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Copyright

© Alice Hoffman, 2008


Esta edição foi publicada de acordo com a Crown Publishers,
um selo de Crown Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc.
Título original The Third Angel

Preparação Daniela Garcia


Revisão Carla Mello Moreira
Diagramação Casa de Ideias
Imagem de capa Kamil Vojnar / Getty Images
Produção Digital: Hondana

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hoffman, Alice

O terceiro anjo/Alice Hoffman; tradução Pedro Barros. – São Paulo:


Editora Planeta do Brasil, 2011.

Título original: The third angel.

ISBN 978-85-422-0242-7

1. Literatura norte-americana I. Título.

11-04252 CDD-813

Índice para Catálogo Sistemático


1. Ficção: Literatura norte-americana 813
2011
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Planeta do Brasil Ltda.
Avenida Francisco Matarazzo, 1500 – 3º andar – cj. 32B
Edifício New York
05001 -100 – São Paulo – SP
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Sumário

A esposa do garça

Lion Park

As regras do amor

Agradecimentos
M ADELINE HELLER SABIA QUE ERA IMPULSIVA. Voara de Londres para Nova York

com dois dias de antecedência e já estava em seu quarto no hotel Lion Park em
Knightsbridge. O ar estava parado, repleto de partículas de pó; havia meses as
janelas não eram abertas. Tudo tinha cheiro de cedro e lavanda. Maddy sentia
calor e estava exausta da viagem, mas não se preocupou em ligar o ar-
condicionado. Estava loucamente, terrivelmente, ridiculamente apaixonada pelo
homem errado, e isso a deixava com vontade de ficar deitada ali, na cama,
imobilizada.
Madeline não era estúpida; era uma advogada de Nova York. Tinha 34 anos e se
formara por Oberlin e pela Escola de Direito da Universidade de Nova York,
uma mulher alta com cabelo preto comprido. Muita gente a considerava bonita e
esperta, ela, porém, não dava a mínima para a opinião dessas pessoas. Não a
conheciam. Não tinham ideia de que ela enganava seus conhecidos. Nunca
teriam imaginado que ela abandonaria sua vida tão facilmente, sem pensar duas
vezes.
Existe amor bom e existe amor ruim. Existe aquele tipo que ajuda uma
pessoa a superar todos os obstáculos e existe aquele do tipo desesperado, que
pega uma pessoa quando ela menos quer ou espera. E foi isso que aconteceu
com Maddy na primavera passada, quando fora para Londres ajudar sua irmã a
cuidar do casamento. Allie nem chegou a pedir ajuda; foi a mãe delas, Lucy,
quem disse para Maddy ir para Londres auxiliar nos preparativos; afinal de
contas, ela seria a madrinha. Mas, quando chegou lá, Allie já tinha cuidado de
tudo, como sempre fez.
Allie era treze meses mais velha. Era a irmã boa, a irmã perfeita, aquela que
tinha tudo. Era escritora e tinha publicado um livro infantil muito popular.
Quando andava pela rua, as pessoas costumavam reconhecê-la, e estava sempre
disposta a autografar pedacinhos de papel para o filho de alguém ou presentear
um fã com um marcador de livro que trazia na bolsa. Uma vez por ano, voltava
aos Estados Unidos para fazer palestras, o que se tornara um evento
perpetuamente popular em que crianças se fantasiavam de pássaros. Havia
cardeais, patos e corvos de nove e dez anos de idade aguardando na fila para ter
sua cópia de A esposa da garça autografada. Maddy, às vezes, acompanhava a
turnê da irmã. Não conseguia acreditar em toda aquela balbúrdia devida a uma
historinha infantil boba, que Allie pinçara de um conto que sua mãe costumava
contar. Tecnicamente, a história pertencia tanto a Maddy quanto a sua irmã, não
que ela sentisse a necessidade de escrever um livro ou virá-la do avesso para
adequá-la a seus propósitos.
Era uma história que Lucy Heller contava ao lado do brejo onde as garotas
foram criadas. A mãe de Lucy, a avó das garotas, atravessara, descalça, uma
lagoa no Central Park para conversar com uma enorme garça-azul. Não dera a
mínima para a opinião das pessoas; simplesmente foi em frente. Ao aproximar-
se percebeu que era um garça-macho. Solicitara ao garça que cuidasse de Lucy, e
ele sempre o fizera. E então, algum tempo depois, Lucy pediu-lhe que protegesse
suas filhas e ele veio morar com elas no brejo em Connecticut.
“Como um garça-macho pode cuidar de uma pessoa?”, sussurrara Maddy
para sua irmã. Não acreditava muito nessas histórias, ainda que tivesse apenas
oito anos de idade. Era tão cética quanto sua mãe havia sido.
“Ele pode ter duas vidas distintas”, disse rapidamente Allie, como se a
resposta fosse simples, como se Maddy fosse a única capaz de desvendar os
mistérios do universo. “Ele tem uma vida como garça lá no céu e uma vida aqui
embaixo.”
“Fico feliz por ele poder ajudar nós duas”, falou Maddy.
“Não seja ridícula.” Allie era sempre muito decidida e segura de si mesma.
“O garça-azul possui apenas um amor verdadeiro.”
E foi assim que ele foi parar no livro de Allie. Havia uma mulher que se
casou com o homem que amava. O casal vivia em uma casa que lembrava aquela
próxima ao brejo onde as irmãs haviam sido criadas. Eram os mesmos bambus
prateados. O mesmo céu tingido de preto. Os noivos residiram em sua casa feita
de pau e pedra por mais ou menos um ano, felizes e em paz. E, então, um dia,
quando o homem saíra para pescar o jantar, ouviu-se uma batida na porta. A
mulher atendeu e encontrou a outra esposa do noivo, uma garça-azul viera
procurar seu marido sumido.
“Como aguenta todas essas crianças te rodeando?”, perguntou Maddy
durante uma palestra particularmente lotada. Seus narizes escorriam. Eram
repletas de germes, barulhentas e rudes. E precisavam rir tão alto? Era
ensurdecedor.
No livro de Allie, a esposa do garça estava definhando. Suas penas estavam
caindo. Não comera nada desde que seu marido saíra.
Uma de nós vence, e a outra perde. Mas quem?, perguntou à noiva na porta.
“São meus leitores. Quero que riam.”
Allie é que costumava sempre viajar para se encontrarem, mas finalmente
Maddy seria a convidada de sua irmã. Para falar a verdade, ela evitava ir até
Londres, dizia que estava muito ocupada, mas não era só isso. Não tinha vontade
de ver o mundo perfeito de Allie. Por fim, não teve como fugir; afinal de contas,
tinha um casamento para participar. Um casamento em que Maddy novamente
seria a coadjuvante, a irmãzinha má que não conseguia seguir as regras, que,
mesmo uma mulher crescida, ainda tinha medo de coisas ridículas como
temporais e ratos, engarrafamentos e aviões. Era bem provável que fosse
obrigada a usar um vestido horrível, feito em um tecido sintético desagradável,
enquanto sua irmã brilharia em seda ou cetim branco. Segundo nível, segunda
melhor, o lado negro de tudo. Nunca acreditou nos homens que lhe diziam que
era bonita e esquivava-se de criar amizades. Fazia seu trabalho e ficava na dela,
o tipo de mulher que conseguia ficar tranquila diante de crianças que retiravam
as asas de uma borboleta ou enterravam um sapo na lama. O que as pessoas
faziam em seu tempo livre não era problema seu. Afinal de contas, a crueldade
fazia parte da vida. Não era sua função consertar o mundo. Esse tipo de coisa,
deixava para sua irmã.
Como Maddy ficaria em Londres para um fim de semana estendido em abril,
chegando numa quinta e partindo no final da tarde de segunda, ela e Allie foram
correndo diretamente do aeroporto para a costureira, para que Maddy pudesse
experimentar a roupa. Quando crianças, eram bem próximas, mas, como foram
criadas separadas, eram bem diferentes, pelo menos o máximo que irmãs podem
ser. Allie, contudo, esforçara-se para escolher um vestido que se adequasse a
Maddy: seda azul, sensual, realçando os traços da irmã. Quanto a Maddy, ela
odiou o vestido, mas preferiu não falar nada. Decidira que tentaria ser a irmã
cordata pela primeira vez na vida. Até concordou em experimentar os possíveis
bolos de casamento quando terminaram de ajustar os vestidos. Era por isso que
ela estava lá. Para auxiliar a irmã.
Foram até a confeitaria e experimentaram uma variedade de doces, mas a
pasta de manteiga estava muito pesada e o gosto do chocolate, muito acentuado.
Allie não parecia satisfeita com nada. Dizia que preparativos de casamento eram
perda de tempo. No final, escolheu um bolo amarelo simples, que fora preparado
a partir de sua própria receita. E realmente não precisou de Maddy para nada.
Maddy ainda estava em seu modo complacente. “Boa escolha”, falou.
“Simplicidade é tudo. Menos chance de dar alguma coisa errada.”
Não que acreditasse nessa filosofia quando em relação a ela mesma. Simples
era bom para Allie, não para Maddy. Maddy era gananciosa, e sempre fora
assim. Costumava roubar sua irmã, faixas de cabelo, bijuterias, camisetas. Se
fosse o bolo de casamento dela, teria optado por musse, geleia, chocolate,
damasco no Brandy e algodão doce. Não havia exagero para uma garota que
sempre achou ser a segunda melhor.
No dia seguinte à aventura de experimentação de bolos, as irmãs estavam
contorcidas na cama, com dor de barriga, debaixo do cobertor. Ficaram de
pijama e meias. Quando crianças, não precisavam de mais ninguém além delas
mesmas; a sensação, por algumas horas, foi a mesma, enquanto bebericavam
xícaras de chá. Mas não havia como recuperar o que Allie arruinara ao sair de
casa. No fundo, não tinham mais nada em comum. Fazia dezessete anos que
Allie fora para a faculdade em Boston. Fora para Londres no segundo ano,
retornando, de vez em quando, para passar uma semana apenas. Abandonara
Madeline, deixando-a sozinha na casa grande que tinham em Connecticut, com
seus pais, que haviam se reconciliado depois de um ano de separação. Os Hellers
não tinham vizinhos, e Maddy não tinha amigos. Era distante, da forma que
pessoas solitárias costumam ser. Depois que sua irmã saiu, Maddy ficou cada
vez mais isolada. Mesmo quando foi para Oberlin, era a única que voltava para
casa para as férias de inverno ou para o recesso de primavera. Quando as cartas
de Allie chegavam, Maddy recusava-se a lê-las. Preferia sair para relaxar ao lado
do bambuzal. Nos dias em que o céu estava claro, acabava encontrando o garça-
azul que vivia ali. Lera que a maioria das garças vivia em pares, o macho grande
e a fêmea mais delicada, unidos pelo resto da vida, mas este era solitário. Estava
bem afastado, na outra ponta do brejo. Costumava tentar chamá-lo, mas parecia
que ele não a escutava. Nunca sequer olhou para ela.

O APARTAMENTO DE Allie de frente para Bayswater era arejado, mas comum,


bem diferente do estilo de Maddy. Nada de chamativo. Mais uma vez,
simplicidade. O guarda-roupa de Allie era cheio de lã e caxemira em tons de
cinza, azul-marinho e preto. Roupas para o dia a dia feitas sob medida. Maddy
sabia disso porque deu uma espiada no armário enquanto Allie tomava banho.
Sentia que havia algo misterioso em sua irmã, algum detalhe essencial que
explicaria suas habilidades sobre-humanas para fazer a coisa certa. Não
encontrara nenhuma pista em suas buscas, embora tenha descoberto que a única
cor em seu armário era uma blusa rosa, um presente de aniversário que Maddy
comprara para ela, no outono passado, na Barneys. Acabou notando que a
etiqueta da loja ainda estava lá.
No dia seguinte ao fiasco do bolo de casamento, saíram para almoçar com as
damas de honra, embora ainda estivessem com dor de barriga. Lá estavam
Georgia, a melhor amiga de Allie, que era a diretora de arte da editora que
publicara seu livro; e Suzy, uma texana operada que estudara com Allie no
segundo ano de faculdade e se casara com um inglês. Agora era mãe de gêmeas
de nove anos de idade, tão estabelecida em sua cidade escolhida que até
apresentava um pouco do sotaque cantado dos britânicos. A terceira amiga,
Hannah, lecionava hatha ioga e morava no mesmo prédio que Allie. Allie fora
uma de suas alunas e ainda fazia aulas uma vez por semana. Hannah era bem alta
e usava branco quase o tempo todo. Parecia uma gata, como se pudesse se esticar
e dobrar-se em duas.
“Até que enfim, a irmãzinha!”, gritou Georgia, quando Allie e Maddy
entraram no restaurante. As amigas de Allie rodearam Maddy para
cumprimentá-la. Era um estabelecimento mais bonito do que Maddy imaginara;
vasinhos de flores com etiquetas indicando o lugar que cada um deveria assumir
à mesa. As outras damas de honra disseram a Maddy que a invejavam por ser a
única que poderia usar seda azul-celeste – as outras vestiriam linho cor de
amêndoa.
“Sim, mas vocês poderão usar seus trajes em outras ocasiões”, explicou Allie
quando suas amigas reclamaram. “É por isso que as escolhi. Maddy gosta de
coisas extravagantes.”
Verdade. As outras mulheres notaram que Madeline exagerava um pouco nas
roupas; estava usando uma blusa de seda cor de pavão e compridos brincos
prateados com uma opala na ponta. Bem, as pessoas podiam achar que ela era
vaidosa; afinal de contas, ter bom gosto não é um crime.
“Talvez seja por isso que ela nunca tenha vindo visitá-la antes”, ponderou
Georgia. “Estava aguardando uma ocasião de gala para que pudesse se mostrar.”
“Não vim antes porque tenho um emprego”, falou Maddy.
“E nós, não temos?”, Georgia não costumava recuar.
“Não falei isso.”
“Nem precisava. Mas, então, o que é que tem feito?”
“Sou advogada”, respondeu Maddy.
As outras mulheres se olharam.
“Qual é o problema disso?”, perguntou Maddy. “Querem fazer algum
comentário?”
“Bem, ela está aqui agora”, falou Allie para as amigas. “E isso é o que
importa.”
Ainda assim, depois disso, o clima ficou frio durante o almoço. As amigas de
Allie haviam sido educadas com Maddy até então, mas não mais. Conversavam
sobre coisas que ela não conhecia, séries de televisão das quais nunca ouvira
falar, livros que nunca lera. Era, mais uma vez, por opção ou intencionalmente, a
intrusa na vida de sua irmã.
Quando ela foi ao banheiro, Georgia e Suzy estavam lá. Maddy podia jurar
que se calaram assim que a viram.
“Então, como é o Paul?”, perguntou Maddy sobre o futuro marido de sua
irmã, enquanto lavava as mãos.
Ela definitivamente não estava imaginando coisas: Georgia e Suzy trocaram
um olhar de estranhamento pelo espelho.
“Acho melhor você mesma ver”, falou Suzy. Ela soava extremamente texana,
alguém que não se quer ter por perto.
“É sua irmã”, completou Georgia, enquanto reaplicava gloss nos lábios.
“Tenho certeza de que você pode defini-lo melhor que nós.”
“ELAS NÃO GOSTARAM de mim”, falou Maddy para Allie, depois do almoço.
Não que isso importasse. Não se importava com o que as pessoas achavam dela.
Nesse sentido, era bem parecida com a avó. Fazia o que lhe dava na telha, sem
se importar com as consequências. Se fosse preciso, também teria atravessado
uma lagoa no Central Park. Maddy e Allie decidiram voltar a pé para casa.
Afinal de contas, estavam na primavera. Atravessaram pelo Hyde Park, ele
estava tão verde que as fez recordar de sua casa, todo aquele bambuzal no brejo,
todos aqueles lugares para se esconder.
“Lógico que gostaram de você”, disse Allie. “Não seja tão insegura.”
Ninguém mais conseguiria pensar que Maddy era insegura. Mas Allie sabia
que ela chupava dedos, escondia-se sob o cobertor, a garotinha que tinha medo
de aranhas, medo do escuro, pavor de ratos. Allie, muitas vezes, precisara enfiar-
se sob a cama ao lado de Maddy e contar-lhe uma história para que conseguisse
dormir. Era a história delas, aquela que tinha o garça, aquela que dividiram até o
dia em que Allie se apoderou e colocou num livro.
“É bem provável que Paul me odeie também.”
“Você sempre espera o pior. Vamos tentar ser positivas. Esperar o melhor.”
Agora, Maddy já conhecia toda a história de Allie e Paul. Haviam se
encontrado totalmente por acaso no Palácio de Kensington; era por isso que a
recepção de casamento ocorreria na região do palácio, na Orangery, que
costumava ser a estufa para plantas da rainha Ana. Allie e Paul foram até lá
deixar flores no memorial da princesa Diana, no dia seguinte ao acidente em
Paris. Allie levara um buquê de rosas brancas. Escolhera cada muda na
floricultura próxima de sua casa, certificando-se de que não havia defeitos, nem
pétalas amarronzadas.
Todo o caso Diana a deixara sem esperanças; era como se o amor fosse algo
impossível num mundo tão cruel, tão frio. Mas, então, ela levara as rosas brancas
ao Palácio de Kensington, onde os buquês se espalhavam por centenas de
metros, e lá estava Paul, que decidira ir de última hora. Sua visita não fora
planejada; na verdade, ele arrancara umas flores do jardim de seu vizinho, coisas
vermelhas cujo nome nem sequer sabia, para deixar nos portões do palácio,
basicamente porque sua mãe era muito fã de Diana. A mãe de Paul, que morava
numa vila próxima de Reading, ficara arrasada com as notícias, e Paul achou que
ela gostaria de saber que ele dera uma passada lá para prestar suas homenagens
em nome dela.
Allie revelara à irmã que estava chorando quando viu Paul pela primeira vez;
sentia-se literalmente tonta quando olhou para ele. Ele veio perguntar-lhe se
estava bem; ela fizera que não com a cabeça, mas depois não conseguira falar
nada. Saíram para tomar um café, e foi assim. Era incrivelmente romântico. O
amor aparece quando menos se espera. Foi isso que Allie disse a Maddy.
Atingira-a e devastara-a, invisível como éter.
Quando Maddy ouvira a história pela primeira vez, sentiu vontade de gritar.
O que há de tão romântico em um amor condenado? Mas não falara nada.
Apenas comentou que Diana fora uma tola ao não conhecer bem a pessoa com
quem se casaria. Maddy vira uma entrevista em que perguntavam ao príncipe
Charles se ele estava apaixonado. “Não sei o que é o amor”, falara, com Diana
sentada bem a seu lado, mas que logo em seguida se levantou e saiu.
Após o almoço com as damas de honra, Maddy e Allie fizeram um caminho
diferente para que pudessem passar na Harvey Nichols e experimentar os
sapatos. As duas eram vidradas em sapatos. Ainda tinham essa característica em
comum. Ao longo de todo o período escolar, compartilharam sapatos e roupas.
Todos achavam que as duas tinham guarda-roupas fabulosos, quando, na
verdade, tinham menos roupas que a maioria de suas amigas. Maddy
experimentou uma bota de camurça com fechos de botões de prata. Era linda.
Ficou pensando se valia a pena gastar £ 300. Quando sentia vontade de ter
alguma coisa, ficava desesperada para tê-la. Sabia que, se não comprasse as
botas, elas iriam atormentá-la de arrependimento, assim, era melhor ser
imprudente e comprá-las.
Maddy não estava nem um pouco com ciúme da irmã, afinal de contas, ela
era apenas a madrinha, não a noiva. Não naquele casamento. O terninho de seda
branco que Allie escolhera era um pouco triste. Estava sendo prática como
sempre, algo que ela poderia usar novamente, e não um traje com que as
mulheres costumam sonhar para seus casamentos. Até mesmo Maddy teria
preferido organza e cetim, uma roupa arrebatadora que uma mulher pode usar
uma única vez na vida. Apesar dos alertas de Allie de que camurça estraga
rapidamente na chuva, Maddy preferiu pagar para ver e depois reclamar das
botas adoráveis, caras e nada práticas.

NAQUELES RAROS dias em que Lucy se sentia bem, passeavam num barquinho
pela nublada costa de Connecticut, e ela costumava lhes cantar “Row, Row, Row
Your Boat”. Era lá que morava o garça, para além das águas calmas. Lucy Heller
estava muito fraca para usar os remos; isso era tarefa das meninas. Lucy iniciara
o tratamento para o câncer na época em que Maddy e Allie tinham dez e onze
anos, respectivamente, e assim foi até o colegial delas, quando então o pai delas
sumira. Lucy ficou mais forte com o tempo, uma sobrevivente que nunca teve
outra recaída, mas naquele período o máximo que conseguia fazer era carregar a
sacola de tricô. A vida da mãe de Lucy também fora tomada pelo câncer e,
apesar de Lucy tentar esconder seus medos, suas filhas conseguiam senti-los.
Passaram a acreditar que ela estava condenada.
As garotas tinham um acordo para o caso de surgirem complicações num
daqueles passeios de barco. Se o barquinho virasse, se surgisse uma tempestade
repentina, salvariam primeiro uma à outra. Mesmo que estivessem brigadas ou
se tivessem se estapeado naquele mesmo dia, se Maddy tivesse atirado contra a
irmã um livro ou um bracelete, ou se Allie tivesse limpado o quarto delas e
jogado fora a coleção de conchas de Maddy, ainda assim ajudariam a outra a se
salvar. Segurariam as mãos uma da outra e se ajudariam a flutuar. Toda vez
usavam colete salva-vidas, de forma que estavam sempre precavidas. E ainda
verificavam a meteorologia no jornal.
A mãe delas fora amaldiçoada. Era por isso que estava tão distante e infeliz.
Fora por isso que o marido a abandonara durante o tratamento. Ninguém
racional teria feito aquilo. Ninguém cuja esposa estivesse enfeitiçada. As
meninas decidiram que só elas conseguiriam quebrar a maldição. Havia apenas
uma forma de combater um feitiço maligno: sangue por sangue, pele por pele,
cinzas por cinzas. Convocariam o garça, que tinha a obrigação de cuidar delas.
Fariam um sacrifício por sua alma. Depois de irem para a cama, as irmãs
fugiram para o quintal. Estava muito escuro e Maddy tropeçou numa pedra. Allie
teve de segurá-la para evitar que caísse. Estavam de camisola. Fazia duas
semanas que ninguém lavava roupa e as bainhas de suas camisolas estavam
sujas. Estavam descalças. As coisas estavam desmoronando dentro de casa. Não
havia comida na geladeira e nada de roupas limpas. Ninguém levava o lixo para
fora e moscas voavam ao redor das caixas de macarrão e arroz nos armários. Era
assim que a doença se manifestava dentro de uma casa, nos cantos, entre as
tábuas do assoalho, nos ganchos dos armários com os suéteres e casacos.
Maddy hesitou quando se aproximaram do fim do quintal. Afinal de contas,
maldições eram poderosas. Era impossível ver alguma coisa depois da cerca.
Parecia não haver mais ninguém vivo no mundo. Se seguissem adiante, ainda
haveria terra mais à frente? Se o garça atendesse ao seu chamado, o que fariam?
Maddy nem gostava de pássaros. Uma garça-azul era quase da mesma altura que
ela; descobrira isso ao ler o guia Audubon. Eram sedentárias e lutavam contra
qualquer intruso.
“Vamos”, falou Allie. “Não há por que ter medo.”
Allie pegara a pá na garagem. Quando começou a escavar, a terra, por causa
da água, começou a virar lama. Maddy ficou perto da irmã. Allie cheirava a uma
mistura de sabão, suor e lama. Parecia saber exatamente o que estava fazendo.
“Você está me atrapalhando”, falou Allie. “Posso fazer isso sozinha.”
Quando terminou de escavar, Maddy entregou a Allie a lâmina que haviam
roubado do banheiro.
“Não vai doer nada”, prometeu. “Ele virá até nós. E irá nos proteger.”
Sempre dizia que nada ia doer, a fim de convencer Maddy a fazer coisas que
a amedrontavam. Às vezes, era verdade; outras vezes, não.
“A melhor coisa a fazer quando algo está doendo é ficar repetindo uma
palavra em sua cabeça”, sussurrou Allie. “Algo reconfortante.” O pai delas havia
ido embora. A mãe, era bem provável que em breve estivesse no hospital ou
trancada numa torre alta por forças misteriosas, ou morta. A palavra que Maddy
escolheu para repetir foi arroz doce. Tecnicamente, eram duas palavras, mas era
sua sobremesa favorita e sempre lhe trouxe conforto. Allie foi rápida ao passar a
lâmina pela mão de Maddy. Ela estava certa quanto à dor. Embora tenha ardido
mais do que doído.
“Está bem”, falou Allie. “Bom trabalho.” Assim que terminou com Maddy,
cortou a sua mão. Um talho profundo em sua palma. Nem sequer se retraiu.
“Agora nos damos as mãos sobre a terra.”
Deixaram o sangue gotejar sobre a terra e então Allie usou a pá para cobrir
de terra o lugar onde o sangue caíra. Suas camisolas já estavam imundas, não
que se importassem com isso. Os cabelos estavam emaranhados nas costas.
Escalaram o plátano, a árvore mais alta da região.
“Devia acontecer alguma coisa”, disse Allie. Porém nada aconteceu. Ficaram
aguardando, e aguardaram, mas nada mudou. Allie estava tremendamente
desapontada. Ela era a protetora, aquela que tomava todas as decisões, a irmã
confiável. Nunca chorava, mas agora parecia que estava prestes a chorar. “Ele
nunca vai voltar”, falou. “Ele não pode salvá-la.”
Para Maddy, a ideia de ver Allie chorando era a parte mais atemorizante da
noite. “O simples fato de não podermos vê-lo não significa que ele não esteja
aqui.”
Allie olhou para a irmã, surpresa. Para falar a verdade, até Maddy ficara
surpresa.
“Está escuro”, começou a explicar Maddy. “E o olho humano é limitado.”
Suas aulas de ciências eram sobre o corpo humano e havia acabado de aprender
sobre o olho. As irmãs ficaram olhando para o brejo. Não conseguiam definir
onde terminava a terra e onde começava a água. Os bambus prateados pareciam
pretos como carvão. Maddy sussurrou e pela primeira vez parecia segura de si.
“Aposto que ele está lá, só que não pode se revelar. Temos apenas de acreditar
que ele está lá.”
A mãe das meninas parecia sentir-se melhor no dia seguinte. Sentou-se na
cadeira do jardim, sob um sol pálido, com suas agulhas de tricô. Ao meio-dia,
entrou na cozinha e preparou o almoço para Allie e Maddy. Ouviram-na rindo ao
fim do dia. As irmãs haviam conquistado algo por meio de sangue e fé. Nunca
falaram sobre aquela noite novamente. Parecia um segredo sombrio. Famílias
como a delas não acreditavam em tal absurdo. Não costumavam sair no meio da
noite e se cortar com lâminas. Ainda assim, Maddy ficou com dúvidas se a
maldição não teria vindo para ela por ter mentido para a irmã. Ela não parou de
se cortar. Escolhia lugares que ninguém notaria: a parte de trás dos joelhos, a
sola dos pés, a parte de dentro dos braços. Sua irmã estava certa. Depois de um
tempo, não doía mais.

NA SEGUNDA NOITE de Maddy em Londres, Allie preparou um prato indiano


que deixou o apartamento todo com cheiro de cominho. Fazia sentido Allie ter se
transformado numa grande cozinheira. Ela testava tudo até ficar perfeito. Em
relação a questões pessoais, não desistia das coisas da mesma forma que Maddy.
Maddy permaneceu longe da cozinha. Nem sequer perguntou se podia colocar a
mesa, pois tinha certeza de que não seria considerado benfeito.
Paul chegou às sete. Maddy estava jogada no sofá, bebendo uma taça de
vinho, pintando as unhas dos pés, pronta para demonstrar indiferença. Os amigos
e namorados de Allie nunca lhe interessaram. Eram aficionados de livros e
estudiosos, que não eram bem do seu estilo. Maddy dava mais atenção às unhas
dos pés; escolhera uma cor chamativa que parecia prata. Odiava Londres. As
lojas eram caras e todas a menosprezavam, até mesmo a instrutora de ioga.
Sentia vontade de sumir. Preferia estar sozinha em Paris. Nunca fora lá. Pegaria
um quarto no Ritz com papel de parede de seda verde e trancas em todas as
portas. Poderia passear pelas Tulherias, tomar café num lugar onde ninguém
falava sua língua. Essa coisa de preparativos para o casamento era uma piada.
Maddy ouvira dizer que metade dos casamentos acabava em divórcio. Talvez
chegasse a setenta e cinco por cento. Por que se arriscar tanto?
Allie foi abrir a porta quando a campinha tocou. Maddy escutou o murmúrio
de vozes. Para falar a verdade, não dava a mínima para o que estavam dizendo.
Além dos detalhes do casamento, Allie não falara sobre Paul. Não era do tipo
que segredava coisas para a irmã. Tudo o que Maddy sabia era a velha história
sobre o primeiro encontro dos dois: Palácio de Kensington. Diana. Rosas
brancas. Era bem provável que fosse o homem mais chato do mundo. Agora, na
porta, Allie fez um comentário celebrando o fato de finalmente Paul não se
atrasar para algo, e ele argumentou que sempre chegava na hora, ela é que se
adiantava. Pareciam cansados e irritados, bem diferente dos pombinhos que
Maddy esperava.
“Essa é minha irmãzinha”, falou Allie, quando conduziu Paul para dentro.
Maddy ergueu a cabeça. Allie estivera certa sobre uma coisa – Paul era
incrivelmente bonito. Era alto, trinta e poucos anos, mas com cara de criança, o
tipo de homem que provavelmente sempre pareceria jovem. Tinha cabelo loiro
bem curto, fora recém-barbeado e demonstrava uma espécie de relaxamento que
parecia ao mesmo tempo perigoso e charmoso. Paul aproximou-se, inclinou-se e
beijou Maddy nas duas bochechas. Ela percebeu que ele já havia bebido alguma
coisa. Primeiro strike: não confiava em pessoas que bebiam sozinhas, ainda que
costumasse ir desacompanhada a bares após o expediente, apenas para relaxar e
se acalmar.
“Bem-vinda à família”, disse Paul.
“Não era eu quem deveria falar isso para você?”, Maddy também não
confiava em homens bonitos. Já enfrentara sua cota de homens assim.
“Não importa. Somos parentes. E essa cor não combina com você”,
comentou sobre o esmalte. “Faz com que pareça um androide. E você é muito
linda para isso.”
“Não lhe dê ouvidos”, falou Allie, já arrastando Paul para a cozinha para
experimentar a comida. Camarão com leite de coco. Assim que saíram, Maddy
analisou os dedos dos pés. E, por acaso, Paul estava certo. Era possível pensar
que fosse feita de titânio ou aço. Passava a impressão de que ela fosse uma
pessoa sem sentimentos.
O jantar foi bom. A comida estava excelente, não muito apimentada. Allie
ficou corada devido ao calor da cozinha. Maddy ficou surpresa ao ver sua irmã
beber muito uísque com soda. Allie não era de beber muito e certamente não era
uma bêbada divertida. A cada novo copo, ficava mais quieta e mal-humorada.
Maddy já não mais sonhava em fugir para Paris. Desejava estar de volta a seu
apartamento em Nova York, jantando um iogurte direto da embalagem, alegre e
abençoadamente sozinha.
“Mas e aí? O que você faz da vida?”, perguntou Paul.
“De novo, não”, respondeu Maddy. “É só disso que as pessoas falam neste
país?”
“Eu te falei”, interrompeu Allie. “Maddy é advogada, e das mais
importantes. Trabalha para uma firma de investimentos em Manhattan. É
especializada em direito imobiliário.”
“Certo. Você ganha dinheiro.” Paul estava sendo irônico. Parecia irritado,
com vontade de discutir por qualquer coisa.
“E isso é crime?” Maddy sentiu suas costas arquear. Então ela investia
dinheiro para gente rica; será que precisava se desculpar por ser boa no que
fazia?
“Quem sou eu para julgar?”, falou Paul.
“Exatamente.” Maddy serviu-se de mais uma taça de vinho. Precisava disso.
Agora entendia por que Allie estava bebendo. Era um homem difícil. “Você não
é ninguém.”
Paul ficou olhando para ela, tentando entendê-la, e deu um sorriso. Maddy
tinha a ligeira impressão de que, por algum motivo maluco, ele achava que sabia
exatamente quem ela era; que ele até pudesse saber de algo que ela
desconhecesse.
“Ele não é exatamente um ninguém. É um editor de filmes”, disse Allie. “Foi
ele quem levou A esposa do garça à produtora. Eu te contei isso também,
Maddy. Nenhum de vocês escuta nada. Têm isso em comum.”
Allie tirou os pratos da mesa e recusou ajuda. Era possível escutá-la lavando
a louça na cozinha.
“Ela sempre faz tudo sozinha, não?”, comentou Paul.
“Nunca precisa de ajuda.”
“Lógico. Ela tem de controlar tudo. Ninguém mais consegue fazer as coisas
tão bem quanto ela, não é verdade?”
Paul terminou sua taça de vinho e serviu mais um pouco para ambos. “Não
sei por que sua irmã vai se casar comigo. Não sei bem o que ela lhe contou, mas
ela está cometendo um erro terrível. Falou muito sobre mim?”
“Tenho certeza de que você a fará uma esposa extremamente feliz. E pode
ficar relaxado. Ela não fala nada sobre você e portanto está livre de minha
bisbilhotice.” Maddy assumiu um tom de indiferença. Já conhecia bem o tipo e
ficou surpresa por sua irmã, sempre tão prática e esperta, ter se apaixonado por
ele. Um daqueles homens muito lindos que sempre acham ser a pessoa mais
importante na sala. Alguém que precisava ser paparicado, o centro das atenções;
era bem provável que ele tivesse muito poucos amigos.
“Ela não te contou nada?”
“Há alguma coisa que deveria ter contado?”
“Sempre há coisas a serem contadas, garota. Todo mundo tem uma história.”
Maddy olhou para ele com mais atenção. Não era exatamente o que ela
imaginava. Assim que deixou de lado a arrogância, ele mostrou-se
surpreendentemente interessante.
“É bem provável que eu estrague tudo”, falou humildemente, o que deixou
Maddy ainda mais surpresa. “Não tenho tido muito sucesso com isso.”
“Não sabia que você já foi casado.”
“Casado, não. Apaixonado. Fui criado para ser egocêntrico, mas não culpo
minha mãe por isso. Ela é uma pessoa incrível. Sério mesmo. Eu que sou um
idiota egoísta. Deve estar em meu DNA. E no seu DNA, o que há além de
beleza?”
Madeline sentiu algo percorrendo seu corpo. Simples assim, sentada ali à
mesa. A atração é uma coisa estranha; tem vida própria. Paul olhava para ela de
um modo estranho, levando-se em consideração quem era e o que estava
acontecendo.
“Também sou egoísta. O oposto de Allie.” Maddy sentiu seu rosto ficando
vermelho. Aquela conversa não devia ser sobre ela. “Tenho certeza de que você
e minha irmã vão se dar muito bem.”
“Certo”, falou Paul. “Vamos viver felizes para sempre. Qual é a
probabilidade disso realmente acontecer?”
Por algum motivo, ambos riram. Talvez tivessem percebido que os dois
possuíam a mesma falta de habilidade em questões amorosas, que eram
perdedores. Maddy não conseguira manter um namorado por mais de um ano.
Ela se entediava facilmente e era uma pessoa exigente. Dizia aos outros que fora
destruída pela educação familiar. Que sempre fora mimada, sempre seguira os
conselhos de Allie.
“Fico feliz que estejam se dando bem”, disse Allie, quando surgiu com a
sobremesa. Havia amoras, sorvete e uma tigela de chantili, além de uma garrafa
de licor de cereja.
Eles poderiam ter respondido de várias maneiras diferentes. Em vez disso,
apenas se olharam através da mesa. Foi quando Madeline percebeu que haveria
problemas. O instante de dúvida, a pulsação, o rápido vislumbre do desastre
vindouro. Estava bem ali, como um mapa rodoviário aberto sobre a mesa.
Colher, garfo, faca, desilusão.
“Foi você quem fez esse creme?”, perguntou Maddy. “Está delicioso.”
Mas ela não estava pensando nisso. Não podia se importar menos com o
sundae. Nem gostava mais de sobremesas. Estava se lembrando de uma época
em que tinha sete anos e morria de medo de tempestades; corria para se esconder
no porão. Recordava dos outros membros da família procurando-a, gritando seu
nome, desesperados, e da sensação de não responder. Pelo menos naquele
instante, tinha poder sobre eles. Ela, que não era ninguém, Miss Segundo Lugar.
Sentia-se da mesma forma agora. Apesar de ser a única na sala que sabia o que
realmente estava acontecendo. Olhou para Paul mais uma vez, apenas para ter
certeza de que não era obra de sua imaginação. Ele a estava encarando.
Não era apenas obra de sua imaginação.
Naquela noite, Maddy escovou os dentes no banheirinho bagunçado de sua
irmã. Queria ir direto para a cama e parar de ter devaneios. Seu coração batia
como louco. Tomara vinho demais. Muita cafeína. Ficaria em Londres por
apenas alguns dias e só voltaria no casamento, no final de agosto. Assim, era
impossível causar tanto estrago. Era só uma brincadeira, nada mais além disso.
Um pequeno flerte pelas costas de Allie, uma minúscula sacanagem, semelhante
aos roubos de laços e bijuterias, que Allie nunca sequer notara que sumiram.
Certa vez, por impulso, Maddy jogara um copo de leite na cama de Allie. Foi
algo tão maldoso, que ela mal conseguia acreditar ter feito aquilo. Nunca
confessou. Fingiu surpresa quando o odor começou a se espalhar pelo quarto.
Maddy não conseguia entender sua inveja, era algo bem entranhado dentro
dela. A mãe delas dissera que o cheiro devia ser devido a fungos; afinal de
contas, a casa era úmida, rodeada por um brejo de água salgada. Lucy ficara o
dia inteiro lavando a roupa delas, além dos lençóis e cobertores. Pendurou tudo
no varal. Maddy viu a mãe no quintal no fim do dia, sentada sob o plátano,
exausta. Ainda havia pilhas de roupa para lavar, sendo que a maior parte estava
limpa. Maddy podia ter interrompido ali; podia ter contado que ocorreu um
acidente, poupando sua mãe de todo aquele trabalho. Mas não o fez. Ficou ao
lado do bambuzal sem falar nada.

MADDY FOI BOBA por se hospedar no Lion Park bem no ápice do verão. Os
quartos eram sufocantes, não havia serviço de quarto e o encanamento era
antigo. Sua mãe tivera um cinzeiro de cerâmica branco com a estampa daquele
hotel, um leão verde, que ela guardou por anos na mesinha de canto. “Era o lugar
onde eu mais gostava de estar”, contou Lucy às garotas. “Eu tinha doze anos e
achava-o muito elegante.”
Maddy sempre imaginara um leão de verdade num quarto do hotel, e talvez
fosse por isso que tinha feito a reserva. Sua mãe parecia encantada com o lugar.
Mas o hotel era de segunda linha. Quanto ao leão, era feito de pedra; ficava no
jardim, coberto de musgos.
“Ah, aquilo”, falou o recepcionista a respeito do leão quando Maddy fez o
check-in. “Foi roubado de um monastério na França e faz séculos que está no
jardim. Estava lá bem antes de o hotel ser construído. Tem uma fenda nas costas,
e nem sabemos o que fazer caso a escultura se parta. Teremos de mudar o nome
do hotel!”
Havia apenas uma pessoa que sabia que Maddy havia chegado antes e ela
contava os minutos para ele aparecer lá. Enviara-lhe uma carta registrada, a qual
fora recebida, assim ele já estava bem ciente de que ela o esperava. Havia
pombos no parapeito e Maddy podia escutar o trânsito na Brompton Road. O
resto da família, os parentes de Maddy e Allie, Lucy e Bob, as tias, tios e primos,
além de vários amigos norte-americanos de Allie, ficariam a algumas quadras
dali, no Mandarin Oriental. Maddy dissera a seus parentes que a empresa em que
trabalhava tinha um acordo com um hotelzinho na outra quadra e lá poderia se
hospedar por uma ninharia. Contara que teria de escrever um memorando para
um cliente, que corria o risco de ser preso devido a alguns investimentos
nebulosos, e para isso precisava de silêncio e paz. O hotel não tinha televisão a
cabo, nem filmes para comprar; não tinha nenhum spa luxuoso, apenas um
pequeno lounge onde os hóspedes podiam comer ou beber alguma coisa.
O Lion Park tinha sete andares e pegava quase um quarteirão inteiro. Não era
o tipo de lugar de onde Maddy esperava que sua mãe tivesse guardado um
suvenir. Os corredores eram compridos, com várias portas pintadas de azul, cada
uma com um número entalhado em dourado e uma maçaneta de vidro
trabalhado. Todos os andares eram idênticos; era possível realmente ficar
perdido ali, já que os corredores seguiam a rua formavam um “V”. Para a
maioria dos hóspedes, era algo bem confuso.
No elevador, cabiam apenas quatro pessoas, e a escada curvava-se para cima
com cada vez menos degraus, até que, bem no topo, era preciso dar passinhos de
bebê para evitar cair. O quarto de Maddy ficava bem na ponta do hotel, voltado
para a rua. Dentro, havia uma cama com uma colcha branca, uma penteadeira,
uma televisão que recebia quatro chuviscos de canal e um ar-condicionado sobre
um suporte, alimentado através da janela por um cano plástico, um aparelho que
na verdade parecia deixar o quarto ainda mais quente. Em todo o hotel, o carpete
era de lã, num verde-escuro melancólico. O banheiro era pequeno, com uma
banheira apavorante que possuía apenas um chuveirinho manual; a pia ficava
dentro do próprio quarto. Havia um lustre e um abajur sobre uma mesinha bem
antiquada. Na verdade, Maddy não se importava; tudo que lhe importava, desde
sua visita na última primavera, era retornar. Queria ficar ali por quinze dias, ou
trinta, ou até mais. Nem mesmo dez mil dias seria tempo suficiente. Como ele
não apareceu naquela tarde, ela lhe telefonou e deixou uma mensagem na
secretária eletrônica.
É melhor você aparecer. É o mínimo que você me deve. Você me deve muito
mais, para falar a verdade.
Naquela noite, Maddy teve um sono intermitente. Sonhou que estava no
quintal em Connecticut. Havia o plátano com milhares de ossos amarrados em
seus ramos. Flores vermelhas substituíam as folhas. Maddy foi pegar uma flor,
mas cortou a mão. As flores eram feitas de vidro. Lembrou-se da sensação de se
cortar. Lembrou-se de acreditar que era a única maneira de sentir alguma coisa.
Em seu sonho, Maddy escutou o grito de um homem. Abriu os olhos, e ele ainda
gritava. O relógio ao lado da cama indicava dez e trinta da noite. De repente,
ficou desperta. Nunca tinha escutado um grito tão ardente. Um inglês, e por um
instante pensou em Paul, mas não era a voz de Paul. A agitação era no corredor,
na porta do quarto bem em frente ao seu: 707. Maddy levantou-se e foi espiar,
mas não havia buraco de fechadura, não havia como ver o que estava
acontecendo lá fora. Pensou em abrir a porta, mas o homem invisível gritava
com tanta força, que Maddy achou que talvez pudesse intrometer-se numa briga
com a qual nada tinha que ver. Em vez disso, encostou a orelha na porta. Não
conseguia entender tudo, apenas algumas palavras soltas. “É sempre assim”,
ouviu a voz do homem. “Inacreditável.”
Maddy enfiou-se debaixo das cobertas e colocou as mãos sobre as orelhas.
Ficou lá, tremendo, até que parou de pensar, até que sua mente foi tomada pelo
plátano. Lembrou-se de compartilhar a cama com a irmã e do medo que sentia
do escuro.

ELE VOLTARA PARA o apartamento na manhã seguinte ao jantar indiano, depois


de Allie ter saído para uma reunião com o diretor da adaptação cinematográfica
de A esposa do garça. Estavam fazendo os ajustes finais no roteiro. Como
Georgia cuidaria da cenografia, ela apareceu para buscar Allie. Ficariam nisso o
dia todo. Maddy deveria sair para se divertir e, depois, juntar-se a Allie na loja
de roupas. Era a prova final do vestido de noiva e dos vestidos das damas de
honra, que estavam pegando um pouco na cintura. Depois daquele ajuste,
serviria perfeitamente em Maddy. “Você vai ficar parecida com uma flor”,
comentou Allie. “Uma íris. Não se esqueça de me encontrar às cinco.”
Allie deixara o café da manhã na mesa, da mesma forma que faziam quando
eram garotas. Havia croissants, cereais e geleia, mas Maddy queria apenas café
preto. Em vez de se preocupar em comer, serviu-se de café forte e fumou um
cigarro, embora soubesse que Allie não gostasse de gente fumando em seu
apartamento. Mais uma regra para ser quebrada. Sentou-se ao lado da janela e
soltou nuvens de fumaça para o ar. Allie nunca ficaria sabendo. Nunca fora do
tipo que suspeitava das coisas. Na verdade, para alguém tão esperta e segura de
si mesma, sempre fora muito fácil de enganar.
Allie já tinha saído para a reunião havia quase uma hora quando tocou a
campainha. Imediatamente, Maddy teve a estranha sensação de que era Paul.
Ficara pensando nele a noite toda. Era um ser desprezível por se sentir atraída
pelo noivo da irmã, mas era apenas fruto de sua imaginação, e não podia se
responsabilizar pelo que ocorria em sua mente. Não tinha planejado fazer nada
daquilo. Sim, ela sempre roubara coisas de Allie, mas um homem não era uma
saia de veludo ou um par de botas. Até mesmo Maddy sabia isso. Amor não era
algo que se podia pegar emprestado e depois devolver.
Maddy pegou o interfone. “Residência dos Heller.” Estava de camiseta,
calcinha e um roupão que Allie lhe emprestara. Seu cabelo cheirava a fumaça, e
ela sabia que precisava lavá-lo antes de se encontrar com a irmã.
“Sei onde estou”, falou Paul pelo interfone.
Pronto. O prenúncio de um desastre. Maddy podia apertar o botão e permitir
que subisse, ou podia ignorar e voltar para a cama. Podia fingir que não o tinha
escutado; talvez um entregador tivesse telefonado e ela decidira ignorar sua
presença.
“Por que deveria permitir que subisse?”, foi o que ela disse. Achou saber a
resposta, mas não tinha certeza.
“Porque é o que você quer fazer”, disse-lhe Paul.
Quando Maddy apertou o botão para abrir a porta para o saguão de entrada,
sentiu a vibração nos ossos de sua mão subindo pelo braço até o ombro. Estava
sem fôlego, com vertigem, como se estivesse prestes a mergulhar da plataforma
mais alta de uma piscina. Pensou na maneira como ele a olhara à mesa de jantar.
Ao imaginá-lo, ficou vermelha novamente, tomada pelo desejo. Não conseguia
se ver mentindo ou traindo a irmã, mas às vezes a verdade pode ser mudada,
não?
Maddy podia ter mudado de ideia enquanto Paul subia pelo elevador, mas
não o fez. Ele bateu na porta, e ela ficou se dizendo que nada de ruim iria
acontecer. Ele fora até lá para pegar um cachecol que esquecera, ou para deixar
um presente para Allie, ou para pegar uma garrafa de vinho na geladeira. Por
este motivo, vou abrir a porta para ele, porque precisa pegar algo que esqueceu
acidentalmente.
Estava mentindo para si mesma. Era algo que sabia fazer bem. Nem se
preocupara em amarrar a fita do roupão.
“Então, o que decidiu? Vai permitir que eu entre?” Paul estava diante da
porta. Era o tipo de homem que costumava conseguir o que queria. Mas agora
parecia estar hesitante.
“Parece o lobo mau falando”, disse Maddy.
“Ah, não”, falou Paul. “Bata a porta em minha cara, e juro que não vou uivar.
Vou apenas embora. E você, garota, nunca terá de me ver novamente.”
Foi fácil demais. Abriu a porta para ele, e o restante foi como desaparecer,
numa noite escura, para um lugar onde ninguém conseguiria encontrá-la.
Nenhuma pegada, nenhuma digital, nenhuma evidência.
ELA CHEGOU À LOJA de vestidos vinte minutos atrasada.
“Eu me perdi”, falou Maddy ao entrar apressada no provador onde Allie
experimentava seu vestido. “Achei que não conseguiria encontrar este lugar.”
Allie riu. “Você está um caco.”
O cabelo de Maddy estava preso e ela nem se preocupara em se maquiar.
Vestia jeans, suéter e botas. Ainda podia senti-lo sobre seu corpo. Tomara um
banho, mas se sentia suja, como se tivesse acabado de sair do esgoto. Não
conseguia acreditar no que havia feito. Certas coisas deixavam de parecer reais
se não se pensasse nelas, e era isso que Maddy pretendia fazer.
Ela trocou rapidamente suas roupas pelo vestido de madrinha. O alfaiate
abaixou o olhar. Maddy imaginou que estivesse exalando o cheiro de leite azedo.
Recordou o momento em que arruinou a cama da irmã. Por que diabos havia
feito algo tão cruel?
“Você deveria ficar atrás da cortina para se despir!”, Allie falou. “Sua
exibicionista!”
“Ah, não me importo!”
Talvez ela merecesse uma punição, ser colocada na rua, sem roupas, para que
as pessoas pudessem zombar. Quando permitiu que ele entrasse no apartamento
da irmã, não estava pensando em nada. Talvez Paul também não. Depois do
ocorrido, ele parecia furioso, embora fosse ele quem havia iniciado tudo. “Foda-
se tudo”, dissera ele. “Não me importo com o futuro. Deve-se viver, mesmo
correndo o risco de destruir tudo antes de sumir deste mundo, certo?” Maddy
teve um vislumbre: talvez ele não estivesse tão desesperado por ela; é possível
que estivesse simplesmente desesperado. A verdade é que ela não sabia nada
sobre ele.
“Parece um sonho”, falou Allie a respeito do vestido azul.
“É verdade”, concordou Maddy.
Allie se virou para se olhar no espelho. Não parecia satisfeita. Parecia uma
mulher com vontade de fugir. “Estou fazendo a coisa errada?”
“Usar um terninho quando poderia ter optado por um vestido deslumbrante?”
Maddy estava enjoada. Não tomara café da manhã, nem almoçara. Não tivera
tempo. Estava muito ocupada arruinando tudo, bem no apartamento de sua irmã.
Arrumou a cama depois que ele foi embora. Inevitavelmente, observou que ele
nem sequer a ajudou a limpar o apartamento. Era bem presunçoso. Era egoísta e
imprudente, mas ainda assim ela sentia vontade de vê-lo novamente. Gostava da
ideia de não deixar evidências, de ter um segredo que as pessoas nem sequer
imaginariam. Ficou pensando se não havia um monstro dentro de si, que haveria
ultrapassado seus limites.
“Sabe o que quero dizer, Maddy. Será que devo cancelar o casamento?”
Maddy ficou olhando para a irmã, petrificada. Allie se olhou novamente no
espelho. Seria possível que sua irmã soubesse, só de olhar seu rosto, que ela a
havia traído? Teria sentido o perfume do descaramento? Maddy desejava poder
atravessar o espelho, até o outro lado, para o dia antes daquele, quando havia
muito menos coisas a esconder. Mas ela sempre precisava obter o que queria,
certo?
“Está falando sério?”, torcia para que sua voz não a entregasse. “Está
pensando mesmo em cancelar?”
“É de mim que sempre esperam que as promessas sejam cumpridas.” Allie
tirou o blazer; por baixo, trajava apenas um top branco. Era mais bonito que sua
roupa de casamento. “Não é mesmo? Não é isso que todos vocês querem de
mim?”

MADDY TELEFONOU para Paul no dia seguinte, mas seu celular estava
desligado e, na sua casa, ninguém atendeu. Enquanto Allie estava fora
resolvendo algumas coisas, Maddy ficou vasculhando na internet. Descobriu que
Paul fora editor de vários programas da BBC. Embora, pelo que parecia, não
tivesse trabalhado muito no ano anterior, Maddy conseguiu encontrar uma
enormidade de informações – seus registros escolares, suas conquistas no futebol
universitário, dados sobre seus pais em Reading, onde seu pai era professor de
química e sua mãe, que trabalhara como enfermeira, era diretora do clube de
jardinagem. Rapidamente sabia tudo, nos mínimos detalhes, da vida de Paul.
Naquela noite, ele apareceu para beber uma coisa, e, quando Allie foi buscar
gelo, disse para Maddy: “Vamos esquecer que isso aconteceu”. Como se tivesse
sido ela quem o procurara. Ele estava bem próximo e pegara-a pelo braço.
Percebeu que era muito mais mentiroso do que parecia à primeira vista. Queria
se vingar de alguma forma. Juntou coragem e beijou-o bem ali, na sala de estar
de sua irmã. Ele se afastou e falou: “Adeus, irmãzinha”, como se tudo tivesse
acabado entre eles.
Ela não tinha muito tempo. Estaria em Nova York dali a algumas horas. Allie
trabalharia no dia seguinte, e Maddy garantira-lhe que aproveitaria o tempo.
Sairia para conhecer o Palácio de Buckingham. Insistira que sabia se divertir
fazendo turismo. Mas, em vez disso, descobriu o endereço de Paul e saiu para
chamar um táxi. Quando chegou à frente do apartamento dele, não sabia qual
seria o próximo passo. Se percebesse que era Maddy, era bem provável que não
abriria a porta.
“A senhora queria sair?”, perguntou o motorista.
“Se quisesse, eu sairia. Estou aguardando uma pessoa.”
Ficaram sentados no carro estacionado sem falar nada. Ao meio-dia, Paul
saiu e fez sinal para um táxi.
“Siga-o e não permita que ele nos veja”, falou Maddy ao motorista.
O táxi de Paul o deixou em uma das velhas mansões em Kensington. Para
Maddy, parecia um bolo de casamento. Havia um pequeno parque em frente,
onde crianças brincavam sob as árvores. Maddy já imaginava que não era a
única com quem Paul traía sua irmã. Afundou-se no táxi. Traidores traem e
mentirosos mentem. Estava no DNA deles.
“A senhorita vai descer agora?”, perguntou o motorista.
Ela ficou olhando Paul subir os degraus da entrada e tocar a campainha. A
porta se abriu, e ele entrou. Maddy pagou ao motorista e saiu; seu rosto estava
quente e vermelho. Com certeza, Paul estava traindo Allie, mas era Maddy quem
se sentia violentada. Aguardou um pouco e, então, subiu até a residência. Uma
criada atendeu a campainha.
“Estou sendo aguardada”, anunciou Maddy.
“Eles estão almoçando no jardim”, respondeu a criada. “Não me disseram
que viria mais uma pessoa.”
“Bem, veio”, falou Maddy.
Ela parecia bem confiante, portanto a criada permitiu que entrasse. A casa
era enorme, bonita e elegante. Com o sol batendo, era um pouco difícil para
Maddy enxergar o interior cheio de sombras. Havia muitos móveis de madeira e
uma escada enorme. O chão do saguão era decorado com mármore branco e
preto.
“Pode deixar que eu me viro”, disse Maddy à criada. “Eu me viro bem
sozinha.”
“Se a senhora diz.”
Maddy podia escutar vozes e bastava seguir o som. Foi andando pelo saguão
e foi até uma sala. As paredes eram pintadas de vermelho e dourado e o chão era
de ébano. Maddy seguiu por uma porta de batente que dava num jardim de
inverno. Logo à frente ficava o jardim. Paul usava calça de linho e uma camisa
azul-clara. Uma árvore florescia e havia dezenas de roseiras ao lado de um muro
alto de pedras. O jardim era bem verde-escuro, quase preto nas sombras. Os
caminhos eram feitos de ardósia, tijolos e pedras. Havia pássaros nas árvores.
Paul tinha tirado seu blazer. Estivera podando as rosas, mas agora sentara-se à
mesa, de frente para sua comensal, uma mulher de quem Maddy conseguia
apenas ver as costas e que usava um enorme chapéu de palha. Paul ria de alguma
coisa que sua companheira dizia. “Se quiser me contratar para ser seu jardineiro,
aceito o emprego na hora”, falou, brincando. “Sei que você não pode me pagar
um centavo. E, com minha habilidade, é bem provável que todas as plantas
morram.”
Maddy aproximou-se; a cerca viva alta ao lado do caminho onde ela estava
tremeu quando os pássaros saíram voando. Paul ergueu a cabeça e ficou
paralisado ao ver Maddy.
“Está tudo bem, Paul?”, perguntou sua companheira.
“Acho que não”, respondeu.
“Você deve estar brincando…”, gritou Maddy, do caminho de pedras. “É por
isso que não podia atender minhas ligações?”
Paul pediu licença. “Já volto”, falou para sua companheira. Andou até
Maddy, furioso. “Você está maluca? Ficou me seguindo?”
“Ela te paga por outros serviços além da jardinagem?”
“A senhora Ridge é amiga de família. É como uma avó para mim. Portanto
fale baixo.”
A mulher virara-se para olhar e Maddy percebeu que era uma mulher mais
velha, uma dama inglesa muito bonita, mas não era uma concorrente.
A senhora Ridge começou a se levantar, preocupada. Paul forçou um sorriso
e acenou. “É só um minuto”, garantiu-lhe.
Pegou o braço de Maddy e levou-a de volta para o jardim de inverno. Havia
uma fileira de orquídeas amarelas e marrons e vasos maiólicos com samambaias.
“A senhora Ridge é responsável por muita coisa em minha vida, inclusive
minha formação. É parte de nossa família. Não tem filhos e me adora. Também
sou maluco por ela. Nunca imaginei ser seguido quando estivesse vindo visitá-
la.”
“Eu não sabia”, falou Maddy.
“Você sabe muito pouca coisa”, disse Paul, desdenhando.
Maddy girou sobre os calcanhares e saiu correndo. O que estava fazendo?
Não valia a pena preocupar-se com ele. Era egoísta e repugnante, tal qual ele
mesmo alertara. Saiu correndo da casa, torcendo o tornozelo ao descer os
degraus. Foi andando até o parque, mancando, e parou ao lado da estrada.
Quando Paul apareceu, num táxi, ela estava chorando.
“Entre”, gritou pela janela. Ficaram se olhando. “Entre e não comece a fazer
ceninha, droga.”
Maddy entrou no táxi e fechou a porta.
“Disse à senhora Ridge que você é uma parceira comercial lunática”, falou
Paul. “Ela sugeriu que eu a demitisse.”
“Legal. Bacana.”
“Nós fizemos uma coisa desesperada, minha querida. Concorda?”
Paul parecia exausto. Maddy notou uma tosse terrível; era provável que
estivesse doente quando se encontraram. E certamente ela pegaria aquela doença
também. Merecia isso.
Paul se inclinou, aproximando. Cheirava a sabonete. “Cometemos um erro
estúpido. Sei por que fui lá naquela manhã, mas nunca pensei que você fosse
abrir a porta para mim. Fiquei um pouco surpreso ao descobrir sua disposição
para traí-la.”
“Vá para o inferno. Você participou de tudo.”
“Tinha certeza de que me rejeitaria e de que iria correndo contar para Allie
que eu tinha me insinuado para você.”
“Você queria que eu dissesse não?”, Maddy sentia-se humilhada. Não
conseguia entender.
A camisa de Paul estava enrugada; o tecido era linho, a cor era celeste, clara,
pura e nova. Esquecera seu blazer. “Olhe, sinto muito. Não devia ter te
envolvido. Sinto muito mesmo.”
Chegaram ao seu destino e o carro freou. Maddy não havia percebido que
haviam chegado até escutar um tapa na janela do táxi. Quase teve um ataque
cardíaco. Paul abaixou o vidro. Era Georgia, saindo depois de deixar Allie em
seu apartamento.
“Ora, o que andam fazendo?”, perguntou Georgia, desconfiada.
“Eu a vi na rua e pensei em dar uma carona à pobre garota.” Paul abriu a
porta. “Vamos”, falou para Maddy. “Sua carruagem a trouxe de volta. Bom te
ver, Georgia.” Fechou a porta e o táxi partiu – e foi só. Ela não lhe tinha mais
serventia. Servira aos seus propósitos, sabe-se lá quais fossem.
“Eu o detesto”, falou Georgia.
“É mesmo?”, Maddy se virou para entrar. Pela primeira vez, concordavam
em algo. “Eu também.”

DEPOIS QUE VOLTOU para Nova York, ela não falou nada sobre o que
aconteceu a ninguém. Ao conversar com Allie pelo telefone, perguntou-lhe sobre
Paul. Odiava-o de uma maneira um tanto estranha, voraz. Não conseguia parar
de pensar no único encontro que tiveram. Talvez devesse se levantar no
casamento e relatar o que havia acontecido. Por que não fazer isso? Estaria
fazendo um favor tanto para Allie quanto para si mesma. Seria muito bom
desmascará-lo de uma vez por todas, mesmo que isso significasse se entregar
também.
Maddy começou a ficar deprimida. No trabalho estava sofrível e um de seus
sócios perguntou se alguém de sua família havia morrido. Costumava ter
programação para os fins de semana, agora dormia até o meio-dia e evitava sair.
Quando seus pais foram até Nova York e fizeram-lhe uma visita de domingo, foi
acordada pela batida na porta, ainda que fosse duas da tarde.
Lucy a chamou de lado. “O que está acontecendo?”
“Não está acontecendo nada! Por que sempre pensa o pior de mim?”
“Sei que você não está bem”, disse Lucy Heller para a filha.
“É mesmo? Então acho que você devia saber que eu não estava bem durante
toda a minha infância. Na época, não parecia se importar muito. Nem sequer
parecia notar minha existência.”
Sua mãe ficou perplexa.
“Como pode dizer isso? Lógico que eu me importava”, falou Lucy. “Percebia
que éramos muito parecidas. Você não notava isso?”

MADDY RECORDOU DE quando havia fugido de casa, depois que seus pais se
separaram. Vestira uma capa de chuva e suas botas de inverno; era primavera, e
o ar estava úmido. Fugir foi fácil demais. Abriu a porta e saiu para o escuro.
Sabia exatamente aonde estava indo. Atravessou o quintal, passando pelo
plátano. Allie contou-lhe que o garça-azul viria atrás daqueles que amava de
verdade. A grama estava molhada e esponjosa, e Maddy se deixou afundar nela.
A lama cobriu-lhe as botas. Não havia estrelas e a lua se escondia atrás das
nuvens, mas era suficiente para iluminar o caminho.
Não demorou muito para alcançar o brejo. Chegando lá, enfiou-se no
bambuzal. Os bambus eram altos e fofos, num cinza prateado. Havia um cheiro
de imundície pairando no ar. As botas de Maddy produziam um som de água
espirrando enquanto andava pela borda. Ouvia coisas que estavam vivas:
caracóis, pássaros em seus ninhos, o vento crescente. Era bem provável que
também houvesse aranhas e sanguessugas; além de morcegos nas árvores.
Maddy sempre fora a irmã que tinha medo, que chorava quando ficava sozinha,
que fazia careta, que não sabia cozinhar ou limpar a casa, nem mesmo abotoar
seu pesado casaco de inverno. Estava preocupada com os espinheiros no brejo e
com os caranguejos que podiam morder-lhe os dedos do pé, mas conseguiu
evitar pensar nessas coisas. Demorou um pouco, mas enfim encontrou o lugar
onde sua mãe dissera que o garça-azul vivia. Passou por uns arbustos, e lá estava
o ninho, no ramo de um salgueiro.
Maddy usava uma camisola azul sob a capa. Tirou as botas. Sabia escalar
árvores; era leve e muito mais forte do que aparentava. Quando chegou ao ninho,
respirava fundo. Achou que fosse feito de grama comprida e musgos, mas era
construído com galhos finos. Alguns eram prateados, outros eram negros. O
garça não estava lá, e assim Maddy se enfiou no ninho. Poderia ter quebrado, e
isso a faria cair e quebrar todos os seus ossos. Mas os galhinhos suportaram seu
peso. Maddy queria comprovar que sua mãe falara a verdade, que o garça
cuidaria dela. Segundo sua mãe, as garças eram muito fiéis, era-lhes algo inato.
Quando Maddy acordou, sentia câimbras nas pernas, por ter dormido na
árvore. Havia marcas vermelhas de mordidas de insetos em seus ombros e
joelhos. O céu apresentava os primeiros raios de luz. Escutou o barulho da água
e o que parecia a voz de sua irmã. Maddy olhou para o brejo, e lá estava Allie,
no raso com o garça-azul. Todo mundo imaginaria que uma garça tivesse medo
de uma garota, e que o inverso também aconteceria, mas ali não parecia ser o
caso. Allie estava bem próxima, a ponto de quase tocá-lo antes de ele sair
voando. Virou-se para acenar para o céu quando viu Maddy sobre a árvore. O
cabelo claro de Allie estava da cor do bambuzal. Estava claro que ela fora a
escolhida por ele.

PAUL NÃO APARECEU no Lion Park no dia seguinte, ainda que ela tivesse
deixado uma mensagem na secretária eletrônica ameaçando-o de telefonar para
Allie e contar-lhe tudo. Estava apelando para ameaças. Não se importava com
quão fundo chegaria. Maddy deixara um recado na recepção dizendo que
aguardava um visitante; podiam telefonar para seu quarto assim que ele
chegasse. Chegou a pensar em dizer que era seu marido, mas nem mesmo ela
conseguia contar uma mentira tão grande.
Ficou esperando no quarto quente, até que começou a se sentir tonta, então
saiu e foi passear por Londres. Quando voltou, jantou no quarto, ainda
aguardando-o, ao menos um telefonema. Bebeu uma garrafa de vinho e caiu no
sono quando ainda estava claro. Só acordou quando escutou algo no corredor.
Outra discussão; um homem berrando. Quando a gritaria cessou, ela tomou um
banho e descobriu que só havia água gelada, com alguns jatos de água quente. O
sabonete era arenoso e tinha cheiro de lisol. Maddy saiu, enrolou uma toalha no
corpo e jogou-se sobre a cama. Eram quase onze horas quando ele finalmente
chegou. A recepção não se preocupara em telefonar para Maddy a fim de
informar-lhe que alguém viera vê-la; simplesmente permitiram que subisse.
Podia ser qualquer pessoa, um maluco querendo se vingar, um assassino serial.
Paul bateu na porta e gritou seu nome. Por um instante, Maddy se forçou a
parecer calma. Não queria demonstrar desespero, nem para si mesma. Que ele
sofra. E que espere.
Ele bateu novamente. Maddy foi abrir a porta. Estava apenas com uma toalha
em volta de seu corpo.
“Caramba”, falou Paul, “quem você está esperando?”, ele sorriu. “Olá,
irmãzinha.”
Havia raspado o cabelo e parecia mais magro. Só pele e osso. Bom, pensou
Maddy. Torcia para que estivesse sofrendo, assim como ela. Esperava que
estivesse arrependido desse casamento com que se comprometera.
“Você não escreveu, nem telefonou”, falou Maddy, tentando parecer jovial.
Só que não saiu assim. Soou patética. Exatamente o que ela não queria. Mas ele
não pareceu notar; sua expressão era vazia, distraída. Seus olhos pareciam
embaciados, como se estivesse com conjuntivite.
“Nunca nos prometemos nada, Maddy. Você sabia disso. Deixemos assim. Se
me telefonar novamente, não vou ligar de volta.”
Maddy havia pendurado seu vestido prateado sobre a janela, e uma estranha
luz azul-celeste tomou o quarto.
“Sinto muito por Allie”, falou. “Sinto mesmo.”
“Eu também”, concordou Paul.
“Você é sempre egomaníaco?”
“Você é?”
“Se eu contar para ela, ela não vai entender. Não irá te perdoar.”
“Não irá mesmo”, falou Paul. “Nem você deveria contar.”
“Talvez eu não conte”, disse Maddy.
Ele foi embora sem falar mais nada. Para ele, nem isso ela merecia. Maddy
se vestiu. Sentia-se usada e triste. Foi até o restaurante do hotel e sentou-se a
uma mesa do bar. Havia um senhor idoso bebendo e um casal rindo e
compartilhando uma sobremesa. A garçonete apareceu. Estava perto da hora de
fechar, mas Maddy explicou que havia chegado havia pouco dos Estados Unidos
e que seu avião atrasara. A garçonete lhe trouxe uma salada e um pedaço de
quiche, com uma taça de Pinot Grigio. Estava um pouquinho mais frio no
restaurante, mas ela ainda estava ardendo de calor.
“A quiche está boa?”, perguntou a garçonete.
Estava sem gosto algum, mas a salada estava boa e o vinho, ainda melhor.
“Nada mau”, respondeu Maddy.
Ficou sentada ali por quase uma hora, bebendo vinho. Quando finalmente se
levantou para sair, só o velho e o barman permaneciam lá. O casal e a garçonete
haviam partido. Maddy pegou o elevador para o sétimo andar e logo se perdeu
no corredor. Mas, enfim, encontrou o 708. Abriu a porta e ficou em dúvida se
havia mais alguém em seu andar. Não vira ninguém desde que saíra do bar.
Desligou o ar-condicionado insuficiente e abriu a janela, preferindo enfrentar a
fuligem e o barulho de trânsito que invadiram o quarto. Então encaracolou-se
sobre a cama, vestida.

O PAI DELAS FOI embora quando Maddy e Allie tinham onze e doze anos,
enquanto sua mãe ainda estava em tratamento. Ele se mudou para uma casa na
cidade, a cerca de cinco quilômetros dali. Sua mãe disse-lhes para não o
culparem. Contou-lhes que algumas pessoas não conseguiam lidar com doenças;
só pensar em ir a um hospital as deixava perturbadas de medo e aflição. Allie e
Maddy não acreditaram nela. Se o pai delas ficava perturbado com alguma coisa,
era com os próprios desejos egoístas. As garotas passavam de bicicleta pela casa
para a qual ele se mudara, mas nunca parecia haver alguém lá. Quando
telefonavam, uma mulher atendia. Allie dizia que devia ser uma amiga ou uma
empregada. Maddy podia ser jovem, mas compreendia bem as coisas. Em
segredo, começara a fazer pequenos cortes em seus braços e pernas. Não sabia se
queria machucar si mesma ou outra pessoa. Passou a ligar todas as noites para a
mulher com quem seu pai vivia. A vingança tem um sabor sofisticado, mas é
viciante se não utilizada com moderação. Maddy era a vingadora misteriosa.
Não contou nem mesmo para sua irmã. Ainda que jovem, sabia que a vingança
era um ato particular.
Então um dia o pai das garotas reapareceu. Estacionou na garagem e gritou
para que Maddy e Allie saíssem. Estava furioso, como se ele fosse a parte
prejudicada.
“Vocês estão aterrorizando uma mulher inocente. Nunca mais liguem para
ela”, disse-lhes. “Se o fizerem, vou trocar meu número de telefone. Ela é apenas
a senhoria de onde moro. Nada além disso.”
Allie não sabia nada sobre os telefonemas. Mas não culpou Maddy.
Enfrentou o pai.
“Em vez de mudar o número, você devia voltar para casa. Precisamos de
você aqui.”
“Foi sua mãe quem as incentivou a fazer isso?”, perguntou.
“Nossa mãe não se rebaixaria a esse ponto”, falou Allie.
Maddy deixou a cabeça cair. Não falou uma palavra sequer.
O pai delas retornou para o carro. Allie foi atrás dele. Ele estava chorando e
não quis abaixar o vidro. E foi embora. Atravessou um cruzamento sem parar e
não olhou para trás.
Mais tarde, no quarto, as irmãs estavam deitadas em uma cama, com as
cabeças sobre o mesmo travesseiro, de mãos dadas.
“Sinto pena dele”, falou Allie.
“Não sinta”, disse-lhe Maddy. “Ele não merece. Ele nos deixou sozinhas com
uma mulher doente.”
“Ele estava chorando.”
“Lágrimas de crocodilo. Papai-crocodilo.”
“Você liga mesmo todos os dias?”, Allie estava curiosa.
“Pelo menos duas vezes.”
“Acha que ela é mesmo a senhoria?”
“Acha que ele é mesmo um crocodilo?”
As duas riram. Allie ficou surpresa com a habilidade de Maddy para guardar
segredos.
“Há muita coisa sobre mim que você desconhece”, falou Maddy. “Você devia
ouvir o que digo para ela.”
Era Allie quem ia a todas as consultas médicas com a mãe. Podia ficar horas
sentada na sala de quimioterapia, tomando copos de refrigerante, procurando
salgadinhos na sala das enfermeiras, lendo revistas em voz alta. Na época, havia
boatos de que Allie se tornaria médica. Quanto a Maddy, ela já sabia que se daria
melhor com traição e vingança.
“Digo que vou matá-la e pendurar seus ossos para secarem em nosso
quintal”, contou Maddy para a irmã. Os joelhos delas estavam unidos. “Que vou
fazer uma sopa com eles.”
Allie estava chocada. “Maddy!”
“Digo-lhe que vou beber seu sangue e colocar uma centena de agulhas em
seus olhos. Se ela é mesmo apenas a senhoria dele, vai colocá-lo no olho da rua.”
A mulher ao telefone não parecia uma senhoria. Parecia mais a namorada
aturdida de alguém.
“Você não devia fazer mais isso”, disse-lhe Allie. “Vai criar problemas para
nós duas, e mamãe e papai ficarão bravos.”
“Quem se importa? Eu odeio os dois.” A mãe delas não parecia perceber
nada – os cortes nos braços e pernas de Maddy, os telefonemas que fazia no
meio da noite. “Quem sabe eles não desaparecem e podemos viver sozinhas
nesta casa…”, falou Maddy. “Talvez o garça-azul apareça, e podemos sair para
viver com ele.”
“Não podemos”, disse Allie. “A polícia viria atrás de nós e haveria um
assistente social que nos colocaria em orfanatos. De qualquer forma, quem iria
cuidar de mamãe?”
“Outra pessoa”, respondeu Maddy, teimosa. “Eu não.”

O JANTAR DO NOIVO estava cheio de gente. Aconteceu num restaurante


francês, onde todos se sentaram a uma mesa incrivelmente comprida, de forma
que era praticamente impossível conversar com alguém. Tanto melhor. Quando
os noivos chegaram, bem atrasados na verdade, o que não era do feitio de Allie,
as pessoas se levantaram e aplaudiram. O primeiro prato já havia sido servido,
um patê gelado e torrada com alho. Os pais de Paul, Frieda e Bill, pareciam
muito simpáticos, e lá estavam vários outros parentes e amigos de Reading.
Maddy reconheceu a senhora Ridge, a velha que morava em Kensington. Usava
um terno Chanel preto e, mais uma vez, chapéu; sob certos ângulos, ela parecia
perene. Ainda bem que, naquele dia infeliz de abril, não conseguira ver bem
Maddy.
“Oi”, disse Allie quando encontrou a irmã em meio às pessoas.
“Oi.”
“Você não se hospedou no Mandarin?”
“Estou na esquina. Num lugar sobre o qual mamãe costumava falar.”
“Bem, fico feliz que esteja aqui.” Allie parecia exausta. Perdera peso. Maddy
ficou imaginando se o terno de casamento ainda serviria. “Paul odeia esse tipo
de coisa. Acho que já está bolando como fugir.” Ela apontou com a cabeça na
direção do bar. “Deus, acho que eu também devia sumir. Para sempre.”
“O que quer dizer com isso?”, perguntou Maddy. Como Allie não respondia,
ela pressionou. “Você não está feliz?”
Allie não estava usando maquiagem. Parecia especialmente pálida, abatida.
“Pareço feliz?”
Allie foi rodeada por suas amigas, que queriam saber tudo sobre a
celebração, então fez um sinal e saiu com elas. Havia uma única forma de
enfrentar aquele evento: Maddy bebeu demais. Tanto, que até seu pai percebeu.
“Está com algum problema?”, perguntou Bob Heller.
“Por que todo mundo sempre acha que estou com algum problema? Eu estou
bem”, afirmou-lhe Maddy.
Assim que conseguiu, ela se esquivou para o bar. Paul estava lá, bebendo um
scotch. A lâmpada era amarela e formava pequenos círculos em forma de lua.
Seus olhos pareciam estranhamente grandes.
“Ela sabe sobre nós”, falou Maddy. “Disse que não está feliz.”
Paul olhou para ela sem demonstrar emoção, como se não a estivesse
reconhecendo.
“Estou falando sério.” Maddy se deu conta de que estava muito bêbada. “Ela
sabe, não? Está satisfeito por tê-la magoado?”
“Fiz tudo o que estava ao meu alcance para que ela me largasse. Só que ela
simplesmente não me abandona. Não é desleal. Acho que nem saberia como
ser.” Paul parecia exaurido. “Portanto vamos nos casar. Você devia realmente me
parabenizar.”
“Só quero saber uma coisa. Por que eu? Por que não traí-la com outra
pessoa?”
“Você estava lá. Estava disponível. E você causaria uma mágoa maior.”
“Você é um filho da puta.”
“Sou mesmo. Exatamente. Achei que você logo perceberia.”
Maddy se levantou e saiu do bar. Achou que ele fosse tentar impedi-la, mas
não se moveu. Foi descendo pela escada até a saída. Se caísse e quebrasse o
pescoço, ninguém se importaria. A irmã mais jovem que não tinha nada. Um
contraste: o escuro e o claro, o cheio e o vazio, o perdido e o achado.
Pegou um táxi de volta para o hotel. Antes de subir para o quarto, fez uma
parada no bar. Havia mais gente do que o normal, alguns homens de negócio, o
mesmo casal da noite anterior e o jovem, numa ponta do bar, com um uísque e
um café à sua frente.
“Vou tomar o mesmo que aquele senhor”, falou Maddy.
“Teddy Healy?”, perguntou o barman. “Ele vem aqui todas as noites, sabe?
Está tentando diminuir a bebida. Um café para cada dois uísques.”
Maddy ergueu o copo e engoliu sua dose. Pegou o elevador e foi até o
quarto. Mais tarde, não se lembrava de como havia chegado lá. Nunca bebera
tanto quanto em Londres. Traições produzem traições. Não pretendia machucar
ninguém e acabara machucando todos, inclusive si mesma. Levantou-se e foi até
a janela. Daquela posição privilegiada, tudo que conseguia ver eram os ângulos
de prédios de tijolos e uma série de telhados e chaminés. Mal conseguia enxergar
o céu. Inclinou a cabeça para fora. O tempo estava sufocante. Podia espiar a
avenida e o estrondo do trânsito, listras brancas e vermelhas.
Maddy recordou o plátano em seu jardim. Ela e Allie ficavam horas lá,
escondidas sob os ramos. Certa vez, a mãe delas saiu para o quintal e deixou-se
afundar na grama, onde começou a chorar. Sabiam que ela estava aguardando o
garça; Allie via uma possibilidade, mas Maddy tinha certeza de que ele nunca
voltaria. Ela tinha medo de altura e do sabor do desapontamento. Seu medo era
visível através da pele. “Não precisa olhar”, murmurou Allie. “Mantenha os
olhos fechados. Eu aviso você quando ele chegar.”

MADDY ESTAVA DORMINDO quando escutou um homem gritando no corredor.


Olhou o relógio: dez e meia, mais uma vez. Foi até a porta. Toda a noite parecia
ocorrer a mesma briga. Talvez todas as brigas de casais fossem as mesmas
mágoas repetidas infinitamente. Maddy colocou a mão na maçaneta. Podia ouvir
sua própria respiração, áspera, enquanto escutava a discussão do casal. Parecia
ser o fim de alguma coisa.
Sentou-se de pernas cruzadas no chão, com o ouvido encostado na porta.
“Como pôde fazer isso?”, perguntou o homem.
Maddy começou a chorar, ainda que a discussão não tivesse nenhuma relação
com ela. Devia ter aberto os olhos quando subira naquele plátano. Talvez tivesse
amado sua mãe. Talvez sua mãe a tivesse amado de volta.
Adormeceu no carpete, enrolada ao lado da porta. De manhã, sentia dor nos
ossos. No caminho para o café, parou na recepção para reclamar de seus
vizinhos barulhentos e foi atendida por uma jovem chamada Kara Atkins, que
parecia ser a responsável por serviços de hóspedes, ainda que tais serviços
fossem bem limitados no Lion Park.
“Os hóspedes na minha frente estão fazendo uma algazarra. São ridículos, a
forma como se atacam. Não consigo dormir.”
“Sinto muito. Vou verificar.” A senhorita Atkins foi até o arquivo para
descobrir o quarto de Maddy. “Ah, a senhora está no sétimo andar, 708.”
“Eles brigam todas as noites. É uma discussão infinita. Sei que não tenho
nada a ver com isso, mas incomoda muito.”
A gerência do hotel teria o maior prazer em mudar Maddy de andar, disse a
Senhorita Atkins, mas Maddy falou-lhe para deixar para lá. Era possível que
Paul viesse procurá-la; não queria correr o risco de não estar lá.
Quando entrou para tomar café, encontrou Teddy Healy dormindo em uma
das mesas. Estava enrolado como um rato, roncando levemente. Ficara lá a noite
toda. A gerência do hotel o tratava com gentileza; era seu cliente mais antigo e
parecia que cuidavam dele. Ao vê-lo assim, Maddy decidiu que era hora de se
recompor. De uma vez por todas. Não queria acabar bêbada num bar de hotel.
Não queria definhar como a esposa do garça.
Tomou café, comeu uma torradinha com geleia e subiu para pegar seu
vestido. Era hora da prova final das damas de honra. No caminho de volta para o
quarto, notou que a porta do 707 estava aberta. Espiou lá dentro. Torcia para que
o casal briguento estivesse, enfim, indo embora.
O quarto estava vazio. Não apenas não havia hóspedes, como também não
havia móveis. Nada de armário. Nada de cama. Viam-se vários colchões
encostados na parede. Estava gelado. Quando Maddy expirava, sua respiração
transformava-se em vapor. Maddy se lembrou que o quarto de sua mãe era
sempre frio. Nunca tinha vontade de ficar lá; tinha medo. Talvez fosse como seu
pai, pronto para fugir no primeiro sinal de crise. Allie precisava pegá-la pela
mão e conduzi-la pela porta. “É só a mamãe, bobinha”, dizia. “Ela não morde.”
Maddy desceu até a recepção.
“Descobri que não tenho vizinhos”, disse Maddy à senhorita Atkins. “Não há
ninguém naquele quarto onde têm acontecido brigas todas as noites. Não existe
sequer uma cama lá.”
“Bem, dizem que é Michael Macklin”, explicou Kara Atkins, timidamente.
“Ele é famoso? Devo saber de quem se trata?”
“É um fantasma”, contou a senhorita Atkins. “Ou pelo menos é isso que as
pessoas dizem. A senhora entende, não acredito nessas coisas.”
“Que incrível”, respondeu Maddy. “Fico feliz por ele ter se mudado.”
“Ah, ele não se mudou. Faz mais de vinte anos que não há móveis lá, e isso
não o impediu de aparecer. Fantasmas vão aonde têm vontade de ir. Não
precisam de uma escrivaninha ou mesa.”
“Achei que você não acreditasse nessas coisas…”
“Não acredito”, falou Kara. “Mas eu também escutei este.”
“Não está falando sério.”
Maddy viu a expressão nos olhos de Kara.
“Meu Deus, você está”, disse.
“O incidente aconteceu em 1952, que é bem recente em termos de
assombração, se é que existe assombração.”
“Não que você acredite…”, falou Maddy.
“Exatamente. Um dos participantes desse incidente vem ao bar todas as
noites. Deve estar tentando reviver o que aconteceu. Mas não se dispõe a falar
sobre o assunto.”
“Teddy Healy? O senhorzinho?”
“Esse mesmo.”
“Está me dizendo que é isso que escuto todas as noites às dez e meia?”
“Estou apenas contando uma história”, falou Kara. “A senhora decide o
restante.”

MADDY PENSOU EM pegar um táxi para a casa de sua irmã, mas na hora
preferiu ir andando. Não gostava de conversas sobre fantasmas, nem sobre
romances fracassados. Parar de beber foi uma boa ideia. Ia seguir em frente com
sua vida. Foi carregando o vestido de madrinha sobre os ombros. Sob a luz do
sol, ele parecia brilhar ainda mais flutuando atrás dela. Quando chegou ao
parque, as coisas lhe pareciam oníricas e verdes. Naquele dia não odiava
Londres, ainda que continuasse quente. Havia o perfume de algo que lhe
lembrava o brejo de sua casa. Era um odor picante, aromático. Estava diante do
lago Serpentine. Havia barcos de mentira na água. As folhas das árvores estavam
verdes, mas suas bordas estavam amareladas. Entrou em um jardim em que
cresciam enormes rosas brancas – círculos que pareciam esculpidos no gelo, com
a diferença de que se mexiam com a brisa.
Maddy ia chegar atrasada, mas não se importava. Tinha feito tudo errado,
assim não via problemas em ser a última a chegar à casa de sua irmã. Parou em
um quiosque e pediu uma soda limonada. Conseguia entender por que alguém
frequentaria aquele parque, andando dia após dia por aquele caminho, cheirando
as mesmas rosas infinitamente. Para um fantasma, caso se acreditasse nessas
coisas, ser amaldiçoado a repetir esse ciclo não era nada mau. Fantasmas não
precisavam de mobília, portanto, era provável que não precisassem de amor
também. Talvez dormissem em ninhos nas árvores, olhando de cima as coisas
estúpidas que os humanos faziam.
Maddy chegou a Bayswater. Quando entrou no apartamento de Allie, as
outras damas de honra já estavam com seus terninhos cor creme; estavam
sentadas em círculo em silêncio; parecia mais um velório do que a prova para
um evento alegre.
“Você não consegue chegar na hora ao menos uma vez?”, perguntou
Georgia.
“Embora você não tenha nada que ver com isso”, respondeu Maddy, “eu me
perdi.” Afinal, era quase verdade. “Onde está minha irmã?”
“Por que você mesma não a procura?”
Allie estava na cozinha, chorando.
“Ora, sinto muito”, falou Maddy. Jogou o vestido sobre uma cadeira e foi
abraçar a irmã. “Sou uma idiota por me atrasar. Não há desculpas para as
besteiras que faço. Sua amiga Georgia já me falou isso, e não tenho como
contra-argumentar com ela. Sinto muito, Allie. Acho que você devia me
renegar.”
Allie aproximou-se. “Ele está doente, Maddy. Já faz um ano. Não queria
deixar você preocupada, e Paul não queria que as pessoas soubessem. Tem
estado tão bravo. Agora ele piorou.”
Maddy notou, pela primeira vez, o barulho que a geladeira fazia. Também
não havia notado que sua irmã parecia bem exaurida. Na verdade, nunca
parecera empolgada com o casamento, apenas cumprindo tarefas.
“Ele foi diagnosticado com um linfoma não Hodgkin, já no estágio quatro
quando descobrimos. Ficava suando à noite e perdera o apetite. Estávamos
tomando banho juntos quando eu senti. Um caroço embaixo do braço. Achamos
que não era nada, uma mordida de inseto que havia infeccionado, ou algo assim,
mas… Na verdade, era um câncer. Espalhado por todo o corpo. Ele não queria
que eu falasse sobre isso. O problema é que… eu ia terminar com ele pouco
antes de ficar doente.”
Maddy foi até a pia pegar uns copos d’água. Dessa forma, Allie não
conseguiria ver seu rosto.
“Ele não foi um bom namorado. Nem sei se algum dia o amei ou se apenas
precisava de tempo para me acalmar depois que ele fez a proposta. Éramos
errados um para o outro, mas seguimos em frente. Eu tinha de cuidar dele
durante o tratamento, não? Não sou do tipo de pessoa que abandona a outra, mas
foi horrível. Muito pior do que com mamãe. Ficou tão enjoado com a
quimioterapia, que nem sabiam se ele sobreviveria a essa fase. Perdeu quase
quinze quilos, perdeu cabelo. Eu tinha de ficar ao seu lado.”
Maddy levou a água até a mesa. “Lógico que sim.”
“Ele estava furioso. Por que ele? Por que nós? Por que tudo? Bem, eu não ia
fazer o que papai fez, certo? Não iria abandoná-lo em meio a uma crise. Então,
no inverno, houve uma diminuição. Não precisaria mais de um transplante de
medula óssea. Estava ficando mais forte. Em março, disse-lhe que era o fim
entre nós, e ele voltou a ficar bravo. Deus, ficou furioso… Havíamos terminado
pouco antes de sua visita em abril. Eu estava apenas fingindo; você deve ter
imaginado durante a prova do bolo. Ia cancelar tudo. Então a doença voltou, e
tudo mudou.”
Nenhuma das irmãs conseguia beber a água.
“Era tarde demais para o transplante”, falou Allie.
“Ele vai melhorar.”
“Você não está prestando atenção no que estou dizendo, Maddy? Não tem
como melhorar. É provável que nem haja um amanhã. Ele foi levado de volta
para o hospital depois do jantar. Está sendo tudo muito rápido. Ele perdeu a
visão. Não consegue mexer as pernas. Está subindo e descendo pela sua coluna.”
Maddy precisava se sentar. “Não achei que isso acontecesse tão
rapidamente.”
“Desculpe-me por te contar dessa forma. Contei às outras quando chegaram.
Georgia e Hannah sabiam, mas só elas. Ah, e mamãe. Ela sempre soube.”
“Mamãe?” Maddy engasgou. “Você contou para ela, e não para mim?”
“Eu queria proteger você.”
“Lógico. Sou tão fraca… Não sirvo para nada mesmo!”
Allie parecia magoada. “Essa não era mesmo minha intenção…”
“Por que nunca consegue me tratar como alguém normal?”, Maddy pegou o
maço de cigarros e acendeu um. Allie nem sequer tentou convencê-la a apagar.
Lá estava Maddy, mais uma vez colocando suas mágoas na frente. Deu uma
tragada e então amassou o cigarro em um prato. “Sou uma idiota”, falou Maddy.
“Sinto muito.”
“Vamos nos casar no hospital. Minha vontade era fazer sob o plátano.
Poderíamos amarrar sinos e laços em todos os galhos.” Foi isso que a esposa
garça fizera para chamar seu marido de volta para casa quando ele se perdeu no
livro de Allie. “Vamos ter de pagar a Orangery – a comida, as flores e tudo o
mais –, sempre soubemos que isso podia acontecer. É por isso que não permiti
que mamãe ou papai pagassem nada.”
“Papai sabe? Deus, Allie, todo mundo sabia, menos eu?”
“Paul não queria que você soubesse.”
“Ele que quis? Ele falou ‘não conte para Maddy’?”
“Não, lógico que não. É que ele é muito teimoso. É do tipo de pessoa que se
recusa a ver os amigos mais próximos, preferindo levar uma velha e solitária
senhora ao teatro ou para jantar. Não pretendia arruinar minha vida com sua
doença. Fez o possível para que eu o abandonasse. Pensei que fosse por ele estar
bravo comigo. Agora entendo que ele queria me libertar.”
“Está me dizendo que ele está morrendo?”, Maddy não parecia ela mesma.
Allie estava com sua roupa de casamento. Havia perdido tanto peso, que o
traje estava dois números menor. “Está”, respondeu.
Georgia espiou pela porta e, então, entrou na cozinha. “Está tudo bem?”,
Georgia abraçou Allie e olhou para Maddy. “Contou para ela?”, Allie fez que
sim com a cabeça. “Não precisamos continuar com a prova de vestidos”,
sugeriu. “Podemos dispensar o alfaiate.”
“De modo algum”, falou Allie. “Quero que tudo continue como se nada
estivesse acontecendo.”
Quando Allie foi até a sala ver como estavam as damas de honra, Maddy
virou-se para Georgia. “Em que hospital ele está?”
“No Bart’s”, falou Georgia. “Hospital St. Bartholomew. É onde ele ficou no
outono. Hannah e eu nos revezamos e fizemos companhia a Allie na época.”
“Eu nem imaginava”, falou Maddy.
“Mas chegou a perguntar?”
“Não tente me culpar por isso. Allie nunca aceita ajuda.”
“Bem, sua mãe vinha e voltava durante a primavera e o verão. Ela tem
ajudado o tempo todo.”
Maddy levou um baque.
“Estou surpresa por ele mesmo não ter lhe contado”, falou Georgia. Pronto,
eis o motivo para a hostilidade. “Achou que eu não soubesse quando os vi juntos
no táxi? A culpa estava estampada no rosto de vocês. Apenas torçamos para que
Allie nunca descubra.”
Maddy fugiu para a sala e vestiu rapidamente o vestido de seda azul. Não se
ouvia uma palavra da boca das damas de honra. Só o alfaiate e seu ajudante
conversavam. O vestido de Maddy não precisava de nenhum ajuste. “Perfeito”,
falou o alfaiate.
“Você está linda”, concordou Allie. “Já pagamos pelos vestidos, portanto é
bom que estejam corretamente ajustados. Vocês podem usá-los em alguma outra
ocasião.”
O alfaiate e seu ajudante começaram a juntar seus estojos de agulhas e
alfinetes.
“Quer que eu fique?”, perguntou Maddy à irmã. Ela já sabia a resposta.
“Eu te telefono se precisar”, prometeu Allie, ainda que ambas soubessem que
ela nunca telefonaria.
Maddy pegou um táxi de volta para o hotel, deixou o vestido na recepção, e
então retornou para o táxi, que a aguardava, e seguiu para o hospital. Havia um
bom congestionamento, e já era quase hora do jantar quando ela chegou. O
hospital era como um labirinto, cheio de gente e confuso. Odiava hospitais.
Ninguém parecia ter nenhuma informação para dar, mas no final Maddy
encontrou o quarto de Paul. Uma enfermeira a interrompeu, insistindo para que
vestisse uma máscara azul. Maddy entrou olhando para baixo, para não
incomodar o primeiro ocupante do quarto, que estava na cama respirando com
grande dificuldade. Já sentia vontade de chorar. Paul estava no segundo leito,
pálido, meio adormecido, com uma agulha de soro em seu braço. Paul fez força
para enxergar.
“Allie?”, perguntou.
Seus nervos ópticos haviam sido afetados e só conseguia enxergar sombras.
Maddy podia ter notado isso no jantar do noivo. Estava mais preocupada em
odiá-lo do que realmente ver o que acontecia. Ele estava muito doente.
“Não. Sou eu”, falou Maddy.
“A irmãzinha.” Paul forçou um sorriso. Ele parecia envelhecido. Sem aquele
ar de garoto. “É normal levar flores e doces quando se visita alguém no
hospital.”
“Não consigo acreditar que você saiba mentir tão bem.” Maddy sentou-se em
uma cadeira dura ao lado de seu leito. Ela pegou a mão dele. Estava mole, fria.
“Devia ter me contado.”
“Contado o quê? Que eu devo ter feito alguma cagada muito grande para
Deus ou para os anjos? Que minha vida estava destruída e que eu estava
arruinando a vida de Allie? Eu estava muito bravo com ela.”
Seu jantar estava em uma bandeja, intocado. Sopa, um refresco sem gás,
torrada com uma cobertura leve de manteiga. Os lábios de Paul pareciam secos e
machucados.
“Ela não me amava”, falou Paul.
“Quer beber alguma coisa?”, perguntou Maddy.
“Scotch e soda. Duplo.”
Maddy ergueu o copinho de papel, e Paul bebeu do canudinho. Ginger ale.
“Fizemos a prova dos vestidos hoje”, falou Maddy. “Ela estava linda.”
“Acho que era melhor dar para ela um balde de tinta preta. Ela não merece
isso.”
Maddy tentou forçá-lo a beber mais, mas ele a afastou com a mão.
“Sabe por que estou tão bravo? Porque sabia que isso ia acontecer, e
aconteceu. Não consigo mexer as pernas, irmãzinha. Não consigo enxergar
você.”
Maddy abaixou a bebida e pegou a sopa aguada. “Você devia comer.”
“Basta”, falou Paul, depois de três colheradas. “Estou vomitando sangue.”
Maddy colocou a bandeja de lado e veio sentar-se ao seu lado na cama;
encostou a cabeça em seu peito. Lá estava o coração, ainda batendo.
“Pobre Allie”, disse Paul. “Uma repetição de sua infância. Uma vida gasta
cuidando de outra pessoa. Acabei fazendo exatamente o que prometi nunca fazer
a ela. Ela está apavorada para caralho.”
“Allie nunca fica apavorada com nada”, falou Maddy.
Paul riu e, de repente, começou a tossir. “Você não a conhece tão bem
assim… Ela está bem apavorada.”
“Pare de falar. Você precisa descansar.”
“Não preciso descansar para morrer. E não me diga que vou ficar bem
novamente.” Paul fechou os olhos. “Pelo menos seja honesta comigo.”
“Da mesma forma que foi honesto comigo?”
“Nunca menti. Você é quem mentiu para si mesma. Se vai ficar aqui nas
minhas últimas horas, o mínimo que pode fazer é me entreter.”
Por que ela não mais o odiava? No máximo, odiava a si mesma por ser
idiota, por ser tapada, por trair Allie. Havia uma veia azulada na cabeça de Paul
que Maddy nunca tinha notado. “Eis uma história real”, começou. “Há um
fantasma em meu hotel.”
Paul riu novamente e, então, virou a cabeça para ela, interessado. Havia
líquidos escorrendo por seus olhos.
“Sério”, continuou Maddy. “Está assombrando um companheiro que fica o
tempo todo no bar.”
“Querida Maddy. Você é tão inocente. Acredita em tudo o que lhe dizem.
Agora só falta me dizer que o diabo está ao meu lado.”
O homem no primeiro leito começou a gemer.
“Fecha a porra da cortina”, disse-lhe Paul. “As pessoas são barulhentas para
caramba quando estão morrendo. Achava que teríamos um pouco de paz aqui.”
Maddy fechou um pouco mais a cortina; no meio do caminho, viu um velho
dobrado de dor. Um calafrio lhe percorreu o corpo. Virou-se para Paul. No outro
lado de sua cama, também havia uma cortina. Ela não conseguia ver o paciente
atrás da cortina, apenas um facho de luz através do tecido. Paul estava
encurvado, com os joelhos no peito. Sentia como se pudesse ver através dele. Foi
só naquele instante que ela se deu conta de que Paul estava realmente morrendo.
Apenas parte dele estava ali.
Nunca conseguira lidar bem com doenças. Sempre teve vontade de fugir
quando chegava próximo a este ponto. Maddy se lembrou das coisas horríveis
que dissera a sua mãe quando era mais jovem – se não fosse câncer, não poderia
ser considerado um problema. Não era nada. Nunca se odiara tanto quanto
naquele momento. Paul não parecia mais a pessoa com quem dormira na última
primavera. Não o reconhecia mais. Sentia vontade de sair para o corredor. De
seguir em frente, passar pela porta, continuar até chegar ao jardim de rosas
brancas no parque. Mas, em vez disso, forçou-se a colocar uma cadeira ao lado
do leito. Tinha medo de machucá-lo ou de derrubar alguma coisa.
“Acho que, depois do que aconteceu entre nós, sou eu quem deve cuidar de
você”, ela falou.
Paul riu, uma breve risada seca, que logo sumiu. “Está maluca? Sou um
merda de um narcisista desesperado à beira da morte. Você não me quer.”
Ele precisou parar de falar; começou a sentir falta de ar. Virou a cabeça para
o outro lado; seu corpo estava frouxo, como seus músculos não estivessem mais
conectados. O câncer se espalhara por sua coluna. O fim foi ridiculamente
rápido. Os ossos mais pareciam cordões, destruídos com beleza. “É ela quem eu
amo. Você sabe disso.”
Ficou deitado ali, em silêncio. Maddy acreditou ter escutado um grito dele.
“Tínhamos uma árvore enorme em nosso quintal”, murmurou Maddy.
“Quando a escalávamos, ficávamos próximas do céu. Mas só respondiam ao som
da voz de Allie. Nunca me escutaram.”
“Certo.” Os olhos de Paul permaneciam fechados, mas ele estava
praticamente sorrindo. “Essa é minha garota. Faça eu me divertir. Sabia que
podia contar com você para isso. Sabia que me contaria uma boa história. Fale-
me mais sobre ela.”

QUANDO RETORNOU AO Lion Park, Maddy foi informada que alguém a


aguardava. Sua mãe estava no restaurante. Maddy queria subir e deitar-se, mas
foi lá encontrar sua mãe.
Lucy pedira uma taça de vinho branco, embora o que ela realmente desejava
fosse um uísque. Havia um prato com gelo derretido ao lado da taça. A
temperatura subira. O hotel tinha ar-condicionado em suas dependências
comuns, mas ainda assim estava abafado. Lembrou-se desse detalhe.
“Não mudou nada por aqui. Só parece mais velho.”
Nas últimas noites, Lucy passara pelo hotel. Foi lá que ela começou a
compreender que uma pessoa podia se perder se não tomasse cuidado.
“Vim para cá porque me lembrei do que você contava”, falou Maddy. “E
ainda tinha o cinzeiro. Pensei que fosse melhor.”
“Foi a primeira vez que vim até Londres. A primeira vez que viajei, na
verdade. Vim para cá por causa de um casamento também. Vi que eles ainda têm
o velho leão de pedra.”
“Então me conte, mãe, fui a última pessoa no mundo a saber que Paul estava
tão doente?”
“Ele é um homem muito reservado. Estava muito mal. Allie contou-me que,
antes do diagnóstico, ela não queria mais se casar, mas decidiu ficar ao seu lado.
É assim que ela age.”
“Falsa?”
“Fiel.”
“Certo. Sempre Allie. A boa, a fiel. Ela sempre tem tudo.”
Lucy riu, porém notou que sua filha falava sério.
“O que ela tem agora é um homem em seus últimos dias de vida.”
“Foi inevitável”, falou Maddy. “Fiz minha parte e fui vê-lo.”
Lucy esticou o braço e pegou a mão de sua filha. Maddy sempre acreditou
que sua mãe não a amava, não da mesma forma que amava Allie. A prova disso
foi quando, um dia, Maddy se dirigiu ao quarto da mãe e encontrou as persianas
baixadas e todas as luzes apagadas. Os olhos de Lucy estavam fechados. Ela
sentiu a presença de alguém no quarto, abriu os olhos e ficou assustada ao ver
Maddy ao lado da porta. Sua mãe falou “Não posso”, apenas isso, e Maddy saiu
correndo. Tinha certeza do significado daquilo: não posso tomar conta de você.
Não posso te amar. Mas, agora, pensava se talvez não tivesse se enganado.
Talvez sua mãe quisesse dizer “Não posso permitir que me veja assim. Eu te amo
demais para isso.”
“Não há o que fazer, Maddy. Acabou. Isso é assunto deles. O homem vai ser
marido de Allie, esteja ele morrendo ou não. Apenas ela pode cuidar dele.”
Maddy puxou sua mão e cobriu seu rosto. Suas mãos não escondiam o cheiro
do sabonete do hospital. Ela certamente não queria que sua mãe a visse
chorando. Lucy pediu mais uma taça de vinho. Essa era sua filha que não sentia
nada, a inatingível.
“Não se consegue forçar ninguém a amar outra pessoa, sabe? Aprendi isso
com seu pai. Como ele não me desejava, eu também não o desejava. Percebi o
estrago que isso causava numa pessoa.”
“Fiz uma coisa horrível”, falou Maddy. “Nunca poderei ser perdoada.”
“Acredite em mim”, disse Lucy. “Você será.”
Mesmo depois que Maddy subiu para o quarto e se deitou, Lucy permaneceu
no bar. Pediu uísque e soda. Sabia que não fora uma mãe muita boa,
principalmente para Maddy. Achou que seria melhor se manter distante. Dessa
forma, se algo lhe acontecesse, suas filhas não sentiriam muito sua falta. Se já
soubessem cuidar de si mesmas, não ficariam devastadas.
Quando ficou sabendo que Maddy se hospedara no Lion Park, Lucy
telefonou para lá. Não tinha certeza se Teddy Healy ainda estava vivo. Mas a
garota da recepção, que atendera o telefonema, garantira que estava, e depois até
Maddy mencionara seu nome. Talvez fosse destino, ou quem sabe uma
coincidência; de qualquer forma, parecia que era hora de Lucy voltar. Havia
vários clientes mais velhos no bar, mas foi só mais tarde, quando um senhor
apareceu e falou com o barman, que ela teve certeza de que era Teddy.
Reconheceu sua voz. Suas feições eram-lhe familiares, mesmo depois de tanto
tempo. Quanto a Teddy, aparentemente ele não se lembrou dela. Afinal de
contas, Lucy era uma mulher na casa dos cinquenta anos e ele, um velho.
Ao longo do tempo, Teddy se mostrou um padrinho confiável para os três
filhos de seu irmão. Sempre lembrou os aniversários e esteve em todas as
formaturas. Mas, em boa parte de sua vida, beber era a única coisa que levava a
sério. Algumas mulheres no banco em que trabalhava deixaram claro que
estavam disponíveis, mas Teddy era desconfiado. Ainda jovem, quando desejava
uma companhia, telefonava para uma empresa que oferecia esses serviços. Era
muito fácil; uma mulher atraente ia até sua casa, faziam sexo e ele a pagava, e
depois ele seguia até o Lion Park para se embebedar. Isso era uma constante em
sua vida. O bar do hotel. A hora em que subia e recordava o que havia lhe
acontecido.
Certa noite, muitos anos atrás, Teddy ficara tão bêbado que o porteiro do
Lion Park o jogara na sarjeta. Era nos anos 1960, uma época de comportamentos
radicais; havia drogas por todos os lados, mas ainda assim foi Teddy quem levou
um pé na bunda. Uma garota apareceu e disse-lhe algo. Era gentil e muito
bonita. As coisas eram diferentes naquele tempo; mulheres jovens conversavam
com estranhos. Aquela o ajudou a pegar um táxi e disse-lhe que, se ele não
parasse de beber, iria morrer de cirrose. Disse-lhe para pensar em outra pessoa
que não fosse em si mesmo. Nunca se sabe quem você pode ajudar, falou. Afinal
de contas, seu dever é ser humano.
Depois disso, Teddy começou a ficar sóbrio. Passou a viajar, para a África e
o Oriente Médio, lugares onde a paisagem era incrível, onde existia vida havia
muito tempo e onde sua existência patética parecia totalmente sem importância.
Ele ainda bebia, mas não na mesma quantidade. Não estava mais se obliterando.
Doava a maior parte de seu dinheiro para escolas nos países que visitava, para
crianças cuja formação pagava. Também cuidou da formação universitária de
seus sobrinhos. Visitava velhos em asilos e lia para eles. As pessoas diziam que
sua voz era bonita. Não parou por aí: fez gravações para leitores cegos.
Acreditava que, se fizesse boas ações para o mundo, talvez a jovem que tinha
conhecido estivesse certa; era possível que aquilo que perdera na noite do
acidente voltasse para ele.
Teddy realmente teve problemas de fígado e enfisema, tal qual previra a
jovem, mas continuava indo para a África uma vez por ano, para a Nigéria.
Envolvera-se na construção de uma escola lá e estava ajudando na arrecadação
de fundos para um alojamento de garotas, o que permitiria que elas também
assistissem às aulas. Mas continuava frequentando o lounge do Lion Park, e não
apenas por ser um lugar agradável. Aquele era o lugar onde sua vida se desviara.
Lucy ficara surpresa ao ver como parecia frágil, um homem que precisava
dormir à tarde.
“Teddy Healy. É você mesmo?”
Teddy ergueu a xícara de café para ela. Hoje, raramente bebia mais do que
uma ou duas doses. “Para você”, falou, nitidamente sem perceber de quem se
tratava.
“É Lucy Green. Agora Lucy Heller.”
Teddy Healy ficou olhando para ela. Uma atraente mulher de cabelos
escuros. Uma completa estranha. Então algo aconteceu no rosto dela, uma
espécie de sorriso breve, e ele reconheceu a garota que ela fora anos atrás,
quando se hospedara ali.
“Lucy”, falou. “Sim.”
“Tentei escrever para você neste endereço, aqui no hotel, quando voltei para
os Estados Unidos, mas as cartas retornavam.”
“Nunca me dei bem com cartas.”
“Costumava pensar em você com frequência, senhor Healy.”
“Ora, que Deus a abençoe”, falou. “Obrigado.”
“Minha filha mora em Londres. Uma delas. Está prestes a se casar, mas o
noivo dela está muito doente. Não acreditam que ele irá sobreviver.”
“Fique longe de cartas e casamento”, falou Teddy Healy. “É meu melhor
conselho.”
“Certo”, disse Lucy. Sabia a dor que essas duas coisas haviam lhe causado.
“Sinto muito pelo drama de sua filha”, completou Teddy. “É muito triste.”
“Obrigada. Fiquei triste pelo seu. Devia ter voltado muitos anos atrás. Tive
vontade, mas coisas da vida me impediram. Cometi mais erros do que consigo
começar a enumerar.”
Teddy Healy deu de ombros. Pediu mais um café, e também um para Lucy.
“Que se dane o passado”, falou.
“Minha filha diz que este lugar continua assombrado.”
“Ouvi falar também.” Teddy ergueu a cabeça e viu que ela não ia deixar
aquilo passar incólume. “Você não acredita nessa besteira, não é?”
“Eu vi uma vez”, falou Lucy. “Mas não durou muito. Caí e bati a cabeça.”
“Você tem uma memória muito boa”, comentou Teddy. E isso era triste; era
isso que sempre o preocupara. O fato de ele ter arruinado não apenas a sua vida,
mas também a dela. “Acho que se lembra de que fui um covarde.”
“Lembro que tudo que aconteceu foi por culpa minha.”
“Ora, mas que ideia besta. Foi minha culpa. Eu roubei sua infância. Não há
como consertar isso. Posso lhe garantir.”
“É isso que você acha? Na verdade, você me devolveu minha infância.”
Teddy riu. “Nisso, eu não acredito mesmo.”
“Mas é verdade. Meu pai se casou com uma mulher que conheceu aqui, e
moramos juntos em Nova York. Todos os dias, passeava com meu cão no
Central Park, e eu era feliz, algo que nunca achei que seria novamente. O que vi
no sétimo andar deste hotel foi um homem inocente. Disso eu me lembro
mesmo. Venha comigo e veremos.”
“Para falar a verdade, eu não subo mais. Não depois que parei de beber.” O
garçom trouxe as xícaras de café. “Coloque na minha conta.” Teddy olhou o
relógio na parede. Eram quase dez e meia, a hora temerosa.
“Acho que devemos subir e acabar com isso, senhor Healy.” Ela já estava de
pé.
“Só vou conseguir me livrar de você se subir, não é mesmo, Lucy?”
Lucy consentiu. Ele lembrou que, quando a conheceu, também era teimosa.
Subiram pelo elevador. Ela não recordava que era tão pequeno e decrépito.
Saíram no último andar. Sétimo. Tinham tirado um pouco do mofo do local onde
pedaços de papel de parede foram arrancados pelo coelhinho que morava no
hotel quando Lucy era menina. Mas, em geral, tudo parecia úmido, precisando
de reparos.
“Minha filha está hospedada neste andar.”
“Ela podia ter encontrado um lugar melhor para ficar”, falou Teddy.
“Todos poderíamos ter feito isso.”
Teddy deu uma risadinha. Ele parecia bem pálido.
Quando chegaram ao 707, Lucy deu uma batida e, então, abriu a porta. O
quarto estava vazio e frio. Havia uns colchões sobressalentes encostados numa
parede. Lucy deixou a porta aberta e ficou, ao lado de Teddy, no corredor,
espiando o interior do quarto. Ele a encarou por um instante e ela sentiu seu
desconforto. Os dois recordavam tudo. Era possível que não lembrassem o que
tinham comido no café da manhã, mas com certeza lembravam exatamente o que
aconteceu naquele quarto.
Eram dez e meia. Depois que o marido de Lucy se foi, ela frequentemente
pensava em Teddy Healy. Sabia que amor não era algo que se podia negociar.
Lembrava-se da garota que fora; em muitos aspectos, ainda era aquela garota.
Havia perdido a fé nas pessoas quando jovem, muito antes de vir para Londres.
Era possível escutar uns hóspedes no sexto andar, um pouco bêbados, rindo.
Eram dez e meia, e depois dez e trinta e cinco e, então, quinze para as onze. Não
havia sinais de um fantasma ou do que quer que fosse aquela coisa.
“O que aconteceu com ele?”, perguntou Teddy Healy.
Lucy se aproximou. “Você é um bom homem. Saber isso lhe bastava. Sempre
foi bom. Você foi bom para mim.”
“Não foi nada de mais o que fiz por você.”
“Você está muito enganado, senhor Healy. Aquilo significou muito para
mim.”

MADDY PASSOU O dia seguinte sozinha. Isso não lhe era novidade. Mas aquele
dia foi diferente. Ela desejou estar com o restante da família. Saiu com jeans,
chinelo e a camiseta com que dormira. A onda de calor não diminuíra, e faltavam
gelo e bebidas geladas em muitos restaurantes.
No bolso de Maddy havia a chave do quarto e alguns trocados. Sentia-se uma
moradora de rua perdida. Conseguiu chegar ao jardim no parque das enormes
rosas brancas, onde se sentou num banco. Um homem dormia no banco em
frente ao dela. O jardim estava silencioso. Maddy não escutava o tráfego da
Avenida Brompton. O tempo parecia passar lentamente. Pensou nas coisas que
fizera, e isso a deixou desconfortável. Quando o homem começou a gemer
dormindo, Maddy se levantou. Caminhou quilômetros. Ao final do dia, seus pés
doíam; no finzinho da tarde, entrou num pub e bebeu uma Coca quente.
Ninguém a incomodou. Algumas pessoas a espiavam, mas logo afastavam o
olhar. Uma mulher bonita, mas malcuidada. Não tinha lavado o cabelo,
deixando-o apenas preso. Suas roupas estavam amarrotadas, e ela parecia
inquieta, como alguém que já tivera dias melhores, em outra época e lugar.
Maddy tentou telefonar para o quarto de hotel de sua mãe para ver se estava
tudo bem e saber como estava Paul, mas Lucy nunca atendia. Deixou seis
recados na recepção. Ligou para o hospital, mas, quando a telefonista atendeu e
perguntou com quem gostaria de falar, desligou.
Já era quase noite quando Maddy saiu do pub. Ficara o dia todo à base de
soda e batatinhas. O ar estava cinzento e denso. Havia uma roseira crescendo ao
lado de um jardinzinho no quarteirão do hotel, com flores que pareciam
vermelho-sangue naquela escuridão profunda. Naquela noite sob o plátano,
quando elas se cortaram, Maddy percebeu que, se decidisse não sentir nenhuma
dor, nada poderia machucá-la. Sua irmã era aquela que tinha esperanças, e ela, a
que não acreditava em nada. Era mais parecida com sua mãe do que imaginava.
Naquela noite, Maddy jantou no restaurante do hotel. E ficou sentada no bar.
“Você fica mais tempo aqui do que Teddy”, disse o barman. “Uma
frequentadora assídua. Ele até recebe suas correspondências aqui.” E mostrou
um envelope. Dentro havia uma fotografia velha de uma garota e um cachorro
sentados num banco. O barman espiou. Alguém havia escrito um agradecimento
no verso da foto.
“Bem, depois desta semana, não serei mais uma frequentadora assídua”,
garantiu-lhe Maddy. “Vou voltar para casa.” Pediu uma sopa e um vinho, mas
bebeu apenas o vinho. A sopa estava aguada e apresentava uns legumes bem
cortadinhos flutuando. Mas estava sem apetite.
“Ouvi falar que nos livramos de nosso fantasma”, continuou o barman. “Não
tenho a menor ideia do que aconteceu, mas é um milagre. Certa vez, Teddy
tentou dar um tiro nele, mas a bala o atravessou. Pelo que sei, fantasmas são a
essência filtrada de uma pessoa. Uma órbita de iluminação vibrante. Acho que é
disso que todos somos feitos.”
“Você parece um crente falando”, disse Maddy.
“Eu o vi uma vez”, confessou o barman. “Zanzando pelo corredor. Perdido
como um rato. Pobre homem. Acho que, para sua felicidade, ele finalmente
seguiu em frente.”
Quando Maddy subiu, passou a mão na parede tentando encontrar o buraco
de bala no gesso ao lado da porta do 708. Entrou em seu quarto, tirou toda a
roupa e colocou seu vestido azul. Como o espelho era pequeno, precisou subir na
cadeira da escrivaninha. O vestido lhe serviu; Allie escolhera bem. Ela conhecia
bem Maddy. A cor era perfeita.
Maddy parecia não precisar de ninguém, mas seu âmago estava destruído,
feito de ossos e fitas pretas, sangue e escuridão. Adormeceu no quarto quente e
gorduroso, com o abajur aceso, ainda com o vestido de madrinha. Em seu sonho,
escutou um sussurro; um homem falava e ela era guiada por sua voz. Havia uma
trilha de pedra e ela a seguiu até encontrar Paul. Estava embrulhado com uma
fita branca e seus olhos também estavam brancos. Falou: “Enterre-me embaixo
do plátano”. No sonho, Maddy estava descalça e em pé sobre pedras; seus pés
começaram a sangrar. Sentia vontade de responder: “Lógico, faço tudo que você
pedir”, mas não conseguia falar. Estava caindo em pedaços. Uma mão, um
braço, uma perna. Queria saber se conseguiria se remontar usando uma linha
vermelha e agulhas. Queria saber se teria a força para erguer a pá e abrir a cova
que ele pedira. Havia rosas brancas crescendo, mas ela não conseguia vê-las no
escuro. Simplesmente tinha de acreditar que estavam lá.

ALLIE ESTAVA AO lado da cama dele quando aconteceu. Eram 5h22 da manhã.
Olhou para o relógio, da forma que as pessoas olham para coisas simples,
incomuns, no exato instante em que tudo parece tão irreal. Lá estava a mesa. Lá
estava o copo d’água com um canudinho. Era aquele momento do dia de cor
prateada entre a noite e a manhã, quando o céu ainda está escuro, mas as luzes
ricocheteiam por toda a cidade. Estava silencioso, como quando a primeira neve
começa a cair. Mas era 15 de agosto, a manhã seguinte ao seu casamento. Ela se
casara uma semana antes do programado.
No dia do casamento, o médico chamara Allie até seu consultório e dissera
que achava que Paul não duraria mais de vinte e quatro horas. Seus sinais vitais
estavam se apagando e ele não respondia; as doses de morfina que tomava eram
tão altas, que chegavam a ser tóxicas. Allie agradeceu ao médico e ficou lá
sentada, sem conseguir se mover.
“Não precisa me agradecer”, falou o médico. Seu nome era Crane. Tinha um
bom coração e não deveria ter escolhido aquela profissão. “Pode me bater, se
quiser.”
Naquele momento, Allie queria apenas usar o telefone dele. Ligou para os
pais de Paul pedindo-lhes que fossem imediatamente para Londres. Sua mãe
ficaria arrasada. Ao longo de todo o outono, quando Paul passava pela
quimioterapia que o deixou tão doente, ele tinha vontade de ir para casa nos fins
de semana. Então, antes do início do verão, quando a doença voltou de repente,
ele ansiava mais do que nunca por aquelas visitas. Era uma viagem cansativa,
mas não se importava. Muitas vezes, era Allie quem tinha de dirigir. Antes, Paul
nunca se permitia andar no banco do passageiro, mas agora chegava a cochilar
no caminho. Foi aí que ela começou a compreender o que estava acontecendo.
Foi aí que ela começou a se apaixonar por ele.
Ela não tinha mentido para Maddy; não o amava antes disso tudo. Quando
aceitou sua proposta de casamento, fizera-o apenas porque lhe parecia ser o
passo seguinte em sua vida. Parecia ser a hora certa, ainda que não fosse o
homem certo. Paul, de fato, era uma pessoa difícil e egocêntrica. Estava sempre
na defensiva. O charme que a atraíra de início tinha sumido. Allie queria tanto
sair daquele relacionamento, que nem se importava com o fato de ele ficar
zanzando por aí quando se sentia furioso. E então, naquele verão, depois da
recaída, quando ela menos esperava, tudo havia mudado.
Naquelas viagens para Reading, Paul, com frequência, vomitava pela janela,
ou era preciso pararem no acostamento, ou numa loja de chás, porque ele ficava
tão enjoado que não conseguia suportar o movimento do carro. Mas, assim que
chegava à cidadezinha onde fora criado, ficava feliz. A casa era chamada de
Casa Lilás, e sua família morava lá havia anos; nada muito sofisticado, apenas
uma pequena e bonita casinha de campo, com um chalezinho nos fundos da
propriedade, rodeada por uma cerca de madeira. Havia, de fato, uma fileira de
lilases antigas e enormes no jardim. Algumas violeta, outras roxas, algumas de
cor creme. No verão, contudo, tornavam-se apenas uma cerca viva de folhas
verdes em forma de coração.
Paul era um ornitófilo, algo que Allie desconhecia até aquele momento.
Como se constatou depois, havia muitas coisas que ela não sabia. Por exemplo,
que ele era gentil. Assumia uma gentileza para falar com pessoas velhas sempre
que paravam para tomar um chá durante suas viagens, discutindo sobre o tempo
ou sobre a situação das coisas no mundo. Gostava de ir até uma banca de frutas
para comprar uma cesta de maçãs para sua mãe, quando eles vinham visitá-lo.
“Pegue as mais bonitas”, gritava para Allie, quando já não mais conseguia sair
do carro para escolher, ele mesmo, as frutas.
“Com certeza, essas são as melhores maçãs do mundo”, insistia quando ela
voltava para o carro. “Quando eu tinha dez anos, era vegetariano”, contou-lhe.
“Era mesmo?” Allie ficou surpresa. Ele gostava de um churrasco e de uns
assados.
“Meu avô era e eu queria agradá-lo. Era um senhor muito legal. Um médico.
Eu o admirava demais. Tudo que ele fazia, eu copiava.”
“Que mais você fazia quando tinha dez anos?”, perguntou Allie. Paul já
estava com problemas nos olhos.
“Eu sonhava com você”, falou.
“Que besteira…” E riu.
“Futebol”, disse. “Cozinhar.”
“Não.”
“Ah, sim. Panquecas de geleia, pudins e tortas de maçã. Ensopado de
legumes. Eu cozinhava bem. E sonhava, sim, com você”, completou. “Acredite
ou não, é verdade.”
Assim que chegavam, Paul se sentava na grama da Casa Lilás, empacotado
num suéter, um cobertor de lã cobrindo-o. Ele conseguia identificar quase todos
os pássaros pelo canto. Era fanático por coitadinhos, pássaros que as outras
pessoas consideravam peste: corvos, pegas e francelhos. Por outro lado, podia
ser bem sentimental; adorava pombos selvagens e dizia que tinham o canto mais
doce de todos. Na Casa Lilás, espalhava sementes e migalhas de pão e ficava
sentado na grama, o mais imóvel que conseguia, enquanto os pássaros ficavam a
seu redor.
“Ele tem uma audição perfeita”, contou Frieda a Allie, uma noite, enquanto
preparavam o jantar na cozinha.
“Eu não sabia disso”, falou Allie.
Embora a casa não fosse chique, era bastante agradável, com os detalhes de
uma época em que os construtores eram artistas. Tinha cornijas intrincadas e
frontões de lareira, emolduradas por corujas esculpidas; havia até uma pia de
cerâmica na cozinha e um fogão de seis bocas. Sobre uma peça de pinho, havia
um vaso enorme de flores tiradas do jardim da cozinha. Tudo exalava um cheiro
doce.
“Ele deveria trabalhar com música”, falou a mãe de Paul.
Ela estava cortando legumes na pia, quando, de repente, parou; parecia ter se
recolhido para o silêncio. Frieda se inclinou, sem falar nada, e caiu de desespero.
Soluçava sem emitir nenhum som, tampouco derramando lágrimas, e a torneira
continuava aberta.
Allie se aproximou da mãe de Paul e abraçou-a. Sentia que só elas duas
conseguiam entender aquilo. Só elas sabiam o que era ver Paul sentado no
jardim, sumindo aos poucos.
“Isso não pode acontecer com ele”, falou Frieda.
Havia pedaços de cebola e cenoura na pia. Quando Allie fechou um pouco os
olhos e espiou o cômodo, através do vaso de lilases cortadas, tudo parecia roxo.
“Sinto muito, sinto mesmo”, disse Allie.
“Como posso viver neste mundo sem ele?”, lamentou-se Frieda. “Ele não é
como outras pessoas, sabe? Ele esconde sua essência, porque pode ser
facilmente magoado. E agora é o fim. Não há mais volta.”
Ficaram lá chorando, então se recompuseram e voltaram a preparar o jantar.
Eram parecidas nesse sentido; mulheres que aproveitavam o máximo das coisas,
até mesmo os próprios erros. Naquela noite, cozinharam um dos pratos favoritos
de Paul. Picadinho de carne, mas que ele não conseguiu nem dar uma garfada.
Pesado demais, ainda que fosse sua comida favorita. Adorou sentir o cheiro e
gritou da varanda: “Graças a Deus que não sou vegetariano, minhas queridas”.
Mas, às vezes, o aroma de uma coisa lhe bastava; ele nunca conseguiria digerir a
carne. Frieda também preparou creme de ervilha. Isso foi melhor. Talvez
conseguisse dar umas colheradas. Arroz com açafrão. Ele amava a cor e era
apaixonado por cozinha indiana. Uma musse de morango com creme. Só ver a
sobremesa já lhe era suficiente. O pai de Paul o ajudou a entrar de volta em casa;
ele estava muito fraco para se sentar à mesa de jantar e assim foi até o sofá na
varanda e esticou-se lá, exausto da viagem feita pela sala.
“Mãe, não posso acreditar que você preparou tudo isso!” Allie o escutou
falando quando Frieda levou seu jantar numa bandeja. Ela o adorava por isso,
pela forma como gostava de seus pais e de pessoas idosas em geral, pela
educação que ela não conhecia até então, pela forma como se animava ao falar
de futebol, de seu avô e daquela casa onde fora criado. Finalmente, ela o amava,
quando já era tarde demais. Ele nem sequer tinha energia para sair do sofá.
“Você não precisa ser tão boa comigo”, disse para sua mãe. “Não mereço isso.”
Nessas visitas, dormiam juntos numa cama de solteiro no quarto de
hóspedes. Antes era o quarto de Paul, e todos os seus pertences ainda estavam lá,
troféus e placas. Sempre pedia que deixassem a janela aberta para que pudesse
escutar os pássaros.
“Foi aqui que sempre sonhei com você”, disse a Allie quando foram para a
cama.
“Mentiroso”, respondeu. E o abraçou, com muito cuidado.
“Passei toda a minha vida olhando pela janela, querendo fugir, e agora tudo
que quero é ficar aqui novamente.”
ALLIE NÃO TINHA dúvidas de que Frieda sabia que a hora do falecimento de
Paul estava próxima. Trabalhou como enfermeira na área de oncologia, e seu pai
fora médico rural. Assim que lhe deram o diagnóstico, sabia que seria difícil
uma recuperação. Frieda não questionou o fato de Allie e Paul se casarem
naquele mesmo dia. Apenas perguntou o que podia fazer para ajudar. Allie
sugeriu que trouxesse flores. Frieda desejava que fosse a temporada de lilases;
desejava que tivesse mais tempo. Mas sempre fora muito prática. Acordou o
marido, que cochilava, e falou: “Bem, precisamos nos despedir”.
Allie telefonou para o escrivão-superintendente, que iria realizar a cerimônia,
e desculpou-se por precisar dele com tanta urgência. Então ligou para sua mãe
no hotel e pediu que seus pais viessem o mais rápido possível.
“Não traga ninguém”, disse Allie à mãe. “Não consigo lidar com ninguém
mais.”
Quando terminou de fazer os telefonemas, o doutor Crane apareceu e sentou-
se a seu lado, pegando-lhe a mão. Ele sabia que seria naquele dia.
“Só se fosse muito burra, eu não saberia”, falou Allie. “Quero dizer, a mãe
dele foi enfermeira e disse-me que a situação era terrível. De qualquer forma,
trouxe a roupa do casamento. Mas não peguei um vestido com véu e todas
aquelas rendas. Isso seria babaquice.”
“O amor não tem lugar no aqui e agora”, falou doutor Crane.
Allie olhou para ele, surpresa. Teria ela dito que amava Paul ou ele
simplesmente sabia? Era uma coisa engraçada para um médico dizer. Talvez ela
não tivesse escutado direito. Não conseguira dormir nem um segundo à noite.
Trajava calças largas, uma camiseta preta e sandálias. Estava quente, mas Allie
estava com um suéter cinza jogado sobre a camiseta. Sempre que estava cansada,
como naquele momento, sentia frio. Seu cabelo claro estava amarrado num rabo
de cavalo. Perdera sete quilos sem fazer nenhum esforço. Isso nunca lhe
acontecera. Nunca havia se sentido assim.
“Mas estou vivendo esta situação”, respondeu ao médico.
Ficaram ali sentados por um tempo e, então, voltaram para o quarto de Paul,
para que o doutor Crane pudesse verificar os sinais vitais. Antes de sair, o
médico colocou uma mão no ombro de Allie e ela quase não percebeu.
“Obrigada”, conseguiu dizer.
Ela saiu correndo para usar o banheiro feminino. Não queria deixar Paul
sozinho nem um instante, assim, urinou rapidamente, lavou as mãos e voltou
logo para o quarto. No hospital, não havia noite ou dia definidos, mas era aquele
período entre turnos de funcionários, portanto estava silencioso. O corredor
parecia um mundo no cosmos, algum lugar entre universos. Allie parou do lado
de fora do quarto de Paul, da forma que costumava parar à porta do quarto de
sua mãe antes de ir para cama. Fechava os olhos e recitava um feitiço secreto
que inventara, um sobre o qual nunca contara para Maddy, para dissipar seus
medos. Tinha pavor de que alguém morresse sob sua vigília. Tinha sonhos com a
Morte e às vezes até escutava a voz dela. Isso a acordava e, nessas noites, sua
pele ficava fria. Pulava da cama e ia espiar o quarto de sua mãe para se certificar
de que ainda estava viva. Talvez isso que ela proferia fosse mais uma oração do
que um feitiço.
Farei qualquer coisa. Abrirei mão de qualquer coisa. Apenas não permita
que ninguém morra hoje.
Quando Allie voltou para o quarto, Paul estava agitado, virando para lá e
para cá, com dor. Algumas vezes, o fim era tão rápido que chocava, foi o que a
mãe de Paul disse a Allie. E doutor Crane também alertara para que não tivesse
nenhuma expectativa quando o câncer retornasse. A doença era assim:
misteriosa, persistente, criando regras próprias. Bem na hora que se começa a
acreditar que pode durar para sempre, tudo estoura. Não havia mais necessidade
de usar uma máscara; não havia mais nada que ameaçasse a saúde dele.
Paul ardia de febre. Estava lindo, iluminado por dentro. Uma estrela cadente.
Allie pegou uma toalhinha e colocou-a sobre sua testa. Conseguia sentir o calor
pelo pano dobrado.
Não permita que ele morra hoje.
“Minha querida Allie”, disse Paul, ao notar a presença dela no quarto, “vá
para casa. Deixe-me aqui.”
Allie se sentou na borda da cama. “Nós vamos nos casar”, falou.
“Você pode ir embora”, disse Paul. “Já cumpriu sua pena. Sou um homem
mau.”
“Sim, eu sei. Mas gosto de você mesmo assim.”
Ele não deu nenhuma risada, contrariando as expectativas dela. “Muito mau,
Allie. Fiz uma coisa que não posso lhe contar, mas fiz porque queria apenas
magoá-la. Não podemos nos casar.”
Ela descobriu quando viu sua irmã na loja de roupas; sempre conseguia
desvendar Maddy, ainda que fosse a única.
“Não importa o que você fez. Vamos nos casar hoje.”
“Pensei que fôssemos nos casar no dia 20.”
Allie não falou nada.
“Entendi”, disse Paul. “Minha amada.”
O homem no leito ao lado do de Paul, aquele pelo qual os visitantes tinham
de passar a fim de chegar à sua cama, havia morrido. O outro homem atrás da
cortina, aquele próximo da janela, tivera a perna amputada. Era um jovem norte-
americano, um universitário de Nova Jersey cuja família logo chegaria. Mas, até
aquele instante, não recebera visitas. Quando Paul fechou os olhos, Allie foi ver
como estava seu colega de quarto, Rob Rosenbloom. Rob estava acordado.
Também recebia morfina na veia.
“Oi”, falou. “Como está?”
Rob tinha vinte e poucos anos. Era comprido e magro, com cabelo escuro
espetado e olhos azuis. Estudava na Escola de Economia de Londres quando
sentiu o caroço em sua perna. Era fanático por esportes e havia entrado numa
equipe do subúrbio da cidade, por isso achara que o inchaço fosse um músculo
estirado. Não era.
Contou a Allie que Paul falava sozinho o tempo todo. Estava perturbado,
mas Rob não lhe contou essa parte. Paul gritava à noite e Rob precisava ficar lá
deitado ouvindo tudo.
“Vamos nos casar agora de manhã”, falou Allie. “Aqui. Neste quarto. Sei que
parece uma imposição, mas espero que não se importe.”
“Lógico que não me importo.”
“Sim, bem, não haverá muita gente, portanto não devemos fazer muito
barulho. Apenas a mãe e o pai dele e os meus pais. Mas sei que vamos atrapalhar
para caramba a sua recuperação.”
“Ele sente muito por todas as coisas que fez”, falou Rob. Rob tinha um corpo
atlético, com exceção da perna, é lógico, e um rosto limpo, sem manchas.
Aparentava ser ainda mais jovem do que registrava sua identidade. Trabalhava
para uma empresa em Manhattan que permitira que fosse viver seis meses em
Londres, aceitando a bolsa de estudos que lhe fora oferecida. “Ele acha que não
merece você.”
“Você lê pensamentos?”, perguntou Allie. “Como sabe tudo isso sobre Paul?
Ele nunca fala nada sobre seus sentimentos.”
“Eu o escuto.” Rob olhava para ela como se a conhecesse. “Ele sente muito,
Allie.”
“Quer que eu pegue seu café da manhã? Posso chamar a enfermeira. O
mingau daqui é bom, embora eu não recomende os ovos.”
“Eu estou bem”, respondeu Rob.
“Sim, lógico. Eu também.” Allie riu. “Ambos estamos bem.” Seu nariz
escorria sem nenhum motivo aparente. “Nunca achei que fosse me apaixonar.
Não achava que fosse capaz disso.”
“É um dia bom para se casar”, falou Rob. “Se eu tivesse duas pernas, me
ofereceria para ser padrinho.”
Allie ficou abalada. Foi até Rob, inclinou-se e beijou-lhe a testa. Seu cheiro
era de menino, de alguém que não deveria estar numa cama de hospital.
“Ele sente tanto, que você não acreditaria”, falou Rob.
Quando Allie se levantou, seu nariz escorria e seus olhos derramavam
lágrimas em profusão. “Espero que não se importe.” Assoou o nariz. “Estou um
caco.”
Rob riu. “Acho que sou eu quem está em cacos.”
“Ah, sinto muito.”
“Não por isso”, disse Rob. “É agradável ter uma mulher bonita aqui…”
Allie ligou para a enfermeira para trazer o café de Rob.
“Paul está dormindo”, contou à enfermeira, que trouxera uma bandeja para
Paul também e então a deixara numa prateleira. Era uma refeição simbólica de
purê de maçã e um ovo cozido. Paul parou de comer assim que entrou no
hospital. Seu corpo se fechou involuntariamente, contara o doutor Crane: olhos,
sistema digestivo, músculos, ossos, sistema respiratório, cérebro.
Contudo, não era um sono real. Allie percebeu isso quando foi para a cama
ficar a seu lado. Era um sono dopado, um sono distante. Os olhos estavam
abertos. Era o último tipo de sono; quando não se está mais totalmente acordado,
e nunca mais estará. Estavam colados um ao outro. Paul falou alguma coisa, mas
Allie não conseguia escutá-lo, nem mesmo quando encostava a orelha em sua
boca. Achou que fosse algo sobre um pássaro-das-cem-línguas. Embora não
quisesse, ela havia se apaixonado. Qualquer informação sobre ele, por menor
que fosse – sua predileção por pombos selvagens, por exemplo –, agora parecia
o fato mais importante do mundo. Queria guardar esses fatos em sua memória
para sempre. Queria estudar pombos, seus hábitos, sua estrutura óssea.
“Hoje é nosso dia”, disse Allie a Paul. Sentiu um inchaço absurdo em sua
garanta. Como uma bola de golfe ou um pedaço redondo de osso.
Os pais dela chegaram primeiro. Pareciam arrasados. A mãe de Allie não
havia dormido e o rosto do pai parecia inchado e vermelho. Bob Heller era muito
comedido e fleumático. Se ele começasse a chorar, Allie ficaria destruída. Não
conseguia pensar em ninguém mais. Foi por isso que não convidou sua irmã.
Queria que tudo fosse muito simples. Era a única maneira de conseguir enfrentar
aquela situação. Um minuto de cada vez.
Lucy parara no apartamento da filha para pegar o terno de casamento da
noiva. Trouxera para Allie também um colar de contas azul-turquesa que
pertencera a sua mãe, um empréstimo. A novidade era um par de sapatos baixos
que Lucy comprara no caminho, ao entrar rapidamente na The French Sole, já
que Allie não tivera tempo para pegar os sapatos que pedira.
“Não pretendia me vestir com muita pompa. Ia apenas vestir isso”, disse
Allie sobre sua calça e o suéter. “Ninguém dá a mínima. Não precisamos mais
usar máscaras aqui. Já passou desse ponto.”
“Use o terno de casamento”, gritou Rob, por trás da cortina. Não conseguiu
evitar bisbilhotar. Estava a menos de um metro de distância.
“Quem diabos é esse?”, o pai de Allie queria saber.
“Rob Rosenbloom. Ele é de Nova Jersey. Ele não sabe que não é muito
educado ficar gritando num quarto de hospital. Sabe, Rob? Nós, americanos, não
temos educação.”
“Estou apenas tentando ajudar”, falou Rob. Os Hellers fizeram a volta para
se apresentar e desculpar-se por confiscarem o quarto.
Allie decidiu aceitar a sugestão de Rob; afinal de contas, ele era um
observador de fora e era bem provável que tivesse uma visão racional do que
parecia a Allie um comportamento insano. Um casamento num hospital… quem
fazia isso? Uma conversa com seus pais como se aquele fosse um dia qualquer e
estivessem discutindo sobre o guarda-roupas dela em vez de lamentar no leito de
Paul. Allie foi até o vestiário feminino. Tirou as roupas e ficou se olhando no
espelho. Uma mulher apareceu e ficou assustada.
“Vou me casar”, falou Allie.
Estava de sutiã, calcinha e meias de lã. Parecia muito desgrenhada para ser a
noiva de alguém. Seu terninho branco estava sobre o sofá. A mulher se
aproximou e a abraçou. Estar em um hospital era como estar em um front; não é
necessário ser próximo de alguém para conhecer essa pessoa. A vida de uma
pessoa era formada de medicamentos, xícaras de chá no refeitório, pesar e
desastre. Isso bastava.
“Deus a abençoe”, falou a mulher.
“Obrigada”, disse Allie, afastando-se.
Outra mulher foi usar o banheiro enquanto Allie continuava a se arrumar.
Quando saiu para lavar as mãos, Allie estava vestida. Tinha até penteado o
cabelo. A mulher fez um sinal de aprovação com a cabeça. “Muito bonita.”
Allie agradeceu e juntou suas roupas. Qualquer demonstração de gentileza
era muito poderosa. Voltou para o quarto de Paul. Os pais dele haviam chegado
enquanto Allie se vestia. Frieda estava sentada numa cadeira ao lado da cama.
Bill falava baixinho com o pai de Allie. Antes daquele verão, Allie nem sabia
que Paul telefonava para os pais todos os domingos. Podia notar a diferença
entre o trinado de um canoro e o canto de uma cotovia, já que Frieda lhe
ensinara. Era mimado e egoísta, mas também um filho obediente, que amava a
mãe e sempre tinha vontade de ir para casa, para a Casa Lilás. Diferentemente de
Allie, ele sabia amar uma pessoa.
“Você nunca irá encontrar outro homem como Paul”, disse Frieda a Allie
num daqueles fins de semana em que Paul não estava nada bem. “O amor pode
ser uma coisa complicada, mas também pode ser simples”, falou.
Allie rira. “Paul é uma pessoa muito complexa.”
“Mas amá-lo é bem simples”, comentou Frieda.
Allie escutou o que sua futura sogra lhe dissera. Para amar alguém tão
complexo, era preciso estar comprometida com essa única emoção – o modo de
amá-lo –, não importando o que acontecesse. Dessa forma, podia ser realmente
simples.
“Então é isso que vou fazer”, decidira Allie. A mãe de Paul, que parecera
distante quando haviam se conhecido, uma mulher cautelosa, que vira Paul
namorar dezenas de garotas, abraçou-a com força.
“Sinto muito por isso”, disse Frieda depois, envergonhada por sua
demonstração de emoção. “Juro que nunca vou chorar na frente de você
novamente.”
E não havia chorado, até aquele momento. Ver Frieda sucumbir foi demais.
Allie saiu do quarto de Paul e voltou para o corredor antes que alguém a visse.
Recompôs-se. Disse para si mesma que aquilo era uma peça de teatro em que ela
tinha uma personagem e que iria interpretá-la corretamente. Não ficaria histérica
nem sairia correndo, ou faria algo que pudesse magoar os pais de Paul. Parou
numa cabine telefônica, ligou para Georgia e solicitou que ela fosse uma
testemunha.
“Estarei aí em dez minutos”, falou Georgia.
Quando Allie voltou para o quarto, Frieda estava assoando o nariz. “Minha
querida”, disse. Frieda havia trazido um buquê de rosas brancas. E veio abraçar
Allie. “Lindo terno”, falou Frieda. “Perfeito.”
“Seda”, falou Allie. Parecia uma insanidade ter uma conversa normal.
“Pense em todos aqueles bichos-da-seda trabalhando ininterruptamente em
algum lugar. Agora você vai se casar. Paul será um homem casado.”
Pensar no que estava acontecendo foi devastador para Frieda e ela
desmoronou novamente. Parecia delirante. Sussurrou para o marido que havia
alguém encostado na parede. Aquilo que ela vira em sua infância. Seu pai fora
médico e ia de casa em casa. Frieda estava convencida de que era o Anjo da
Morte.
“Nós não acreditamos nisso, querida”, falou seu marido, com delicadeza.
“Nós acreditamos no além.”
A enfermeira entrou e expulsou todo mundo do quarto para que pudesse
cuidar de Paul.
“Sou enfermeira”, falou Frieda. “Eu posso ficar.”
“Com seu filho, não”, disse-lhe a enfermeira. “Não é uma boa ideia. A
senhora pode retornar assim que eu terminar. Vou ser rápida. Prometo.”
Não foi fácil convencer Frieda a sair.
“Vamos lá, vamos pegar uma xícara de chá”, disse seu marido. “Pedimos
para viagem e trazemos para cá, e aí ela já terá terminado.”
Antes de sair, Frieda se virou para Allie. “Acho que eles estão certos. Não
quero que você veja isso no dia do seu casamento. Venha conosco, Allie.”
“Eu estou bem”, respondeu Allie.
Afinal de contas, Allie já vira coisas terríveis. Vira sua mãe após a cirurgia,
incapaz de sair da cama. Vira as frágeis veias azuladas em seu crânio quando ela
tirou a peruca. Não havia como ficar desconsertada ou com nojo. Allie nunca
fora sensível; isso lhe fora privado. Quando os outros saíram, ela permaneceu.
Sentou-se ao lado de Paul e segurou-lhe a mão.
“Oi”, falou ele.
“Olá”, respondeu Allie.
A enfermeira, primeiro, trocou a roupa de cama. Fazia dias que ele vinha
defecando na cama. Era tão difícil movê-lo, que ninguém mais se preocupava, e
uma fralda podia esfolar sua pele; além disso, Allie não permitiria que fizessem
isso com ele. Nada de fraldas. Mesmo que ele não ficasse sabendo ou não tivesse
forças para se importar, ela cuidava dele. Ele não havia comido nada naquela
semana, assim não havia muita coisa em seu corpo, apenas um gotejamento
minúsculo, como o de uma raposa.
A intenção de Allie era dizer para ele, na suíte do Hotel Pulitzer em
Amsterdã, que estava tudo acabado. A senhora Ridge pagara a viagem. Por esse
motivo haviam ido de primeira classe. Allie tinha ensaiado o que dizer. Estava
pronta para se despedir, mas de repente surgiu uma garça sobre o poste ao lado
deles.
“Ele sabe que você escreveu sobre ele”, falou Paul. “E veio prestar sua
homenagem.”
Paul adorava a atitude dos holandeses em relação às garças. As pessoas
deixavam as janelas abertas, recebendo-as em suas residências. Ter uma garça
dentro de casa era sinal de sorte. Alimente-a com leite, pão e cerveja, e ela ficará
eternamente grata.
“Acho que devemos nos mudar para cá”, falou Paul. “Seríamos felizes em
Amsterdã. Moraríamos próximos do rio. Deixaríamos todas as janelas abertas e
permitiríamos que as garças voassem em nosso apartamento. Estaríamos dando
vida a seu livro.”

ALLIE OLHOU DIRETAMENTE nos olhos de Paul. Aquela era a vida deles agora.
A enfermeira o banhou um pouco e então foi cuidar do cateter. Paul fez uma
careta; dor extrema.
“Vou acabar com essa mulher”, falou.
Allie sorriu. “Se pudesse, é bem provável que tentaria fazer isso.”
“É melhor você ir embora.” Os olhos de Paul estavam abertos.
Ele estaria realmente acordado? Allie sempre torceu para se casar com um
homem de olhos azuis, e aí conheceu Paul. Ele deve ter falado com sua mãe
sobre as rosas que ela levara ao Palácio de Kensington. Deve ter dito: “Quando
eu me casar com aquela mulher, ela precisa ter rosas brancas”.
“Aposto que é verão”, falou Paul. “Faça o que é melhor para você: vá
embora.”
“Acho que vou ficar um pouco. Sabia que vamos nos casar?”
“Vá embora e não se sinta culpada.”
“Não posso”, falou Allie. “Eu me apaixonei por você.”
“Pronto”, falou a enfermeira. Olhou o soro e aumentou a dose de morfina. Os
olhos de Paul se fecharam.
O escrivão chegou e prometeu fazer uma cerimônia breve. Quando Georgia
entrou, ela abraçou Allie e, então, segurou o buquê de flores para que a amiga se
ajeitasse na cama com Paul, de forma que pudessem ficar próximos enquanto a
casamento se desenrolava. Quando o escrivão fez o pronunciamento de que
ambos estavam livres para se casar legalmente, Allie assinou o contrato de
matrimônio. O pai de Paul segurou a mão dele e tentou ajudá-lo a fazer um X,
mas no final Bill teve de assinar o nome do filho. Lucy e Bill depois assinaram
como testemunhas. Frieda precisou se sentar e deixou a cabeça cair.
E então acabou; estavam casados.
“Fico feliz por você ser a garota por quem ele se apaixonou”, disse Frieda,
quando conseguiu se recompor. “Já lhe disse isso? Devia ter dito antes.”
Do outro lado da cortina, Rob Rosenbloom chorava em silêncio, mas os
outros fingiram não escutá-lo. Allie colocou a aliança de ouro 22 quilates que
haviam escolhido, e fez o mesmo com a aliança de Paul. O anel era grande
demais, assim foi preciso colocar no dedo médio. Foi ele quem escolheu o de 22
quilates. “Tem de ser ouro de verdade”, falara na joalheria. “Você não merece
essa porcaria de 18 quilates.”
Georgia se aproximou para abraçar Allie, assim que ela e Paul haviam se
tornado oficialmente marido e mulher. Ainda segurava as rosas brancas da
amiga. “Extraoficialmente, fui eu quem pegou o buquê. Ou seja, sou a próxima.”
Rob solicitara a uma enfermeira que comprasse um bolo numa confeitaria
das redondezas. O bolo foi entregue em fatias finas sobre pratos plásticos da
lanchonete. A família abriu a cortina para que Rob pudesse participar.
“Não sabia que havia uma pessoa linda escondida aqui”, falou Georgia.
Rob deu um sorrisinho e aceitou seu pedaço de bolo. Seu nariz e olhos
estavam vermelhos. Havia soro sendo injetado em seu braço. Às vezes, acordava
no meio da noite convencido de que sua perna ainda estava lá, contudo
dormente. Todos elogiaram o bolo que ele pedira. Era um bolo amarelo coberto
de algodão-doce. Simples, assim como Allie desejava.
“Como você sabia?”, perguntou ela a Rob.
“Sou sensitivo”, respondeu, mas ele escutara todas as coisas que ela queria,
no meio da noite, quando Paul falava durante o sono, em meio a dor.
Allie deu uma única mordida no bolo, e então Paul gemeu e ergueu os
joelhos.
Allie se lembrou da noite em que seguira sua irmã até o brejo. Para avistar o
garça-azul, teve de entrar na água. “Leve-me para longe daqui”, murmurou.
Ficaram se olhando por um bom tempo e, naqueles instantes, Allie acreditou que
ele a levaria consigo. Mas, quando saiu voando, deixou-a lá, parada na água,
congelando.
“Acho que todos merecemos um descanso”, falou Lucy Heller. “Reservei um
quarto para vocês em nosso hotel”, disse aos pais de Paul, que agradeceram, mas
disseram que estavam bem. A querida amiga deles, Daisy Ridge, tinha uma casa
em Kensington e os convidara para ficar lá, porém, para falar a verdade,
preferiam dormir no corredor do hospital. Frieda não estava disposta a
abandonar o filho.
“E se ele precisar de mim?”, perguntou a Allie. Ela parecia uma garotinha
falando.
“Lógico que vocês podem ficar. A enfermeira vai lhes trazer cobertores e
tudo o mais que precisarem.”
Os pais de Allie lhe deram um beijo de despedida. Seu padrasto – Bill agora
se transformara nisso – sugeriu que fosse para casa dormir algumas horas, mas
Allie não podia fazer isso. Frieda compreendeu.
“Vá pegar um chá, não vai demorar muito. Ou uma sopa.”
Frieda havia trazido um pequeno gravador e uma fita com cantos de
pássaros. “Achei que ele pudesse gostar disso.”
Allie abraçou sua sogra. Não queria ir, mas Georgia insistiu.
“Só uns minutos”, prometeu Georgia.
Allie foi até a lanchonete conduzida por Georgia, deixou que Frieda ficasse
de vigia. A cada minuto. O almoço de casamento que teriam no Orangery seria
salmão frio com creme de leite, salada com framboesa, nozes e molho vinagrete,
terrina de legumes assados, cordeiro e batatinhas. Georgia acabou tendo de pedir
um bule de chá e dois pedaços de bolos de passas amanhecidos, com uma
cobertura respingada, uma tigela de sopa de legumes e biscoitos de trigo.
Ignoraram a sopa e ficaram com o chá e com os pedaços de bolo
terrivelmente açucarados. Allie deu duas mordidas. Georgia se ofereceu para
passar a noite com ela. Durante todo esse tempo em que Paul ficou no hospital
para tratamento, Georgia costumava deitar-se na cama com Allie e abraçar a
amiga que chorava. Às vezes, Georgia chorava com ela. Era a única que sabia
que, antes do diagnóstico, Allie havia decidido terminar com Paul. Depois disso,
nunca mais tiveram essa conversa sobre Allie querer deixá-lo.
Houve vezes em que Georgia pensou em alertar Allie sobre sua irmã. Ela
vira Paul e Maddy juntos no táxi. Vira a expressão no rosto de Maddy e
percebeu. Para falar a verdade, Georgia nunca fora muito fã de Paul.
Considerava-o superficial, bonito demais, egocêntrico demais. Paul nunca se
dignou a fazer uma única pergunta para Georgia sobre sua vida; duvidava que
ele soubesse o que ela fazia na editora ou até que tivesse ciência de que
trabalhara com Allie em A esposa do garça. Ela foi diretora de arte de muitos
livros infantis, tendo recebido diversos prêmios, mas A esposa do garça era seu
favorito. Parte do charme do trabalho artístico era o belo layout que Georgia
criara. Era possível ler a história de duas formas: do início para o fim, o garça
retornava para sua esposa e o mundo dos céus. Do fim para o início, ele ficava
com seu único e verdadeiro amor na terra.
“Acho que eu devia passar a noite aqui com você”, ofereceu Georgia.
“Não é preciso. Mesmo. Meus sogros ficarão…”
As duas riram com isso. Enfim, sogros. Por mais que respeitasse Frieda,
Allie sabia que, em algumas questões, teria de ceder para a mãe de Paul. Frieda
queria que Paul fosse enterrado com o restante da família, próximo de Reading,
e Allie nunca contestaria isso, ainda que acabasse ficando bem longe. Não
conseguia nem imaginar a que distância ficava dali.
“Agora terei problemas ‘sogrísticos’ com o marido.” Allie tentou brincar,
mas estava prestes a chorar.
“Querida”, falou Georgia, “Frieda a adora. E tem bons motivos para isso.”
“Não fique me dizendo coisas gentis”, alertou Allie. “Vou ter um ataque de
nervos se o fizer.”
Despediram-se no corredor. “Dê-lhe um beijo por mim”, falou Georgia.
“Você nunca teve vontade de dar um beijo em Paul.”
“Referia-me ao vizinho dele, com uma perna. É uma graça.” Georgia hesitou.
“Devo mesmo ir embora?”
“Eu me viro”, disse Allie. “Não tenho escolha.”
“Bem, mas não é exatamente sobre amor que estamos falando aqui”,
comentou Georgia. “Certo?”
Allie abraçou a amiga, não permitindo que fosse embora.
“Mas eu o amo”, respondeu.
“Jesus, Allie. Não tinha ideia.” Georgia ficou estupefata. “Você não tinha me
contado, querida.”
“Eu não sabia.”
“Merda de amor”, disse Georgia.
“É meu destino.”
Allie pegou a escada de volta para o quarto de Paul. Depois que todo mundo
se foi, a mãe de Paul desmoronou. A enfermeira lhe deu um medicamento contra
a ansiedade. A fita com cantos de pássaros estava tocando. Allie se lembrou dos
momentos sentada na grama com Paul ao lado da Casa Lilás. Agora lhe parecia a
coisa mais importante que fizeram juntos em todo aquele relacionamento.
“Frieda”, falou Allie.
“Desculpe-me”, disse Frieda. “Estou um caco.”
“Faz dois dias que ela não dorme”, explicou o pai de Paul.
Os sogros foram para a sala de visitantes para se deitar um pouco. Havia
cobertores e travesseiros para as pessoas que faziam vigília. As enfermeiras eram
incrivelmente gentis. Aquela era a hora em que os minutos ficavam mais lentos.
Allie desligou a fita dos cantos de pássaros. Do outro lado da cortina, Rob havia
adormecido. A sonda de morfina dele e a sonda ligada a Paul emitiam ruídos em
ritmos alternados, mas aquilo de alguma forma era calmante. Allie tirou os
sapatos, aqueles que sua mãe havia escolhido para ela, de manhã, na The French
Sole. Tirou a jaqueta, ficando só de corpete e saia, e subiu na cama. Paul estava
encurvado, respirando muito lentamente.
“Quer que eu conte a história do garça e sua esposa?”, sussurrou Allie.
“Sei de cor.”
“Mas não sabe o que aconteceu depois que ele deixou a esposa na terra para
ir atrás da esposa garça. Quando voou para os céus, bem acima das árvores.”
Tentou abraçá-lo, mas ele gemeu com o contato, assim Allie preferiu apenas
ficar próxima.
“Ela colou penas em todo o seu corpo. Aprendeu sozinha a voar. E foi atrás
dele, para que pudesse vê-lo uma última vez. Nada poderia impedi-la. Precisava
se despedir. Amava-o acima de tudo e contrariando a razão, ainda que fosse
tarde demais.”
Allie começou a chorar. Não queria incomodar Rob na cama ao lado; não
queria causar desordem. Tentou diminuir o ritmo de sua respiração para
acompanhar a de Paul. Mais cedo, o médico dissera que Paul não duraria muito
tempo. Como é que os médicos sabiam coisas assim? Ou seria porque o soro de
morfina era colocado num nível tão alto, devido à dor intensa que a pessoa
sentia, impedindo-a de sobreviver àquela quantidade de substâncias químicas
jogadas dentro de seu corpo?
“Nunca permitirei que se vá”, falou para Paul.
“Vá embora”, acreditou ter escutado sua voz.
Allie chegou o mais próximo possível de Paul sem tocá-lo. Não precisavam
mais se tocar; estavam unidos. Adormeceu ao lado dele. Sonhou que estava com
um vestido branco e que era seu casamento. Podia ver o brejo e seus pés nus
estavam enlameados. Aquela era a hora, sabia, naquele exato momento.
Acordou com frio, no escuro. Allie não sabia onde estava, mas sabia quem
estava a seu lado. Saiu da cama e foi até o outro lado. Sentou-se numa cadeira
dura de plástico. Viu que a aliança de Paul havia caído. Os olhos dele estavam
abertos, mas embaçados. Só notou o que se passava quando aconteceu. Havia
pássaros do lado de fora, bem no centro da cidade. Ele emitiu um ruído com a
garganta e esse som penetrou Allie de uma forma bem profunda e arrebatadora.
Era aqui e agora. O momento exato. Paul abriu a boca e soltou uma respiração
estranha, como se seu espírito o estivesse abandonando. Allie tentou pegá-lo,
mas escorregou entre seus dedos. Era fino demais, como tentar pegar a luz com
um par de mãos pesadas ou peneirar água corrente no escuro.

O CEMITÉRIO FICAVA a um quilômetro da Casa Lilás. Todos das famílias Rice


e Lewis eram enterrados ali. Era possível ver os campos de colza amarela e as
montanhas baixas onde Frieda e seu pai caminharam até a semana em que ele
morreu. Frieda ficou satisfeita ao saber que a cova de Paul seria bem ao lado da
do avô dele. Às vezes, encontra-se consolo em coisas muito estranhas.
“Ouça isso”, disse Frieda a Allie, que agora era sua nora. O arrulho de
pombos nas árvores. “Ele teria amado isso.”
Allie usava um vestido preto que pegara emprestado de Georgia. Havia
perdido tanto peso que precisou fazer uns ajustes por dentro, com alfinete, na
costura de trás. Allie e os Rices concordaram em fazer uma cerimônia simples ao
lado do túmulo. Allie ficou entre seus pais. Dissera aos amigos do casal que não
fossem de Londres para lá e enviou um bilhete para Maddy explicando que seria
uma cerimônia particular. Paul fora muito discreto a respeito de sua doença;
queria dar a ele esse silêncio. Havia uma amiga da família, Daisy Ridge, com
uma acompanhante, uma enfermeira que a ajudara a andar pelo terreno íngreme.
Como a senhora Ridge não tinha herdeiros, considerava Paul um neto. Foi um
dia terrível para ela; na metade do serviço, precisou se recompor e sentar-se num
banco.
“Não devíamos ter permitido que Daisy viesse”, falou Bill Rice. “É muito
doloroso para ela.”
Allie foi se sentar ao lado da velha senhora. Ficaram de mãos dadas,
escutando o pastor e os pássaros nas árvores.
“Que garoto maravilhoso…”, disse a senhora Ridge. “Um brilho na vida da
mãe dele.”
Allie deixou a cabeça cair. Era uma tola; havia perdido tempo demais.
Havia dois motoristas aguardando para levar as famílias de volta para casa. A
senhora Ridge subiu ao quarto de hóspedes para dar um cochilo, antes de voltar
para Londres. Os troféus de futebol de Paul ainda estavam nas prateleiras. Havia
várias fotografias dele, nas diversas equipes pelas quais competiu. Allie ajudou a
enfermeira, cujo nome era Bernadette. Apoiaram a senhora Ridge no braço e
conduziram-na até a cama.
“Quando saíamos para almoçar, ele nunca me permitia pagar”, falou a
senhora Ridge. “Telefonava-me duas vezes por semana. Costumava dizer:
‘Adivinha quem é?’, como um garotinho, como se eu não reconhecesse sua
voz.”
Allie ficou lá enquanto a senhora Ridge dormia, para que a enfermeira
pudesse sair. Foi um dia longo. Estava quente e úmido. A viagem de Londres
fora cansativa e a volta seria ainda pior. Com a noite caindo, a estrada pareceria
infinita e escura. Allie olhou as fotografias de Paul quando era garoto. Tinha o
mesmo sorriso de sempre, um pouco sorrateiro e muito charmoso. Ela foi até a
janela e ficou observando os campos que ele costumava ver pela manhã assim
que saía da cama.
A senhora Ridge dormia. Havia colocado Paul como único herdeiro de suas
propriedades, mas teria de modificar agora. Deixaria para o colégio feminino
que as mulheres de sua família sempre frequentaram. Plantariam jardins e os
nomes de todas as mulheres da família Ridge seriam gravados numa placa de
bronze colocada em um muro de pedras. Também haveria um jardim em
homenagem a Paul, um repleto de plantas que atraíssem pássaros: girassóis,
groselhas, ameixeiras.
A senhora Ridge estava tão silenciosa que Allie se inclinou para se certificar
de que ainda respirava. Respirava, apenas com muita delicadeza. Sua pele era
fina como papel e ela parecia muito branca ao lado do cobertor azul. A senhora
Ridge precisava descansar. Allie desceu, mas não teve nenhum ânimo para ir à
varanda onde todos almoçavam. Saiu e foi caminhando pela estrada. Sentia que
teria forças para andar quilômetros. Talvez, se o fizesse, conseguiria retroceder
no tempo, da mesma forma que seu livro podia ir para trás caso começasse e lê-
lo da última página. Era assim que os leitores poderiam encontrar um final feliz.
Era um segredo, embora a maioria dos leitores soubesse disso. Ela andou, e
andou, mas ainda era a mesma estrada, as mesmas árvores, o mesmo céu e os
campos amarelos.
Depois de um tempo, Allie começou a voltar. Nada havia mudado. Ainda
estava naquele presente. Um carro que passava buzinou e alguém acenou para
ela, mas, em Reading, Allie conhecia apenas os Rices.
Sua mãe aguardava na entrada da Casa Lilás.
“É um local bonito”, falou Lucy. “Sabia que há uma casa lá nos fundos? Um
lugarzinho chamado Cercado, onde Frieda e Bill foram morar assim que se
casaram.”
“Paul queria que nos mudássemos para lá.” Allie estava ao lado de sua mãe.
“Disse que seria um lugar perfeito para eu escrever. Falei-lhe que era louco.
Nunca conseguiria viver num lugar tão afastado.”
Atravessaram o gramado, a pé, até o Cercado e espiaram pelas janelas. Era
um lugar encantador. Rodearam a casa até encontrarem uma pereira retorcida.
“Eu devia ter sido uma mãe melhor”, falou Lucy.
“Mãe, nada que você fizesse deixaria Maddy satisfeita. Ela é do contra.”
“Não estou me referindo a Maddy, mas a você. Não queria que você
precisasse de mim e, então, ficasse destruída da mesma forma que fiquei quando
perdi minha mãe. Você se tornou muito independente. Era tão capacitada. Ela
sempre teve inveja disso. Ela é como eu. Vulnerável. Incapaz de demonstrar as
mágoas.”
“Quer que eu a perdoe?”, perguntou Allie. “Sabe o que ela fez?”
“E isso importa?”, disse Lucy. “Acho que ela machucou mais a si mesma do
que jamais conseguiria machucar você. Está hibernando naquele quarto de hotel,
devastada. Ela precisa que você precise dela. É isso que ela sempre desejou.”
Foram espiar pela janela da cozinha. Havia uma pia antiga de pedra-sabão. O
piso era de pinho nivelado, com as tábuas desgastadas após tantos anos de pés
machucando-as. Allie achou que Paul estava certo; poderiam ter sido felizes ali.
“Você é uma boa mãe”, falou Allie.
Lucy colocou o braço na cintura da filha. Não fora, mas se esforçou para ser.
“Teria feito qualquer coisa por você.”
“Eu sabia disso”, falou Allie.
“Mas Maddy, não.”
Allie se virou. Podia ver a vida que havia dentro da casa, da forma que
poderia ter sido. Compreendia o arrependimento. Havia pássaros nas cercas; não
podia vê-los, mas podia escutá-los gorjeando. É isso que acontece quando se
apaixona por alguém. Fica-se no jardim ouvindo os cantos dos pássaros. Olha-se
pelas janelas.
“Frieda deve estar tentando imaginar aonde fomos”, disse Lucy.
Andaram pela grama, de braços dados.
“Eu poderia ter vivido aqui”, falou Allie.
Frieda estava à porta dos fundos da Casa Lilás. Acenou para elas, que
acenaram de volta. Usava um avental azul sobre o vestido preto de luto. Ficara
acordada a noite toda preparando uma carne assada, de forma que ninguém
ficasse com fome.
“Como vou conseguir fazer isso?”, perguntou Allie à mãe.
“Faça o melhor que puder”, respondeu Lucy. “Apenas isso.”

TODOS FORAM EMBORA antes do anoitecer, inclusive os pais de Allie, que


voltaram para Londres com a senhora Ridge e a enfermeira num carro com
chofer. Allie estava no jardim, onde os lilases eram tão altos, que ficava
impossível ver a estrada. As folhas estavam empoeiradas, como sempre ocorria
em agosto, quando a temperatura subia. Bill fora para a cama, mas Allie e Frieda
não sentiam vontade de entrar; sentaram-se nas cadeiras de madeira, escutando o
chamado dos pássaros. Ainda havia resquícios de céu azul, embora já fossem
quase dez horas. O ar estava tão pesado e denso, que cada segundo parecia uma
eternidade.
“Meu pai me dizia que havia três anjos”, falou Frieda. “Ele era um homem
muito sério, prático. Chegava sempre na hora exata. Era alguém com quem se
podia contar. Dizia que havia o Anjo da Vida, o Anjo da Morte e ainda o
Terceiro Anjo.”
“Ouvi falar dos dois”, disse Allie.
“Quando meu pai ia atender algum paciente em sua casa, era acompanhado,
no banco de trás, ou pelo Anjo da Vida ou pelo Anjo da Morte, mas ele nunca
sabia qual era até chegar a seu destino. Mesmo assim, contava que muitas vezes
era surpreendido. De vez em quando era difícil apontar a diferença entre os
dois.”
Bebiam chá gelado, que Frieda havia preparado. Allie podia ver as chaminés
do Cercado, a casa em que ela e Paul deveriam estar vivendo naquele exato
momento.
“E o terceiro?”
“Bem, este é o mais curioso. Não se pode nem dizer se ele é um anjo ou não.
Você pode acreditar que está fazendo uma gentileza a ele, que é você quem está
cuidando dele, porém, o tempo todo, é ele quem está salvando sua vida.”
Allie começou a chorar. Desejava estar na cozinha do Cercado, esforçando-
se para preparar uma torta de ameixas ou cortando maçãs para um bolo.
Desejava que Paul estivesse no sofá, gritando seu nome, zombando de seus dotes
culinários.
“Não conseguimos imaginar nem metade do que ele é capaz”, falou Frieda.
“A maneira como ele nos encontra quando menos esperamos. O modo como ele
altera nossa vida.”
“Não, não podemos”, disse Allie.
“Fico feliz por ter decidido passar a noite aqui.”
Entraram juntas; lavaram, secaram e guardaram os pratos. Allie ficou
aguardando Frieda subir até seu quarto e, então, apagou as luzes. Mesmo tarde,
os pássaros ainda cantavam, confusos pelos dias compridos de verão. Allie ficou
esperando na janela, torcendo para que ele passasse por lá, no caminho para
onde quer que fosse. Mas acabou caindo no sono na cadeira, e, na manhã
seguinte, quando acordou e observou os campos amarelos ao lado, da estrada,
viu que ele tinha ido embora.
FICOU SOBRE OS degraus do Orangery. Era o dia de seu casamento, aquele que
deveria ter tido. Os portões do Palácio de Kensington foram abertos, mas o
restaurante ainda estava fechado. Allie vestia o mesmo terno branco de seda.
Havia uns pitarroxos na grama. A sebe estava tão verde, que parecia preto. O céu
estava num tom azul pálido de verão, com apenas poucas nuvens altas. Antes, o
dia do casamento parecia muito distante; mas lá estava ele. Não chegara a
cancelar as reservas no Ritz de Paris. Tinham bilhetes de trem para aquela tarde.
Os bilhetes estavam na bolsa de Allie, com seu passaporte. Apesar do que dizia
para si mesma, tentando se convencer, teve esperanças até o fim, assim como a
noiva do garça no brejo, aguardando seu amado, segura de que ele retornaria.
Allie não conseguia parar de pensar na aparência dele no leito do hospital,
encurvado, magro demais, sob um lençol branco e uma manta. Hoje, o ar estava
parado e úmido. Mais tarde, o dia ficaria mais claro, mas isso não parecia
importar. Ela era uma viúva.
Os turistas começaram a chegar ao palácio. Havia uma exposição de vestidos
da princesa Diana, todas aquelas roupas bonitas que ela usava. O vestido azul-
celeste de seda com que dançara, certa noite, com uma estrela de cinema. O
bolero rosa coberto com pequenos enfeites espelhados, que usara na Índia. Um
zelador, pegando lixo, fez uma careta para Allie, incomodado por encontrá-la
sentada no pátio do restaurante fechado com seu terno de seda, mas não falou
nada. Allie tentava decidir o que fazer. A porta de sua vida havia se fechado.
Estava em seu futuro, sozinha. Nada havia acontecido como imaginara.
Olhou além da cerca do jardim. Uma mulher andava em sua direção. Allie
telefonara e deixara uma mensagem na recepção do Lion Park. Dissera que
queria que sua irmã viesse ao Orangery usando o vestido de madrinha. Fora uma
boa escolha. Era o vestido perfeito. Maddy atravessara todo o parque. Sentou-se
ao lado de Allie. Não sabia o que dizer. Estava tremendo no vestido azul de seda,
o qual ela acreditava não ter o direito de usar.
“A vista daqui é bonita, não?”, perguntou Allie. Ficaram olhando o jardim.
No final da história, o garça levava um tiro de caçadores que acreditavam tratar-
se de um corvo. A esposa do garça e a esposa dele na terra enlutaram juntas.
Nenhuma delas suportava ficar sozinha.
“Sinto muito”, disse Maddy. Lágrimas escorriam pelo seu vestido; sabia que
seda molhada não tinha mais salvação, mas não conseguiu evitar. “Sinto muito
mesmo. Fiz tudo errado.”
Havia uma fila se formando na entrada do Palácio de Kensington. A cerca
viva exalava um cheiro picante. Allie se lembrou das rosas que comprara para
Diana na manhã em que conhecera Paul, como estavam perfeitas mesmo naquele
calor de verão… Recordou o dia em que ela e Maddy tentaram quebrar a
maldição que afligia sua mãe. Nunca contara a Maddy que sua palavra secreta
era o nome da sua irmã.
“Como as pessoas continuam a viver?”, perguntou Allie. “É isso que não
consigo entender.”
“Mas é você a corajosa.”
“Eu? Não seja besta. Era você. Foi você quem subiu até aquele ninho na
árvore. Foi você que fez o que bem entendia. Você telefonou para aquela mulher
com quem papai morava. Sempre fez o que achava que devia fazer. Até que foi
tarde demais.”
“Devíamos ir olhar os vestidos da Diana”, sugeriu Maddy. “Para distrair a
cabeça…”
“Eu já os vi”, falou Allie. “Sei como são. Tenho uma ideia melhor.”
Fazer uma viagem para Paris. E não havia como tirar essa ideia de Allie.
Fizeram uma parada no hotel de Maddy, para que ela pegasse o passaporte e a
bagagem e, então, foram direto a Waterloo. No táxi, Allie jogou a cabeça para
trás. Compraria roupas em Paris. Nenhum de seus pertences parecia
insubstituível. Se era mesmo verdade que é possível ler uma coisa tanto de frente
para trás quanto de trás para frente, ela escolhera sua direção. Sua mãe e Paul
entenderiam.
“Tem certeza de que não quer mudar de ideia?”, perguntou Maddy quando
chegaram à estação de trem. “Não vou culpar você por isso.”
Allie se lembrou do que o médico lhe dissera no hospital. O amor não tem
lugar no aqui e agora. Era a isso que Frieda se referia quando disse que era fácil
amar Paul, não importando quão complicado ele fosse. Não é preciso pensar
sobre as coisas; apenas agir.
“Você é a única que entende como me sinto”, disse à irmã.
Em Waterloo, Allie se ajeitou num banco, enquanto Maddy foi telefonar para
o hotel de seus pais. Iam partir naquela tarde, e Maddy pretendera viajar de volta
com eles. Comprara sua passagem para Nova York e não era reembolsável.
Nunca mais recuperaria o dinheiro. Não que se importasse com isso.
“Tem noção de como estávamos assustados?”, falou Lucy quando atendeu o
telefone. “Estávamos malucos. Tínhamos de ir para o aeroporto em uma hora e
não conseguíamos encontrar nenhuma de vocês duas. Ligamos para a polícia.”
“Não se preocupe”, falou Maddy. Precisou gritar para ser escutada. “Estamos
sãs e salvas. Assim que terminarmos nossa viagem, voltaremos para casa.”
Era hora de partir. Havia muita gente; o fim de semana seria fascinante, e
ninguém queria perder a oportunidade de passar os últimos dias do verão na
França. Felizmente, um carregador ajudou Allie e Maddy a encontrar seus
assentos assim que o trem saiu da estação. Logo estavam viajando a 250
quilômetros por hora. Pela janela, viam riscos de paisagem em azul, preto e
verde. Podiam ver o borrão de Londres, que estavam deixando para trás.
Estavam confortáveis em suas roupas de casamento. Seda era perfeita para
qualquer temperatura e agradável para viajar. Não conversaram sobre o passado,
em vez disso, falaram sobre as pessoas que estavam no trem. Inventaram
histórias sobre elas e depois que começaram não conseguiram mais parar.
Tentaram adivinhar quem estava apaixonado e quem estava magoado ou
arrasado, quem cometera um assassinato e quem salvara uma vida.
Tudo estava amarelado no parque. Quando chovia, as folhas desciam
rodopiando. Quando estava ensolarado, tudo parecia dourado. Frieda Lewis tinha
dezenove anos e fazia quatro meses que trabalhava no Hotel Lion Park em
Knightsbridge. Gostava muito de limpar os quartos do sétimo andar. De lá, podia
olhar pelas janelas dos fundos e ver o pequeno pátio arborizado com o leão de
pedra. Dos quartos da frente, conseguia ver o topo das árvores do Hyde Park.
Certa vez, subiu até o parapeito e ficou lá por um instante, acima do tráfego e da
fumaça, hipnotizada pelo movimento das árvores e das nuvens. Brompton Road
parecia fazer parte de um brinquedo infantil, com carrinhos minúsculos
colocados em fila. Então, de repente, Frieda se sentiu tonta e precisou retornar
pela janela. Seu coração estava disparado, mas também se sentia feliz. Tinha a
impressão de que algo especial a aguardava, uma espécie de milagre, uma coisa
incrível e inesperada. Podia trabalhar como arrumadeira num hotel de Londres,
mas isso não era a sua essência.
Era uma garota obstinada, cujos pais acreditavam que havia arruinado suas
oportunidades na vida. Passara nos exames da universidade, mas preferira ter
uma vida real, e isso não significava casamento e filhos. Não queria nada
comum. E certamente não queria a vida que seu pai planejara para ela. Ele era
médico em Reading e achava que sabia o que era melhor para todo mundo. Na
verdade, ela queria o oposto, uma vida que faria seu pai sentir calafrios, que o
magoasse. Até chegou a imaginar que poesia fosse sua vocação. Havia algo
dentro de si que ninguém compreendia – isso com certeza –, e esse tipo de
isolamento muitas vezes levava a uma carreira como poeta.
Frieda terminara com seu namorado, Bill, que imaginava que se casariam.
Bem, todos supunham algo, não? Todos achavam que a conheciam, quando, na
verdade, nada sabiam sobre ela. Queria ter uma vida maior, algo espetacular, e
agora lá estava ela em Londres, para consternação de seus pais, em Reading. Era
uma garota de cidade pequena, desesperada para ter uma vida de cidade grande.
Essa é a história de um rato, contou-lhe seu pai. Não de uma mulher brilhante e
talentosa que deveria estar na universidade.
Os pais de Frieda podiam achar que ela fosse extravagante, mas não era
nada, comparada à maioria das garotas do Lion Park. Todas eram jovens e
queriam se divertir. Usavam um grosso delineador preto, nos olhos, que fazia
parecer uma horda de Cleópatras quando saíam em grupo. Usavam minissaias ou
jeans, com brincos de argola e botas de cano alto, e todas fumavam demais. As
garotas que trabalhavam no hotel tinham quartos para morar, no segundo andar;
nos piores havia, três ou quatro garotas amontoadas, mas mesmo esses eram
divertidos. Improvisavam festas todas as noites e iam a shows e danceterias em
um grupo encantador e animado. Frequentavam o restaurante Cassarole em
King’s Road e iam ao mercado de antiguidades de Chelsea em busca de lingerie
de seda e blusas vitorianas com reforços de cetim. Compartilhavam roupas.
Quase todas as garotas haviam usado o vestido preto de Frieda, comprado por
suadas 18 £ na Biba, em Kensington, um vestido tão curto que era preciso
segurá-lo com as duas mãos quando se descia do táxi. Katy Horace conseguiu se
enganchar com Mick Jagger numa noite em que usava este vestido – bem, talvez
tenha sido por apenas pouco mais de uma hora, mas de toda forma era Mick,
pelo menos foi o que ela disse, e foi o vestido que o conquistou.
O Lion Park era conhecido por sua clientela descolada – pessoas do mundo
musical, poetas de reputação ruim, homens apaixonados por outros homens,
mulheres que abandonaram marido, bateristas em turnê que ensaiavam a noite
toda e deixavam as pessoas malucas ao batucar nos móveis, garotas pensando
em se suicidar, casais que não conseguiam definir se se amavam ou se queriam
matar um ao outro. O hotel era um pouco descuidado – a mobília estava
estragada e o carpete, gasto –, mas era possível ter privacidade ali. O Lion Park
era bem parecido com o Hotel Chelsea em Nova York; desde que não se matasse
indiscretamente alguém em seu quarto, qualquer coisa valia. Podia-se ser um
vampiro, pois tudo o que importava para a gerência era que se pagassem as
contas no dia certo.
Nas noites em que havia um hóspede famoso, muitas vezes dezenas de
garotas aguardavam do lado de fora, gritando assim que viam um jovem
cabeludo qualquer. Os vizinhos reclamavam das tietes, mas não havia o que
fazer. A liberdade de expressão incluía a liberdade de gritar, certo? Quando o
barulho chegava a extremos ou as fãs vomitavam na rua, as autoridades eram
chamadas, mas, na maior parte das vezes, o porteiro noturno, Jack Henry,
cuidava das multidões. Jack Henry brincava que fizera mais sexo prometendo a
tietes que permitiria que vissem outro homem qualquer do que em todo o resto
de sua vida. As garotas que trabalhavam no Lion Park o consideravam um velho
sujo, apesar de ser bem provável que não tivesse muito mais que trinta anos.
Jack certamente tinha seus defeitos, mas era alguém em quem se podia confiar
para guardar segredo. Com a gorjeta certa, podia conseguir praticamente
qualquer coisa para um hóspede: uma mulher deslumbrante, um médico que não
relataria uma overdose de drogas, garrafas de absinto ou Seconal e,
principalmente, discrição.
Por exemplo, ninguém, nem mesmo as garotas que trabalhavam no hotel,
sabiam que Jamie Dunn estava hospedado no sétimo andar. Mas, logicamente,
não eram muitos aqueles que sabiam quem ele era. Na verdade, ele não era muita
coisa, não era famoso, apenas um cantor norte-americano que havia assinado um
contrato de gravação. Viera para o Reino Unido para fazer alguns shows, e todos
foram desastrosos. Tinha voz fraca, angelical e as pessoas reclamavam que não
conseguiam escutá-lo. As plateias queriam eletricidade; até mesmo Dylan
precisou se sujeitar a isso. Jamie sabia que precisava reunir uma banda e fazer
barulho. E precisava de composições próprias. Foi isso o que os executivos de
sua gravadora lhe disseram – ou pelo menos do que ainda era a sua gravadora,
isso se ele lhes desse o que queriam e se não o mandassem embora como fizeram
com milhares de outros jovens talentosos e esperançosos.
Agora Jamie estava enfurnado no quarto 708, tentando, e não conseguindo,
compor. Depois de dois dias, parou de comer e começou a beber loucamente; era
assim que suas bebedeiras sempre começavam. Assim como Rimbaud, ele
precisava estar em chamas para criar, mas suas chamas não tinham brilho e ele
tinha consciência disso. Apenas ficava mais bêbado. Tinha 1,90 m de altura e
apenas 75 quilos, assim, em questão de dias, assumiu uma aparência esquelética.
Seu quarto estava uma bagunça. Cinzeiros abarrotados, xícaras de café, roupa
suja no chão. Enquanto tentava compor, parava de tomar banho – até água e
sabão poderiam distraí-lo. Prendia seu cabelo comprido com uma faixa de couro.
Ele era forte fisicamente, graças a seus genes, que incluíam uma avó indígena
Cree e outra ucraniana, e um avô meio irlandês, meio italiano. Sua mãe era uma
polonesa judia. Era um típico nova-iorquino, um pouco de tudo. Fazia quatro
anos que não cortava o cabelo. As mulheres desmaiavam sem ele precisar falar
nada. Acreditava em sinais, símbolos, sorte, destino – tudo. Seu problema na
perna? Significava que viera para algo diferente. A dor que sempre tivera? Prova
de que uma vida comum não era ele. Se não fosse por sua perna, estaria no
Vietnã. E provavelmente estaria morto e enterrado.
Acima de tudo, acreditava em promessas. Fizera um pacto consigo mesmo
de que, se conseguisse compor uma música perfeita, cortaria seu cabelo. Faria
um autossacrifício e queimaria seu cabelo no fogão que pediria para a
arrumadeira trazer. Aniquilaria a parte dele que era fraca demais, a ponto de
muitas vezes deixá-lo na cama por semanas em períodos em que não conseguia
criar, quando o mundo lhe era insuportável.
Fora uma criança fraca, nascida com uma deficiência nos quadris, e tivera de
passar por várias cirurgias antes de completar doze anos. Crescera sentindo dor,
passando meses no Hospital Queens County; mesmo quando era liberado, tinha
de usar um suporte de metal, este lhe era preso com tanta força, que ainda tinha
as marcas na pele. Quando passava as mãos pela perna, sentia uma linha de
entalhes que o lembravam do que tinha sofrido e do que merecia agora como
compensação. Os outros meninos transformaram em inferno sua vida escolar.
Odiava a própria carne, osso e sangue. Acima de tudo, odiava a dor. Tomara
Demerol e morfina por toda a adolescência e no colegial partiu para as drogas.
Sua favorita era a heroína e ansiava sempre por uma nova dose. Era apaixonado
pelos instantes antes e pelo momento em que injetava. Era aí que tinha as
melhores ideias, se conseguisse lembrar-se delas depois. Seus cadernos eram
repletos de anotações que não conseguia entender. Graças a Deus, conseguia
trabalhar isoladamente e ignorar o barulho do hotel, algo que aprendeu em sua
infância passada ao lado de três irmãos que não paravam de brigar. Em sua
primeira noite em Londres, ouviu uma gritaria no corredor no exato momento
em que descia para trabalhar. Sentiu-se em casa. Não viu problema algum. Jamie
a ignorou, assim como ignorava seus irmãos. Sempre fora o filho predileto de
sua mãe, o protegido; não sentia quase nada ao ver seus irmãos se batendo. Nem
sequer tomava partido.
Quando chegavam a extremos, berrava: “Calem essa porra de boca”. Batia
na parede atrás de sua cama e logo a algazarra parava.
Aconteceu novamente na noite seguinte. Parecia a mesma discussão, mas
seus irmãos também brigavam pelas mesmas coisas ano após ano. Acontece que,
naquela noite, Jamie estava mais bêbado e saiu para o corredor com um
candelabro que pegara para usar como arma. Mas, do lado de fora, trajando
apenas uma calça jeans rasgada, não encontrou ninguém além de uma
arrumadeira assustada, que estava arrumando os quartos. A garota tinha cabelo
castanho comprido e olhos enormes, e parecia um anjo ali no corredor. Era tão
pura e bela que era difícil olhar para ela e não se sentir miserável. Era um
daqueles momentos que Jamie adoraria usar como inspiração para compor, isso
se conseguisse.
“Desculpe-me”, falou Jamie. Percebeu que sua aparência podia ser um tanto
ameaçadora, desarrumado e alto, mancando e segurando um candelabro como se
fosse uma lança. Na verdade, era possível que parecesse um lunático. “Estou
ouvindo coisas. Acho que estou ficando louco.”
“Temos um fantasma”, disse a garota. “Pelo menos é o que dizem.”
Era Frieda. As outras garotas haviam alertado sobre o quarto 707.
Raramente, os hóspedes suportavam passar a noite lá; costumavam fazer o
check-out e exigiam o dinheiro de volta. Parecia que alguém havia matado seu
inimigo naquele quarto. Ninguém conhecia a história completa, mas, quando se
arrumava a cama dali, realmente sentia-se um calafrio. De vez em quando,
aparecia um hóspede que solicitava especificamente o 707 – em geral, um
escritor buscando inspiração, ou um guitarrista ou baterista que queria provar sua
coragem passando a noite num quarto assombrado enquanto ficava chapado e
bêbado.
“Não que eu acredite em fantasmas”, continuou falando Frieda, “embora seja
possível que algum tipo de vibração possa emanar do éter.”
Jamie riu. “Bem, isso explica tudo. Sou um cara de sorte. Sou uma porra de
um mal-assombrado.”
“É o hotel, não o senhor.” Frieda conseguiu enxergar atrás de Jamie, ao
espiar por sua porta, que fora deixada entreaberta, que seu quarto estava
bagunçado. Também notou que o aviso de “Não perturbe” estava na maçaneta
havia dias. Se Frieda não estivesse enganada, viu uma nuvem de fumaça.
Esperava que ele não pretendesse incendiar o hotel. “O senhor quer que eu limpe
seu quarto?”
“Meu quarto está uma bagunça. Aquele fantasma destruiu a minha
concentração, droga. Venha beber alguma coisa. Preciso de companhia.
Companhia viva.”
Frieda riu. “Agora?”
“Você trabalha aqui, mas eles não são seus donos, certo? Você não é uma
merda de uma escrava, correto?”
Era o tipo de desafio que sempre pegava Frieda. Estranhou que aquele rapaz
conseguisse sentir sua aversão ao autoritarismo. Poucas pessoas sabiam isso
sobre ela. Parecia mais uma garotinha obediente e complacente; na verdade, era
exatamente o oposto. Certa vez, havia se revoltado com uma professora na
escola por usar gatos de rua no laboratório de biologia – vingara-se ao invadir a
escola pela janela e libertar todos os bichinhos. Vários deles a seguiram até em
casa; foi assim que descobriram a culpada, tendo sido suspensa da escola por
uma semana. O diretor passara por lá de carro e vira os gatos descansando na
grama ao lado de sua casa. “Não achávamos que fosse esse tipo de menina”,
dissera-lhe o diretor, mas já o era naquela época, e ainda é.
Frieda acompanhou Jamie, precisamente porque não devia fazer aquilo. A
primeira coisa que fez foi abrir a janela. O quarto estava acre e enfumaçado.
“Sei que fede aqui. Desculpe-me. Uísque?”, Jamie vestiu uma camiseta. Ele
era extremamente bonito, mais lindo que Mick Jagger. Havia uma jaqueta de
camurça púrpura jogada sobre a escrivaninha e vários pares de meia espalhados
pelo quarto. Um prato de peixe com fritas meio comido deixava cair gordura
sobre a mesinha. A mãe de Frieda fora uma fanática por limpeza; se visse aquele
quarto, era bem provável que tivesse um enfarte. A senhora Lewis passara a vida
toda deixando perfeita a casa deles, cozinhando jantares incríveis, sem nunca
deixar um prato sequer na pia, e o que isso lhe valera? Na opinião de Frieda,
absolutamente nada.
Frieda aquiesceu. “Uísque está bom.” Estivera em quartos nojentos antes,
mas aquele realmente era o pior. Não que se importasse com isso. “Que baderna
está isto aqui.”
“Desculpe-me. Estou trabalhando noite e dia. E não tenho nem ideia de que
dia é hoje. Estou me desculpando muito?”
Jamie arrumou rapidamente a cama. Não era muito bom nisso. Jogou um
cobertor sobre tudo.
“Trabalhando no quê?”, perguntou Frieda, quando ele entregou-lhe um copo
de uísque. O copo não estava muito limpo, mas Frieda lera que o álcool matava
todos os germes. Era possível jogá-lo sobre uma ferida, por exemplo, se não
tivesse outros antissépticos. Frieda ficava bêbada rapidamente, uma dose e
cabum, logo estava no chão. Assim, deu um golinho apenas. Sentiu um arrepio
quando o uísque desceu queimando sua garganta. Sentiu-se ousada e adulta.
“Sou um compositor”, falou Jamie. “Quando componho, faço bagunça.
Esqueço o mundo lá fora.”
Era sabido que poetas faziam coisas assim, e Frieda não achava que isso
fosse um demérito contra Jamie. Ele tinha coisas mais importantes para pensar
do que os detalhes do mundo material. Ela notou o violão encostado numa
parede. Havia anotações de música espalhadas por todo lado. Frieda sabia que
pessoas famosas ficavam no Lion Park, mas, ao contrário de Katy e outras
garotas, ela nunca encontrara um frente a frente. O mais estranho sobre Jamie é
que ela sentia que o conhecia havia muito tempo. Não se sentia nem um pouco
desconfortável a seu lado. Era provável que fosse o poeta dentro dela que criasse
essa ligação.
“Cante alguma coisa”, falou Frieda.
“O que eu ganho em troca?”, brincou Jamie. Era impossível com as
mulheres; a sedução lhe surgia com facilidade. Pensou que fosse devido a tantos
anos passados no hospital, flertando com enfermeiras enquanto garoto,
precisando desesperadamente de sua gentileza. Sabia que tinha charme e usava-o
em seu favor. Caso contrário, ainda estaria em casa, no Queens. Tinha um irmão
que trabalhava como cozinheiro numa lanchonete, outro que estava no exército
lutando no Vietnã e um terceiro vivia no porão de sua mãe e fazia bicos de vez
em quando – pelo menos é o que dizia. Na verdade, nunca fora visto
trabalhando. Todos tinham inveja de Jamie. Chamavam-no de “filho da puta
sortudo” e de “egoísta do inferno”, não que Jamie se importasse muito com isso.
Se alguém quisesse culpá-lo por usar seus dotes, não ligava a mínima. Não ia
ficar parado esperando que o mundo passasse por cima dele quando tudo que
precisava fazer era sorrir para conseguir o que queria. Sorrir e cantar uma
música.
“Vou inventar o título de uma música para você”, falou Frieda. Ela tinha
milhões de ideias. Nem precisava se esforçar, as ideias lhe surgiam. Estava
sempre bolando enredos de filme e histórias para livro e anúncios de televisão.
Seu ex-namorado, Bill, chamava-a de sonhadora, mas Frieda não conseguia
parar de pensar. Sua cabeça era repleta de ideias. “Depois que se tem um título, o
resto vem naturalmente. Foi o que li.”
Jamie se serviu outra bebida. Sabia o que lhe faltava. Uma musa. Alguém
que pudesse inspirá-lo. Era por isso que estava estancado, sem conseguir compor
nada. Frieda usava o avental branco das arrumadeiras no trabalho. Isso fez Jamie
se lembrar de neve e pureza. Ela parecia uma enfermeira, das gostosas. Parecia
um anjo que caíra em sua cama. Não fazia o seu tipo, mas era muito dócil e
honesta. O oposto de Jamie.
Jamie acabara cometendo alguns pecados, mas não fora de propósito. Fora
levado ao egoísmo por seu desejo de obter fama e, logicamente, pelas drogas.
Quando era menino, pensava em maneiras de fugir. Não apenas do hospital;
queria uma fuga de sua vida. Sua mãe sempre dizia saber que, assim que ele
conseguisse andar, sairia pela porta e nunca mais voltaria. Ele mentiria, roubaria,
trapacearia, atropelaria todo mundo, mas sairia dali.
“Está bem”, disse Jamie a Frieda. Considerava-a vivaz e interessante. A
maioria das garotas ficava muda ao seu lado. Quando conseguiam abrir a boca,
ele descobria que não tinham muito a dizer. “Certo. Vamos ver se funciona dessa
forma. Qual é o título?”
Frieda nem precisava pensar. As ideias lhe surgiam já completas.
“O fantasma de Michael Macklin.”
Jamie riu. “Esse é um título surpreendente.”
“É o fantasma do outro lado do corredor. Aquele que você acredita escutar.
Ele morreu por amor. Não sei exatamente como, mas alega-se que foi por amor.”
“O fantasma de Michael Macklin.” Jamie deixou o título circular pela
cabeça.
“É um ótimo título e você sabe disso. Agora me deve uma! Apenas uma
música. Tem de cantar!”
Então Jamie cantou para ela, não uma composição sua, nenhuma daquelas
que já estavam prontas – que, na verdade, não eram muito boas –, mas uma
música que ele sabia que deixava as mulheres malucas: “Greensleeves”. Não
entendia por que aquela música mexia tanto com as mulheres, mas mexia; várias
mulheres haviam se apaixonado por ele quando a cantou. Devia ter que ver com
a sensação profunda de desespero; ser injustiçado era algo romântico, de uma
forma meio maluca, e deixava as mulheres derretidas. Podia ver, pela forma
como Frieda o olhava, que isso acontecia naquele exato momento. Sua boca
aberta, sua concentração inabalável. Era muito fácil conquistar uma mulher, isso
o deixava animado. Além disso, ela era bonita, e diferente, e esperta. Jamie se
sentiu um pouco incomodado, porque tinha uma namorada. Bem, na verdade um
relacionamento sério. Esse era o outro motivo para estar em Londres. Às vezes
se esquecia disso. Ia se casar.
Quando acabou, Frieda aplaudiu. “Bem, não sei como são suas músicas, mas
sua voz é incrível. Perfeita.”
“É mesmo?”, Jamie estava surpreso por sua maneira direta. Era convencido,
mas também era uma pessoa vulnerável e cheia de ódio por si mesmo.
Frequentemente, sentia vontade de parar com tudo e se perguntava se tudo o que
havia feito não era lixo. Por algum motivo, quando aquela garota dizia algo, ele
acreditava.
“Linda demais. Comovente. Melhor do que Mick Jagger.”
“Você não conhece o Jagger”, falou Jamie.
“Vamos apenas dizer que, certa noite, ele não conseguiu resistir ao meu
vestido preto…”
Considerou-se uma maluca para dizer algo assim. Queria apenas parecer
desejável para Jamie. Não tinha a menor experiência com qualquer pessoa que
parecesse uma estrela do rock. O ex-namorado de Frieda, Bill, não tinha nada
que ver com Mick Jagger, a não ser o fato de ambos serem seres humanos. Bill
estudava química na universidade de Reading. Trabalhava meio-período num
laboratório pesquisando células cancerígenas. Mas, a Frieda, nada do que dizia
parecia mentira. Sentia-se diferente ao lado dele, em seu quarto, bebendo uísque
sentada em sua cama, como a garota rebelde que seus pais achavam que ela
fosse. Alguém que poderia ter sido cantada por Mick Jagger.
“É mesmo? Mick, é?”, Jamie não acreditou nem um pouco. Ela não era do
tipo de garota que teria dormido com um dos Rolling Stones. Ela era do tipo que
se apaixonava para a eternidade. Jamie sabia que ela esperava impressioná-lo.
Ele tentou evitar o riso. Tinha uma maneira estranha de saber a realidade de uma
pessoa, ainda que, muitas vezes, não soubesse a realidade sobre si mesmo.
“Bem, não era eu quem usava o vestido”, admitiu Frieda. “Mas, desde então,
eu o uso.”
“Sexo por osmose”, brincou Jamie. Era óbvio que não se tratava de uma
arrumadeira típica. Parecia mais uma universitária. “Se eu quisesse me equiparar
ao Mick, teria de começar a compor músicas… Caso contrário, meu contrato
com a gravadora não significa porcaria alguma. Preciso, ao menos, dar-lhes uma
faixa para o lado A e outro para o lado B, para fazer um single, e rapidamente.”
“Você só precisa de uma ajudinha, e suas músicas vão transbordar de sua
mente. Já tem um belo título. E isso já é metade de uma música, não?”
Frieda terminou sua bebida e se preparou para sair. Bebera seu uísque um
pouco mais rapidamente do que pretendia; agora estava tonta. Tinha ainda uma
dezena de quartos para arrumar.
“Espere um pouco”, disse Jamie. “E minha música? Achei que você fosse me
ajudar…”
“Eu o desafio a terminá-la até de manhã”, falou Frieda. Sabia que algumas
pessoas respondiam melhor a ultimatos e desafios. Ela, pelo menos, era assim.
Bastava dizer-lhe que não conseguiria fazer algo, que terminava antes do prazo
previsto. Assim como aqueles gatos que libertara das aulas de biologia; por
causa daquilo, havia agora dezenas de gatos zanzando ao redor da casa em que
fora criada. Viviam nos campos e estavam dizimando a população de coelhos.
Às vezes, ela se esquecia das consequências.
“Está bem. Certo”, respondeu Jamie, batendo continência. Ele parecia
animado com o desafio; era como se nunca até então alguém o tivesse intimado a
trabalhar duro por alguma coisa. Frieda viu o que as pessoas chamavam de
carisma, era quase como se ele não tivesse nenhum controle sobre isso. Era o
tipo de pessoa que atraía outras; tinha certeza de que, assim que se afastasse
dele, tudo ficaria mais escuro e menos interessante.
“Acha mesmo que consigo fazer?”, perguntou Jamie.
Eis o verdadeiro Jamie por um instante e Frieda se sentiu mais atraída, mais
ligada, de poeta para poeta.
“Vamos combinar uma coisa: se eu voltar amanhã à noite e você não tiver
terminado, aquela jaqueta púrpura é minha. Assim você tem algo a perder.”
“Combinado”, concordou Jamie. “Mas o que eu ganho se conseguir?”
“Uma música”, respondeu Frieda. “Um lado A ou B brilhante.”
Jamie assumiu aquela expressão que sempre lhe propiciara aquilo que queria
das enfermeiras. “Mais”, falou.
“Não é suficiente?”, Frieda estava envergonhada. “Um beijo”, arriscou.
“Talvez”, completou, ainda que estivesse morrendo de vontade de beijá-lo.
Jamie poderia ter escrito a música que lhe prometera, mas às onze da noite
Stella lhe telefonou, e ele nunca conseguia dizer não para uma mulher,
principalmente para aquela com quem ia se casar. Pegou sua jaqueta, vestiu as
botas e desceu para o lobby. O porteiro chamou um táxi para ele. Conseguira
escrever duas linhas antes da ligação de Stella. When I’m with you, I’m always
yours. I belong to you.1 Sabia que era uma mentira.
“Não faça nada que eu não faria”, disse o porteiro, Jack Henry, quando Jamie
entrou no táxi. Jamie passou a achar que sua aparência era suspeita. O táxi o
levou até Kensington, onde moravam os pais de Stella. Eles estavam viajando,
assim, Stella e sua irmã, Marianne, ficaram sozinhas em casa. Jamie não tinha a
menor ideia de como alguém podia confiar nelas. Até ele era mais confiável do
que aquelas duas garotas. Entre as garotas rebeldes, eram as mais rebeldes,
sempre juntas, sempre criando confusão. Jamie poderia ter ficado em Kensington
com as duas irmãs, vivendo no luxo, em vez de em um hotel de terceira classe,
sem serviço de quarto, mas ele e Stella brigavam tanto, que sabia que ele não
conseguiria compor na casa de Kensington. Deveria ter ficado no Lion Park
naquela noite também, trabalhando em sua música para ganhar um beijo de
Frieda, mas, em vez disso, bateu na porta dos pais de Stella. A família Ridge era
rica, extremamente, e Stella era bonita. Ela era tudo o que um homem poderia
desejar, principalmente se esse homem buscasse a autodestruição. Era toda
errada para Jamie. Eram parecidos demais. Fogo e fogo. Não era uma boa
mistura. O tipo de coisa que levava à imolação e ao desastre. Stella
definitivamente não serviria de musa para ninguém. Era egocêntrica, mimada e
linda demais. E havia outra coisa em Stella que era muito negativo: era viciada
em heroína.
“Você sempre fica naquele hotel de merda”, falou Stella quando abriu a porta
para ele. “Acho que você está tendo um caso. Acho que é por isso que fica tanto
tempo lá. Nós vamos nos casar. Devíamos ficar juntos.”
“Cale a boca. Estou lá tentando compor. Não é nada divertido…”
“E não deveria ser?”, perguntou Stella. “Achei que o ato de criação fosse
algo para se curtir. E cale a boca você.”
“Como você sabe tanto sobre o ato de criar, por que não faz alguma coisa?”
“Estou num ato de criação de mim mesma.” Stella deu um sorriso bonito.
Foram juntos para a sala de visitas. Marianne e seu namorado, Nick, estavam
lá, cheirando heroína. Todos eram ricos, com exceção de Jamie. Jamie era o
desajustado, e é por isso que o adoravam. Consideravam-no verdadeiro,
achavam que era uma pessoa engraçada e que, quando fosse famoso, faria com
que fossem convidadas para festas em Hollywood. Era provável que não dariam
a mínima, caso descobrissem que ele pegava dinheiro em suas carteiras e bolsas,
o que costumava fazer com certa regularidade. Dinheiro não significava nada
para eles, mas para ele era tudo.
Jamie muitas vezes se lembrava da mãe, que sempre se preocupara com ele e
que provavelmente estava sentada em seu apartamento em Astoria, Queens,
preocupada com ele naquele exato momento. Costumava obrigá-lo a vestir
chapéu e luvas para ir à escola, ainda que todos zombassem dele por causa do
aparelho na perna. Parecia um monstro e assustava mesmo algumas criancinhas
quando mancava pelos corredores da escola. Pensou na mãe sentada ao lado de
sua cama durante seus períodos de recuperação. Ela o amava, e Jamie fora uma
criança mal-agradecida, com exceção de um único detalhe: o sonho de sua mãe
era que ele fosse ambicioso, e isso ele era. Sonhava com o sucesso do filho e ele
tinha total certeza de que conseguiria chegar lá.
A mãe de Stella e Marianne, por outro lado, nunca trocara uma fralda sequer.
Certa noite, Stella contou tudo para Jamie; estava com lágrimas reais nos olhos e
ela não era do tipo que chorava fácil. Sua mãe entrara em depressão e viajava a
maior parte do tempo. Era bem provável que a negligência de antes fosse o
motivo para as garotas sentirem agora que tinham direito a tudo o que queriam.
Jamie sentiu pena de Stella, embora ela tivesse tudo; compreendeu por que ela se
esforçava ao máximo para ser uma filha da puta.
A primeira vez que Jamie estivera naquela casa foi para ser apresentado aos
pais, Daisy e Hamlin Ridge. Não sabia que fora convidado para incomodá-los,
mas logo percebeu isso, assim que a senhora Ridge olhou para ele. Era uma
mulher alta e elegante e seu desprezo pelo rapaz foi instantâneo.
“Este é o seu namorado?”, perguntou. “Não me parece alguém famoso.”
“Prazer em conhecê-la também”, contra-atacou Jamie. Gostava de desarmar
as pessoas, vir por trás e subjugá-las, mas isso não parecia funcionar com Daisy
Ridge. Sua postura era bem rígida.
O pai, Hamlin, saíra para ler o jornal.
“Ela está com você apenas porque sabe que não vou aprovar”, disse a
senhora Ridge a Jamie. “Não seja bobo.”
“Agradeço a honestidade”, respondeu Jamie.
“A senhora não poderia ser mais rude?”, perguntou Stella à mãe.
Daisy deu de ombros. “Pelo menos, ele aprecia minha honestidade.
Uísque?”, perguntou a Jamie.
“Lógico.” E concordou com a cabeça.
“Você não vai aceitar nada do que ela lhe oferecer”, disse Stella a Jamie.
“Vamos lá”, gritara Marianne do corredor. As irmãs sempre protegiam uma à
outra e Marianne tinha um ódio especial por discussões. Sabia como aquilo
poderia aborrecer Stella. “Nick está nos esperando.”
“Nick é legal porque tem dinheiro e não é judeu”, falou Stella para a mãe.
“Não é verdade?”
Hamlin ergueu a cabeça do jornal, levemente interessado.
“Ponto para você. Conseguiu atrair a atenção de seu pai com o comentário
sobre judeus”, disse Daisy. Ela entregou a Jamie um copo de uísque. “Acha que
será bom para minha filha?”
“Vamos cair fora daqui”, disse Stella para Jamie, que preferia terminar seu
drinque. “Ela não liga a mínima para Marianne ou para mim. Nunca se importou,
nem se importará.”
“Vamos, vamos”, gritou Marianne. O motorista as aguardava. Ela usava um
casaco claro de pele cor de limão.
A senhora Ridge agarrou o braço de Jamie enquanto ele saía. Surpreso, o
rapaz se virou para ela.
“Não a magoe”, falou, bem baixinho, de forma que só ele conseguisse
escutar. “Estou falando sério.”
No banco de trás do carro, Stella cheirou um pouco de heroína, que fora
colocada em carreiras sobre uma revista equilibrada em suas pernas. “Acho que
nossa mãe nunca sequer nos tocou. Ela tinha coisas melhores para fazer. Coisas
mais importantes.”
“Ela estava ferida”, completou Marianne. “Uma história do caralho. Amor e
morte. Esse tipo de coisa.”
“Todos são feridos na vida. Não há desculpa”, argumentou Stella. “Veja o
caso de Jamie”, provocou. “Será que alguém consegue ser mais ferido do que
ele?”
Ele a beliscou e Stella deu uma risadinha. Era óbvio que ele a magoaria. Essa
era a questão.
“Nossa mãe perdeu sua irmã gêmea”, explicou Marianne. “Estava
apaixonada e se suicidou porque o rapaz não a amava também, e o mais maluco
é que esse rapaz é, na verdade, nosso pai.”
“Mamãe não era uma garota de sorte?”, falou Stella. “Ela ganhou o prêmio.
Hamlin Ridge.”
O pai de Stella tinha uma empresa em Nova York e foi lá que Jamie e Stella
se conheceram, numa festa. Era estranho que conhecessem uma mesma pessoa,
mas, por outro lado, essa pessoa traficava drogas, portanto, talvez fizesse
sentido. Todos eram iguais aos olhos do traficante; dólares e nada mais.
Stella estivera novamente em Nova York duas vezes depois de terem se
conhecido, ficando no minúsculo apartamento de Jamie em Chelsea. Ela adorava
Nova York. Era uma garota da cidade. Conseguia arrumar drogas onde quer que
estivesse. Quando aconteceu de o cara que ambos conheciam ser preso, Stella
garantiu a Jamie que não havia motivo para preocupação. Pegaram um táxi até a
Rua East Tenth e Jamie aguardou no carro enquanto ela resolvia as coisas.
Aquele foi o primeiro encontro oficial dos dois, e a primeira vez que ele
experimentou heroína. Antes só havia cheirado e fumado. Era como o Demerol,
só que mais rápido, melhor e, de certa forma, mais limpo. O uso do entorpecente
fez com que se apaixonassem. Sangue misturado com sangue, transformaram-se
em uma só pessoa. Começaram a conversar sobre a vida que teriam depois de se
casarem. Então passaram a falar sobre datas de casamento, não importando que
os pais de Stella certamente teriam um ataque histérico. Talvez tenha sido
justamente por isso. Jamie era músico, católico e judeu. Adicione o vício de
heroína, e Stella havia encontrado o homem que mais causaria desgosto a seus
pais. Era o pesadelo perfeito, um músico viciado, que não comia carne às sextas-
feiras e que tinha os genes do gueto. Haveria algo melhor, mais delicioso e mais
poderosamente doloroso? Diriam a ela que estava desperdiçando sua vida, e foi
exatamente o que fizeram, mas a vida era dela e podia destruí-la da forma que
bem entendesse. Além disso, Stella adorava ostentar Jamie; era muito bonito e à
beira da ruína. Tudo aquilo que ela não deveria ter, servido em um único prato.
Na noite em que os Ridges estavam longe e a casa, disponível, Jamie se
sentou no carpete depois de cumprimentar Marianne e seu namorado. Deixou a
cabeça cair e cheirou uma fileira de heroína que Nick lhe preparara. Sentia-se
muito melhor ali do que naquela porcaria de Hotel Lion Park, onde não
conseguia compor sequer um verso. Em que diabos estava pensando? Podia
escrever uma música em meia hora, se quisesse; podia deixar isso para a semana
seguinte. Ali, chapado, até seus quadris não doíam mais ou pelo menos ele não
sentia mais nada, o que dava no mesmo. Melhor assim.
Stella se deitou no chão com a cabeça em sua coxa. Seu cabelo era bem
loiro. Era quase invisível de tão loira. Parecia um floco de neve pegando fogo.
Linda e difícil de agarrar. Sentia-se desprezada e furiosa, às vezes chorava
enquanto dormia. Jamie acreditava que fora o destino que os juntara, ainda que
fosse provável que, unidos, acabariam loucos. Pensou na arrumadeira do hotel
dizendo que conseguiria compor uma música se trabalhasse a noite toda. Stella
nunca lhe diria algo assim. Nunca precisou trabalhar em nada e achava que ele
também não precisava. Era um alívio estar com ela, em muitos sentidos.
“Vamos tomar banho”, falou Stella. “Você está fedendo.”
“Ah, sim. Pode encher”, disse Jamie. “E prepare as bolhas.”
“Vá você”, replicou Stella. “Não sou sua gueixa, seu idiota.”
“Pirralha mimada”, brincou Jamie.
A resistência de Jamie era um dos motivos que levou Stella a estar com ele, e
por essa razão ela se levantou e ajudou o namorado a se erguer. Todos os outros
namorados que tivera faziam exatamente o que ela mandava. Eram entediantes.
Às vezes, achava que Jamie lhe daria uma bela surra se descobrisse algumas das
coisas que fazia quando ele não estava por perto. Não pretendia abandonar todos
os homens de sua vida até ser realmente casada. Não tinha vontade de acabar
como sua mãe, presa a alguém que sequer tirava os olhos do jornal quando
conversavam. Preferia uma guerra a isso; alguém disposto a brigar.
Stella e Jamie subiram pela escada em caracol com corrimões e pilares de
pinho. Até o teto era de madeira. Foram para o quarto e abriram com tudo a
porta entalhada, branca e dourada. Jamie nunca tinha visto uma casa com tanta
madeira.
Ele se deitou na cama enorme enquanto Stella preparava o banho. Havia
tantos travesseiros e um acolchoado de penas, que a cama toda parecia ser feita
delas. Jamie sentia um cheiro cítrico misturado a jasmim; Stella tinha esse
cheiro. Era um perfume que mandara vir da França. Uma luz esverdeada entrava
pelas janelas arqueadas, de frente para um parque do outro lado da rua. Deitado
ali na cama de acolchoado e travesseiros, rodeado de penas e jasmim, Jamie teve
um instante de total bem-estar. Nenhuma dor. Ficou pensando se morrer e partir
não produzia essa mesma sensação. Quase saiu de seu corpo; podia sentir seu
espírito sendo puxado, mas fez força para retornar antes que sucumbisse.
Observou as sombras que a hera, plantada no lado de fora, produzia no teto.
Sentia-se feliz por não estar naquela vida que costumava ter.
Jamie dormia quando Stella foi chamá-lo e assim ela tomou o banho sozinha.
Permaneceu na água quente e perfumada até ficar fria, a ponto de começar a
tremer, e as pontas de seu cabelo loiro ficarem verdes devido aos sais de banho.
Era a irmã complicada e Marianne era a tranquila; sempre fora assim, dizia sua
mãe, como se conhecesse bem Stella. Jamie ainda dormia quando Stella subiu à
cama, o que significava que não fariam sexo. Significava que ela podia fingir
que Jamie era o que desejava e que ela era o objeto de desejo dele, e acreditar
que no longo prazo tudo ficaria perfeito.

À MEIA-NOITE, Frieda acordou em seu quarto no segundo andar.


Compartilhava um quarto com mais duas garotas que também trabalhavam no
hotel – Lennie Watt e Katy Horace –, mas estas continuaram dormindo. Ocorria
uma briga na rua e as vozes altas dos homens bêbados a despertaram. Frieda foi
até a janela. Era Jack Henry despejando um dos clientes habituais. Frieda
percebeu que Jack estava vasculhando a carteira do outro homem, retirando o
dinheiro antes de recolocar a carteira no bolso do cavalheiro. Jack Henry era um
rato, assim como Frieda já imaginava. Era boa em julgar personalidades. Bem,
costumava ser. Uma de suas colegas de quarto, uma garota trapaceira de nome
Lennie, também acordou. A mãe de Lennie começou a trabalhar no hotel quando
ela ainda era menina, e sua irmã mais velha, Meg, era gerente. Era bom se dar
bem com Meg Watt, já que ela cuidava da programação das arrumadeiras e
definia os horários. Protegia sua irmã e agora também protegia Frieda.
“É Teddy Healy”, disse Lennie a respeito do homem desmaiado na calçada.
“Não é nada interessante se envolver com ele. Ouvi dizer que certa vez matou
uma pessoa.”
Frieda torceu o nariz. “Eu duvido disso.”
“Bem, ele cometeu uma atrocidade. Foi Meg quem me contou.”
“Mesmo assim, não podemos simplesmente deixá-lo ali, certo?”
Talvez por ter acompanhado com alguma frequência visitas de seu pai a
pacientes, Frieda herdou certa preocupação com os necessitados. Ela e Lennie
decidiram descer para ver se o pobre rapaz jogado no asfalto estava consciente.
Era o mínimo que podiam fazer. Jogaram capas de chuva sobre a camisola e
desceram. Sentiam-se como colegiais fazendo travessuras e não conseguiam
parar de rir. Se fossem pegas, teriam problemas – a gerência multava garotas que
violavam as regras, e o gerente, um grego chamado Ajax, não tinha senso de
humor –, mas, por sorte, o temível Jack Henry fumava um cigarro enquanto o
barman fechava o lounge. Não precisariam suborná-lo em troca de seu silêncio.
“Fique de olho”, falou Frieda.
Ela saiu e Lennie permaneceu na porta. Teddy Healy estava em uma pilha de
lixo ao lado do prédio. A noite estava surpreendentemente gelada. Frieda ficou
de cócoras.
“Olá”, falou, com delicadeza. Nada de resposta. “Vou sentir o seu pulso”,
disse.
Frieda pegou o punho do senhor Healy, surpresa consigo mesma por saber o
que estava fazendo. Afinal de contas, vira seu pai agir assim inúmeras vezes.
Frieda contou um minuto. Setenta. Aceitável. Havia sangue na cabeça de Healy,
mas nenhuma ferida séria. Quando Frieda acompanhava o pai em consultas
domiciliares, atuava como sua ajudante; gostava de fazer isso. Amava-o demais,
até o dia em que abandonou sua mãe. Era a filhinha do papai, nem dava atenção
para a mãe, mas ele abandonara as duas por outra mulher. Quando pensava nos
desapontamentos que causara a seu pai, sentia vontade de chorar, mas ele a havia
desapontado primeiro. Foi o início de tudo, uma reviravolta em sua vida. Um dia
decidiu ir para Londres. Não se importava mais com o que seu pai achava.
“O que temos aqui?” É o que seu pai dizia sempre que entrava na casa de um
paciente, não importando as circunstâncias, fosse uma doença terminal, um
braço quebrado ou um caso de dor de estômago. O doutor Lewis usava dois
relógios de pulso, para que nunca se atrasasse. Pessoas doentes não têm tempo a
perder, dizia para Frieda. Se o paciente era uma criança, ele costumava deixar
que brincasse com um dos relógios durante o exame. “Agora você pode
controlar o tempo”, falava.
“Senhor, consegue me ouvir?”, perguntou Frieda ao homem na calçada. “Se
o senhor não responder, vou ter de chamar uma ambulância.” Sempre se
certifique de que o indivíduo está consciente. Pergunte-lhe seu nome e a data do
dia. “Senhor, sabe que dia é hoje?”
Teddy Healy murmurou alguma coisa. Pelo menos, estava vivo.
“O senhor está me ouvindo?”, repetiu Frieda. “Senhor, gostaria que me
respondesse.”
“Vá embora”, falou Teddy Healy. “Deixe-me em paz, droga.”
“Que dia é hoje?”
“Sexta, saco.”
“Muito bem. Levante-se”, disse Frieda. “Vou ajudá-lo.”
Era um homem na casa dos quarenta anos, da idade do pai de Frieda, e
Frieda se sentiu um tanto incomodada por ajudá-lo a se levantar. “O que temos
aqui?”, diria seu pai. “Um bêbado embriagado? Um homem perdido? Um caso
de cirrose?”
“Rápido”, sibilou Lennie, da porta. “Vamos ser pegas.”
Frieda fez sinal para um táxi que passava e ajudou Teddy a entrar quando o
carro parou.
“O senhor sabe o endereço de sua casa?”, perguntou.
“Engraçadinha…”, falou Teddy Healy. “Quem disse que estou vivo?”
“O senhor parece vivo. Seu pulso está bom, mas vai ter um sério problema
de fígado se continuar bebendo.”
“Queria muito trocar de lugar com aquele fantasma.”
Frieda sentiu um calafrio. Lennie dizia que ele era um assassino. Talvez
estivesse certa. “Que fantasma?”, perguntou.
Teddy Healy abriu os olhos. Quando olhou para ela, Frieda viu algo que uma
jovem não deveria ver. Pânico real. Era possível que fosse um assassino, mas
talvez não; de qualquer forma, era um homem desesperado. De repente Frieda
passou a sentir medo do que havia dentro daquela pessoa. Queria saber como seu
pai conseguia lidar com os medos e segredos de seus pacientes. Talvez fizesse de
tudo para evitar esse tipo de coisas, tratando apenas dos problemas mais visíveis
– um osso quebrado, uma dor nas costas –, deixando as áreas mais sombrias para
outros, uma professora, um terapeuta ou um padre.
O taxista ajudou Frieda a colocar Teddy no carro. Frieda vasculhou sua
carteira e encontrou um endereço. Também achou a fotografia de uma mulher
loira olhando diretamente para a câmera. Parecia apagada, desbotada; estava
desaparecendo na foto, ainda que fosse bonita.
Não tinha dinheiro. Frieda pegou o pouco que tinha no bolso da capa e o
entregou ao motorista.
“Vou levá-lo para casa”, prometeu o taxista. “Não se preocupe.”
Frieda voltou correndo para o hotel. Então subiu correndo, com Lennie,
rindo e de mãos dadas.
“Você é louca”, comentou Lennie. “Como conseguiu tocá-lo?”
“Meu pai é médico”, respondeu Frieda. “Já vi muita coisa pior.”
“Bem, isso explica como conseguiu lidar com ele. Apenas não explica o que
está, então, fazendo no Lion Park.”
A terceira garota do quarto, Katy, nem chegou a acordar. Era ela quem
emprestara o vestido de Frieda e que supostamente dera uns amassos em Mick
Jagger. Pelas costas, chamavam-na de senhora Jagger, ou a garotinha do Mick;
mas ninguém, de fato, acreditava nessa história.
“Vi o que você fez, e acho que não devia ter pagado o táxi para ele”,
comentou Lennie. “Você é boba.”
“Você teria feito o mesmo”, respondeu Frieda.
“De modo algum.” Lennie puxou o cobertor e deitou-se na cama. “Cuido
apenas da número um. Ou seja, de mim e de mais ninguém.”
Frieda também se deitou, mas não queria dormir. Pegou a caneta e o caderno
que estavam sobre o criado-mudo. Frieda anotou algumas palavras aleatórias.
Então olhou para elas, cortou algumas e escreveu outras. Escutou a respiração de
Lennie ficando mais lenta conforme caía no sono; escutou Katy se virando para
a parede. Enquanto as ouvia, Frieda escreveu sobre um homem com casaco preto
andando por um corredor comprido, infinito, e uma mulher bonita com cabelo
claro e comprido. Escreveu sobre um hotel cujos hóspedes nunca saíam e sobre o
tipo de amor que perdurava após a morte. Ficou horas escrevendo, sem perceber
o tempo passar. Suava tanto, que sua camisola ficou úmida. Sua cabeça e o
cabelo estavam ensopados. Seu coração estava disparado. Precisava de mais
papel para continuar escrevendo; foi até o escritório pegar uma folha de papel
cor de creme que usava para escrever cartas. No topo da página, anotou
FANTASMA DE MICHAEL MACKLIN, embaixo reescreveu as coisas bagunçadas e

riscadas que iniciara no caderno.


Por fim, exausta, Frieda guardou o que havia escrito na gaveta do criado-
mudo. Deitou-se na cama, mas não conseguia fechar os olhos. Estava empolgada
demais. Sentia as palavras vivas dentro de si; isso era poesia. Alguma coisa,
algum tipo de força, fizera-a escrever e criava ligações entre as palavras,
transformando-a apenas num canal. Enquanto suas colegas de quarto dormiam,
Frieda estivera num lugar totalmente diferente. Saíra e voltara, e ninguém notou
sua ausência.

NA MANHÃ SEGUINTE, havia um zumbido no hotel, do tipo que ocorria quando


alguém famoso estava por lá. Diziam que John Lennon estava hospedado. As
pessoas comentavam que ele queria um lugar para escapar; portanto, se alguém o
visse, devia agir como se ele não estivesse lá. Ajax, o gerente do hotel, fez uma
preleção dura com as garotas; eram funcionárias, pessoas sérias, e não fãs
histéricas como as hordas de garotas do lado de fora. Arrumadeiras só devem
falar se forem solicitadas, caso contrário, corriam o risco de ser demitidas.
Afinal de contas, essa era a política do Lion Park. Privacidade. Havia a
possibilidade de multas dobradas.
Frieda só ia trabalhar à noite e, assim, saiu para caminhar. Era uma boa
maneira de fugir das tietes que causavam toda aquela algazarra. Frieda não
dormira muito; não conseguira parar de pensar no bêbado jogado no asfalto e em
seu poema. Acreditava que tinha escrito uma música. Não devia ser boa, mas,
ainda assim, a sensação era semelhante à que lhe causara “Greensleeves”. Isso
devia significar alguma coisa. Usava seu vestido preto e botas pretas e passara o
delineador de Lennie nos olhos. Sentia vontade de chorar por Michael Macklin,
o personagem de sua música, ainda que não soubesse nada sobre ele. No final,
acabara meio que criando o homem.
Frieda se sentou no banco de madeira de um pequeno jardim. Adorava o
cheiro de Londres; o ar chacoalhava, parecendo vivo. Apesar de as folhas
estarem amarelas, o tempo ainda estava bom. Encontrara um jardim fechado, do
tipo que faz as pessoas acreditar que estão, na verdade, nos campos. Garotas do
interior, às vezes, são atraídas para espaços rurais, apesar de seu desejo de
experimentar a vida das cidades. Frieda mal conseguia escutar os carros através
da cerca, ainda que estivesse bem próxima da Brompton Road, a ponto de o
banco em que estava sentada tremer com as vibrações dos carros que passavam.
Naquele momento, devia estar assistindo a palestras na universidade de Reading.
A verdade era que seu pai sempre achou que ela seria uma boa médica. Ela tinha
o dom necessário, dizia o doutor Lewis. Não se intimidava com sangue e
doenças. E não parava de fazer perguntas quando acompanhava o pai nas
consultas domiciliares. Isso era um bom sinal. Uma mente curiosa. Parecia que
nem tinha medo da morte. Aceitava-a como uma consequência natural da vida.
Essa era a única maneira de sobreviver na medicina. Sem histeria, sem
arrependimentos, apenas aceitando que todas as coisas tinham um fim, ainda que
não naquele instante, mas em algum momento do futuro.
Certa noite, quando Frieda tinha quinze anos, seu pai fora chamado para um
atendimento numa vila próxima. Tinham passado por uma pontezinha onde
havia um pedágio e tiveram de pagar 2 xelins. Salgueiros margeavam todo o rio,
com seus ramos roçando a água. A escuridão surgia e as cercas eram tão altas,
que ficava difícil reconhecer qualquer casa. Frieda adorava andar de carro com
seu pai. Ela não tinha medo algum do escuro.
O doutor Lewis costumava dizer que “sempre dirigimos com o Anjo da
Morte ou com o Anjo da Vida”. Às vezes, um sai do carro. Às vezes, um entra
sem ser chamado.
O médico acreditava que havia três anjos. O Anjo da Vida, que os
acompanhava na maioria das noites. O Anjo da Morte, que aparecia, com seus
trajes de funeral, nas consultas em que não havia mais esperança. Havia ainda o
Terceiro Anjo. Aquele que andava entre nós, que às vezes ficava de cama,
doente, implorando pela compaixão dos seres humanos.
“Não somos nós que temos de ajudar os anjos”, dissera Frieda.
“Não mesmo?”, perguntou o médico.
Frieda pensou sobre o assunto. Queria entender se ele estava lhe dizendo que
seu dever era ajudar os doentes e oprimidos; é possível que ela nunca tivesse
consciência de quando ia ajudar um anjo disfarçado. O médico conversava sobre
assuntos que outras pessoas poderiam achar muito maduros para ela; Frieda
estava inserida em todos os aspectos importantes da vida de seu pai. Ela era a
única que sabia que o médico fumava charutos, escondido, e considerava seu pai
o homem mais esperto e gentil que havia no mundo. Ele abaixava o vidro do
carro, cantava e baforava. Era fã de Frank Sinatra e naquela noite cantava “Fly
Me to the Moon”. Depois de atravessarem a ponte, seguiram pelo rio, passando
pelos salgueiros. Chegaram a uma casinha, com cavalos no pasto.
“Senhorita, neste caso, você pode ficar no carro”, falou o pai de Frieda. “É
um caso em que não há necessidade de médicos. Precisam de um anjo, e não do
camarada de casaco escuro, se entende o que quero dizer.”
“Eu vou”, respondera Frieda. “Quero ir.”
Viu o resplendor de dois cavalos brancos na delicada escuridão. Não queria
ter medo de nada, mas estava com medo deles. Era um medo engraçado de ter.
Não que acreditasse que fossem machucá-la ou que fossem perigosos. Era mais
o desejo de sair trotando com eles; fugindo para bem longe, atravessando todo
aquele gramado. Amava sua casa e sua família, mas, assim que começasse a
trotar com os cavalos, era possível que nunca mais retornasse.
Frieda carregava a valise de seu pai. Gostava de fazer isso por ele. Seu pai
sabia tudo sobre a natureza. Era ornitófilo e participava de uma comissão para
erradicar a caça às raposas, considerada por ele atividade bárbara. Certa vez,
trouxera um coelho para casa, do qual cuidaram como um animal de estimação
durante todos os frios meses de inverno, mas, quando a primavera chegou, o pai
de Frieda a convenceu que seria melhor libertar o bicho. Ficaram observando o
coelho pular as cercas e Frieda concordara que parecia certo ele estar nos
campos, afastando-se até se tornar apenas um ponto no horizonte. Nunca pensou
em perguntar ao pai onde pegara aquele coelho. Voltara para casa de uma
conferência em Londres e lá estava ele, no banco de trás do carro, todo enrolado
num casaco preto.
“É um coelho de hotel”, dissera a Frieda. “Não se encontram muitos desses
por aí.”
“Este animal não vai morar aqui em casa”, falara a mãe de Frieda. “Coelhos
são sujos. E eles avançam.”
Frieda nunca dava muita atenção à mãe, cujo nome era Violet, um nome
antiquado pertencente a uma mulher antiquada, que não era muito carismática. O
que ela dizia não servia de muita coisa. E, logicamente, o coelho de hotel ficou.
O médico colocou uma gaiola na cozinha e lá ele permaneceu durante todo o
inverno, comendo cenouras, alface e vagem.
“Frieda, não se case com um homem que nunca ouve o outro lado, só faz o
que quer”, dissera-lhe sua mãe. “Case-se com alguém que se importe com o que
você tem a dizer.” Mas Frieda achava que os modos de seu pai eram os corretos,
assim, não dava a mínima para as queixas da mãe.
Na casa com os cavalos brancos, uma mulher abriu a porta. Era bonita e
morena, mas parecia esgotada. Estivera chorando. “Ele já se foi”, falou. “Ele me
abandonou.”
Frieda ficou observando tudo naquela noite. O som do relógio, o carpete de
lã verde, a cornija de madeira sobre a lareira. Quando entraram para o quarto,
deixaram-na na sala de estar. Podia escutar o relógio, a mulher chorando e o som
baixo da voz de seu pai. Sentia que nada de ruim podia acontecer enquanto seu
pai estivesse por perto. Deu-se conta de que ainda estava com a valise dele e,
assim, Frieda seguiu pelo corredor. Viu o pai com os braços ao redor da mulher
que chamava de Jenny, encostada nele, soluçando. Viu o homem morto na cama.
Havia um cheiro ruim no quarto, uma mistura de merda e sangue. Os lençóis
estavam manchados de marrom. O homem parecia uma pessoa, mas ao mesmo
tempo também parecia uma figura de cera sem alma ou espírito, ou o quer que
fosse. Sem energia vital. Não era de estranhar que aquela mulher estivesse
chorando. Foi quando seu pai a viu.
“Por que não fica aqui com a senhora Foley enquanto chamo uma
ambulância?”, sugeriu-lhe. “Não podemos deixar Jim aqui, dessa forma.”
Frieda olhou para o pai. Costumava se referir ao falecido como “o corpo”.
Nunca usava o nome da pessoa depois que ela falecia, pelo menos até aquele
momento. Algo naquela noite parecia diferente. Frieda não sentia nem um
pouquinho de medo por estar no quarto com o morto. Era apenas um corpo. Na
verdade, era da esposa do falecido que tinha medo, com todas aquelas lágrimas,
com toda aquela emoção.
“Obrigada, Frieda”, disse-lhe a mulher. Sabia seu nome. “Não conseguiria
ficar sozinha.”
No carro, voltando para casa, o pai de Frieda cantou “Fly Me to the Moon”
novamente, mas agora soava mais triste. Não havia lua; na verdade, bem, talvez
uma pequenina, escondida pelas árvores.
“Estou orgulhoso de você”, disse o médico quando atravessaram de volta a
ponte. “Você tem um dom especial. Você se dispõe a examinar as coisas e ver o
que realmente são, em vez de apenas reagir, gritando como se tivesse visto um
rato, como a maioria das pessoas costuma fazer quando veem um morto.”
“Gosto de ratos”, respondeu Frieda.
“Exatamente!”, comentou seu pai, orgulhoso. “Você gosta de ratos. Isso não
é comum entre garotas da sua idade. Coisas que afligem e assustam outras
pessoas não lhe metem medo. Não sei se você percebe como isso é raro.”
Agora, sentada no parque, com seu vestido preto, Frieda imaginou que seu
pai a desaprovaria. Ela não se tornara aquilo que ele imaginava; na verdade, nem
um pouco. Bem, tudo havia mudado naquele mundo, inclusive Frieda e seu pai.
Não havia mais muitos motivos de orgulho. Uma arrumadeira, não uma
universitária. Uma garota usando delineador nos olhos. Embora Frieda ainda
gostasse de ratos. No hotel, pediam-lhe que colocasse veneno sob as camas e as
escrivaninhas, mas Frieda nunca o fazia. Escondida, de vez em quando, deixava
um pedacinho de queijo num canto do quarto, próximo ao aquecedor. E, pelas
manhãs, não estava mais lá.
No banco mais afastado do parque, havia um jovem dormindo. Tinha cabelo
comprido e estava inconsciente, respirando em arfadas lentas. “Drogas ou
bebida”, supôs Frieda. Possivelmente uma overdose; possivelmente uma
pneumonia moderada. Frieda se conteve para não se intrometer; não se
permitiria ir lá para verificar se o rapaz estava consciente. Não precisava ser
sempre responsável pelo mundo. Talvez o homem no banco fosse o Terceiro
Anjo e talvez fosse um mendigo bêbado. Frieda não tinha nada que especular.
Era jovem e queria viver como uma pessoa jovem. Não queria pensar em
defuntos, meningites, concussões, cirroses ou no Anjo da Morte. Queria pensar
sobre o amor verdadeiro e eterno, queria escutar música, queria ficar balançando
no parapeito de uma janela do sétimo andar, com os braços para fora, sem medo
de cair ou ficar se preocupando com as diversas formas em que os ossos podiam
se quebrar.
Frieda retornou para o hotel, fazendo o caminho mais comprido, por
pequenas ruas laterais. Adorava olhar as janelas e ficar imaginando como seria
ter outra vida. Parou num café e sentou-se a uma mesa ao lado da janela; pediu
um bule de chá e um sanduíche de queijo. Guardou umas migalhas num
guardanapo para levar para o rato. Estava pensando na sua música; era como se
fizesse parte dela. O rapaz na mesa ao lado tentou flertar com ela, oferecendo-lhe
a jarra de leite e, depois, o açucareiro, para o chá, mas Frieda não se interessou.
Então, ele tentou conversar.
“Ouvi falar que John Lennon está hospedado bem nesta rua”, falou, tentando
impressioná-la.
“É besteira”, respondeu Frieda. “John Lennon nunca ficaria nestas
redondezas.”
Retornou para o hotel, abrindo espaço a cotoveladas entre a multidão de
garotas do lado de fora. Jack Henry permitiu que entrasse.
“Está uma loucura”, falou ele, muito feliz, certo de que pegaria uma das
garotas a quem prometesse levar até o quarto onde Lennon estaria,
supostamente, escondido.
Frieda pensou em Jack Henry vasculhando a carteira de um bêbado; não
gostou do olhar que deu a seu vestido preto. Uma coisa era ser observada por
Mick Jagger; outra, totalmente diferente, era por ele.
Frieda subiu até o quarto, pegou a canção e reescreveu-a mais uma vez,
trocando algumas palavras. Quando terminou, parecia perfeito. Usou uma caneta
que pegou emprestada na recepção, com tinta indiana de verdade. Lennie
apareceu depois de ter trabalhado o dia inteiro, exausta. Havia brigado com a
irmã e agora Meg a fazia pagar pelo que dissera, dando a Lennie todas as piores
tarefas. Naquele dia, foi mandada para a cozinha e teve de esfregar todos os
fogões. Então foi enviada a uma suíte onde ocorrera uma despedida de solteiro
na noite anterior. Tirou seu avental branco de arrumadeira e jogou-se na cama ao
lado de Frieda.
“Os seres humanos são porcos.” Lennie se deitou de costas, com um braço
sobre o rosto. “Por que não podem limpar suas coisas? As pessoas deixam
camisinhas no chão. Usadas, porra! E sabem que uma pobre arrumadeira terá de
limpar para eles. Como conseguem viver de modo tão nojento?”
“Ouça isso.” Frieda se ergueu sobre um cotovelo. “Deixe as camisinhas para
lá. Apenas feche os olhos.”
Em outro mundo, ela e Lennie nunca teriam se conhecido. Frieda teria seus
amigos universitários, mas nenhum deles a entenderia como Lennie a entendia.
O quarto estava quente, mas uma brisa entrava pela janela. Escutavam os berros
das garotas reunidas do lado de fora.
“Calem a boca, idiotas”, resmungou Lennie, com os olhos fechados. “Ele
não está hospedado aqui, droga. Perguntei a minha mãe e ela disse que é um cara
chamado Lemming.”
“Ignore-as e me escute.”
Frieda abaixou a persiana para que o quarto ficasse escuro e o barulho,
menos irritante. Ajeitou-se para ler “O fantasma de Michael Macklin”. Leu
lentamente, como se sua vida dependesse daquilo. Quando terminou, jogou-se de
costas ao lado de Lennie.
“Você escreveu isso?”, perguntou Lennie. Seus olhos estavam abertos agora.
“Sim.”
“É bom para caralho. Porra, Frieda. Você é uma poetisa disfarçada?”
“É a letra de uma música”, falou Frieda.
“Quem poderia imaginar? Você é surpreendente. Se quer saber, é uma
aberração da natureza. O que você não consegue fazer? Nunca vou entender por
que está trabalhando como arrumadeira sendo brilhante para caralho…”
“Acha mesmo que é boa?”
“É melhor que ‘We all live in a yellow submarine’2, isso eu posso garantir. É
maravilhosa. Me faz lembrar alguma coisa, não tanto pelas palavras, mas pelas
imagens.”
Era “Greensleeves”; Frieda sabia que era isso. E era exatamente o que queria
fazer, o tipo de música que podia surgir do nada e agarrar uma pessoa pela
emoção.
“Se John Lennon tivesse mesmo se hospedado aqui”, pensou Lennie, “talvez
eu lhe teria dito ‘tenho uma amiga que tem uma música brilhante para o senhor,
senhor Lennon’”. Ela começava a ficar com sono. “Ela finge ser arrumadeira,
mas é uma poetisa do caralho. O senhor precisa resgatá-la do Hotel Lion Park,
Johnny Boy.”
Lennie caiu rapidamente no sono. Frieda nem se preocupou em dizer-lhe que
não queria ser resgatada. Na verdade, era exatamente o oposto. Era a filhinha do
papai, mesmo quando se tratava de um caso de vida ou morte. Nunca se sabe
quem se pode salvar neste mundo.
Frieda ia fazer o turno da noite, assim deixou Lennie dormindo e foi jantar
com algumas outras garotas na cozinha. A equipe do hotel recebia jantar cinco
dias por semana, cujos cardápios eram compostos por aquilo que não se esgotara
no restaurante no dia anterior. Frieda usava o vestido preto sob o jaleco de
arrumadeira. Lavou e ajeitou o cabelo e pintou seus olhos de Cleópatra. Olhou-
se no espelho que ficava no armário alto do outro lado da mesa onde os
funcionários comiam. Estava surpreendentemente atraente. Não parecia uma
garota que se importava com ratos, defuntos e doenças.
“Mas que elegância…”, disse-lhe uma fofoqueira chamada Vicky. “Está na
esperança de encontrar algum músico famoso?”
“Lennon não está hospedado aqui, sua boba”, informou-lhe Frieda,
brincando. “É um homem chamado Lemming.”
Quando Frieda se vestiu, na verdade estava pensando em Jamie. Passara por
seu quarto à tarde e bateu na porta, mas ninguém atendeu. E desceu até a
recepção para perguntar à irmã de Lennie se ele ainda estava hospedado.
“Sabe que não posso lhe dizer”, falou Meg. “Questão de privacidade. Eu
perderia meu emprego. Somos conhecidos pela discrição, não?”
“Acho que é isso que o senhor Lemming espera. Imagina se todas aquelas
tietes o atacassem quando ele provavelmente está aqui para ter um caso ou
vestir-se com roupas de mulher…”
Meg ergueu uma sobrancelha; se não estivesse trabalhando, é possível que
tivesse sorrido. “Por que quer saber sobre o 708?”
“Assunto pessoal”, respondeu Frieda.
“Assuntos pessoais são sempre um erro. Acredite em mim.”
Ainda assim, Meg deixou o livro aberto quando foi ao arquivo fechar a conta
de um hóspede. Frieda folheou até encontrar o nome dele. Ainda estava
registrado. Quarto 708. Não havia ido embora.
Frieda trabalhou rápido naquela noite; não limpou os quartos tão bem quanto
poderia ter feito, mas, francamente, não achava que a clientela do Lion Park
notaria. Estavam mais preocupados com privacidade e portas fechadas. Revirou
as camas, esvaziou as lixeiras e só. Se tivesse passado o aspirador, a maior parte
dos hóspedes nem teria notado. Tudo que queria eram algumas toalhas limpas e
serem deixados em paz.
Assim que acabou, subiu para o quarto dele. Sentia-se tola e envergonhada,
seu coração estava disparado. Ficou pensativa no corredor. Seria erro tornar
aquilo assunto pessoal? Acreditar que fosse algo mais do que simples
arrumadeira? O corredor estava especialmente gelado e havia pequenas feridas
por todo o braço de Frieda. Antes que conseguisse decidir o que fazer, Jamie
abriu a porta. Ia sair para se encontrar com Stella. Já estava atrasado. Cada dia
que passava, usava mais heroína. Nunca imaginou que pudesse ficar viciado,
mas se estivesse… e daí? Parecia onírico e debilitado. Passava a sensação de que
qualquer coisa lhe poderia acontecer. Usava sua jaqueta púrpura, jeans, uma
camisa branca e as botas de caubói que comprara na West Fourth Street da
última vez que fora a Nova York. Sentia-se derrotado e sua carreira nem havia
começado.
“Oi”, falou, quando viu a arrumadeira no corredor. Heroína era como a cama
na casa de Stella, toda de penas, branca e útil.
“Olá”, respondeu Frieda. Ainda usava aquele uniforme idiota, que se
esquecera de tirar. “Sou eu novamente.”
“Estou de saída”, falou Jamie.
“Estou atrasado.” “Lógico. Eu entendo.”
Frieda piscou seus olhos de Cleópatra. Encarava-o de uma forma que a
maioria das garotas não conseguia. Bem focada, de uma maneira estranha. Nem
um pouco constrangida. Agia como se achasse que era alguém importante
mesmo. Era um tanto desconcertante.
“Mas poderia beber alguma coisa antes.” Afinal de contas, Jamie ainda tinha
um pouquinho de tempo. Não estava tão atrasado. A verdade é que gostaria de
permanecer na cama sonhando, parte na realidade e parte em algum ponto a
milhões de quilômetros de distância. Era tão difícil conquistar algo naquele
mundo; havia tantas interrupções. Mas aquela garota era uma distração bem-
vinda. Era como uma porta para outro lugar. Jamie já havia conhecido pessoas
assim – algumas enfermeiras que cuidaram dele enquanto esteve no hospital.
Haviam criado tempo e espaço e permitiram que fugisse de sua dor. Na verdade,
eram mágicas, e, quando iam embora, deixando-o sozinho sob os lençóis e
cobertores brancos de algodão, com a perna palpitando, em agonia, ele tentava
descobrir como conseguiam fazer com que esquecesse de tudo, ainda que por um
instante. Fazia tanto tempo que Jamie tentava evitar a realidade, que agora
procurava qualquer portal para sair. Achou que aquela garota poderia ajudá-lo e
ele nunca rejeitava uma oferta.
Entraram em seu quarto. Jamie nem sequer pensou em ficar envergonhado
com a bagunça. Ela já vira aquilo e, na verdade, que diferença fazia? Logo sairia
dali.
O quarto estava tão bagunçado que deixou Frieda com vontade de rir, mas
logo adiantou-se em abrir a janela. “Meu Deus. Está com cheiro de incêndio
aqui.”
Homens criativos eram desordeiros, sujos e cheios de ideias. Frieda não
ficou surpresa ao ver que o cinzeiro estava transbordando de papel queimado.
Havia cinzas no carpete, além de um chamuscado. Frieda pensou em mover a
mesa um pouco para cobri-lo, de forma que ninguém nunca o descobrisse.
“Minha música”, falou Jamie, quando percebeu que Frieda olhava para a
bagunça de cinzas. Parecia que tinha jogado água em cima, o que apenas
aumentou a bagunça. “Ou o que era para ser…”
“Não funcionou?”
Ele parecia muito destruído e Frieda sempre sentira atração por coisas
destruídas. Ela notou agulhas no cinzeiro. Seu pai sempre lhe dissera para ter
cuidado com objetos pontiagudos, enrolando-os com um lenço para que ninguém
se machucasse. Observou melhor Jamie enquanto ele lhes servia as bebidas. Sua
mão tremia. Era um viciado. O pai de Frieda teria percebido isso na hora, assim
que o visse. Todos os sinais estavam lá: pupilas dilatadas, feridas no braço, a
palidez. Frieda não tinha visto isso, o que a deixou confusa. Costumava perceber
tão bem as coisas. Sempre tão atenta aos detalhes, não havia notado daquilo.
“Realmente não consegui terminar a música”, admitiu Jamie. “Fiquei
travado.”
“Sorte minha…” Frieda não sabia quando se tornara tão descarada. Qual era
o problema dela? Sentiu vontade de abrir a gaveta de cima da escrivaninha para
descobrir o que havia lá dentro. Queria entendê-lo por completo. “Então acho
que agora você me deve…”, falou Frieda.
Jamie olhou para ela, sem entender direito.
“Apostamos a jaqueta púrpura, não que você tenha de dá-la para mim, mas
fizemos uma aposta e acho, sinceramente, que você perdeu.”
Jamie concordou. “Você está certa.” Embora sofresse com a perda, tirou a
jaqueta e deu-a para Frieda. Foi colocada sobre a coxa dela. Ele havia comprado
a jaqueta púrpura depois de seu primeiro bico em Nova York. Depois do violão,
era seu bem favorito. E suas botas de caubói. Não conseguia viver sem elas.
Certamente, não pretendia livrar-se delas. “São consequências da vida, certo?”
“Na verdade, você não precisa dá-la para mim”, disse Frieda, embora
quisesse muito a jaqueta. Passou a mão pelas franjas. As outras garotas
morreriam de inveja.
Jamie fez uma reverência. “É sua. Um homem de verdade precisa pagar suas
dívidas.”
Frieda tirou o avental branco de arrumadeira e vestiu a jaqueta de camurça.
Subiu em uma cadeira para que pudesse se olhar no espelho. A jaqueta era
mesmo dela? A garota de Reading toda paramentada parecendo uma
bonequinha? Se ela se visse andando pela rua, teria imaginado que se tratava de
uma pin-up, parecida com Jean Shrimpton. Frieda deu uma gargalhada, sua
risada era tão pura que Jamie sentiu algo percorrendo-lhe o corpo. Sem pensar
nas consequências, convidou-a a sair com seus amigos.
“Vamos para uma danceteria. Acho que você não está muito a fim de ir…”
Era um clube privado a que Stella e Marianne pertenciam, bem atrás de um
hotel em Mayfair. Se não soubesse que ficava ali, ninguém poderia imaginar que
se tratava de uma danceteria; sem número e sem nome. Era chamado Egyptian
Club e qualquer bebida custava o dobro de um pub decente.
“Quero ir, sim.”
Talvez fosse a jaqueta púrpura, talvez fosse alguma outra coisa, mas ela não
estava com nenhuma vontade de abandoná-lo. Saíram para pegar um táxi.
Bastou um drinque para Frieda se tornar outra pessoa. Jack Henry e Meg, da
recepção, nem a reconheceram quando ela saiu. Não com aquela jaqueta púrpura
e o vestido preto, além de Jamie a conduzindo pela multidão de garotas ainda
acampadas do lado de fora. Quando as fãs viram Jamie, começaram a gritar. Foi
seu cabelo comprido e a garota com olhos de Cleópatra o acompanhando que
deram início à gritaria – pareciam ser pessoas importantes. Correram para o táxi
e entraram rapidamente, rindo. Frieda sentia-se uma impostora, mas não se
importava.
“Não achei que alguém fosse me reconhecer”, falou Jamie. Apenas fizera
alguns bicos em Londres e esses não haviam sido exatamente um sucesso. As
pessoas não pararam de conversar e os aplausos foram bem esparsos. Queriam
algo mais alto do que aquilo que lhes fora oferecido; algo que chacoalhasse suas
almas. “Nem tenho um disco ainda. Era impossível que me reconhecessem. Isso
foi estranho.”
Frieda sorriu. Sabia que aquelas garotas estavam atrás de John Lennon, mas
estavam dispostas a aceitar qualquer pessoa. Bem, ela era uma pessoa, não?
Estava feliz por estar onde estava, longe das estradas cheias de curvas que
levavam aos pacientes de seu pai. Longe de casa. Naquele dia, havia recebido
uma carta da mãe. Não se tratava de uma carta comum. Era mais uma lista. Até
tinha um título: “Quando ele a abandona”. Eram questões práticas, sobre como
amarrar pontas soltas, como ir ao banco, por exemplo, dividir os pertences em
caixas, devolver presentes que ele lhe deu ou vendê-los num leilão pelo melhor
preço. As coisas não estavam muito bem com a mãe de Frieda. Não conseguia
abandonar o médico, ainda que ele estivesse morando num chalé naquela
cidadezinha com a ponte com pedágio e salgueiros. Ele dissera a Frieda que a
vida era complicada. Ela, mais do que qualquer um, entenderia que uma pessoa
precisa viver a vida ao máximo. Ela vira, ao longo dos anos, as coisas com as
quais seu pai tivera de lidar. O Anjo da Morte, que vinha se sentar no banco de
trás do carro. As estradas no campo escuras à noite. Ele precisava de um tempo
sozinho para reavaliar sua vida. Frieda demorou um pouco para se dar conta de
que seu pai não estava sozinho, de que estava com aquela mulher, aquela que
chorou. Bem, talvez Frieda também precisasse ser egoísta. Talvez também
precisasse reavaliar as coisas. Esperava que seu pai se lembrasse disso quando
estivesse infeliz com ela. Essa, afinal de contas, era sua única vida.
No clube a que pertenciam as irmãs Ridge, era preciso que os clientes e seus
convidados tivessem os nomes numa lista, e Jamie tinha. “Lá estão meus
amigos”, falou. Puxou Frieda pela multidão e ninguém questionou o direito de
ela estar lá. A mão de Jamie era grande e calosa e a mão de Frieda encaixava-se
perfeitamente ali. Ela sentiu que ardia por dentro, que acabaria como o carpete
do local, chamuscada pelo toque do rapaz.
Havia tanta gente no Egyptian Club, que Frieda nem sequer teve tempo de
sentir desconforto. Não era bonita como a maioria das outras mulheres, nem rica;
não era nada de mais, pelo menos é o que achava. Mas já passeara com o Anjo
da Morte, e talvez tenha sido por isso que ela adquirira coragem. Não se sentia
intimidada, nem mesmo ali, um lugar a que não pertencia. Quando chegaram à
mesa dos amigos de Jamie, ele cumprimentou Nick e deu um beijo de olá em
Stella. Sua namorada recebeu o beijo, mas estava encarando Frieda. E deu uma
tragada no cigarro.
“Aquela jaqueta é sua”, falou Stella.
“Perdi numa aposta. Sente-se”, disse Jamie a Frieda, que se deixou cair na
cadeira mais próxima. Seu vestido preto realmente era curto. “Esta é Frieda. É
minha musa”, contou para Stella.
“Está brincando, né?”, respondeu Stella. “Eu é quem devia ser a merda da
sua musa, Jamie, não essa estranha.” O cabelo de Stella estava quase branco, e
ela usava um vestido azul transparente. Jogado num canto, havia um casaco feito
de couro de cobra. Sua expressão era de alguém magoado.
“Uma musa não é algo que se escolhe. Simplesmente aparece, Stella. Isso é
arte”, falou Jamie.
Frieda sentiu que ficava vermelha; sentiu-se como o outro anjo do qual seu
pai sempre falava, não daqueles que os acompanhavam, mas aquele que andava
entre homens e mulheres. Sentia ter um dever naquele mundo, que era estar ali
para Jamie, para inspirá-lo.
“Estas são Stella e Marianne, e este é Nick”, apresentou Jamie. Ele fez um
sinal para um garçom e pediu champanhe. Möet. Iria para a conta de Stella.
Pediu duas garrafas. Stella nunca se importava; gostava de que ele gastasse
dinheiro. Afinal de contas, era do pai dela. Alguém tinha de torrá-lo. Contudo,
naquela noite, não estava muito confortável. “É melhor que não esteja fodendo
essa sua musa”, falou.
Stella estava com um colar que parecia ser feito de safiras e diamantes. As
pedras eram enormes; a corrente era de ouro 22 quilates. Esticou a mão para
cumprimentar Frieda. Sua pele estava extremamente gelada. Frieda notou que as
pupilas dela estavam dilatadas. Suas unhas eram compridas e pintadas de branco.
“Então, o que faz além de roubar as jaquetas de outras pessoas e servir de musa
para elas?” Apertou a mão de Frieda com tanta força, que os ossos da garota
começaram a doer. Stella parecia perigosa, como qualquer um que se sinta
ofendido.
“Trabalho em um hotel.” Frieda retirou sua mão. Sentia como se tivesse sido
mordida por uma cobra. Sentia-se violada. Pensou em dizer “lavo banheiros,
pego o lixo e retiro os lençóis sujos das camas de outras pessoas”. Mas, em vez
disso, sorriu. Devia ter imaginado que Jamie teria uma namorada. Não havia
motivo para ficar chocada, assustada ou desapontada. Porém uma namorada não
era necessariamente algo permanente. Isso estava na lista que sua mãe fizera das
coisas que se deve saber sobre amor e casamento: nada dura para sempre.
Marianne estava encostada no ombro de Nick e fez um sinal com a cabeça.
Seu cabelo preto era comprido, até a cintura, e havia dez braceletes de ouro em
cada braço. Sua franja quase cobria seus olhos, que eram de um verde
surpreendente, o que deixava visível sempre que se dignava a abri-los. Sua pele
era branca como a de Stella; Frieda viu as veias por todo o braço dela. Também
tinha abscessos, vermelhos e negros, na pele. Estava com energia suficiente para
dizer a Frieda: “Não ache que pode vencer Stella. Ela é muito mais esperta do
que você imagina. Com certeza, é mais esperta do que eu. Pelo menos, foi, na
noite passada.”
Stella e Marianne riram. Tinham uma centena de piadas que só elas
entendiam.
“E quanto a você?”, perguntou Frieda a Stella. “O que faz da vida?”
“Tudo aquilo que Jamie pede que eu faça”, respondeu. “Quando não tenta
bancar o babaca…”
Quando o champanhe chegou, Frieda pediu uma cerveja – já estava tonta
com o uísque e sabia que champanhe era algo perigoso. Era gostoso demais; era
possível que perdesse a noção do limite e acabasse fazendo algo de que se
arrependesse depois. Cerveja era mais simples.
Havia gente dançando; a música era tão alta que penetrava a cabeça. Um
amigo de Jamie, algum executivo de gravadora, convidou Frieda para dançar.
Seu primeiro impulso foi recusar; o homem era muito mais velho, e Frieda não
gostava de pistas de dança cheias. Preferia observar. E, lógico, ainda havia
Jamie. Não queria, de modo algum, deixá-lo sob as garras de Stella.
“Vá lá”, tentou incentivar Stella. A irmã dela não estava brincando. Parecia
uma peso-pena, mas era esperta e estrategista. “Não queremos que você fique
sozinha”, bramiu. “Não é legal ficar segurando vela.”
Stella e Frieda avaliaram uma à outra.
“Sei o que está tentando fazer”, disse Frieda.
“Bom saber… Adoro uma luta justa, se é isso que você acha que está
acontecendo.” Stella ficou encarando-a; seus olhos eram nebulosos e azuis.
“Apenas para que saiba… nós nem estamos no mesmo universo.”
Naquele momento, Frieda teve a sensação de que Stella estava certa, de que
ela não era muito humana e de que Frieda nunca venceria aquela batalha.
Jamie estivera conversando com o velho e se agachou para sussurrar algo
para Frieda. “Ele é o cara que vai gravar meu disco.”
“Não se preocupe”, respondeu ela. “Vou dizer a ele que você é maravilhoso.”
Na pista de dança, Frieda se sentiu perdida; sua cabeça latejava. Havia muita
gente, as luzes não paravam de mudar de cor e o homem que a acompanhava
dançava muito mal. Na verdade, era embaraçoso. Ele tinha praticamente a
mesma idade do pai dela. Antes do fim da música, Frieda viu Stella e Jamie se
levantar. Jamie ajudou Stella a sair da mesa. Frieda achou que talvez fosse
melhor sair dali, pegar Lennie e partir para beber com alguém que a conhecesse,
num pub em que poderia se divertir. Não pertencia àquele lugar, e, pior, não
queria pertencer. Mas permaneceu; bebeu uma coisa no bar com seu parceiro de
dança, o empresário que trabalhava na Capitol Records nos Estados Unidos e lhe
contou a longa história de seu divórcio. Deve ter achado que Frieda estava
interessada em como sua esposa nunca estivera lá quando ele precisava dela e
como ela devotava toda sua atenção apenas aos filhos. Deve ter imaginado que
ela se importava com isso. Mas, no final, acabou falando sobre o que realmente
interessava a ela: Jamie. Contou que a data de gravação de Jamie fora alterada
para a semana seguinte. Estavam muito empolgados com ele. Estavam
procurando um cantor-compositor, alguém como Dylan. Ele precisava apenas de
uma banda para acompanhá-lo. Sim, os shows não foram muito bons, mas isso
aconteceu porque ele não tocou as próprias músicas. Assim que houvesse um
disco com canções originais, isso iria mudar. De modo geral, acreditavam que
Jamie tinha algo de especial.
“Ah, ele tem”, Frieda logo concordou. “Mas acho que podiam dar-lhe um
adiantamento, como acontece com todos os artistas criativos. Vocês não iam
querer perder alguém tão talentoso quanto Jamie, simplesmente por não lhe
pagarem o suficiente.”
O empresário fez uma careta. A garota era mais esperta do que imaginara,
apesar daqueles olhos de Cleópatra. Parecia algumas agentes com quem
trabalhara; acreditava que estava apenas se divertindo com alguém, quando, na
verdade, tinham todo um plano preestabelecido.
“Não se preocupe com Jamie quanto a isso. Ele tem uma namorada que é
uma pilha de dinheiro. Acho que não importa muito que tenha um conhecido
viciado em heroína.”
“Preciso trabalhar pela manhã”, falou Frieda. “Prazer em conhecê-lo.”
O executivo da gravadora lhe entregou seu cartão, que ela deixou cair
enquanto se dirigia ao banheiro feminino. Precisou perguntar para três pessoas
até conseguir encontrar o toalete e, quando chegou lá, havia uma fila enorme ao
lado da porta.
“Por que as pessoas não ficam chapadas antes de chegar aqui e assim
podermos mijar em paz?”, disse a garota que estava à sua frente, irritada. Devia
haver umas vinte mulheres na fila. Por fim, a porta se abriu e Jamie e Stella
saíram cambaleando. Jamie estava com o braço ao redor de Stella e ela parecia
fraca, uma bonequinha de pano, bonita e incapacitada, leve como o ar.
Frieda sentiu ódio de Stella, algo que raramente sentia. Então começou a se
odiar por sentir ciúmes. Havia se tornado azeda e pequena, uma ninguém. Do
ponto onde estava na fila, podia vê-los retornando à mesa. Enfiaram-se ali, tão
próximos um do outro, que era difícil dizer onde começava um e onde acabava o
outro. Stella se enrolou sobre Jamie. Pareciam perfeitos; encaixavam-se um no
outro.
“Não vou ficar aqui esperando a noite toda”, disse Frieda à garota à sua
frente na fila.
“Bom para você”, respondeu a moça. “Mije em algum lugar onde possa
mijar em paz.”
Frieda saiu do clube e começou a andar. Não tinha dinheiro suficiente para
um táxi. Sentia-se sedutora e estúpida. Lembrou-se da carta de sua mãe. Saiba
sempre o que é seu e o que é dele. Não se torne dependente. Tenha sua conta no
banco. Depois que ele for embora, limpe todos os armários. Bagunça não ajuda
ninguém.
O médico era sempre o centro de tudo, a quem Frieda admirava. Sua mãe
implicava e atormentava, mas agora Frieda achava que talvez devesse ter dado
ouvidos a ela, pelo menos de vez em quando; poderia ter aprendido alguma
coisa.
Frieda pegou um atalho pelo parque e acelerou o passo na escuridão. Estava
feliz por não ter bebido champanhe. Pelo menos, não estava bêbada. Não se
importava com o fato de o parque ser perigoso àquela hora; não estava num
momento de muita cautela. Começou a correr. Fizera atletismo no colegial e a
sensação de relaxar era boa. Seu cabelo cheirava a cigarro, e esse fedor se
evaporava enquanto corria. Havia pequenos grupos reunidos por todo o parque e
Frieda sentia o cheiro de haxixe. Tinha a sensação de ser a única pessoa viva ali.
Sentia que Jamie fora levado embora e estava tão longe, que nunca seria capaz
de descobrir onde estava.
Atravessou gramados e clareiras correndo e trotando e, então, seguiu por um
caminho onde se cavalga. Estaria em situação melhor se tivesse sido um cavalo,
um cavalo branco nos campos escondido no escuro, debaixo de uma macieira
preta e retorcida. Passara tempo demais com o Anjo da Morte. Sabia de coisas
que não devia, mas ainda não conseguia entender os seres humanos. Eles
mentiam, traíam, roubavam e amavam as pessoas erradas. Não havia como
corrigir isso, certo? Nenhuma pilulazinha que fizesse uma pessoa gostar de outra
da mesma forma que a outra gostava dela.
Quando Frieda chegou ao hotel, precisou se agachar para recuperar o fôlego.
Fazia muito tempo que não corria tanto. Escutou um homem tossindo. Lá estava
Teddy Healy, o bêbado do hotel, sentado na calçada, encostado na parede.
“Você de novo”, falou Frieda.
Teddy Healy olhou para ela. Então virou a cabeça e soltou uma tosse
horrível. “Seriam os primeiros estágios de um enfisema?”, pensou Frieda.
Logicamente, ele não a reconheceu.
“Você foi botado para fora, bêbado, e eu o ajudei a pegar um táxi.” Frieda
tentou refrescar a memória dele. “Lembra-se?”
“Desculpe-me”, respondeu Teddy. “Pelo menos hoje consegui sair andando
por vontade própria, antes de desabar.”
“Por que gosta de ficar bêbado?”
“Você é jovem, não é? A bebida me permite chegar o mais próximo possível
da morte, mas permanecendo vivo. Trata-se de falta de coragem. Isso não é
óbvio? Perdi uma coisa que não consigo recuperar.”
“Talvez devesse parar de pensar em si mesmo e começar a fazer algo para
outras pessoas. Quem sabe isso não o ajudasse a parar…”
Teddy Healy riu bastante. “Está me dizendo como consertar minha vida?”
“Não. Estou salvando a vida de outra pessoa.”
Frieda pensou no conselho que havia dado assim que entrou no hotel. Era
exatamente o tipo de coisa que seu pai teria dito. Bem, e ele estava certo quanto
a isso. Quanto mais se dá, mais se recebe. Frieda tinha certeza disso. Lembraria
daquela noite como um sonho ruim, um do qual ela conseguira escapar. Se
algum dia viesse a ter safiras, não ia querer que fossem tão chamativas. Se algum
dia tivesse Jamie, não o trataria de forma tão negligente.
Trocou seu vestido preto por jeans e uma camiseta velha. Lennie não estava
na cama. Depois de pensar um pouco, Frieda pegou suas chaves e subiu até o
sétimo andar. Estava silencioso e não havia ninguém por perto. Frieda entrou no
armário das arrumadeiras e pegou sua cesta e uns lençóis. Seguiu pelo corredor
comprido e frio. Não era do tipo que desistia das coisas. Entrou no quarto de
Jamie e trancou a porta. Estava escuro e por um instante ficou ali sem conseguir
visualizar nada. Lembrou-se do que sua mãe escrevera sobre limpar as bagunças,
a fim de ver o que estava bem diante de seus olhos.
Frieda acendeu as luzes, avaliou a catástrofe de Jamie e passou a trabalhar.
Tirou os lençóis da cama e juntou toda a roupa suja, inclusive as toalhas, que
levou até a lavanderia no terceiro andar e a pôs para lavar enquanto terminava a
limpeza. Fez um trabalho incrível; até esfregou a banheira e poliu os móveis com
óleo de limão. Pensou ter escutado um homem gritando enquanto passava o
aspirador de pó, e talvez estivesse mesmo fazendo muito barulho, mas logo se
deu conta de que devia ser o fantasma no outro lado do corredor. Eram dez e
meia. Rapidamente abriu a porta, mas não havia ninguém ali. A porta do 707
estava fechada e a placa de “Não perturbe” estava pendurada na maçaneta, então
é possível que houvesse um hóspede lá. Talvez fosse mesmo John Lennon ou
algum outro músico que não tivesse medo de espíritos. De qualquer forma, se
havia alguém que algum dia tinha visto um fantasma, esse alguém era o pai de
Frieda, que passava muito tempo com os moribundos e mortos. Mas o doutor
Lewis nunca pronunciara uma palavra sobre fantasmas. Depois que alguém
falecia, só lhe restava o corpo, não havia nada de místico aí. Exceto naquela
noite em que atravessaram a ponte com pedágio para a vila dos salgueiros.
Quando ele chamara pelo nome o falecido marido daquela mulher.
Frieda voltou para sua limpeza. Estava realmente curtindo aquilo. Pensou em
sua mãe, juntando todas as roupas de seu pai em caixas de papelão, levando-as
para uma cabana e deixando-as sobre a grama. Se ela e Jamie tinham terminado
antes mesmo de terem começado, bem, pelo menos o fim seria em ordem.
Quando Frieda terminou e esperava que as roupas de Jamie secassem, sentou-se
à mesa e abriu a gaveta. Havia frascos de pílulas, um saquinho de maconha, um
cachimbinho e vários envelopes cerosos. Abriu um deles e enfiou o dedo dentro.
Pó branco. Experimentou e sua boca ficou dormente. Entendia que as pessoas
tentavam aliviar as dores e que, às vezes, se destruíam sem nem mesmo se
esforçar. Pensou nos passeios de carro com seu pai; ele nunca julgava os
pacientes. Não era de seu feitio e não era o dela também. As únicas pessoas que
julgavam eram um ao outro.
Frieda guardou tudo e fechou a gaveta da escrivaninha. Mas logo abriu
novamente e pegou o bloco de anotações do Lion Park e uma caneta, e começou
a escrever outro poema, canção, ou o que quer que fosse. Anotou palavras soltas.
Serviu-se um copo de uísque – sabia que o copo estava limpo agora, já que o
havia lavado.
Pó branco. Como te amo. Mas não devia. Andando tarde da noite. Quem
está atrás de mim? Quem está à minha frente? Quem me espera? Não há
ninguém na estrada. Ninguém vai aonde vou. Como saberei quem é o anjo?
Como reconhecerei seu rosto?
Frieda escrevia tão rapidamente que nem tinha tempo para pensar. Estava
com muito calor e começou a suar; havia uma linha de suor escorrendo por suas
costas e peitos. A sensação era a mesma de quando escrevia outros versos, de
alguma forma transportada para longe do espaço e do tempo.
Ele não é o anjo no banco de trás do carro. Não é ele que está me
acompanhando. Mas ele sabe meu nome. Sabe como atuo.
No topo da página, Frieda escreveu o TERCEIRO ANJO.
Sentada, terminou de beber; ainda sentia calor, mas era uma sensação boa.
Não era muito diferente do que sentia quando terminava de correr e chegava a
seu destino, podendo finalmente parar e respirar fundo.
Frieda foi buscar as roupas de Jamie no terceiro andar. Enquanto subia pela
escada, quase trombou em Lennie.
“Meu Deus, Frieda, que diabos está fazendo aqui?”
Lennie parecia um pouco bêbada. Estava usando seu melhor vestido, uma
minissaia prateada que comprara numa liquidação na King’s Road e saltos tão
altos que a deixavam cambaleante. Seu cabelo estava despenteado. Usava muita
maquiagem. Parecia uma criminosa, como se tivesse sido pega roubando.
“Estou lavando roupas”, falou Frieda.
Lennie balançou a cabeça, indicando que não acreditava naquilo. “Certo.
Agora me diga que você veio de Marte.”
“É mesmo, são as roupas de Jamie. Tenho de admitir que estou envolvida
demais. Sei que não devia estar lavando as roupas dele, portanto não diga nada.”
“Não vou contar para ninguém”, falou Lennie. “Nem vou te dizer que você é
uma idiota. É para isso que servem as amigas. Não vou fazer perguntas e você
não me dará respostas falsas. Nenhuma de nós fará isso.”
Ficaram se olhando. Frieda estava com uma sensação estranha, como se
tivesse deparado com outra Lennie, não a garota que se tornara sua melhor
amiga. Ela parecia cansada; seus olhos estavam pequeninos. Cheirava a álcool e
seu batom estava borrado.
“Vou para a cama”, disse Lennie. “Esqueça que me viu aqui, Frieda.”
Lennie agia como se estivesse envergonhada por ter sido pega em flagrante,
mas Frieda não sabia do quê. Será que Lennie havia se apaixonado por alguém?
Seria ela tão boba quanto Frieda a ponto de ter se envolvido com um hóspede?
Aquela realmente não parecia Lennie, que sempre era bem cuidadosa com o que
fazia.
“Também vou daqui a pouco”, disse-lhe Frieda.
“Não precisa me dar satisfações”, falou Lennie. “Não preciso saber seu
assunto particular. Você é uma garota crescida, Frieda, assim como eu.”
Bem, aquela era a política no Lion Park, não? Pelo menos quanto a hóspedes,
portanto o mesmo valia para os funcionários. Privacidade a qualquer custo, nada
de fazer perguntas, nem de dar respostas; discrição mesmo entre amigos.
Frieda levou as roupas de Jamie de volta para o quarto, dobrou-as e deixou-
as sobre a cadeira. Suas camisetas estavam gastas e puídas. Tinha duas camisas
delicadas, uma azul e verde, a outra com diferentes tons de vermelho, laranja e
amarelo. Ambas precisavam ser passadas, o que realmente não a incomodava.
Frieda era uma pessoa cheia de habilidade. Gostava de passar roupa; propiciava
um alívio para a mente. Imaginava que talvez fosse por isso que sua mãe nunca
reclamasse das tarefas domésticas.
Quando terminou e tudo foi guardado direitinho, Frieda sentiu que tinha
realizado um feito. Era a isso que sua mãe se referia, o verdadeiro propósito do
trabalho doméstico. Arrumar as coisas. O cheiro do quarto ficou agradável.
Limão e sabão. Dera a Jamie travesseiros extras e um cobertor bom, uma colcha
de seda normalmente reservada para hóspedes famosos. Bem, algum dia ele seria
famoso, então não havia problema. Esperava que o homem da gravadora tivesse
dado ouvidos ao que ela falara sobre o talento de Jamie.
Frieda se deitou na cama por apenas um instante. Pensou no olhar frenético
de Lennie, como se tivesse sido pega fazendo algo realmente terrível, quando
tudo que estava fazendo era subir pela escada. O pai de Frieda lhe contara que a
maioria das pessoas tinha vidas secretas, mas em geral eram segredos que
ninguém queria saber. Pensou novamente na lista que sua mãe lhe enviara.
Sempre use alvejante para lavar a roupa de cama que usou com ele, ou, melhor,
jogue tudo fora e compre novos lençóis. Frieda caiu no sono, já sonhando que
estava num carro com seu pai, numa pista escura. As luzes das casas pelas quais
passavam estavam acesas. Cada luz é uma vida, contou-lhe seu pai durante o
sonho. Cada uma tem seu valor e é facilmente destruída. Frieda acordou porque,
no sonho, alguém se sentou no banco de trás do carro de seu pai; sentiu o peso
dele e, de repente, passou a sentir frio. Queria saber qual anjo era aquele. Ficou
em dúvida se devia olhar ou se, em sua glória e terribilidade, o Anjo da Morte a
pegaria naquele exato momento e lugar caso ela o encarasse. No sonho, Frieda
começou a chorar, ainda que tivesse a sensação de estar acordando. Abriu os
olhos, e lá estava Jamie, ao seu lado na cama, olhando para ela. Cheirava a
cigarro e álcool.
“Que bela surpresa”, falou.
Frieda escondeu a cabeça no peito dele, para que não percebesse que estava
chorando, mas ele sabia.
“Eu entendo”, disse Jamie. “Este mundo é um lugar duro e cruel, Frieda.”
Ele lhe contou sobre sua perna, sobre os meses no hospital, sobre a dor que
sempre o acompanhou. Lutou contra sua deficiência como se fosse uma guerra;
e, na verdade, era um herói, que se recusou a ceder a suas falhas genéticas,
aquela porcaria de perna, toda aquela tortura de aparelhos, cirurgias e zombarias.
Quando chegou à parte sobre a heroína, na cabeça de Frieda, nada que fazia
poderia ser considerado errado.
“Você podia ver um médico para tratar das drogas”, falou. “Ser ajudado.”
Jamie riu ao ouvir isso. “Já vi médicos demais em minha vida. Sei como
lidar com minha dor. Mas acho que é isso que me torna incapaz de escrever.
Quando fico chapado, entrego tudo para os meus sonhos. Isso me deixa
nocauteado, rouba cada pedaço de mim. Tenho as músicas dentro de mim, mas
elas saem flutuando quando sinto dores e não consigo alcançá-las.”
Frieda pegou o papel em que havia escrito “O Terceiro Anjo”. Pretendia dar
a ele “O Fantasma de Michael Macklin”, mas aquela canção era demais; podia
fazer uma pessoa desmoronar. Tentaria aquela antes. Era um momento realmente
solene e, se ela não fosse Frieda, marcada pela extrema confiança, estaria
tremendo. Leu para ele, quando acabou, Jamie olhava para ela como se tivesse
ficado, de repente, totalmente desperto. Não a tinha visto por completo até então.
“Puta merda, Frieda”, falou. “Não sabia que você tinha esse talento.”
“Também sei alguma coisa sobre dor”, disse Frieda. “Meu pai é médico.
Costumava acompanhá-lo em algumas consultas quando era pequena.”
“Pensei que fosse escrever uma canção sobre um fantasma, mas em vez disso
escreveu uma música sobre mim”, falou Jamie. “Sinto-me honrado.”
Passaram a noite juntos, ainda que fosse expressamente proibido pelas regras
do hotel, ainda que Frieda tivesse uma ligeira impressão de que apenas uma
pessoa estava se apaixonando. Mas nunca se consegue ter certeza sobre essas
coisas. O tempo tinha o poder de mudar tudo; sua mãe escrevera isso na lista.
Até mesmo o amor. Valia a pena ficar com ele, não importando o que
acontecesse. Estar com ele era um sonho, quente e intenso, como se estivessem
em algum ponto fora do mundo. Ele produzia em Frieda sensações inesperadas,
e ela fazia coisas que nem sequer conhecia, descobria partes mais profundas,
mais urgentes do amor. Sabia que ele estivera com muitas mulheres, não se
importava com isso. Era ela quem estava na cama com Jamie, e não deram
apenas um beijo, mas milhares.
Jamie lhe disse que nenhuma outra garota poderia representar tanto para ele.
Ela seria sua musa, não apenas naquele instante, mas para sempre. Quando a
manhã surgiu, Frieda não podia suportar a ideia de deixá-lo. Nunca entendera
como as pessoas conseguiam ignorar uma situação, como, por exemplo, alguém
com um diagnóstico terminal conseguia se levantar, vestir-se, preparar o café da
manhã e não pensar na morte o tempo todo. E, contudo, era assim que se sentia a
respeito de Stella. Para Frieda, Stella não existia; havia desaparecido em uma
insignificância loira; podia até estar morando em qualquer outro ponto do
universo. A realidade estava ali, no Lion Park. Os dois na cama. O anjo que os
protegia. A canção que havia aparecido como um sonho.
Frieda estava um tanto sonhadora naquela manhã. Perdera a hora dormindo e
teve de sair com pressa do quarto de Jamie e descer correndo a escada até o
segundo andar. Aprontou-se rapidamente; seu turno seria o da manhã, assim
como o de Lennie. Não era fácil ficar acordada boa parte da noite, fazer coisas
que não se devia estar fazendo e, então, apresentar-se para o trabalho. Frieda e
Lennie estavam exaustas; tomaram café preto no refeitório. Logicamente,
estavam bem atrasadas para o café da manhã. Lennie não olhou para Frieda, nem
falou com ela, mas, por outro lado, estava com pressa.
“Onde passou a noite?”, perguntou a terceira colega de quarto, Katy,
enquanto recolhiam as cestas de removedores, esponjas e esfregões. “Não me
diga que está seguindo o caminho de Lennie…”
“Na verdade, caí no sono no quarto que estava limpando. Foi embaraçoso.
Graças a Deus, o quarto estava vazio.”
“Ainda bem”, falou Katy, aliviada. “Odiaria vê-la entregando-se para o
dinheiro fácil, como Lennie. Quero dizer, não que seja algo fácil. Os caras que
pagam a ela certamente não são Mick Jagger, se entende o que quero dizer. Ela
precisa fechar os olhos, contar até mil e rezar para que terminem logo.”
Frieda riu. “Você está maluca. O que quer dizer com isso?”
“Estou falando que é assim que ela ganha dinheiro. Acha que ela faz
compras na King’s Road com os salários que recebemos aqui? Seu pai é médico,
e você não precisa se preocupar com dinheiro.”
“Eu me preocupo com as coisas”, disse Frieda. Por exemplo, naquele
momento estava pensando em doenças venéreas e nos riscos de uma garota ao
dormir com estranhos. Estava pensando que, talvez, não conhecesse de verdade
sua amiga mais próxima.
“Suas preocupações são diferentes das nossas”, falou Katy. “Diferentes das
de Lennie.”
Naquela tarde, quando o primeiro turno acabou, Frieda procurou Lennie, que
parecia estar evitando-a. A irmã de Lennie, Meg, disse que ela fora até o parque
almoçar. Frieda foi atrás dela. O Hyde Park era enorme, mas Frieda conhecia o
ponto favorito de Lennie, perto da Serpentine. Ela estava lá, fumando um
cigarro. Estava friozinho e boa parte das folhas douradas das árvores do parque
haviam sido derrubadas pela chuva da manhã. Tudo parecia úmido e cinza.
“Está me seguindo?”, perguntou Lennie.
Frieda se sentou num banco ao lado da amiga e roubou um de seus cigarros.
Seu pai fizera com quem prometesse que nunca fumaria. Fez isso numa noite em
que foram visitar um homem que morria de enfisema. Foi uma das piores coisas
que Frieda já viu. Ela tinha dez anos. O homem estava na cama, lutando para
respirar. “Salve-me”, sussurrava para o pai de Frieda, que colocou uma máscara
de oxigênio sobre a boca do paciente. Foi aí que Frieda se deu conta de que
havia algumas pessoas que não se conseguia recuperar, não importando quanto
esforço se fizesse.
“Veja, não vou me explicar para você, nem para ninguém”, falou Lennie.
“Então, cai fora, Frieda. Você não tem nada que se intrometer no que faço.”
“Certo”, disse Frieda.
Lennie olhou para a amiga e riu. “Então é isso? Nada de sermões sobre eu
estar arruinando minha vida? Que cedo ou tarde um desses caras irá me matar?
Que vou pegar sífilis ou ficarei grávida, abandonada para mendigar numa
esquina? É isso que você pensa, não?”
“Para mim, você continua sendo a Lennie, não importa o que faça”, falou
Frieda. “Desde que não esteja na minha esquina”, brincou. Mas, de certa forma,
falava sério; quando se ama alguém, deve-se ser honesto com ele, não? Deve-se
dar-lhe o diagnóstico, como um médico sempre faz. “O que temos aqui?”, teria
ele dito a respeito de Lennie. “Uma garota que faz o que quer, não se importando
com as consequências?”
“Ah, eu estarei lá. Vou aparecer onde quer que você more”, zombou Lennie.
“Vou surgir com um tamborim e um macaquinho que gritará na sua janela a noite
toda. Você pode jogar para mim alguns centavos e uma barra de chocolate. Vai
sonhando…”
“Você é minha amiga. Apoio qualquer coisa que faça.”
“Bem”, falou Lennie. “Isso é um alívio.” Amassou a bituca do cigarro e
assumiu uma expressão séria. “Preciso do dinheiro. Isso pode não ser desculpa
para as coisas que uma pessoa faz, mas não dou a mínima. Não pretendo ser
arrumadeira aqui para sempre. Meg é quem arruma os esquemas, e dou a ela
metade da grana. Daqui a dois anos, pretendemos ter nosso próprio negócio.
Uma pensão. Talvez eu contrate Katy para ser nossa empregada.”
As duas riram com isso.
“Daqui a alguns anos, não seria ela a senhora Mick Jagger?”, ralhou Frieda.
A ideia as deixou próximas da histeria.
“Isso é mais típico de você, achar que algo duradouro pode surgir entre você
e o senhor Futura Estrela do Rock.”
Frieda se calou. Não achou nenhuma graça.
“Não!”, disse Lennie ao notar a expressão de Frieda. “Achei que você fosse
bem pragmática, porra. Achei que visse as pessoas pelo que realmente eram.”
“Lembra-se que concordamos em não tentar dar palpites na vida da outra?”
“Ele é uma causa perdida, Frieda. Nitidamente, está envolvido com drogas.
Você precisa entender o que significa para ele: a garota que limpa o seu quarto.
Ou talvez seja a garota que ele leva para a cama sempre que tem um tempo livre.
E depois você limpa o quarto. É isso, não é?”
“Cale a boca”, falou Frieda. “Você não sabe de nada.”
“Sei que a chance que você tem com ele é a mesma que Katy tem com Mick
Jagger. Na verdade, é menor, já que seu amigo está faminto, e assim ele fará o
que for preciso para conseguir o que quer. E isso não significa se casar com a
arrumadeira.”
“Você não é a pessoa mais indicada para dar conselhos”, disse Frieda. “Não
com essas companhias que você tem à noite…”
“Ah, agora é a minha vez”, falou Lennie. “Pode me atacar, vai…”
“Eu a julguei?”, perguntou Frieda.
Ficaram ali, sentadas no banco, remoendo as coisas.
Durante todo o dia, Frieda pensou no que Lennie havia gritado para ela
quando estava saindo do parque. No final, as pessoas sempre mostram quem são.
Foi isso que Lennie disse. É preciso ser capaz de perceber essas coisas.
Ela se encontrou com Jamie novamente naquela noite. Viram-se no lobby, e
ele lhe disse para subir assim que terminasse o trabalho. Claramente, Jamie
estava interessado. Lennie não sabia nada das coisas. Assim que ficou livre, ela
subiu, mas ninguém atendeu no quarto de Jamie. Frieda usou sua chave para
entrar, a chave-mestra que servia para todos os quartos do hotel. Ficou pensando
“Ele não vai estar aí, vou embora”, mas ele havia caído no sono enquanto a
aguardava. Ela tirou toda a roupa e deitou-se na cama ao lado dele. Não queria
pensar em nada. Não ia ficar se preocupando, como sempre fazia. Ia apenas
viver o momento. Era Frieda ali, no quarto dele, nada além disso.
“Pensei que nunca fosse vir”, falou para ela quando acordou.
Jamie não era o primeiro homem com quem estivera, e Bill também não fora
o seu primeiro. Fora um garoto que ela conhecera num feriado, quando tinha
quinze anos. Decidira que era hora de fazer sexo, da mesma forma que alguém
decide que é hora de tirar carta de motorista, e seguira em frente com a ideia.
Pragmática, sempre fora assim. Isso era totalmente diferente. Era como se
tivesse idealizado Jamie; era por isso que sentia que o conhecia por completo. O
resto do mundo lhe passava despercebido, e era exatamente isso que Frieda
queria. Que não existisse mais ninguém. Então é assim que as coisas são quando
você se apaixona por alguém. Era algo tão profundo, tão vasto, que Frieda ficou
estupefata. Havia ignorado a lista que sua mãe lhe enviara. Nunca mais queria
ler aqueles conselhos. Queria apenas ser ela mesma.
Enquanto ainda estavam na cama, abraçados, Jamie falou: “Quero tocar
aquela música para você”.
Frieda havia quase se esquecido.
“Acho que você vai gostar”, disse Jamie. “Se Deus quiser, vai.”
Levantou-se, pegou o violão e voltou para ela.
“Está meio cru ainda, sabe? Inacabada…”
Frieda adorava coisas inacabadas. Algo acabado tinha um fim, sem
movimento; ela gostava do processo, gostava de coisas que se moviam: rios,
nuvens, batidas do coração.
A voz de Jamie era muito doce, bem clara. Não parecia vir de dentro dele.
Até ele parecia surpreso com a pureza do tom. Cantou “O Terceiro Anjo”, e a
música se tornou algo totalmente diferente, muito melhor do que as palavras que
Frieda escrevera. Tornou-se a história de um homem perseguido por demônios e
drogas. A história dele.
Jamie acabou. Colocou o violão no chão e, então, deitou-se ao lado dela.
“Lindo demais”, falou Frieda. “Amei.”
“Eu lhe disse que você era minha musa. Não sei o que faria se não a tivesse
encontrado.”
Quando Frieda contou a Lennie no dia seguinte, a amiga deu uma
gargalhada. “Você escreveu a porcaria da música… ele chegou a mencionar isso
em algum momento? Ou apenas a assumiu como se fosse sua?”
“É dele. Ele escreveu a música. Quando ele a canta, muda totalmente. Estou
fazendo mais uma para ele. Uma muito boa.”
“Eu, pelo menos, ganho pelo que faço, Frieda”, disse Lennie. E, na verdade,
as duas não eram mesmo muito parecidas; ambas começavam a se dar conta
disso. Desde que prometeram não julgar uma à outra, algo não funcionara.
“Estou apenas sendo honesta com você, Frieda, e talvez você não goste disso.
Mas você escreveu a música. Ela é sua.”
Algum tempo depois, Frieda descobriu que seu pai viria até Londres para
uma conferência e que pretendia visitá-la. Não esperava que ele entrasse em
contato, mas não havia como evitá-lo quando recebesse o telefonema. Não vinha
respondendo às cartas do médico que sua mãe encaminhava, mas, quando Meg
lhe deu o recado, sentiu-se acuada. Frieda não lhe contara onde estava
trabalhando, mas ele descobrira de alguma forma. Aí telefonou para ele, mais
por desespero. Não queria que seu pai visse onde trabalhava. Não que sentisse
vergonha disso, não mesmo. Simplesmente não queria que seus dois mundos
colidissem ali no lobby do Lion Park. E ainda havia Jamie. Não conseguia nem
imaginar os dois homens no mesmo universo. Era melhor manter o médico
distante a qualquer custo.
Concordou em encontrar o pai em um restaurante italiano que ele
recomendara, da Bayswater. Chegou um pouco atrasada, porque não parava de
trocar de roupa, tentando decidir se queria parecer séria ou despreocupada. No
final, um traje sério pareceu mais adequado. Usava uma saia simples e uma
blusa, que seriam perfeitas para Reading. Mas não queria ceder totalmente;
vestiu botas pretas curtas com fivelas. Não estava muito disposta a voltar a usar
sapatinhos delicados. E um pouquinho de delineador; não Cleópatra, mas bem
Frieda Lewis. Manteve sua personalidade.
Seu pai a aguardava quando entrou lá, e já fazia algum tempo. Ela estava
mais de meia hora atrasada, ainda que tivesse se apressado. Estava apreensiva
em relação àquele encontro, e essa preocupação diminuiu seu ritmo.
Normalmente era pontual; na verdade, até adiantada. Pelo menos, até aquele dia.
O doutor Lewis olhava um jornal quando Frieda entrou no restaurante. Ao vê-lo,
Frieda se deu conta de quanto amava o pai; mas lembrou-se de como ele as
traíra, e o amor deixou de parecer tão importante. Deu-lhe um beijo na bochecha,
quando ele se levantou para cumprimentá-la, tentando demonstrar tranquilidade.
“Pensei que tivesse desaparecido da face da Terra”, disse ele.
“Ah, não.” Frieda pediu uma massa e salada. O médico era vegetariano, e,
embora Frieda não fosse tão rígida nesses assuntos, ela acabava seguindo a dieta
dele na maior parte do tempo. Naquela noite, contudo, achou que talvez não
fosse comer nada. Estava sem apetite. Foi assim que tudo começou. Foi assim
que Frieda acabou saindo de casa. Tinha vontade de viver em Londres, mas
também estivera reagindo contra seu pai. Não lhe devia sua vida ou seu futuro,
certo? Não depois da maneira que ele havia saído de casa. Não lhe devia nada.
“Veja, Frieda, acho que você está exagerando. É verdade que eu e sua mãe
não estamos mais juntos, mas isso não é o fim do mundo.”
“Para ela, é.” Frieda queria dizer “Para mim, é”, mas essa reclamação parecia
infantil e egoísta.
“Então, para me punir, você fugiu e, em vez de ir para a faculdade, resolveu
trabalhar como arrumadeira?”
“Quem lhe contou isso?” Frieda ficou pálida ao saber que ele conseguira
descobrir tanta coisa sobre sua vida. E, pior ainda, sabia que ela reagiria a isso.
“Tem alguma importância saber como descobri isso?”, perguntou o médico.
Assim que ele se recusou a lhe contar, Frieda sabia que fora sua mãe. Como
pôde tê-lo ajudado?
“Ela lhe contou? Achei que ela nem falasse com você.”
“A quem esse tipo de comportamento machuca mais? A você, Frieda, só a
você. É a sua vida que está arruinando. Sendo arrumadeira. Não vejo nenhum
problema nisso, mas não é para você.”
“Não estou arruinando nada. Estou me divertindo”, falou Frieda. “Estou
levando minha vida. Não devo nada a ninguém; se eu quiser ser arrumadeira
pelo resto da minha vida, serei!”
“Bill vem me visitar uma ou duas vezes por semana.” Ele tinha de trazer Bill
à tona, mesmo depois de ter sempre dito que Frieda era jovem demais para se
envolver seriamente com alguém. “Não consegue entender por que você não
quer vê-lo, Frieda. Isso está afetando o trabalho dele na universidade. Está
passando por um período muito complicado de estudos, sabe? Sendo bem
sincero, você devia estar lá com ele. No mínimo, por ser tão inteligente quanto
ele. Você não deve nada a ninguém em termos de inteligência. Você tem talento
para ser médica e nós dois sabemos disso.”
“Lembro-me muito bem dela”, falou Frieda. “Chorando. Apavorada.”
A comida chegara e o médico pediu um vinho.
“Acredito que você goste de beber agora…”, disse a Frieda.
“Vou tomar uma cerveja”, falou Frieda para a garçonete. Quando ficaram a
sós, Frieda se voltou para o pai. Ela não era a única que podia ser acusada de
arruinar coisas. “É com ela que você está agora, não é?”
“O marido dela morreu de câncer nos ossos, Frieda. Tenho certeza de que
você consegue entender que ela estava triste.”
“Eu tinha quinze anos, e não tinha medo.”
“Você sempre foi diferente”, disse o médico. “Você era como eu.”
Fazia tanto tempo, aquela noite em que o Anjo da Morte estava bem atrás
dela no carro. Frieda achou tê-lo visto uma vez, com seu casaco preto e um
chapéu sobre os olhos. Abrira todas as janelas, esperando que uma rajada de
vento o mandasse para longe. Mas ele permaneceu no lugar, até chegarem à casa
com os cavalos brancos. Agora seu pai vivia lá, com aquela mulher, Jenny. Ele
caminhava pelos campos todas as manhãs, levando aveia para os cavalos, e
Frieda ficou imaginando se eles corriam até ele quando escutavam a porta
abrindo, se o aguardavam encostados na cerca.
“Não sou nada parecida com você”, disse Frieda. Havia mais assertividade
em sua voz do que em seus sentimentos.
“O amor é mais complicado do que você pode imaginar, Frieda.”
“Bem, muito obrigada pela aula.” Frieda jogou o guardanapo na mesa e
pegou sua bolsa. “Não me telefone mais”, falou para o pai. “Não entre em
contato.”
“Frieda”, gritou o médico.
Ele parecia magoado, mas Frieda não se importou. Não pensou nas estradas à
noite, ou nas músicas que ele cantava, ou na maneira como as pessoas o olhavam
quando havia sofrimento demais e seu pai era a única esperança que tinham. Não
se importava com o fato de ele ainda usar dois relógios de pulso para que nunca
se atrasasse. Ela sempre acreditou que seu pai era a única pessoa no mundo de
quem podia depender, mas estava enganada. Talvez se ela tivesse mais medo, ele
teria ficado com elas, se ela fosse uma garotinha assustada que gritava ao ver um
rato, que tivesse medo da morte e fugisse dos anjos.
Naquela noite, Jamie sumiu. Frieda bateu à porta do 708 e, então, entrou.
Estava escuro, e por isso acendeu a luz. Abriu a janela para entrar um pouco de
ar. Arrumou o quarto e, depois, sentou-se à mesa para anotar algumas palavras
aleatórias. Nem se preocupou em pensar; era como uma escrita automática. As
palavras eram recriminações terríveis. Não era uma música. Na verdade, era uma
lista parecida com a de sua mãe, e Frieda não queria se sentir assim.
Diferentemente de “O fantasma de Michael Macklin”, que guardou para si,
jogou fora aquele poema. Não era possível fazer arte a partir de uma fúria
desenfreada.
Frieda saiu do quarto de Jamie e desceu até o lounge para usar o telefone.
Ligou para sua mãe.
“Recebi sua carta”, disse Frieda. “Sobre homens que vão embora.”
“Bem, tentei de tudo e nada funciona”, falou Violet. “Portanto, esqueça que
escrevi aquilo. Não vou ficar sentada, morrendo, só porque ele foi para outra
mulher. Decidi me consertar.”
A mãe de Frieda fazia serviços voluntários no hospital, bem típico de uma
boa esposa de médico, mas abandonara isso. Em vez disso, estava frequentando
aulas de artes plásticas na faculdade. Agora morava sozinha, algo que nunca
experimentara. Frieda nem sabia que sua mãe gostava de arte. Sua mãe ainda
havia mudado o nome de Violet para Vi. “É mais moderno”, dizia. “Tem mais a
ver comigo.”
“Ele veio me ver”, disse Frieda. “Não consigo acreditar que você tenha lhe
contou onde eu vivo e que trabalho como arrumadeira. Sério, mãe.”
“Mas você não está?”
“E você lhe deu o número de telefone? Você o ajudou a me encontrar,
mesmo sabendo que eu não queria conversar com ele!”
“Ele é seu pai”, disse Vi.
“Mas não parece ser. Saí do restaurante. Nem comi nada.”
“Ele está feliz?”, perguntou a mãe de Frieda.
“Não fiquei tempo suficiente para descobrir”, respondeu Frieda, mas ambas
sabiam a resposta.
“Não se consegue forçar alguém a te amar”, disse Vi.
“Obrigada pelo conselho.”
“Você está bem?”
“Lógico que estou”, respondeu Frieda. “Sempre estou.”
Quando desligaram, Frieda foi até o bar e pediu ao barman uma bebida.
“É contra as regras”, disse-lhe. Funcionários não podiam beber no bar.
“Ela é minha convidada”, disse um homem. Era Teddy Healy, embebedando-
se. “Ela vai tomar uma taça de vinho tinto.”
“Uma cerveja”, falou Frieda. Sentou-se ao lado de Teddy Healy. “Você vai
acabar com cirrose, e, depois que se danifica o fígado, não tem mais como
reverter. Um fígado é insubstituível.”
“Filha de médico ou hipocondríaca?”
“Muito engraçado.” Frieda ergueu a caneca de cerveja que estava à sua
frente. “Saúde.” Deu um gole. “Filha de médico. Não que você tenha nada a ver
com isso.”
“Pensei no que me disse”, falou Teddy. “Acho que vou seguir seu conselho.”
“Ótimo.” Frieda não tinha a menor ideia sobre o que ele falava, mas
provavelmente era bom que algo tivesse feito com que pensasse. As atenções
dela estavam voltadas para outras coisas. Reconheceu um grupo no lobby. Jamie
e Stella, sua irmã drogada com seu namorado bobão, mas bonito, e um terceiro
casal. Frieda deu uns goles em sua cerveja. Stella estava bonita, mesmo a
distância; usava um casaco de pele claro, da mesma cor de seu cabelo, e botas
altas de camurça bege, com botões nas laterais. Ela vai levá-lo à destruição,
pensou Frieda, ou, se não o fizesse, se ele arruinasse sozinho a própria vida,
Stella não seria capaz de recuperá-lo. Ela estaria dormindo, ou se olhando no
espelho, ou drogada demais para levantar do sofá. Estaria empoleirada em algum
lugar pensando em si mesma e em suas necessidades. Ela nunca o entenderia.
Talvez Frieda estivesse procurando confusão, talvez apenas não soubesse
qual era seu lugar no mundo, mas saiu do bar e se dirigiu ao elevador onde
estavam Jamie e seus amigos. Todos estavam chapados, notou. Os olhos
vidrados, a exaustão, palidez. Jamie acenou com a cabeça para ela e sorriu, só
isso. Estava de fraque, mas parecia desgrenhado. Estava com suas botas de
caubói.
“Ora, veja quem está aqui”, disse Stella. “A musa.”
“Olá”, falou Frieda. Para Jamie, não para Stella.
Stella se virou para sua irmã. “Será que você poderia contar para ela? Não
tenho coragem.”
Os outros entraram no elevador, mas Marianne ficou para trás. Estava meio
cambaleante, mas seu rostinho inspirava esperteza, malícia. Usava brincos feitos
de penas. Seus olhos estavam maquiados com kohl, e ela usava os braceletes de
sempre e um enorme anel com uma pedra verde, da mesma cor dos olhos. Podia
ser esmeralda; talvez fosse turmalina.
“Veja, não quero te magoar”, começou Marianne. A expressão em seu rosto
indicava outra coisa. Usava um casaco acolchoado branco e preto sobre um
vestido de cetim preto. Seu cabelo comprido tinha dezenas de trancinhas; quando
mexia os braços, aqueles braceletes dourados emitiam um som que lembrava o
gorjeio de pássaros.
“Não”, disse Frieda. “Não precisa se preocupar com isso.”
“Está bem. Certo. Legal. Bem. Então. Lá vai. Eles se casaram ontem.”
Frieda notou que o latão das portas do elevador não fora polido e que o
elevador já havia chegado ao sétimo andar. Era um modelo antigo, com um
revestimento de latão entalhado e portas de vidro, mas ainda funcionava bem.
Logicamente, solicitava-se aos funcionários que usassem as escadas.
“Você ouviu o que eu disse?”, perguntou Marianne. “Fomos todos ao
cartório, o escrivão registrou o documento, dirigimos até a casa de Nick, em
Wiltshire, e bebemos champanhe a noite toda. Um pastor apareceu hoje de
manhã e os casou novamente, para cumprir a parte religiosa, e também por
diversão. Hoje, fizemos uma festa em nossa casa que durou o dia todo, então
telefonamos para os pais e os informamos. E é essa a história. Senhor e senhora
Dunn. Encare a verdade”, continuou Marianne, “ele nunca a levaria a sério. Você
não é do nosso mundo.” Ela percorreu o lobby com os olhos. “Você é daqui.”
“É por isso que você parece bêbada”, falou Frieda. “Você esteve celebrando.
Bem, toda essa bebida, somada à falta de sono, é terrível para a derme, sabia? A
pele”, completou, já que Marianne parecia confusa. “Um dia, você vai acordar e,
em vez de parecer jovem, sua pele estará pendurada e você parecerá ter cem
anos de idade. Já consigo ver rugas.”
Frieda se virou e subiu para o seu quarto pelas escadas. Para falar verdade,
subiu correndo. Assim que entrou, fechou a porta e encaixou uma cadeira na
frente, bloqueando-a. Não estava com vontade de chorar por causa daquilo. Um
coração partido era uma impossibilidade física, ela sabia disso, mas ainda assim
entendia por que as pessoas usavam essa expressão. Sentia-se assim. Foi para a
cama e ficou toda encaracolada, com os joelhos sobre o peito. Pensou na lista de
sua mãe, das coisas para fazer quando ele a abandona. E então parou de pensar e
começou a se balançar para frente e para trás. O amor não é uma coisa racional;
não há sequer prova de que ele existe fora da imaginação das pessoas. Frieda
contou as rachaduras na parede. Caiu no sono, porém não sonhou com nada,
apenas um vazio e calor. Sentia como se seu peito estivesse sendo esmagado.
Tentou acordar, mas não conseguia; não até ouvir a batida de Lennie na porta.
“Deus, você me deixou preocupada”, falou Lennie quando Frieda finalmente
apareceu e retirou a cadeira para que a colega pudesse entrar. “Pensei que
estivesse em coma.”
“Não precisa se preocupar comigo”, disse Frieda.
Lennie olhou para ela, estreitando os olhos. “Está certo”, falou. “Não irei
mesmo, se é isso que você quer.”
Elas realmente não tinham mais nada em comum.
“Eu estou bem”, insistiu Frieda. A marca do travesseiro em sua pele deixara
seu rosto amarrotado.
“Estou vendo…”, disse Lennie. “Estou feliz por você ter acordado e se dado
conta de quem ele é. Ele se foi, sabia? Fez check-out.”
Só para ter certeza, Frieda foi ao quarto dele naquela noite. Não havia
ninguém no corredor. O único som era o da água no encanamento, já que alguém
estava tomando banho. Usou a chave-mestra e entrou. Não havia mais nada lá.
Alguém já tinha limpado o quarto. É bem provável que tivessem enviado uma
equipe de arrumadeiras, devido ao modo como ele deixara as coisas. Frieda abriu
a gaveta da escrivaninha, para se certificar de que não haviam esquecido nenhum
entorpecente que pudesse criar problemas para ele. Estava tudo em ordem.
Encontrou um bloco de anotações do hotel. Um rabisco a caneta: DEVIA TER SIDO
VOCÊ. Frieda rasgou a página, dobrou-a e colocou-a no bolso. Sentia aquelas

palavras estampadas em seu rosto. Não conseguia pensar em nenhuma outra


palavra. Deitou-se na cama que haviam compartilhado e tentou pensar, mas não
conseguia. Apenas aquelas palavras. Não conseguia superá-las.
Pouco tempo depois, já eram dez e meia, a hora assombrada. Frieda podia
escutar o barulho no corredor, a voz do homem começando a aparecer, o pânico
evidente, como se tivesse sido tão traído, que mal conseguisse falar. Frieda saiu
da cama e foi até a porta. Lá, podia escutar o homem mais claramente: “Achei
que você me amasse”, dizia.
Frieda sentia sua pulsação ecoando em seus ouvidos. Sentia que qualquer
coisa era possível. Abriu lentamente a porta. Pensou ter visto um homem de
terno preto lá. Um jovem bonito bem em frente à porta do 707. Achou que ele
parecia estar chorando.
“Michael Macklin?”, perguntou, mas o indivíduo, ou o quer que fosse, não a
escutou. Ele estava lá, mas estava de alguma forma bem distante. Frieda ficou na
porta e ficou olhando até o indivíduo desaparecer. Uma mão e um pé. Um blazer
e a parte de trás de sua cabeça. Tudo foi tão rápido; ela piscou, e ele se fora, e
tudo o que restou foi um minúsculo globo de luz, como aquelas nódoas que
aparecem atrás dos olhos de uma pessoa quando começa a desenvolver catarata;
um orbe branco pairando no ar por um instante antes de desaparecer. Tudo
sumira. Frieda voltou para seu quarto e dormiu vestida. Pela manhã, juntou seus
pertences.
“Você não vai me deixar sozinha neste cu de mundo, vai?”, perguntou
Lennie.
Frieda a abraçou. “Não vou ficar aqui para lhe dizer o que fazer”, falou.
“Você está por sua conta e risco.”
“Bom, porque eu nunca dava ouvidos mesmo.”
E riram. Foi uma amizade perfeita, que só poderia ter existido naquele
período de tempo. Se Frieda tivesse ficado mais um pouco, a relação entre as
duas teria degringolado; as diferenças entre elas teriam tornado impossível que
se entendessem ou até mesmo que gostassem uma da outra. Mas, naquele
instante, estavam fungando.
Antes de ir embora, Frieda parou na recepção e pediu um último favor a
Meg. Solicitou o endereço de correspondência que Jamie deixou quando fez o
check-out.
“Se eu for pega, isso custaria meu emprego”, disse Meg, recatada.
“Mas você não se importa em fazer outras coisas que são contra a lei, nem se
importa em colocar Lennie em perigo. Não é isso que se chama cafetinagem? Ou
seria apenas uma orientação fraternal?”
“Por que não cala essa boca? Você teve uma infância privilegiada; não tem a
menor ideia do que seja cuidar de si mesma.”
“Dê-me o endereço, Meg, e então você pode fazer o que bem entender…”
Meg anotou um endereço em Kensington. “Não diga que conseguiu
comigo.”
Frieda saiu sem olhar para os lados. Sua mala não era muito pesada. Não
tinha muitas coisas. Deixara a maior parte de seus pertences em Reading. A rua
onde Stella vivia era linda, sombreada por árvores, bem particular. As irmãs
moravam em uma bela mansão eduardiana, que parecia um bolo de casamento.
Calcário branco, cinco andares, de frente para um parque privado onde dois
cachorrinhos pretos perseguiam pardais. Frieda se sentou em um banco diante do
portão de ferro forjado que rodeava o parque. A cerca era tão velha, que havia
musgos amarelados sobre ela, duros como tijolos. Havia uma pequena fonte
dentro do parque e algumas crianças brincavam ali. Suas vozes eram tão doces.
A luz mudara. Não era o azul do verão ou o anil profundo de setembro. O pai de
Frieda lhe contara que pessoas acometidas por uma doença mortal costumam
sobreviver em temperaturas amenas e que ocorrem mais mortes durante ondas de
calor e tempestades de neve do que se pode imaginar. E ainda mais mortes
acontecem logo depois de um feriado ou de um grande evento da vida; o
nascimento de um neto, por exemplo, ou um casamento.
“As pessoas têm uma força incrível”, dizia o médico. Elas persistem além
dos limites do que se costuma considerar humanamente possível.
Um Mercedes verde-escuro apareceu, o motorista saiu e se encostou no carro
para fumar um cigarro. Ele era jovem e usava um terno marrom. Frieda decidiu
observá-lo, ganhando mais tempo para si.
O motorista aguardou pelo menos meia hora, quando então a porta da frente
da mansão se abriu e Stella e Marianne saíram, com pressa e gargalhando.
Trajavam vestidos curtos de seda, um lilás e o outro azul; roupas curtas demais
para a estação. Estavam rindo, andando abraçadas. O motorista se apressou em
abrir a porta do carro para elas; ignoraram-no completamente e se enfiaram no
carro. O motorista notou a presença de Frieda e, enquanto fazia a volta por trás
do automóvel, acenou para ela, como se a conhecesse. Frieda acenou de volta –
ambos precisavam de uma afirmação de que também eram seres humanos, que
valiam alguma coisa naquela vida.
Quando o carro partiu, Frieda atravessou a rua e subiu os degraus de granito.
Deu-se conta de que estava prendendo a respiração. Era algo estúpido a fazer,
pois causava hiperventilação. Apertou a campainha e, para ter certeza, bateu na
porta. Nunca fora tímida. Só se sabe o que se vai conseguir se arriscar.
Uma mulher apareceu à porta, uma loira clarinha, na faixa dos cinquenta
anos, que parecia Stella dali a alguns anos, isso se a garota não se matasse com
drogas antes. Muito elegante, muito atraente e muito ocupada. Claramente não
estava muito satisfeita por a estarem perturbando.
“Desculpe-me por incomodá-la”, começou Frieda.
“Bem, então não incomode”, disse a mãe de Stella, a senhora Ridge. “Acabei
de retornar de uma longa viagem e todos os criados pediram demissão em minha
ausência. Isto aqui está um completo desastre. A casa está uma bagunça e minha
vida está desmoronando. Então me diga o que quer e seja rápida.”
“Vim aqui para ver Jamie”, falou Frieda.
Daisy Ridge parou de folhear uns papéis que tinha na mão. Era sua lista de
tarefas por fazer. Olhou para Frieda com bastante atenção. “É mesmo?”
“Só por um minuto”, disse Frieda. “Não vou me demorar.”
“Se for algum tipo de entrega, por favor, dê a volta e entre pela porta de trás.
A única empregada que permaneceu está lá fazendo Deus sabe o quê. Acredito
que pensando em como pedir demissão.”
“Não é uma entrega.”
Frieda usava delineador de olhos preto e seu vestido preto por baixo da capa
de chuva. Parecia muito competente, alguém que sabia o que estava fazendo.
Sua mala estava equilibrada sobre um degrau. A senhora Ridge olhou para a
mala. Era uma peça antiga, que estava estragada, mas fora reparada com fita de
empacotar.
“Se veio aqui para levá-lo para casa consigo, fique à vontade. Ele é todo seu,
sério mesmo, se é isso que quer.” Muitas vezes, desejava ter dito isso para sua
irmã quando discutiram por causa de um mesmo homem.
Frieda olhou atrás da senhora Ridge. O piso na entrada era um mármore
branco e preto. As paredes da sala de estar eram pintadas de vermelho, ainda viu
uma pátina brilhante.
“Pode dizer a ele que estou aqui? Meu nome é Frieda.”
A senhora Ridge abriu um pouco mais a porta. “Diga-lhe você mesma. Ele
está no terceiro andar. Segunda porta à esquerda. Na cama, onde imagino que
passe a maior parte do tempo.”
“Obrigada.” Frieda guardou sua mala no canto onde havia um espelho
adornado e um porta-guarda-chuva. Era um móvel dourado, com uma cabeça de
cisne em cada ponta. “Vou apenas deixar minhas coisas aqui.”
“Ele não a prejudicou de alguma forma, certo?”, perguntou a mãe de Stella.
“Porque, caso tenha feito algo ruim, a polícia chega aqui num instante. Para falar
a verdade, ficaria feliz em fazer isso. Posso ajudá-la, sabe? Posso mandá-lo para
a cadeia.”
“Não precisa se preocupar.” Frieda não era do tipo que confiava em pessoas
e certamente não estava disposta a contar nada para aquela mulher. Não que a
senhora Ridge fosse tão facilmente dissuadida. Claramente, ela queria se livrar
de seu novo genro, não importando como.
“Ele a engravidou?”
“Não, mas, mesmo que tivesse engravidado, isso não é um crime, não é?”
“Tenho certeza de que, se procurarmos com atenção, conseguiremos
encontrar vários crimes relacionados a Jamie.”
“O marido da senhora também o odeia?”, perguntou Frieda.
“Meu marido odeia todo mundo. Ele não faz distinção.”
“Bem, não vou me demorar”, falou Frieda.
Já ouvira demais. Subiu as escadas. O carpete era dourado, com uma
estampa de folhas prateadas. Frieda não tirou os olhos do chão até chegar ao
terceiro andar. Tudo dentro da mansão parecia um bolo de casamento. As
cornijas, os frisos e as portas. Frieda bateu na segunda porta. Era pintada de
creme e dourado. Parecia pesada o suficiente para conter a polícia, caso fosse
algum dia chamada. Nada de resposta, mas era bem possível que a porta também
abafasse o som. Frieda achou que deveriam ser necessárias três ou quatro
arrumadeiras para manter em ordem uma casa como aquela.
Ela abriu a porta do quarto. Dentro, quase tudo era azul: as paredes, a liteira
sobre a cama. Era como uma linda gaiola. O tapete era persa e bem grosso; os
móveis eram de mogno, adornados com detalhes dourados. Jamie estava, de fato,
na cama. Frieda olhou para ele por um instante. Ele lhe parecia bonito e muito
distante.
Frieda se sentou numa cadeira ao lado da janela. Era uma cadeira damascena
de seda azul e dourada. Havia um cheiro de jasmim e cítrico; imaginou que
deveria ser o perfume que Stella usava. Dali, era possível ver o parque, as
árvores douradas, o céu azul. Ali de cima, o mundo parecia um lugar diferente,
muito distante, muito pequeno.
Depois de um tempo, Frieda foi até o armário e o abriu. Era um closet com
enormes prateleiras embutidas; havia um monte de vestidos e pares de sapatos.
Havia minúsculos vestidos Mary Quant, vestidos da Biba em tons de branco,
creme e amarelo e uma fileira de blusas vitorianas com botões de pérola. Havia
três jaquetas de couro, uma preta, uma rosa, uma com listras brancas e canelas.
Havia vestidos ciganos e terninhos Chanel. Havia o casaco de couro de cobra
que Frieda vira Stella usando no Egyptian Club, pendurado negligentemente
num cabide, e várias peles, uma delas tingida num tom alaranjado claro. Havia
dois pares de botas Courreges e dezenas de sapatilhas, de tudo quanto era cor.
No fundo do closet ficavam as botas de camurça castanha com botões, que
Frieda admirava. Ela tirou as botas curtas pretas e vestiu as de Stella. Serviram
perfeitamente. Voltou para a cama e sentou-se na lateral, com as pernas sobre a
ponta. Era uma cama bem alta. Jamie abriu os olhos e sorriu quando a viu.
“Onde estou?”, perguntou.
“Acho que está em sua cama nupcial.”
Jamie se sentou e limpou o sono dos olhos. Estava razoavelmente sóbrio,
mas isso não duraria muito. Sentia uma dor de cabeça terrível e suas pernas
estavam lhe arrebentando. “Conseguiu um emprego aqui?”, perguntou a Frieda.
Ela gargalhou ao escutar isso. “Parei de trabalhar como arrumadeira”,
respondeu.
“Que bom, então…”, disse Jamie. “É um emprego que não leva a nada.” Fez
uma pausa. “Não sei o que aconteceu. As coisas apenas aconteceram. Eu queria
me despedir.”
“Bem, agora você pode”, falou Frieda.
Ela notou uma agulha usada sobre o criado-mudo de mármore. Havia um
cinzeiro repleto de bitucas e um pequeno cachimbo de haxixe.
“Ou poderíamos continuar nos vendo”, sugeriu Jamie. Ele puxou seu cabelo
para trás, que estava quase na altura dos ombros. Decidira que nunca mais ia
cortá-lo. Não precisava se sacrificar. Que se dane. “Quero dizer, temos apenas
uma vida neste mundo, e portanto precisamos seguir nossos desejos.”
Jamie lhe deu um beijo, que durou um tempo, mas Frieda se afastou. Ele
parecia frio, era estranho, como se tivesse acabado de sair da chuva. Ela tinha
uma lembrança diferente dele. Era mais quente; deixava-a queimando por
dentro.
“Estou com frio para caralho”, falou Jamie.
“Como foi a gravação?”, perguntou Frieda.
Jamie pegou um cigarro do maço sobre o criado-mudo e deu um para ela
também. Encontrou a caixa de fósforos e acendeu os dois. “Legal”, respondeu.
“Infelizmente, o pessoal da gravadora disse que ‘O terceiro anjo’ será o lado B.
Ainda preciso de um sucesso. Nunca estão satisfeitos.”
“Você a ama?”, perguntou Frieda. “Quero dizer, espero que não se importe
com a pergunta, mas eu gostaria de saber.”
Jamie olhou para ela e sorriu. “Bem, nem tudo tem a ver com amor, Frieda.”
“Não?”
“Não para pessoas como nós”, disse. “Pessoas que andaram lado a lado com
o Anjo da Morte.” Virou-se para o lado e ficou analisando o rosto dela. “Stella
nunca teria de saber sobre nós. Ou, mesmo que soubesse, isso não nos afetaria
nem um pouco. Não teria nada a ver com essa coisa que existe entre nós. Isso é
algo raro.”
Frieda desejava tê-lo conhecido antes de ter ficado doente, quando ainda era
um garotinho que não vira nenhum anjo ou fizera um voto de seguir seus
desejos, não se importando com as consequências. Naquela época, ele era
diferente, tinha certeza disso; um garoto que tinha tudo pela frente, um futuro
que valia a pena viver.
“Você perdeu muito tempo de escola quando criança?”, perguntou Frieda.
Jamie riu. “Você vem aqui conversar comigo em minha cama nupcial, e essa
é a pergunta que tem para fazer?” Frieda riu também. “Perdi três anos”, contou-
lhe. “Nunca consegui recuperar.”
Pode ter parecido uma pergunta engraçada, mas Frieda sabia exatamente o
que havia perguntado; essa questão servira para que não o odiasse.
Ela voltou para a cadeira ao lado da janela, enquanto Jamie se levantou para
ir ao banheiro. Vasculhou a gaveta do criado-mudo, tentando encontrar seus
trabalhos. Pegou um envelope pardo de uma caixa branca e preta de marfim e
madeira.
“Já volto”, falou.
Pegou um roupão.
“Já o vi pelado”, lembrou-lhe Frieda. “Não precisa ter vergonha.”
“Certo.” Jamie deu um sorriso e entrou no banheiro. Frieda viu as folhas de
papel e foi lá investigar a penteadeira. Era um belo móvel, pintado de branco,
muito antigo e incrustado de madrepérola e abalone. Tinha três espelhos. Frieda
ficou surpresa ao descobrir que seu reflexo era diferente do que esperava ver.
Estava quase bonita. Pegou um dos batons sobre a mesa e o passou nos lábios.
Um brilho claro. Olhou-se e, então, tirou o batom com um lenço. Não era sua
cor. Usou a escova de casco de tartaruga de Stella. Da próxima vez que Stella
penteasse o cabelo, veria cabelos escuros com seus fios claros enrolados nas
cerdas. Tentaria imaginar, por um certo tempo, quem teria estado lá. Quem havia
escalado até um mundo a que não pertencia.
Depois de mais ou menos vinte minutos, Frieda foi até o banheiro e abriu a
porta. Jamie estava no chão. Era um mármore branco e preto, assim como o do
hall de entrada. Ela se ajoelhou ao seu lado. Pegou seu punho e mediu a
pulsação. Estava lenta e constante. Ele estava vivo.
“Jamie”, falou.
Ele murmurou alguma coisa. Sua cabeça estava encostada na lateral da
banheira. Frieda podia ver suas costelas, seus braços; conhecia todo o corpo
dele, mas havia mudado. Estava muito mais magro. Havia uma marca azul, que
parecia uma ameixa, em sua testa.
“Você está bem?”, perguntou Frieda.
“Sim.” E acenou com a cabeça. Ou tentou. “Preciso apenas de um minuto”,
falou.
Frieda voltou para o quarto e pegou sua bolsa. Abriu-a e retirou a primeira
canção que havia escrito. Não queria dar tudo para ele de uma vez só; estava
reservando, esperando para ver se ele valia a pena, ou, talvez, apenas esperando
para ver o decorrer das coisas. Agora ela sabia.
Deixou-a sobre a cama, sobre o travesseiro. “O fantasma de Michael
Macklin.” Podia ter levado um cobertor ou um edredom para ele, tentando deixá-
lo mais confortável no chão do banheiro, mas Frieda achou que Jamie nem
notaria a diferença. Sentiria frio de qualquer forma.
Frieda saiu e fechou a porta. Desceu a escada e pegou sua mala no saguão de
entrada. Seus passos ecoavam pelo piso de mármore. Frieda só tinha certeza de
um item da lista que teria feito: ela não ficaria parada olhando-o pegar sua vida e
entregá-la para ele tão facilmente. Não ficaria em silêncio ao perceber que ele
escancararia a porta para o Anjo da Morte, convidando-o, implorando para que
entrasse. Nunca se manteria à distância de sua vida enquanto ele estivesse
seguindo os próprios desejos. Frieda não queria nada em troca de suas músicas.
O que ela queria, não podia ter. Sabia disso. Sentia que estava com o que
algumas pessoas chamam de coração partido, mas não era nada físico, e
certamente isso não evitaria que pegasse sua mala e a levasse até um trem.
A mãe de Stella surgiu na sala de visitas quando Frieda se dirigia à porta.
“Sua relação com ele acabou ou devo contar a Stella sobre você?”,
perguntou. “Ele é seu namorado, não é?”
A senhora Ridge era uma mulher muito alta. Parecia ter sido modelo em
algum momento de sua vida. Agora parecia um pouco mais delicada do que
antes, como se estivesse sentindo falta de alguma coisa, mas não sabia
exatamente o quê.
“Diga-lhe o que você quiser”, respondeu Frieda. “Ela é sua filha. É você
quem se importa com ela.”
Frieda já sabia que sua relação com Jamie nunca teria um fim. Sabia disso
enquanto carregava sua mala até a Rua Kensington High. As botas que pegara no
closet de Stella eram de salto alto, mas eram confortáveis. Era como se sempre
tivessem sido suas.
Um casal saía de um táxi, assim Frieda entrou com sua mala e perguntou se o
motorista podia seguir pelo Hyde Park na direção da estação de trem. Parecia o
fim das árvores amarelas. Folhas caíam. Ela se lembraria para sempre da vista
que tinha delas da janela do quarto de Stella.

EMBORA SONHASSE com isso, Frieda não estaria lá no inverno. Recebeu uma
carta de Lennie em dezembro, em que dizia que o parque parecia diamantes
depois de uma tempestade de gelo. Ajax, o gerente, pedira demissão, e os
quartos do segundo andar estavam passando por reforma, já que umas garotas
haviam iniciado um incêndio com seus cigarros.
“Espero que não esteja preocupada comigo”, escreveu-lhe Lennie. “Minha
ideia é ser forte. Quero sair daqui em menos de dois anos”.
Mas, quando Lennie e Meg foram desmascaradas, na semana do Natal, as
duas foram mandadas embora pela gerência e receberam até ameaça de o caso
ser levado à polícia, Frieda nunca mais ouviu falar da amiga. Nessa época,
Frieda já estava casada. Havia considerado a ideia antes mesmo de fugir para
Londres, e agora a tinha concretizado. Bill era o tipo de homem que dava apoio à
esposa, não importando o que acontecesse. Era honesto e leal, e talvez fosse isso
que ela estava buscando. Frieda e Bill Rice tiveram um casamento tranquilo no
início de dezembro; foram ao cartório e, depois, almoçaram no The Swan,
apenas com familiares mais próximos e alguns amigos. Havia salmão frio e
champanhe, e o pai de Bill, Harry Rice, fez um longo brinde, que levou todos às
lágrimas.
Com exceção de Frieda; ela não era de chorar. Estava elegante com seu
cabelo comprido e escuro amarrado, usando um terno bege claro e botas de
camurça de salto alto. Até mesmo seu pai, o médico, estava com lágrimas nos
olhos, algo que surpreendeu totalmente Frieda. Nunca o vira chorando, exceto
uma vez, quando foram visitar uma garotinha, num apartamento em Reading,
que estava passando por quimioterapia. Frieda tinha nove anos, com idade
suficiente para ser sua ajudante, mas naquela vez precisou aguardar no corredor;
o médico vestiu uma máscara e revestiu seus sapatos. A garotinha estava
suscetível a germes.
Naquele atendimento, Frieda só percebeu que ele estava chorando quando,
no caminho para casa, virou-se para perguntar a seu pai se ele podia ajudá-la
com a lição de matemática assim que chegassem. Ela deve ter feito uma
expressão de espanto.
“Todo mundo chora”, disse-lhe seu pai. “Até mesmo eu.”
“Ela vai morrer?”
“Bem, todos vamos morrer”, respondeu o pai de Frieda. “Algumas pessoas
agora, outras depois.” Isso não era muito confortante. “Ela é uma garotinha
muito dócil. Não é de reclamar. Bem parecida com você.”
Estavam parados num semáforo. Frieda se lembrava muito bem daquela
noite; ela se aproximou do pai. Sempre se sentia segura a seu lado. “Eu estou
bem”, falou. “Não vou ficar doente.”
O médico riu e deu-lhe um beijo no topo da cabeça. Não fazia isso com
muita frequência. “Obrigado”, disse, sem motivo algum, talvez porque não fosse
ela a garotinha morrendo no quarto, talvez por ela entender que mesmo ele
precisava de uma palavra de conforto de vez em quando. Ou talvez foi
simplesmente por ela ser sua filha, e ele a amar.
Frieda o convidou para o casamento, embora soubesse que seria algo difícil
para sua mãe. Quanto ao médico, ele foi decente o suficiente para deixar sua
nova esposa em casa. Vi se saiu muito bem na presença do ex-marido. Todos
foram civilizados. Frieda ficou feliz por isso. Ela entendia por que se deve ser
educado; é uma técnica de sobrevivência.
“Então agora você é uma mulher casada”, disse o médico para Frieda,
durante o almoço. Era um buffet. Frieda não gostava de complicar. “Você teria
sido uma grande médica, minha filha. Você tinha o dom.”
“Sem coração?”, perguntou Frieda. “Seria esse o pré-requisito?”
Seu pai olhou para ela. “Acha que eu era sem coração?”
Não importando o que ele tivesse feito, Frieda precisava ser honesta.
“Não. Acho que você era corajoso. Sou eu quem não tem coração.” Frieda
acenou para Bill. Seu marido era um homem extremamente gentil. Estava no
segundo ano da Universidade de Reading, no departamento de química. Agora,
casados, iriam morar numa cabana na fazenda de seus pais, pagando aluguel, é
lógico, mas com um valor reduzido. Afinal de contas, ele precisava pensar nos
seus estudos. “De toda forma, estar casada não significa que esteja morta. Vou
frequentar aulas de enfermagem. Quero me especializar em oncologia.”
O médico ficou contente. “Você vai usar seu talento. Isso me deixa muito
feliz.”
Quando Frieda descobriu que estava grávida, durante o primeiro semestre do
curso, Bill ficou maravilhado.
“Ah, pare com isso”, brincou Frieda. “É apenas um bebê.”
“Apenas!?”, falou Bill. “Apenas?”
Era primavera, e Frieda completou o semestre. Era uma boa aluna, mas
menos habilidosa com a gravidez. Sentia-se cansada e irritadiça, e não tinha
muita vontade de comer. Aos sábados, sempre encontrava um tempo para sua
mãe. Faziam longas caminhadas pelos campos. A mãe de Frieda parecia ter
envelhecido; estava quase sempre confusa. Ainda assim, Vi se dizia apaixonada
por coisas pelas quais nunca havia indicado interesse e inscrevera-se no clube de
defesa da ecologia da região. “Se não salvarmos a Terra, quem irá?”, perguntava
para a filha. Tornara-se uma ornitófila radical e não conseguia mais controlar
seus sentimentos como antes. De certa forma, parecia mais livre. Uma vez,
enquanto andavam por uma fazenda, a mãe de Frieda se virou para ela e disse:
“Você não tem ideia de quanto vai amar seu filho.”
“Ora, mas é lógico”, respondeu Frieda. Toda mãe amava o filho.
Sua mãe lhe agarrou o braço. “Estou falando sério, Frieda. Não quero que
fique surpresa. Nada mais vai importar. Você não tem ideia.”
Frieda abraçou a mãe e, então, voltaram a andar, procurando pássaros. Vi
anotava num caderninho as espécies que encontravam: pombo, águia, melro,
pardal, carriça. Frieda se ocupava com outras coisas enquanto passeavam pelos
campos. Como sempre, estava pensando em Jamie. Deixara-o naquela mansão
em Kensington, mas não o abandonara. Levara-o para Reading consigo. Jamie
podia muito bem estar sentado à mesa, todas as noites, durante o jantar, enquanto
Frieda e Bill conversavam sobre seus dias. Podia também estar bem ali na cama
com eles. Com certa frequência, Frieda sentia-se uma traidora; bancava a boa
dona de casa, mas, à noite, quando se sentava na cozinha, olhando pela janela,
estava sonhando com outra vida. Às vezes, ficava olhando pela longa entrada de
cascalho, ainda esperando que Jamie Dunn aparecesse, depois de tê-la buscado
por toda Reading em um táxi ou uma limusine. A jaqueta púrpura estava dobrada
no armário, com uns suéteres velhos e o minivestido preto, coisas que nunca
voltaria a usar, mas das quais não conseguia se livrar.
Naquela primavera, quando Frieda estava com sete meses de gravidez,
escutou Jamie no rádio. Sobre a mesa da cozinha, um rádio ligado. Ainda bem
que estava sozinha. Havia preparado um bule de chá russo e um muffin com
geleia. Sentia fome o tempo todo. Do lado de fora, tudo estava verde. A casa dos
pais de Bill era conhecida como Casa Lilás, e a cabana deles tinha o nome de
Cercado, por ser rodeada por buxinho, que precisava ser aparado todos os anos.
Ela amava viver na zona rural. Antes ansiosa pela vida das cidades, havia se
tornado uma ornitófila. Até frequentava as reuniões do grupo Salve a Terra com
sua mãe, e se envolvera com todos os tipos de atividades em prol do ecossistema
da região.
Estava muito feliz e, então, de repente, ouviu a voz dele. Frieda sentiu como
se tivesse levado um tiro, como se algo a houvesse penetrado, chumbo, gelo,
pesar ou amor. Sentou-se. Era “O fantasma de Michael Macklin”. Era como se
ela nunca tivesse escrito a música, como se tivesse sido criada unicamente com a
força da voz de Jamie. Era diferente em muitos níveis; agora havia guitarras e
uma batida, bem pulsante, mas no cerne era a mesma canção.
When I walk down this hallway, everyone thinks I’ve left you, but I’m here in
my black coat, I won’t ever be gone.3
Frieda escutou rádio o dia inteiro, esperando ouvi-la novamente, e então,
pouco antes de Bill chegar em casa, vindo da faculdade, encontrou uma estação
que a tocava. Dessa vez, ela estava mais preparada, menos estupefata com o som
da voz de Jamie. Ouviu-a como se fosse uma crítica de música, e foi novamente
persuadida. Era sua primeira gravação, um single, e a estação de rádio dizia que
havia muita expectativa a respeito do álbum, Lion Park, que devia sair até o fim
da semana. O single disparara como um bólido na lista de mais pedidas, já sendo
a número cinco. Um bólido devia ser algo bom; significava que estava atingindo
as pessoas, no coração, na alma.
Naquela noite, Frieda não conseguiu dormir. Sentia-se encurralada num
universo alternativo, um em que se deitava ao lado de Bill na cama e ia visitar
sua mãe aos sábados. Pertencia a outro lugar, não importando o que Stella havia
dito. Pertencia a um lugar a seu lado.
Ela seguiu sua rotina, como se aquilo tivesse sido um sonho. Mas, na visita
de sábado, Frieda encontrou sua mãe doente demais para caminhar.
“É só uma dor de cabeça”, falou Vi, mas parecia algo muito pior. Ela
precisava ficar deitada. Sua cabeça estava latejando. Pediu a Frieda que fechasse
as cortinas porque a luz machucava-lhe os olhos. Frieda telefonou para o pai, de
um aparelho que ficava no corredor dos fundos. Ele disse que estaria lá em
quinze minutos, mas chegou em menos de dez. Devia ter ido correndo. A casa
deles era um geminado de tijolos com um jardim bonito.
“Acho que foi estupidez telefonar”, disse Frieda. “Não deve ser nada.”
“Ainda bem que você telefonou.” O médico subiu para o quarto que um dia
fora seu. Frieda foi atrás.
“Você, não”, disse Vi quando o viu.
O médico riu. “Você sabe que sou o melhor médico da cidade. Ainda que me
odeie, admita isso.”
“Está bem”, disse a mãe de Frieda. “Pelo que posso ver, continua usando
dois relógios.”
“Não queria chegar tarde para você”, respondeu o médico. Virou-se para
Frieda. “Pode me trazer um copo de água e duas aspirinas?”
Só quando estava na metade da escada, percebeu que era isso que seu pai
fazia sempre que queria se livrar dos membros da família de um paciente;
sempre que achava que o diagnóstico podia ser ruim.
Em pânico, foi até a cozinha e abriu a torneira. Pensou ter visto alguém de
casaco preto, em pé, do lado de fora da janela. Seu coração disparou, por achar
que pudesse ser Jamie, mas logo se deu conta de que não poderia ser ele. Jamie
nunca estaria ali, em Reading. Ele nunca teria vindo atrás dela. Era o anjo que se
sentava no banco de trás do carro; aquele que aguardava do lado de fora da
janela até a hora certa de entrar e pegar o que queria. Era aquele que ninguém
queria ver batendo à porta.
O pai de Frieda chamou uma ambulância, a qual acompanhou em seu carro,
com sua filha. Era hora do crepúsculo, e todos os pássaros cantavam. Parecia que
a sirene da ambulância não estava ligada. Frieda sabia que isso era um mau sinal.
Dissera a sua mãe que tudo ficaria bem quando os médicos viessem buscá-la,
mas os olhos dela estavam fechados e ela não respondia. Frieda e seu pai
seguiam sem falar nada. Frieda começara a chorar. Achava que podia ser um
derrame e que sua mãe se recuperaria, mas o médico disse-lhe que era bem
provável que tivesse sido um aneurisma.
“Ah, Frieda”, falou. “Queria conseguir fazer mais. Queria ter o poder de
mudar isso.”
Foi então que ela teve certeza. Era o tom de voz que sempre tinha quando
não havia esperanças, quando o anjo de casaco preto já havia chegado, e os
outros dois anjos não estavam por perto.
O funeral foi simples, os amigos mais próximos de sua mãe, algumas pessoas
do grupo ecológico, Bill e sua família e o pai de Frieda. A cerimônia aconteceu
ao lado do túmulo porque a mãe de Frieda nunca gostara de balbúrdia por sua
causa. Era um dia quente, e Frieda ficou na sombra. Sua barriga estava enorme,
os pés estavam inchados e ela achou que pudesse desmaiar. Não conseguia
acreditar que sua mãe não ia conhecer o neto. Não conseguia acreditar que isso
havia acontecido com sua mãe.
Depois do enterro, a mãe de Bill fez um almoço na Casa Lilás, frios, queijo e
pão crocante, que fazia a fama da padaria que ficava na mesma rua.
“Você está bem?”, perguntou o pai de Frieda. Ele saíra para a varanda, onde
Frieda estava sentada. Ela não aguentava as conversas agradáveis que ocorriam
do lado de dentro. Não conseguia ser educada. “Não mesmo.”
“Não. Lógico que não. Não sei se isso vai melhorar ou piorar as coisas, mas,
quando a mandei ir até a cozinha naquele dia, ela disse que a melhor coisa que
lhe acontecera em toda a vida foi você.”
Frieda sentiu uma dor na garganta e seus olhos ardiam, mas ela não chorou
novamente. Quanto mais continha o choro, pior se sentia. Quanto mais chorava,
pior se sentia. Não fazia diferença, assim preferia não sentir nada. Naquela tarde,
depois que todos se foram, pediu a Bill as chaves do carro. Queria resolver umas
coisas para esquecer um pouco aquilo. Foi até a loja de discos em Reading.
Andou pela loja até encontrar os lançamentos. Lá estava. Lion Park. Frieda ficou
lá, cabisbaixa. Não conseguiu evitar o choro. Simplesmente veio. Uma
funcionária apareceu, uma jovem com cabelo loiro liso, usando jeans e uma
blusa estampada indiana. Devia ser poucos anos mais jovem do que Frieda, mas
parecia uma garotinha. Talvez Frieda tivesse essa aparência quando foi para
Londres pela primeira vez. Como se o mundo estivesse aberto para ela. Como se
merecesse algo mais.
“A senhora está bem?”
Frieda fez que sim com a cabeça. Ergueu o disco. “Eu o conheço”, falou a
respeito de Jamie.
“Legal”, disse a garota. “Adoro esse disco.”
Frieda foi até o caixa e pagou. Ele assumira o crédito pelas duas músicas
dela, mas Frieda sempre achou que Jamie o faria. O disco era dedicado às
enfermeiras que o ajudaram a sobreviver enquanto criança e à sua esposa, o anjo
de sua vida, Stella. Frieda foi para casa. Guardou o álbum no armário de
porcelanas e só o tirava de lá quando não havia ninguém em casa. Sentava-se à
janela e observava as folhas se movendo sobre as cercas, e os pardais fazendo
ninhos, enquanto ouvia a voz de Jamie. A sensação era a mesma de quando o
escutara pela primeira vez e achava ridículo se sentir assim. Aos sábados,
começou a fazer caminhadas com seu pai, como fazia antes com sua mãe. Era
uma maneira de lamentar a perda de Vi, mas, depois de um tempo, passou a
curtir a companhia do médico. Afinal de contas, formavam uma boa dupla.
Faziam longos passeios pelos campos, entrando e saindo por portões, em
vilas por onde haviam passado apenas de carro. Já tinham visitado pacientes na
maioria dessas cidades, mas em geral chegavam com pressa. Tudo era tão
diferente naquele ritmo. Viam plantas campainhas, riachos, sapinhos, pólen
flutuando no ar; de vez em quando, avistavam uma família de raposas, um
macho com a fêmea e os filhotes. Só vê-los já deixava Frieda com vontade de
chorar novamente, eram tão alegres correndo pelos campos, mas ela tentava se
controlar. Tinha apenas vinte anos, jovem demais para pensar em chorar o tempo
todo.
No final da primavera, Frieda começou a diminuir o ritmo. Havia ganhado
peso demais e sentia-se como um boi. Ao mesmo tempo, sentia fome quase o
tempo todo. Começaram a levar uma mochila com comida de piquenique nas
caminhadas de sábados, porque estava sempre esfomeada. Nunca sentira tanta
fome em sua vida. Sentavam-se em campinas, comiam sanduíches de queijo e
picles e quase não falavam. Quando conversavam, discutiam os casos mais
interessantes e enigmáticos de seu pai. A mulher que envenenava as próprias
filhas com bolinhas de mercúrio pegas em um termômetro e ligava para o
consultório do médico todos os dias. O homem que comia unhas e sofria com
vestígios de metal em seu sangue. O bebê que não conseguia sentir dor e não
parava de bater a cabeça nas barras de seu berço.
“A medicina está solucionando mistérios”, dizia o médico.
“Mas não são coisas da vida?”
Concordaram a respeito disso. Frieda trouxera também uma garrafa térmica
com chá e serviu dois copos. O ar tinha um cheiro doce, como de grama.
“Sinto-me da mesma forma que sua mãe, sabia?”, disse o médico. “Sei que
todas as vidas deviam ser iguais, mas nenhuma me importa tanto quanto a sua.”
“Isso é um erro. Sou bem chatinha”, brincou Frieda. “Tenho tido desejos por
sanduíches de ovo e maionese, além disso, arroto bastante. Na verdade, sou
irritante.”
“Irrita apenas a si mesma”, disse-lhe o médico.
Nessa época, Frieda aprendera a ser sociável com a nova esposa do médico,
que era uma mulher bem agradável. Frieda não apenas recordava a noite em que
Jenny estava chorando, depois de seu marido ter falecido; recordava também de
ter ido até aquela casa com seu pai várias vezes depois e de ele lhe dizendo para
permanecer no carro, onde ficava lendo até a luz desaparecer. Certa vez, viu uma
coisa pela janela. Estavam tomando chá. No caminho de volta para casa, ele
cantava, e Frieda queria acreditar que tudo estava igual, mas não era bem assim.
O bebê nasceu no início do verão, um garotinho a quem deram o nome de
Paul, que causara três dias de contrações terríveis antes de aparecer. Ao final
desses três dias, Frieda achou que podia morrer, e não se importaria muito se
falecesse. Odiava o próprio filho, a si mesma e todo mundo; então, de repente,
ele nasceu e tudo mudou. Queria entender por que ninguém contava a verdade
sobre partos; era uma sensação tão próxima da morte, que se podia ver até anjos,
bem ali na sua frente, sobre o piso de linóleo. Na verdade, havia dois anjos, o
Anjo da Vida e o Anjo da Morte, ambos ao lado da janela, esperando. Um ficava
nas sombras, outro na luz; era difícil decidir qual se queria cuidando de si. E
havia o Terceiro Anjo, aquele sobre o qual seu pai falara, aquele bem no centro,
que podia cair para qualquer lado, aquele que se deve tentar resgatar, se puder, e
foi aí que o bebê nasceu.
Assim que viu seu filho, Frieda se tornou outra pessoa.
“Consegue acreditar que fizemos esse homenzinho?”, perguntou Bill. “Ele é
perfeito. Todos os dedos das mãos e dos pés.” Era a primeira vez que Frieda via
seu marido chorar.
Apaixonou-se loucamente pelo filho naquele instante. Ela nem ouvia o que
seu Bill dizia. O bebê parecia a estar encarando, com seus olhos azuis
acinzentados. Ele olhava bem para o centro dela, para a parte mais profunda de
seu corpo. “Amor da minha vida”, pensou Frieda. Anjo dos anjos. Chorava como
se seu coração estivesse se partindo, e todos acharam que era óbvia a
necessidade de um sedativo depois do parto que ela enfrentara. Afinal de contas,
merecia um descanso; tinha direito de passar o resto do verão curtindo o bebê.
Não retomou as aulas de enfermagem no outono; esperara um ano antes de
retornar. Queria que o outono durasse para sempre. O verde se transformava
naquela cor dourada que ela sempre amara, de freixos e carvalhos. Levava o
bebê em suas caminhadas com o pai, enfiado numa mochila que o médico criara
ao estilo dos índios norte-americanos.
“Você devia patentear isso”, falou Frieda. “Mulheres de todo o mundo
gostariam de carregar seus bebês assim.”
Paul não era nem um pouco irrequieto. Seus olhos permaneceram azuis, e ele
tinha grande poder de concentração, sobre o qual o médico e Frieda
concordavam. O bebê parecia ser capaz de dizer a diferença entre os cantos de
uma pega e de um pardal. Preferia a pega, bem diferente, que soltava um grito
estridente sempre que outro a chamava. Paul também tinha audição perfeita para
balbuciar canções de bebezinhos, talvez porque Frieda escutasse muito o disco
de Jamie sempre que estavam sozinhos. Colocava-o na vitrola enquanto o ninava
numa cadeira ao lado da janela e quando descansavam no começo da tarde. Certa
vez, jurou que Paul estava cantarolando “O fantasma de Michael Macklin”, o
coro, que era bem triste. A letra era bem melancólica quando ela a escreveu, mas
a música assumiu a tristeza num nível inenarrável. Frieda sentiu um calafrio nas
costas quando escutou o bebê cantarolando, mas logo se deu conta de que devia
estar enganada. Nenhum bebê podia ser tão talentoso com música, nem mesmo o
dela.
Ainda assim, tinha a sensação de que um belo futuro esperava seu filho e
sentia orgulho de ser a sortuda que iria criá-lo. Tinha consciência de que a
maioria das mães sentia o mesmo em relação a seus filhos, mas isso não
enfraquecia suas expectativas. Sentia como se conhecesse Paul desde sempre,
como se ele fosse seu destino desde o início, aquilo que perseguia mesmo
quando nem sabia que estava perseguindo algo.
“Você estava enganado”, disse Frieda para o pai quando atravessavam de
volta a campina até o Cercado, ao final de uma caminhada. Usavam bota e suéter
e, naquele dia específico, andaram até bem longe. O bebê dormia na mochila,
amarrada nas costas do médico. Frieda nunca fora tão feliz. “O amor não é
complicado”, falou.

FICOU SABENDO DA morte de Jamie numa tarde em que fora comprar maçãs
para uma salada de frutas. O bebê, agora com três meses de idade, estava com
Bill, e Frieda fora até uma fazenda no final da estrada; Frieda comprou as maçãs,
colocou a sacola no banco de trás do carro e ligou o rádio. O disco de Jamie era
um sucesso e ele estivera em turnê durante toda a primavera e o verão. Mas, para
seu horror, ela ficou sabendo que ele se envolvera num acidente de automóvel na
França no mês anterior. Frieda estivera tão envolvida com o bebê que parara de
escutar as notícias. Nem tinha ouvido falar naquilo. Jamie Dunn, sua esposa, sua
cunhada e o baterista da banda tinham morrido. Fazia mais de trinta dias que ele
partira daquele mundo, e durante todo esse tempo Frieda seguira com sua vida,
cuidando do bebê, fazendo caminhadas, sem saber. O radialista anunciou que
houvera apenas uma cerimônia no Chelsea Town Hall, onde Jamie fizera seu
último show em Londres, no começo do ano. Mick Jagger havia cantado “O
fantasma de Michael Macklin”. Dizia que milhares de velas foram acesas na
calçada ao lado do teatro e que fãs recolhiam a cera do asfalto como uma
recordação.
Frieda ficou ali sentada por um tempo, então seguiu pela estrada. Em vez de
pegar a primeira curva na rotatória, que a levaria para casa, continuou pela
segunda saída e foi para o sul, na direção de Londres. Quando parou para
reabastecer o tanque do carro, telefonou para o Cercado. Contou a Bill que um
velho amigo havia morrido e que estava indo para Londres; voltaria assim que
conseguisse.
“Alguém do hotel onde você trabalhou?”, perguntou Bill.
Era uma época sobre a qual pouco conversavam.
“Sim”, respondeu Frieda. “Éramos amigos.”
“Você está bem?”, disse Bill.
“Acho que sim”, falou Frieda. “Vou ficar.”
Odiava dirigir até a cidade, mas seguiu em frente. Tinha medo de não
encontrar lugar para estacionar, assim deixou o carro na Kensington High Street.
Lembrou onde ficava o parque. Parecera muito maior da última vez, agora era
apenas um lindo parque de bairro, rodeado por uma cerca vitoriana de ferro
coberta de musgos. Não tinha tanta certeza quanto à casa; eram todas mansões
eduardianas, não idênticas, mas igualmente graciosas. Então Frieda recordou que
parecia um bolo de casamento, todo branco; aquela com as janelas curvadas de
frente para o parque. Subiu a escada, bateu à porta e uma criada atendeu.
“Sinto muito”, falou a empregada. “A senhora Ridge não está recebendo
visitantes.
“Lógico que estou.” A mãe de Stella estava no saguão. Ela se aproximou.
“Eu a conheço?”, perguntou para Frieda.
“Na verdade, não”, respondeu Frieda. “Encontramo-nos um tempo atrás.
Conheci suas filhas… e Jamie.”
Daisy Ridge avaliou Frieda. “A garota com a mala”, falou.
“Certo.”
“Entre.”
A senhora Ridge pediu à criada que lhes trouxesse chá. Usava um terno preto
e saltos altos, e Frieda achou que estava maltrapilha em seus jeans, tênis e uma
velha jaqueta Burberry que pertencera à sua mãe. Havia rebolos por todo o
tecido, percorrendo as mangas.
O casamento dos Ridges terminara antes de as meninas morrerem e agora
Daisy Ridge estava sozinha em casa. Perdera todas as pessoas que um dia lhe
importaram. Pelas manhãs, mal podia acreditar que conseguia acordar, nem tinha
razão para o fazer. Achava que sua irmã tivera sorte, por falecer tão cedo, antes
de criar alguma ligação forte com o mundo, antes que tivesse tempo suficiente
para perder.
“A senhora tem uma casa adorável”, disse Frieda. Serviram-lhes chá. Havia
bolinhos, geleia e um bule de chá verde que exalava cheiro de ervas e mel.
Quando a criada saiu, Frieda falou: “Vim aqui apenas para dizer que sinto
muito”.
“Pelo quê? Por não ter afastado Jamie de minha filha? Imagino que este
tenha sido o motivo de ter vindo aquele dia. Queria que tivesse tido mais
sucesso. Talvez todos estivessem vivos se tivesse funcionado. Ele estava
dirigindo, sabia? Quando um viciado em drogas dirige, o que se pode esperar
que aconteça?”
“Mas, sendo justa, ele não era o único viciado.”
A senhora Ridge se levantou, Frieda achou que era bem possível que fosse
convidada a se retirar; talvez tivesse insultado a memória de Stella, ainda que
houvesse apenas dito a verdade. Mas não, havia algo mais que a senhora Ridge
queria lhe mostrar.
“Você nunca viu o restante da casa. Apenas o quarto de Stella”, falou a
senhora Ridge. “Fui grossa com você. Tirei conclusões precipitadas.”
“Vim mesmo atrás dele naquele dia”, admitiu Frieda. “Queria muito ficar
com ele. Era louca por Jamie. Mas ele não me amava. Percebi isso. Não
pertencia ao seu mundo.”
“Amor”, disse a senhora Ridge. “Foi esse o motivo?”
“Eram feitos um para o outro. Ele teria de ser louco para não se apaixonar
por Stella.”
A senhora Ridge virou o rosto para o lado. Fazia semanas que estava
chorando, começava e parava. De repente, sentiu uma onda de calor invadindo o
peito, subindo pela garganta e indo até o rosto. Aconteceu quando ela menos
esperava, quando nem achava que estava sentindo alguma coisa. Rapidamente se
recompôs – era boa nisso – e, então, voltou-se para a garota que a visitava.
Normalmente, nem teria conversado com uma menina como aquela – uma
estranha por quem não tinha o menor interesse. Agora parecia-lhe impossível se
conter. Frieda concluiu que ela era uma pessoa solitária. Não encontrava muita
gente que visse suas filhas como algo mais do que duas garotas mimadas e
egoístas. Sim, elas usavam drogas, mas não eram apenas isso.
“Marianne ia passar o fim de semana no campo comigo. Na última hora,
mudou de ideia. Elas eram inseparáveis, sabia? Melhores amigas, cuidavam uma
da outra. Stella telefonou para ela, convidando-a para uma viagem. Iam se
divertir acompanhando a banda numa turnê, muito mais divertido do que ficar
comigo. Uma já seria ruim. As duas, destruição. Não sei se consigo suportar
duas…”
“Elas pareciam cuidar uma da outra. Até mesmo eu percebi isso.”
A senhora Ridge ergueu a cabeça. “Sim”, concordou. “Estavam sempre
juntas, desde quando eram menininhas. Eu não conseguia separá-las nem mesmo
para cochilar.”
“Eu tenho um garotinho”, disse Frieda. “O nome dele é Paul. É por isso que
vim aqui. Não foi por causa de Jamie. Vim por causa da senhora. Porque sou
mãe de alguém, da mesma forma que a senhora. E sinto muito mesmo.”
A senhora Ridge olhou para ela. Frieda não era nada daquilo que ela
imaginava; não o fora antigamente, e não o era agora. Era perspicaz e honesta.
Parecia uma garota comum, mas não era. A senhora Ridge percebia isso agora.
“Se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, estou aqui”, disse-
lhe Frieda. “Pode me chamar, que eu venho para Londres.”
Mas ela não disse que tinha vindo também porque se considerava uma
pessoa de sorte, e esta sorte havia lhe causado uma sensação de culpa. Não era
seu pai que sofria com a perda de um filho. O motivo maior para vir foi por
Jamie não tê-la amado, por não ter sido ela a pessoa que estava no carro com ele,
repleto de gente, equipamentos musicais e malas abarrotadas de roupas, de modo
que o Anjo da Morte teve de se apertar para entrar com eles. Frieda estava ali,
naquela casa em Kensington, por não ter sido querida, por ter sido derrotada
algum tempo atrás e, agora, de certa forma, ser a vencedora. Ela ainda estava ali,
ainda era a dona das botas de camurça bege roubadas, aquelas que vestia sempre
que saía com Bill, ultimamente algo não muito frequente. Só saíam quando a
mãe de Bill ia para a casa deles, porque Frieda não confiava em babás. Ainda
não. Talvez nunca viesse a confiar. Era provável que o transformasse num
filhinho da mamãe, uma criança mimada, mas não se importava com isso. Era
possível que virasse o tipo de homem que liga para casa todos os domingos e
que briga com a esposa por sempre convidar a mamãe para os jantares
comemorativos. Seria um homem com audição perfeita, que gostava de
caminhar pelos campos, que sabia a diferença entre o canto de um pardal e o
canto de um pombo. Lágrimas começavam a surgir em seus olhos só de pensar
no que faria caso, algum dia, perdesse Paul.
“Vou lhe mostrar uma coisa”, disse a senhora Ridge. “Você vai entender.”
Foram até os fundos da casa, na estufa. As cortinas estavam abaixadas e o
quarto, escurecido, mas havia tantas janelas e uma abóboda envidraçada, que
faixas de luz natural conseguiam penetrar o cômodo. Havia samambaias altas e
orquídeas em vasos maiólicos. A senhora Ridge abriu as portas de vidro que
davam para o lado de fora. Um jardim enorme ficava atrás da casa,
assustadoramente grande para a cidade. Saíram. As plantas estavam tão
crescidas, que era como entrar numa floresta. Tudo era dourado, um emaranhado
de trepadeiras e arbustos que deviam ter sido cortados. Sarça, freixo, ervas em
tufos. Viam-se variedades surpreendentes para um jardim londrino: bela-dona,
estramônio, cicuta, aguaraquiá. Elas nunca foram plantadas; haviam chegado
sozinhas nos últimos trinta dias, pouco depois de as garotas falecerem. Tudo era
venenoso e florido.
“Meu jardim das lamentações”, disse a senhora Ridge.
Ela havia perdido as folhas, e a sensação que tinha era de que nunca
permitiria que cuidassem novamente daquele jardim. A tristeza era o único
alimento daquele lugar. No verão, ficava verde; agora estava dourado. Dali a
algumas semanas, ficaria preto como cetim; por fim, passaria a branco. Por
meses, ficaria assim: branco puro.
Frieda ficou ali, nas sombras geladas. Havia um belo caminho em zigue-
zague feito de tijolos e pedras. Havia uma ameixeira com seus frutos caídos,
abandonados no chão para apodrecer. Havia rosas brancas, crescidas como as
ervas, desmanchando-se em pedaços, pendendo de canos pretos retorcidos. Nos
ramos de uma macieira, via-se um pombo em seu ninho, empoleirado fora da
estação. Elas podiam escutar o gorjeio de seus filhotes, ainda que a época não
fosse boa, a estação totalmente errada. Em breve estaria bem frio. Ficaram ali,
preocupadas com os pássaros no ninho, com o inverno que se aproximava, por
tudo que poderia, e iria, acontecer em pouco tempo. Foi então que Frieda
entendeu tudo que havia para saber a respeito do amor. Tudo ficou muito claro,
como se a verdade tivesse sido escrita no ar. Tudo estava amarelo; tudo estava se
movendo muito rapidamente. Frieda pegou a mão da senhora Ridge e ficou com
ela, do lado de fora, até o anoitecer.
Lucy Green não conseguia parar de ler. Lia sozinha, e a viagem pelo Atlântico
lhe propiciara todo o tempo do mundo para ficar afastada. Sua madrasta,
Charlotte, considerava-a antissocial, talvez até patológica, mas Lucy permanecia
em sua minúscula cabine, lera três vezes O diário de Anne Frank. Às vezes, a
sensação era de que vivia naquele sótão e que tinha os mesmos sonhos de Anne
Frank. Não tinha mãe e sua aparência era aquela que garotas sem mãe às vezes
têm, bem desamparadas, cabelo despenteado, meias trocadas. Só saía de sua
cabine para as refeições e para caminhar pelo deque com seu pai às tardes,
quando tudo que conversavam eram comentários ocasionais sobre a forma das
nuvens ou a cor do mar.
O oceano era infinito, assustador e bonito. Não havia necessidade de palavras,
quando se estava no deque de um transatlântico, quando o mundo parecia tão
vasto e quando se era apenas uma mancha de carne e osso.
O diário de Anne Frank acabara de ser publicado nos Estados Unidos, em
junho, e a madrasta de Lucy achava que ela era jovem demais para ler aquele
texto; ela vetou o livro e sugeriu que Lucy continuasse lendo Nancy Drew. Na
verdade, Charlotte não era muito apaixonada por leitura e achava que livros
poderiam ser perigosos se colocados em mãos erradas. Mas Lucy tinha doze
anos, idade suficiente para ler o que lhe agradasse; não se importava com a
opinião de sua madrasta, nem com a de seu pai quanto a isso. Não se importava
com o fato de estar num navio cruzando o Atlântico e que todos seus amigos de
Westchester estivessem com ciúme de sua ida para um casamento na Inglaterra,
enquanto eles continuavam com sua vida entediante em casa.
Por que não se importava com aventuras e ocasiões festivas? Lucy era o tipo
de garota que pensava muito sobre os motivos de as pessoas virem à Terra e
ficava muito tempo imaginando como poderia corrigir os erros do mundo. Não
acreditava que sentar-se à mesa do capitão e pedir coquetel de camarões a
ajudariam nessa missão. Não queria se espreguiçar numa cadeira no deque ou
conversar com as outras crianças a bordo, como sua madrasta não parava de
sugerir. Lucy não era sociável, nem muito fã de viagens. Entre outras coisas,
tinha uma tartaruga chamada senhora Henderson, que ela precisou deixar com o
vizinho, que nem gostava de tartarugas, e ela se preocupava com o bem-estar de
seu bichinho. Em segundo lugar, a outra viagem que fizera para longe de casa
fora para Miami com seu pai e Charlotte – a quem deveria chamar de mamãe,
mas não a chamava de nada – e não gostara nem um pouco do passeio. Ficara
chocada ao descobrir que o campo de golfe que seu pai estava tão empolgado
para conhecer, em Miami, não permitia a entrada de negros para jogar, exceto às
segundas, dia dos caddies. O mundo apresentava erros demais; muita gente era
maltratada. Além disso, Lucy nem acreditava no casamento como uma
instituição válida, principalmente depois que seu pai se casara com Charlotte;
assim, ir ao casamento da irmã de sua madrasta parecia sem sentido, ainda que
fosse em Londres.
O navio atracou em Liverpool e, depois de pegarem as bagagens, havia um
táxi para a estação de trem. Enquanto aguardavam na estação, Lucy se sentou
num banco e continuou lendo o diário. Estava de saia porque sua madrasta
insistira que calças eram para garotas traquinas, além de ser um traje totalmente
inaceitável para uma viagem. O pai de Lucy, Ben, piscara para ela, mas reforçou
o que Charlotte dissera; assim, lá estava Lucy, desconfortavelmente vestida com
uma saia antiquada. Lucy achava que, na verdade, podia ser uma pervertida.
Certamente, tinha alguns pensamentos estranhos: que sua mãe havia morrido
devido a algo que ela fizera de errado. Que sua madrasta vinha colocando
arsênico em seu chá gelado, que Lucy, em vez de beber, derramou em vasos de
plantas ao longo de toda a viagem. Que seu pai estaria melhor sem ela, com uma
vida mais simples e mais fácil. Que era impossível lutar contra tudo o que estava
errado no mundo e que era necessário muito esforço para enfrentar os dias – e
muito provavelmente era um esforço inválido. Lucy estava desaparecendo e
ninguém nem sequer notava isso. A cada dia, ela se afastava mais.
“Está tudo bem com você?”, perguntou o pai de Lucy, na estação de trem.
Estava coberto de poeira e com calor. Era começo de agosto. Ben Green era
advogado, democrata e dizia estar feliz por sair dos Estados Unidos por um mês,
porque Eisenhower e Nixon haviam acabado de ganhar a indicação dos
republicanos. Preferia estar numa mormacenta estação de trem em Liverpool,
rebocando a bagagem de sua esposa e filha para lá e para cá, a ser forçado a ler o
The New York Times em Westchester e ser confrontado com notícias que
indicavam o progresso de Ike.
“Eu preferia estar em casa”, respondeu Lucy. “Anne Frank não saiu de casa
por mais de dois anos. Não tinha de viajar para saber sobre outras pessoas. Ela
entendia as coisas muito bem, sem sair. Ela queria ser escritora.”
“Todo mundo quer ser escritor”, falou Ben Green. Ele havia escrito um
romance na faculdade, mas o jogara no lixo. “Você será a garota mais linda do
casamento.”
“Difícil.” Lucy continuou lendo, mas sentiu seu rosto corar. Ela sabia que
não era bonita. Percebeu que uma de suas meias era marrom e a outra, cinza.
Colocou um pé sobre o outro para esconder seu engano.
Seu pai beijou sua testa, era hora de entrar no trem. Tinham uma cabine só
para eles, que era sufocante e escura. Lucy se enroscou em seu livro. Ela fingia
estar em casa.
“Ela vai cansar a vista se continuar lendo no escuro”, falou Charlotte para o
pai de Lucy, no meio da viagem.
Apesar de estar lendo, Lucy ficou escutando. Era muito boa nisso.
“Deixa para lá”, falou Ben. “Ela está de luto.”
Foi aí que Lucy se deu conta disso. Ainda que fizesse dois anos que sua mãe
tinha morrido, ela ainda estava de luto. Não havia por que ignorar isso. Sempre
que parava de ler, começava a pensar em sua mãe. Às vezes, lembrava o último
dia que haviam passado juntas, o dia mais perfeito do mundo. Foram caminhar
no Central Park e viram algo que ninguém mais tinha visto em Nova York. Uma
garça-azul macho numa lagoa no Ramble, a parte mais deserta do parque, repleta
de arbustos e ninhos de pássaros. Desde aquele dia, nada mais lhe parecera ser
interessante. Com exceção dos livros.
Lucy fechou os olhos e foi dormindo até Londres. Estava bem escuro e muito
úmido quando chegaram lá. Pegaram as bagagens e saíram do trem com o
restante dos passageiros. Então aconteceu algo inesperado. Quando Lucy olhou
para o caos da Estação Euston, sentiu o mesmo que algumas pessoas sentem
quando se apaixonam. Londres a havia conquistado, ainda que a contragosto. Na
verdade, sentiu seu sangue acelerar. O lado de fora era ainda melhor – mais
escuro e mais agitado. Os postes de luz eram amarelos e Lucy sentiu estar num
sonho. Poderia sumir no tumulto de Londres e, ainda assim, ser ela mesma.
Naquela cidade, devia haver milhares – não, milhões – de livros que ainda não
tinha lido. Havia livrarias, bibliotecas, bancas de livros, editoras, excursões
guiadas para lugares onde escritores tinham criado mundos completamente
diferentes com nada além de palavras. Era bem provável que cada pessoa que
passava era escritora, ou, no último caso, uma história esperando para ser
contada. Lucy queria visitar todas as livrarias, andar pelas ruas, olhar o rosto das
pessoas e tentar adivinhar o que lhes havia acontecido. Essa sensação a
surpreendeu. Na verdade, deixou-a chocada. Fazia muito tempo que não tinha
vontade de nada.
Pegaram um táxi e foram para o hotel. A família toda de Charlotte ficaria no
Lion Park e ela estava irritada por terem sido os últimos a chegar entre os
convidados do casamento dos Evans. Culpou o azar e a vadiagem de Lucy. Além
disso, aquele não era o hotel que escolheria; era simples e caseiro, bem diferente
do estilo de Charlotte. Lucy também esperava odiá-lo, mas primeiro se
apaixonara pela Estação Euston e, agora, estava maluca pelo hotel em que
ficariam. Tudo era bem imprevisível e charmoso. O lobby ficava de frente para
um jardim em que havia um leão de pedra cujo boato era de que fora roubado
por um cavaleiro durante as Cruzadas. A estátua estava cheia de musgo,
esverdeada e rodeada por sulfeto de cobre. O próprio lobby era incrível. Tinha
papel de parede cor-de-rosa e peças de madeira branca. Mas o melhor de tudo
era que havia um enorme coelho sentado atrás da recepção. Lucy amou Londres.
“É de verdade?”, perguntou a Dorey Jenkins, a garota que ficava na recepção
à noite. O coelho era do tamanho de um gato persa gigantesco. Tinha pelos
brancos compridos.
“Ah, sim”, respondeu Dorey e virou-se para o coelho. “Mostre-nos seu pulo
de coelha, Millie.” A coelha veio pulando, e Dorey deu a ela um pedaço de
alface que estava guardado numa gaveta com clipes de papel e fitas elásticas.
“Ela é nossa mascote. Certo dia, ficou vagando pela rua. Achamos que ela havia
encontrado seu espaço no parque, mas preferiu morar debaixo da mesa.”
“Se você a seguisse, é possível que ela a guiasse para uma outra dimensão de
espaço e tempo, e você seria como Alice”, falou Lucy. “Você veria mundos
maravilhosos e teria de lutar para retornar.”
“Nada disso, ela me guiaria direto para a lata de lixo da cozinha. Ela gosta de
procurar cascas de batata. É louca por isso. E também gosta de comer papel de
parede, o que lhe causa um monte de problemas.”
“Não tenho nada contra problemas.” Lucy se sentia animada e viva apenas
por estar em Londres.
“Então…”, falou Dorey, calorosamente. “Você e Millie são bem parecidas.”

LUCY NÃO GOSTAVA de viajar com seu pai e Charlotte, mas pelo menos tinha
um quarto só para si no sétimo andar. Era abafado, com um monte de bobagens
em uma penteadeira ao lado da cama e, em vez de chuveiro, havia uma banheira.
Mas, ao menos, ela podia ter alguma privacidade e ficar mais de dez minutos
sem alguém importuná-la, dizendo-lhe que tudo que fazia era errado. Como se
ela já não soubesse disso.
Lucy desfez as malas, tomou banho e leu o diário até sentir sono. Gostava do
som de Londres, a mistura de tráfego e canto de pássaros. O barulho a deixou
com sono, quando ela dormiu, sonhou que estava seguindo um coelho por um
corredor. Como seu relógio interno estava desligado, Lucy acordou cedo, antes
que conseguisse chegar ao fim do corredor em seu sonho. Ao acordar, Lucy se
sentiu contrariada, mesma sensação que teria se perdesse um livro antes de
atingir o final da história. Talvez pudesse ter o mesmo sonho em algum outro
momento e descobrir o que acontecia. Vestiu-se e desceu para o restaurante. Não
estava oficialmente aberto, mas o cozinheiro disse que lhe prepararia chá e
torradas; assim, Lucy se sentou e voltou para a leitura do diário. Um homem
bonito apareceu e olhou ao redor.
“Este lugar está morto”, falou.
Seu sotaque era nova-iorquino e parecia um irlandês, cabelos escuros e olhos
claros. A partir daquele momento, Lucy passou a preferir sempre homens com
aquela aparência. O sorriso dele era incrível também; mesmo alguém com doze
anos poderia dizer isso.
“Parece que você é a única pessoa viva em Londres”, falou o homem.
“Importa-se se eu me sentar?”
Lucy consentiu. Continuou lendo. Não tinha o menor problema em ser rude,
quando precisava ser.
“Anne Frank”, comentou o homem. “Vi a casa dela em Amsterdã.”
Lucy abaixou o livro. “Não, mentira. Está inventando…”
“Juro por Deus.” O homem ergueu uma mão, como se fosse um escoteiro.
“Tenho viajado bastante e estive lá na semana passada. Fiquei do lado de fora e
fiz uma oração.”
“É mesmo?”, perguntou Lucy, sem acreditar muito nele.
Chegaram o chá e as torradas. Ela passou marmelada, mas, quando deu uma
mordida, não sabia dizer ao certo se tinha gostado ou não. Era amargo, mas
talvez estivesse se acostumando com coisas amargas. Estava de certa forma
envergonhada por mastigar na frente do homem que se sentara com ela. Ainda
bem que o homem bonito também estava faminto; ele pediu ovos com bacon.
“Faça-me três ovos estrelados”, falou. “Na verdade, quatro.”
“Chá e torrada”, ofereceu o cozinheiro. “Ainda não estamos abertos. Teria
notado isso se olhasse para os lados.”
“Legal. Bom. Torradas, então. Dê-me qualquer coisa. Deus, até parece que
estou pedindo uma refeição de primeira linha.” O homem acendeu um cigarro.
Lucky Strike. “Então, o que faz aqui em Londres?”
“Vim para um casamento, não que eu acredite em casamentos.”
“Ah. Casamento.”
“Na verdade, é uma bosta”, disse Lucy.
Ela ergueu o queixo, esperando que ele reagisse tal qual a maioria dos
adultos – dizendo-lhe que garotas que falam palavrão não eram atraentes –, mas
não o fez.
“Uma bosta gigantesca a maior parte do tempo”, concordou. “Mas não
sempre.”
O homem esticou sua mão. “Michael”, apresentou-se.
“Lucy.”
“Percebo que temos algo em comum, Lucy. Não somos muito de acreditar
nas coisas.”
“Por que deveríamos?”, perguntou Lucy.
“O amor existe”, contou-lhe Michael. “Acredite você ou não.”
“Não.” Lucy terminou seu chá e torradas assim que o pedido de Michael
chegou. De toda forma, ficou ali sentada e viu seu companheiro rejeitar a
marmelada. Apesar de suas opiniões diferentes a respeito do amor, eram bem
parecidos em muitos aspectos.
“O amor me trouxe de Nova York. Passei por Paris, passei por Amsterdã,
passei pela casa de Anne Frank, até chegar aqui.”
“Minha madrasta me trouxe aqui”, disse Lucy. “Podia estar em casa lendo.
Em vez disso, tenho de ir a uma porcaria de casamento.”
“Por que porcaria?” Ele parecia genuinamente interessado. Adultos
costumavam se entediar com as opiniões de uma criança, mas Michael era
diferente.
“Nem sequer conheço as pessoas envolvidas”, explicou Lucy. “É a irmã de
minha madrasta, Bryn. Torço, para o bem dela, que sejam bem diferentes.”
Michael riu e acenou com a cabeça para o livro sobre a mesa. “Esse é o
diário que Anne Frank escreveu?” Quando Lucy disse que sim, ele perguntou se
podia pegar emprestado. Lucy não gostava muito de emprestar livros; as pessoas
nunca devolviam, e, além disso, ela se acostumara a ler o diário todos os dias.
“A não ser que não confie em mim”, falou Michael.
Lucy ergueu a cabeça para ele. Não era fácil dizer-lhe não.
“Você vai devolver?”, perguntou.
Michael fez uma cruz sobre o coração com as mãos. “Juro pela minha vida.”

LUCY FICOU UM pouco perdida sem o livro. Foi até a recepção e perguntou ao
funcionário do dia se podia ver a coelha. Mas este era um homem de meia-idade
que estava estudando contabilidade e não gostava de crianças. Era bem diferente
de Dorey Jenkins.
“Aqui é um lugar de trabalho”, falou para Lucy.
Ela viu a coelha numa gaiola de ferro no escritório dos fundos. Por algum
motivo, isso a deixou com vontade de chorar. Foi até o jardim e sentou-se na
base do leão. A pedra estava com cheiro de umidade e musgo.
“Isso é uma estátua, não um banco”, gritou o funcionário do dia.
Lucy atravessou o lobby e saiu para a rua, lá perguntou a uma mulher que
parecia uma vovozinha como chegar ao parque mais próximo. Foi-lhe indicado o
Hyde Park, a apenas alguns quarteirões dali, quando chegou, ficou chocada com
a enormidade daquilo. Devia haver centenas de coelhos vivendo nos arbustos.
Sua mãe sempre lhe disse que, para entender melhor uma cidade, é preciso
visitar um parque.
Na viagem até ali, Lucy conheceu uma mulher que praticava adivinhação.
Era a faxineira que limpava as cabines e ela dissera a Lucy que era uma menina
de sorte por ter nascido no ano do coelho pelo horóscopo chinês; então talvez
tivesse sorte, se algum dia viesse a acreditar em coisas estúpidas como sorte.
Agora era o ano do dragão, que devia significar que alguma coisa poderia
acontecer. Enquanto caminhava pelo Hyde Park, Lucy teve a mesma sensação de
leveza que tivera na Estação Euston. Estava apaixonada por Londres. Andou até
deparar com a estátua de Peter Pan nos Kensington Gardens. E lá sentou-se na
grama. Era um lugar delicioso. Pela primeira vez em dois anos, não estava com
nenhum livro, e isso era realmente estranho. Mas sua mãe estivera certa: parques
revelavam o cerne de uma cidade, sua parte mais verde, mais doce.
Havia duas jovens olhando para Lucy, claramente falando sobre ela. A grama
era perfeita e nem se sentia o cheiro de uma cidade. De vez em quando, era
possível escutar o zumbido de um ônibus no mundo exterior, mas era só. As
jovens ainda conversavam sobre ela.
“Não sejam mal-educadas”, gritou Lucy. Eram duas loiras altas, muito
parecidas; para Lucy, lembravam gansos, com o pescoço comprido e o cabelo
bem clarinho. Acho que talvez houvesse uma regra sobre não se sentar na grama,
ou que tivesse invadido uma propriedade particular. Ou talvez ainda
simplesmente não gostassem de americanos. “Venham aqui falar comigo se têm
algo a dizer.”
Nos Estados Unidos, Lucy nunca teria sido tão direta, mas ali era diferente.
Ninguém a conhecia. Ninguém sabia que, depois que sua mãe morrera, ela se
trancara no quarto e ficara sem comer por uma semana. Contudo ela bebia algo,
a água adquirira um sabor forte depois dos primeiros três dias sem comer. Tinha
gosto de vinho, ou pelo menos do que ela imaginava ser o gosto do vinho. Doce,
forte e rico. De início, achou que fosse o começo de um milagre, água se
transformando em vinho e tal, e que, se saísse do quarto, descobriria que sua
mãe ainda estava viva, trabalhando no jardim ou preparando uma rabanada. Mas
no copo era apenas água e sua mãe se fora mesmo. Sua linda mãe, com cabelo
comprido preto, que não tinha medo de tirar os sapatos e enfiar-se numa fonte do
Central Park quando via uma garça. Foi aí que Lucy parou de acreditar em
qualquer coisa. Saiu de seu quarto, preparou um sanduíche e começou a comer,
abandonando sua dieta de apenas água. Seu pai achou que esse ressurgimento
significava que estava tudo bem novamente, mas ele se enganara.
As inglesas se aproximaram; seus nomes eram Daisy e Rose. Eram irmãs,
mas também melhores amigas, e andavam de mãos dadas. Usavam saias
plissadas azuis e blusas brancas. “Estávamos olhando para você porque parece
Katharine Hepburn. É nossa atriz favorita. Ela é incrível. Achamos que pudesse
ser parente dela.”
Então não era nada horrível, nem algo que tivesse feito de errado. Lucy
sorriu. Daisy e Rose eram adultas – Daisy tinha duas filhas em casa –, mas
falavam com ela como se fosse uma igual. Estavam tão empolgadas por
conhecê-la, que Lucy de repente se sentiu importante.
“Minha tia”, falou. Era uma mentira, mas uma boa mentira. Gostava tanto de
conversar com pessoas que achavam que ela era alguém, que não queria que
saíssem de lá desapontadas. “Katharine e minha mãe têm a mesma avó. Estamos
sempre nos encontrando.”
Daisy e Rose queriam saber tudo a respeito de Katharine Hepburn, e Lucy as
manteve em transe durante toda a tarde. Na casa de Kate, disse-lhe, no café da
manhã serviam limonada e sorvete. Kate tinha um chofer que também era
mágico, e ele conseguia, com um assobio, atrair uns pombos que voavam no céu.
A senhora Hepburn pedia a Lucy que lesse todos os roteiros antes de escolher
seu próximo personagem; na verdade, ela dependia de Lucy. As pessoas não
usavam trajes de banho em Hollywood; todo mundo tinha piscinas enormes, e
costumava nadar à noite, com a luz do luar, totalmente peladas. Bebiam
champanhe assim que o sol se punha e usavam os vestidos de festa apenas uma
vez, para em seguida jogá-los no lixo.
“Eu vou para Hollywood”, informou Rose. “Preciso de uma nova vida.”
Sua irmã parecia surpresa e falou: “Você não pode ir tão longe!”
Daisy e Rose acompanharam Lucy até a metade do caminho de volta para o
hotel; na hora de se despedirem, abraçaram-se como se fossem melhores amigas,
e Lucy disse-lhes para procurá-la se algum dia fossem aos Estados Unidos.
Pediria ao chofer de Kate que as pegasse no aeroporto e fizesse um passeio com
elas pela cidade.
Quando Lucy retornou ao Lion Park, seu pai estava no lobby com um
policial. Assim que Ben viu Lucy, saiu correndo e agarrou-a.
“Onde diabos você estava? O recepcionista falou que você estava no
restaurante conversando com um estranho e, depois, desapareceu.” O pai de
Lucy estava tão preocupado, que parecia prestes a dar-lhe um beijo estalado,
algo que nunca havia feito. Não acreditava em coisas como castigos corporais ou
na pena de morte, e certamente não gostava de bater na própria filha. Estava
apenas com a aparência de alguém perto de explodir.
“Fui apenas ao parque”, respondeu Lucy. “Conheci umas mulheres inglesas
que queriam saber sobre os Estados Unidos.”
“Meu Deus, Lucy, você é um pouco velhinha para agir de modo tão
irresponsável. Não percebe que isso me deixou preocupado? Pensei que tivesse
desaparecido. Chegamos a uma cidade do exterior, viro as costas e você some.”
“Me desculpe.” Lucy se sentiu idiota e pequena. Agora Charlotte teria mais
uma arma para usar contra ela. Era irresponsável. Mais uma falha que podia ser
adicionada à lista. Antissocial. Não sofisticada. Descuidada.

“DEVÍAMOS TÊ-LA deixado em casa”, disse Charlotte, mais tarde, quando ela e
Ben estavam sozinhos no quarto. Haviam saído para jantar com a família de
Charlotte, e Ben pensou em levar Lucy junto, ainda que ela fosse ficar sentada lá
lendo o tempo todo. Charlotte teve de implorar para que ele a deixasse no hotel,
então ela forçou Lucy a assinar um contrato prometendo que não sairia do hotel
sem antes informar o pai. Agora Charlotte penteava os cabelos, que era
comprido e da cor do mel. Trouxera para a viagem três malas, uma para bolsas e
sapatos.
“Para um mês?”, perguntou Ben. “Lucy vai ficar bem. Crianças conseguem
se ajustar a qualquer coisa. Veja o exemplo de Anne Frank.”
“Não fale em Anne Frank, Ben. Estou falando sério! Não aguento mais ouvir
o nome dela o tempo todo. Não quero nem escutar a palavra Frankfurter.”
Ben riu. Ele estava na cama olhando para Charlotte. Apaixonara-se por ela,
que era dez anos mais jovem. Ele se sentia cansado de ficar sozinho e ela era
muito bonita, assim surgiu um redemoinho de calor e, logo, um casamento.
“Acho que devíamos deixar o casamento para lá”, falou Ben. “Voltar para
Miami. Nos divertirmos.”
“Em agosto? E Bryn é minha irmã, apesar de seus erros. Não queria perder o
casamento dela.”
Bryn se preparava para se casar com um inglês que conhecera em Paris e sua
família viera para ajudar na celebração. Todos estavam radiantes, e por um bom
motivo. Bryn Evans tinha apenas 23 anos, mas sua vida não fora nada fácil.
Apenas algumas pessoas sabiam a verdade sobre ela, todas essas eram parentes.
Pessoas de fora, inclusive Ben Green, não tinham a menor ideia de que Bryn
possuía uma história secreta. Ela já fora casada com um homem extremamente
inadequado e perigoso, que todos desaprovavam. Na verdade, ninguém o
conhecera, mas leram os boletins policiais. Isso era mais que suficiente. Era uma
espécie de vigarista que roubava as fortunas de viúvas, ou algo assim. De
qualquer forma, a família cuidara do problema e houve uma anulação. Bryn fora
mandada para Paris, onde conhecera Teddy Healy, um banqueiro que certamente
seria boa influência para ela. Teddy era um bom partido, um homem que a
família aprovava. Enfim, uma decisão lógica, diferente da maioria das coisas que
Bryn fazia. Ainda assim, apesar de ter Teddy em sua vida, Bryn parecia instável
e deprimida. Pior de tudo, havia começado a beber.
Naquela noite, por exemplo, o jantar rapidamente degringolara. Faltavam
três noites para o casamento e isso servia como desculpa boa o suficiente para
celebrar a cada oportunidade que aparecia. Toda a família de Charlotte – seus
pais, Carl e Mary; a irmã mais velha, Hillary, e seu marido, Ian; com o irmão de
Teddy, Matthew, e sua esposa, Francie – reuniram-se para a celebração. Teddy e
seu irmão ficaram órfãos bem cedo e foram criados por uma tia, que também
faleceu; cada garoto serviu como a tábua de sustentação para o outro,
dependentes um do outro, meninos sérios que se tornaram homens confiáveis.
Ao longo da refeição, Matthew começou a ter dúvidas a respeito da escolha
de seu irmão. Bryn tomara duas taças de vinho antes do prato principal. Bryn
não era apenas a irmã mais jovem, era também a mais bonita e fora mimada. Era
teimosa quanto a coisas bobas; por exemplo, recusava-se a cortar seu cabelo
loiro, que ia até a cintura. Naquela noite, no restaurante, ela o prendeu em um
coque; mesmo assim, continuava linda. Usava um vestido de seda azul-anil.
Teddy lhe dera um enorme diamante lapidado, encaixado num anel de platina.
Em sua mãozinha pálida, era impossível não notar a joia.
“Esta velharia”, disse, quando suas irmãs a cumprimentaram, “pesa uma
tonelada.”
Já na metade da entrada, Bryn estava bêbada. Charlotte lhe perguntou se
gostaria de sair para dar uma respirada, que na verdade significava fazer uma
pausa para fumar um cigarro, enquanto ela tentaria deixar Bryn sóbria. As duas
desceram para o banheiro feminino. Bryn quase tropeçou nos degraus. Charlotte
pegou cigarros para as duas.
“Pare de beber”, falou. “Você está fazendo papel de boba lá em cima.”
“Você sempre acha que pode me dizer o que fazer. Para sua informação, não
estou bebendo. Não muito.” Bryn deu uma tragada no cigarro. Seu rosto estava
vermelho e quente. “Ainda não.”
“Não haverá ninguém aqui em Londres para cuidar de você”, disse Charlotte.
Ela sempre se preocupara com sua irmã, cujas decisões erradas Charlotte
creditava à juventude e à inocência. “Você precisa começar a ser responsável por
si mesma.”
Bryn fumava seu cigarro e olhava-se no espelho. Quando estreitou os olhos,
sentiu como se estivesse sumindo. Um borrão azul e loiro e fumaça. Tudo isso
desaparecendo. Ela realmente menosprezava sua aliança. Sentia como se fossem
algemas.
“Já ouviu falar de amor?”, perguntou Bryn. “Ou é totalmente insensível?”
“Amor”, falou Charlotte, com desprezo. “É assim que uma criança se refere
ao casamento. Você é tão boba quanto minha afilhada.” Charlotte estava cansada
de tanta baboseira. Não era nenhum crime ser realista, certo? Não significa ser
uma pessoa ruim ou inferior. “Aposto que logo vai me contar que está lendo o
diário de Anne Frank. Cresça, Bryn.”
“Pelo menos, Anne Frank morreu por uma coisa importante e que valia a
pena”
“Ouça-me: Anne Frank morreu porque existem pessoas horríveis e más neste
mundo, só por isso. É uma bagunça sem fim e, quando se consegue, é preciso
ajeitar sua vida. Ela não conseguiu, mas você não está em meio a uma guerra.
Está em Londres, com um diamante enorme na mão. Portanto, pare já com isso.”
Bryn apagou o cigarro. Já havia decidido que não ia voltar para o jantar lá
em cima. Seu rosto assumia uma expressão única quando estava prestes a ser
desafiadora, não muito diferente daquela que Lucy tinha sempre que abria um
livro. Os lábios de Bryn ficavam cerrados e havia um leve tremor sob um dos
olhos, como se ela fosse uma bomba a ponto de explodir.
“Você vai foder com tudo, não vai?”, perguntou Charlotte. “Viemos todos
para este casamento. Teddy é um cara incrível que está maluco por você. Esta é
sua chance de ter um futuro de verdade com um homem gentil e normal.”
Bryn deu uma risada. Abriu sua bolsinha. Charlotte pensou que fosse pegar
outro cigarro; em vez disso, tirou uma tesoura de cutícula. Em sua vida secreta,
Bryn ficou num apartamento em Manhattan, num cruzamento da Nona Avenida.
Não era o melhor endereço possível, mas ela não dava a mínima. Parou de
frequentar as aulas em Barnard; cortou qualquer contato com sua família. Ela
nunca conhecera alguém que morasse com um homem sem estar casada. Como
ela se sentia desconfortável com a situação, o homem que amava se casou com
ela, no cartório central, ainda que ele não acreditasse nas regras e regulamentos
da sociedade. Era um socialista e um livre-pensador, mas fez isso por ela. Teria
feito qualquer coisa por ela; nunca reclamou ou disse-lhe que era mimada,
estúpida e inútil. Bryn nem fez sexo com ele até a noite em que se casaram. Era
engraçado escutá-lo dizer que aguardaria, que já tinha estado com mais de uma
centena de mulheres, mas que ela valia a pena.
Um detetive a encontrara. Quando ele e o pai das garotas arrombaram a
fechadura da porta do apartamento e entraram, podiam escutá-la cantando.
Seguiram o som. Os dois eram homens práticos, cautelosos, que sentiam estar
tropeçando para dentro de um sonho. Bryn tinha uma voz bonita, triste, que
lembrava um pouco Patti Page. O eco de sua voz fazia parecer que ela tivesse
caído num buraco, mas na verdade estava reverberando em tijolos brancos e
pretos. Estava na banheira, numa água quente. Quando Bryn viu o pai e o
detetive, ela se levantou sem nem se preocupar em se cobrir. “Não”, gritou. “Vão
embora daqui.”
Bryn estava pensando naquele momento em que tirou os grampos do cabelo
e deixou-o escorrer pelas costas. Moveu-se tão rapidamente, que Charlotte
demorou para entender o que sua irmã estava fazendo. Depois, a sensação era
como a de alguém que vê um suicídio sendo cometido à sua frente, como se
Bryn tivesse se levantado e puxado o gatilho sem dar tempo para sua irmã reagir.
Charlotte ficou lá sentada, em choque, quando Bryn começou a picar o cabelo.
Segurou a ponta com uma mão, como se fosse uma cobra ou uma corda. Com
algumas tesouradas rápidas, ela o cortou bem ali, no banheiro feminino.
“Meu Deus, Bryn.” Charlotte se apressou, mas Bryn não parava de retalhar,
cada vez mais curto, até que o chão ficou coberto de fios de cabelo. Charlotte se
afastou; não estava disposta a lutar com Bryn pela tesoura. Sabia como sua irmã
era obstinada. “Está feliz agora?”, perguntou, quando Bryn finalmente parou.
Havia mechas loiras por todo o vestido preto. Bryn estava em silêncio; sua
energia acabara. O estranho era que estava ainda mais bonita.
“Se essa é a aparência que você quer para se casar, legal. Vou subir para
terminar minha refeição”, disse Charlotte. “Você é sua pior inimiga, menina.
Ninguém vai ficar sentindo pena de você.”
“Então sinta pena de Teddy”, falou Bryn. “Não é justo eu me casar com ele e
todos vocês sabem disso. Principalmente porque já estou casada.”
O homem com quem ela se casara quatro anos antes, quando tinha apenas
dezenove anos, era Michael Macklin. Foi ele quem fizera promessas que nunca
imaginou que faria e, certamente, nunca acreditou nelas. Ele estava agora
bebendo no bar do Lion Park Hotel. Também jantara lá, uma carne bem
ruinzinha com salada. Esperava encontrar a garotinha, que ele sabia ser sua
melhor chance. Lucy não fora convidada para o jantar de família só para os
adultos. Ela assinara aquele contrato idiota que Charlotte colocara na sua frente
para calar-lhe a boca. Todos que conheciam Lucy sabiam que ela não era do tipo
que criava problemas e na verdade acabou caindo no sono ao ler um guia
turístico de Londres. Sonhou com os corvos na torre. Sonhou que o Hyde Park
estava repleto de neve e coelhos brancos, coelhos enormes, quase do tamanho de
cachorros. Eles apareciam quando chamados, mas era preciso chamá-los com
gentileza. Era preciso dizer “Oh, coelho, eu lhe imploro”.
“Eis um segredo”, disse um coelho para Lucy. “É tudo um faz de conta.”
Quando Lucy acordou, ela não sabia onde estava. Para se lembrar, precisou
olhar pela janela para os faróis dos carros que passavam pela Brompton Road.
Ficou aliviada por não ter ido ao jantar com os adultos. Desejava ainda estar com
o diário de Anne Frank, não tê-lo emprestado. Quando seu estômago começou a
resmungar, Lucy percebeu que havia se esquecido de jantar; desceu para o
restaurante às nove, esfomeada.
“Olá”, gritou quando viu Michael, que estava no seu segundo drinque.
“Melhor não comer o picadinho de carne”, respondeu. “Não recomendo.”
Lucy pediu macarrão com queijo e uma torta de maçã para sobremesa.
“Ah, e chá”, disse para o garçom. Desde que chegara, tornara-se uma
fanática por chá. De certa forma, sentia-se já uma pessoa diferente daquela que
suas amigas conheciam. Era provável que parecesse bem mais velha; era
provável que soasse um tanto parecida com Katharine Hepburn.
Michael se aproximou e sentou-se diante de Lucy. Vestia um terno preto e
camisa branca. Era bem estiloso.
“Comecei a ler o livro”, falou. “Anne Frank tinha coragem. Agora entendo
por que você a admira. Não se encontra muita gente assim neste mundo.”
“Na maior parte do tempo, só se encontra merda neste mundo.” Lucy ergueu
a cabeça para ver se ele ficara chocado com seu linguajar dessa vez. Não ficara.
“Preciso que faça uma coisa por mim”, disse Michael. “Bem, na verdade, em
nome do amor.”
Lucy olhou para ele. “Não sou idiota”, falou. Sua comida chegara, e ela
começou a comer. “Você quer me usar de alguma forma para conseguir uma
coisa. Certo? Caso contrário, é provável que nem viesse conversar comigo.”
Michael Macklin sorriu. “Você é mais esperta do que a maioria das pessoas.”
“É exatamente isso que uma pessoa diz quando quer que outra faça um
trabalho sujo. Preciso atirar em alguém e dizer que a arma disparou por
acidente?”
Michael pegou um envelope. “É uma carta que gostaria que fosse entregue.
Simples. É só isso que tem de fazer.”
“Você sabia que tem uma coelha morando neste hotel? O nome dela é Millie.
E é enorme. Nunca vi uma coelha tão grande.”
“Sabia que coelho é um prato popular nos restaurantes franceses?”
Lucy abaixou o garfo.
“E a propósito”, continuou, “eu teria conversado contigo de qualquer forma.
Você é a única pessoa interessante neste lugar.”
Michael Macklin era o homem mais bonito que Lucy conhecera em sua vida.
Contudo não achava que era isso que alguém devia procurar num marido.
Deviam procurar a alma. Mas, naquele momento, ela estava lá, sentada de frente
para ele, fascinada. Percebeu que Michael Macklin era mais do que bonito.
Quando o olhou nos olhos, viu algo que não se costuma ver. Tinha uma
aparência de sinceridade, algo que os adultos nunca possuíam.
“Continue”, falou ela.
“Ah, o pobre coelho. Chamam-no de le lapin e o cozinham com cebolas e
vinho.”
Lucy deu uma risada, apesar dos detalhes sangrentos. “Não o coelho…”
“É amor mesmo. Quero que leve esta carta para a irmã de sua madrasta,
Bryn.”
“A noiva?”
“Ela não pode se casar. Já está casada.” Michael se aproximou, e Lucy fez o
mesmo. “Comigo.”
“Por que eu faria isso?” Lucy sentiu uma pontada no estômago e achava-se
um pouco jovem demais para aquela conversa. Já percebera que era difícil dizer
não para Michael quando ele queria algo. Ainda assim, estava interessada em
escutar seus argumentos. Eram simples e eficientes.
“Porque, no fundo, você acredita nas coisas”, disse Michael Macklin. “Assim
como eu.”

ÀS ONZE DA NOITE, Lucy estava sentada atrás da recepção dando a Millie, a


coelha, uma cenoura que pegara com o cozinheiro do hotel, que era apaixonado
por Dorey, a recepcionista da noite. Lucy gostava de estar em um hotel àquela
hora da noite. Estava cuidando das coisas, enquanto Dorey e o cozinheiro saíam
para fumar um cigarro juntos, ou pelo menos foi isso que disseram. Lucy
percebeu que Dorey estava certa. A coelha gostava de comer papel de parede
tanto quanto gostava de cenouras.
“Isso não é bom para você”, falou Lucy, ainda que a coelha não escutasse
nada.
Depois de um tempo, a coelha pulou para a coxa de Lucy e caiu no sono;
Millie sentiu um calafrio. Pesadelos de coelhos.
“Obrigada por cuidar das coisas”, disse Dorey, quando retornou. Seu cabelo
estava bagunçado e sua boca parecia inchada, mas estava animada e tratou Lucy
como se fossem amigas.
“Está apaixonada pelo cozinheiro?”, perguntou Lucy.
“Lógico que não”, respondeu Dorey. “Preciso de um anel no dedo antes que
se transforme em amor. Um diamante. E não uma coisinha minúscula.” Dorey
pegou um pacote de chocolates e compartilhou com Lucy. “Percebo que Millie
gosta de você. Ela é boa em julgar o caráter das pessoas.”
Lucy subiu e preparou-se para dormir. Seu pai nunca saberia que ela ficara
zanzando pelo hotel àquela hora da noite. Ele não precisava saber que Michael
Macklin lhe havia pedido ajuda. Colocou a carta na gaveta da escrivaninha.
Quando dormiu, Lucy sonhou com coelhos. Havia se tornado um sonho
recorrente; ela praticamente ansiava por isso. Estava no parque e deparara com
um lago. Achou que devia mergulhar e atravessá-lo a nado, mas então percebeu
que o lago era um espelho. Um toque e ele se estilhaçaria. Ficou na borda, em
dúvida se seria seguro atravessá-lo. Percebeu que os coelhos eram apenas
sombras, não eram de carne e osso. Eram apenas sombras escuras feitas de
fuligem. A mãe de Lucy estava no lago, tal qual aquele dia em que viu o garça.
Parecia tão real que Lucy tentou correr até ela, mas havia água por todo lado em
seu sonho, funda demais para atravessar.
No dia seguinte, entregou a carta para Bryn, na costureira. Fora levada junto,
já que Charlotte não parecia muito disposta a deixá-la sozinha com o pai. Mas,
dessa vez, isso foi interessante para Lucy. Charlotte e a outra irmã, Hillary,
estavam do outro lado, olhando-se nos espelhos enquanto o alfaiate ajeitava os
pontos, mas reclamando como sempre. Não perceberam quando Lucy se afastou.
Bryn estava no provador, só de combinação, fumando um cigarro. Ergueu a
cabeça e viu Lucy a encarando.
“Que foi?”, perguntou. “Meu cabelo?” Bryan passou uma mão por seu novo
corte de cabelo. “Estou feia?”
“O cabelo de Anne Frank foi todo cortado”, disse Lucy. “E não por escolha
própria.”
“Quem pode escolher as coisas neste mundo?”
Lucy se sentou no banco ao lado de Bryn, que parecia muito estranha e
misteriosa.
“Você ficaria bonita de cabelo curto”, disse-lhe Bryn. “Um corte de fada.
Devia experimentar. Tenho certeza de que Charlotte odiaria.”
Lucy não gostava de seu cabelo preto comprido. Embaraçava e deixava-a
com calor. Ficou interessada nessa ideia de fada. Ficou interessada em Bryn, que
parecia bem diferente de todas as pessoas que conhecera, tão deprimida,
egocêntrica e bonita…
“Está apaixonada?”, perguntou Lucy.
“Direta você, não?” Bryn deu uma tragada no cigarro. “Sim, mas pelo
homem errado. E você?”
“Não acredito em amor. Nunca vou me casar.”
Bryn riu com tanta força que precisou se curvar.
“Fico feliz por achar que sou engraçada”, disse Lucy.
“Você é esperta”, falou Bryn. “Mais esperta do que todos em minha família.
Fodam-se todos eles”, completou. “Acham que sabem tudo.”
Lucy se endireitou. Não estava acostumava a ouvir adultos falando palavrão.
“Entendo”, disse Lucy, mais porque não sabia o que responder. Por algum
motivo, sentiu uma onda de saudades de sua mãe. Ficou pensando no que sua
mãe acharia de Bryn. Bryn devia ser médium ou algo assim; conseguia ver que
Lucy estava triste. Pegou a mão de Lucy e a segurou. Ficaram ali sentadas por
um tempo, sem falar nada, apenas sentindo tristeza juntas. Podiam escutar
Charlotte e Hillary conversando com o alfaiate. Os vestidos das madrinhas eram
pêssego-claro. Uma camurça sedosa. Lucy odiou a cor.
“Ele pediu para que eu lhe trouxesse uma carta”, falou Lucy, baixinho. “Não
sei se devo, nem sei se você quer recebê-la…”
Antes que terminasse a frase, Bryn apertou a mão de Lucy com tanta força,
que sua pele ficou branca. Sentia como se seus ossos estivessem estraçalhados.
“Dê-me”, falou Bryn.
Lucy colocou a mão no bolso e pegou o envelope.
Bryn a soltou. Enfiou a carta na bolsa. “Você a leu?”
“Lógico que não. Quem você acha que sou? Charlotte?” Lucy esfregou a
mão. Ainda estava dolorida. “Não precisava me apertar.”
“Se você fosse Charlotte, nem acreditaria em amor. Vou lhe mostrar o que é
o amor.” Bryn pegou de volta a mão de Lucy e colocou-a em seu peito. A pele de
Bryn estava quente e Lucy podia sentir seu coração disparado. Sentiu o próprio
sangue subindo para a cabeça. Tudo parecia aquecido, acelerado e maluco.
“Agora você sabe.” Bryn soltou a mão de Lucy. “Não se esqueça disso.”

MICHAEL MACKLIN fizera algumas coisas ruins, isso era verdade. Ele
continuava fazendo, usando uma criança para levar sua carta para Bryn,
perseguindo-a, trocando de quarto para ficar na frente de Lucy, de forma que
tivesse acesso a Bryn. Bem, esse era Michael. Mentia a respeito de tudo em sua
vida e não iria parar agora, quando mais precisava. Mentia com tanta frequência
e tão bem, que às vezes se confundia quanto aos fatos de sua vida. Na verdade,
era algo simples: nascera em Manhattan, de pais bem intencionados, mas que
pouco faziam. Começou a trabalhar aos quatorze anos, foi para o exército, serviu
na França, onde aprendeu não apenas a língua, mas também como conseguir o
que queria. Na França, arriscara sua vida, e não tremera nem um pouco. Um
rapaz que conheceu dizia que as únicas pessoas que não tinham medo da morte
eram aquelas que nada tinham a perder, e Michael achou que estavam certos. Em
batalha, sentia-se vivo. Quando corria, sentia que tinha para onde correr. Gostava
do perigo, gostava do cheiro do perigo. Gostava da sensação de seu sangue ficar
quente.
Michael era um ladrão, mas nunca roubou dos pobres. Afinal de contas,
quando menino, vira Robin Hood com Errol Flynn; sabia encontrar pessoas que
podiam suportar a perda de dinheiro, pessoas que nem sequer dariam pela falta.
Em muitos sentidos, Michael lembrava um cão: podia farejar o perigo e podia
farejar a riqueza, podia caçar e escavar. Ele vivia o momento, o aqui e agora.
Levava uma vida sem muitos questionamentos. Só sentia alguma ligação quando
via cachorros de rua. Aconteceu numas vilas abandonadas na França e em Nova
York, perto das docas. Era uma ligação estranha, visceral, como ver-se no
espelho e reconhecer-se, ainda que a aparência fosse bem diferente daquela
imaginada, com caninos, pele e medo.
Voltara para Nova York depois da guerra, e ninguém dava a mínima se ele
era um herói ou um ladrão. Ninguém o conhecia. Às vezes, ia até a Décima
Avenida e sentava-se no escuro, esperando um daqueles cachorros, desesperado
para estar ao lado de uma criatura que o entendesse. É engraçado ter sentido isso
com Lucy, uma criança de doze anos de idade que não tinha como entender o
tipo de vida que ele levava. Ainda assim, ela parecia compreendê-lo. Enxergava
as pessoas por dentro, e isso era ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição.
Michael conhecera Bryn por acaso. Estava andando pela Rua 14 e ela
caminhava à sua frente; Michael acabou seguindo-a. Teve um pensamento
estranho, o mais estranho que jamais teve. Imaginou ter encontrado um anjo na
Terra e que precisa protegê-la de pessoas como ele. Será que alguém de sua vida
pregressa acreditaria que ele se apaixonara? Difícil. Era um usuário, sempre atrás
de um golpe; todos que o conheciam sabiam disso. Nunca acreditariam que ele
gastara todo o seu dinheiro para cortejar Bryn, ou que esperara se casarem para
tê-la na cama, ou que falara sério quando disse que seria para sempre.
Andando pela Rua 14, num dia comum, ele mudou. Era como se sua
estrutura celular tivesse sido rearranjada. Agora podia sentir coisas e entendia
por que isso não lhe acontecia havia tanto tempo. Naquele mundo, fazia sentido
ser um cão. Seguir em frente e farejar problemas. Devia ter feito isso novamente
depois que Bryn lhe fora tomada, reduzindo as perdas e esquecendo que se
apaixonara. Em vez disso, lá estava ele, no Hotel Lion Park, tendo seguido Bryn
até Amsterdã, depois em Paris e agora em Londres. Esperava que uma garota de
doze anos de idade o resgatasse. Ela não o deixaria na mão. Lucy bateu à sua
porta e passou um envelope por baixo.
“Não vou fazer isso novamente”, ele ouviu a sua voz, enquanto tentava pegar
a carta. Nem se preocupou em abrir a porta para agradecer à garota. Leu a carta
de Bryn com voracidade, tão rapidamente que perdeu algumas palavras. E então
leu mais uma vez, e mais outra. Ficara sentado ali esperando, quase bêbado, com
roupas amassadas, muito próximo de desistir. Agora tomou um banho, ficou
sóbrio e vestiu uma camisa limpa. Lucy era seu anjo. Ele precisava de ajuda, e
ela o ajudou. Ele precisava que alguém, qualquer pessoa, tivesse fé, e ela teve.
Sentou-se à mesa para escrever. Achava que era impossível descrever a alma
em palavras, mas conseguiu fazer isso. Anotou todas as coisas ruins que fizera
na vida. Queria que soubessem de tudo. Era como uma sensação de sede ou
fome, talvez até mais forte. Pensou nos cães de Nova York e que achava
compreendê-los, mas estivera se enganando. Não conhecia ninguém, muito
menos a si mesmo.
Ficou acordado boa parte da noite escrevendo a carta, e pela manhã já estava
aguardando no restaurante quando Lucy e sua família desceram para tomar café.
Não dormira nada, porque ansiava por aquele momento. Lucy olhou para ele,
mas logo afastou o olhar. Seu pai e Charlotte iam levá-la para conhecer a Torre
de Londres, ainda que Charlotte considerasse uma perda de tempo e que estaria
terrivelmente cheia. O pai de Lucy insistira que precisavam ser turistas por um
dia, já que Lucy não vira muito mais do que o interior de um quarto de hotel.
Sentaram-se e pediram ovos, tomates fritos e café. Lucy queria chá e torrada.
Estava desenvolvendo um paladar para marmelada.
“Isso não é nutritivo”, falou Charlotte. “Você precisa dos cinco grupos
alimentares.”
“Chocolate, pizza, cereais, refrigerante e rabanada”, disseram Ben e Lucy em
uníssono.
Lucy deu uma risadinha. Era uma piada particular que costumavam fazer
antes de Charlotte aparecer. Uma lista de suas coisas favoritas.
“Aquele homem ali está olhando para nós?”, perguntou Charlotte.
Todos olharam para a mesa ao lado da janela. Michael Macklin bebericava
seu café. Era realmente lindo. Abaixou sua colher e fez uma saudação para Lucy.
Ela afastou o olhar mais uma vez.
“Você o conhece?”, perguntou Charlotte.
“Não diria bem que o conheço”, respondeu Lucy com uma evasiva. “Eu lhe
emprestei O diário de Anne Frank.”
“Essa coisa de Anne Frank não é normal”, disse Charlotte para Ben. “É uma
obsessão.”
Lucy ergueu os olhos. “Acha que a maioria das pessoas a odeia?”, indagou a
Charlotte. “Ou só aquelas que têm cérebro?”
“Lucy”, falou o pai. “Isso não é jeito de falar!”
“Bem, então diga isso para ela”, falou Lucy. “Ela não pode simplesmente
falar sobre mim, e eu sentada aqui. Não sou um móvel.”
“Não quis dizer isso”, falou Charlotte. “Você está levando muito para o lado
pessoal. Apenas quis dizer que há coisas mais divertidas no mundo para pensar
do que em Anne Frank.”
“Olá.” Michael Macklin viera até eles. Parecia uma estrela de cinema, como
alguém por quem Katharine Hepburn estaria apaixonada, a quem perderia e teria
de reconquistar. “Prazer em conhecê-los.” Apertou a mão do pai de Lucy. “O
senhor tem uma filha muito esperta. Sou obrigado a dizer. Ela é inteligente,
posso garantir.” Tirou o exemplar do diário de Anne Frank do bolso do paletó.
“Aprendi muita coisa”, falou para Lucy. “Quero agradecer-lhe por me emprestar.
Acho que não sou mais o mesmo homem, graças a você.”
Lucy pegou o livro e colocou-o sobre a coxa. Havia tanta coisa errada no
mundo para aturar. Seria mesmo possível que o amor existisse?
“Bem, tenham um bom-dia aqui em Londres”, falou Michael Macklin.
“Nova-iorquino, certo?”, perguntou Ben Green.
“Não somos todos?” Michael apertou a mão do pai de Lucy novamente.
No táxi, no caminho para a torre, Charlotte insistiu que passassem pelo
Palácio de Buckingham. Elizabeth era rainha desde fevereiro: estava no Quênia e
fora chamada às pressas de volta quando seu pai morreu.
“Lá está”, falou Charlotte.
Lucy não parou de folhear o diário de Anne Frank para olhar os homens
fazendo guarda atrás dos portões. Achou que deviam estar com um calor terrível.
Sentiu a ponta de um envelope no meio do livro. Imediatamente, seu coração
disparou. E levou a mão ao peito. Nem sequer imaginava que tinha um coração,
mas lá estava ele, batendo com força. Michael Macklin era bem esperto mesmo.
Ao longo de todo o passeio pela torre, Lucy não parava de pensar na carta em
seu bolso. Parecia pesar mais do que um papel normal. Não paravam de falar de
decapitações e esposas trancadas. Por algum motivo, Lucy sentiu vontade de
chorar enquanto caminhavam com o grupo para ver as Joias da Coroa atrás de
vidros. Sua mãe adorava arte, ela e Lucy costumavam ir ao Museu Metropolitan.
Sentia saudades de sua mãe e de seu pai, e da pessoa que ela mesma costumava
ser. Sentia saudades de tudo.
No táxi, voltando para o hotel, Lucy disse que havia deixado seus óculos
com Bryn. Precisava deles para enxergar a distância, mas nunca os usava. O táxi
parou na frente do apartamento de Teddy Healy – era lá que Bryn ficaria
enquanto Teddy acampava com seu irmão até o casamento.
“Vou correndo”, falou Lucy. “Já volto.”
“Não podemos ficar esperando aqui o dia todo”, gritou Charlotte, depois que
ela já havia partido.
Lucy entrou no prédio e subiu até o segundo andar. Precisou esmurrar a porta
para que Bryn viesse atender.
“Quem é?” Bryn usava seu roupão de banho, embora ainda estivessem no
meio da tarde.
Lucy entregou a carta. Caso perguntassem onde estavam seus óculos, teria de
dizer a eles que se enganara. Na verdade, estavam sobre a escrivaninha de seu
quarto no Hotel Lion Park.
“Tenho de responder”, disse Bryn.
“Você está maluca? Estão me aguardando no carro.”
“Está bem, está bem”, falou Bryn. “Então lhe diga para me encontrar na
Igreja do Apóstolo, em Westbourne Grove. Está tudo preparado para amanhã às
dez. Não vai esquecer?” Lucy prometeu que não. Bryn se inclinou e beijou a
menina, bem nos lábios. “Quero que seja minha testemunha. Faria isso por
mim?”
Lucy fez que sim com a cabeça.
“Bem, então vá!”, disse-lhe Bryn. “Antes que a venham procurar.”
Quando entrou no táxi, nem lhe fizeram perguntas sobre os óculos. Pareciam
estar em meio a uma briga.
“Como estava Bryn?”, perguntou Charlotte, no caminho de volta para o
hotel. “Normal?”
Lucy sentiu vontade de soltar uma gargalhada. Olhou para Charlotte com
bastante cautela. Não dava a mínima para o que achava sua madrasta.
“Perfeitamente normal”, respondeu.

NO INÍCIO DA noite, Lucy colocou uma mensagem por baixo da porta de


Michael. Pela manhã, deu uma escapulida, enquanto seu pai e Charlotte ainda
dormiam, deixando-lhes um bilhete de que ia se encontrar com uns ingleses que
havia conhecido e que queriam lhe mostrar a cidade, talvez levá-la ao zoológico.
Sabia que não devia ir a lugar algum, mas seria rápido, e ninguém jamais
precisaria saber aonde ela realmente fora. Encontrou Michael na esquina e
pegaram um táxi até Westbourne, chegando com uma hora de antecedência. A
igreja era velha, feita de tijolos, com um pináculo muito bonito. Tinha mosaicos
de vidro e estátuas de santos.
“Acho que é uma igreja católica”, falou Lucy.
“Esperta como sempre. Tem certeza de que tem apenas doze anos, e não
quarenta? Ela disse dez horas, certo?”
Michael estava nervoso. Fumou três cigarros em seguida e ficava andando
para lá e para cá na calçada.
“Dez horas”, confirmou Lucy. “Não se preocupe. Vai dar tudo certo.” Lucy
não era muito de tentar confortar as pessoas, mas sentiu-se obrigada a acalmá-lo.
“Ah, sim, lógico. Assim como todo o resto. Não deu tudo certo para os
judeus na Alemanha nazista?”
“Ela estará aqui”, afirmou Lucy.
“Não espere nada e seja grato por tudo, é isso que minha mãe me dizia”,
falou Michael.
“Minha mãe dizia que tinha medo de morrer.” Lucy nunca admitira isso para
ninguém. Sentia calafrios ao lembrar o momento em que ficou ao lado de sua
mãe, em seu quarto escuro, próximo do fim. Esse momento, em geral, ficava
apagado de sua mente.
“Parece que sua mãe era uma das poucas pessoas honestas na terra.” Michael
amassou o cigarro e acendeu mais um. “É bem provável que venha daí a sua
honestidade. É um presente que ela lhe deu.”
Mas ela não era honesta. Não mesmo. Quando sua mãe falou aquilo, Lucy
foi rápido em dizer “Você não vai morrer”. Ainda que fosse óbvio que morreria.
Lucy não conseguia contar essa parte para Michael. Não podia permitir que ele a
odiasse por ser tão covarde.
“Não sou tão honesta”, conseguiu dizer Lucy. “Disse para meu pai que iria
ao zoológico hoje, com umas pessoas que conheci no parque, para que ele não
descobrisse que eu estava aqui.”
“Isso não é uma mentira, está apenas encobrindo fatos. Você é honesta a
respeito de coisas importantes, Lucy.”
Lucy sorriu. Pensou: “Não é à toa que ela se apaixonou por ele”. Bryn
chegou um pouco antes das dez. Ela saiu do táxi e começou a beijar Michael de
uma forma que obrigou Lucy a olhar para o outro lado. Tinha a leve impressão
de que não devia estar vendo aquilo; que algumas coisas deviam ser feitas em
particular.
“Minha testemunha”, falou Bryn quando percebeu a presença de Lucy.
Entraram na igreja e Michael parou para se benzer com a água sagrada da
fonte. O padre e uma anciã, que serviria como segunda testemunha, os
aguardavam e rapidamente subiram para o altar. Havia um cheiro de incenso no
ar. Lucy ficou ao lado do casal e, embora não entendesse a liturgia, que era
surpreendentemente demorada, ela compreendeu quando o padre disse-lhes que
estavam casados perante os olhos dos homens e de Deus. Então se beijaram
novamente, beijos enlouquecidos, e Michael e Bryn tiveram de se despedir.
Michael saiu para comprar passagens para Paris, e Lucy foi com Bryn ajudá-la a
fazer as malas. Bryn jogava as roupas sobre a cama, e Lucy dobrava. Quando
terminaram, Bryn tirou seu anel de diamante, aquele que Terry lhe comprara, e
deu-o para Lucy. “Para você. Fique com ele.”
Lucy segurou o anel na frente da luz. A pedra parecia um enorme cristal de
gelo. Era bem bonito. Colocou-o na bolsa, enquanto Bryn escrevia a última carta
para Michael. Ela acreditava em cartas de amor, em romance e no destino.
Queria que ele soubesse quanto o amava. Iria encontrá-lo no hotel e, então, iriam
para bem longe, para um lugar onde ninguém conseguisse encontrá-los dessa
vez. Enquanto se ocupava com a carta, Bryn permitiu que Lucy comesse quantos
chocolates quisesse de uma caixinha bonita da Harrods que ganhara. Havia
bombons com caramelos, e outros, como bombom com licor de framboesa ou
chocolate ao leite com gengibre, que deixavam sua boca enrugada. Depois disso,
Lucy precisou beber limonada com espuma. Limonada e chocolates; dois dos
cinco grupos alimentares preferidos dela e de seu pai.
“Deseje-me sorte”, falou Bryn, quando Lucy saiu para atravessar o parque de
volta ao Lion Park.
Lucy não teve coragem de dizer-lhe que não acreditava em sorte. O dia
estava quente, mas ventando, o parque exalava um cheiro doce e fresco e isso a
fez se lembrar daqueles chocolates. Lucy andou pela Serpentine e ficou olhando
as famílias que faziam passeios de barco que duravam horas. Gostava do fato de
ninguém conhecê-la. Ninguém sabia que tinha um diamante na bolsa. Ninguém
sabia seu nome. Achava que as pessoas podiam, de fato, recomeçar a vida.
Permitiu que as lembranças de sua mãe invadissem sua mente. Agora que
contara a Michael sobre ela, essas recordações eram-lhe menos dolorosas. Sua
mãe dissera algo ao garça-azul no dia perfeito. Foi direto até ele, com a água na
altura de seus joelhos. O garça parecia tê-la escutado e saiu voando. Lucy e sua
mãe acenaram para o pássaro. Ficaram pulando e gritando para ele; então viram-
no desaparecendo entre as árvores. Foi aí que a mãe de Lucy saiu do brejo. A
bainha do vestido estava encharcada e os pés, descalços. “Disse-lhe para cuidar
de você”, contou para Lucy. Aquele foi o último dia bom na vida de Lucy.
Lucy pegou a aliança e colocou-a no dedo. Se deparasse com aquelas jovens
inglesas novamente, dir-lhes-ia que o anel pertencera a Katharine Hepburn.
Clark Gable quisera se casar com ela, mas ela recusara o pedido e dera o anel
para Lucy.
Quando Lucy chegou ao Lion Park, já havia passado a hora do almoço.
Havia um alvoroço no hotel, porque Millie, a coelha, tinha sumido. As
camareiras e porteiros a estavam procurando. O animal havia deixado um rastro
de fezes e, pior, fora arrancado o papel de parede de vários pontos do edifício.
Ela mastigara os fios de telefone, deixando sem linha todo o sexto e sétimo
andares. Agora descobriram que havia algo de errado com o elevador também;
só Deus sabia o que mais a coelha havia roído. Estavam aconselhando os
hóspedes a usar a escada.
“Nenhuma boa ação sai impune”, falou Dorey, triste. Fora repreendida e seu
cargo estava em perigo. Ela devia estar usando o colete cinza sobre a blusa
branca, que era seu uniforme, mas estava num vestido florido, salto e batom
vermelho. Estava toda preparada para um encontro quando foi informada a
respeito da coelha. O cozinheiro que estava apaixonado por ela ameaçara
arrancar a cabeça de Mille se a encontrasse. Vestia seu melhor traje para passear
e carregava um cutelo de carne na mão, retalhando o ar.
“Guarde o pé para mim”, gritou Dorey para ele. “Dizem que dá sorte.”
Lucy subiu pela escada. Decidira contar os degraus e já estava em oitenta e
um quando deparou com Charlotte.
“Aí está você”, falou Charlotte. “Divertiu-se no zoológico?”
“Foi brilhante”, respondeu Lucy. Era um adjetivo que aquelas inglesas
usavam o tempo todo. Pretendia usá-lo com certa frequência quando voltasse
para casa. “Havia vinte e três camelos e um deles era albino.”
“Você é uma bela de uma mentirosa”, disse Charlotte. “Você pode ter
enganado seu pai, mas eu sei o que você faz. Onde esteve esse tempo todo?”
Charlotte iria dizer mais coisas, mas de repente ficou olhando para as mãos
de Lucy. A menina tentou escondê-las às costas. Esquecera-se de tirar o anel.
“Onde conseguiu isso? Oh, meu Deus! Acima de tudo, você é uma ladra!”
“Isso mostra bem quanto você sabe das coisas”, disparou Lucy. “Ela me
deu.”
“Ela?”
Lucy se calou e virou-se para subir o restante dos degraus. Pensou na coelha,
escondida em algum lugar. Pensou que precisaria subir mais uns cem degraus
para conseguir escapar. Mas Charlotte a agarrou e torceu o braço de Lucy.
“Está falando sobre Bryn? Você pegou esse anel com ela?”
“Meu pai sabe que você nem acredita em amor?”, disse Lucy. Ela devia
sentir-se encurralada, mas, em vez disso, sentia-se estranhamente poderosa.
Charlotte puxou a mão de Lucy e tentou arrancar o anel à força. “Quando seu
pai ficar sabendo disso, você será severamente punida, pela primeira vez na
vida.”
O que aconteceu em seguida foi culpa de Lucy. Ela empurrou Charlotte, mas
nunca deveria ter feito isso. Charlotte se agarrou a Lucy, tentando evitar uma
queda, e foi assim que a carta caiu no chão. Foi daquele tipo de instante que dura
tempo demais e, então, de repente, o tempo se acelera e não há nada que se possa
fazer para impedir. Era tarde demais para isso.
Charlotte se ajoelhou e pegou a carta. Reconheceu a letra de sua irmã e o
nome de Michael Macklin. Ficou olhando para Lucy como se nunca a tivesse
visto.
“Isso é meu, me devolva”, falou Lucy.
Mas não era e ambas sabiam disso.
Charlotte abriu com tudo a carta e leu-a.
“É minha”, disse Lucy novamente, esperando convencer as duas a respeito
disso.
“Então o que diz aqui?”
Lucy não sabia responder.
“Se é sua, diga-me o que está escrito aqui, Lucy Green, sua mentirosa!
Vamos lá!”
“Diz que eu odeio você”, respondeu, enfim, Lucy.
Lucy subiu correndo e bateu à porta de Michael, mas ele não estava lá.
Quando se virou, Lucy sabia que havia cometido um erro. Não devia ter ido
direto ao encontro de Michael. Charlotte a seguira.
“É aqui que ele está hospedado?”, perguntou Charlotte. “Ele é o homem que
veio até nós no café da manhã, não é? Você planejou isso com ele todo o tempo.
Você tem ajudado um criminoso e ladrão!”
Lucy estava com sua chave na mão. Abriu a porta, entrou, bateu com tudo e
trancou. Não havia olho mágico, assim não pôde ver se Charlotte ainda estava lá
fora. Mas não precisou esperar muito para uma resposta; sua madrasta começou
a esmurrar a porta.
“Saia já daí!”, disse Charlotte. “Não ache que conseguirá fugir de mim
assim!”
Lucy se deixou afundar no carpete, com as costas encostadas na parede.
Nunca iria abrir aquela porta. Podia sentir seu coração disparado e a
reverberação de seu pulso nos ouvidos. Viu alguma coisa do outro lado do
quarto, embaixo da mesa. Pensou que fosse uma sombra, ou uma alma perdida,
ou um rato, ou o próprio demônio, mas era apenas Millie, a coelha do andar de
baixo. Lucy foi engatinhando pelo chão e afastou a cadeira; então enfiou-se sob
a mesa com Millie, que estava toda retraída ao lado da parede. Ali embaixo
tinha-se uma sensação de segurança. Muito quente e um tanto fedorento, mas
seguro.
Tudo pareceu surpreendentemente silencioso quando Charlotte enfim parou
de gritar e esmurrar a porta. O barulho do trânsito era quase inaudível ali
debaixo da mesa. Lucy se enrolou e fechou os olhos. Ficou escutando pequenos
puff-puffs de respiração da coelha, ou talvez fosse ela mesma caindo no sono.
Quando começou a sonhar, Lucy se lembrou do último dia com sua mãe.
Primeiro, haviam ido ao Saks, a loja favorita delas, onde sua mãe lhe comprara
um casaco de pelo de camelo. Então, de uma hora para outra, sua mãe a puxara
para um estande de joias e, por impulso, também lhe dera um pequeno relógio de
ouro com uma pulseira de couro preta.
Era outubro, e Lucy devia estar na escola, mas sua mãe dissera para nem
pensar naquilo; dizia que alguns dias eram perfeitos demais para se ir à escola, e
foi por isso que haviam ido até a cidade. Depois de fazer compras, almoçaram no
Rainbow Room, que ficava num andar alto da Quinta Avenida. O mundo lá
embaixo parecia azul e dourado. Lucy não parava de olhar para o relógio,
informando as horas, o que deixava as duas com vontade de rir.
“Este é um dia de que vou me lembrar para sempre”, falou a mãe de Lucy.
Pediram camarão e carne. Lucy tomou um coquetel Shirley Temple, sua mãe
preferiu um martíni, puro, com cinco azeitonas. Deu as azeitonas para Lucy e
pediu mais cinco. Na vida real, foram ao Central Park, viram o garça-azul, que
saiu voando, e a mãe de Lucy se sentou sobre as pedras e começou a chorar. Na
vida real, a mãe de Lucy tinha câncer, seu rosto estava pálido, estava usando um
casaco pesado, ainda que a temperatura estivesse boa e seu vestido, encharcado.
Antes, tinha um bonito cabelo escuro comprido, mas então precisara usar uma
peruca. Tinha 36 anos de idade. Olhara para Lucy e falara: “Sinto muito”. Na
vida real, Lucy tirara seu novo relógio e o jogara na água. Sabia que não devia
fazer isso, e que se arrependeria depois, mas não queria que o tempo avançasse.
“Todas as coisas estão ou acima ou abaixo de nós”, dissera a mãe de Lucy.
As pessoas começaram a gritar no sonho de Lucy. Talvez porque sua mãe
estivesse na beira de uma ponte. Abaixo, via-se um riacho, uma queda-d’água e
pedras enormes. As pessoas gritavam quando a mãe de Lucy saiu da ponte. Lucy
estava em pânico; seu coração quase parou – seu coração dos sonhos e seu
coração real –, mas então viu que sua mãe estava no ar. O garça estivera
aguardando e ela não precisava nem um pouco da terra. Todas as coisas estavam
ou acima ou abaixo dela, como dissera. Lucy precisou colocar uma mão sobre os
olhos para olhar para cima; tudo estava azul, e o sol estava tão claro que lhe
machucava os olhos.
Lucy acordou quando a coelha a chutou. Abriu os olhos e escutou a gritaria
no corredor. Olhou para o relógio. Eram dez e quinze. Estava tudo escuro. A
coelha fugira pulando e ela estava tremendo embaixo da cama, assustada com
todo aquele barulho. Lucy foi até a porta. Abriu um pouquinho. Um homem alto
estava no corredor. A porta do quarto de Michael estava aberta. O homem
entrou, ainda gritando. Ele fora traído, era o que dizia.
Lucy abriu um pouco mais a porta e enfiou-se no corredor. Sentia-se confusa,
como se fosse uma sonâmbula. Era atraída pela gritaria; era como um ímã. Podia
escutar o grito de uma mulher agora. Conhecia a voz. Começou a sentir algo que
parecia um calafrio, o mesmo que sentia quando tinha febre. Lucy olhou dentro
do quarto. Lá estava Bryn, saindo da cama. Michael também estava lá, vestindo
suas roupas. Pareciam distantes, seminus. O outro homem foi até Michael,
agarrou-lhe e deu-lhe um soco no rosto. E mais uma vez. E mais um. Michael
não reagia. “Vá em frente, se isso o faz sentir-se melhor”, dizia. “Eu mereço.”
Saía sangue de seu nariz. Era ridiculamente vermelho.
“Pare”, gritou Lucy, mas ninguém lhe dava ouvidos. Ela era invisível. Estava
tendo um sonho.
“Como posso a perdoar por isso?”, perguntou o homem alto para Bryn.
“Não é preciso! Não me perdoe, Teddy. Não quero que me perdoe. Nós
nunca deveríamos ter ficado juntos, apenas deixe-me ir.”
Ele não ouvia o que ela estava dizendo. O homem chamado Teddy agarrou
Bryn; ele dizia que iam se casar, sim, para o próprio bem dela. Parecia que
estava prestes a bater nela, mas Bryn conseguiu se desvencilhar e fugir do
homem. Então Michael lhe deu um soco. Bateu com força, porém, ao fazer isso,
Michael balançou a cabeça; não gostava do que tinha de fazer, mas
aparentemente não tinha escolha.
Quanto a Bryn, ela parecia uma sombra; passou correndo por Lucy. Exalava
um cheiro de calor e lilases. Dentro do quarto, Michael percebeu que ela se fora;
parou de prestar atenção no outro homem e foi atrás de Bryn. Estava descalço.
Lucy quase podia escutar seu coração estrondando. Ele estava ensopado de suor
e sangue escorria pelo seu nariz, mas saiu pelo corredor.
O outro homem, aquele chamado Teddy, permaneceu onde estava. Ele se
sentou na cama e ficou olhando para o chão. Havia sangue em seu rosto também.
Parecia aturdido, mas, quando ergueu a cabeça, viu Lucy na entrada do quarto.
Lucy olhou para ele e saiu correndo. Correu o mais rápido que conseguiu. O
volume de sua pulsação estava tão alto que ela achava que ia ficar surda. Desceu
pela escada, atravessou o lobby e saiu para a rua.
Aquilo ainda era um sonho, não? No tempo dos sonhos, era possível que as
coisas retrocedessem, mudassem e fossem revertidas. Era com isso que ela
contava. Corria com tanta velocidade que achou que seus pulmões iam explodir.
Lucy pensou em garças-azuis, subindo para o céu. O trânsito estava tão intenso
na Brompton Road que parecia infinito. Lucy desejava que tivessem aqueles
sinais de “Pare/Ande” que haviam acabado de instalar na Times Square.
Ela via Bryn correndo pela multidão. Em seu movimento, Bryn parecia tão
branca naquela noite escura que se podia achar que havia caído da lua. Olhou
para a esquerda e saiu correndo, mas ela não havia olhado para a direita.
Atravessou a rua como teria feito em Nova York, sem pensar duas vezes, e logo
foi atingida por um furgão. Mesmo com todo aquele tráfego, Lucy conseguiu
escutar o estrondo. Pior ainda, conseguiu escutar Michael Macklin. Ela o
escutaria para sempre. O som de seu choro, abaixo dela, acima dela, em todo
lugar.
Lucy estava sentada na calçada quando seu pai a encontrou. Foi Dorey, a
recepcionista da noite quem telefonou para as autoridades; e aí, quando vira
Lucy sair correndo pela porta, Dorey subiu correndo para avisar Ben Green.
Houve um acidente horrível e sua filha estava bem ali, no meio de tudo, disse-
lhe Dorey. A jovem atingida por um furgão, o homem que avançou sobre os
carros depois. O sangue já estava sumindo no asfalto escuro e na noite negra,
mas Lucy vira tudo. Aqueles instantes paralisados de pouco tempo antes, quando
ela poderia ter corrido e impedido que ele fizesse isso, bastava acelerar o passo.
Michael a vira do outro lado da avenida. Ficou concentrado por um momento,
como se estivesse feliz por terem se encontrado e se reconhecido na multidão.
Então pisou no asfalto, como um homem pulando de uma ponte, calmo como um
nadador diante de um oceano. Lucy soube o que ele faria no instante em que
seus olhos se encontraram. Sabia o que ele pretendia fazer, porque teria feito a
mesma coisa se tivesse a sua coragem. Nada iria impedir sua queda.
Os Greens foram para outro hotel naquela noite. A bagagem deles e todos os
seus pertences seriam enviados depois. Dorey se ofereceu para empacotar as
coisas. Charlotte ia ficar com sua irmã, Hillary, e discutir os detalhes de como
trazer Bryn para casa; assim ficaram apenas Lucy e seu pai. O novo hotel era
menor, um lugar familiar chamado Smithfield, muito confortável. Ben Green
pegou uma suíte, e permitiu que Lucy levasse a coelha do Lion Park para o
quarto deles. Ben não costumava aprovar a apropriação de coisas que não eram
suas, mas Lucy simplesmente se recusava a abandonar Millie. Ficara histérica e
enfiara-se embaixo da mesa. Não parava de dizer que as pessoas no Lion Park
iam cortar a cabeça da coelha e cozinhá-la. Seu pai precisara fazer um juramento
de sangue de que protegeria a coelha não importando o que acontecesse. Ben fez
um corte em sua mão com uma lâmina e marcou um X numa folha de papel para
que Lucy saísse de baixo da mesa. Ela pegou um cinzeiro do Lion Park para usar
como prato para o bichinho.
O novo hotel ficava no outro lado do parque, não muito longe da igreja onde
o casamento acontecera. Lucy se lembrava, alguma coisa Grove, como se
houvesse uma floresta bem no meio da cidade. Para sair do Lion Park com a
coelha roubada, Ben a embrulhou com seu paletó, escapulindo antes que alguém
os visse. O taxista olhou no espelho retrovisor quando Lucy desembrulhou o
paletó para se certificar de que a coelha estava bem.
“Eu não vi isso”, disse o motorista. “Se os senhores têm qualquer criatura
viva que não devia estar andando de táxi, por favor, não me contem.”
Eles não falaram nada. Estavam todos chocados: Lucy, seu pai e a coelha.
Quando chegaram à suíte do novo hotel, o sofá na sala de estar foi preparado
para servir de cama para Ben e Lucy ficou com o quarto. O hotel era mais
silencioso e os postes de luz não penetravam pela janela, mas Lucy não dormiu.
Pegou O diário de Anne Frank, porém não conseguiu se concentrar para ler. Não
queria mais ler. Lucy não dormiu por três noites, então adoeceu.
Começara a tremer e não conseguia parar. Estava ardendo de febre e ainda
assim estava gelada. Sua boca doía e ela se recusava a beber água. Havia um
médico hospedado no hotel, para uma conferência em Londres, e a gerência o
convocou para que fosse ver Lucy quando seu pai pediu que um médico fosse
enviado imediatamente. Millie estava sentada na cama, mastigando um cobertor
de lã, quando o médico entrou. O pai da garota já havia lhe contado que sua filha
de doze anos de idade era impressionável e sensível – e que havia presenciado
um acidente terrível.
“O que temos aqui?”, perguntou o médico. “Um coelho num quarto de hotel?
Ora, isso é algo que eu não esperava.”
Lucy não respondeu nada. Gostava do quarto em que estava. Não estava com
muita vontade de sair dali. Não queria andar. Não ia contar para ninguém que
não conseguia dormir à noite por escutar a voz de Michael Macklin.
O médico foi informado de que Lucy parara de falar e que a mesma situação
já havia acontecido quando sua mãe falecera.
“Já ouviu falar no Terceiro Anjo?”, perguntou.
Em geral, isso vinha acompanhado de uma resposta, mas Lucy nem olhou
para ele.
“As pessoas dizem que existem o Anjo da Vida e o Anjo da Morte, mas há
um outro. Aquele que anda entre nós.”
O médico percebeu que ela o escutava.
“Ele não é nada feroz, terrível ou cheio de luz. É como nós, às vezes nem
conseguimos distingui-lo. Às vezes, somos nós quem tentamos salvá-lo. Ele está
lá para nos mostrar quem somos. Seres humanos não são deuses. Cometemos
erros.”
“Isso não é uma coisa muito confortante para um médico dizer. O senhor
devia curar pessoas, não falar sobre erros.”
Lucy não falava havia vários dias e por isso sua garganta arranhava e estava
seca.
“Faço o melhor que posso”, respondeu o médico. “Acho que você também.”
“O senhor não sabe nada sobre mim”, informou-lhe Lucy.
“Eu tenho uma filha que gosta de livros.” O médico havia notado o exemplar
d’ O diário de Anne Frank sobre o criado-mudo. “Ela é fanática por leitura
também.”
Lucy olhou para o médico. A voz dele parecia triste; parecia que tinha visto
muitas pessoas doentes. Notou que ele usava dois relógios de pulso. Isso lhe
pareceu muito estranho.
“O senhor não é um xarope, é?”, perguntou Lucy. Seu peito doía e ela tossia
durante as noites. Escondia o rosto no travesseiro para que seu pai não a
escutasse. Já havia deixado muita gente preocupada. Não pretendia incomodar
mais ninguém.
“Aquele remédio?”, disse o médico, confuso. “Do tipo que para com a
tosse?”
Lucy poderia ter rido, se não se sentisse tão mal. “Do tipo lunático”, falou.
“Ah, os relógios. Um, eu uso para medir sua pulsação.” O que, então, fez. “O
outro é para me certificar de que sempre chego na hora. É um relógio para viajar
no tempo.”
“Então tá.” Lucy nunca conhecera um médico como aquele. Ela se
endireitou.
“Importa-se se eu escutar seus pulmões?”, perguntou.
Lucy deu de ombros. O médico tinha uma velha sacola preta que se abria
quando empurrava um fecho prateado. Pegou um estetoscópio e escutou as
costas de Lucy e, depois, a frente. Ela mesmo conseguia escutar sua respiração
ofegante. Quando ele terminou, Lucy teve um de seus ataques de tosse. Ela
cobriu a boca com a mão. Sentia que suas costelas estavam a ponto de rachar. O
médico aguardou com toda a educação o encerramento da asfixia e ela recuperar
o fôlego.
“O coelho não tosse, não é verdade?”
“A coelha”, corrigiu Lucy. “Não. Ela é bem silenciosa. Nem um pio.”
O médico pediu que Lucy se sentasse na ponta da cama e, quando ela o fez,
ele deu uns tapinhas em seus cotovelos e joelhos. Ela se sentia um bichinho de
estimação. Quando pediu que tossisse novamente, ela o fez e aí não conseguiu
parar. Dessa vez, a coelha se assustou e saiu pulando para se esconder embaixo
da cama. “Como assim, um relógio para viajar no tempo?”, perguntou Lucy
quando voltou a respirar.
“Eu o adianto uma hora. Assim, quando chego em casa e vejo minha filha,
estou na verdade uma hora adiantado.”
Lucy riu, mas logo chiou.
“Sabe o que acho?”, perguntou o médico.
Lucy fez que não com a cabeça. Havia certas coisas que ela odiava agora,
desde aquela noite. Trânsito, sangue, a cor vermelha, ruídos repentinos, a batida
de seu coração.
“Acho que você está com pneumonia e tem uma asma bem séria. Já havia
tido um ataque de asma? Sentiu o peito inchado e inflado?”
Lucy balançou a cabeça. “Vamos pegar um navio de volta para casa logo.
Até lá, estarei melhor.” Ela se deu conta de que se esquecera totalmente de sua
tartaruga, a senhora Henderson, e sentia-se uma péssima dona e uma pessoa
ruim. Passou a acreditar que a senhora Henderson já havia morrido e que
ninguém tivera coragem de lhe contar. Era melhor voltar logo para casa. Queria
poder sair dali naquele mesmo dia.
“Acho que você melhoraria se ficasse um tempo no hospital”, disse o médico
para Lucy.
“Bem, isso não seria possível mesmo.” Por algum motivo estúpido, Lucy
começou a chorar. Não tinha por que chorar. Afinal de contas, não era Anne
Frank. Não morava num sótão, só esperando para ser levada a um campo de
concentração. Estava num quarto de hotel confortável, com seu pai.
“Por que não?” O médico anotara o nome de um xarope para tosse, para que
seu pai comprasse com um farmacêutico, o que daria a Lucy um alívio imediato.
“Tem mais alguma coisa que precise fazer que a impeça de ir ao hospital?” Ficou
aguardando sua resposta com bastante atenção, de uma maneira bem diferente do
que os adultos costumavam fazer.
“Estou cuidando de uma coelha”, disse Lucy. “Isso não está claro?”
O médico refletiu sobre o assunto. Colocou de lado seu estetoscópio, o
termômetro e seu bloco de prescrições, tudo dentro da sacola preta.
“Vou levar a coelha para casa comigo”, falou.
“E comê-la.”
O médico reconheceu em Lucy alguém que havia perdido a fé. Já vira
pessoas assim.
“Sou vegetariano”, contou-lhe.
Lucy analisou seu rosto. Ele não parecia um mentiroso.
“Na verdade, não estava pensando em tê-lo como um animal de estimação.
Estava pensando em permitir que ficasse em minha casa durante o inverno, e
então soltá-lo no campo atrás de minha casa.”
“Soltá-la”, falou Lucy.
“Isso, soltá-la”, corrigiu o médico. “Ela ainda poderia se alimentar em meu
jardim. Costumamos plantar alface e ervilhas. Ela poderia dormir no galpão.”
“Queria poder viajar no tempo.” Lucy chamou a coelha, que estava sob a
cama, mas ela se negava.
“Algum período em especial?”
Lucy avaliou a pergunta. “O instantes antes de coisas ruins começarem a
acontecer.”
“Bem, isso teria de ser antes de o universo existir. Creio que seria um espaço
branco e vazio. Não precisa mesmo se preocupar com a coelha. Vou cuidar bem
dela.”
Lucy percebeu que estava difícil respirar. Não achava mais que o médico era
um louco. “Sim”, concordou. “Isso seria bom. O nome dela é Millie.”
Lucy deu entrada no hospital naquela noite; ela precisou dormir numa tenda
plástica onde circulava ar quente e úmido. Estava muito mais doente do que o
médico deixou transparecer. Respirava com dificuldades, sentia ânsia de vômito
e, quando fechava os olhos, via coisas que não estavam lá, provavelmente
devido à febre. Viu árvores pretas cobertas de espinhos. Viu um homem que
achou ter reconhecido e ficou se perguntando se não era o Terceiro Anjo que
viera visitá-la, aquele que se enganava. Viu um pombo selvagem que não
conseguia mais voar. As enfermeiras eram muito gentis e permitiram que Lucy
trocasse de camisola três vezes seguidas, depois de ficar muito suada por
permanecer na tenda plástica. Tinham de manter o ar úmido e aquecido a fim de
hidratar os pulmões dela. Seu pai permanecia ao lado de sua cama. Queria
segurar a mão dela, mas as enfermeiras disseram-lhe que não seria boa ideia;
isso faria todo o vapor sair da tenda. Assim, ficou lendo o London Observer.
Certa vez, leu um número da Times com Katharine Hepburn na capa; mesmo
atrás do plástico, Lucy pôde perceber que não se pareciam em nada. Nem um
pouco.
Ben contou-lhe que Charlotte ia pegar um navio para voltar para casa, mas
que eles permaneceriam lá por um tempo. Alugara um apartamento para o
restante dos meses de agosto e setembro; Lucy poderia compensar os trabalhos
que perderia na escola com um tutor assim que estivesse bem para voltar a
estudar. Enquanto estava doente, os olhos de Lucy doíam e ela não tinha o menor
desejo de ler. Quando se preparava para ir para o hospital, na noite em que viu o
médico com dois relógios de pulso, ela doara seu exemplar de O diário de Anne
Frank para a biblioteca do hotel. Na verdade, era apenas uma prateleira onde os
hóspedes colocavam os livros que haviam terminado de ler. Depois que abrira
mão do livro, Lucy passou a ter uma sensação de perda, como se estivesse
flutuando num espaço vazio e branco.
Após a primeira semana no hospital, Lucy não conseguia mais aturar seu
cabelo todo enrolado e molhado, devido aos umidificadores e ao vapor dentro da
tenda plástica. Implorou à enfermeira mais gentil, Rebecca, que o cortasse para
ela. Foram até o solário e Rebecca espalhou umas toalhas. Deixou o cabelo de
Lucy bem curtinho. Foi um alívio se livrar daquele cabelo comprido; Lucy
balançou a cabeça e teve uma sensação de leveza.
“Você parece a Audrey Hepburn!”, falou Rebecca.
“Não é a Katharine Hepburn?”
“Ah, não. Audrey.” Rebecca parecia ter certeza do que falava. “Ela tem o
mesmo corte de cabelo e o mesmo rosto bonito.”
Quando Lucy se olhou no espelho, ficou surpresa com o que viu. Parecia
mais velha, uma jovem; parecia a pessoa que devia ser.
Sua respiração melhorara bastante e, depois de duas semanas, os médicos
permitiram que Lucy fosse para o apartamento com seu pai. Rebecca ia lá todos
os dias para verificar como estavam as coisas e fazê-la respirar num objeto em
forma de tubo que lhe possibilitava escutar seus pulmões. A enfermeira
costumava ficar para almoçar – todos estavam preocupados com o fato de Lucy
ter perdido muito peso. A menina gostava de receber a visita da enfermeira;
gostava de escutar Rebecca e seu pai conversando na cozinha enquanto
preparavam sopa de tomate e sanduíches de queijo; riam de coisas bobas,
anedotas inglesas que Ben desconhecia. O que era um kipper,1 a dica de não se
comer picles Ploughman direto do jarro, a maneira de usar aquela torradeira
velha e engraçada, com furos que produziam uma estampa marrom bonita no
pão.
Às vezes, quando Lucy observava a rua pela janela, ela ainda via sangue.
Não contou isso para ninguém. Sabia que não era real. Era como as alucinações
que tivera enquanto estava no hospital. O homem de casaco preto que podia ser
um anjo; os pombos caindo do teto. Pedira a seu pai que contasse a Charlotte que
Michael e Bryn se casaram e que, por isso, deviam ser enterrados juntos, e ele
contou; mas a família de Bryn não acreditou nisso. Para eles, Lucy era uma
mentirosa e ladra e assim continuaram com os preparativos para o funeral
conforme bem entendiam. Lucy não sabia o que havia acontecido com os restos
de Michael Macklin; ele não parecia ser um homem que tinha família.
Um dia, quando seu pai estava fora, Lucy saiu para caminhar. Era a primeira
vez que ela saía sozinha desde o acidente. Ficou andando pelos arredores,
descobrindo o que havia por perto, até que encontrou a igreja. Lembrou-se de
Westbourne Grove. Entrou, fez um sinal da cruz, da mesma forma que Michael
Macklin teria feito e sentou-se num dos bancos de madeira. Não sabia dizer se
tinha fé ou não, mas rezou mesmo assim. Pelo menos, achou que fosse uma
oração. E rezou por Michael. Queria que ele e Bryn estivessem juntos. Queria
que o amor fosse algo real.
Quando saiu, Lucy viu uma livraria do outro lado da rua. E entrou. Sentia
falta de ler; sentia-se vazia sem isso. Era um sebo, que exalava um cheiro de
papel e tinta. Era um lugar bem bagunçado, mas Lucy conseguiu encontrar
exemplares manchados de água de Alice através do espelho e Alice no país das
maravilhas.
“Boas escolhas”, disse-lhe o caixa, que lhe deu um desconto. “Esses dois
seriam bem úteis numa ilha deserta, não? Seriam suficientes.”
Lucy levou seus livros da Alice, em suas embalagens de papel marrom
amarradas com um elástico, para o parque. Estava tão crescida que Rebecca
precisou levá-la para fazer compras na Selfridges, no início da semana, onde
escolheram novas calças e camisas. Rebecca adorava roupas casuais.
Compraram suéteres, camisas, botas de equitação e uma mochila nova. Se
aquelas duas inglesas que a encontraram no parque, naquela primeira semana, a
vissem agora, nunca a teriam reconhecido. Iriam procurar alguém que se
parecesse com Katharine Hepburn e não a achariam.
Era setembro e o parque exalava um cheiro forte. Havia pessoas andando a
cavalo e o ar guardava um odor de suor de cavalo e terra fresca. Lucy andou,
andou, e então cruzou o caminho dos cavalos. Tinha atravessado todo o Hyde
Park. Estava diante da rua onde tudo acontecera. Não tinha planejado, mas de
alguma forma estava na Brompton Road. Agora que estava lá, sabia que tinha de
ir mais longe. Sabia disso o tempo todo.
Era final de tarde, aproximava-se a hora do jantar, mas o sol ainda brilhava.
As pessoas corriam de volta para casa, saindo do trabalho. Na noite em que
aconteceu, estava tão escuro; as cores que dominavam eram preto, azul e
vermelho. Agora tudo lhe parecia normal. Lucy ficou pensando em quantos
americanos, que não estavam acostumados a carros trafegando pela esquerda,
haviam entrado na frente de carros. Segurou a respiração; não sabia se
conseguiria atravessar a rua, mas tentou chegar ao outro lado. Esperou juntar um
grupo de pessoas e, quando o farol ficou verde, atravessou com eles. Quando
chegou à calçada, inclinou-se e respirou fundo.
Chegou até o Hotel Lion Park Hotel e ficou do lado de fora olhando as
janelas. Contou sete andares, mas não conseguia definir que quarto fora o seu.
Adentrou o lobby. Lá estava o velho leão de pedra coberto de musgo, no jardim.
Lá estava o papel de parede florido. Um novo porteiro, rapaz ainda, chamou-a de
senhorita e deu-lhe as boas-vindas. Lucy foi até a recepção. Dorey estava lá; fora
promovida a recepcionista do dia.
“Posso ajudá-la?”, perguntou Dorey, com formalidade, mas logo reconheceu
Lucy. “Oh, meu Deus! Você está linda!!! O que fez com seu cabelo?” Dorey fez
a volta pela mesa e deu um abraço em Lucy. “Adorei!”
“É um corte estilo pixie”, falou Lucy. Ela vinha se sentindo culpada por ter
pego Millie sem falar nada e por isso contou a verdade para Dorey agora.
“Apenas para que saiba… eu roubei a coelha.”
“Ora, não sou de ficar chorando por causa de um coelho, mesmo que se trate
de Millie. Imaginei que tivesse voltado para o Hyde Park.”
“Dei-a para um médico, que vai levá-la para os campos.”
“Ela vai ficar feliz pulando para lá e para cá entre árvores. É da natureza
dela, imagino. Mas é possível que sinta falta de comer papel de parede. Era
apaixonada por papel de parede.” Dorey pegou uns chocolates e ofereceu para
Lucy escolher. “Foi um período complicado…”, disse Dorey baixinho. “Depois
daquilo, havia repórteres para todo o lado por aqui. Fui entrevistada duas vezes.”
“Foi culpa minha”, falou Lucy.
“Sua? Você não teve nada a ver com isso. O verdadeiro culpado vem aqui
todas as noites e enche a cara. Como se isso pudesse ajudar.” Como Lucy parecia
não compreender, Dorey completou: “O noivo. Aquele tal de Teddy Healy. Ele
devia ter encontrado uma mulher que o amasse também, esse foi o problema.
Não se pode forçar as coisas assim. Ela preferia o senhor Macklin e quem pode
culpá-la? É química, poxa. Foram feitos estudos e foi comprovado. O amor é
uma coisa antiga e misteriosa e não se pode tentar mudá-lo. Tentar controlar esse
sentimento é certeza de desastre. E isso é fato.”
Lucy ficou pensativa. “Ele vem aqui todas as noites?”
“Não faço mais esse turno, mas foi Miles Donnelly quem me contou. É ele
quem cuida das noites agora. Fui promovida. Fui eu quem chamou as
autoridades e a ambulância, sabia? Cuidei de tudo. E sabe aquele quarto onde
eles estavam, bem de frente para o seu? Não podemos utilizá-lo. Está mal-
assombrado. Isso também é fato. Todas as noites, às dez e meia, ocorre uma
espécie de discussão lá.” Dorey parecia aliviada por poder conversar sobre isso
com alguém. “As pessoas acham que estou louca, mas vi o fantasma com meus
próprios olhos. Esse é outro motivo pelo qual pedi para ser transferida para o
turno do dia. Não vou ficar aqui sozinha à noite com um fantasma zanzando para
lá e para cá.”
“Quem é?” Lucy começou a ter uma sensação estranha no peito, como se
estivesse prestes a encontrar dificuldade para respirar, assim como no hospital.
Ela tinha um inalador para ser usado quando se sentisse dessa forma, mas o
havia deixado sobre o criado-mudo.
“É Michael Macklin, lógico”, respondeu Dorey. Ainda não tinha visto o rosto
da presença fantasmagórica, mas qualquer um poderia adivinhar quem era a
alma atormentada. “Deve ser o momento em que aquele carro o atingiu. Dez e
meia.”
Lucy fez que não com a cabeça. “Acho que dez e meia foi a hora em que
entrei no quarto deles. Ele deve ter morrido mais tarde.”
Lucy parecia abalada.
“Acho que você não devia ficar pensando nisso”, falou Dorey. Levou Lucy
para o restaurante onde seu namorado, que ainda era o cozinheiro, preparou um
prato infantil.
“Olha o que ele me deu”, falou Dorey, a respeito do cozinheiro. Ela mostrou
a mão para Lucy, balançando-a bem diante de seu rosto. Estava com um anel de
diamante. “Depois do acidente, ambos nos demos conta de que a vida é curta e
que não faz sentido ficar parado esperando que as coisas que realmente se quer
aconteçam sozinhas.”
Um grupo havia chegado para se hospedar, assim Dorey abraçou Lucy e
voltou ao trabalho. Lucy se sentou em uma cabine que tinha alguns dos livros
usados que doara para o hotel. O restaurante não mudara nada. Era muito
estranho estar no Lion Park. Sentia-se como se houvesse passado a maior parte
de sua vida lá, como se Westchester e tudo o mais que acontecera depois não
significassem nada.
A garçonete trouxe uma sopa fumegante com pedaços de aipo e batata e um
copo alto de ginger ale com suco de cereja, para dar uma coloração rosada. Lucy
se deu conta de que não tinha dinheiro para pagar por aquilo. Ficou
envergonhada, mas a garçonete lhe disse que não havia problema.
“Ficou por conta da Dorey”, falou a garçonete. “Bom apetite.”
Teddy Healy apareceu por volta das oito. Lucy havia acabado de jantar.
Quando ela o viu, seu tremor ficou incontrolável. Teddy Healy estava bem
diferente. Parecia debilitado e emaciado. Começou a beber assim que chegou. O
veneno do dia seria uísque.
“Vá devagar”, Lucy escutou o barman falando para ele. “Ainda tem muitas
horas pela frente, senhor.”
Lucy começou a ler o livro. Precisou se esforçar para se concentrar, mas logo
a história a conquistou. Gostava da maneira como Alice se expressava, sem ficar
guardando coisas para si; admirava isso. O mundo diminuía de tamanho quando
se entrava no País das Maravilhas. Sem que Lucy se desse conta, eram dez
horas, e logo dez e quinze. Àquela hora da noite, seu pai devia estar morto de
preocupação, mas Lucy não podia voltar agora. Não conseguia nem pensar nisso.
Ela se explicaria. Precisara ir ao Lion Park uma última vez. Não tinha dúvidas de
que seu pai entenderia isso.
Quando Teddy Healy pagou sua conta e se preparou para sair, Lucy juntou
seus livros. Como ele foi pelo elevador, ela seguiu pela escada. Suas pernas
estavam pesadas, como se quisessem atrasá-la, mas Lucy se apressou. Via o
elevador subindo pelos fios que a coelha tentara roer; o metal das portas fora
polido e brilhavam como um espelho. Lucy permitiu que o senhor Healy ficasse
um pouco à frente e então o seguiu. O corredor estava num frio de congelar.
Teddy Healy parou, e assim Lucy também. Ela rezava para ver Michael
Macklin, que ele quisesse que notassem sua presença. Queria apenas pedir o seu
perdão. “Eu deixei a carta cair”, era o que pretendia dizer. “Não era minha
intenção, mas aconteceu. É tudo culpa minha.”
Ouviu um passo vindo de um ponto onde não havia ninguém. Lucy sentia
tanto frio, que achou que seus pulmões estavam congelando; afinal de contas,
ainda estavam deteriorados. Teddy Healy gritou “Não”. E foi aí que Lucy viu
aquilo que todos achavam ser o fantasma. Mas não era Michael Macklin. Ela o
teria reconhecido, o homem mais bonito que veria em toda a sua vida. A figura
no corredor era Teddy Healy, da forma que estava naquele dia, furioso,
enraivecido, gritando com a porta aberta. Era a parte dele que se dividira e ficara
perdida; a alma, como algumas pessoas costumam chamar.
Lucy sentia que suas pernas iam ceder. A sensação era de que eram feitas de
barbante. Também não conseguia respirar; estava com aquele chiado que se
apoderava de seus pulmões e dificultava tanto a entrada de ar em seu corpo. Fez
um ruído e, então, foi ao chão. Viu uma coisa que não era Teddy Healy e outra
coisa que era, que acabou se virando para ela quando desabou. Lucy bateu a
cabeça, com força, na parede, e achou ter escutado alguém gritando, embora
fosse provável que estivesse sonhando, apenas isso.
Lucy não foi punida só por causa das circunstâncias, embora se recusasse a
discutir que diabos estava fazendo no outro lado da cidade. Ela teve uma
concussão séria e sua asma foi considerada de risco. Precisou passar a noite no
hospital novamente, sob a tenda plástica, até que conseguisse recuperar a
respiração. Ben Green estava realmente preocupado agora. Talvez ele tivesse
feito tudo errado. Era um pai sozinho, bem provável que fosse um bobo, um
homem que certamente cometera erros. Quando Lucy foi liberada do hospital,
Ben telefonou para Rebecca, e ela veio ficar com Lucy enquanto ele saía para
pegar as prescrições médicas da filha.
“Não sei o que fazer para acabar com isso”, disse Ben para Rebecca, antes de
sair para a farmácia. “Estou sem ideias.”
Rebecca levou um copo de leite e umas bolachinhas para o quarto. Falou
“olá”, mas Lucy não respondeu. A menina estava na cama. Sentia-se mole e
esgotada. Seu cabelo curto fazia com que parecesse uma garotinha. Estava com
um inchaço na cabeça, que palpitava. Mantinha os olhos fechados a maior parte
do tempo, mesmo quando Rebecca lia para ela os livros de Alice, imitando vozes
infantis que, em outro momento, a deixariam com vontade de rir. Rebecca
colocou o livro sobre a mesa. Livros não consertariam o que estava errado.
“Você é muito infeliz?”, perguntou Rebecca.
“Não vejo o sentido das coisas”, respondeu Lucy.
Depois disso, Lucy parou de falar. Gostava de Rebecca, mas não havia nada
a dizer; não naquele dia, nem nunca. Quando seu pai ou o médico que vinha
visitá-la faziam uma pergunta, Lucy nem se movia. Já a tinham enganado antes e
por isso ela se cansara. Era como se tivesse esquecido como formar palavras,
como se a língua fosse um mistério. Era educada, mas não falava nada.
“Apenas me diga o que posso fazer por você”, dizia seu pai. “Qualquer
coisa.”
Mas, como não conseguia pensar em nada, Lucy não respondia.
Rebecca achou que, talvez, Ben devesse levar Lucy para viajar, para longe de
Londres, para algum lugar silencioso, desconhecido e bonito. Acreditava que
viagens eram boas para a alma e que, às vezes, as pessoas precisavam ir para
bem longe a fim de se recuperarem de uma aflição. Sugeriu Edimburgo, uma
cidade que amava. Quando Ben concordou, ela foi cuidar dos preparativos. Ele
pedira que Rebecca os acompanhasse, mas a enfermeira recusou. Disse que era
uma viagem para os dois, pai e filha, e que, se quisesse levá-la para alguma
viagem, em outro momento, talvez quando não estivesse casado, ela poderia
considerar a proposta.
Fizeram uma bagagem leve, apenas uma mala para os dois e pegaram um
trem na Estação King’s Cross. Lucy estava aliviada com o fato de seu pai não
mais esperar que falasse. Uma vez, ele pegou-lhe a mão e a garota sentiu
vontade de chorar, mas se conteve. Não estava com vontade de começar a chorar
novamente; assim que voltasse a fazer isso, não haveria mais nenhuma esperança
de que parasse.
Como o trem tinha umas chaminés, suas janelas ficavam cheias de fuligem,
mas, assim que saíram da cidade, a paisagem ficou linda. Lucy observava a vista
e sentia que conseguia se afundar em todo aquele dourado, verde e púrpura. Não
esperava uma paisagem tão inexplorada. Apaixonou-se pelas cores, pelos
campos amarelos, pelas alfalfas verdes. Gostava do ritmo das rodas reverberando
em sua cabeça. Isso bloqueava seu pensamento, ideias terríveis que imaginava
que apenas ela no mundo tinha, exceto por Teddy Healy. Achava que ele também
queria bloquear as coisas.
Não havia muita gente no trem, mas na última fila viu um garoto que
escrevia como louco. Não chegara a olhar pela janela nem uma vez. Estava com
um livro grande sobre os joelhos.
“Parece que gosta de ler”, falou Ben Green. “Parecido com você.”
Mas o pai de Lucy não tinha a menor ideia de qual era o estilo dela. A
menina não tirava os olhos da janela. Com o tempo, fechou os olhos e caiu no
sono. No sonho, estava no trem com um coelho enorme sentado à sua frente.
Esperava que o coelho dissesse alguma coisa, mas o bicho não falava nada.
Achou ter visto lágrimas em seus olhos.
O trem fez uma curva e Lucy acordou. Seu pai fora para o vagão-restaurante
beber alguma coisa. A menina ergueu os olhos e viu aquele garoto no fundo do
vagão olhando para ela. Ele fez um aceno e Lucy respondeu. Queria apenas ser
educada. Então o menino fez um sinal para que fosse até lá. Quando tentou
ignorá-lo, ele fez novamente o sinal, Lucy se levantou e andou pelo corredor,
apoiando-se nos encostos dos assentos. Acima de tudo, estava curiosa. Ainda
sentia-se sonolenta. Parecia estar a milhões de quilômetros de casa.
“Parece que somos as duas únicas pessoas interessantes no trem. Vi que você
estava lendo os livros de Alice. São meus preferidos.”
Lucy se sentou de frente para o garoto. Estava trabalhando em algo chamado
“Antologia”, que tinha um brasão na capa – era um caderno cheio de desenhos a
caneta, aquarelas e lápis de cor.
“É um projeto para a escola. Estou ilustrando meus poemas favoritos. Coisas
como Robin Hood. Mas Alice é a minha preferida.” Ele ergueu a cabeça. “Você
não fala nada? Não entende inglês? É surda-muda?”
“Não”, respondeu Lucy. Sentiu-se provocada; ele conseguia fazer com que
falasse. “Nem um pouco surda.”
O menino riu. “Ah, você é americana. Então eu estava certo. Você não fala
inglês. Você fala americano.” Ele estava trabalhando no brasão.
“Você é da realeza?”, perguntou Lucy.
“Não. Nem um pouco. Sou escritor. Sou um artista. E músico. Sou tudo. E
você?”
“Sou leitora.”
Ninguém precisaria saber que ela falara algumas poucas frases com ele. Ela
podia parar de falar assim que quisesse.
“Meu nome é John”, falou o menino.
“Lucy.”
“Sou de Liverpool. Fui até Londres para uma visita. Costumo ir para a
Escócia no verão para visitar minha tia, mas vou subir por alguns dias agora.
Minha mãe foi embora.”
“A minha morreu. E vi duas pessoas morrerem em Londres.”
John não parecia nem um pouco surpreso. “Muito sangue?”
Lucy fez que sim com a cabeça. “Foi por amor.”
“Sempre é por amor”, disse John.
Os dois riram disso.
Ben Green voltou do restaurante e acenou.
“Meu pai”, falou Lucy.
John acenou para ele. “Costuma ler?”, perguntou.
“Muito.” Lucy abaixou a cabeça para que seu pai não percebesse que ela
estava falando. “Queria conseguir acreditar em alguma coisa”, disse.
“Já pensou em reencarnação? Você voltaria à vida no tempo. Poderia ser uma
mariposa, um cachorro ou um soldado.”
“E se eu voltar como um porco, uma formiga ou uma morsa?”
Os dois riram.
John mostrou a ela a ilustração que fizera de Alice. Era a morsa e o
carpinteiro. “A morsa sempre tem o carpinteiro”, falou. “O porco tem seu
chiqueiro. A formiga tem dez mil outras formigas com exatamente as mesmas
ideias que ela.”
Ficaram olhando para os campos.
“Um cachorro não seria nada mau”, divagou John.
“Preciso ir”, falou Lucy. Ficar conversando muito não era uma boa. Estava
com uma sensação estranha no peito.
“Adeus, Lucy dos Estados Unidos. Continue lendo.”
“Adeus, John. Continue fazendo de tudo.”
Lucy voltou para seu assento. Seu pai havia lhe comprado um sanduíche e
uma maçã.
“Conversaram bastante?”, perguntou Ben.
Com seu cabelo curto, era impressionante como Lucy se parecia com a
mulher que ela seria em alguns anos. Agora, fora da cama e mais forte, não
parecia mais uma garotinha. Ben tinha a sensação de que estavam começando do
zero, como se tudo fosse novo, até mesmo as palavras que usavam.
“Acho que não devia lhe fazer perguntas”, falou. “Não precisa conversar
comigo se não quiser, Lucy.”
Depois de conversar com John, ficou um pouco mais fácil para Lucy falar.
“Obrigada por fazer esta viagem comigo”, disse para o pai. “É lindo aqui.”
“É lindo mesmo”, disse Ben, aliviado por ser agraciado com uma frase;
melhor ainda, foram duas. Pela primeira vez em anos, não estava com pressa.
Não estava pensando em Nixon ou no The New York Times ou nos telefonemas
de Charlotte que não retornara. Estava, na verdade, pensando no dia em que
Lucy nascera. A verdade era que ele não desejava crianças. Ficara irritado com
Leah por levá-lo por esse caminho. Queria que a vida deles seguisse como
sempre tinha sido, mas de repente ela apareceu grávida e Ben ficou incomodado.
Ao longo de toda a gravidez, preocupava-se com a possibilidade de tornar-se um
pai terrível. Leah insistia que, assim que ele visse o bebê, tudo seria diferente.
Mas, quando a viu, ela parecia apenas um pequeno alienígena, todo enrugado,
que roubara a atenção de Leah. Não sentiu nada até aquele dia em que levaram
Lucy para casa. Um carro os cortara à frente quando estavam saindo do
estacionamento do hospital, e Leah foi arremessada para a frente, com o bebê
nos braços. Por um instante, Ben entrou em pânico. “E se eu as perdesse?”,
pensou. “Como conseguiria sobreviver?”
Chegaram a Edimburgo na hora do jantar. Lucy viu o garoto do trem
encontrando a tia; acenaram um para o outro. Pensou que algumas pessoas eram
como contos, não livros inteiros – pelo menos aquelas que não se viam nunca
mais. Com pessoas assim, nunca se sabia qual era o verdadeiro final da história.
Lucy e o pai pegaram um táxi para o Hotel Andrews, onde tinham quartos
conjugados. Era administrado por uma mulher chamada senhora Jones, que
parecia ser a vovozinha perfeita de alguém. Havia duas fotografias, uma de um
menino e a outra de uma menina quase da mesma idade de Lucy, penduradas
sobre a lareira, ao lado da recepção, mas as fotos pareciam velhas, de lugar e
tempo diferentes. Lucy agradeceu à senhora Jones quando ganhou uma bala de
hortelã, mas não perguntou nada sobre as crianças.
Lucy e o pai saíram para jantar; queriam conhecer melhor a região. Passaram
pelo castelo, era tão impressionante que Lucy teve de parar para olhar. Ficava se
perguntando se era louca ou se alguém mais já tinha presenciado algo como
aquela aparição que vira no hotel. Talvez, como o castelo era bem antigo, havia
pessoas presas dentro dele para sempre; era possível que tivessem se
transformado no tipo de coisa com que Lucy deparara no corredor. Não contara
toda a verdade para aquele menino no trem. Ela acreditava, sim, em uma coisa,
uma coisa tão vasta e profunda que não teve coragem de contar para John, ainda
que fosse seguro fazer confidências para alguém que nunca veria novamente.
Ela acreditava que as pessoas podiam se perder.
O céu na Escócia estava escuro e bonito, e o ar tinha um cheiro diferente.
Talvez fosse a isso que se referia o médico que levara a coelha para casa, a
imensidão do universo, tão infinito, relegando a mediocridade às pessoas e as
suas preocupações mundanas. Pararam num pub para que o pai de Lucy pudesse
beber alguma coisa. A menina pediu um ginger ale e seu pai, uma taça de vinho
do Porto. Pediram queijo, picles e um prato de hadoque com batatas.
“Acho que essa coisa com Charlotte não vai dar certo”, falou Ben Green
enquanto comiam. “Sinto muito ter envolvido você nisso.”
Lucy não contara para o pai que ela fora a culpada pela morte de duas
pessoas. Não pretendia contar-lhe nunca. Ele não tinha a menor ideia de que
Charlotte chamara Teddy Healy porque Lucy deixara a carta cair. Ele nunca
saberia que Lucy escutava o grito de Michael Macklin o tempo todo, atrás de
tudo. Não conseguia se livrar daquilo nem por um segundo.
“Se quer saber minha opinião, prefiro Rebecca”, disse Lucy.
Ben riu. “Eu também.”
Permaneceram em Edimburgo por quatro dias, antes de seguirem para a zona
rural.
“Voltaremos um dia”, disse Lucy para a senhora Jones, que ensinara a
menina a tricotar. Às tardes, depois de fazerem turismo pela cidade, quando Ben
ia dar um cochilo, Lucy se sentava na cozinha da senhora Jones, lá aprendia a
fazer uns pontos simples: unir e picotar, passar o fio e unir novamente. A senhora
Jones dera à menina um novelo de lã que cheirava a urze e sal, num tom cinza
arroxeado que era da cor do crepúsculo. A proprietária nunca falou sobre as
crianças da fotografia e não havia sinais de crianças na casa, então Lucy nunca
perguntou. A senhora Jones fazia tortas de geleia e Ovolmatine, assim Lucy
recuperou o peso que havia perdido. Certa vez, a menina falou: “Se minha mãe
ainda estivesse viva, teria me ensinado a tricotar”. Não sabe o que a levou a
dizer aquilo; apenas saiu de sua boca. A senhora Jones nem levantou a cabeça,
mas insistiu para que Lucy e o pai ficassem para o jantar e, de sobremesa,
serviu-lhes fatias de bolo de pera verde e creme de leite, que, apesar do nome,
estava delicioso.
Era hora de ir embora, mas Lucy não queria sair do hotel.
“No fim da viagem, a senhorita estará de volta”, disse a senhora Jones e deu
a Lucy mais um novelo de lã e um par de agulhas de madeira, para que pudesse
continuar a tricotar. Esse novelo era ainda mais macio, da cor de folhas caídas.
Ben alugou um carro e esforçou-se ao máximo para dirigir na mão inglesa.
Isso deixava Lucy nervosa. Uma vez, ele quase deu de frente com um muro de
pedras.
“Você não vai nos matar, não é?”, perguntou Lucy.
“Não, se eu conseguir evitar.”
Ficaram rodando pela cidade até que ele entendeu como funcionava. Lucy
estava nervosa, mas logo passou. Seu pai era um bom motorista. Era prático e
sabia se adaptar, além de ser um homem paciente. Em pouco mais de uma hora,
parecia alguém que tivesse a vida inteira dirigido como os britânicos.
“Norte, sul, leste ou oeste?”, perguntou para a filha, antes de saírem.
Agora estavam vivendo assim, um dia após o outro. Tudo ocorria a esmo.
Lucy pensou um pouco.
“Definitivamente, norte”, respondeu.

TEDDY HEALY NÃO havia retornado ao trabalho, tampouco para seu


apartamento. Seu irmão, Matthew, dizia que havia coisas que aconteciam neste
mundo que as pessoas não conseguiam entender e, certamente, não conseguiam
controlar; sugeriu que fossem juntos à igreja para conversar com o pastor, mas
Teddy recusou. Ele estava hospedado num hotel próximo, um que ficava de
frente para a avenida onde Bryn falecera. Era mórbido, mas ele não achava que
estava lá por motivos mórbidos. Ficou lá para que, quando acordasse pela
manhã, pudesse ir até a janela e lembrar-se. Não ia fingir que nada tivesse
acontecido. Tinha acontecido, sim. Não havia como negar. Depois de um tempo,
Teddy foi, sozinho, conversar com o pastor; o pastor o abraçou e disse-lhe que
não cabia a ele julgar, apenas aceitar. Teddy apertou a mão do pastor e não
voltou nunca mais para a igreja.
O instante que mais o perturbava não era o do telefonema da irmã de Bryn,
ou de quando Charlotte o encontrou num banco perto da Serpentine para
entregar-lhe a carta que sua amada escrevera para Michael Macklin; não era nem
o da leitura da carta e descoberta de que Bryn amava outra pessoa. Era o de
quando a vira pela primeira vez, em Paris, sentada nas Tulherias, de frente para o
Museu d’Orsay. Tinha uma reunião marcada com uma firma imobiliária em Paris
e, não fosse por isso, se Barry Arnold tivesse sido o representante do escritório
de Londres, em vez dele, e se Teddy não tivesse pegado a tarde para passear pelo
jardim, não teria olhado para cima e visto uma linda jovem com cabelo comprido
e claro tomando sol. Parecia que, assim que a vira descansando, começara a se
apaixonar por Bryn. Quando ela abriu os olhos, era um caminho sem retorno.
Agora Teddy se sentia como se uma experiência científica tivesse dado
errado. O que o atraíra nela? O perfume? O brilho de seus olhos quando ela
olhou para ele? O fato de os lilases parecerem rosas naquela tarde? O som dos
pombos? O metabolismo dele? A história dele? Paris?
Convidara-a para almoçar e lá ela já lhe contou que estava apaixonada por
outra pessoa. Tentou ser honesta com ele, mas Teddy não queria lhe dar ouvidos.
Comeram sanduíches e azeitonas e beberam vinho branco. Estaria viajando até o
final do ano; fora para Amsterdã antes de ir para Paris, mas nunca estivera em
Londres. Em certo momento, depois de ter bebido bastante, inclinou-se e disse:
“Quero que alguém me salve”. Era esse instante que mais o perturbava, mais que
todos os outros. Outro homem teria fugido, mas não Teddy. Ele e Matthew
haviam perdido os pais muito cedo, num acidente de trem, e foram criados por
uma tia. Não havia um dia em que Teddy não pensava que a situação poderia ter
sido diferente se ele estivesse no trem, em vez de estar jogando futebol na
escola. Ele poderia ter escutado o guincho dos freios, poderia ter aberto a janela,
ajudado seus pais a escapar dos destroços. Poderia ter feito alguma coisa.
Ele e Bryn passaram a noite juntos. De início, ela chorara e dissera que havia
outra pessoa, mas que estava se sentindo solitária e, por fim, foi ela quem o
convidou a ficar. Fora até Londres por causa da solidão, porque Teddy era a
única pessoa que conhecia na Europa e porque não queria ficar em Paris sozinha,
porque ele era gentil e porque estava muito apaixonado por ela.
Quando os pais de Bryn ficaram sabendo dele, depois que sua irmã mais
velha, Hillary, visitara Londres, escreveram uma carta para Teddy dizendo que
estavam muito felizes em saberem que Bryn encontrara o amor; insistiram em
pagar pelo casamento. Não haviam nem conversado sobre matrimônio, mas,
depois da carta dos pais dela, Teddy pensara “Lógico, vamos nos casar” e saiu
para procurar um anel. Bryn dormia até tarde e deitava-se cedo, assim ele deixou
o anel sobre a mesa antes de ir trabalhar e, quando voltou para casa naquela
noite, o diamante estava no dedo dela. Custava muito mais do que podia pagar,
mas Teddy queria que seu amor ficasse claro; queria que ela soubesse o que ele
sentia. Ele nem notou quando Bryn tirou o anel; não estavam mais
comprometidos e Teddy nunca saberia disso.
Matt veio visitá-lo no hotel onde morava. Era chamado Eastcliff e não
possuía nem bar nem restaurante. Teddy levava as próprias bebidas para o
quarto; estava bebendo pesado e não tomava banho. Estava com 28 anos de
idade. Matt era dezoito meses mais velho, mas Teddy parecia um ancião.
“Não pode permitir que isso o mate”, falou Matt. “Sei que foi horrível, mas
coisas inesperadas acontecem. Ninguém sabe disso melhor do que você e eu.”
Matt era um organizador; trabalhava no mesmo banco que Teddy e estava
subindo na carreira. Havia alugado um apartamento novo para o irmão, livrando-
se dos móveis velhos, principalmente das coisas que fizessem Teddy se lembrar
de Bryn, como a cama, seu terno de casamento e todos aqueles presentes que
tinham chegado. Conseguiu para o irmão uma licença de uma semana, no fim
dessa semana, Teddy se mudara para o novo apartamento, perto de Lancaster
Gate e estava pronto para retornar ao trabalho… mais ou menos. As pessoas
aproximavam-se dele com receio, como se tivesse enfrentado uma doença
terrível ou ainda estivesse muito fraco. Ele cumpria seu trabalho, verdade, mas
no caminho de volta para casa começara a parar no bar do Lion Park. Acontece
que ele estava fraco. Começou a beber vorazmente.
Quando, naquela noite, Teddy abriu a porta e viu-os juntos na cama, tudo o
que ele sabia ou no que acreditava mudou. De certa forma, foi ele quem fizera
aquilo acontecer. Não conseguira simplesmente se afastar; fizera exatamente a
mesma coisa quando a conhecera e recusara-se a dar-lhe ouvidos. Quando
chegou ao Lion Park, fora até a recepção e exigira a chave do funcionário da
noite, que parecia muito aturdido com o pedido para negá-lo. Subira correndo
pela escada. Sabia que era algo ruim, sabia que tinha acabado. Por que precisava
ver com os próprios olhos? Por que precisava de provas? Por que não conseguia
acreditar? Estavam bem enrolados um no outro, fazendo amor; ele quase não
reconheceu Bryn, vira suas costas primeiro, comprida, branca, bonita. Ela nem
escutara a porta se abrindo.
Ele começou a gritar e não conseguia parar. Nem quando Bryn se virou para
ele, nem quando ela permaneceu onde estava, assustada, enquanto o homem com
quem estava se moveu rapidamente para cobri-la com um lençol. Dizia-lhe que
ela o havia traído. Que ela havia se comprometido com ele e que tinha de se
casar com ele. Teddy não reconhecia a própria voz. Por que desejar uma mulher
que não o amava? Que nunca iria realmente pertencer-lhe?
Ele a agarrou enquanto Bryn corria para vestir sua combinação. A jovem
tentou explicar que não tinha nada a ver com ele; que ela já estava casada
quando se conheceram; que errara ao fazer promessas. Ele a puxou e disse uma
coisa terrível. Era esse instante que Teddy nunca mais conseguiria descrever. Era
isso que o levava ao bar do Lion Park todas as noites. “Você não merece viver”
foi o que disse. Então se virara para o homem e dera-lhe um soco e foi assim que
Bryn conseguiu escapar. O outro homem, aquele a quem Bryn amava, por fim
devolvera o soco a fim de ir atrás dela.
Teddy Healy bebia seu uísque puro, às vezes o barman colocava um
sanduíche ou uma tigela de picadinho para ele comer. Às vezes, Teddy comia; às
vezes, ficava só na bebida. Certa noite, quando estava bem e bêbado, Teddy
Healy subiu. Foi a primeira vez que fizera aquilo. Estava chovendo e seus ossos
doíam como se fosse um velho. Foi no final de setembro e o hotel não estava tão
cheio quanto costumava ficar durante o verão. No sétimo andar, havia pedaços
de papel de parede arrancados nas partes inferiores, uma herança da época em
que a coelha zanzava por lá. O corredor estava muito frio.
Teddy foi até o que fora o quarto de Michael Macklin e bateu. Não havia
hóspedes, assim, abriu a porta. Sentiu o cheiro de alguma coisa. Lilases.
Afastou-se, mas, antes que conseguisse sair, escutou a voz de um homem.
Encostou sua cabeça na parede e aconteceu algo muito estranho: ele se viu na
entrada do quarto, gritando, enfurecido. Ainda que fosse impossível, era
verdade. Lá estava ele.
Teddy desceu pela escada direto para o bar e bebeu ainda mais. Todas as
noites depois desse acontecimento, ele subia no mesmo horário e todas as vezes
via-se lá, o homem que costumava ser, a pessoa que não mais reconhecia,
alguém que tinha fé.
“Ela não está aqui, cara”, disse o barman, numa noite em que Teddy mal
conseguia ficar de pé, quando, na hora indicada, ele precisou se arrastar do
banquinho em que estava para subir. “Não é o fantasma dela que está lá, portanto
pode parar de ficar subindo…”
“Já teve a sensação de que perdeu alguma coisa que não consegue recuperar?
Como se tivesse lhe sido roubada bem diante de seus olhos?”
“Lógico”, respondeu o barman. “Chamam a isso de vida.”
Só havia uma pessoa que poderia entendê-lo. A garota, Lucy Green, que vira
tudo. Naquela noite, depois que Bryn e o outro homem fugiram, Teddy a vira na
entrada do quarto. Ele notara a expressão em seu rosto. Era como se um anjo
estivesse preso numa gaiola de carne e osso, rasgado de dentro para fora. Ela
parecia impressionada; não deveria estar lá. Ficaram se olhando e naquele
instante Teddy sentiu algo que nunca havia provado em sua vida: uma conexão
total de pensamentos e emoções. Estavam lá no mesmo instante, tendo o mesmo
pensamento.
Então a garota se virou e saiu correndo. Essa foi a diferença. Teddy
permaneceu no quarto que tinha cheiro de lilases enquanto Lucy foi embora. Ela
vira tudo, toda aquela coisa horrível. Quanto a Teddy, ele não queria ver mais
nada. Sentou-se na cama em que Bryn estivera com aquele homem e nem sequer
chorou.
Como penitência, Teddy se juntou a um grupo que limpava parques em toda
a cidade. Gostava de trabalhar ao ar livre e ficou impressionado ao descobrir
quantos animais havia em Londres. Certa manhã, encontrou raposas bem no
centro da cidade, assustadas com sua presença, já que ele usava uma rede
comprida para recolher lixo de um brejo. Ficou surpreso com a forma como as
raposas fugiram juntas, olhando para trás para se certificarem de que ele não as
seguia. Teddy se sentou na grama. Estava usando botas de cano alto de borracha,
uma capa de chuva e uma velha calça manchada de tinta que costumava usar
para serviços assim. Às vezes, Teddy pensava em Lucy Green e no que ela tinha
visto, e isso o destruía. Diversas coisas lhe traziam à mente a imagem do olhar
no rosto da menina, como, por exemplo, as raposas.
No domingo seguinte, ele voltou para a igreja; estava com saudades.
Conversou com o pastor sobre a existência de almas; tentou se esforçar para
compreender. Achava que devia ser a bondade dentro de um ser humano, o
espírito inocente, mas o pastor dissera que não, que era a essência de uma
pessoa. Simples e puramente. A parte mais profunda, mais completa, a parte que
era devotada a Deus.
“E sem isso a pessoa vai para o inferno?”, perguntara Teddy.
“Sem ela, a pessoa vive no inferno”, respondera o pastor.

TEDDY PERCEBEU QUE sua vida fora alterada por uma carta. As únicas cartas
que escrevera eram de agradecimentos a suas tias e primos por conta de seu
aniversário, quando lhe enviavam presentes; as únicas que recebera eram de
parentes que nunca conhecera, que moravam na Austrália, bilhetes de pêsames
depois que seus pais faleceram. Mas uma carta escrita por Bryn mudara sua vida,
então em outubro recebeu mais uma. Chegou ao Lion Park com seu nome no
envelope. Passaram-se alguns dias até que ele a recebesse. A recepcionista ia se
casar com o cozinheiro e todos estavam empolgados. O casamento aconteceria
no restaurante do Lion Park, todos os funcionários foram convidados. Certa
noite, quando Teddy chegou, o barman falou: “Sinto muito, Teddy, mas estamos
fechados hoje à noite. Festa particular”. E entregou a carta para Teddy. “Dorey
esteve tão envolvida com os preparativos, que se esqueceu de lhe entregar isso.
Deus sabe por que foi enviado para cá.”
A festa estava acontecendo dentro do restaurante. Havia fitas brancas e
violetas penduradas por todo o bar; havia garrafas de champanhe espalhadas e
bandejas prateadas de sanduíches e frutas. A cerimônia tinha acabado e a festa
estava a todo vapor. A recepcionista dançava com seu vestido branco. Lá estava
o cozinheiro, seu noivo, brindando com todos os amigos e dizendo-lhe que era
melhor aproveitarem a bebida, já que as despesas do bar seriam pagas pela
gerência do hotel.
Naquela época, Teddy tinha medo de cartas. Sentou-se no lobby por um
tempo, mas o som da música e da festa estava começando a incomodar e assim
seguiu pela rua. Pretendia ir para o hotel onde se hospedara logo depois do
acidente e sentar-se no lobby de lá, um espaço escuro e solitário, mas em vez
disso foi para casa. Andou pela escuridão. Preferiu atravessar o parque, de forma
a evitar deparar com alguém. Afinal de contas, estava sozinho, podia muito bem
curtir essa sensação. O parque cheirava a folhas. Essa costumava ser a sua época
favorita do ano. Quando as folhas ficavam amareladas e o tempo ainda estava
bom. Agora não se importava. Na verdade, era uma pessoa pela metade e essa
metade não dava a mínima para coisas como folhas e tempo. Foi para o
apartamento que seu irmão alugara e pegou uma garrafa de uísque.
A carta fora escrita no papel timbrado de uma pequena estalagem na Escócia.
Teddy não reconheceu a letra. Abriu o envelope com uma faca, tirou a carta e
deixou-a sobre a mesa por um tempo. Devia ser mais um grande embuste da
vida. Era bem provável que fosse um bilhete dizendo que tinha uma doença ou
que devia impostos. Bebeu mais uma dose antes de começar a ler. Iniciava
assim:
Prezado senhor Healy, sou a garota do hotel. Meu nome é Lucy Green e
estou escrevendo para o senhor porque acho que é a única pessoa no mundo que
me entende.
De início, pensou que fosse uma brincadeira, mas logo se lembrou do
instante em que ela saiu correndo do quarto e passou a achar que era real.
Fiquei pensando se o senhor não poderia me dizer que descobriu que existe
um motivo para continuar a viver. Pensei muito sobre isso. Ao contrário de Anne
Frank, não tenho mais fé nas pessoas. Acho que o senhor também não, mas não
tenho certeza. Estou viajando com meu pai. Vamos até o Lago Ness procurar o
Monstro, mas na verdade estamos apenas seguindo em frente até descobrirmos
quando teremos de voltar para casa e o que fazer com o resto de nossa vida.
Estaremos de volta a Edimburgo no dia 22 deste mês, no Hotel Andrews, cuja
proprietária é a senhora Amanda Jones. Pode me escrever para esse endereço
se tiver uma resposta. Se não tiver, sinto muito por ter-lhe incomodado. Foi tudo
culpa minha. Ela me entregou a carta para deixar com o marido dela. O senhor
não fez nada de errado; fui eu.
Teddy não conseguiu dormir naquela noite, pois não parava de pensar na
carta. Responder não lhe faria nenhum bem; ela estava certa, ele não tinha fé nas
pessoas. Mas Teddy não queria se sentir assim. Se deparasse com alguma parte
dela que fora perdida no corredor do Hotel Lion Park, não seria capaz de
continuar vivendo. Era uma garota de doze anos e não tinha nada que ver com
aquilo. Não havia motivos para ela se sentir assombrada. Então Teddy fez algo
que não lhe era comum. Telefonou para o hotel onde a garota se hospedaria em
Edimburgo. O Andrews. Conversou com a proprietária, que foi informada de
tudo pelo que Lucy passara. Falou apenas sobre a enfermidade em questão, e não
do restante dos acontecimentos. Não tocou no assunto das mortes, da avenida
cheia de sangue e do fato de a menina ter olhado em seus olhos e percebido que
ele havia se perdido completamente. Isso era algo reservado apenas àqueles que
realmente entenderiam. Como, por exemplo, ele mesmo.

LUCY E O PAI permaneceram numa meia-pensão próxima ao Lago Ness por


mais de uma semana. Caminhavam nos campos próximos ao lago, entre os
arbustos. As samambaias estavam marrons e o ar gelado. Era um país bonito,
selvagem. Ben comprou cachecóis e luvas de lá para eles numa lojinha de roupas
em que ovelhinhas ficavam no pasto bem ao lado. Comprou para Lucy mais um
novelo de lã, azul-índigo, já que ela havia se tornado fanática por tricô durante
sua estada em Edimburgo e quase acabara com tudo que a senhora Jones lhe
dera. Andavam quilômetros ao redor do lago e em nenhum momento viram um
monstro. Passearam de barco com um velho que jurou que os levaria a um lugar
onde o monstro fora avistado, mas lá se viam apenas uns troncos girando pela
água. A água era profunda e turva e Lucy se sentiu atraída por ela. Pensou em
Michael Macklin, em como ele parecia ter pulado de uma ponte quando
enfrentou o trânsito. Lucy se inclinou no barco e fez uma trilha com seus dedos
pelo lago gelado, desafiando o monstro a vir morder seu polegar.
Uma manhã, o pai de Lucy desceu para tomar café e falou: “Bem, agora
realmente não precisamos nos apressar. Fui mandado embora”. Ele não parecia
muito triste por ter sido demitido; na verdade, estava animado e faminto. Pediu
mingau de aveia e salsicha com ovos para os dois. “Vou superar”, falou.
Lucy olhou para ele. Ela imediatamente passou a achar que fora sua culpa ele
ficar sem emprego e que por isso teriam de mendigar na Penn Station em Nova
York; teriam de viver no metrô, sobre uma caixa de papelão.
“Lucy”, seu pai falou, quando ela começou a chorar bem ali na mesa. “Existe
uma coisa chamada destino.”
Mas Lucy não acreditava em nada, muito menos em destino. Achava que
eles teriam de ficar vagando para sempre. Quando saíram do Lago Ness,
voltaram para Edimburgo, era uma viagem longa. Pararam numa meia-pensão ao
longo do caminho para passar a noite. Lucy escutou seu pai, que estava no
saguão onde havia uma fogueira acesa, conversando com a estalajadeira, “Minha
filha esteve doente” e foi aí que se deu conta de que realmente esteve. Sentou-se
numa cadeira e aqueceu as mãos. Estivera muito doente para retornar para sua
vida em Westchester.
Ainda sonhava com coelhos, mas não o tempo todo. Às vezes, seu sonho era
tomado por montanhas roxas e espaços vazios. Quando retornaram ao Hotel
Andrews, o sobrinho da senhora Jones, Sam, contou que os filhos da tia haviam
morrido de uma gripe epidêmica durante a guerra. Lucy foi até o saguão com um
dos cachecóis verdes que tricotara.
“Ficou lindo”, falou a senhora Jones.
“Fiz um para a senhora e outro para mim”, disse Lucy.
A senhora Jones era experiente em tricô, mas foi bem gentil ao não comentar
nenhum dos pontos perdidos. Colocou o cachecol ao redor do pescoço. “Está
perfeito.”
Lucy se sentia mal quando pensava em sair de Edimburgo. Achava que, se
desse passos demais, cairia da terra. Westchester nem mais lhe parecia real;
talvez tudo tivesse desaparecido durante sua ausência. Talvez nada tivesse
sobrevivido.
Um dia antes de os Greens pegarem o trem para Londres, a senhora Jones
disse que havia mais uma coisa que precisavam ver na Escócia. Pediu a seu
sobrinho que os levasse de carro até uma fazenda. Sam atendeu o pedido com
alegria. A região por onde passaram era linda, a mais bonita que Lucy jamais
vira. Ela usava um dos cachecóis que tricotara, com um ponto semente e borda
rendada. A senhora Jones usava o outro.
“Não siga pelo caminho errado”, disse a senhora Jones para o sobrinho.
“Você nos deixa perdidos todas as vezes.”
A senhora Jones havia trazido uma toalha e uma cesta de piquenique com
uma garrafa térmica de chá bem forte, para Lucy, caso a menina começasse a
espirrar. Logo chegaram a uma fazenda enorme que pertencia a amigos dos
Jones, onde ocorreria uma competição de pastores. Havia uma fila de caminhões,
carros e furgões, e um campo todo cortado em pastos e currais. Viam-se dezenas
de ovelhas balindo.
“Isso é bem diferente”, falou Ben Green. “De onde viemos, os cães ficam
sentados no pátio latindo ou apenas descansam no sofá implorando por
biscoitos.”
“Aqui, não”, disse Sam Jones. “Aqui os cães precisam ganhar a vida.”
Foram assistir, com a plateia, aos cães e seus donos pastoreando em parceria.
O fazendeiro assobiava ou gritava e o cão respondia como se os dois estivessem
se comunicando numa língua própria. Apenas o homem e seu cão, e ninguém
mais no mundo.
“Notou que cada assobio é diferente?”, perguntou Sam Jones para Lucy. “Os
cães entendem o significado de cada assobio. Vá para a esquerda, vá para a
direita, rápido, devagar. Dizem que alguns cães reconhecem mais de cem
assobios. São mais espertos do que nós.”
Divertiram-se muito vendo as ovelhas sendo pastoreadas. Um dos
fazendeiros veio cumprimentá-los. Era um primo da senhora Jones chamado
Hiram.
“Ele tem os melhores cães”, disse Sam. “Com certeza, vai vencer.”
“Depois da competição, venham até meu furgão”, falou Hiram para os
Greens. “Vou lhes mostrar uma coisa que aposto que gostarão de ver.”
Os cães de Hiram eram espertos. Corriam atrás das ovelhas e forçavam-nas a
entrar no curral num tempo surpreendente, mas naquele dia outro pastor acabou
levando o prêmio principal. Lucy e seu pai torceram para todos os cães; eles se
esforçavam tanto, e com tanta paixão, que era difícil escolher um favorito. À
tarde esfriara, e o sol estava prestes a se pôr; Lucy não se lembrava da última vez
em que se sentira tão feliz e cansada. Sentia que podia ficar naquele lugar para
sempre, mas todos estavam juntando suas coisas e levando os cães para os
carros. Sam os conduziu até os currais de ovelhas, onde Hiram bebia com alguns
amigos. Todos pareciam se conhecer.
“Ah, lá está ela”, gritou um dos pastores. “A garota de Nova York.”
Lucy ficou vermelha quando ela e seu pai foram apresentados. Todos
pareciam conhecê-la, até sabiam que ela fazia tricô. O céu estava roxo em suas
bordas. Quando a noite caiu, parecia tinta derramada sobre uma página em
branco. O final do dia era muito natural e belo.
“Vamos lá”, disse Hiram. “Sigam-me.”
Ele tinha um furgão, e seus três pastores estavam sentados no banco da
frente, pularam assim que o viram. Foram por trás do carro e Hiram abriu a
porta; lá estava uma collie toda enrolada num cobertor.
“Oh!”, disse Lucy. “Posso tocar nela?”
Hiram concordou e Lucy se ajeitou sobre o para-choque. “Ela é um pouco
tímida e talvez precise se acostumar com você.”
Essa collie era mais esperta do que os outros. Ela farejou a mão de Lucy.
“Olá”, falou Lucy.
“Ela foi a menorzinha da ninhada de Rosie no ano passado. É surda de um
ouvido, então nunca poderá pastorear. E é por isso que ela vai para casa com
você.”
Lucy sentiu algo dentro do corpo. Era como uma pá sendo arremessada
contra seu peito.
“Bem, isso seria incrível, mas moramos do outro lado do oceano”, falou Ben
Green. “Não vejo como poderíamos levá-la.”
“Vocês vão levá-la”, falou Hiram. “Não tem problema algum. Ela se
comporta bem. Ela será o sucesso do navio. Já foi comprada e paga, assim não
tem como dizer ‘não’.”
A senhora Jones se sentou no para-choque do furgão ao lado de Lucy. “Pode-
se dizer que ela é esperta pelo formato da cabeça.”
Lucy olhou para o pai. Ela colocou uma mão na pequena border collie, que
tremia; era tudo o que queria na vida. Nem precisou implorar; Ben Green foi até
um canto com Hiram e, quando voltou, estava com a coleira do cão na mão.
Talvez fosse um sinal da mudança na vida deles, daquilo que era para o que se
tornaria. Não sabia o que pensar. Voltaram para Edimburgo com a pequena collie
no banco de trás, ajeitada entre Lucy e a senhora Jones. A collie estava enrolada
num cobertor que cheirava a ovelhas e logo caiu no sono. Suas patas da frente se
agitavam e Lucy ficou se perguntando se o cão não estaria sonhando com
coelhos.
“Qual será o nome dela?”, perguntou a senhora Jones.
Lucy pensou nas fotos dos filhos da senhora Jones, sobre a lareira, em
molduras de carvalho. O menino e a menina. Não sabia por que tiveram de
morrer cedo, sabia apenas que haviam falecido e que a senhora Jones estava ali,
ao lado dela.
O céu estava bem escuro agora; toda a lata de tinta fora derramada.
“Céu”, respondeu Lucy.
A senhora se aproximou. Ela exalava um cheiro de lã e hortelã.
“Há um homem, em algum ponto do mundo, que queria que você acreditasse
em alguma coisa”, falou. “Foi ele quem lhe comprou o cachorro.”
Ninguém mais escutou aquilo, devido ao ruído do motor do carro de Sam,
um velho Vauxhall que retumbava e esforçava-se pelo breu íngreme das
estradinhas, mas Lucy ouvira muito bem. Aquele homem, Teddy Healy, estava
respondendo à sua carta; estava lhe informando que ele ainda acreditava em
alguma coisa. Lucy e a senhora Jones sorriram uma para a outra. Esse seria o
segredo delas. A collie dava baforadas enquanto dormia. Havia muros de pedra
dos dois lados da estrada e cercas vivas que pareciam pretas na noite que caía.
Lucy ficou olhando pela janela. Queria se lembrar daquilo quando chegasse em
casa.
Estou em débito com meu
extraordinário editor, John
Glusman.
Muito obrigada a Shaye
Areheart, por lutar por este
livro, e a Jenny Frost, pelo
apoio.
Obrigada sempre a Elaine
Markson.
Obrigada também a Gary
Johnson e Julia Kenny. E muito
obrigada a Camille McDuffie.
Obrigada, Alison Samuel, e
a todos da Chatto & Windus e
da Vintage UK.
A minha querida amiga,
Maggie Stern Terris, sempre a
meu lado.
A Tom Martin, por tudo.
1 “Quando estou com você, sou sempre seu. Pertenço a você.”
2 Trecho da letra da música “Yellow Submarine”, dos Beatles. (N.T.)
3 Quando ando por este corredor, todos acham que eu o abandonei, mas estou aqui, com meu casaco preto,
nunca vou te abandonar.
1 Peixe defumado, em geral arenque, muito popular na Grã-Bretanha. (N.T.)
A advogada Maddy Heller sempre acreditou que Allie, sua irmã mais
velha, fosse a preferida de sua mãe, um sentimento que nunca conseguiu
superar completamente. Quando vai a Londres para o casamento de Allie,
prefereficar longe da família, e se hospeda em outro hotel, o antigo Lion
Park. Lá, ela vivencia uma experiência que a faz descobrir alguns segredos
do passado que marcaram profundamente a vida de sua mãe, Lucy Green.

Aos 12 anos, Lucy presenciou um episódio em um dos quartos do Lion


Park que transformou sua vida e a fez reconhecer a existência de um
Terceiro Anjo, além do Anjo da Vida e do Anjo da Morte, fazendo com que
ela tentasse encontrá-lo na esperança de renovar sua fé na vida e no amor.

Nesta emocionante história, você conhecerá a vida de Maddy, Allie e


Lucy, mas também de Frieda e Bryn. Mulheres que pertencem a diferentes
gerações, mas cujas escolhas e perdas as levaram a um destino comum.
Todas vivenciaram momentos marcantes e foram tocadas pelo Terceiro
Anjo, que tem a capacidade de mudar a trajetória de uma vida, levando-a a
rumos jamais imaginados.
Créditos da imagem: Deborah Feingold

ALICE HOFFMAN nasceu em Nova York em 1952 e cresceu em Long


Island. Atualmente divide seu tempo entre Boston e Nova York.

Seu primeiro romance, Property Of, foi escrito quando ela tinha 21 anos
e estudava em Stanford. Desde o início mostrou ser uma talentosa escritora.
Ela criou um público fiel e sua obra foi publicada em vários idiomas.

É uma das autoras mais queridas do público leitor. Seus livros se


tornaram filmes famosos, como Da magia à sedução e Aquamarine. Muitos
de seus romances foram reconhecidos como “livro do ano” por importantes
veículos, como The New York Times, Entertainment Weekly, The Los
Angeles Times e a revista People.

“Um livro de Alice Hoffman é sempre uma ótima escolha e a


certeza de uma leitura prazerosa. Ela é uma das mais
talentosas romancistas e suas habilidades só melhoram a cada
livro que escreve.”
— Jane Smiley, USA Today

“Alice Hoffman consegue descrever vidas aparentemente


comuns e nos fazer ver e sentir coisas extraordinárias.”
— Amy Tan, autora de O clube da felicidade e da sorte

Em O Terceiro Anjo, Alice Hoffman tece uma trama mágica


ao narrar a história de mulheres que se apaixonam por homens
errados: Maddy Heller se percebe desesperadamente atraída
pelo noivo de sua irmã, Allie. Frieda Lewis torna-se a musa
inspiradora de um astro do rock autodestrutivo. E a bela Bryn
Evans está prestes a iniciar um segundo casamento, mesmo
que ainda seja secretamente apaixonada pelo ex-marido. No
centro da história está Lucy Green, que se sente culpada por
um trágico acidente que testemunhou quando tinha 12 anos e
que a direcionou em uma busca na esperança de renovar sua
fé.

Nesta bela história, você se sentirá envolvido a cada página


pela vida destas e de outras intrigantes mulheres, e certamente
vai se emocionar.

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