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Hoffman, Alice
ISBN 978-85-422-0242-7
11-04252 CDD-813
A esposa do garça
Lion Park
As regras do amor
Agradecimentos
M ADELINE HELLER SABIA QUE ERA IMPULSIVA. Voara de Londres para Nova York
com dois dias de antecedência e já estava em seu quarto no hotel Lion Park em
Knightsbridge. O ar estava parado, repleto de partículas de pó; havia meses as
janelas não eram abertas. Tudo tinha cheiro de cedro e lavanda. Maddy sentia
calor e estava exausta da viagem, mas não se preocupou em ligar o ar-
condicionado. Estava loucamente, terrivelmente, ridiculamente apaixonada pelo
homem errado, e isso a deixava com vontade de ficar deitada ali, na cama,
imobilizada.
Madeline não era estúpida; era uma advogada de Nova York. Tinha 34 anos e se
formara por Oberlin e pela Escola de Direito da Universidade de Nova York,
uma mulher alta com cabelo preto comprido. Muita gente a considerava bonita e
esperta, ela, porém, não dava a mínima para a opinião dessas pessoas. Não a
conheciam. Não tinham ideia de que ela enganava seus conhecidos. Nunca
teriam imaginado que ela abandonaria sua vida tão facilmente, sem pensar duas
vezes.
Existe amor bom e existe amor ruim. Existe aquele tipo que ajuda uma
pessoa a superar todos os obstáculos e existe aquele do tipo desesperado, que
pega uma pessoa quando ela menos quer ou espera. E foi isso que aconteceu
com Maddy na primavera passada, quando fora para Londres ajudar sua irmã a
cuidar do casamento. Allie nem chegou a pedir ajuda; foi a mãe delas, Lucy,
quem disse para Maddy ir para Londres auxiliar nos preparativos; afinal de
contas, ela seria a madrinha. Mas, quando chegou lá, Allie já tinha cuidado de
tudo, como sempre fez.
Allie era treze meses mais velha. Era a irmã boa, a irmã perfeita, aquela que
tinha tudo. Era escritora e tinha publicado um livro infantil muito popular.
Quando andava pela rua, as pessoas costumavam reconhecê-la, e estava sempre
disposta a autografar pedacinhos de papel para o filho de alguém ou presentear
um fã com um marcador de livro que trazia na bolsa. Uma vez por ano, voltava
aos Estados Unidos para fazer palestras, o que se tornara um evento
perpetuamente popular em que crianças se fantasiavam de pássaros. Havia
cardeais, patos e corvos de nove e dez anos de idade aguardando na fila para ter
sua cópia de A esposa da garça autografada. Maddy, às vezes, acompanhava a
turnê da irmã. Não conseguia acreditar em toda aquela balbúrdia devida a uma
historinha infantil boba, que Allie pinçara de um conto que sua mãe costumava
contar. Tecnicamente, a história pertencia tanto a Maddy quanto a sua irmã, não
que ela sentisse a necessidade de escrever um livro ou virá-la do avesso para
adequá-la a seus propósitos.
Era uma história que Lucy Heller contava ao lado do brejo onde as garotas
foram criadas. A mãe de Lucy, a avó das garotas, atravessara, descalça, uma
lagoa no Central Park para conversar com uma enorme garça-azul. Não dera a
mínima para a opinião das pessoas; simplesmente foi em frente. Ao aproximar-
se percebeu que era um garça-macho. Solicitara ao garça que cuidasse de Lucy, e
ele sempre o fizera. E então, algum tempo depois, Lucy pediu-lhe que protegesse
suas filhas e ele veio morar com elas no brejo em Connecticut.
“Como um garça-macho pode cuidar de uma pessoa?”, sussurrara Maddy
para sua irmã. Não acreditava muito nessas histórias, ainda que tivesse apenas
oito anos de idade. Era tão cética quanto sua mãe havia sido.
“Ele pode ter duas vidas distintas”, disse rapidamente Allie, como se a
resposta fosse simples, como se Maddy fosse a única capaz de desvendar os
mistérios do universo. “Ele tem uma vida como garça lá no céu e uma vida aqui
embaixo.”
“Fico feliz por ele poder ajudar nós duas”, falou Maddy.
“Não seja ridícula.” Allie era sempre muito decidida e segura de si mesma.
“O garça-azul possui apenas um amor verdadeiro.”
E foi assim que ele foi parar no livro de Allie. Havia uma mulher que se
casou com o homem que amava. O casal vivia em uma casa que lembrava aquela
próxima ao brejo onde as irmãs haviam sido criadas. Eram os mesmos bambus
prateados. O mesmo céu tingido de preto. Os noivos residiram em sua casa feita
de pau e pedra por mais ou menos um ano, felizes e em paz. E, então, um dia,
quando o homem saíra para pescar o jantar, ouviu-se uma batida na porta. A
mulher atendeu e encontrou a outra esposa do noivo, uma garça-azul viera
procurar seu marido sumido.
“Como aguenta todas essas crianças te rodeando?”, perguntou Maddy
durante uma palestra particularmente lotada. Seus narizes escorriam. Eram
repletas de germes, barulhentas e rudes. E precisavam rir tão alto? Era
ensurdecedor.
No livro de Allie, a esposa do garça estava definhando. Suas penas estavam
caindo. Não comera nada desde que seu marido saíra.
Uma de nós vence, e a outra perde. Mas quem?, perguntou à noiva na porta.
“São meus leitores. Quero que riam.”
Allie é que costumava sempre viajar para se encontrarem, mas finalmente
Maddy seria a convidada de sua irmã. Para falar a verdade, ela evitava ir até
Londres, dizia que estava muito ocupada, mas não era só isso. Não tinha vontade
de ver o mundo perfeito de Allie. Por fim, não teve como fugir; afinal de contas,
tinha um casamento para participar. Um casamento em que Maddy novamente
seria a coadjuvante, a irmãzinha má que não conseguia seguir as regras, que,
mesmo uma mulher crescida, ainda tinha medo de coisas ridículas como
temporais e ratos, engarrafamentos e aviões. Era bem provável que fosse
obrigada a usar um vestido horrível, feito em um tecido sintético desagradável,
enquanto sua irmã brilharia em seda ou cetim branco. Segundo nível, segunda
melhor, o lado negro de tudo. Nunca acreditou nos homens que lhe diziam que
era bonita e esquivava-se de criar amizades. Fazia seu trabalho e ficava na dela,
o tipo de mulher que conseguia ficar tranquila diante de crianças que retiravam
as asas de uma borboleta ou enterravam um sapo na lama. O que as pessoas
faziam em seu tempo livre não era problema seu. Afinal de contas, a crueldade
fazia parte da vida. Não era sua função consertar o mundo. Esse tipo de coisa,
deixava para sua irmã.
Como Maddy ficaria em Londres para um fim de semana estendido em abril,
chegando numa quinta e partindo no final da tarde de segunda, ela e Allie foram
correndo diretamente do aeroporto para a costureira, para que Maddy pudesse
experimentar a roupa. Quando crianças, eram bem próximas, mas, como foram
criadas separadas, eram bem diferentes, pelo menos o máximo que irmãs podem
ser. Allie, contudo, esforçara-se para escolher um vestido que se adequasse a
Maddy: seda azul, sensual, realçando os traços da irmã. Quanto a Maddy, ela
odiou o vestido, mas preferiu não falar nada. Decidira que tentaria ser a irmã
cordata pela primeira vez na vida. Até concordou em experimentar os possíveis
bolos de casamento quando terminaram de ajustar os vestidos. Era por isso que
ela estava lá. Para auxiliar a irmã.
Foram até a confeitaria e experimentaram uma variedade de doces, mas a
pasta de manteiga estava muito pesada e o gosto do chocolate, muito acentuado.
Allie não parecia satisfeita com nada. Dizia que preparativos de casamento eram
perda de tempo. No final, escolheu um bolo amarelo simples, que fora preparado
a partir de sua própria receita. E realmente não precisou de Maddy para nada.
Maddy ainda estava em seu modo complacente. “Boa escolha”, falou.
“Simplicidade é tudo. Menos chance de dar alguma coisa errada.”
Não que acreditasse nessa filosofia quando em relação a ela mesma. Simples
era bom para Allie, não para Maddy. Maddy era gananciosa, e sempre fora
assim. Costumava roubar sua irmã, faixas de cabelo, bijuterias, camisetas. Se
fosse o bolo de casamento dela, teria optado por musse, geleia, chocolate,
damasco no Brandy e algodão doce. Não havia exagero para uma garota que
sempre achou ser a segunda melhor.
No dia seguinte à aventura de experimentação de bolos, as irmãs estavam
contorcidas na cama, com dor de barriga, debaixo do cobertor. Ficaram de
pijama e meias. Quando crianças, não precisavam de mais ninguém além delas
mesmas; a sensação, por algumas horas, foi a mesma, enquanto bebericavam
xícaras de chá. Mas não havia como recuperar o que Allie arruinara ao sair de
casa. No fundo, não tinham mais nada em comum. Fazia dezessete anos que
Allie fora para a faculdade em Boston. Fora para Londres no segundo ano,
retornando, de vez em quando, para passar uma semana apenas. Abandonara
Madeline, deixando-a sozinha na casa grande que tinham em Connecticut, com
seus pais, que haviam se reconciliado depois de um ano de separação. Os Hellers
não tinham vizinhos, e Maddy não tinha amigos. Era distante, da forma que
pessoas solitárias costumam ser. Depois que sua irmã saiu, Maddy ficou cada
vez mais isolada. Mesmo quando foi para Oberlin, era a única que voltava para
casa para as férias de inverno ou para o recesso de primavera. Quando as cartas
de Allie chegavam, Maddy recusava-se a lê-las. Preferia sair para relaxar ao lado
do bambuzal. Nos dias em que o céu estava claro, acabava encontrando o garça-
azul que vivia ali. Lera que a maioria das garças vivia em pares, o macho grande
e a fêmea mais delicada, unidos pelo resto da vida, mas este era solitário. Estava
bem afastado, na outra ponta do brejo. Costumava tentar chamá-lo, mas parecia
que ele não a escutava. Nunca sequer olhou para ela.
NAQUELES RAROS dias em que Lucy se sentia bem, passeavam num barquinho
pela nublada costa de Connecticut, e ela costumava lhes cantar “Row, Row, Row
Your Boat”. Era lá que morava o garça, para além das águas calmas. Lucy Heller
estava muito fraca para usar os remos; isso era tarefa das meninas. Lucy iniciara
o tratamento para o câncer na época em que Maddy e Allie tinham dez e onze
anos, respectivamente, e assim foi até o colegial delas, quando então o pai delas
sumira. Lucy ficou mais forte com o tempo, uma sobrevivente que nunca teve
outra recaída, mas naquele período o máximo que conseguia fazer era carregar a
sacola de tricô. A vida da mãe de Lucy também fora tomada pelo câncer e,
apesar de Lucy tentar esconder seus medos, suas filhas conseguiam senti-los.
Passaram a acreditar que ela estava condenada.
As garotas tinham um acordo para o caso de surgirem complicações num
daqueles passeios de barco. Se o barquinho virasse, se surgisse uma tempestade
repentina, salvariam primeiro uma à outra. Mesmo que estivessem brigadas ou
se tivessem se estapeado naquele mesmo dia, se Maddy tivesse atirado contra a
irmã um livro ou um bracelete, ou se Allie tivesse limpado o quarto delas e
jogado fora a coleção de conchas de Maddy, ainda assim ajudariam a outra a se
salvar. Segurariam as mãos uma da outra e se ajudariam a flutuar. Toda vez
usavam colete salva-vidas, de forma que estavam sempre precavidas. E ainda
verificavam a meteorologia no jornal.
A mãe delas fora amaldiçoada. Era por isso que estava tão distante e infeliz.
Fora por isso que o marido a abandonara durante o tratamento. Ninguém
racional teria feito aquilo. Ninguém cuja esposa estivesse enfeitiçada. As
meninas decidiram que só elas conseguiriam quebrar a maldição. Havia apenas
uma forma de combater um feitiço maligno: sangue por sangue, pele por pele,
cinzas por cinzas. Convocariam o garça, que tinha a obrigação de cuidar delas.
Fariam um sacrifício por sua alma. Depois de irem para a cama, as irmãs
fugiram para o quintal. Estava muito escuro e Maddy tropeçou numa pedra. Allie
teve de segurá-la para evitar que caísse. Estavam de camisola. Fazia duas
semanas que ninguém lavava roupa e as bainhas de suas camisolas estavam
sujas. Estavam descalças. As coisas estavam desmoronando dentro de casa. Não
havia comida na geladeira e nada de roupas limpas. Ninguém levava o lixo para
fora e moscas voavam ao redor das caixas de macarrão e arroz nos armários. Era
assim que a doença se manifestava dentro de uma casa, nos cantos, entre as
tábuas do assoalho, nos ganchos dos armários com os suéteres e casacos.
Maddy hesitou quando se aproximaram do fim do quintal. Afinal de contas,
maldições eram poderosas. Era impossível ver alguma coisa depois da cerca.
Parecia não haver mais ninguém vivo no mundo. Se seguissem adiante, ainda
haveria terra mais à frente? Se o garça atendesse ao seu chamado, o que fariam?
Maddy nem gostava de pássaros. Uma garça-azul era quase da mesma altura que
ela; descobrira isso ao ler o guia Audubon. Eram sedentárias e lutavam contra
qualquer intruso.
“Vamos”, falou Allie. “Não há por que ter medo.”
Allie pegara a pá na garagem. Quando começou a escavar, a terra, por causa
da água, começou a virar lama. Maddy ficou perto da irmã. Allie cheirava a uma
mistura de sabão, suor e lama. Parecia saber exatamente o que estava fazendo.
“Você está me atrapalhando”, falou Allie. “Posso fazer isso sozinha.”
Quando terminou de escavar, Maddy entregou a Allie a lâmina que haviam
roubado do banheiro.
“Não vai doer nada”, prometeu. “Ele virá até nós. E irá nos proteger.”
Sempre dizia que nada ia doer, a fim de convencer Maddy a fazer coisas que
a amedrontavam. Às vezes, era verdade; outras vezes, não.
“A melhor coisa a fazer quando algo está doendo é ficar repetindo uma
palavra em sua cabeça”, sussurrou Allie. “Algo reconfortante.” O pai delas havia
ido embora. A mãe, era bem provável que em breve estivesse no hospital ou
trancada numa torre alta por forças misteriosas, ou morta. A palavra que Maddy
escolheu para repetir foi arroz doce. Tecnicamente, eram duas palavras, mas era
sua sobremesa favorita e sempre lhe trouxe conforto. Allie foi rápida ao passar a
lâmina pela mão de Maddy. Ela estava certa quanto à dor. Embora tenha ardido
mais do que doído.
“Está bem”, falou Allie. “Bom trabalho.” Assim que terminou com Maddy,
cortou a sua mão. Um talho profundo em sua palma. Nem sequer se retraiu.
“Agora nos damos as mãos sobre a terra.”
Deixaram o sangue gotejar sobre a terra e então Allie usou a pá para cobrir
de terra o lugar onde o sangue caíra. Suas camisolas já estavam imundas, não
que se importassem com isso. Os cabelos estavam emaranhados nas costas.
Escalaram o plátano, a árvore mais alta da região.
“Devia acontecer alguma coisa”, disse Allie. Porém nada aconteceu. Ficaram
aguardando, e aguardaram, mas nada mudou. Allie estava tremendamente
desapontada. Ela era a protetora, aquela que tomava todas as decisões, a irmã
confiável. Nunca chorava, mas agora parecia que estava prestes a chorar. “Ele
nunca vai voltar”, falou. “Ele não pode salvá-la.”
Para Maddy, a ideia de ver Allie chorando era a parte mais atemorizante da
noite. “O simples fato de não podermos vê-lo não significa que ele não esteja
aqui.”
Allie olhou para a irmã, surpresa. Para falar a verdade, até Maddy ficara
surpresa.
“Está escuro”, começou a explicar Maddy. “E o olho humano é limitado.”
Suas aulas de ciências eram sobre o corpo humano e havia acabado de aprender
sobre o olho. As irmãs ficaram olhando para o brejo. Não conseguiam definir
onde terminava a terra e onde começava a água. Os bambus prateados pareciam
pretos como carvão. Maddy sussurrou e pela primeira vez parecia segura de si.
“Aposto que ele está lá, só que não pode se revelar. Temos apenas de acreditar
que ele está lá.”
A mãe das meninas parecia sentir-se melhor no dia seguinte. Sentou-se na
cadeira do jardim, sob um sol pálido, com suas agulhas de tricô. Ao meio-dia,
entrou na cozinha e preparou o almoço para Allie e Maddy. Ouviram-na rindo ao
fim do dia. As irmãs haviam conquistado algo por meio de sangue e fé. Nunca
falaram sobre aquela noite novamente. Parecia um segredo sombrio. Famílias
como a delas não acreditavam em tal absurdo. Não costumavam sair no meio da
noite e se cortar com lâminas. Ainda assim, Maddy ficou com dúvidas se a
maldição não teria vindo para ela por ter mentido para a irmã. Ela não parou de
se cortar. Escolhia lugares que ninguém notaria: a parte de trás dos joelhos, a
sola dos pés, a parte de dentro dos braços. Sua irmã estava certa. Depois de um
tempo, não doía mais.
MADDY FOI BOBA por se hospedar no Lion Park bem no ápice do verão. Os
quartos eram sufocantes, não havia serviço de quarto e o encanamento era
antigo. Sua mãe tivera um cinzeiro de cerâmica branco com a estampa daquele
hotel, um leão verde, que ela guardou por anos na mesinha de canto. “Era o lugar
onde eu mais gostava de estar”, contou Lucy às garotas. “Eu tinha doze anos e
achava-o muito elegante.”
Maddy sempre imaginara um leão de verdade num quarto do hotel, e talvez
fosse por isso que tinha feito a reserva. Sua mãe parecia encantada com o lugar.
Mas o hotel era de segunda linha. Quanto ao leão, era feito de pedra; ficava no
jardim, coberto de musgos.
“Ah, aquilo”, falou o recepcionista a respeito do leão quando Maddy fez o
check-in. “Foi roubado de um monastério na França e faz séculos que está no
jardim. Estava lá bem antes de o hotel ser construído. Tem uma fenda nas costas,
e nem sabemos o que fazer caso a escultura se parta. Teremos de mudar o nome
do hotel!”
Havia apenas uma pessoa que sabia que Maddy havia chegado antes e ela
contava os minutos para ele aparecer lá. Enviara-lhe uma carta registrada, a qual
fora recebida, assim ele já estava bem ciente de que ela o esperava. Havia
pombos no parapeito e Maddy podia escutar o trânsito na Brompton Road. O
resto da família, os parentes de Maddy e Allie, Lucy e Bob, as tias, tios e primos,
além de vários amigos norte-americanos de Allie, ficariam a algumas quadras
dali, no Mandarin Oriental. Maddy dissera a seus parentes que a empresa em que
trabalhava tinha um acordo com um hotelzinho na outra quadra e lá poderia se
hospedar por uma ninharia. Contara que teria de escrever um memorando para
um cliente, que corria o risco de ser preso devido a alguns investimentos
nebulosos, e para isso precisava de silêncio e paz. O hotel não tinha televisão a
cabo, nem filmes para comprar; não tinha nenhum spa luxuoso, apenas um
pequeno lounge onde os hóspedes podiam comer ou beber alguma coisa.
O Lion Park tinha sete andares e pegava quase um quarteirão inteiro. Não era
o tipo de lugar de onde Maddy esperava que sua mãe tivesse guardado um
suvenir. Os corredores eram compridos, com várias portas pintadas de azul, cada
uma com um número entalhado em dourado e uma maçaneta de vidro
trabalhado. Todos os andares eram idênticos; era possível realmente ficar
perdido ali, já que os corredores seguiam a rua formavam um “V”. Para a
maioria dos hóspedes, era algo bem confuso.
No elevador, cabiam apenas quatro pessoas, e a escada curvava-se para cima
com cada vez menos degraus, até que, bem no topo, era preciso dar passinhos de
bebê para evitar cair. O quarto de Maddy ficava bem na ponta do hotel, voltado
para a rua. Dentro, havia uma cama com uma colcha branca, uma penteadeira,
uma televisão que recebia quatro chuviscos de canal e um ar-condicionado sobre
um suporte, alimentado através da janela por um cano plástico, um aparelho que
na verdade parecia deixar o quarto ainda mais quente. Em todo o hotel, o carpete
era de lã, num verde-escuro melancólico. O banheiro era pequeno, com uma
banheira apavorante que possuía apenas um chuveirinho manual; a pia ficava
dentro do próprio quarto. Havia um lustre e um abajur sobre uma mesinha bem
antiquada. Na verdade, Maddy não se importava; tudo que lhe importava, desde
sua visita na última primavera, era retornar. Queria ficar ali por quinze dias, ou
trinta, ou até mais. Nem mesmo dez mil dias seria tempo suficiente. Como ele
não apareceu naquela tarde, ela lhe telefonou e deixou uma mensagem na
secretária eletrônica.
É melhor você aparecer. É o mínimo que você me deve. Você me deve muito
mais, para falar a verdade.
Naquela noite, Maddy teve um sono intermitente. Sonhou que estava no
quintal em Connecticut. Havia o plátano com milhares de ossos amarrados em
seus ramos. Flores vermelhas substituíam as folhas. Maddy foi pegar uma flor,
mas cortou a mão. As flores eram feitas de vidro. Lembrou-se da sensação de se
cortar. Lembrou-se de acreditar que era a única maneira de sentir alguma coisa.
Em seu sonho, Maddy escutou o grito de um homem. Abriu os olhos, e ele ainda
gritava. O relógio ao lado da cama indicava dez e trinta da noite. De repente,
ficou desperta. Nunca tinha escutado um grito tão ardente. Um inglês, e por um
instante pensou em Paul, mas não era a voz de Paul. A agitação era no corredor,
na porta do quarto bem em frente ao seu: 707. Maddy levantou-se e foi espiar,
mas não havia buraco de fechadura, não havia como ver o que estava
acontecendo lá fora. Pensou em abrir a porta, mas o homem invisível gritava
com tanta força, que Maddy achou que talvez pudesse intrometer-se numa briga
com a qual nada tinha que ver. Em vez disso, encostou a orelha na porta. Não
conseguia entender tudo, apenas algumas palavras soltas. “É sempre assim”,
ouviu a voz do homem. “Inacreditável.”
Maddy enfiou-se debaixo das cobertas e colocou as mãos sobre as orelhas.
Ficou lá, tremendo, até que parou de pensar, até que sua mente foi tomada pelo
plátano. Lembrou-se de compartilhar a cama com a irmã e do medo que sentia
do escuro.
MADDY TELEFONOU para Paul no dia seguinte, mas seu celular estava
desligado e, na sua casa, ninguém atendeu. Enquanto Allie estava fora
resolvendo algumas coisas, Maddy ficou vasculhando na internet. Descobriu que
Paul fora editor de vários programas da BBC. Embora, pelo que parecia, não
tivesse trabalhado muito no ano anterior, Maddy conseguiu encontrar uma
enormidade de informações – seus registros escolares, suas conquistas no futebol
universitário, dados sobre seus pais em Reading, onde seu pai era professor de
química e sua mãe, que trabalhara como enfermeira, era diretora do clube de
jardinagem. Rapidamente sabia tudo, nos mínimos detalhes, da vida de Paul.
Naquela noite, ele apareceu para beber uma coisa, e, quando Allie foi buscar
gelo, disse para Maddy: “Vamos esquecer que isso aconteceu”. Como se tivesse
sido ela quem o procurara. Ele estava bem próximo e pegara-a pelo braço.
Percebeu que era muito mais mentiroso do que parecia à primeira vista. Queria
se vingar de alguma forma. Juntou coragem e beijou-o bem ali, na sala de estar
de sua irmã. Ele se afastou e falou: “Adeus, irmãzinha”, como se tudo tivesse
acabado entre eles.
Ela não tinha muito tempo. Estaria em Nova York dali a algumas horas. Allie
trabalharia no dia seguinte, e Maddy garantira-lhe que aproveitaria o tempo.
Sairia para conhecer o Palácio de Buckingham. Insistira que sabia se divertir
fazendo turismo. Mas, em vez disso, descobriu o endereço de Paul e saiu para
chamar um táxi. Quando chegou à frente do apartamento dele, não sabia qual
seria o próximo passo. Se percebesse que era Maddy, era bem provável que não
abriria a porta.
“A senhora queria sair?”, perguntou o motorista.
“Se quisesse, eu sairia. Estou aguardando uma pessoa.”
Ficaram sentados no carro estacionado sem falar nada. Ao meio-dia, Paul
saiu e fez sinal para um táxi.
“Siga-o e não permita que ele nos veja”, falou Maddy ao motorista.
O táxi de Paul o deixou em uma das velhas mansões em Kensington. Para
Maddy, parecia um bolo de casamento. Havia um pequeno parque em frente,
onde crianças brincavam sob as árvores. Maddy já imaginava que não era a
única com quem Paul traía sua irmã. Afundou-se no táxi. Traidores traem e
mentirosos mentem. Estava no DNA deles.
“A senhorita vai descer agora?”, perguntou o motorista.
Ela ficou olhando Paul subir os degraus da entrada e tocar a campainha. A
porta se abriu, e ele entrou. Maddy pagou ao motorista e saiu; seu rosto estava
quente e vermelho. Com certeza, Paul estava traindo Allie, mas era Maddy quem
se sentia violentada. Aguardou um pouco e, então, subiu até a residência. Uma
criada atendeu a campainha.
“Estou sendo aguardada”, anunciou Maddy.
“Eles estão almoçando no jardim”, respondeu a criada. “Não me disseram
que viria mais uma pessoa.”
“Bem, veio”, falou Maddy.
Ela parecia bem confiante, portanto a criada permitiu que entrasse. A casa
era enorme, bonita e elegante. Com o sol batendo, era um pouco difícil para
Maddy enxergar o interior cheio de sombras. Havia muitos móveis de madeira e
uma escada enorme. O chão do saguão era decorado com mármore branco e
preto.
“Pode deixar que eu me viro”, disse Maddy à criada. “Eu me viro bem
sozinha.”
“Se a senhora diz.”
Maddy podia escutar vozes e bastava seguir o som. Foi andando pelo saguão
e foi até uma sala. As paredes eram pintadas de vermelho e dourado e o chão era
de ébano. Maddy seguiu por uma porta de batente que dava num jardim de
inverno. Logo à frente ficava o jardim. Paul usava calça de linho e uma camisa
azul-clara. Uma árvore florescia e havia dezenas de roseiras ao lado de um muro
alto de pedras. O jardim era bem verde-escuro, quase preto nas sombras. Os
caminhos eram feitos de ardósia, tijolos e pedras. Havia pássaros nas árvores.
Paul tinha tirado seu blazer. Estivera podando as rosas, mas agora sentara-se à
mesa, de frente para sua comensal, uma mulher de quem Maddy conseguia
apenas ver as costas e que usava um enorme chapéu de palha. Paul ria de alguma
coisa que sua companheira dizia. “Se quiser me contratar para ser seu jardineiro,
aceito o emprego na hora”, falou, brincando. “Sei que você não pode me pagar
um centavo. E, com minha habilidade, é bem provável que todas as plantas
morram.”
Maddy aproximou-se; a cerca viva alta ao lado do caminho onde ela estava
tremeu quando os pássaros saíram voando. Paul ergueu a cabeça e ficou
paralisado ao ver Maddy.
“Está tudo bem, Paul?”, perguntou sua companheira.
“Acho que não”, respondeu.
“Você deve estar brincando…”, gritou Maddy, do caminho de pedras. “É por
isso que não podia atender minhas ligações?”
Paul pediu licença. “Já volto”, falou para sua companheira. Andou até
Maddy, furioso. “Você está maluca? Ficou me seguindo?”
“Ela te paga por outros serviços além da jardinagem?”
“A senhora Ridge é amiga de família. É como uma avó para mim. Portanto
fale baixo.”
A mulher virara-se para olhar e Maddy percebeu que era uma mulher mais
velha, uma dama inglesa muito bonita, mas não era uma concorrente.
A senhora Ridge começou a se levantar, preocupada. Paul forçou um sorriso
e acenou. “É só um minuto”, garantiu-lhe.
Pegou o braço de Maddy e levou-a de volta para o jardim de inverno. Havia
uma fileira de orquídeas amarelas e marrons e vasos maiólicos com samambaias.
“A senhora Ridge é responsável por muita coisa em minha vida, inclusive
minha formação. É parte de nossa família. Não tem filhos e me adora. Também
sou maluco por ela. Nunca imaginei ser seguido quando estivesse vindo visitá-
la.”
“Eu não sabia”, falou Maddy.
“Você sabe muito pouca coisa”, disse Paul, desdenhando.
Maddy girou sobre os calcanhares e saiu correndo. O que estava fazendo?
Não valia a pena preocupar-se com ele. Era egoísta e repugnante, tal qual ele
mesmo alertara. Saiu correndo da casa, torcendo o tornozelo ao descer os
degraus. Foi andando até o parque, mancando, e parou ao lado da estrada.
Quando Paul apareceu, num táxi, ela estava chorando.
“Entre”, gritou pela janela. Ficaram se olhando. “Entre e não comece a fazer
ceninha, droga.”
Maddy entrou no táxi e fechou a porta.
“Disse à senhora Ridge que você é uma parceira comercial lunática”, falou
Paul. “Ela sugeriu que eu a demitisse.”
“Legal. Bacana.”
“Nós fizemos uma coisa desesperada, minha querida. Concorda?”
Paul parecia exausto. Maddy notou uma tosse terrível; era provável que
estivesse doente quando se encontraram. E certamente ela pegaria aquela doença
também. Merecia isso.
Paul se inclinou, aproximando. Cheirava a sabonete. “Cometemos um erro
estúpido. Sei por que fui lá naquela manhã, mas nunca pensei que você fosse
abrir a porta para mim. Fiquei um pouco surpreso ao descobrir sua disposição
para traí-la.”
“Vá para o inferno. Você participou de tudo.”
“Tinha certeza de que me rejeitaria e de que iria correndo contar para Allie
que eu tinha me insinuado para você.”
“Você queria que eu dissesse não?”, Maddy sentia-se humilhada. Não
conseguia entender.
A camisa de Paul estava enrugada; o tecido era linho, a cor era celeste, clara,
pura e nova. Esquecera seu blazer. “Olhe, sinto muito. Não devia ter te
envolvido. Sinto muito mesmo.”
Chegaram ao seu destino e o carro freou. Maddy não havia percebido que
haviam chegado até escutar um tapa na janela do táxi. Quase teve um ataque
cardíaco. Paul abaixou o vidro. Era Georgia, saindo depois de deixar Allie em
seu apartamento.
“Ora, o que andam fazendo?”, perguntou Georgia, desconfiada.
“Eu a vi na rua e pensei em dar uma carona à pobre garota.” Paul abriu a
porta. “Vamos”, falou para Maddy. “Sua carruagem a trouxe de volta. Bom te
ver, Georgia.” Fechou a porta e o táxi partiu – e foi só. Ela não lhe tinha mais
serventia. Servira aos seus propósitos, sabe-se lá quais fossem.
“Eu o detesto”, falou Georgia.
“É mesmo?”, Maddy se virou para entrar. Pela primeira vez, concordavam
em algo. “Eu também.”
DEPOIS QUE VOLTOU para Nova York, ela não falou nada sobre o que
aconteceu a ninguém. Ao conversar com Allie pelo telefone, perguntou-lhe sobre
Paul. Odiava-o de uma maneira um tanto estranha, voraz. Não conseguia parar
de pensar no único encontro que tiveram. Talvez devesse se levantar no
casamento e relatar o que havia acontecido. Por que não fazer isso? Estaria
fazendo um favor tanto para Allie quanto para si mesma. Seria muito bom
desmascará-lo de uma vez por todas, mesmo que isso significasse se entregar
também.
Maddy começou a ficar deprimida. No trabalho estava sofrível e um de seus
sócios perguntou se alguém de sua família havia morrido. Costumava ter
programação para os fins de semana, agora dormia até o meio-dia e evitava sair.
Quando seus pais foram até Nova York e fizeram-lhe uma visita de domingo, foi
acordada pela batida na porta, ainda que fosse duas da tarde.
Lucy a chamou de lado. “O que está acontecendo?”
“Não está acontecendo nada! Por que sempre pensa o pior de mim?”
“Sei que você não está bem”, disse Lucy Heller para a filha.
“É mesmo? Então acho que você devia saber que eu não estava bem durante
toda a minha infância. Na época, não parecia se importar muito. Nem sequer
parecia notar minha existência.”
Sua mãe ficou perplexa.
“Como pode dizer isso? Lógico que eu me importava”, falou Lucy. “Percebia
que éramos muito parecidas. Você não notava isso?”
MADDY RECORDOU DE quando havia fugido de casa, depois que seus pais se
separaram. Vestira uma capa de chuva e suas botas de inverno; era primavera, e
o ar estava úmido. Fugir foi fácil demais. Abriu a porta e saiu para o escuro.
Sabia exatamente aonde estava indo. Atravessou o quintal, passando pelo
plátano. Allie contou-lhe que o garça-azul viria atrás daqueles que amava de
verdade. A grama estava molhada e esponjosa, e Maddy se deixou afundar nela.
A lama cobriu-lhe as botas. Não havia estrelas e a lua se escondia atrás das
nuvens, mas era suficiente para iluminar o caminho.
Não demorou muito para alcançar o brejo. Chegando lá, enfiou-se no
bambuzal. Os bambus eram altos e fofos, num cinza prateado. Havia um cheiro
de imundície pairando no ar. As botas de Maddy produziam um som de água
espirrando enquanto andava pela borda. Ouvia coisas que estavam vivas:
caracóis, pássaros em seus ninhos, o vento crescente. Era bem provável que
também houvesse aranhas e sanguessugas; além de morcegos nas árvores.
Maddy sempre fora a irmã que tinha medo, que chorava quando ficava sozinha,
que fazia careta, que não sabia cozinhar ou limpar a casa, nem mesmo abotoar
seu pesado casaco de inverno. Estava preocupada com os espinheiros no brejo e
com os caranguejos que podiam morder-lhe os dedos do pé, mas conseguiu
evitar pensar nessas coisas. Demorou um pouco, mas enfim encontrou o lugar
onde sua mãe dissera que o garça-azul vivia. Passou por uns arbustos, e lá estava
o ninho, no ramo de um salgueiro.
Maddy usava uma camisola azul sob a capa. Tirou as botas. Sabia escalar
árvores; era leve e muito mais forte do que aparentava. Quando chegou ao ninho,
respirava fundo. Achou que fosse feito de grama comprida e musgos, mas era
construído com galhos finos. Alguns eram prateados, outros eram negros. O
garça não estava lá, e assim Maddy se enfiou no ninho. Poderia ter quebrado, e
isso a faria cair e quebrar todos os seus ossos. Mas os galhinhos suportaram seu
peso. Maddy queria comprovar que sua mãe falara a verdade, que o garça
cuidaria dela. Segundo sua mãe, as garças eram muito fiéis, era-lhes algo inato.
Quando Maddy acordou, sentia câimbras nas pernas, por ter dormido na
árvore. Havia marcas vermelhas de mordidas de insetos em seus ombros e
joelhos. O céu apresentava os primeiros raios de luz. Escutou o barulho da água
e o que parecia a voz de sua irmã. Maddy olhou para o brejo, e lá estava Allie,
no raso com o garça-azul. Todo mundo imaginaria que uma garça tivesse medo
de uma garota, e que o inverso também aconteceria, mas ali não parecia ser o
caso. Allie estava bem próxima, a ponto de quase tocá-lo antes de ele sair
voando. Virou-se para acenar para o céu quando viu Maddy sobre a árvore. O
cabelo claro de Allie estava da cor do bambuzal. Estava claro que ela fora a
escolhida por ele.
PAUL NÃO APARECEU no Lion Park no dia seguinte, ainda que ela tivesse
deixado uma mensagem na secretária eletrônica ameaçando-o de telefonar para
Allie e contar-lhe tudo. Estava apelando para ameaças. Não se importava com
quão fundo chegaria. Maddy deixara um recado na recepção dizendo que
aguardava um visitante; podiam telefonar para seu quarto assim que ele
chegasse. Chegou a pensar em dizer que era seu marido, mas nem mesmo ela
conseguia contar uma mentira tão grande.
Ficou esperando no quarto quente, até que começou a se sentir tonta, então
saiu e foi passear por Londres. Quando voltou, jantou no quarto, ainda
aguardando-o, ao menos um telefonema. Bebeu uma garrafa de vinho e caiu no
sono quando ainda estava claro. Só acordou quando escutou algo no corredor.
Outra discussão; um homem berrando. Quando a gritaria cessou, ela tomou um
banho e descobriu que só havia água gelada, com alguns jatos de água quente. O
sabonete era arenoso e tinha cheiro de lisol. Maddy saiu, enrolou uma toalha no
corpo e jogou-se sobre a cama. Eram quase onze horas quando ele finalmente
chegou. A recepção não se preocupara em telefonar para Maddy a fim de
informar-lhe que alguém viera vê-la; simplesmente permitiram que subisse.
Podia ser qualquer pessoa, um maluco querendo se vingar, um assassino serial.
Paul bateu na porta e gritou seu nome. Por um instante, Maddy se forçou a
parecer calma. Não queria demonstrar desespero, nem para si mesma. Que ele
sofra. E que espere.
Ele bateu novamente. Maddy foi abrir a porta. Estava apenas com uma toalha
em volta de seu corpo.
“Caramba”, falou Paul, “quem você está esperando?”, ele sorriu. “Olá,
irmãzinha.”
Havia raspado o cabelo e parecia mais magro. Só pele e osso. Bom, pensou
Maddy. Torcia para que estivesse sofrendo, assim como ela. Esperava que
estivesse arrependido desse casamento com que se comprometera.
“Você não escreveu, nem telefonou”, falou Maddy, tentando parecer jovial.
Só que não saiu assim. Soou patética. Exatamente o que ela não queria. Mas ele
não pareceu notar; sua expressão era vazia, distraída. Seus olhos pareciam
embaciados, como se estivesse com conjuntivite.
“Nunca nos prometemos nada, Maddy. Você sabia disso. Deixemos assim. Se
me telefonar novamente, não vou ligar de volta.”
Maddy havia pendurado seu vestido prateado sobre a janela, e uma estranha
luz azul-celeste tomou o quarto.
“Sinto muito por Allie”, falou. “Sinto mesmo.”
“Eu também”, concordou Paul.
“Você é sempre egomaníaco?”
“Você é?”
“Se eu contar para ela, ela não vai entender. Não irá te perdoar.”
“Não irá mesmo”, falou Paul. “Nem você deveria contar.”
“Talvez eu não conte”, disse Maddy.
Ele foi embora sem falar mais nada. Para ele, nem isso ela merecia. Maddy
se vestiu. Sentia-se usada e triste. Foi até o restaurante do hotel e sentou-se a
uma mesa do bar. Havia um senhor idoso bebendo e um casal rindo e
compartilhando uma sobremesa. A garçonete apareceu. Estava perto da hora de
fechar, mas Maddy explicou que havia chegado havia pouco dos Estados Unidos
e que seu avião atrasara. A garçonete lhe trouxe uma salada e um pedaço de
quiche, com uma taça de Pinot Grigio. Estava um pouquinho mais frio no
restaurante, mas ela ainda estava ardendo de calor.
“A quiche está boa?”, perguntou a garçonete.
Estava sem gosto algum, mas a salada estava boa e o vinho, ainda melhor.
“Nada mau”, respondeu Maddy.
Ficou sentada ali por quase uma hora, bebendo vinho. Quando finalmente se
levantou para sair, só o velho e o barman permaneciam lá. O casal e a garçonete
haviam partido. Maddy pegou o elevador para o sétimo andar e logo se perdeu
no corredor. Mas, enfim, encontrou o 708. Abriu a porta e ficou em dúvida se
havia mais alguém em seu andar. Não vira ninguém desde que saíra do bar.
Desligou o ar-condicionado insuficiente e abriu a janela, preferindo enfrentar a
fuligem e o barulho de trânsito que invadiram o quarto. Então encaracolou-se
sobre a cama, vestida.
O PAI DELAS FOI embora quando Maddy e Allie tinham onze e doze anos,
enquanto sua mãe ainda estava em tratamento. Ele se mudou para uma casa na
cidade, a cerca de cinco quilômetros dali. Sua mãe disse-lhes para não o
culparem. Contou-lhes que algumas pessoas não conseguiam lidar com doenças;
só pensar em ir a um hospital as deixava perturbadas de medo e aflição. Allie e
Maddy não acreditaram nela. Se o pai delas ficava perturbado com alguma coisa,
era com os próprios desejos egoístas. As garotas passavam de bicicleta pela casa
para a qual ele se mudara, mas nunca parecia haver alguém lá. Quando
telefonavam, uma mulher atendia. Allie dizia que devia ser uma amiga ou uma
empregada. Maddy podia ser jovem, mas compreendia bem as coisas. Em
segredo, começara a fazer pequenos cortes em seus braços e pernas. Não sabia se
queria machucar si mesma ou outra pessoa. Passou a ligar todas as noites para a
mulher com quem seu pai vivia. A vingança tem um sabor sofisticado, mas é
viciante se não utilizada com moderação. Maddy era a vingadora misteriosa.
Não contou nem mesmo para sua irmã. Ainda que jovem, sabia que a vingança
era um ato particular.
Então um dia o pai das garotas reapareceu. Estacionou na garagem e gritou
para que Maddy e Allie saíssem. Estava furioso, como se ele fosse a parte
prejudicada.
“Vocês estão aterrorizando uma mulher inocente. Nunca mais liguem para
ela”, disse-lhes. “Se o fizerem, vou trocar meu número de telefone. Ela é apenas
a senhoria de onde moro. Nada além disso.”
Allie não sabia nada sobre os telefonemas. Mas não culpou Maddy.
Enfrentou o pai.
“Em vez de mudar o número, você devia voltar para casa. Precisamos de
você aqui.”
“Foi sua mãe quem as incentivou a fazer isso?”, perguntou.
“Nossa mãe não se rebaixaria a esse ponto”, falou Allie.
Maddy deixou a cabeça cair. Não falou uma palavra sequer.
O pai delas retornou para o carro. Allie foi atrás dele. Ele estava chorando e
não quis abaixar o vidro. E foi embora. Atravessou um cruzamento sem parar e
não olhou para trás.
Mais tarde, no quarto, as irmãs estavam deitadas em uma cama, com as
cabeças sobre o mesmo travesseiro, de mãos dadas.
“Sinto pena dele”, falou Allie.
“Não sinta”, disse-lhe Maddy. “Ele não merece. Ele nos deixou sozinhas com
uma mulher doente.”
“Ele estava chorando.”
“Lágrimas de crocodilo. Papai-crocodilo.”
“Você liga mesmo todos os dias?”, Allie estava curiosa.
“Pelo menos duas vezes.”
“Acha que ela é mesmo a senhoria?”
“Acha que ele é mesmo um crocodilo?”
As duas riram. Allie ficou surpresa com a habilidade de Maddy para guardar
segredos.
“Há muita coisa sobre mim que você desconhece”, falou Maddy. “Você devia
ouvir o que digo para ela.”
Era Allie quem ia a todas as consultas médicas com a mãe. Podia ficar horas
sentada na sala de quimioterapia, tomando copos de refrigerante, procurando
salgadinhos na sala das enfermeiras, lendo revistas em voz alta. Na época, havia
boatos de que Allie se tornaria médica. Quanto a Maddy, ela já sabia que se daria
melhor com traição e vingança.
“Digo que vou matá-la e pendurar seus ossos para secarem em nosso
quintal”, contou Maddy para a irmã. Os joelhos delas estavam unidos. “Que vou
fazer uma sopa com eles.”
Allie estava chocada. “Maddy!”
“Digo-lhe que vou beber seu sangue e colocar uma centena de agulhas em
seus olhos. Se ela é mesmo apenas a senhoria dele, vai colocá-lo no olho da rua.”
A mulher ao telefone não parecia uma senhoria. Parecia mais a namorada
aturdida de alguém.
“Você não devia fazer mais isso”, disse-lhe Allie. “Vai criar problemas para
nós duas, e mamãe e papai ficarão bravos.”
“Quem se importa? Eu odeio os dois.” A mãe delas não parecia perceber
nada – os cortes nos braços e pernas de Maddy, os telefonemas que fazia no
meio da noite. “Quem sabe eles não desaparecem e podemos viver sozinhas
nesta casa…”, falou Maddy. “Talvez o garça-azul apareça, e podemos sair para
viver com ele.”
“Não podemos”, disse Allie. “A polícia viria atrás de nós e haveria um
assistente social que nos colocaria em orfanatos. De qualquer forma, quem iria
cuidar de mamãe?”
“Outra pessoa”, respondeu Maddy, teimosa. “Eu não.”
MADDY PENSOU EM pegar um táxi para a casa de sua irmã, mas na hora
preferiu ir andando. Não gostava de conversas sobre fantasmas, nem sobre
romances fracassados. Parar de beber foi uma boa ideia. Ia seguir em frente com
sua vida. Foi carregando o vestido de madrinha sobre os ombros. Sob a luz do
sol, ele parecia brilhar ainda mais flutuando atrás dela. Quando chegou ao
parque, as coisas lhe pareciam oníricas e verdes. Naquele dia não odiava
Londres, ainda que continuasse quente. Havia o perfume de algo que lhe
lembrava o brejo de sua casa. Era um odor picante, aromático. Estava diante do
lago Serpentine. Havia barcos de mentira na água. As folhas das árvores estavam
verdes, mas suas bordas estavam amareladas. Entrou em um jardim em que
cresciam enormes rosas brancas – círculos que pareciam esculpidos no gelo, com
a diferença de que se mexiam com a brisa.
Maddy ia chegar atrasada, mas não se importava. Tinha feito tudo errado,
assim não via problemas em ser a última a chegar à casa de sua irmã. Parou em
um quiosque e pediu uma soda limonada. Conseguia entender por que alguém
frequentaria aquele parque, andando dia após dia por aquele caminho, cheirando
as mesmas rosas infinitamente. Para um fantasma, caso se acreditasse nessas
coisas, ser amaldiçoado a repetir esse ciclo não era nada mau. Fantasmas não
precisavam de mobília, portanto, era provável que não precisassem de amor
também. Talvez dormissem em ninhos nas árvores, olhando de cima as coisas
estúpidas que os humanos faziam.
Maddy chegou a Bayswater. Quando entrou no apartamento de Allie, as
outras damas de honra já estavam com seus terninhos cor creme; estavam
sentadas em círculo em silêncio; parecia mais um velório do que a prova para
um evento alegre.
“Você não consegue chegar na hora ao menos uma vez?”, perguntou
Georgia.
“Embora você não tenha nada que ver com isso”, respondeu Maddy, “eu me
perdi.” Afinal, era quase verdade. “Onde está minha irmã?”
“Por que você mesma não a procura?”
Allie estava na cozinha, chorando.
“Ora, sinto muito”, falou Maddy. Jogou o vestido sobre uma cadeira e foi
abraçar a irmã. “Sou uma idiota por me atrasar. Não há desculpas para as
besteiras que faço. Sua amiga Georgia já me falou isso, e não tenho como
contra-argumentar com ela. Sinto muito, Allie. Acho que você devia me
renegar.”
Allie aproximou-se. “Ele está doente, Maddy. Já faz um ano. Não queria
deixar você preocupada, e Paul não queria que as pessoas soubessem. Tem
estado tão bravo. Agora ele piorou.”
Maddy notou, pela primeira vez, o barulho que a geladeira fazia. Também
não havia notado que sua irmã parecia bem exaurida. Na verdade, nunca
parecera empolgada com o casamento, apenas cumprindo tarefas.
“Ele foi diagnosticado com um linfoma não Hodgkin, já no estágio quatro
quando descobrimos. Ficava suando à noite e perdera o apetite. Estávamos
tomando banho juntos quando eu senti. Um caroço embaixo do braço. Achamos
que não era nada, uma mordida de inseto que havia infeccionado, ou algo assim,
mas… Na verdade, era um câncer. Espalhado por todo o corpo. Ele não queria
que eu falasse sobre isso. O problema é que… eu ia terminar com ele pouco
antes de ficar doente.”
Maddy foi até a pia pegar uns copos d’água. Dessa forma, Allie não
conseguiria ver seu rosto.
“Ele não foi um bom namorado. Nem sei se algum dia o amei ou se apenas
precisava de tempo para me acalmar depois que ele fez a proposta. Éramos
errados um para o outro, mas seguimos em frente. Eu tinha de cuidar dele
durante o tratamento, não? Não sou do tipo de pessoa que abandona a outra, mas
foi horrível. Muito pior do que com mamãe. Ficou tão enjoado com a
quimioterapia, que nem sabiam se ele sobreviveria a essa fase. Perdeu quase
quinze quilos, perdeu cabelo. Eu tinha de ficar ao seu lado.”
Maddy levou a água até a mesa. “Lógico que sim.”
“Ele estava furioso. Por que ele? Por que nós? Por que tudo? Bem, eu não ia
fazer o que papai fez, certo? Não iria abandoná-lo em meio a uma crise. Então,
no inverno, houve uma diminuição. Não precisaria mais de um transplante de
medula óssea. Estava ficando mais forte. Em março, disse-lhe que era o fim
entre nós, e ele voltou a ficar bravo. Deus, ficou furioso… Havíamos terminado
pouco antes de sua visita em abril. Eu estava apenas fingindo; você deve ter
imaginado durante a prova do bolo. Ia cancelar tudo. Então a doença voltou, e
tudo mudou.”
Nenhuma das irmãs conseguia beber a água.
“Era tarde demais para o transplante”, falou Allie.
“Ele vai melhorar.”
“Você não está prestando atenção no que estou dizendo, Maddy? Não tem
como melhorar. É provável que nem haja um amanhã. Ele foi levado de volta
para o hospital depois do jantar. Está sendo tudo muito rápido. Ele perdeu a
visão. Não consegue mexer as pernas. Está subindo e descendo pela sua coluna.”
Maddy precisava se sentar. “Não achei que isso acontecesse tão
rapidamente.”
“Desculpe-me por te contar dessa forma. Contei às outras quando chegaram.
Georgia e Hannah sabiam, mas só elas. Ah, e mamãe. Ela sempre soube.”
“Mamãe?” Maddy engasgou. “Você contou para ela, e não para mim?”
“Eu queria proteger você.”
“Lógico. Sou tão fraca… Não sirvo para nada mesmo!”
Allie parecia magoada. “Essa não era mesmo minha intenção…”
“Por que nunca consegue me tratar como alguém normal?”, Maddy pegou o
maço de cigarros e acendeu um. Allie nem sequer tentou convencê-la a apagar.
Lá estava Maddy, mais uma vez colocando suas mágoas na frente. Deu uma
tragada e então amassou o cigarro em um prato. “Sou uma idiota”, falou Maddy.
“Sinto muito.”
“Vamos nos casar no hospital. Minha vontade era fazer sob o plátano.
Poderíamos amarrar sinos e laços em todos os galhos.” Foi isso que a esposa
garça fizera para chamar seu marido de volta para casa quando ele se perdeu no
livro de Allie. “Vamos ter de pagar a Orangery – a comida, as flores e tudo o
mais –, sempre soubemos que isso podia acontecer. É por isso que não permiti
que mamãe ou papai pagassem nada.”
“Papai sabe? Deus, Allie, todo mundo sabia, menos eu?”
“Paul não queria que você soubesse.”
“Ele que quis? Ele falou ‘não conte para Maddy’?”
“Não, lógico que não. É que ele é muito teimoso. É do tipo de pessoa que se
recusa a ver os amigos mais próximos, preferindo levar uma velha e solitária
senhora ao teatro ou para jantar. Não pretendia arruinar minha vida com sua
doença. Fez o possível para que eu o abandonasse. Pensei que fosse por ele estar
bravo comigo. Agora entendo que ele queria me libertar.”
“Está me dizendo que ele está morrendo?”, Maddy não parecia ela mesma.
Allie estava com sua roupa de casamento. Havia perdido tanto peso, que o
traje estava dois números menor. “Está”, respondeu.
Georgia espiou pela porta e, então, entrou na cozinha. “Está tudo bem?”,
Georgia abraçou Allie e olhou para Maddy. “Contou para ela?”, Allie fez que
sim com a cabeça. “Não precisamos continuar com a prova de vestidos”,
sugeriu. “Podemos dispensar o alfaiate.”
“De modo algum”, falou Allie. “Quero que tudo continue como se nada
estivesse acontecendo.”
Quando Allie foi até a sala ver como estavam as damas de honra, Maddy
virou-se para Georgia. “Em que hospital ele está?”
“No Bart’s”, falou Georgia. “Hospital St. Bartholomew. É onde ele ficou no
outono. Hannah e eu nos revezamos e fizemos companhia a Allie na época.”
“Eu nem imaginava”, falou Maddy.
“Mas chegou a perguntar?”
“Não tente me culpar por isso. Allie nunca aceita ajuda.”
“Bem, sua mãe vinha e voltava durante a primavera e o verão. Ela tem
ajudado o tempo todo.”
Maddy levou um baque.
“Estou surpresa por ele mesmo não ter lhe contado”, falou Georgia. Pronto,
eis o motivo para a hostilidade. “Achou que eu não soubesse quando os vi juntos
no táxi? A culpa estava estampada no rosto de vocês. Apenas torçamos para que
Allie nunca descubra.”
Maddy fugiu para a sala e vestiu rapidamente o vestido de seda azul. Não se
ouvia uma palavra da boca das damas de honra. Só o alfaiate e seu ajudante
conversavam. O vestido de Maddy não precisava de nenhum ajuste. “Perfeito”,
falou o alfaiate.
“Você está linda”, concordou Allie. “Já pagamos pelos vestidos, portanto é
bom que estejam corretamente ajustados. Vocês podem usá-los em alguma outra
ocasião.”
O alfaiate e seu ajudante começaram a juntar seus estojos de agulhas e
alfinetes.
“Quer que eu fique?”, perguntou Maddy à irmã. Ela já sabia a resposta.
“Eu te telefono se precisar”, prometeu Allie, ainda que ambas soubessem que
ela nunca telefonaria.
Maddy pegou um táxi de volta para o hotel, deixou o vestido na recepção, e
então retornou para o táxi, que a aguardava, e seguiu para o hospital. Havia um
bom congestionamento, e já era quase hora do jantar quando ela chegou. O
hospital era como um labirinto, cheio de gente e confuso. Odiava hospitais.
Ninguém parecia ter nenhuma informação para dar, mas no final Maddy
encontrou o quarto de Paul. Uma enfermeira a interrompeu, insistindo para que
vestisse uma máscara azul. Maddy entrou olhando para baixo, para não
incomodar o primeiro ocupante do quarto, que estava na cama respirando com
grande dificuldade. Já sentia vontade de chorar. Paul estava no segundo leito,
pálido, meio adormecido, com uma agulha de soro em seu braço. Paul fez força
para enxergar.
“Allie?”, perguntou.
Seus nervos ópticos haviam sido afetados e só conseguia enxergar sombras.
Maddy podia ter notado isso no jantar do noivo. Estava mais preocupada em
odiá-lo do que realmente ver o que acontecia. Ele estava muito doente.
“Não. Sou eu”, falou Maddy.
“A irmãzinha.” Paul forçou um sorriso. Ele parecia envelhecido. Sem aquele
ar de garoto. “É normal levar flores e doces quando se visita alguém no
hospital.”
“Não consigo acreditar que você saiba mentir tão bem.” Maddy sentou-se em
uma cadeira dura ao lado de seu leito. Ela pegou a mão dele. Estava mole, fria.
“Devia ter me contado.”
“Contado o quê? Que eu devo ter feito alguma cagada muito grande para
Deus ou para os anjos? Que minha vida estava destruída e que eu estava
arruinando a vida de Allie? Eu estava muito bravo com ela.”
Seu jantar estava em uma bandeja, intocado. Sopa, um refresco sem gás,
torrada com uma cobertura leve de manteiga. Os lábios de Paul pareciam secos e
machucados.
“Ela não me amava”, falou Paul.
“Quer beber alguma coisa?”, perguntou Maddy.
“Scotch e soda. Duplo.”
Maddy ergueu o copinho de papel, e Paul bebeu do canudinho. Ginger ale.
“Fizemos a prova dos vestidos hoje”, falou Maddy. “Ela estava linda.”
“Acho que era melhor dar para ela um balde de tinta preta. Ela não merece
isso.”
Maddy tentou forçá-lo a beber mais, mas ele a afastou com a mão.
“Sabe por que estou tão bravo? Porque sabia que isso ia acontecer, e
aconteceu. Não consigo mexer as pernas, irmãzinha. Não consigo enxergar
você.”
Maddy abaixou a bebida e pegou a sopa aguada. “Você devia comer.”
“Basta”, falou Paul, depois de três colheradas. “Estou vomitando sangue.”
Maddy colocou a bandeja de lado e veio sentar-se ao seu lado na cama;
encostou a cabeça em seu peito. Lá estava o coração, ainda batendo.
“Pobre Allie”, disse Paul. “Uma repetição de sua infância. Uma vida gasta
cuidando de outra pessoa. Acabei fazendo exatamente o que prometi nunca fazer
a ela. Ela está apavorada para caralho.”
“Allie nunca fica apavorada com nada”, falou Maddy.
Paul riu e, de repente, começou a tossir. “Você não a conhece tão bem
assim… Ela está bem apavorada.”
“Pare de falar. Você precisa descansar.”
“Não preciso descansar para morrer. E não me diga que vou ficar bem
novamente.” Paul fechou os olhos. “Pelo menos seja honesta comigo.”
“Da mesma forma que foi honesto comigo?”
“Nunca menti. Você é quem mentiu para si mesma. Se vai ficar aqui nas
minhas últimas horas, o mínimo que pode fazer é me entreter.”
Por que ela não mais o odiava? No máximo, odiava a si mesma por ser
idiota, por ser tapada, por trair Allie. Havia uma veia azulada na cabeça de Paul
que Maddy nunca tinha notado. “Eis uma história real”, começou. “Há um
fantasma em meu hotel.”
Paul riu novamente e, então, virou a cabeça para ela, interessado. Havia
líquidos escorrendo por seus olhos.
“Sério”, continuou Maddy. “Está assombrando um companheiro que fica o
tempo todo no bar.”
“Querida Maddy. Você é tão inocente. Acredita em tudo o que lhe dizem.
Agora só falta me dizer que o diabo está ao meu lado.”
O homem no primeiro leito começou a gemer.
“Fecha a porra da cortina”, disse-lhe Paul. “As pessoas são barulhentas para
caramba quando estão morrendo. Achava que teríamos um pouco de paz aqui.”
Maddy fechou um pouco mais a cortina; no meio do caminho, viu um velho
dobrado de dor. Um calafrio lhe percorreu o corpo. Virou-se para Paul. No outro
lado de sua cama, também havia uma cortina. Ela não conseguia ver o paciente
atrás da cortina, apenas um facho de luz através do tecido. Paul estava
encurvado, com os joelhos no peito. Sentia como se pudesse ver através dele. Foi
só naquele instante que ela se deu conta de que Paul estava realmente morrendo.
Apenas parte dele estava ali.
Nunca conseguira lidar bem com doenças. Sempre teve vontade de fugir
quando chegava próximo a este ponto. Maddy se lembrou das coisas horríveis
que dissera a sua mãe quando era mais jovem – se não fosse câncer, não poderia
ser considerado um problema. Não era nada. Nunca se odiara tanto quanto
naquele momento. Paul não parecia mais a pessoa com quem dormira na última
primavera. Não o reconhecia mais. Sentia vontade de sair para o corredor. De
seguir em frente, passar pela porta, continuar até chegar ao jardim de rosas
brancas no parque. Mas, em vez disso, forçou-se a colocar uma cadeira ao lado
do leito. Tinha medo de machucá-lo ou de derrubar alguma coisa.
“Acho que, depois do que aconteceu entre nós, sou eu quem deve cuidar de
você”, ela falou.
Paul riu, uma breve risada seca, que logo sumiu. “Está maluca? Sou um
merda de um narcisista desesperado à beira da morte. Você não me quer.”
Ele precisou parar de falar; começou a sentir falta de ar. Virou a cabeça para
o outro lado; seu corpo estava frouxo, como seus músculos não estivessem mais
conectados. O câncer se espalhara por sua coluna. O fim foi ridiculamente
rápido. Os ossos mais pareciam cordões, destruídos com beleza. “É ela quem eu
amo. Você sabe disso.”
Ficou deitado ali, em silêncio. Maddy acreditou ter escutado um grito dele.
“Tínhamos uma árvore enorme em nosso quintal”, murmurou Maddy.
“Quando a escalávamos, ficávamos próximas do céu. Mas só respondiam ao som
da voz de Allie. Nunca me escutaram.”
“Certo.” Os olhos de Paul permaneciam fechados, mas ele estava
praticamente sorrindo. “Essa é minha garota. Faça eu me divertir. Sabia que
podia contar com você para isso. Sabia que me contaria uma boa história. Fale-
me mais sobre ela.”
MADDY PASSOU O dia seguinte sozinha. Isso não lhe era novidade. Mas aquele
dia foi diferente. Ela desejou estar com o restante da família. Saiu com jeans,
chinelo e a camiseta com que dormira. A onda de calor não diminuíra, e faltavam
gelo e bebidas geladas em muitos restaurantes.
No bolso de Maddy havia a chave do quarto e alguns trocados. Sentia-se uma
moradora de rua perdida. Conseguiu chegar ao jardim no parque das enormes
rosas brancas, onde se sentou num banco. Um homem dormia no banco em
frente ao dela. O jardim estava silencioso. Maddy não escutava o tráfego da
Avenida Brompton. O tempo parecia passar lentamente. Pensou nas coisas que
fizera, e isso a deixou desconfortável. Quando o homem começou a gemer
dormindo, Maddy se levantou. Caminhou quilômetros. Ao final do dia, seus pés
doíam; no finzinho da tarde, entrou num pub e bebeu uma Coca quente.
Ninguém a incomodou. Algumas pessoas a espiavam, mas logo afastavam o
olhar. Uma mulher bonita, mas malcuidada. Não tinha lavado o cabelo,
deixando-o apenas preso. Suas roupas estavam amarrotadas, e ela parecia
inquieta, como alguém que já tivera dias melhores, em outra época e lugar.
Maddy tentou telefonar para o quarto de hotel de sua mãe para ver se estava
tudo bem e saber como estava Paul, mas Lucy nunca atendia. Deixou seis
recados na recepção. Ligou para o hospital, mas, quando a telefonista atendeu e
perguntou com quem gostaria de falar, desligou.
Já era quase noite quando Maddy saiu do pub. Ficara o dia todo à base de
soda e batatinhas. O ar estava cinzento e denso. Havia uma roseira crescendo ao
lado de um jardinzinho no quarteirão do hotel, com flores que pareciam
vermelho-sangue naquela escuridão profunda. Naquela noite sob o plátano,
quando elas se cortaram, Maddy percebeu que, se decidisse não sentir nenhuma
dor, nada poderia machucá-la. Sua irmã era aquela que tinha esperanças, e ela, a
que não acreditava em nada. Era mais parecida com sua mãe do que imaginava.
Naquela noite, Maddy jantou no restaurante do hotel. E ficou sentada no bar.
“Você fica mais tempo aqui do que Teddy”, disse o barman. “Uma
frequentadora assídua. Ele até recebe suas correspondências aqui.” E mostrou
um envelope. Dentro havia uma fotografia velha de uma garota e um cachorro
sentados num banco. O barman espiou. Alguém havia escrito um agradecimento
no verso da foto.
“Bem, depois desta semana, não serei mais uma frequentadora assídua”,
garantiu-lhe Maddy. “Vou voltar para casa.” Pediu uma sopa e um vinho, mas
bebeu apenas o vinho. A sopa estava aguada e apresentava uns legumes bem
cortadinhos flutuando. Mas estava sem apetite.
“Ouvi falar que nos livramos de nosso fantasma”, continuou o barman. “Não
tenho a menor ideia do que aconteceu, mas é um milagre. Certa vez, Teddy
tentou dar um tiro nele, mas a bala o atravessou. Pelo que sei, fantasmas são a
essência filtrada de uma pessoa. Uma órbita de iluminação vibrante. Acho que é
disso que todos somos feitos.”
“Você parece um crente falando”, disse Maddy.
“Eu o vi uma vez”, confessou o barman. “Zanzando pelo corredor. Perdido
como um rato. Pobre homem. Acho que, para sua felicidade, ele finalmente
seguiu em frente.”
Quando Maddy subiu, passou a mão na parede tentando encontrar o buraco
de bala no gesso ao lado da porta do 708. Entrou em seu quarto, tirou toda a
roupa e colocou seu vestido azul. Como o espelho era pequeno, precisou subir na
cadeira da escrivaninha. O vestido lhe serviu; Allie escolhera bem. Ela conhecia
bem Maddy. A cor era perfeita.
Maddy parecia não precisar de ninguém, mas seu âmago estava destruído,
feito de ossos e fitas pretas, sangue e escuridão. Adormeceu no quarto quente e
gorduroso, com o abajur aceso, ainda com o vestido de madrinha. Em seu sonho,
escutou um sussurro; um homem falava e ela era guiada por sua voz. Havia uma
trilha de pedra e ela a seguiu até encontrar Paul. Estava embrulhado com uma
fita branca e seus olhos também estavam brancos. Falou: “Enterre-me embaixo
do plátano”. No sonho, Maddy estava descalça e em pé sobre pedras; seus pés
começaram a sangrar. Sentia vontade de responder: “Lógico, faço tudo que você
pedir”, mas não conseguia falar. Estava caindo em pedaços. Uma mão, um
braço, uma perna. Queria saber se conseguiria se remontar usando uma linha
vermelha e agulhas. Queria saber se teria a força para erguer a pá e abrir a cova
que ele pedira. Havia rosas brancas crescendo, mas ela não conseguia vê-las no
escuro. Simplesmente tinha de acreditar que estavam lá.
ALLIE ESTAVA AO lado da cama dele quando aconteceu. Eram 5h22 da manhã.
Olhou para o relógio, da forma que as pessoas olham para coisas simples,
incomuns, no exato instante em que tudo parece tão irreal. Lá estava a mesa. Lá
estava o copo d’água com um canudinho. Era aquele momento do dia de cor
prateada entre a noite e a manhã, quando o céu ainda está escuro, mas as luzes
ricocheteiam por toda a cidade. Estava silencioso, como quando a primeira neve
começa a cair. Mas era 15 de agosto, a manhã seguinte ao seu casamento. Ela se
casara uma semana antes do programado.
No dia do casamento, o médico chamara Allie até seu consultório e dissera
que achava que Paul não duraria mais de vinte e quatro horas. Seus sinais vitais
estavam se apagando e ele não respondia; as doses de morfina que tomava eram
tão altas, que chegavam a ser tóxicas. Allie agradeceu ao médico e ficou lá
sentada, sem conseguir se mover.
“Não precisa me agradecer”, falou o médico. Seu nome era Crane. Tinha um
bom coração e não deveria ter escolhido aquela profissão. “Pode me bater, se
quiser.”
Naquele momento, Allie queria apenas usar o telefone dele. Ligou para os
pais de Paul pedindo-lhes que fossem imediatamente para Londres. Sua mãe
ficaria arrasada. Ao longo de todo o outono, quando Paul passava pela
quimioterapia que o deixou tão doente, ele tinha vontade de ir para casa nos fins
de semana. Então, antes do início do verão, quando a doença voltou de repente,
ele ansiava mais do que nunca por aquelas visitas. Era uma viagem cansativa,
mas não se importava. Muitas vezes, era Allie quem tinha de dirigir. Antes, Paul
nunca se permitia andar no banco do passageiro, mas agora chegava a cochilar
no caminho. Foi aí que ela começou a compreender o que estava acontecendo.
Foi aí que ela começou a se apaixonar por ele.
Ela não tinha mentido para Maddy; não o amava antes disso tudo. Quando
aceitou sua proposta de casamento, fizera-o apenas porque lhe parecia ser o
passo seguinte em sua vida. Parecia ser a hora certa, ainda que não fosse o
homem certo. Paul, de fato, era uma pessoa difícil e egocêntrica. Estava sempre
na defensiva. O charme que a atraíra de início tinha sumido. Allie queria tanto
sair daquele relacionamento, que nem se importava com o fato de ele ficar
zanzando por aí quando se sentia furioso. E então, naquele verão, depois da
recaída, quando ela menos esperava, tudo havia mudado.
Naquelas viagens para Reading, Paul, com frequência, vomitava pela janela,
ou era preciso pararem no acostamento, ou numa loja de chás, porque ele ficava
tão enjoado que não conseguia suportar o movimento do carro. Mas, assim que
chegava à cidadezinha onde fora criado, ficava feliz. A casa era chamada de
Casa Lilás, e sua família morava lá havia anos; nada muito sofisticado, apenas
uma pequena e bonita casinha de campo, com um chalezinho nos fundos da
propriedade, rodeada por uma cerca de madeira. Havia, de fato, uma fileira de
lilases antigas e enormes no jardim. Algumas violeta, outras roxas, algumas de
cor creme. No verão, contudo, tornavam-se apenas uma cerca viva de folhas
verdes em forma de coração.
Paul era um ornitófilo, algo que Allie desconhecia até aquele momento.
Como se constatou depois, havia muitas coisas que ela não sabia. Por exemplo,
que ele era gentil. Assumia uma gentileza para falar com pessoas velhas sempre
que paravam para tomar um chá durante suas viagens, discutindo sobre o tempo
ou sobre a situação das coisas no mundo. Gostava de ir até uma banca de frutas
para comprar uma cesta de maçãs para sua mãe, quando eles vinham visitá-lo.
“Pegue as mais bonitas”, gritava para Allie, quando já não mais conseguia sair
do carro para escolher, ele mesmo, as frutas.
“Com certeza, essas são as melhores maçãs do mundo”, insistia quando ela
voltava para o carro. “Quando eu tinha dez anos, era vegetariano”, contou-lhe.
“Era mesmo?” Allie ficou surpresa. Ele gostava de um churrasco e de uns
assados.
“Meu avô era e eu queria agradá-lo. Era um senhor muito legal. Um médico.
Eu o admirava demais. Tudo que ele fazia, eu copiava.”
“Que mais você fazia quando tinha dez anos?”, perguntou Allie. Paul já
estava com problemas nos olhos.
“Eu sonhava com você”, falou.
“Que besteira…” E riu.
“Futebol”, disse. “Cozinhar.”
“Não.”
“Ah, sim. Panquecas de geleia, pudins e tortas de maçã. Ensopado de
legumes. Eu cozinhava bem. E sonhava, sim, com você”, completou. “Acredite
ou não, é verdade.”
Assim que chegavam, Paul se sentava na grama da Casa Lilás, empacotado
num suéter, um cobertor de lã cobrindo-o. Ele conseguia identificar quase todos
os pássaros pelo canto. Era fanático por coitadinhos, pássaros que as outras
pessoas consideravam peste: corvos, pegas e francelhos. Por outro lado, podia
ser bem sentimental; adorava pombos selvagens e dizia que tinham o canto mais
doce de todos. Na Casa Lilás, espalhava sementes e migalhas de pão e ficava
sentado na grama, o mais imóvel que conseguia, enquanto os pássaros ficavam a
seu redor.
“Ele tem uma audição perfeita”, contou Frieda a Allie, uma noite, enquanto
preparavam o jantar na cozinha.
“Eu não sabia disso”, falou Allie.
Embora a casa não fosse chique, era bastante agradável, com os detalhes de
uma época em que os construtores eram artistas. Tinha cornijas intrincadas e
frontões de lareira, emolduradas por corujas esculpidas; havia até uma pia de
cerâmica na cozinha e um fogão de seis bocas. Sobre uma peça de pinho, havia
um vaso enorme de flores tiradas do jardim da cozinha. Tudo exalava um cheiro
doce.
“Ele deveria trabalhar com música”, falou a mãe de Paul.
Ela estava cortando legumes na pia, quando, de repente, parou; parecia ter se
recolhido para o silêncio. Frieda se inclinou, sem falar nada, e caiu de desespero.
Soluçava sem emitir nenhum som, tampouco derramando lágrimas, e a torneira
continuava aberta.
Allie se aproximou da mãe de Paul e abraçou-a. Sentia que só elas duas
conseguiam entender aquilo. Só elas sabiam o que era ver Paul sentado no
jardim, sumindo aos poucos.
“Isso não pode acontecer com ele”, falou Frieda.
Havia pedaços de cebola e cenoura na pia. Quando Allie fechou um pouco os
olhos e espiou o cômodo, através do vaso de lilases cortadas, tudo parecia roxo.
“Sinto muito, sinto mesmo”, disse Allie.
“Como posso viver neste mundo sem ele?”, lamentou-se Frieda. “Ele não é
como outras pessoas, sabe? Ele esconde sua essência, porque pode ser
facilmente magoado. E agora é o fim. Não há mais volta.”
Ficaram lá chorando, então se recompuseram e voltaram a preparar o jantar.
Eram parecidas nesse sentido; mulheres que aproveitavam o máximo das coisas,
até mesmo os próprios erros. Naquela noite, cozinharam um dos pratos favoritos
de Paul. Picadinho de carne, mas que ele não conseguiu nem dar uma garfada.
Pesado demais, ainda que fosse sua comida favorita. Adorou sentir o cheiro e
gritou da varanda: “Graças a Deus que não sou vegetariano, minhas queridas”.
Mas, às vezes, o aroma de uma coisa lhe bastava; ele nunca conseguiria digerir a
carne. Frieda também preparou creme de ervilha. Isso foi melhor. Talvez
conseguisse dar umas colheradas. Arroz com açafrão. Ele amava a cor e era
apaixonado por cozinha indiana. Uma musse de morango com creme. Só ver a
sobremesa já lhe era suficiente. O pai de Paul o ajudou a entrar de volta em casa;
ele estava muito fraco para se sentar à mesa de jantar e assim foi até o sofá na
varanda e esticou-se lá, exausto da viagem feita pela sala.
“Mãe, não posso acreditar que você preparou tudo isso!” Allie o escutou
falando quando Frieda levou seu jantar numa bandeja. Ela o adorava por isso,
pela forma como gostava de seus pais e de pessoas idosas em geral, pela
educação que ela não conhecia até então, pela forma como se animava ao falar
de futebol, de seu avô e daquela casa onde fora criado. Finalmente, ela o amava,
quando já era tarde demais. Ele nem sequer tinha energia para sair do sofá.
“Você não precisa ser tão boa comigo”, disse para sua mãe. “Não mereço isso.”
Nessas visitas, dormiam juntos numa cama de solteiro no quarto de
hóspedes. Antes era o quarto de Paul, e todos os seus pertences ainda estavam lá,
troféus e placas. Sempre pedia que deixassem a janela aberta para que pudesse
escutar os pássaros.
“Foi aqui que sempre sonhei com você”, disse a Allie quando foram para a
cama.
“Mentiroso”, respondeu. E o abraçou, com muito cuidado.
“Passei toda a minha vida olhando pela janela, querendo fugir, e agora tudo
que quero é ficar aqui novamente.”
ALLIE NÃO TINHA dúvidas de que Frieda sabia que a hora do falecimento de
Paul estava próxima. Trabalhou como enfermeira na área de oncologia, e seu pai
fora médico rural. Assim que lhe deram o diagnóstico, sabia que seria difícil
uma recuperação. Frieda não questionou o fato de Allie e Paul se casarem
naquele mesmo dia. Apenas perguntou o que podia fazer para ajudar. Allie
sugeriu que trouxesse flores. Frieda desejava que fosse a temporada de lilases;
desejava que tivesse mais tempo. Mas sempre fora muito prática. Acordou o
marido, que cochilava, e falou: “Bem, precisamos nos despedir”.
Allie telefonou para o escrivão-superintendente, que iria realizar a cerimônia,
e desculpou-se por precisar dele com tanta urgência. Então ligou para sua mãe
no hotel e pediu que seus pais viessem o mais rápido possível.
“Não traga ninguém”, disse Allie à mãe. “Não consigo lidar com ninguém
mais.”
Quando terminou de fazer os telefonemas, o doutor Crane apareceu e sentou-
se a seu lado, pegando-lhe a mão. Ele sabia que seria naquele dia.
“Só se fosse muito burra, eu não saberia”, falou Allie. “Quero dizer, a mãe
dele foi enfermeira e disse-me que a situação era terrível. De qualquer forma,
trouxe a roupa do casamento. Mas não peguei um vestido com véu e todas
aquelas rendas. Isso seria babaquice.”
“O amor não tem lugar no aqui e agora”, falou doutor Crane.
Allie olhou para ele, surpresa. Teria ela dito que amava Paul ou ele
simplesmente sabia? Era uma coisa engraçada para um médico dizer. Talvez ela
não tivesse escutado direito. Não conseguira dormir nem um segundo à noite.
Trajava calças largas, uma camiseta preta e sandálias. Estava quente, mas Allie
estava com um suéter cinza jogado sobre a camiseta. Sempre que estava cansada,
como naquele momento, sentia frio. Seu cabelo claro estava amarrado num rabo
de cavalo. Perdera sete quilos sem fazer nenhum esforço. Isso nunca lhe
acontecera. Nunca havia se sentido assim.
“Mas estou vivendo esta situação”, respondeu ao médico.
Ficaram ali sentados por um tempo e, então, voltaram para o quarto de Paul,
para que o doutor Crane pudesse verificar os sinais vitais. Antes de sair, o
médico colocou uma mão no ombro de Allie e ela quase não percebeu.
“Obrigada”, conseguiu dizer.
Ela saiu correndo para usar o banheiro feminino. Não queria deixar Paul
sozinho nem um instante, assim, urinou rapidamente, lavou as mãos e voltou
logo para o quarto. No hospital, não havia noite ou dia definidos, mas era aquele
período entre turnos de funcionários, portanto estava silencioso. O corredor
parecia um mundo no cosmos, algum lugar entre universos. Allie parou do lado
de fora do quarto de Paul, da forma que costumava parar à porta do quarto de
sua mãe antes de ir para cama. Fechava os olhos e recitava um feitiço secreto
que inventara, um sobre o qual nunca contara para Maddy, para dissipar seus
medos. Tinha pavor de que alguém morresse sob sua vigília. Tinha sonhos com a
Morte e às vezes até escutava a voz dela. Isso a acordava e, nessas noites, sua
pele ficava fria. Pulava da cama e ia espiar o quarto de sua mãe para se certificar
de que ainda estava viva. Talvez isso que ela proferia fosse mais uma oração do
que um feitiço.
Farei qualquer coisa. Abrirei mão de qualquer coisa. Apenas não permita
que ninguém morra hoje.
Quando Allie voltou para o quarto, Paul estava agitado, virando para lá e
para cá, com dor. Algumas vezes, o fim era tão rápido que chocava, foi o que a
mãe de Paul disse a Allie. E doutor Crane também alertara para que não tivesse
nenhuma expectativa quando o câncer retornasse. A doença era assim:
misteriosa, persistente, criando regras próprias. Bem na hora que se começa a
acreditar que pode durar para sempre, tudo estoura. Não havia mais necessidade
de usar uma máscara; não havia mais nada que ameaçasse a saúde dele.
Paul ardia de febre. Estava lindo, iluminado por dentro. Uma estrela cadente.
Allie pegou uma toalhinha e colocou-a sobre sua testa. Conseguia sentir o calor
pelo pano dobrado.
Não permita que ele morra hoje.
“Minha querida Allie”, disse Paul, ao notar a presença dela no quarto, “vá
para casa. Deixe-me aqui.”
Allie se sentou na borda da cama. “Nós vamos nos casar”, falou.
“Você pode ir embora”, disse Paul. “Já cumpriu sua pena. Sou um homem
mau.”
“Sim, eu sei. Mas gosto de você mesmo assim.”
Ele não deu nenhuma risada, contrariando as expectativas dela. “Muito mau,
Allie. Fiz uma coisa que não posso lhe contar, mas fiz porque queria apenas
magoá-la. Não podemos nos casar.”
Ela descobriu quando viu sua irmã na loja de roupas; sempre conseguia
desvendar Maddy, ainda que fosse a única.
“Não importa o que você fez. Vamos nos casar hoje.”
“Pensei que fôssemos nos casar no dia 20.”
Allie não falou nada.
“Entendi”, disse Paul. “Minha amada.”
O homem no leito ao lado do de Paul, aquele pelo qual os visitantes tinham
de passar a fim de chegar à sua cama, havia morrido. O outro homem atrás da
cortina, aquele próximo da janela, tivera a perna amputada. Era um jovem norte-
americano, um universitário de Nova Jersey cuja família logo chegaria. Mas, até
aquele instante, não recebera visitas. Quando Paul fechou os olhos, Allie foi ver
como estava seu colega de quarto, Rob Rosenbloom. Rob estava acordado.
Também recebia morfina na veia.
“Oi”, falou. “Como está?”
Rob tinha vinte e poucos anos. Era comprido e magro, com cabelo escuro
espetado e olhos azuis. Estudava na Escola de Economia de Londres quando
sentiu o caroço em sua perna. Era fanático por esportes e havia entrado numa
equipe do subúrbio da cidade, por isso achara que o inchaço fosse um músculo
estirado. Não era.
Contou a Allie que Paul falava sozinho o tempo todo. Estava perturbado,
mas Rob não lhe contou essa parte. Paul gritava à noite e Rob precisava ficar lá
deitado ouvindo tudo.
“Vamos nos casar agora de manhã”, falou Allie. “Aqui. Neste quarto. Sei que
parece uma imposição, mas espero que não se importe.”
“Lógico que não me importo.”
“Sim, bem, não haverá muita gente, portanto não devemos fazer muito
barulho. Apenas a mãe e o pai dele e os meus pais. Mas sei que vamos atrapalhar
para caramba a sua recuperação.”
“Ele sente muito por todas as coisas que fez”, falou Rob. Rob tinha um corpo
atlético, com exceção da perna, é lógico, e um rosto limpo, sem manchas.
Aparentava ser ainda mais jovem do que registrava sua identidade. Trabalhava
para uma empresa em Manhattan que permitira que fosse viver seis meses em
Londres, aceitando a bolsa de estudos que lhe fora oferecida. “Ele acha que não
merece você.”
“Você lê pensamentos?”, perguntou Allie. “Como sabe tudo isso sobre Paul?
Ele nunca fala nada sobre seus sentimentos.”
“Eu o escuto.” Rob olhava para ela como se a conhecesse. “Ele sente muito,
Allie.”
“Quer que eu pegue seu café da manhã? Posso chamar a enfermeira. O
mingau daqui é bom, embora eu não recomende os ovos.”
“Eu estou bem”, respondeu Rob.
“Sim, lógico. Eu também.” Allie riu. “Ambos estamos bem.” Seu nariz
escorria sem nenhum motivo aparente. “Nunca achei que fosse me apaixonar.
Não achava que fosse capaz disso.”
“É um dia bom para se casar”, falou Rob. “Se eu tivesse duas pernas, me
ofereceria para ser padrinho.”
Allie ficou abalada. Foi até Rob, inclinou-se e beijou-lhe a testa. Seu cheiro
era de menino, de alguém que não deveria estar numa cama de hospital.
“Ele sente tanto, que você não acreditaria”, falou Rob.
Quando Allie se levantou, seu nariz escorria e seus olhos derramavam
lágrimas em profusão. “Espero que não se importe.” Assoou o nariz. “Estou um
caco.”
Rob riu. “Acho que sou eu quem está em cacos.”
“Ah, sinto muito.”
“Não por isso”, disse Rob. “É agradável ter uma mulher bonita aqui…”
Allie ligou para a enfermeira para trazer o café de Rob.
“Paul está dormindo”, contou à enfermeira, que trouxera uma bandeja para
Paul também e então a deixara numa prateleira. Era uma refeição simbólica de
purê de maçã e um ovo cozido. Paul parou de comer assim que entrou no
hospital. Seu corpo se fechou involuntariamente, contara o doutor Crane: olhos,
sistema digestivo, músculos, ossos, sistema respiratório, cérebro.
Contudo, não era um sono real. Allie percebeu isso quando foi para a cama
ficar a seu lado. Era um sono dopado, um sono distante. Os olhos estavam
abertos. Era o último tipo de sono; quando não se está mais totalmente acordado,
e nunca mais estará. Estavam colados um ao outro. Paul falou alguma coisa, mas
Allie não conseguia escutá-lo, nem mesmo quando encostava a orelha em sua
boca. Achou que fosse algo sobre um pássaro-das-cem-línguas. Embora não
quisesse, ela havia se apaixonado. Qualquer informação sobre ele, por menor
que fosse – sua predileção por pombos selvagens, por exemplo –, agora parecia
o fato mais importante do mundo. Queria guardar esses fatos em sua memória
para sempre. Queria estudar pombos, seus hábitos, sua estrutura óssea.
“Hoje é nosso dia”, disse Allie a Paul. Sentiu um inchaço absurdo em sua
garanta. Como uma bola de golfe ou um pedaço redondo de osso.
Os pais dela chegaram primeiro. Pareciam arrasados. A mãe de Allie não
havia dormido e o rosto do pai parecia inchado e vermelho. Bob Heller era muito
comedido e fleumático. Se ele começasse a chorar, Allie ficaria destruída. Não
conseguia pensar em ninguém mais. Foi por isso que não convidou sua irmã.
Queria que tudo fosse muito simples. Era a única maneira de conseguir enfrentar
aquela situação. Um minuto de cada vez.
Lucy parara no apartamento da filha para pegar o terno de casamento da
noiva. Trouxera para Allie também um colar de contas azul-turquesa que
pertencera a sua mãe, um empréstimo. A novidade era um par de sapatos baixos
que Lucy comprara no caminho, ao entrar rapidamente na The French Sole, já
que Allie não tivera tempo para pegar os sapatos que pedira.
“Não pretendia me vestir com muita pompa. Ia apenas vestir isso”, disse
Allie sobre sua calça e o suéter. “Ninguém dá a mínima. Não precisamos mais
usar máscaras aqui. Já passou desse ponto.”
“Use o terno de casamento”, gritou Rob, por trás da cortina. Não conseguiu
evitar bisbilhotar. Estava a menos de um metro de distância.
“Quem diabos é esse?”, o pai de Allie queria saber.
“Rob Rosenbloom. Ele é de Nova Jersey. Ele não sabe que não é muito
educado ficar gritando num quarto de hospital. Sabe, Rob? Nós, americanos, não
temos educação.”
“Estou apenas tentando ajudar”, falou Rob. Os Hellers fizeram a volta para
se apresentar e desculpar-se por confiscarem o quarto.
Allie decidiu aceitar a sugestão de Rob; afinal de contas, ele era um
observador de fora e era bem provável que tivesse uma visão racional do que
parecia a Allie um comportamento insano. Um casamento num hospital… quem
fazia isso? Uma conversa com seus pais como se aquele fosse um dia qualquer e
estivessem discutindo sobre o guarda-roupas dela em vez de lamentar no leito de
Paul. Allie foi até o vestiário feminino. Tirou as roupas e ficou se olhando no
espelho. Uma mulher apareceu e ficou assustada.
“Vou me casar”, falou Allie.
Estava de sutiã, calcinha e meias de lã. Parecia muito desgrenhada para ser a
noiva de alguém. Seu terninho branco estava sobre o sofá. A mulher se
aproximou e a abraçou. Estar em um hospital era como estar em um front; não é
necessário ser próximo de alguém para conhecer essa pessoa. A vida de uma
pessoa era formada de medicamentos, xícaras de chá no refeitório, pesar e
desastre. Isso bastava.
“Deus a abençoe”, falou a mulher.
“Obrigada”, disse Allie, afastando-se.
Outra mulher foi usar o banheiro enquanto Allie continuava a se arrumar.
Quando saiu para lavar as mãos, Allie estava vestida. Tinha até penteado o
cabelo. A mulher fez um sinal de aprovação com a cabeça. “Muito bonita.”
Allie agradeceu e juntou suas roupas. Qualquer demonstração de gentileza
era muito poderosa. Voltou para o quarto de Paul. Os pais dele haviam chegado
enquanto Allie se vestia. Frieda estava sentada numa cadeira ao lado da cama.
Bill falava baixinho com o pai de Allie. Antes daquele verão, Allie nem sabia
que Paul telefonava para os pais todos os domingos. Podia notar a diferença
entre o trinado de um canoro e o canto de uma cotovia, já que Frieda lhe
ensinara. Era mimado e egoísta, mas também um filho obediente, que amava a
mãe e sempre tinha vontade de ir para casa, para a Casa Lilás. Diferentemente de
Allie, ele sabia amar uma pessoa.
“Você nunca irá encontrar outro homem como Paul”, disse Frieda a Allie
num daqueles fins de semana em que Paul não estava nada bem. “O amor pode
ser uma coisa complicada, mas também pode ser simples”, falou.
Allie rira. “Paul é uma pessoa muito complexa.”
“Mas amá-lo é bem simples”, comentou Frieda.
Allie escutou o que sua futura sogra lhe dissera. Para amar alguém tão
complexo, era preciso estar comprometida com essa única emoção – o modo de
amá-lo –, não importando o que acontecesse. Dessa forma, podia ser realmente
simples.
“Então é isso que vou fazer”, decidira Allie. A mãe de Paul, que parecera
distante quando haviam se conhecido, uma mulher cautelosa, que vira Paul
namorar dezenas de garotas, abraçou-a com força.
“Sinto muito por isso”, disse Frieda depois, envergonhada por sua
demonstração de emoção. “Juro que nunca vou chorar na frente de você
novamente.”
E não havia chorado, até aquele momento. Ver Frieda sucumbir foi demais.
Allie saiu do quarto de Paul e voltou para o corredor antes que alguém a visse.
Recompôs-se. Disse para si mesma que aquilo era uma peça de teatro em que ela
tinha uma personagem e que iria interpretá-la corretamente. Não ficaria histérica
nem sairia correndo, ou faria algo que pudesse magoar os pais de Paul. Parou
numa cabine telefônica, ligou para Georgia e solicitou que ela fosse uma
testemunha.
“Estarei aí em dez minutos”, falou Georgia.
Quando Allie voltou para o quarto, Frieda estava assoando o nariz. “Minha
querida”, disse. Frieda havia trazido um buquê de rosas brancas. E veio abraçar
Allie. “Lindo terno”, falou Frieda. “Perfeito.”
“Seda”, falou Allie. Parecia uma insanidade ter uma conversa normal.
“Pense em todos aqueles bichos-da-seda trabalhando ininterruptamente em
algum lugar. Agora você vai se casar. Paul será um homem casado.”
Pensar no que estava acontecendo foi devastador para Frieda e ela
desmoronou novamente. Parecia delirante. Sussurrou para o marido que havia
alguém encostado na parede. Aquilo que ela vira em sua infância. Seu pai fora
médico e ia de casa em casa. Frieda estava convencida de que era o Anjo da
Morte.
“Nós não acreditamos nisso, querida”, falou seu marido, com delicadeza.
“Nós acreditamos no além.”
A enfermeira entrou e expulsou todo mundo do quarto para que pudesse
cuidar de Paul.
“Sou enfermeira”, falou Frieda. “Eu posso ficar.”
“Com seu filho, não”, disse-lhe a enfermeira. “Não é uma boa ideia. A
senhora pode retornar assim que eu terminar. Vou ser rápida. Prometo.”
Não foi fácil convencer Frieda a sair.
“Vamos lá, vamos pegar uma xícara de chá”, disse seu marido. “Pedimos
para viagem e trazemos para cá, e aí ela já terá terminado.”
Antes de sair, Frieda se virou para Allie. “Acho que eles estão certos. Não
quero que você veja isso no dia do seu casamento. Venha conosco, Allie.”
“Eu estou bem”, respondeu Allie.
Afinal de contas, Allie já vira coisas terríveis. Vira sua mãe após a cirurgia,
incapaz de sair da cama. Vira as frágeis veias azuladas em seu crânio quando ela
tirou a peruca. Não havia como ficar desconsertada ou com nojo. Allie nunca
fora sensível; isso lhe fora privado. Quando os outros saíram, ela permaneceu.
Sentou-se ao lado de Paul e segurou-lhe a mão.
“Oi”, falou ele.
“Olá”, respondeu Allie.
A enfermeira, primeiro, trocou a roupa de cama. Fazia dias que ele vinha
defecando na cama. Era tão difícil movê-lo, que ninguém mais se preocupava, e
uma fralda podia esfolar sua pele; além disso, Allie não permitiria que fizessem
isso com ele. Nada de fraldas. Mesmo que ele não ficasse sabendo ou não tivesse
forças para se importar, ela cuidava dele. Ele não havia comido nada naquela
semana, assim não havia muita coisa em seu corpo, apenas um gotejamento
minúsculo, como o de uma raposa.
A intenção de Allie era dizer para ele, na suíte do Hotel Pulitzer em
Amsterdã, que estava tudo acabado. A senhora Ridge pagara a viagem. Por esse
motivo haviam ido de primeira classe. Allie tinha ensaiado o que dizer. Estava
pronta para se despedir, mas de repente surgiu uma garça sobre o poste ao lado
deles.
“Ele sabe que você escreveu sobre ele”, falou Paul. “E veio prestar sua
homenagem.”
Paul adorava a atitude dos holandeses em relação às garças. As pessoas
deixavam as janelas abertas, recebendo-as em suas residências. Ter uma garça
dentro de casa era sinal de sorte. Alimente-a com leite, pão e cerveja, e ela ficará
eternamente grata.
“Acho que devemos nos mudar para cá”, falou Paul. “Seríamos felizes em
Amsterdã. Moraríamos próximos do rio. Deixaríamos todas as janelas abertas e
permitiríamos que as garças voassem em nosso apartamento. Estaríamos dando
vida a seu livro.”
ALLIE OLHOU DIRETAMENTE nos olhos de Paul. Aquela era a vida deles agora.
A enfermeira o banhou um pouco e então foi cuidar do cateter. Paul fez uma
careta; dor extrema.
“Vou acabar com essa mulher”, falou.
Allie sorriu. “Se pudesse, é bem provável que tentaria fazer isso.”
“É melhor você ir embora.” Os olhos de Paul estavam abertos.
Ele estaria realmente acordado? Allie sempre torceu para se casar com um
homem de olhos azuis, e aí conheceu Paul. Ele deve ter falado com sua mãe
sobre as rosas que ela levara ao Palácio de Kensington. Deve ter dito: “Quando
eu me casar com aquela mulher, ela precisa ter rosas brancas”.
“Aposto que é verão”, falou Paul. “Faça o que é melhor para você: vá
embora.”
“Acho que vou ficar um pouco. Sabia que vamos nos casar?”
“Vá embora e não se sinta culpada.”
“Não posso”, falou Allie. “Eu me apaixonei por você.”
“Pronto”, falou a enfermeira. Olhou o soro e aumentou a dose de morfina. Os
olhos de Paul se fecharam.
O escrivão chegou e prometeu fazer uma cerimônia breve. Quando Georgia
entrou, ela abraçou Allie e, então, segurou o buquê de flores para que a amiga se
ajeitasse na cama com Paul, de forma que pudessem ficar próximos enquanto a
casamento se desenrolava. Quando o escrivão fez o pronunciamento de que
ambos estavam livres para se casar legalmente, Allie assinou o contrato de
matrimônio. O pai de Paul segurou a mão dele e tentou ajudá-lo a fazer um X,
mas no final Bill teve de assinar o nome do filho. Lucy e Bill depois assinaram
como testemunhas. Frieda precisou se sentar e deixou a cabeça cair.
E então acabou; estavam casados.
“Fico feliz por você ser a garota por quem ele se apaixonou”, disse Frieda,
quando conseguiu se recompor. “Já lhe disse isso? Devia ter dito antes.”
Do outro lado da cortina, Rob Rosenbloom chorava em silêncio, mas os
outros fingiram não escutá-lo. Allie colocou a aliança de ouro 22 quilates que
haviam escolhido, e fez o mesmo com a aliança de Paul. O anel era grande
demais, assim foi preciso colocar no dedo médio. Foi ele quem escolheu o de 22
quilates. “Tem de ser ouro de verdade”, falara na joalheria. “Você não merece
essa porcaria de 18 quilates.”
Georgia se aproximou para abraçar Allie, assim que ela e Paul haviam se
tornado oficialmente marido e mulher. Ainda segurava as rosas brancas da
amiga. “Extraoficialmente, fui eu quem pegou o buquê. Ou seja, sou a próxima.”
Rob solicitara a uma enfermeira que comprasse um bolo numa confeitaria
das redondezas. O bolo foi entregue em fatias finas sobre pratos plásticos da
lanchonete. A família abriu a cortina para que Rob pudesse participar.
“Não sabia que havia uma pessoa linda escondida aqui”, falou Georgia.
Rob deu um sorrisinho e aceitou seu pedaço de bolo. Seu nariz e olhos
estavam vermelhos. Havia soro sendo injetado em seu braço. Às vezes, acordava
no meio da noite convencido de que sua perna ainda estava lá, contudo
dormente. Todos elogiaram o bolo que ele pedira. Era um bolo amarelo coberto
de algodão-doce. Simples, assim como Allie desejava.
“Como você sabia?”, perguntou ela a Rob.
“Sou sensitivo”, respondeu, mas ele escutara todas as coisas que ela queria,
no meio da noite, quando Paul falava durante o sono, em meio a dor.
Allie deu uma única mordida no bolo, e então Paul gemeu e ergueu os
joelhos.
Allie se lembrou da noite em que seguira sua irmã até o brejo. Para avistar o
garça-azul, teve de entrar na água. “Leve-me para longe daqui”, murmurou.
Ficaram se olhando por um bom tempo e, naqueles instantes, Allie acreditou que
ele a levaria consigo. Mas, quando saiu voando, deixou-a lá, parada na água,
congelando.
“Acho que todos merecemos um descanso”, falou Lucy Heller. “Reservei um
quarto para vocês em nosso hotel”, disse aos pais de Paul, que agradeceram, mas
disseram que estavam bem. A querida amiga deles, Daisy Ridge, tinha uma casa
em Kensington e os convidara para ficar lá, porém, para falar a verdade,
preferiam dormir no corredor do hospital. Frieda não estava disposta a
abandonar o filho.
“E se ele precisar de mim?”, perguntou a Allie. Ela parecia uma garotinha
falando.
“Lógico que vocês podem ficar. A enfermeira vai lhes trazer cobertores e
tudo o mais que precisarem.”
Os pais de Allie lhe deram um beijo de despedida. Seu padrasto – Bill agora
se transformara nisso – sugeriu que fosse para casa dormir algumas horas, mas
Allie não podia fazer isso. Frieda compreendeu.
“Vá pegar um chá, não vai demorar muito. Ou uma sopa.”
Frieda havia trazido um pequeno gravador e uma fita com cantos de
pássaros. “Achei que ele pudesse gostar disso.”
Allie abraçou sua sogra. Não queria ir, mas Georgia insistiu.
“Só uns minutos”, prometeu Georgia.
Allie foi até a lanchonete conduzida por Georgia, deixou que Frieda ficasse
de vigia. A cada minuto. O almoço de casamento que teriam no Orangery seria
salmão frio com creme de leite, salada com framboesa, nozes e molho vinagrete,
terrina de legumes assados, cordeiro e batatinhas. Georgia acabou tendo de pedir
um bule de chá e dois pedaços de bolos de passas amanhecidos, com uma
cobertura respingada, uma tigela de sopa de legumes e biscoitos de trigo.
Ignoraram a sopa e ficaram com o chá e com os pedaços de bolo
terrivelmente açucarados. Allie deu duas mordidas. Georgia se ofereceu para
passar a noite com ela. Durante todo esse tempo em que Paul ficou no hospital
para tratamento, Georgia costumava deitar-se na cama com Allie e abraçar a
amiga que chorava. Às vezes, Georgia chorava com ela. Era a única que sabia
que, antes do diagnóstico, Allie havia decidido terminar com Paul. Depois disso,
nunca mais tiveram essa conversa sobre Allie querer deixá-lo.
Houve vezes em que Georgia pensou em alertar Allie sobre sua irmã. Ela
vira Paul e Maddy juntos no táxi. Vira a expressão no rosto de Maddy e
percebeu. Para falar a verdade, Georgia nunca fora muito fã de Paul.
Considerava-o superficial, bonito demais, egocêntrico demais. Paul nunca se
dignou a fazer uma única pergunta para Georgia sobre sua vida; duvidava que
ele soubesse o que ela fazia na editora ou até que tivesse ciência de que
trabalhara com Allie em A esposa do garça. Ela foi diretora de arte de muitos
livros infantis, tendo recebido diversos prêmios, mas A esposa do garça era seu
favorito. Parte do charme do trabalho artístico era o belo layout que Georgia
criara. Era possível ler a história de duas formas: do início para o fim, o garça
retornava para sua esposa e o mundo dos céus. Do fim para o início, ele ficava
com seu único e verdadeiro amor na terra.
“Acho que eu devia passar a noite aqui com você”, ofereceu Georgia.
“Não é preciso. Mesmo. Meus sogros ficarão…”
As duas riram com isso. Enfim, sogros. Por mais que respeitasse Frieda,
Allie sabia que, em algumas questões, teria de ceder para a mãe de Paul. Frieda
queria que Paul fosse enterrado com o restante da família, próximo de Reading,
e Allie nunca contestaria isso, ainda que acabasse ficando bem longe. Não
conseguia nem imaginar a que distância ficava dali.
“Agora terei problemas ‘sogrísticos’ com o marido.” Allie tentou brincar,
mas estava prestes a chorar.
“Querida”, falou Georgia, “Frieda a adora. E tem bons motivos para isso.”
“Não fique me dizendo coisas gentis”, alertou Allie. “Vou ter um ataque de
nervos se o fizer.”
Despediram-se no corredor. “Dê-lhe um beijo por mim”, falou Georgia.
“Você nunca teve vontade de dar um beijo em Paul.”
“Referia-me ao vizinho dele, com uma perna. É uma graça.” Georgia hesitou.
“Devo mesmo ir embora?”
“Eu me viro”, disse Allie. “Não tenho escolha.”
“Bem, mas não é exatamente sobre amor que estamos falando aqui”,
comentou Georgia. “Certo?”
Allie abraçou a amiga, não permitindo que fosse embora.
“Mas eu o amo”, respondeu.
“Jesus, Allie. Não tinha ideia.” Georgia ficou estupefata. “Você não tinha me
contado, querida.”
“Eu não sabia.”
“Merda de amor”, disse Georgia.
“É meu destino.”
Allie pegou a escada de volta para o quarto de Paul. Depois que todo mundo
se foi, a mãe de Paul desmoronou. A enfermeira lhe deu um medicamento contra
a ansiedade. A fita com cantos de pássaros estava tocando. Allie se lembrou dos
momentos sentada na grama com Paul ao lado da Casa Lilás. Agora lhe parecia a
coisa mais importante que fizeram juntos em todo aquele relacionamento.
“Frieda”, falou Allie.
“Desculpe-me”, disse Frieda. “Estou um caco.”
“Faz dois dias que ela não dorme”, explicou o pai de Paul.
Os sogros foram para a sala de visitantes para se deitar um pouco. Havia
cobertores e travesseiros para as pessoas que faziam vigília. As enfermeiras eram
incrivelmente gentis. Aquela era a hora em que os minutos ficavam mais lentos.
Allie desligou a fita dos cantos de pássaros. Do outro lado da cortina, Rob havia
adormecido. A sonda de morfina dele e a sonda ligada a Paul emitiam ruídos em
ritmos alternados, mas aquilo de alguma forma era calmante. Allie tirou os
sapatos, aqueles que sua mãe havia escolhido para ela, de manhã, na The French
Sole. Tirou a jaqueta, ficando só de corpete e saia, e subiu na cama. Paul estava
encurvado, respirando muito lentamente.
“Quer que eu conte a história do garça e sua esposa?”, sussurrou Allie.
“Sei de cor.”
“Mas não sabe o que aconteceu depois que ele deixou a esposa na terra para
ir atrás da esposa garça. Quando voou para os céus, bem acima das árvores.”
Tentou abraçá-lo, mas ele gemeu com o contato, assim Allie preferiu apenas
ficar próxima.
“Ela colou penas em todo o seu corpo. Aprendeu sozinha a voar. E foi atrás
dele, para que pudesse vê-lo uma última vez. Nada poderia impedi-la. Precisava
se despedir. Amava-o acima de tudo e contrariando a razão, ainda que fosse
tarde demais.”
Allie começou a chorar. Não queria incomodar Rob na cama ao lado; não
queria causar desordem. Tentou diminuir o ritmo de sua respiração para
acompanhar a de Paul. Mais cedo, o médico dissera que Paul não duraria muito
tempo. Como é que os médicos sabiam coisas assim? Ou seria porque o soro de
morfina era colocado num nível tão alto, devido à dor intensa que a pessoa
sentia, impedindo-a de sobreviver àquela quantidade de substâncias químicas
jogadas dentro de seu corpo?
“Nunca permitirei que se vá”, falou para Paul.
“Vá embora”, acreditou ter escutado sua voz.
Allie chegou o mais próximo possível de Paul sem tocá-lo. Não precisavam
mais se tocar; estavam unidos. Adormeceu ao lado dele. Sonhou que estava com
um vestido branco e que era seu casamento. Podia ver o brejo e seus pés nus
estavam enlameados. Aquela era a hora, sabia, naquele exato momento.
Acordou com frio, no escuro. Allie não sabia onde estava, mas sabia quem
estava a seu lado. Saiu da cama e foi até o outro lado. Sentou-se numa cadeira
dura de plástico. Viu que a aliança de Paul havia caído. Os olhos dele estavam
abertos, mas embaçados. Só notou o que se passava quando aconteceu. Havia
pássaros do lado de fora, bem no centro da cidade. Ele emitiu um ruído com a
garganta e esse som penetrou Allie de uma forma bem profunda e arrebatadora.
Era aqui e agora. O momento exato. Paul abriu a boca e soltou uma respiração
estranha, como se seu espírito o estivesse abandonando. Allie tentou pegá-lo,
mas escorregou entre seus dedos. Era fino demais, como tentar pegar a luz com
um par de mãos pesadas ou peneirar água corrente no escuro.
EMBORA SONHASSE com isso, Frieda não estaria lá no inverno. Recebeu uma
carta de Lennie em dezembro, em que dizia que o parque parecia diamantes
depois de uma tempestade de gelo. Ajax, o gerente, pedira demissão, e os
quartos do segundo andar estavam passando por reforma, já que umas garotas
haviam iniciado um incêndio com seus cigarros.
“Espero que não esteja preocupada comigo”, escreveu-lhe Lennie. “Minha
ideia é ser forte. Quero sair daqui em menos de dois anos”.
Mas, quando Lennie e Meg foram desmascaradas, na semana do Natal, as
duas foram mandadas embora pela gerência e receberam até ameaça de o caso
ser levado à polícia, Frieda nunca mais ouviu falar da amiga. Nessa época,
Frieda já estava casada. Havia considerado a ideia antes mesmo de fugir para
Londres, e agora a tinha concretizado. Bill era o tipo de homem que dava apoio à
esposa, não importando o que acontecesse. Era honesto e leal, e talvez fosse isso
que ela estava buscando. Frieda e Bill Rice tiveram um casamento tranquilo no
início de dezembro; foram ao cartório e, depois, almoçaram no The Swan,
apenas com familiares mais próximos e alguns amigos. Havia salmão frio e
champanhe, e o pai de Bill, Harry Rice, fez um longo brinde, que levou todos às
lágrimas.
Com exceção de Frieda; ela não era de chorar. Estava elegante com seu
cabelo comprido e escuro amarrado, usando um terno bege claro e botas de
camurça de salto alto. Até mesmo seu pai, o médico, estava com lágrimas nos
olhos, algo que surpreendeu totalmente Frieda. Nunca o vira chorando, exceto
uma vez, quando foram visitar uma garotinha, num apartamento em Reading,
que estava passando por quimioterapia. Frieda tinha nove anos, com idade
suficiente para ser sua ajudante, mas naquela vez precisou aguardar no corredor;
o médico vestiu uma máscara e revestiu seus sapatos. A garotinha estava
suscetível a germes.
Naquele atendimento, Frieda só percebeu que ele estava chorando quando,
no caminho para casa, virou-se para perguntar a seu pai se ele podia ajudá-la
com a lição de matemática assim que chegassem. Ela deve ter feito uma
expressão de espanto.
“Todo mundo chora”, disse-lhe seu pai. “Até mesmo eu.”
“Ela vai morrer?”
“Bem, todos vamos morrer”, respondeu o pai de Frieda. “Algumas pessoas
agora, outras depois.” Isso não era muito confortante. “Ela é uma garotinha
muito dócil. Não é de reclamar. Bem parecida com você.”
Estavam parados num semáforo. Frieda se lembrava muito bem daquela
noite; ela se aproximou do pai. Sempre se sentia segura a seu lado. “Eu estou
bem”, falou. “Não vou ficar doente.”
O médico riu e deu-lhe um beijo no topo da cabeça. Não fazia isso com
muita frequência. “Obrigado”, disse, sem motivo algum, talvez porque não fosse
ela a garotinha morrendo no quarto, talvez por ela entender que mesmo ele
precisava de uma palavra de conforto de vez em quando. Ou talvez foi
simplesmente por ela ser sua filha, e ele a amar.
Frieda o convidou para o casamento, embora soubesse que seria algo difícil
para sua mãe. Quanto ao médico, ele foi decente o suficiente para deixar sua
nova esposa em casa. Vi se saiu muito bem na presença do ex-marido. Todos
foram civilizados. Frieda ficou feliz por isso. Ela entendia por que se deve ser
educado; é uma técnica de sobrevivência.
“Então agora você é uma mulher casada”, disse o médico para Frieda,
durante o almoço. Era um buffet. Frieda não gostava de complicar. “Você teria
sido uma grande médica, minha filha. Você tinha o dom.”
“Sem coração?”, perguntou Frieda. “Seria esse o pré-requisito?”
Seu pai olhou para ela. “Acha que eu era sem coração?”
Não importando o que ele tivesse feito, Frieda precisava ser honesta.
“Não. Acho que você era corajoso. Sou eu quem não tem coração.” Frieda
acenou para Bill. Seu marido era um homem extremamente gentil. Estava no
segundo ano da Universidade de Reading, no departamento de química. Agora,
casados, iriam morar numa cabana na fazenda de seus pais, pagando aluguel, é
lógico, mas com um valor reduzido. Afinal de contas, ele precisava pensar nos
seus estudos. “De toda forma, estar casada não significa que esteja morta. Vou
frequentar aulas de enfermagem. Quero me especializar em oncologia.”
O médico ficou contente. “Você vai usar seu talento. Isso me deixa muito
feliz.”
Quando Frieda descobriu que estava grávida, durante o primeiro semestre do
curso, Bill ficou maravilhado.
“Ah, pare com isso”, brincou Frieda. “É apenas um bebê.”
“Apenas!?”, falou Bill. “Apenas?”
Era primavera, e Frieda completou o semestre. Era uma boa aluna, mas
menos habilidosa com a gravidez. Sentia-se cansada e irritadiça, e não tinha
muita vontade de comer. Aos sábados, sempre encontrava um tempo para sua
mãe. Faziam longas caminhadas pelos campos. A mãe de Frieda parecia ter
envelhecido; estava quase sempre confusa. Ainda assim, Vi se dizia apaixonada
por coisas pelas quais nunca havia indicado interesse e inscrevera-se no clube de
defesa da ecologia da região. “Se não salvarmos a Terra, quem irá?”, perguntava
para a filha. Tornara-se uma ornitófila radical e não conseguia mais controlar
seus sentimentos como antes. De certa forma, parecia mais livre. Uma vez,
enquanto andavam por uma fazenda, a mãe de Frieda se virou para ela e disse:
“Você não tem ideia de quanto vai amar seu filho.”
“Ora, mas é lógico”, respondeu Frieda. Toda mãe amava o filho.
Sua mãe lhe agarrou o braço. “Estou falando sério, Frieda. Não quero que
fique surpresa. Nada mais vai importar. Você não tem ideia.”
Frieda abraçou a mãe e, então, voltaram a andar, procurando pássaros. Vi
anotava num caderninho as espécies que encontravam: pombo, águia, melro,
pardal, carriça. Frieda se ocupava com outras coisas enquanto passeavam pelos
campos. Como sempre, estava pensando em Jamie. Deixara-o naquela mansão
em Kensington, mas não o abandonara. Levara-o para Reading consigo. Jamie
podia muito bem estar sentado à mesa, todas as noites, durante o jantar, enquanto
Frieda e Bill conversavam sobre seus dias. Podia também estar bem ali na cama
com eles. Com certa frequência, Frieda sentia-se uma traidora; bancava a boa
dona de casa, mas, à noite, quando se sentava na cozinha, olhando pela janela,
estava sonhando com outra vida. Às vezes, ficava olhando pela longa entrada de
cascalho, ainda esperando que Jamie Dunn aparecesse, depois de tê-la buscado
por toda Reading em um táxi ou uma limusine. A jaqueta púrpura estava dobrada
no armário, com uns suéteres velhos e o minivestido preto, coisas que nunca
voltaria a usar, mas das quais não conseguia se livrar.
Naquela primavera, quando Frieda estava com sete meses de gravidez,
escutou Jamie no rádio. Sobre a mesa da cozinha, um rádio ligado. Ainda bem
que estava sozinha. Havia preparado um bule de chá russo e um muffin com
geleia. Sentia fome o tempo todo. Do lado de fora, tudo estava verde. A casa dos
pais de Bill era conhecida como Casa Lilás, e a cabana deles tinha o nome de
Cercado, por ser rodeada por buxinho, que precisava ser aparado todos os anos.
Ela amava viver na zona rural. Antes ansiosa pela vida das cidades, havia se
tornado uma ornitófila. Até frequentava as reuniões do grupo Salve a Terra com
sua mãe, e se envolvera com todos os tipos de atividades em prol do ecossistema
da região.
Estava muito feliz e, então, de repente, ouviu a voz dele. Frieda sentiu como
se tivesse levado um tiro, como se algo a houvesse penetrado, chumbo, gelo,
pesar ou amor. Sentou-se. Era “O fantasma de Michael Macklin”. Era como se
ela nunca tivesse escrito a música, como se tivesse sido criada unicamente com a
força da voz de Jamie. Era diferente em muitos níveis; agora havia guitarras e
uma batida, bem pulsante, mas no cerne era a mesma canção.
When I walk down this hallway, everyone thinks I’ve left you, but I’m here in
my black coat, I won’t ever be gone.3
Frieda escutou rádio o dia inteiro, esperando ouvi-la novamente, e então,
pouco antes de Bill chegar em casa, vindo da faculdade, encontrou uma estação
que a tocava. Dessa vez, ela estava mais preparada, menos estupefata com o som
da voz de Jamie. Ouviu-a como se fosse uma crítica de música, e foi novamente
persuadida. Era sua primeira gravação, um single, e a estação de rádio dizia que
havia muita expectativa a respeito do álbum, Lion Park, que devia sair até o fim
da semana. O single disparara como um bólido na lista de mais pedidas, já sendo
a número cinco. Um bólido devia ser algo bom; significava que estava atingindo
as pessoas, no coração, na alma.
Naquela noite, Frieda não conseguiu dormir. Sentia-se encurralada num
universo alternativo, um em que se deitava ao lado de Bill na cama e ia visitar
sua mãe aos sábados. Pertencia a outro lugar, não importando o que Stella havia
dito. Pertencia a um lugar a seu lado.
Ela seguiu sua rotina, como se aquilo tivesse sido um sonho. Mas, na visita
de sábado, Frieda encontrou sua mãe doente demais para caminhar.
“É só uma dor de cabeça”, falou Vi, mas parecia algo muito pior. Ela
precisava ficar deitada. Sua cabeça estava latejando. Pediu a Frieda que fechasse
as cortinas porque a luz machucava-lhe os olhos. Frieda telefonou para o pai, de
um aparelho que ficava no corredor dos fundos. Ele disse que estaria lá em
quinze minutos, mas chegou em menos de dez. Devia ter ido correndo. A casa
deles era um geminado de tijolos com um jardim bonito.
“Acho que foi estupidez telefonar”, disse Frieda. “Não deve ser nada.”
“Ainda bem que você telefonou.” O médico subiu para o quarto que um dia
fora seu. Frieda foi atrás.
“Você, não”, disse Vi quando o viu.
O médico riu. “Você sabe que sou o melhor médico da cidade. Ainda que me
odeie, admita isso.”
“Está bem”, disse a mãe de Frieda. “Pelo que posso ver, continua usando
dois relógios.”
“Não queria chegar tarde para você”, respondeu o médico. Virou-se para
Frieda. “Pode me trazer um copo de água e duas aspirinas?”
Só quando estava na metade da escada, percebeu que era isso que seu pai
fazia sempre que queria se livrar dos membros da família de um paciente;
sempre que achava que o diagnóstico podia ser ruim.
Em pânico, foi até a cozinha e abriu a torneira. Pensou ter visto alguém de
casaco preto, em pé, do lado de fora da janela. Seu coração disparou, por achar
que pudesse ser Jamie, mas logo se deu conta de que não poderia ser ele. Jamie
nunca estaria ali, em Reading. Ele nunca teria vindo atrás dela. Era o anjo que se
sentava no banco de trás do carro; aquele que aguardava do lado de fora da
janela até a hora certa de entrar e pegar o que queria. Era aquele que ninguém
queria ver batendo à porta.
O pai de Frieda chamou uma ambulância, a qual acompanhou em seu carro,
com sua filha. Era hora do crepúsculo, e todos os pássaros cantavam. Parecia que
a sirene da ambulância não estava ligada. Frieda sabia que isso era um mau sinal.
Dissera a sua mãe que tudo ficaria bem quando os médicos viessem buscá-la,
mas os olhos dela estavam fechados e ela não respondia. Frieda e seu pai
seguiam sem falar nada. Frieda começara a chorar. Achava que podia ser um
derrame e que sua mãe se recuperaria, mas o médico disse-lhe que era bem
provável que tivesse sido um aneurisma.
“Ah, Frieda”, falou. “Queria conseguir fazer mais. Queria ter o poder de
mudar isso.”
Foi então que ela teve certeza. Era o tom de voz que sempre tinha quando
não havia esperanças, quando o anjo de casaco preto já havia chegado, e os
outros dois anjos não estavam por perto.
O funeral foi simples, os amigos mais próximos de sua mãe, algumas pessoas
do grupo ecológico, Bill e sua família e o pai de Frieda. A cerimônia aconteceu
ao lado do túmulo porque a mãe de Frieda nunca gostara de balbúrdia por sua
causa. Era um dia quente, e Frieda ficou na sombra. Sua barriga estava enorme,
os pés estavam inchados e ela achou que pudesse desmaiar. Não conseguia
acreditar que sua mãe não ia conhecer o neto. Não conseguia acreditar que isso
havia acontecido com sua mãe.
Depois do enterro, a mãe de Bill fez um almoço na Casa Lilás, frios, queijo e
pão crocante, que fazia a fama da padaria que ficava na mesma rua.
“Você está bem?”, perguntou o pai de Frieda. Ele saíra para a varanda, onde
Frieda estava sentada. Ela não aguentava as conversas agradáveis que ocorriam
do lado de dentro. Não conseguia ser educada. “Não mesmo.”
“Não. Lógico que não. Não sei se isso vai melhorar ou piorar as coisas, mas,
quando a mandei ir até a cozinha naquele dia, ela disse que a melhor coisa que
lhe acontecera em toda a vida foi você.”
Frieda sentiu uma dor na garganta e seus olhos ardiam, mas ela não chorou
novamente. Quanto mais continha o choro, pior se sentia. Quanto mais chorava,
pior se sentia. Não fazia diferença, assim preferia não sentir nada. Naquela tarde,
depois que todos se foram, pediu a Bill as chaves do carro. Queria resolver umas
coisas para esquecer um pouco aquilo. Foi até a loja de discos em Reading.
Andou pela loja até encontrar os lançamentos. Lá estava. Lion Park. Frieda ficou
lá, cabisbaixa. Não conseguiu evitar o choro. Simplesmente veio. Uma
funcionária apareceu, uma jovem com cabelo loiro liso, usando jeans e uma
blusa estampada indiana. Devia ser poucos anos mais jovem do que Frieda, mas
parecia uma garotinha. Talvez Frieda tivesse essa aparência quando foi para
Londres pela primeira vez. Como se o mundo estivesse aberto para ela. Como se
merecesse algo mais.
“A senhora está bem?”
Frieda fez que sim com a cabeça. Ergueu o disco. “Eu o conheço”, falou a
respeito de Jamie.
“Legal”, disse a garota. “Adoro esse disco.”
Frieda foi até o caixa e pagou. Ele assumira o crédito pelas duas músicas
dela, mas Frieda sempre achou que Jamie o faria. O disco era dedicado às
enfermeiras que o ajudaram a sobreviver enquanto criança e à sua esposa, o anjo
de sua vida, Stella. Frieda foi para casa. Guardou o álbum no armário de
porcelanas e só o tirava de lá quando não havia ninguém em casa. Sentava-se à
janela e observava as folhas se movendo sobre as cercas, e os pardais fazendo
ninhos, enquanto ouvia a voz de Jamie. A sensação era a mesma de quando o
escutara pela primeira vez e achava ridículo se sentir assim. Aos sábados,
começou a fazer caminhadas com seu pai, como fazia antes com sua mãe. Era
uma maneira de lamentar a perda de Vi, mas, depois de um tempo, passou a
curtir a companhia do médico. Afinal de contas, formavam uma boa dupla.
Faziam longos passeios pelos campos, entrando e saindo por portões, em
vilas por onde haviam passado apenas de carro. Já tinham visitado pacientes na
maioria dessas cidades, mas em geral chegavam com pressa. Tudo era tão
diferente naquele ritmo. Viam plantas campainhas, riachos, sapinhos, pólen
flutuando no ar; de vez em quando, avistavam uma família de raposas, um
macho com a fêmea e os filhotes. Só vê-los já deixava Frieda com vontade de
chorar novamente, eram tão alegres correndo pelos campos, mas ela tentava se
controlar. Tinha apenas vinte anos, jovem demais para pensar em chorar o tempo
todo.
No final da primavera, Frieda começou a diminuir o ritmo. Havia ganhado
peso demais e sentia-se como um boi. Ao mesmo tempo, sentia fome quase o
tempo todo. Começaram a levar uma mochila com comida de piquenique nas
caminhadas de sábados, porque estava sempre esfomeada. Nunca sentira tanta
fome em sua vida. Sentavam-se em campinas, comiam sanduíches de queijo e
picles e quase não falavam. Quando conversavam, discutiam os casos mais
interessantes e enigmáticos de seu pai. A mulher que envenenava as próprias
filhas com bolinhas de mercúrio pegas em um termômetro e ligava para o
consultório do médico todos os dias. O homem que comia unhas e sofria com
vestígios de metal em seu sangue. O bebê que não conseguia sentir dor e não
parava de bater a cabeça nas barras de seu berço.
“A medicina está solucionando mistérios”, dizia o médico.
“Mas não são coisas da vida?”
Concordaram a respeito disso. Frieda trouxera também uma garrafa térmica
com chá e serviu dois copos. O ar tinha um cheiro doce, como de grama.
“Sinto-me da mesma forma que sua mãe, sabia?”, disse o médico. “Sei que
todas as vidas deviam ser iguais, mas nenhuma me importa tanto quanto a sua.”
“Isso é um erro. Sou bem chatinha”, brincou Frieda. “Tenho tido desejos por
sanduíches de ovo e maionese, além disso, arroto bastante. Na verdade, sou
irritante.”
“Irrita apenas a si mesma”, disse-lhe o médico.
Nessa época, Frieda aprendera a ser sociável com a nova esposa do médico,
que era uma mulher bem agradável. Frieda não apenas recordava a noite em que
Jenny estava chorando, depois de seu marido ter falecido; recordava também de
ter ido até aquela casa com seu pai várias vezes depois e de ele lhe dizendo para
permanecer no carro, onde ficava lendo até a luz desaparecer. Certa vez, viu uma
coisa pela janela. Estavam tomando chá. No caminho de volta para casa, ele
cantava, e Frieda queria acreditar que tudo estava igual, mas não era bem assim.
O bebê nasceu no início do verão, um garotinho a quem deram o nome de
Paul, que causara três dias de contrações terríveis antes de aparecer. Ao final
desses três dias, Frieda achou que podia morrer, e não se importaria muito se
falecesse. Odiava o próprio filho, a si mesma e todo mundo; então, de repente,
ele nasceu e tudo mudou. Queria entender por que ninguém contava a verdade
sobre partos; era uma sensação tão próxima da morte, que se podia ver até anjos,
bem ali na sua frente, sobre o piso de linóleo. Na verdade, havia dois anjos, o
Anjo da Vida e o Anjo da Morte, ambos ao lado da janela, esperando. Um ficava
nas sombras, outro na luz; era difícil decidir qual se queria cuidando de si. E
havia o Terceiro Anjo, aquele sobre o qual seu pai falara, aquele bem no centro,
que podia cair para qualquer lado, aquele que se deve tentar resgatar, se puder, e
foi aí que o bebê nasceu.
Assim que viu seu filho, Frieda se tornou outra pessoa.
“Consegue acreditar que fizemos esse homenzinho?”, perguntou Bill. “Ele é
perfeito. Todos os dedos das mãos e dos pés.” Era a primeira vez que Frieda via
seu marido chorar.
Apaixonou-se loucamente pelo filho naquele instante. Ela nem ouvia o que
seu Bill dizia. O bebê parecia a estar encarando, com seus olhos azuis
acinzentados. Ele olhava bem para o centro dela, para a parte mais profunda de
seu corpo. “Amor da minha vida”, pensou Frieda. Anjo dos anjos. Chorava como
se seu coração estivesse se partindo, e todos acharam que era óbvia a
necessidade de um sedativo depois do parto que ela enfrentara. Afinal de contas,
merecia um descanso; tinha direito de passar o resto do verão curtindo o bebê.
Não retomou as aulas de enfermagem no outono; esperara um ano antes de
retornar. Queria que o outono durasse para sempre. O verde se transformava
naquela cor dourada que ela sempre amara, de freixos e carvalhos. Levava o
bebê em suas caminhadas com o pai, enfiado numa mochila que o médico criara
ao estilo dos índios norte-americanos.
“Você devia patentear isso”, falou Frieda. “Mulheres de todo o mundo
gostariam de carregar seus bebês assim.”
Paul não era nem um pouco irrequieto. Seus olhos permaneceram azuis, e ele
tinha grande poder de concentração, sobre o qual o médico e Frieda
concordavam. O bebê parecia ser capaz de dizer a diferença entre os cantos de
uma pega e de um pardal. Preferia a pega, bem diferente, que soltava um grito
estridente sempre que outro a chamava. Paul também tinha audição perfeita para
balbuciar canções de bebezinhos, talvez porque Frieda escutasse muito o disco
de Jamie sempre que estavam sozinhos. Colocava-o na vitrola enquanto o ninava
numa cadeira ao lado da janela e quando descansavam no começo da tarde. Certa
vez, jurou que Paul estava cantarolando “O fantasma de Michael Macklin”, o
coro, que era bem triste. A letra era bem melancólica quando ela a escreveu, mas
a música assumiu a tristeza num nível inenarrável. Frieda sentiu um calafrio nas
costas quando escutou o bebê cantarolando, mas logo se deu conta de que devia
estar enganada. Nenhum bebê podia ser tão talentoso com música, nem mesmo o
dela.
Ainda assim, tinha a sensação de que um belo futuro esperava seu filho e
sentia orgulho de ser a sortuda que iria criá-lo. Tinha consciência de que a
maioria das mães sentia o mesmo em relação a seus filhos, mas isso não
enfraquecia suas expectativas. Sentia como se conhecesse Paul desde sempre,
como se ele fosse seu destino desde o início, aquilo que perseguia mesmo
quando nem sabia que estava perseguindo algo.
“Você estava enganado”, disse Frieda para o pai quando atravessavam de
volta a campina até o Cercado, ao final de uma caminhada. Usavam bota e suéter
e, naquele dia específico, andaram até bem longe. O bebê dormia na mochila,
amarrada nas costas do médico. Frieda nunca fora tão feliz. “O amor não é
complicado”, falou.
FICOU SABENDO DA morte de Jamie numa tarde em que fora comprar maçãs
para uma salada de frutas. O bebê, agora com três meses de idade, estava com
Bill, e Frieda fora até uma fazenda no final da estrada; Frieda comprou as maçãs,
colocou a sacola no banco de trás do carro e ligou o rádio. O disco de Jamie era
um sucesso e ele estivera em turnê durante toda a primavera e o verão. Mas, para
seu horror, ela ficou sabendo que ele se envolvera num acidente de automóvel na
França no mês anterior. Frieda estivera tão envolvida com o bebê que parara de
escutar as notícias. Nem tinha ouvido falar naquilo. Jamie Dunn, sua esposa, sua
cunhada e o baterista da banda tinham morrido. Fazia mais de trinta dias que ele
partira daquele mundo, e durante todo esse tempo Frieda seguira com sua vida,
cuidando do bebê, fazendo caminhadas, sem saber. O radialista anunciou que
houvera apenas uma cerimônia no Chelsea Town Hall, onde Jamie fizera seu
último show em Londres, no começo do ano. Mick Jagger havia cantado “O
fantasma de Michael Macklin”. Dizia que milhares de velas foram acesas na
calçada ao lado do teatro e que fãs recolhiam a cera do asfalto como uma
recordação.
Frieda ficou ali sentada por um tempo, então seguiu pela estrada. Em vez de
pegar a primeira curva na rotatória, que a levaria para casa, continuou pela
segunda saída e foi para o sul, na direção de Londres. Quando parou para
reabastecer o tanque do carro, telefonou para o Cercado. Contou a Bill que um
velho amigo havia morrido e que estava indo para Londres; voltaria assim que
conseguisse.
“Alguém do hotel onde você trabalhou?”, perguntou Bill.
Era uma época sobre a qual pouco conversavam.
“Sim”, respondeu Frieda. “Éramos amigos.”
“Você está bem?”, disse Bill.
“Acho que sim”, falou Frieda. “Vou ficar.”
Odiava dirigir até a cidade, mas seguiu em frente. Tinha medo de não
encontrar lugar para estacionar, assim deixou o carro na Kensington High Street.
Lembrou onde ficava o parque. Parecera muito maior da última vez, agora era
apenas um lindo parque de bairro, rodeado por uma cerca vitoriana de ferro
coberta de musgos. Não tinha tanta certeza quanto à casa; eram todas mansões
eduardianas, não idênticas, mas igualmente graciosas. Então Frieda recordou que
parecia um bolo de casamento, todo branco; aquela com as janelas curvadas de
frente para o parque. Subiu a escada, bateu à porta e uma criada atendeu.
“Sinto muito”, falou a empregada. “A senhora Ridge não está recebendo
visitantes.
“Lógico que estou.” A mãe de Stella estava no saguão. Ela se aproximou.
“Eu a conheço?”, perguntou para Frieda.
“Na verdade, não”, respondeu Frieda. “Encontramo-nos um tempo atrás.
Conheci suas filhas… e Jamie.”
Daisy Ridge avaliou Frieda. “A garota com a mala”, falou.
“Certo.”
“Entre.”
A senhora Ridge pediu à criada que lhes trouxesse chá. Usava um terno preto
e saltos altos, e Frieda achou que estava maltrapilha em seus jeans, tênis e uma
velha jaqueta Burberry que pertencera à sua mãe. Havia rebolos por todo o
tecido, percorrendo as mangas.
O casamento dos Ridges terminara antes de as meninas morrerem e agora
Daisy Ridge estava sozinha em casa. Perdera todas as pessoas que um dia lhe
importaram. Pelas manhãs, mal podia acreditar que conseguia acordar, nem tinha
razão para o fazer. Achava que sua irmã tivera sorte, por falecer tão cedo, antes
de criar alguma ligação forte com o mundo, antes que tivesse tempo suficiente
para perder.
“A senhora tem uma casa adorável”, disse Frieda. Serviram-lhes chá. Havia
bolinhos, geleia e um bule de chá verde que exalava cheiro de ervas e mel.
Quando a criada saiu, Frieda falou: “Vim aqui apenas para dizer que sinto
muito”.
“Pelo quê? Por não ter afastado Jamie de minha filha? Imagino que este
tenha sido o motivo de ter vindo aquele dia. Queria que tivesse tido mais
sucesso. Talvez todos estivessem vivos se tivesse funcionado. Ele estava
dirigindo, sabia? Quando um viciado em drogas dirige, o que se pode esperar
que aconteça?”
“Mas, sendo justa, ele não era o único viciado.”
A senhora Ridge se levantou, Frieda achou que era bem possível que fosse
convidada a se retirar; talvez tivesse insultado a memória de Stella, ainda que
houvesse apenas dito a verdade. Mas não, havia algo mais que a senhora Ridge
queria lhe mostrar.
“Você nunca viu o restante da casa. Apenas o quarto de Stella”, falou a
senhora Ridge. “Fui grossa com você. Tirei conclusões precipitadas.”
“Vim mesmo atrás dele naquele dia”, admitiu Frieda. “Queria muito ficar
com ele. Era louca por Jamie. Mas ele não me amava. Percebi isso. Não
pertencia ao seu mundo.”
“Amor”, disse a senhora Ridge. “Foi esse o motivo?”
“Eram feitos um para o outro. Ele teria de ser louco para não se apaixonar
por Stella.”
A senhora Ridge virou o rosto para o lado. Fazia semanas que estava
chorando, começava e parava. De repente, sentiu uma onda de calor invadindo o
peito, subindo pela garganta e indo até o rosto. Aconteceu quando ela menos
esperava, quando nem achava que estava sentindo alguma coisa. Rapidamente se
recompôs – era boa nisso – e, então, voltou-se para a garota que a visitava.
Normalmente, nem teria conversado com uma menina como aquela – uma
estranha por quem não tinha o menor interesse. Agora parecia-lhe impossível se
conter. Frieda concluiu que ela era uma pessoa solitária. Não encontrava muita
gente que visse suas filhas como algo mais do que duas garotas mimadas e
egoístas. Sim, elas usavam drogas, mas não eram apenas isso.
“Marianne ia passar o fim de semana no campo comigo. Na última hora,
mudou de ideia. Elas eram inseparáveis, sabia? Melhores amigas, cuidavam uma
da outra. Stella telefonou para ela, convidando-a para uma viagem. Iam se
divertir acompanhando a banda numa turnê, muito mais divertido do que ficar
comigo. Uma já seria ruim. As duas, destruição. Não sei se consigo suportar
duas…”
“Elas pareciam cuidar uma da outra. Até mesmo eu percebi isso.”
A senhora Ridge ergueu a cabeça. “Sim”, concordou. “Estavam sempre
juntas, desde quando eram menininhas. Eu não conseguia separá-las nem mesmo
para cochilar.”
“Eu tenho um garotinho”, disse Frieda. “O nome dele é Paul. É por isso que
vim aqui. Não foi por causa de Jamie. Vim por causa da senhora. Porque sou
mãe de alguém, da mesma forma que a senhora. E sinto muito mesmo.”
A senhora Ridge olhou para ela. Frieda não era nada daquilo que ela
imaginava; não o fora antigamente, e não o era agora. Era perspicaz e honesta.
Parecia uma garota comum, mas não era. A senhora Ridge percebia isso agora.
“Se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, estou aqui”, disse-
lhe Frieda. “Pode me chamar, que eu venho para Londres.”
Mas ela não disse que tinha vindo também porque se considerava uma
pessoa de sorte, e esta sorte havia lhe causado uma sensação de culpa. Não era
seu pai que sofria com a perda de um filho. O motivo maior para vir foi por
Jamie não tê-la amado, por não ter sido ela a pessoa que estava no carro com ele,
repleto de gente, equipamentos musicais e malas abarrotadas de roupas, de modo
que o Anjo da Morte teve de se apertar para entrar com eles. Frieda estava ali,
naquela casa em Kensington, por não ter sido querida, por ter sido derrotada
algum tempo atrás e, agora, de certa forma, ser a vencedora. Ela ainda estava ali,
ainda era a dona das botas de camurça bege roubadas, aquelas que vestia sempre
que saía com Bill, ultimamente algo não muito frequente. Só saíam quando a
mãe de Bill ia para a casa deles, porque Frieda não confiava em babás. Ainda
não. Talvez nunca viesse a confiar. Era provável que o transformasse num
filhinho da mamãe, uma criança mimada, mas não se importava com isso. Era
possível que virasse o tipo de homem que liga para casa todos os domingos e
que briga com a esposa por sempre convidar a mamãe para os jantares
comemorativos. Seria um homem com audição perfeita, que gostava de
caminhar pelos campos, que sabia a diferença entre o canto de um pardal e o
canto de um pombo. Lágrimas começavam a surgir em seus olhos só de pensar
no que faria caso, algum dia, perdesse Paul.
“Vou lhe mostrar uma coisa”, disse a senhora Ridge. “Você vai entender.”
Foram até os fundos da casa, na estufa. As cortinas estavam abaixadas e o
quarto, escurecido, mas havia tantas janelas e uma abóboda envidraçada, que
faixas de luz natural conseguiam penetrar o cômodo. Havia samambaias altas e
orquídeas em vasos maiólicos. A senhora Ridge abriu as portas de vidro que
davam para o lado de fora. Um jardim enorme ficava atrás da casa,
assustadoramente grande para a cidade. Saíram. As plantas estavam tão
crescidas, que era como entrar numa floresta. Tudo era dourado, um emaranhado
de trepadeiras e arbustos que deviam ter sido cortados. Sarça, freixo, ervas em
tufos. Viam-se variedades surpreendentes para um jardim londrino: bela-dona,
estramônio, cicuta, aguaraquiá. Elas nunca foram plantadas; haviam chegado
sozinhas nos últimos trinta dias, pouco depois de as garotas falecerem. Tudo era
venenoso e florido.
“Meu jardim das lamentações”, disse a senhora Ridge.
Ela havia perdido as folhas, e a sensação que tinha era de que nunca
permitiria que cuidassem novamente daquele jardim. A tristeza era o único
alimento daquele lugar. No verão, ficava verde; agora estava dourado. Dali a
algumas semanas, ficaria preto como cetim; por fim, passaria a branco. Por
meses, ficaria assim: branco puro.
Frieda ficou ali, nas sombras geladas. Havia um belo caminho em zigue-
zague feito de tijolos e pedras. Havia uma ameixeira com seus frutos caídos,
abandonados no chão para apodrecer. Havia rosas brancas, crescidas como as
ervas, desmanchando-se em pedaços, pendendo de canos pretos retorcidos. Nos
ramos de uma macieira, via-se um pombo em seu ninho, empoleirado fora da
estação. Elas podiam escutar o gorjeio de seus filhotes, ainda que a época não
fosse boa, a estação totalmente errada. Em breve estaria bem frio. Ficaram ali,
preocupadas com os pássaros no ninho, com o inverno que se aproximava, por
tudo que poderia, e iria, acontecer em pouco tempo. Foi então que Frieda
entendeu tudo que havia para saber a respeito do amor. Tudo ficou muito claro,
como se a verdade tivesse sido escrita no ar. Tudo estava amarelo; tudo estava se
movendo muito rapidamente. Frieda pegou a mão da senhora Ridge e ficou com
ela, do lado de fora, até o anoitecer.
Lucy Green não conseguia parar de ler. Lia sozinha, e a viagem pelo Atlântico
lhe propiciara todo o tempo do mundo para ficar afastada. Sua madrasta,
Charlotte, considerava-a antissocial, talvez até patológica, mas Lucy permanecia
em sua minúscula cabine, lera três vezes O diário de Anne Frank. Às vezes, a
sensação era de que vivia naquele sótão e que tinha os mesmos sonhos de Anne
Frank. Não tinha mãe e sua aparência era aquela que garotas sem mãe às vezes
têm, bem desamparadas, cabelo despenteado, meias trocadas. Só saía de sua
cabine para as refeições e para caminhar pelo deque com seu pai às tardes,
quando tudo que conversavam eram comentários ocasionais sobre a forma das
nuvens ou a cor do mar.
O oceano era infinito, assustador e bonito. Não havia necessidade de palavras,
quando se estava no deque de um transatlântico, quando o mundo parecia tão
vasto e quando se era apenas uma mancha de carne e osso.
O diário de Anne Frank acabara de ser publicado nos Estados Unidos, em
junho, e a madrasta de Lucy achava que ela era jovem demais para ler aquele
texto; ela vetou o livro e sugeriu que Lucy continuasse lendo Nancy Drew. Na
verdade, Charlotte não era muito apaixonada por leitura e achava que livros
poderiam ser perigosos se colocados em mãos erradas. Mas Lucy tinha doze
anos, idade suficiente para ler o que lhe agradasse; não se importava com a
opinião de sua madrasta, nem com a de seu pai quanto a isso. Não se importava
com o fato de estar num navio cruzando o Atlântico e que todos seus amigos de
Westchester estivessem com ciúme de sua ida para um casamento na Inglaterra,
enquanto eles continuavam com sua vida entediante em casa.
Por que não se importava com aventuras e ocasiões festivas? Lucy era o tipo
de garota que pensava muito sobre os motivos de as pessoas virem à Terra e
ficava muito tempo imaginando como poderia corrigir os erros do mundo. Não
acreditava que sentar-se à mesa do capitão e pedir coquetel de camarões a
ajudariam nessa missão. Não queria se espreguiçar numa cadeira no deque ou
conversar com as outras crianças a bordo, como sua madrasta não parava de
sugerir. Lucy não era sociável, nem muito fã de viagens. Entre outras coisas,
tinha uma tartaruga chamada senhora Henderson, que ela precisou deixar com o
vizinho, que nem gostava de tartarugas, e ela se preocupava com o bem-estar de
seu bichinho. Em segundo lugar, a outra viagem que fizera para longe de casa
fora para Miami com seu pai e Charlotte – a quem deveria chamar de mamãe,
mas não a chamava de nada – e não gostara nem um pouco do passeio. Ficara
chocada ao descobrir que o campo de golfe que seu pai estava tão empolgado
para conhecer, em Miami, não permitia a entrada de negros para jogar, exceto às
segundas, dia dos caddies. O mundo apresentava erros demais; muita gente era
maltratada. Além disso, Lucy nem acreditava no casamento como uma
instituição válida, principalmente depois que seu pai se casara com Charlotte;
assim, ir ao casamento da irmã de sua madrasta parecia sem sentido, ainda que
fosse em Londres.
O navio atracou em Liverpool e, depois de pegarem as bagagens, havia um
táxi para a estação de trem. Enquanto aguardavam na estação, Lucy se sentou
num banco e continuou lendo o diário. Estava de saia porque sua madrasta
insistira que calças eram para garotas traquinas, além de ser um traje totalmente
inaceitável para uma viagem. O pai de Lucy, Ben, piscara para ela, mas reforçou
o que Charlotte dissera; assim, lá estava Lucy, desconfortavelmente vestida com
uma saia antiquada. Lucy achava que, na verdade, podia ser uma pervertida.
Certamente, tinha alguns pensamentos estranhos: que sua mãe havia morrido
devido a algo que ela fizera de errado. Que sua madrasta vinha colocando
arsênico em seu chá gelado, que Lucy, em vez de beber, derramou em vasos de
plantas ao longo de toda a viagem. Que seu pai estaria melhor sem ela, com uma
vida mais simples e mais fácil. Que era impossível lutar contra tudo o que estava
errado no mundo e que era necessário muito esforço para enfrentar os dias – e
muito provavelmente era um esforço inválido. Lucy estava desaparecendo e
ninguém nem sequer notava isso. A cada dia, ela se afastava mais.
“Está tudo bem com você?”, perguntou o pai de Lucy, na estação de trem.
Estava coberto de poeira e com calor. Era começo de agosto. Ben Green era
advogado, democrata e dizia estar feliz por sair dos Estados Unidos por um mês,
porque Eisenhower e Nixon haviam acabado de ganhar a indicação dos
republicanos. Preferia estar numa mormacenta estação de trem em Liverpool,
rebocando a bagagem de sua esposa e filha para lá e para cá, a ser forçado a ler o
The New York Times em Westchester e ser confrontado com notícias que
indicavam o progresso de Ike.
“Eu preferia estar em casa”, respondeu Lucy. “Anne Frank não saiu de casa
por mais de dois anos. Não tinha de viajar para saber sobre outras pessoas. Ela
entendia as coisas muito bem, sem sair. Ela queria ser escritora.”
“Todo mundo quer ser escritor”, falou Ben Green. Ele havia escrito um
romance na faculdade, mas o jogara no lixo. “Você será a garota mais linda do
casamento.”
“Difícil.” Lucy continuou lendo, mas sentiu seu rosto corar. Ela sabia que
não era bonita. Percebeu que uma de suas meias era marrom e a outra, cinza.
Colocou um pé sobre o outro para esconder seu engano.
Seu pai beijou sua testa, era hora de entrar no trem. Tinham uma cabine só
para eles, que era sufocante e escura. Lucy se enroscou em seu livro. Ela fingia
estar em casa.
“Ela vai cansar a vista se continuar lendo no escuro”, falou Charlotte para o
pai de Lucy, no meio da viagem.
Apesar de estar lendo, Lucy ficou escutando. Era muito boa nisso.
“Deixa para lá”, falou Ben. “Ela está de luto.”
Foi aí que Lucy se deu conta disso. Ainda que fizesse dois anos que sua mãe
tinha morrido, ela ainda estava de luto. Não havia por que ignorar isso. Sempre
que parava de ler, começava a pensar em sua mãe. Às vezes, lembrava o último
dia que haviam passado juntas, o dia mais perfeito do mundo. Foram caminhar
no Central Park e viram algo que ninguém mais tinha visto em Nova York. Uma
garça-azul macho numa lagoa no Ramble, a parte mais deserta do parque, repleta
de arbustos e ninhos de pássaros. Desde aquele dia, nada mais lhe parecera ser
interessante. Com exceção dos livros.
Lucy fechou os olhos e foi dormindo até Londres. Estava bem escuro e muito
úmido quando chegaram lá. Pegaram as bagagens e saíram do trem com o
restante dos passageiros. Então aconteceu algo inesperado. Quando Lucy olhou
para o caos da Estação Euston, sentiu o mesmo que algumas pessoas sentem
quando se apaixonam. Londres a havia conquistado, ainda que a contragosto. Na
verdade, sentiu seu sangue acelerar. O lado de fora era ainda melhor – mais
escuro e mais agitado. Os postes de luz eram amarelos e Lucy sentiu estar num
sonho. Poderia sumir no tumulto de Londres e, ainda assim, ser ela mesma.
Naquela cidade, devia haver milhares – não, milhões – de livros que ainda não
tinha lido. Havia livrarias, bibliotecas, bancas de livros, editoras, excursões
guiadas para lugares onde escritores tinham criado mundos completamente
diferentes com nada além de palavras. Era bem provável que cada pessoa que
passava era escritora, ou, no último caso, uma história esperando para ser
contada. Lucy queria visitar todas as livrarias, andar pelas ruas, olhar o rosto das
pessoas e tentar adivinhar o que lhes havia acontecido. Essa sensação a
surpreendeu. Na verdade, deixou-a chocada. Fazia muito tempo que não tinha
vontade de nada.
Pegaram um táxi e foram para o hotel. A família toda de Charlotte ficaria no
Lion Park e ela estava irritada por terem sido os últimos a chegar entre os
convidados do casamento dos Evans. Culpou o azar e a vadiagem de Lucy. Além
disso, aquele não era o hotel que escolheria; era simples e caseiro, bem diferente
do estilo de Charlotte. Lucy também esperava odiá-lo, mas primeiro se
apaixonara pela Estação Euston e, agora, estava maluca pelo hotel em que
ficariam. Tudo era bem imprevisível e charmoso. O lobby ficava de frente para
um jardim em que havia um leão de pedra cujo boato era de que fora roubado
por um cavaleiro durante as Cruzadas. A estátua estava cheia de musgo,
esverdeada e rodeada por sulfeto de cobre. O próprio lobby era incrível. Tinha
papel de parede cor-de-rosa e peças de madeira branca. Mas o melhor de tudo
era que havia um enorme coelho sentado atrás da recepção. Lucy amou Londres.
“É de verdade?”, perguntou a Dorey Jenkins, a garota que ficava na recepção
à noite. O coelho era do tamanho de um gato persa gigantesco. Tinha pelos
brancos compridos.
“Ah, sim”, respondeu Dorey e virou-se para o coelho. “Mostre-nos seu pulo
de coelha, Millie.” A coelha veio pulando, e Dorey deu a ela um pedaço de
alface que estava guardado numa gaveta com clipes de papel e fitas elásticas.
“Ela é nossa mascote. Certo dia, ficou vagando pela rua. Achamos que ela havia
encontrado seu espaço no parque, mas preferiu morar debaixo da mesa.”
“Se você a seguisse, é possível que ela a guiasse para uma outra dimensão de
espaço e tempo, e você seria como Alice”, falou Lucy. “Você veria mundos
maravilhosos e teria de lutar para retornar.”
“Nada disso, ela me guiaria direto para a lata de lixo da cozinha. Ela gosta de
procurar cascas de batata. É louca por isso. E também gosta de comer papel de
parede, o que lhe causa um monte de problemas.”
“Não tenho nada contra problemas.” Lucy se sentia animada e viva apenas
por estar em Londres.
“Então…”, falou Dorey, calorosamente. “Você e Millie são bem parecidas.”
LUCY NÃO GOSTAVA de viajar com seu pai e Charlotte, mas pelo menos tinha
um quarto só para si no sétimo andar. Era abafado, com um monte de bobagens
em uma penteadeira ao lado da cama e, em vez de chuveiro, havia uma banheira.
Mas, ao menos, ela podia ter alguma privacidade e ficar mais de dez minutos
sem alguém importuná-la, dizendo-lhe que tudo que fazia era errado. Como se
ela já não soubesse disso.
Lucy desfez as malas, tomou banho e leu o diário até sentir sono. Gostava do
som de Londres, a mistura de tráfego e canto de pássaros. O barulho a deixou
com sono, quando ela dormiu, sonhou que estava seguindo um coelho por um
corredor. Como seu relógio interno estava desligado, Lucy acordou cedo, antes
que conseguisse chegar ao fim do corredor em seu sonho. Ao acordar, Lucy se
sentiu contrariada, mesma sensação que teria se perdesse um livro antes de
atingir o final da história. Talvez pudesse ter o mesmo sonho em algum outro
momento e descobrir o que acontecia. Vestiu-se e desceu para o restaurante. Não
estava oficialmente aberto, mas o cozinheiro disse que lhe prepararia chá e
torradas; assim, Lucy se sentou e voltou para a leitura do diário. Um homem
bonito apareceu e olhou ao redor.
“Este lugar está morto”, falou.
Seu sotaque era nova-iorquino e parecia um irlandês, cabelos escuros e olhos
claros. A partir daquele momento, Lucy passou a preferir sempre homens com
aquela aparência. O sorriso dele era incrível também; mesmo alguém com doze
anos poderia dizer isso.
“Parece que você é a única pessoa viva em Londres”, falou o homem.
“Importa-se se eu me sentar?”
Lucy consentiu. Continuou lendo. Não tinha o menor problema em ser rude,
quando precisava ser.
“Anne Frank”, comentou o homem. “Vi a casa dela em Amsterdã.”
Lucy abaixou o livro. “Não, mentira. Está inventando…”
“Juro por Deus.” O homem ergueu uma mão, como se fosse um escoteiro.
“Tenho viajado bastante e estive lá na semana passada. Fiquei do lado de fora e
fiz uma oração.”
“É mesmo?”, perguntou Lucy, sem acreditar muito nele.
Chegaram o chá e as torradas. Ela passou marmelada, mas, quando deu uma
mordida, não sabia dizer ao certo se tinha gostado ou não. Era amargo, mas
talvez estivesse se acostumando com coisas amargas. Estava de certa forma
envergonhada por mastigar na frente do homem que se sentara com ela. Ainda
bem que o homem bonito também estava faminto; ele pediu ovos com bacon.
“Faça-me três ovos estrelados”, falou. “Na verdade, quatro.”
“Chá e torrada”, ofereceu o cozinheiro. “Ainda não estamos abertos. Teria
notado isso se olhasse para os lados.”
“Legal. Bom. Torradas, então. Dê-me qualquer coisa. Deus, até parece que
estou pedindo uma refeição de primeira linha.” O homem acendeu um cigarro.
Lucky Strike. “Então, o que faz aqui em Londres?”
“Vim para um casamento, não que eu acredite em casamentos.”
“Ah. Casamento.”
“Na verdade, é uma bosta”, disse Lucy.
Ela ergueu o queixo, esperando que ele reagisse tal qual a maioria dos
adultos – dizendo-lhe que garotas que falam palavrão não eram atraentes –, mas
não o fez.
“Uma bosta gigantesca a maior parte do tempo”, concordou. “Mas não
sempre.”
O homem esticou sua mão. “Michael”, apresentou-se.
“Lucy.”
“Percebo que temos algo em comum, Lucy. Não somos muito de acreditar
nas coisas.”
“Por que deveríamos?”, perguntou Lucy.
“O amor existe”, contou-lhe Michael. “Acredite você ou não.”
“Não.” Lucy terminou seu chá e torradas assim que o pedido de Michael
chegou. De toda forma, ficou ali sentada e viu seu companheiro rejeitar a
marmelada. Apesar de suas opiniões diferentes a respeito do amor, eram bem
parecidos em muitos aspectos.
“O amor me trouxe de Nova York. Passei por Paris, passei por Amsterdã,
passei pela casa de Anne Frank, até chegar aqui.”
“Minha madrasta me trouxe aqui”, disse Lucy. “Podia estar em casa lendo.
Em vez disso, tenho de ir a uma porcaria de casamento.”
“Por que porcaria?” Ele parecia genuinamente interessado. Adultos
costumavam se entediar com as opiniões de uma criança, mas Michael era
diferente.
“Nem sequer conheço as pessoas envolvidas”, explicou Lucy. “É a irmã de
minha madrasta, Bryn. Torço, para o bem dela, que sejam bem diferentes.”
Michael riu e acenou com a cabeça para o livro sobre a mesa. “Esse é o
diário que Anne Frank escreveu?” Quando Lucy disse que sim, ele perguntou se
podia pegar emprestado. Lucy não gostava muito de emprestar livros; as pessoas
nunca devolviam, e, além disso, ela se acostumara a ler o diário todos os dias.
“A não ser que não confie em mim”, falou Michael.
Lucy ergueu a cabeça para ele. Não era fácil dizer-lhe não.
“Você vai devolver?”, perguntou.
Michael fez uma cruz sobre o coração com as mãos. “Juro pela minha vida.”
LUCY FICOU UM pouco perdida sem o livro. Foi até a recepção e perguntou ao
funcionário do dia se podia ver a coelha. Mas este era um homem de meia-idade
que estava estudando contabilidade e não gostava de crianças. Era bem diferente
de Dorey Jenkins.
“Aqui é um lugar de trabalho”, falou para Lucy.
Ela viu a coelha numa gaiola de ferro no escritório dos fundos. Por algum
motivo, isso a deixou com vontade de chorar. Foi até o jardim e sentou-se na
base do leão. A pedra estava com cheiro de umidade e musgo.
“Isso é uma estátua, não um banco”, gritou o funcionário do dia.
Lucy atravessou o lobby e saiu para a rua, lá perguntou a uma mulher que
parecia uma vovozinha como chegar ao parque mais próximo. Foi-lhe indicado o
Hyde Park, a apenas alguns quarteirões dali, quando chegou, ficou chocada com
a enormidade daquilo. Devia haver centenas de coelhos vivendo nos arbustos.
Sua mãe sempre lhe disse que, para entender melhor uma cidade, é preciso
visitar um parque.
Na viagem até ali, Lucy conheceu uma mulher que praticava adivinhação.
Era a faxineira que limpava as cabines e ela dissera a Lucy que era uma menina
de sorte por ter nascido no ano do coelho pelo horóscopo chinês; então talvez
tivesse sorte, se algum dia viesse a acreditar em coisas estúpidas como sorte.
Agora era o ano do dragão, que devia significar que alguma coisa poderia
acontecer. Enquanto caminhava pelo Hyde Park, Lucy teve a mesma sensação de
leveza que tivera na Estação Euston. Estava apaixonada por Londres. Andou até
deparar com a estátua de Peter Pan nos Kensington Gardens. E lá sentou-se na
grama. Era um lugar delicioso. Pela primeira vez em dois anos, não estava com
nenhum livro, e isso era realmente estranho. Mas sua mãe estivera certa: parques
revelavam o cerne de uma cidade, sua parte mais verde, mais doce.
Havia duas jovens olhando para Lucy, claramente falando sobre ela. A grama
era perfeita e nem se sentia o cheiro de uma cidade. De vez em quando, era
possível escutar o zumbido de um ônibus no mundo exterior, mas era só. As
jovens ainda conversavam sobre ela.
“Não sejam mal-educadas”, gritou Lucy. Eram duas loiras altas, muito
parecidas; para Lucy, lembravam gansos, com o pescoço comprido e o cabelo
bem clarinho. Acho que talvez houvesse uma regra sobre não se sentar na grama,
ou que tivesse invadido uma propriedade particular. Ou talvez ainda
simplesmente não gostassem de americanos. “Venham aqui falar comigo se têm
algo a dizer.”
Nos Estados Unidos, Lucy nunca teria sido tão direta, mas ali era diferente.
Ninguém a conhecia. Ninguém sabia que, depois que sua mãe morrera, ela se
trancara no quarto e ficara sem comer por uma semana. Contudo ela bebia algo,
a água adquirira um sabor forte depois dos primeiros três dias sem comer. Tinha
gosto de vinho, ou pelo menos do que ela imaginava ser o gosto do vinho. Doce,
forte e rico. De início, achou que fosse o começo de um milagre, água se
transformando em vinho e tal, e que, se saísse do quarto, descobriria que sua
mãe ainda estava viva, trabalhando no jardim ou preparando uma rabanada. Mas
no copo era apenas água e sua mãe se fora mesmo. Sua linda mãe, com cabelo
comprido preto, que não tinha medo de tirar os sapatos e enfiar-se numa fonte do
Central Park quando via uma garça. Foi aí que Lucy parou de acreditar em
qualquer coisa. Saiu de seu quarto, preparou um sanduíche e começou a comer,
abandonando sua dieta de apenas água. Seu pai achou que esse ressurgimento
significava que estava tudo bem novamente, mas ele se enganara.
As inglesas se aproximaram; seus nomes eram Daisy e Rose. Eram irmãs,
mas também melhores amigas, e andavam de mãos dadas. Usavam saias
plissadas azuis e blusas brancas. “Estávamos olhando para você porque parece
Katharine Hepburn. É nossa atriz favorita. Ela é incrível. Achamos que pudesse
ser parente dela.”
Então não era nada horrível, nem algo que tivesse feito de errado. Lucy
sorriu. Daisy e Rose eram adultas – Daisy tinha duas filhas em casa –, mas
falavam com ela como se fosse uma igual. Estavam tão empolgadas por
conhecê-la, que Lucy de repente se sentiu importante.
“Minha tia”, falou. Era uma mentira, mas uma boa mentira. Gostava tanto de
conversar com pessoas que achavam que ela era alguém, que não queria que
saíssem de lá desapontadas. “Katharine e minha mãe têm a mesma avó. Estamos
sempre nos encontrando.”
Daisy e Rose queriam saber tudo a respeito de Katharine Hepburn, e Lucy as
manteve em transe durante toda a tarde. Na casa de Kate, disse-lhe, no café da
manhã serviam limonada e sorvete. Kate tinha um chofer que também era
mágico, e ele conseguia, com um assobio, atrair uns pombos que voavam no céu.
A senhora Hepburn pedia a Lucy que lesse todos os roteiros antes de escolher
seu próximo personagem; na verdade, ela dependia de Lucy. As pessoas não
usavam trajes de banho em Hollywood; todo mundo tinha piscinas enormes, e
costumava nadar à noite, com a luz do luar, totalmente peladas. Bebiam
champanhe assim que o sol se punha e usavam os vestidos de festa apenas uma
vez, para em seguida jogá-los no lixo.
“Eu vou para Hollywood”, informou Rose. “Preciso de uma nova vida.”
Sua irmã parecia surpresa e falou: “Você não pode ir tão longe!”
Daisy e Rose acompanharam Lucy até a metade do caminho de volta para o
hotel; na hora de se despedirem, abraçaram-se como se fossem melhores amigas,
e Lucy disse-lhes para procurá-la se algum dia fossem aos Estados Unidos.
Pediria ao chofer de Kate que as pegasse no aeroporto e fizesse um passeio com
elas pela cidade.
Quando Lucy retornou ao Lion Park, seu pai estava no lobby com um
policial. Assim que Ben viu Lucy, saiu correndo e agarrou-a.
“Onde diabos você estava? O recepcionista falou que você estava no
restaurante conversando com um estranho e, depois, desapareceu.” O pai de
Lucy estava tão preocupado, que parecia prestes a dar-lhe um beijo estalado,
algo que nunca havia feito. Não acreditava em coisas como castigos corporais ou
na pena de morte, e certamente não gostava de bater na própria filha. Estava
apenas com a aparência de alguém perto de explodir.
“Fui apenas ao parque”, respondeu Lucy. “Conheci umas mulheres inglesas
que queriam saber sobre os Estados Unidos.”
“Meu Deus, Lucy, você é um pouco velhinha para agir de modo tão
irresponsável. Não percebe que isso me deixou preocupado? Pensei que tivesse
desaparecido. Chegamos a uma cidade do exterior, viro as costas e você some.”
“Me desculpe.” Lucy se sentiu idiota e pequena. Agora Charlotte teria mais
uma arma para usar contra ela. Era irresponsável. Mais uma falha que podia ser
adicionada à lista. Antissocial. Não sofisticada. Descuidada.
“DEVÍAMOS TÊ-LA deixado em casa”, disse Charlotte, mais tarde, quando ela e
Ben estavam sozinhos no quarto. Haviam saído para jantar com a família de
Charlotte, e Ben pensou em levar Lucy junto, ainda que ela fosse ficar sentada lá
lendo o tempo todo. Charlotte teve de implorar para que ele a deixasse no hotel,
então ela forçou Lucy a assinar um contrato prometendo que não sairia do hotel
sem antes informar o pai. Agora Charlotte penteava os cabelos, que era
comprido e da cor do mel. Trouxera para a viagem três malas, uma para bolsas e
sapatos.
“Para um mês?”, perguntou Ben. “Lucy vai ficar bem. Crianças conseguem
se ajustar a qualquer coisa. Veja o exemplo de Anne Frank.”
“Não fale em Anne Frank, Ben. Estou falando sério! Não aguento mais ouvir
o nome dela o tempo todo. Não quero nem escutar a palavra Frankfurter.”
Ben riu. Ele estava na cama olhando para Charlotte. Apaixonara-se por ela,
que era dez anos mais jovem. Ele se sentia cansado de ficar sozinho e ela era
muito bonita, assim surgiu um redemoinho de calor e, logo, um casamento.
“Acho que devíamos deixar o casamento para lá”, falou Ben. “Voltar para
Miami. Nos divertirmos.”
“Em agosto? E Bryn é minha irmã, apesar de seus erros. Não queria perder o
casamento dela.”
Bryn se preparava para se casar com um inglês que conhecera em Paris e sua
família viera para ajudar na celebração. Todos estavam radiantes, e por um bom
motivo. Bryn Evans tinha apenas 23 anos, mas sua vida não fora nada fácil.
Apenas algumas pessoas sabiam a verdade sobre ela, todas essas eram parentes.
Pessoas de fora, inclusive Ben Green, não tinham a menor ideia de que Bryn
possuía uma história secreta. Ela já fora casada com um homem extremamente
inadequado e perigoso, que todos desaprovavam. Na verdade, ninguém o
conhecera, mas leram os boletins policiais. Isso era mais que suficiente. Era uma
espécie de vigarista que roubava as fortunas de viúvas, ou algo assim. De
qualquer forma, a família cuidara do problema e houve uma anulação. Bryn fora
mandada para Paris, onde conhecera Teddy Healy, um banqueiro que certamente
seria boa influência para ela. Teddy era um bom partido, um homem que a
família aprovava. Enfim, uma decisão lógica, diferente da maioria das coisas que
Bryn fazia. Ainda assim, apesar de ter Teddy em sua vida, Bryn parecia instável
e deprimida. Pior de tudo, havia começado a beber.
Naquela noite, por exemplo, o jantar rapidamente degringolara. Faltavam
três noites para o casamento e isso servia como desculpa boa o suficiente para
celebrar a cada oportunidade que aparecia. Toda a família de Charlotte – seus
pais, Carl e Mary; a irmã mais velha, Hillary, e seu marido, Ian; com o irmão de
Teddy, Matthew, e sua esposa, Francie – reuniram-se para a celebração. Teddy e
seu irmão ficaram órfãos bem cedo e foram criados por uma tia, que também
faleceu; cada garoto serviu como a tábua de sustentação para o outro,
dependentes um do outro, meninos sérios que se tornaram homens confiáveis.
Ao longo da refeição, Matthew começou a ter dúvidas a respeito da escolha
de seu irmão. Bryn tomara duas taças de vinho antes do prato principal. Bryn
não era apenas a irmã mais jovem, era também a mais bonita e fora mimada. Era
teimosa quanto a coisas bobas; por exemplo, recusava-se a cortar seu cabelo
loiro, que ia até a cintura. Naquela noite, no restaurante, ela o prendeu em um
coque; mesmo assim, continuava linda. Usava um vestido de seda azul-anil.
Teddy lhe dera um enorme diamante lapidado, encaixado num anel de platina.
Em sua mãozinha pálida, era impossível não notar a joia.
“Esta velharia”, disse, quando suas irmãs a cumprimentaram, “pesa uma
tonelada.”
Já na metade da entrada, Bryn estava bêbada. Charlotte lhe perguntou se
gostaria de sair para dar uma respirada, que na verdade significava fazer uma
pausa para fumar um cigarro, enquanto ela tentaria deixar Bryn sóbria. As duas
desceram para o banheiro feminino. Bryn quase tropeçou nos degraus. Charlotte
pegou cigarros para as duas.
“Pare de beber”, falou. “Você está fazendo papel de boba lá em cima.”
“Você sempre acha que pode me dizer o que fazer. Para sua informação, não
estou bebendo. Não muito.” Bryn deu uma tragada no cigarro. Seu rosto estava
vermelho e quente. “Ainda não.”
“Não haverá ninguém aqui em Londres para cuidar de você”, disse Charlotte.
Ela sempre se preocupara com sua irmã, cujas decisões erradas Charlotte
creditava à juventude e à inocência. “Você precisa começar a ser responsável por
si mesma.”
Bryn fumava seu cigarro e olhava-se no espelho. Quando estreitou os olhos,
sentiu como se estivesse sumindo. Um borrão azul e loiro e fumaça. Tudo isso
desaparecendo. Ela realmente menosprezava sua aliança. Sentia como se fossem
algemas.
“Já ouviu falar de amor?”, perguntou Bryn. “Ou é totalmente insensível?”
“Amor”, falou Charlotte, com desprezo. “É assim que uma criança se refere
ao casamento. Você é tão boba quanto minha afilhada.” Charlotte estava cansada
de tanta baboseira. Não era nenhum crime ser realista, certo? Não significa ser
uma pessoa ruim ou inferior. “Aposto que logo vai me contar que está lendo o
diário de Anne Frank. Cresça, Bryn.”
“Pelo menos, Anne Frank morreu por uma coisa importante e que valia a
pena”
“Ouça-me: Anne Frank morreu porque existem pessoas horríveis e más neste
mundo, só por isso. É uma bagunça sem fim e, quando se consegue, é preciso
ajeitar sua vida. Ela não conseguiu, mas você não está em meio a uma guerra.
Está em Londres, com um diamante enorme na mão. Portanto, pare já com isso.”
Bryn apagou o cigarro. Já havia decidido que não ia voltar para o jantar lá
em cima. Seu rosto assumia uma expressão única quando estava prestes a ser
desafiadora, não muito diferente daquela que Lucy tinha sempre que abria um
livro. Os lábios de Bryn ficavam cerrados e havia um leve tremor sob um dos
olhos, como se ela fosse uma bomba a ponto de explodir.
“Você vai foder com tudo, não vai?”, perguntou Charlotte. “Viemos todos
para este casamento. Teddy é um cara incrível que está maluco por você. Esta é
sua chance de ter um futuro de verdade com um homem gentil e normal.”
Bryn deu uma risada. Abriu sua bolsinha. Charlotte pensou que fosse pegar
outro cigarro; em vez disso, tirou uma tesoura de cutícula. Em sua vida secreta,
Bryn ficou num apartamento em Manhattan, num cruzamento da Nona Avenida.
Não era o melhor endereço possível, mas ela não dava a mínima. Parou de
frequentar as aulas em Barnard; cortou qualquer contato com sua família. Ela
nunca conhecera alguém que morasse com um homem sem estar casada. Como
ela se sentia desconfortável com a situação, o homem que amava se casou com
ela, no cartório central, ainda que ele não acreditasse nas regras e regulamentos
da sociedade. Era um socialista e um livre-pensador, mas fez isso por ela. Teria
feito qualquer coisa por ela; nunca reclamou ou disse-lhe que era mimada,
estúpida e inútil. Bryn nem fez sexo com ele até a noite em que se casaram. Era
engraçado escutá-lo dizer que aguardaria, que já tinha estado com mais de uma
centena de mulheres, mas que ela valia a pena.
Um detetive a encontrara. Quando ele e o pai das garotas arrombaram a
fechadura da porta do apartamento e entraram, podiam escutá-la cantando.
Seguiram o som. Os dois eram homens práticos, cautelosos, que sentiam estar
tropeçando para dentro de um sonho. Bryn tinha uma voz bonita, triste, que
lembrava um pouco Patti Page. O eco de sua voz fazia parecer que ela tivesse
caído num buraco, mas na verdade estava reverberando em tijolos brancos e
pretos. Estava na banheira, numa água quente. Quando Bryn viu o pai e o
detetive, ela se levantou sem nem se preocupar em se cobrir. “Não”, gritou. “Vão
embora daqui.”
Bryn estava pensando naquele momento em que tirou os grampos do cabelo
e deixou-o escorrer pelas costas. Moveu-se tão rapidamente, que Charlotte
demorou para entender o que sua irmã estava fazendo. Depois, a sensação era
como a de alguém que vê um suicídio sendo cometido à sua frente, como se
Bryn tivesse se levantado e puxado o gatilho sem dar tempo para sua irmã reagir.
Charlotte ficou lá sentada, em choque, quando Bryn começou a picar o cabelo.
Segurou a ponta com uma mão, como se fosse uma cobra ou uma corda. Com
algumas tesouradas rápidas, ela o cortou bem ali, no banheiro feminino.
“Meu Deus, Bryn.” Charlotte se apressou, mas Bryn não parava de retalhar,
cada vez mais curto, até que o chão ficou coberto de fios de cabelo. Charlotte se
afastou; não estava disposta a lutar com Bryn pela tesoura. Sabia como sua irmã
era obstinada. “Está feliz agora?”, perguntou, quando Bryn finalmente parou.
Havia mechas loiras por todo o vestido preto. Bryn estava em silêncio; sua
energia acabara. O estranho era que estava ainda mais bonita.
“Se essa é a aparência que você quer para se casar, legal. Vou subir para
terminar minha refeição”, disse Charlotte. “Você é sua pior inimiga, menina.
Ninguém vai ficar sentindo pena de você.”
“Então sinta pena de Teddy”, falou Bryn. “Não é justo eu me casar com ele e
todos vocês sabem disso. Principalmente porque já estou casada.”
O homem com quem ela se casara quatro anos antes, quando tinha apenas
dezenove anos, era Michael Macklin. Foi ele quem fizera promessas que nunca
imaginou que faria e, certamente, nunca acreditou nelas. Ele estava agora
bebendo no bar do Lion Park Hotel. Também jantara lá, uma carne bem
ruinzinha com salada. Esperava encontrar a garotinha, que ele sabia ser sua
melhor chance. Lucy não fora convidada para o jantar de família só para os
adultos. Ela assinara aquele contrato idiota que Charlotte colocara na sua frente
para calar-lhe a boca. Todos que conheciam Lucy sabiam que ela não era do tipo
que criava problemas e na verdade acabou caindo no sono ao ler um guia
turístico de Londres. Sonhou com os corvos na torre. Sonhou que o Hyde Park
estava repleto de neve e coelhos brancos, coelhos enormes, quase do tamanho de
cachorros. Eles apareciam quando chamados, mas era preciso chamá-los com
gentileza. Era preciso dizer “Oh, coelho, eu lhe imploro”.
“Eis um segredo”, disse um coelho para Lucy. “É tudo um faz de conta.”
Quando Lucy acordou, ela não sabia onde estava. Para se lembrar, precisou
olhar pela janela para os faróis dos carros que passavam pela Brompton Road.
Ficou aliviada por não ter ido ao jantar com os adultos. Desejava ainda estar com
o diário de Anne Frank, não tê-lo emprestado. Quando seu estômago começou a
resmungar, Lucy percebeu que havia se esquecido de jantar; desceu para o
restaurante às nove, esfomeada.
“Olá”, gritou quando viu Michael, que estava no seu segundo drinque.
“Melhor não comer o picadinho de carne”, respondeu. “Não recomendo.”
Lucy pediu macarrão com queijo e uma torta de maçã para sobremesa.
“Ah, e chá”, disse para o garçom. Desde que chegara, tornara-se uma
fanática por chá. De certa forma, sentia-se já uma pessoa diferente daquela que
suas amigas conheciam. Era provável que parecesse bem mais velha; era
provável que soasse um tanto parecida com Katharine Hepburn.
Michael se aproximou e sentou-se diante de Lucy. Vestia um terno preto e
camisa branca. Era bem estiloso.
“Comecei a ler o livro”, falou. “Anne Frank tinha coragem. Agora entendo
por que você a admira. Não se encontra muita gente assim neste mundo.”
“Na maior parte do tempo, só se encontra merda neste mundo.” Lucy ergueu
a cabeça para ver se ele ficara chocado com seu linguajar dessa vez. Não ficara.
“Preciso que faça uma coisa por mim”, disse Michael. “Bem, na verdade, em
nome do amor.”
Lucy olhou para ele. “Não sou idiota”, falou. Sua comida chegara, e ela
começou a comer. “Você quer me usar de alguma forma para conseguir uma
coisa. Certo? Caso contrário, é provável que nem viesse conversar comigo.”
Michael Macklin sorriu. “Você é mais esperta do que a maioria das pessoas.”
“É exatamente isso que uma pessoa diz quando quer que outra faça um
trabalho sujo. Preciso atirar em alguém e dizer que a arma disparou por
acidente?”
Michael pegou um envelope. “É uma carta que gostaria que fosse entregue.
Simples. É só isso que tem de fazer.”
“Você sabia que tem uma coelha morando neste hotel? O nome dela é Millie.
E é enorme. Nunca vi uma coelha tão grande.”
“Sabia que coelho é um prato popular nos restaurantes franceses?”
Lucy abaixou o garfo.
“E a propósito”, continuou, “eu teria conversado contigo de qualquer forma.
Você é a única pessoa interessante neste lugar.”
Michael Macklin era o homem mais bonito que Lucy conhecera em sua vida.
Contudo não achava que era isso que alguém devia procurar num marido.
Deviam procurar a alma. Mas, naquele momento, ela estava lá, sentada de frente
para ele, fascinada. Percebeu que Michael Macklin era mais do que bonito.
Quando o olhou nos olhos, viu algo que não se costuma ver. Tinha uma
aparência de sinceridade, algo que os adultos nunca possuíam.
“Continue”, falou ela.
“Ah, o pobre coelho. Chamam-no de le lapin e o cozinham com cebolas e
vinho.”
Lucy deu uma risada, apesar dos detalhes sangrentos. “Não o coelho…”
“É amor mesmo. Quero que leve esta carta para a irmã de sua madrasta,
Bryn.”
“A noiva?”
“Ela não pode se casar. Já está casada.” Michael se aproximou, e Lucy fez o
mesmo. “Comigo.”
“Por que eu faria isso?” Lucy sentiu uma pontada no estômago e achava-se
um pouco jovem demais para aquela conversa. Já percebera que era difícil dizer
não para Michael quando ele queria algo. Ainda assim, estava interessada em
escutar seus argumentos. Eram simples e eficientes.
“Porque, no fundo, você acredita nas coisas”, disse Michael Macklin. “Assim
como eu.”
MICHAEL MACKLIN fizera algumas coisas ruins, isso era verdade. Ele
continuava fazendo, usando uma criança para levar sua carta para Bryn,
perseguindo-a, trocando de quarto para ficar na frente de Lucy, de forma que
tivesse acesso a Bryn. Bem, esse era Michael. Mentia a respeito de tudo em sua
vida e não iria parar agora, quando mais precisava. Mentia com tanta frequência
e tão bem, que às vezes se confundia quanto aos fatos de sua vida. Na verdade,
era algo simples: nascera em Manhattan, de pais bem intencionados, mas que
pouco faziam. Começou a trabalhar aos quatorze anos, foi para o exército, serviu
na França, onde aprendeu não apenas a língua, mas também como conseguir o
que queria. Na França, arriscara sua vida, e não tremera nem um pouco. Um
rapaz que conheceu dizia que as únicas pessoas que não tinham medo da morte
eram aquelas que nada tinham a perder, e Michael achou que estavam certos. Em
batalha, sentia-se vivo. Quando corria, sentia que tinha para onde correr. Gostava
do perigo, gostava do cheiro do perigo. Gostava da sensação de seu sangue ficar
quente.
Michael era um ladrão, mas nunca roubou dos pobres. Afinal de contas,
quando menino, vira Robin Hood com Errol Flynn; sabia encontrar pessoas que
podiam suportar a perda de dinheiro, pessoas que nem sequer dariam pela falta.
Em muitos sentidos, Michael lembrava um cão: podia farejar o perigo e podia
farejar a riqueza, podia caçar e escavar. Ele vivia o momento, o aqui e agora.
Levava uma vida sem muitos questionamentos. Só sentia alguma ligação quando
via cachorros de rua. Aconteceu numas vilas abandonadas na França e em Nova
York, perto das docas. Era uma ligação estranha, visceral, como ver-se no
espelho e reconhecer-se, ainda que a aparência fosse bem diferente daquela
imaginada, com caninos, pele e medo.
Voltara para Nova York depois da guerra, e ninguém dava a mínima se ele
era um herói ou um ladrão. Ninguém o conhecia. Às vezes, ia até a Décima
Avenida e sentava-se no escuro, esperando um daqueles cachorros, desesperado
para estar ao lado de uma criatura que o entendesse. É engraçado ter sentido isso
com Lucy, uma criança de doze anos de idade que não tinha como entender o
tipo de vida que ele levava. Ainda assim, ela parecia compreendê-lo. Enxergava
as pessoas por dentro, e isso era ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição.
Michael conhecera Bryn por acaso. Estava andando pela Rua 14 e ela
caminhava à sua frente; Michael acabou seguindo-a. Teve um pensamento
estranho, o mais estranho que jamais teve. Imaginou ter encontrado um anjo na
Terra e que precisa protegê-la de pessoas como ele. Será que alguém de sua vida
pregressa acreditaria que ele se apaixonara? Difícil. Era um usuário, sempre atrás
de um golpe; todos que o conheciam sabiam disso. Nunca acreditariam que ele
gastara todo o seu dinheiro para cortejar Bryn, ou que esperara se casarem para
tê-la na cama, ou que falara sério quando disse que seria para sempre.
Andando pela Rua 14, num dia comum, ele mudou. Era como se sua
estrutura celular tivesse sido rearranjada. Agora podia sentir coisas e entendia
por que isso não lhe acontecia havia tanto tempo. Naquele mundo, fazia sentido
ser um cão. Seguir em frente e farejar problemas. Devia ter feito isso novamente
depois que Bryn lhe fora tomada, reduzindo as perdas e esquecendo que se
apaixonara. Em vez disso, lá estava ele, no Hotel Lion Park, tendo seguido Bryn
até Amsterdã, depois em Paris e agora em Londres. Esperava que uma garota de
doze anos de idade o resgatasse. Ela não o deixaria na mão. Lucy bateu à sua
porta e passou um envelope por baixo.
“Não vou fazer isso novamente”, ele ouviu a sua voz, enquanto tentava pegar
a carta. Nem se preocupou em abrir a porta para agradecer à garota. Leu a carta
de Bryn com voracidade, tão rapidamente que perdeu algumas palavras. E então
leu mais uma vez, e mais outra. Ficara sentado ali esperando, quase bêbado, com
roupas amassadas, muito próximo de desistir. Agora tomou um banho, ficou
sóbrio e vestiu uma camisa limpa. Lucy era seu anjo. Ele precisava de ajuda, e
ela o ajudou. Ele precisava que alguém, qualquer pessoa, tivesse fé, e ela teve.
Sentou-se à mesa para escrever. Achava que era impossível descrever a alma
em palavras, mas conseguiu fazer isso. Anotou todas as coisas ruins que fizera
na vida. Queria que soubessem de tudo. Era como uma sensação de sede ou
fome, talvez até mais forte. Pensou nos cães de Nova York e que achava
compreendê-los, mas estivera se enganando. Não conhecia ninguém, muito
menos a si mesmo.
Ficou acordado boa parte da noite escrevendo a carta, e pela manhã já estava
aguardando no restaurante quando Lucy e sua família desceram para tomar café.
Não dormira nada, porque ansiava por aquele momento. Lucy olhou para ele,
mas logo afastou o olhar. Seu pai e Charlotte iam levá-la para conhecer a Torre
de Londres, ainda que Charlotte considerasse uma perda de tempo e que estaria
terrivelmente cheia. O pai de Lucy insistira que precisavam ser turistas por um
dia, já que Lucy não vira muito mais do que o interior de um quarto de hotel.
Sentaram-se e pediram ovos, tomates fritos e café. Lucy queria chá e torrada.
Estava desenvolvendo um paladar para marmelada.
“Isso não é nutritivo”, falou Charlotte. “Você precisa dos cinco grupos
alimentares.”
“Chocolate, pizza, cereais, refrigerante e rabanada”, disseram Ben e Lucy em
uníssono.
Lucy deu uma risadinha. Era uma piada particular que costumavam fazer
antes de Charlotte aparecer. Uma lista de suas coisas favoritas.
“Aquele homem ali está olhando para nós?”, perguntou Charlotte.
Todos olharam para a mesa ao lado da janela. Michael Macklin bebericava
seu café. Era realmente lindo. Abaixou sua colher e fez uma saudação para Lucy.
Ela afastou o olhar mais uma vez.
“Você o conhece?”, perguntou Charlotte.
“Não diria bem que o conheço”, respondeu Lucy com uma evasiva. “Eu lhe
emprestei O diário de Anne Frank.”
“Essa coisa de Anne Frank não é normal”, disse Charlotte para Ben. “É uma
obsessão.”
Lucy ergueu os olhos. “Acha que a maioria das pessoas a odeia?”, indagou a
Charlotte. “Ou só aquelas que têm cérebro?”
“Lucy”, falou o pai. “Isso não é jeito de falar!”
“Bem, então diga isso para ela”, falou Lucy. “Ela não pode simplesmente
falar sobre mim, e eu sentada aqui. Não sou um móvel.”
“Não quis dizer isso”, falou Charlotte. “Você está levando muito para o lado
pessoal. Apenas quis dizer que há coisas mais divertidas no mundo para pensar
do que em Anne Frank.”
“Olá.” Michael Macklin viera até eles. Parecia uma estrela de cinema, como
alguém por quem Katharine Hepburn estaria apaixonada, a quem perderia e teria
de reconquistar. “Prazer em conhecê-los.” Apertou a mão do pai de Lucy. “O
senhor tem uma filha muito esperta. Sou obrigado a dizer. Ela é inteligente,
posso garantir.” Tirou o exemplar do diário de Anne Frank do bolso do paletó.
“Aprendi muita coisa”, falou para Lucy. “Quero agradecer-lhe por me emprestar.
Acho que não sou mais o mesmo homem, graças a você.”
Lucy pegou o livro e colocou-o sobre a coxa. Havia tanta coisa errada no
mundo para aturar. Seria mesmo possível que o amor existisse?
“Bem, tenham um bom-dia aqui em Londres”, falou Michael Macklin.
“Nova-iorquino, certo?”, perguntou Ben Green.
“Não somos todos?” Michael apertou a mão do pai de Lucy novamente.
No táxi, no caminho para a torre, Charlotte insistiu que passassem pelo
Palácio de Buckingham. Elizabeth era rainha desde fevereiro: estava no Quênia e
fora chamada às pressas de volta quando seu pai morreu.
“Lá está”, falou Charlotte.
Lucy não parou de folhear o diário de Anne Frank para olhar os homens
fazendo guarda atrás dos portões. Achou que deviam estar com um calor terrível.
Sentiu a ponta de um envelope no meio do livro. Imediatamente, seu coração
disparou. E levou a mão ao peito. Nem sequer imaginava que tinha um coração,
mas lá estava ele, batendo com força. Michael Macklin era bem esperto mesmo.
Ao longo de todo o passeio pela torre, Lucy não parava de pensar na carta em
seu bolso. Parecia pesar mais do que um papel normal. Não paravam de falar de
decapitações e esposas trancadas. Por algum motivo, Lucy sentiu vontade de
chorar enquanto caminhavam com o grupo para ver as Joias da Coroa atrás de
vidros. Sua mãe adorava arte, ela e Lucy costumavam ir ao Museu Metropolitan.
Sentia saudades de sua mãe e de seu pai, e da pessoa que ela mesma costumava
ser. Sentia saudades de tudo.
No táxi, voltando para o hotel, Lucy disse que havia deixado seus óculos
com Bryn. Precisava deles para enxergar a distância, mas nunca os usava. O táxi
parou na frente do apartamento de Teddy Healy – era lá que Bryn ficaria
enquanto Teddy acampava com seu irmão até o casamento.
“Vou correndo”, falou Lucy. “Já volto.”
“Não podemos ficar esperando aqui o dia todo”, gritou Charlotte, depois que
ela já havia partido.
Lucy entrou no prédio e subiu até o segundo andar. Precisou esmurrar a porta
para que Bryn viesse atender.
“Quem é?” Bryn usava seu roupão de banho, embora ainda estivessem no
meio da tarde.
Lucy entregou a carta. Caso perguntassem onde estavam seus óculos, teria de
dizer a eles que se enganara. Na verdade, estavam sobre a escrivaninha de seu
quarto no Hotel Lion Park.
“Tenho de responder”, disse Bryn.
“Você está maluca? Estão me aguardando no carro.”
“Está bem, está bem”, falou Bryn. “Então lhe diga para me encontrar na
Igreja do Apóstolo, em Westbourne Grove. Está tudo preparado para amanhã às
dez. Não vai esquecer?” Lucy prometeu que não. Bryn se inclinou e beijou a
menina, bem nos lábios. “Quero que seja minha testemunha. Faria isso por
mim?”
Lucy fez que sim com a cabeça.
“Bem, então vá!”, disse-lhe Bryn. “Antes que a venham procurar.”
Quando entrou no táxi, nem lhe fizeram perguntas sobre os óculos. Pareciam
estar em meio a uma briga.
“Como estava Bryn?”, perguntou Charlotte, no caminho de volta para o
hotel. “Normal?”
Lucy sentiu vontade de soltar uma gargalhada. Olhou para Charlotte com
bastante cautela. Não dava a mínima para o que achava sua madrasta.
“Perfeitamente normal”, respondeu.
TEDDY PERCEBEU QUE sua vida fora alterada por uma carta. As únicas cartas
que escrevera eram de agradecimentos a suas tias e primos por conta de seu
aniversário, quando lhe enviavam presentes; as únicas que recebera eram de
parentes que nunca conhecera, que moravam na Austrália, bilhetes de pêsames
depois que seus pais faleceram. Mas uma carta escrita por Bryn mudara sua vida,
então em outubro recebeu mais uma. Chegou ao Lion Park com seu nome no
envelope. Passaram-se alguns dias até que ele a recebesse. A recepcionista ia se
casar com o cozinheiro e todos estavam empolgados. O casamento aconteceria
no restaurante do Lion Park, todos os funcionários foram convidados. Certa
noite, quando Teddy chegou, o barman falou: “Sinto muito, Teddy, mas estamos
fechados hoje à noite. Festa particular”. E entregou a carta para Teddy. “Dorey
esteve tão envolvida com os preparativos, que se esqueceu de lhe entregar isso.
Deus sabe por que foi enviado para cá.”
A festa estava acontecendo dentro do restaurante. Havia fitas brancas e
violetas penduradas por todo o bar; havia garrafas de champanhe espalhadas e
bandejas prateadas de sanduíches e frutas. A cerimônia tinha acabado e a festa
estava a todo vapor. A recepcionista dançava com seu vestido branco. Lá estava
o cozinheiro, seu noivo, brindando com todos os amigos e dizendo-lhe que era
melhor aproveitarem a bebida, já que as despesas do bar seriam pagas pela
gerência do hotel.
Naquela época, Teddy tinha medo de cartas. Sentou-se no lobby por um
tempo, mas o som da música e da festa estava começando a incomodar e assim
seguiu pela rua. Pretendia ir para o hotel onde se hospedara logo depois do
acidente e sentar-se no lobby de lá, um espaço escuro e solitário, mas em vez
disso foi para casa. Andou pela escuridão. Preferiu atravessar o parque, de forma
a evitar deparar com alguém. Afinal de contas, estava sozinho, podia muito bem
curtir essa sensação. O parque cheirava a folhas. Essa costumava ser a sua época
favorita do ano. Quando as folhas ficavam amareladas e o tempo ainda estava
bom. Agora não se importava. Na verdade, era uma pessoa pela metade e essa
metade não dava a mínima para coisas como folhas e tempo. Foi para o
apartamento que seu irmão alugara e pegou uma garrafa de uísque.
A carta fora escrita no papel timbrado de uma pequena estalagem na Escócia.
Teddy não reconheceu a letra. Abriu o envelope com uma faca, tirou a carta e
deixou-a sobre a mesa por um tempo. Devia ser mais um grande embuste da
vida. Era bem provável que fosse um bilhete dizendo que tinha uma doença ou
que devia impostos. Bebeu mais uma dose antes de começar a ler. Iniciava
assim:
Prezado senhor Healy, sou a garota do hotel. Meu nome é Lucy Green e
estou escrevendo para o senhor porque acho que é a única pessoa no mundo que
me entende.
De início, pensou que fosse uma brincadeira, mas logo se lembrou do
instante em que ela saiu correndo do quarto e passou a achar que era real.
Fiquei pensando se o senhor não poderia me dizer que descobriu que existe
um motivo para continuar a viver. Pensei muito sobre isso. Ao contrário de Anne
Frank, não tenho mais fé nas pessoas. Acho que o senhor também não, mas não
tenho certeza. Estou viajando com meu pai. Vamos até o Lago Ness procurar o
Monstro, mas na verdade estamos apenas seguindo em frente até descobrirmos
quando teremos de voltar para casa e o que fazer com o resto de nossa vida.
Estaremos de volta a Edimburgo no dia 22 deste mês, no Hotel Andrews, cuja
proprietária é a senhora Amanda Jones. Pode me escrever para esse endereço
se tiver uma resposta. Se não tiver, sinto muito por ter-lhe incomodado. Foi tudo
culpa minha. Ela me entregou a carta para deixar com o marido dela. O senhor
não fez nada de errado; fui eu.
Teddy não conseguiu dormir naquela noite, pois não parava de pensar na
carta. Responder não lhe faria nenhum bem; ela estava certa, ele não tinha fé nas
pessoas. Mas Teddy não queria se sentir assim. Se deparasse com alguma parte
dela que fora perdida no corredor do Hotel Lion Park, não seria capaz de
continuar vivendo. Era uma garota de doze anos e não tinha nada que ver com
aquilo. Não havia motivos para ela se sentir assombrada. Então Teddy fez algo
que não lhe era comum. Telefonou para o hotel onde a garota se hospedaria em
Edimburgo. O Andrews. Conversou com a proprietária, que foi informada de
tudo pelo que Lucy passara. Falou apenas sobre a enfermidade em questão, e não
do restante dos acontecimentos. Não tocou no assunto das mortes, da avenida
cheia de sangue e do fato de a menina ter olhado em seus olhos e percebido que
ele havia se perdido completamente. Isso era algo reservado apenas àqueles que
realmente entenderiam. Como, por exemplo, ele mesmo.
Seu primeiro romance, Property Of, foi escrito quando ela tinha 21 anos
e estudava em Stanford. Desde o início mostrou ser uma talentosa escritora.
Ela criou um público fiel e sua obra foi publicada em vários idiomas.