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E NTRE VI S TA

IRINA BOKOVA:

PERSONALIDADE
FORTE FRENTE
À UNESCO
Como a educação contribui para a construção de um indivíduo enquanto pessoa?
De que modo a cultura molda a personalidade de um líder? Quais são os valores
de alguém que conduz uma grande organização e cujas decisões influenciam
uma sociedade inteira? Respondendo em primeira pessoa, Irina Bokova, a
mulher que dirigiu uma das principais agências internacionais das Nações
Unidas, responsável pela educação, ciência e cultura.

por Clarissa Miranda

Em novembro de 1945, ao fim da Segunda Guerra pela John F. Kennedy School of Government da Univer-
Mundial, 44 países (entre eles o Brasil) reuniram-se para sidade de Harvard, Irina Bokova tornou-se diplomata au-
definir o que seria a Constituição da Agência da ONU para xiliada pela fluência nos idiomas búlgaro, francês, inglês,
a Educação, Ciência e Cultura, a Unesco (United Nations espanhol e russo. Foi personagem importante para seu país
Educational, Scientific and Cultural Organization). Da sua na transição após o fim da Guerra Fria e integração da Bul-
fundação até 2010, com a criação da ONU Mulher, cabia a gária ao mundo globalizado. Ocupou postos como minis-
essa agência ser ainda uma das defensoras da igualdade de tra de Relações Exteriores e coordenadora das relações en-
gêneros e dos direitos da mulher dentro das Nações Unidas. tre a Bulgária e a União Europeia, além de embaixadora da
Paradoxalmente, seu mais alto cargo executivo nunca Bulgária na França, em Mônaco, e delegada permanente
havia sido ocupado por uma representante feminina. Esta da República da Bulgária na Unesco. É, também, fundado-
honra coube à diplomata e política búlgara Irina Bokova, ra do European Policy Forum, em que atua para fomentar
eleita para o posto de diretora-geral da Unesco em 2009, valores de diálogo, diversidade, dignidade humana e direi-
permanecendo no cargo até novembro de 2017. tos humanos – tarefa, aliás, parecida com a que assumiu,
Cidadã do mundo, pós-graduada em Relações Interna- desde 2009, em seus mandatos frente à Unesco.
cionais pelo Moscow State Institute of International Re- Na liderança da organização, Irina administrou um
lations e pós-graduada pela Universidade de Maryland e orçamento de US$ 667 milhões aprovado para o período

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“A pergunta não é, a de 2016 a 2017, prestando contas a um conselho-executivo de 58 países, no


qual, atualmente, o Brasil é um dos membros. Sua missão exigiu diplomacia
meu ver, se as mulheres e capacidade de antevisão em relação a quais são as prioridades da agência
no momento. Por oito anos, ela precisou, ainda, dialogar com os 195 países­-
são melhores do que os -membros, além de oito países associados da Unesco. São mais de 2 mil
colaboradores, incluindo os comitês nacionais, que devem ser distribuídos
homens, ou se os homens e administrados em áreas­-chave para a instituição, as quais são bastante
diversas, abrangendo temas como educação, ciências naturais, preservação do
são melhores do que as patrimônio histórico mundial, comunicação, informação e tecnologia, respeito
mulheres. Penso que é à diversidade cultural entre povos, ética na ciência, prevenção de desastres
naturais, premiações e publicações. À frente destes desafios esteve, nos últimos
mais do que isso. Acredito anos, a então diretora-geral da Unesco. Uma mulher com mais de 65 anos,
maneiras elegantes, que, ao receber a equipe da Performance Líder, mencionou
que a pergunta seja sobre a amizade com brasileiros, como o senador e ex-ministro da Educação
Cristovam Buarque. Na sua sala no famoso edifício sede da Unesco em Paris,
escolhas e oportunidades.” Irina Bokova falou com exclusividade à revista, tendo como pano de fundo
uma vista panorâmica para a capital francesa e sua charmosa Torre Eiffel.

A educação é determinante para a construção dos indivíduos enquanto pessoas. Como a senhora
percebe a educação como componente importante da pessoa que é hoje?
Tive a sorte de receber uma boa educação. A educação é algo que abre os olhos para qualquer
coisa. A educação dá a você a oportunidade de entender os outros, o mundo. No meu caso, tive
a curiosidade de aprender sobre outras culturas, de ler literatura de outros povos, de aprender
idiomas e, depois, de entender o que está por trás disso tudo. Acredito que isso seja muito
importante, especialmente nos dias atuais. Educação é fundamental.

A senhora exerceu importante papel na Bulgária no período de transição pós-queda da União


Soviética. Como a cultura contribuiu para a construção da sua personalidade?
O fato de, em minha vida, há 20 ou 30 anos, eu ter vivido em um sistema diferente, em um
cenário diferente, deu-me a oportunidade de participar de uma enorme mudança. Isso reforçou
alguns dos meus pensamentos, algumas das minhas maiores convicções. Provavelmente me
ajudou a superar alguns tipos de crises, ou a entender melhor algumas situações. Deste ponto
de vista, não é uma desvantagem, pelo contrário, ajuda muito, porque entendo melhor alguns
pontos, algumas partes do mundo. Entendo e tenho profunda convicção de quais valores devem
ser promovidos nesses locais em termos de democracia, dignidade humana, direitos humanos.
Porém também sou audaciosa em minhas convicções sobre a necessidade de mudanças, de ver
as coisas acontecendo, o sentimento de que você pode mudar e de que você pode, de certa
forma, abalar os sistemas. Acredito que adquiri isso da minha experiência passada. Não só eu,
como muita gente na Europa Oriental, ao passar por aquela mudança. Tudo na nossa vida foi
virado ao contrário, e nós vimos uma mudança tão tremenda e tão dinâmica. Por isso, eu me
considero muito mais audaciosa em algumas decisões. Sou muito mais sincera e franca quando
me aproximo dos demais e digo que, se algo está errado, é por causa de certos valores. Talvez
não seja assim tão diplomática o tempo todo, pois adquiri esta coragem em virtude do que nós
vivemos em meu país.

A senhora defende a necessidade de um novo humanismo para o século XXI. Como surgiu essa
proposta?
Esta ideia veio a mim quando eu estava fazendo a campanha para esta posição de diretora-geral da
Unesco. Eu estava viajando muito, visitei 50 países, fui para lugares em que eu nunca havia ido antes.

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Sede da Unesco em Paris, entidade que se ocupa de temas planetários como educação, ciências naturais, preservação do
patrimônio histórico mundial, comunicação, informação e tecnologia, respeito à diversidade cultural entre povos, entre outros.

Fui a muitos lugares pobres e diferentes na África, por fragmentação e tanto conflito, tanta disparidade, tanta
exemplo. Fui para a América Latina, estive na Ásia. Fui pobreza, que concluí que nós realmente temos que
para alguns lugares perigosos. Tive um tipo de sentido repensar o futuro enquanto humanidade, civilização.
diferente do que é o mundo. Isto provocou também, Pode soar um pouco ingênuo, mas eu acredito que o
de certa forma, um abrir de olhos para mim. Todos que a Unesco está fazendo atualmente é exatamente
os candidatos para este posto tinham que apresentar, trazer algo de diferente para o palco mundial.
na ocasião, a sua visão, no ano 2000, para a Unesco.
Foi naquele período, um ano antes de minha eleição, O que a senhora entende por novo humanismo?
que pensei no que era realmente necessário. A Unesco, Quando eu digo novo humanismo, tenho em mente o
afinal, fora criada com a missão de construir algo modo tradicional de pensamento, um humanismo do
diferente, de construir paz e trazer uma abordagem século XVIII, que coloca o homem, o ser humano, me-
leve, por assim dizer, em relação aos assuntos. Penso lhor dizendo – porque senão o homem se sobrepõe à
que, com tantos desafios hoje em dia, nós estamos mulher –, no centro das preocupações. Mas hoje temos
realmente em uma encruzilhada. As mudanças na novas demandas. Para mim, quando se fala de huma-
Europa Oriental, a queda do Muro de Berlim e o fim nismo, significa falar de natureza, de biodiversidade, de
da Guerra Fria foram esperanças tremendas. Nós todos preservação. É o link entre homem e meio ambiente.
pensamos que haveria uma eterna paz e prosperidade É também sobre equidade de gêneros, porque, apesar
no mundo. Foi uma crença muito frágil, para ser franca. do que é dito, o que vemos é que estamos muito atrás
Nós pensamos que, somente porque tinha havido a do que nós pensamos que deveria ser a realidade nos
Guerra Fria, apenas por causa do conflito psicológico, países. Nós vemos casos em que violência e estupros
haveria um período totalmente diferente. Vinte anos contra as mulheres tornaram-se instrumentos de guer-
depois, vemos que isso não ocorreu. Temos somente ra, uma arma de guerra, no século XXI. Ou, ainda,
tanta tensão e tantas questões não resolvidas, tanta a incrível diversidade cultural que temos, a qual está

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“Eu acredito que um líder real sob pressão com a globalização. O que a Unesco está
tentando fazer é, também, humanista. Eu acredito que
deveria ser alguém que acredite no seja um empenho cultural e humanista, o qual nunca
esteve no fronte da agenda internacional. Apenas para
que está fazendo, e deve existir com tomar os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”
como exemplo, eu diria que são objetivos humanistas.
uma combinação entre coerência e Com eles, o verdadeiro conceito de educação para to-
credibilidade. O líder real deve ser, dos está sobre a mesa dos governos. A ideia de que toda
e qualquer criança deve ir para a escola, isso nunca es-
na minha visão, alguém que atue de teve lá. É o que eu chamo, de certa forma, de uma nova
abordagem humanista em direção à paz e ao desenvol-
acordo com o que acredita.” vimento no mundo.

Qual é sua visão sobre liderança? Como a senhora define


Em 2011, durante o Fórum da Juventude da Unesco, Irina Bokova um verdadeiro líder?
conheceu o projeto brasileiro de formação humanista de jovens
realizado no Recanto Maestro, Rio Grande do Sul.
Eu acredito que um líder real deveria ser alguém
que acredite no que está fazendo, e deve existir com
uma combinação entre coerência e credibilidade. O
líder real deve ser, na minha visão, alguém que atue
de acordo com o que acredita. Vejo que isso é muito
importante, pois é a única forma de convencer os
outros a segui­-lo. Um líder verdadeiro, também na
minha visão, deve ser generoso em relação aos outros,
mas, ao mesmo tempo, deve ser sincero e aberto nas
suas requisições e expectativas, porque existe certa
falsa abordagem que não é sincera e que não funciona.

As mulheres podem ser diferentes em termos de liderança?


Eu participei de muitos debates com mulheres, líderes
e feministas, e estive em muitos debates nos quais a
pergunta era se as mulheres são melhores do que os
homens. Essa pergunta ainda é levantada, infelizmente,
em muitos casos. Mas a pergunta não deve ser, a meu
ver, se as mulheres são melhores do que os homens,
ou se os homens são melhores do que as mulheres.
Penso que é mais do que isso. Nós temos experiências
diferentes, experiências de vida, é assim. Eu acredito
que a pergunta é também, aqui, sobre escolhas e
aproveitar oportunidades. Acho que a grande pergunta
hoje em dia sobre equidade de gêneros e mulheres é se
as mulheres recebem uma chance igualitária de chegar
ao poder, ao conhecimento. Quando conquistam
oportunidades, elas provam a própria capacidade de
Fundação Antoio Meneghetti

inteligência e ação, aplicam seus próprios princípios.


Nós vimos que em todas as sociedades onde foi dada
esta chance temos mais igualdade. E quanto mais
igualitárias são as sociedades, mais oportunidades
oferecem a todos, com benefício de todo o contexto.

PERFORMANCE Líder 10 ANOS | 10ª Edição


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