-
ências, somos aqui guiados pelo desejo de alcançar
e apresentar um apanhado amplo de seus carimbos. 14 Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2015.
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