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Coleção

HEGEMONIA E
contrassensos
ESTRATÉGIA SOCIALISTA
Governamentalidade:Segurança, organização de Nildo Avelino e Salvo
Vaccaro.
Por uma política democrática radical
Ditaduras:a desmesura do poder, organização de Nildo Avelino, Telma
Dias Fernandes e Ana Montoia.
Tradução da 2-ª-edição inglesa

Ernesto Laclau I Chantal Mouffe

l.

Traduzido por
Joanildo A. Burity, Josias de Paula Jr. e Aécio Amaral

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36 Kant resume nos quatro princípios seguintes as características da oposição real em
contraste com a contradição: "Em primeiro lugar, as determinações que opõem
4
uma à outra devem ser encontradas no mesmo sujeito: se, com efeito, postulamos
que uma determinação está em uma coisa, e outra determinação, qualquer que seja,
está em outra, não se segue uma oposição real. Em segundo lugar: numa oposição
Hegemonia e democracia radical
real, uma das determinações opostas nunca pode ser o contrário contraditório
da outra, já que neste caso o contraste seria de natureza lógica, e, como vimos
anteriormente, impossível. Em terceiro lugar: uma determinação nunca pode
negar qualquer coisa diferente daquilo que é postulado pela outra, já que na última
não haveria absolutamente qualquer oposição. Em quarto lugar: se elas estiverem
em contraste, nenhuma pode ser negativa, já que no último caso nenhuma delas
postularia algo que fosse anulado pela outra. É por isso que em toda oposição real
ambos os predicados têm que ser positivos, mas de tal maneira que na sua união
no interior do mesmo sujeito as consequências se anulem reciprocamente. Assim,
no caso das coisas que são consideradas o negativo uma da outra, quando elas
se combinam no mesmo sujeito, o resultado é zero." (I. Kant, "II concetto delle
quantità negative", in: Scritti precrilici,Bari 1953, p. 268-269). [Escritos pré-críticos.
Trad. bras. Jair Barboza ... (et al.). São Paulo: Editora Unesp, 2005.] A positividade
de seus dois termos é assim a característica definidora da oposição real. En1 novembro de 1937, no exílio em Nova Iorque, Arthur
37 É interessante observar que Hans Kelsen, em sua polêmica com Max Adler,
percebeu claramente a necessidade de fugir à alternativa exclusiva oposição real/ Rosenberg estava concluindo suas reflexões sobre a história europeia
contradição na caracterização dos antagonismos pertencentes ao mundo social. desde a Revolução Francesa 1• Essas reflexões, que puseram termo a
Cf. a esse respeito o sumário da posição de Kelsen em R. Racinaro, "Hans Kelsen e
il dibattito su democrazia e parlamentarismo negli anni Venti-Trenta", Introdução sua carreira de intelectual militante, estavam centradas num tema
a H. Kelsen, Socialismoe Sta/o. Una ricercas111/a teoriapoliticadei marxismo,Bari 1978, fundamental: a relação entre socialismo e democracia, ou melhor,
p. cxxii-cxxv.
38 R. Edgley, "Dialectic: the Contradictions of Colletti", Critique,1977, n. 7.
o fracasso das tentativas de constituir formas orgânicas de unidade
39 J. Elster, Logica11dSociety:Co11tradictio11s m1dPossibleWor/ds,Chichester 1978. entre ambas. Este duplo fracasso - da democracia e do socialismo -
40 "What is Dialectic?", ln: Conjecturesand Refutations, London 1969, p. 312-335. era visto por ele como um processo de estranhamento progressivo,
[Co11jecturas e refutações:o progressodo conheci111e11to científico. Brasília: Ed. UnB,
1980.] dominado por uma ruptura radical. Inicialmente, a "democracia",
41 Neste ponto, nossa opinião difere daquela expressa por um dos autores deste concebida como campo de ação popular, é a grande protagonista dos
livro num trabalho anterior, no qual o conceito de antagonismo é assimilado ao
de contradição (E. Laclàu, "Populist Rupture and Discourse", Screen Ed11cation, confrontos históricos que dominam a vida europeia entre 1789 e 1848.
Primavera 1980). Na revisão de nossa posição anterior, os comentários críticos É o "povo" (mais no sentido de plebs que no de populus), as massas
feitos por Emilio De lpola numa série de conversas foram extremamente úteis.
42 Sobre os vários modos de abordar o problema da autonomia relativa do Estado
pouco organizadas e diferenciadas, que domina as barricadas de 1789
em diferentes teorizações marxistas contemporâneas, ver B. Jessop, T/1eCnpitalist e 1848, a agitação cartista na Inglaterra, e as mobilizações lideradas por
Sta/e, New York e London 1982. Mazzini e Garibaldi, na Itália. Posteriormente, se dá a grande ruptura
constituída pela longa reação dos anos 1850; e quando essa chega ao
fim e o protesto popular é retomado, os protagonistas terão mudado.
Serão os sindicatos ou os nascentes partidos social-democratas,
primeiro na Alemanha e Inglaterra, e depois no resto da Europa, que
se estabelecerão de forma cada vez mais sólida na última terça parte
do século.
Essa ruptura foi frequentemente interpretada como a transição
para um momento de maior racionalidade política da parte dos
setores dominados: na primeira metade do século, o caráter amorfo da
T 1848. Com efeito, entre os dois períodos o proletariado industrial,
apesar de sua maior parte ainda h"abalhar na pequena indústria,
tinha crescido tanto em importância que fazia todo problema
"democracia", sua falta de raízes nas bases econômicas da sociedade, político culminar no confronto entre proletários e capitalistas
tornavam-na essencialmente vulnerável e instável, e impediam-na de ( ...) Tal fato exigia do partido democrático uma habilidade tática
se constituir numa trincheira firme e permanente de luta contra a ordem excepcional, a fim de alcançar a convergência entre o movimento
estabelecida. Somente com a desintegração deste "povo" amorfo, e sua dos operários e o dos camponeses. Se ele quisesse ignorar os
substituição pela base social sólida da classe operária, os movimentos camponeses proprietários para atingir a massa dos pequenos
populares atingiriam a maturidade que lhes permitiria empreender arrendatários e trabalhadores, isso exigia táticas absolutamente
uma luta de longo prazo contra as classes dominantes. Não obstante, realistas e complexas de negociação. Assim, a tarefa da social-
essa transição mítica para um estágio superior de maturidade social, democracia cinquenta anos depois de Robespierre tinha se
resultante da industrialização, e para um nível superior de eficácia tornado cada vez mais difícil, e ao mesmo tempo os democratas
2
política, no qual as irrupções anárquicas do "povo" seriam substituídas eram menos capazes intelectualmente de resolver os problemas •

pela racionalidade e solidez da política de classe, só podia soar como


uma piada de mau gosto a Rosenberg, que escreveu seu livro enquanto a Naturalmente, a crescente dificuldade de constituir um
Espanha ardia, Hitler se preparava para a Anschluss, e Mussolini estava polo popular antissistema só tinha aumentado a partir de 1848.
invadindo a Etiópia. Para Rosenberg, esse alinhamento em termos de Na realidade, Rosenberg estava tentando se orientar num terreno
classe constituía, ao contrário, o grande pecado histórico do movimento novo, dominado por uma mutação radical da qual ele era apenas
operário europeu. A incapacidade dos operários de constituírem parcialmente consciente: o declínio de uma forma de política para
o "povo" em um agente histórico era, para ele, a falha essencial da a qual a divisão do social em dois campos antagônicos é um dado
social-democracia e o fio de Ariadne que lhe permitiu deslindar todo original e imutável, prévio a toda construção hegemônica3,e a transição
o tortuoso processo político iniciado em 1860. A constituição de um para uma nova situação, caracterizada pela instabilidade essencial dos
polo popular unificado, longe de se tornar mais simples, cresceu em espaços políticos, na qual a própria identidade das forças em conflito
dificuldade à medida que a complexidade e a institucionalização da é submetida a constantes mudanças, exigindo um incessante processo
sociedade capitalista - as "trincheiras e fortificações da sociedade de redefinição. Em outras palavras, de um modo ao mesmo tempo
civil" de que falara Gramsci - levava à corporativização e separação visionário e hesitante, Rosenberg está nos descrevendo o processo de
daqueles setores que deveriam, idealmente, ter sido unificados "em generalização da forma hegemônica da política - que se impõe como
meio ao povo". Esse processo de crescente complexidade social já condição para a emergência de toda forma de identidade coletiva, uma
estava em evidência entre 1789 e 1848: vez que práticas articulatórias passem a determinar o próprio princípio
da divisão social -, e nos mostrando simultaneamente quão vã era a
A tarefa da democracia em 1789 consistia em liderar de forma aspiração de que a "luta de classes" se constituísse, deforma automática
unitária a luta do campesinato dependente contra a nobreza e apriorística,no fundamento desse princípio.
proprietária de terras e a luta dos cidadãos pobres contra o A rigor, a oposição povo/ancien régime foi o último momento
capital. Naquela época, isso era muito mais fácil do que seria em em que os limites antagonísticos entre duas formas de sociedade se
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apresentaram - com a qualificação que fizemos - na forma de linhas


de demarcação claras e empiricamente dadas. A partir daí, a linha
demarcatória entre o interno e o externo, a linha divisória a partir da
l Neste capítulo defenderemos a tese de que é esse momento de
continuidade entre o imaginário político jacobino e o marxista que tem
que ser posto em questão pelo projeto de uma democracia radical. A
qual o antagonismo se constituiu na forma de dois sistemas opostos de rejeição de pontos privilegiados de ruptura e da confluência das lutas
equivalências, tomou-se cada vez mais frágil e ambígua, e sua construção num espaço político unificado, ea aceitação, ao contrário, da pluralidade
tornou-se o problema crucial da política. Quer dizer, a partir de então e indeterminação do social, nos parecem as duas bases fundamentais
não houve mais política sem hegemonia. Isto nos permite compreender a partir das quais um novo imaginário político pode ser construído,
a especificidade da intervenção de Marx: sua reflexão teve lugar num radicalmente libertário e infinitamente mais ambicioso em seus
momento em que a divisão do espaço político em termos da dicotomia objetivos que o da esquerda clássica. Isto demanda, em primeiro lugar,
povo/ancien régime parecia ter exaurido sua potencialidade, e era, em uma descrição do terreno histórico no qual tal imaginário emergiu,
todo caso, incapaz de construir uma visão do polít_icoque recapturasse que é o campo do que chamaremos a "revolução democrática".
a complexidade e a pluralidade peculiares ao social nas sociedades
industriais. Marx procura, então, pensar o fato primário da divisão A revolução democrática
social com base num novo princípio: o confronto de classes. O novo
princípio, entretanto, é minado desde o início por uma insuficiência A problemática teórica que apresentamos exclui não apenas a
radical, procedente do fato de que a oposição de classes é incapaz de concentração do conflito social em agentes históricos aprioristicamente
dividir a totalidade do corpo social em dois campos antagônicos, de se privilegiados, mas também a referência a qualquer princípio ou
reproduzir automaticamentecomo linha de demarcação na esfera política. substrato geral de natureza antropológica que, ao mesmo tempo em
É por esta razão que a afirmação da luta de classes como princípio que unificasse as diferentes posições de sujeito, daria um caráter de
fundamental da divisão política sempre teve que se fazer acompanhar inevitabilidade à resistência contra as diversas formas de subordinação.
de hipóteses suplementares que relegavam sua plena aplicabilidade ao Nada há, portanto, de inevitável ou natural nas diferentes lutas
futuro: hipóteses histórico-sociológicas - a simplificação da estrutura contra o poder, e é necessário explicar em cada caso as razões para
social, que levaria à coincidência entre as lutas políticas reais e as lutas sua emergência e as diferentes modulações que elas podem adotar.
entre as classes como agentes constituídos ao nível das relações de A luta contra a subordinação não pode ser o resultado da própria
produção; hipóteses relativas à consciência dos agentes - a transição situação de subordinação. Embora possamos afirmar, com Foucault,
da classe em si à classe para si. O que é importante, em todo caso, é que onde há poder há resistência, deve-se também reconhecer que as
que essa mudança introduzida pelo marxismo no princípio político da formas de resistência podem ser extremamente variadas. Somente em
divisão social deixa inalterado um componente essencial do imaginário certos casos estas formas de resistência adquirem um caráter político
jacobino: a postulação de um momento fundante de ruptura, e de um e se tornam lutas dirigidas a pôr fim a relações de subordinação
espaço único no qual o político é constihtído. Somente a dimensão como tais. Se ao longo dos séculos tem havido múltiplas formas de
temporal mudou, na medida em que a divisão em dois campos - resistência das mulheres contra a dominação masculina, somente sob
simultaneamente social e política - é relegada ao futuro, ao mesmo certas condições e formas específicas é que um movimento feminista
tempo em que nos é oferecido um conjunto de hipóteses sociológicas em defesa da igualdade (igualdade perante a lei, em primeiro lugar,
relativas ao processo que levaria àquela primeira. e subsequentemente em outras áreas) foi capaz de surgir. É claro que
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quando falamos aqui do caráter "político" destas lutas, não o fazemos transformaram em lugares de antagonismos. Finalmente, chamaremos
no sentido restrito de demandas situadas ao nível dos partidos e do relaçõesde dominaçãoo conjunto das relações de subordinação que são
Estado. Estamos nos referindo a um tipo de ação cujo objetivo é a consideradas ilegítimas desde a perspectiva, ou ao juízo de um agente
transformação de uma relação social que constitua um sujeito em uma social externo a elas, e que, em decorrência, coincidam ou não com
relação de subordinação. Certas práticas feministas contemporâneas, as relações de opressão realmente existentes numa formação social
por exemplo, tendem a transformar a relação entre masculinidade e determinada. O problema é, portanto, explicar como se constituem
feminilidade sem passar em nenhum momento pelos partidos ou as relações de opressão a partir de relações de subordinação. Fica
o Estado. Naturalmente, não estamos querendo negar que certas claro porque relações de subordinação, tomadas por si mesmas, não
práticas exijam a intervenção do político em seu sentido restrito. O que podem ser antagonísticas: uma relação de subordinação estabelece,
queremos destacar é que a política como prática de criação, reprodução simplesmente, um conjunto de posições diferenciais entre agentes
e transformação de relações sociais não pode ser localizada num nível sociais, e já sabemos que um sistema de diferenças que construa toda
determinado do social, já que o problema do político é o problema identidade social como positividade não pode ser antagonístico, mas
da instituição do social, isto é, da definição e articulação das relações criaria as condições ideais para a eliminação de todos os antagonismos
sociais num campo atravessado por antagonismos. - estaríamos diante de um espaço social suturado, do qual toda
Nosso problema central é identificar as condições discursivas equivalência estaria excluída. O antagonismo só pode emergir na
de emergência de uma ação coletiva que objetive a lutar contra medida em que o caráter diferencial positivo da posição de sujeito
desigualdades e a questionar relações de subordinação. Poderíamos subordinada é subvertido. "Servo", "escravo" etc., não designam em si
também dizer que nossa tarefa é identificar as condições em que uma posições antagonísticas; somente em termos de uma diferente formação
relação de subordinação se torna relação de opressão, constituindo-se, discursiva, tal como "os direitos inerentes a todo ser humano", é que
portanto, no lugar de um antagonismo. Entramos aqui num terreno a positividade diferencial dessas categorias pode ser subvertida e a
constituído por numerosas mudanças terminológicas, que acabaram subordinação construída como opressão. Isto significa que não existe
estabelecendo uma identificação entre "subordinação", "opressão" e relação de opressão sem a presença de um "exterior" discursivo a partir
"dominação". A base que possibilita esta sinonímia é, evidentemente, o do qual o discurso da subordinação possa ser interrompido4. A lógica
pressuposto antropológico de uma "natureza humana" e de um sujeito da equivalência, neste sentido, desloca os efeitos de alguns discursos
unificado: se pudermos determinar a prioria essência de um sujeito, toda em direção a outros. Se, como foi o caso das mulheres até o século
relação de subordinação que a negar se transformará automaticamente dezessete, o conjunto dos discursos que as constituía em sujeito as
numa relação de opressão. Porém, se rejeitarmos esta perspectiva fixasse pura e simplesmente numa posição subordinada, o feminismo,
essencialista, precisaremos diferenciar "subordinação" de "opressão" como movimento de luta contra a subordinação da mulher, não
e explicar as condições precisas em que a subordinação se torna poderia emergir. Nossa tese é que foi somente a partir do momento
opressiva. Devemos entender por uma relaçãode subordinaçãoaquela em que o discurso democrático se dispôs a articular as diferentes
em que um agente é sujeito às decisões de outrem- um empregado em formas de resistência à subordinação que surgiram as condições que
face de um patrão, por exemplo, ou, em certas formas de organização permitiram a luta contra diferentes tipos de desigualdade. No caso das
familiar, a mulher face ao homem, e assim por diante. Chamaremos mulheres, podemos citar como exemplo o papel desempenhado, na
relaçõesde opressão,por contraste, às relações de subordinação que se Inglaterra, por Mary Wollstonecraft, cujo livro Vindication of the Rights
of Women, publicado em 1792, marcou o nascimento do feminismo por do Homem, forneceria as condições discursivas que permitiram propor
meio do uso que fez do discurso democrático, que foi assim deslocado ,. as diferentes desigualdades como ilegítimas e antinaturais, tomando-
do campo da igualdade política entre os cidadãos para o campo da as assim equivalentes como formas de opressão. Aqui está o poder
igualdade entre os sexos. profundamente subversivo do discurso democrático, que permitiria
Mas, para que fosse assim mobilizado, o princípio democrático da a expansão da igualdade e da liberdade para domínios cada vez mais
liberdade e da igualdade teve primeiro que se impor corno nova matriz vastos, e atuaria como elemento de fermentação sobre diferentes formas
do imaginário social; ou, em nossa terminologia, constituir um ponto de luta contra a subordinação. Muitas lutas dos trabalhadores no século
nodal fundamental na construção do político. Essa mutação decisiva dezenove construíram discursivamente suas demandas com base nas
do imaginário político das sociedades ocidentais ocorreu há duzentos lutas pela liberdade política. No caso do cartismo inglês, por exemplo,
anos e pode ser definida nestes termos: a lógica da equivalência foi os estudos de Gareth Stedman Jones revelaram o papel fundamental
transformada no instrumento fundamental de produção do social. Para das ideias do radicalismo inglês, profundamente influenciadas pela
designar esta mutação é que, utilizando uma expressão de Tocqueville, Revolução Francesa, na constituição do movimento e na determinação
falaremos da "revolução democrática". Com isto, designaremos o fim de de seus objetivos 7 • (Donde o papel central da reivindicação de sufrágio
urna sociedade hierárquica e desigual, regida por uma lógica teológico- universal, que tem merecido pouca atenção por parte de interpretações
política na qual a ordem social se fundava na vontade divina. O corpo do cartismo como um fenômeno de nahtreza fundamentalmente social,
social era concebido como um todo no qual indivíduos apareciam uma expressão da consciência de classe do novo proletariado industrial).
fixados em posições diferenciais. Enquanto esse modo holístico de A partir da crítica da desigualdade política, efetua-se, através
instituição do social predominou, a política não podia ser mais que a dos diferentes discursos socialistas, um deslocamento em direção à
repetição de relações hierárquicas, que reproduziam o mesmo tipo crítica da desigualdade econômica, que leva ao questionamento de
de sujeito subordinado. O momento-chave no início da revolução outras formas de subordinação e à reivindicação de novos direitos. As
democrática pode ser encontrado na Revolução Francesa, pois, como demandas socialistas devem, portanto, ser vistas como um momento
François Furet indicou, sua afirmação do poder absoluto do povo interno à revolução democrática, e somente inteligíveis em termos
introduziu algo realmente novo ao nível do imaginário social. É aí, de da lógica equivalencial que esta última estabelece. E os efeitos de
acordo com Furet, que se encontra a verdadeira descontinuidade: no irradiação se multiplicam numa variedade crescente de direções. No
estabelecimento de uma nova legitimidade, na invenção da cultura caso do feminismo, tratava-se primeiro das mulheres terem acesso aos
democrática: "A Revolução Francesa não é uma transição, é uma origem, direitos políticos; depois, à igualdade econômica; e, com o feminismo
e o fantasma de urna origem. O que é singular nela é o que constitui contemporâneo, à igualdade no domínio da sexualidade. Como
seu interesse histórico, e, mais ainda, é este elemento 'singular' que destacou Tocqueville: "É impossível crer que a igualdade não penetrará
se tornou universal: a primeira experiência de democracia" 5. Se, como finalmente tanto no domínio político como em outros. Não é possível
disse Hannah Arendt, "foi a Revolução Francesa, e não a Americana conceber os homens como eternamente desiguais entre si num aspecto,
que incendiou o mundo" 6, foi porque aquela foi a primeira a se fundar e iguais em outros; num determinado momento, eles virão a ser iguais
unicamente na legitimidade do povo. Assim, ela iniciou o que Claude em todos os aspectos" 8 .
Lefort demonstrou ser um novo modo de instihlição do social. Essa Em todo caso, é a impossibilidade de as relações de subordinação
ruptura com o ancien régime,simbolizada pela Declaração dos Direitos se constituírem como um sistema fechado de diferenças - uma
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impossibilidade que implica na externalídademútua das identidades as relações capitalistas de produção como tais - estando estas, então,
subordinantes e subordinadas, ao invés de sua absorção no sistema, solidamente implantadas-, e se concentra na luta pela transformaçãc
através de suas posições - que está na raiz da relação de opressão. Vale das relações na produção. As lutas que a tradição marxista chamaria
a pena, neste particular, considerar as transformações experimentadas de "reformistas", e considera como um passo atrás com relação às
pelo potencial antagonístico das lutas dos trabalhadores. Houve, sem lutas sociais anteriores, correspondem mais concretamente ao modc
dúvida, lutas radicalmenteanticapitalistas no século dezenove, mas elas adotado pelas mobilizações do proletariado industrial do que as luta5
não foram lutas do proletariado - se entendermos por "proletariado" o mais radicais de antes. As relações de subordinação entre trabalhadores
tipo de trabalhador produzido pelo desenvolvimento do capitalismo, e capitalistas são, assim, até certo ponto, absorvidas como posiçõe5
ao invés dos artesãos, cujas qualificações e modos de vida foram diferenciais legítimas num espaço discursivo unificado.
ameaçados pelo estabelecimento do sistema capitalista de produção. Se voltarmos nossa atenção para outro período de mobilizações
O caráter fortemente anticapitalista das lutas daqueles "reacionários radicais dos trabalhadores - o dos movimentos de conselhos na Itália e
radicais" - no dizer de Craig Calhoun -, pondo em questão todo o Alemanha, no final da Primeira Guerra Mundial-, veremos que também
sistema capitalista, se explica pelo fato de que aquelas lutas expressavam elas tiveram sua base numa série de circunstâncias sobredeterminadas:
resistência à destruição das identidades artesãs e todo o conjunto de o colapso da ordem social que se seguiu à guerra, a militarização das
formas sociais, culturais e políticas que as acompanhavam. Daí procedia fábricas, os primórdios da taylorização, a transformação do papel dos
a rejeição total às novas relações de produção, que o capitalismo estava trabalhadores qualificados na produção. Todas essas condições estavam
em vias de implantar; a completa externalidade existente entre dois ligadas quer a uma crise orgânica, que reduzia a capacidade hegemônica
sistemas de organização social gerou a divisão do espaço social em das lógicas da diferença, quer a transformações que punham em xeque
dois campos, que, como sabemos, é a condição para todo antagonismo. formas tradicionais d~ identidade dos trabalhadores. Não devemos
Calhoun, em sua crítica de A formação da classe operária inglesa9, de nos esquecer, por exemplo, do papel central exercido nestas lutas pelos
E. P. Thompson, mostrou de forma convincente que um conjunto trabalhadores qualificados, um papel que é geralmente reconhecido,
heterogêneo de grupos sociais está ali reunido sob o rótulo de "classe mas explicado de diferentes maneiras 11• Para alguns, trata-se da defesa
operária", sem o reconhecimento suficiente das profundas diferenças da qualificação contra o perigo já presente da taylorização. Para outros, é
entre "velhos" e "novos" operários, quanto a seus objetivos e suas formas a experiência que esses trabalhadores adquiriram durante a guerra que
de mobilização. De acordo com Calhoun, "os primeiros lutavam com os fez pensar nas possibilidades da auto-organização do processo de
base em fundamentos fortemente comunitários, mas contra as forças produção e os forçou a um confronto com seus patrões 12 • De todo modo,
da mudança econômica prepo~derantes. Os últimos lutavam em bases entretanto, é a defesa de uma certa identidade que os trabalhadores
sociais mais frágeis, mas no interior da ordem industrial emergente. Esta adquiriram (suas habilidades ou funções organizacionais na produção)
distinção milita decididamente contra uma noção do desenvolvimento que os leva a se rebelarem. Podemos, portanto, estabelecer um paralelo
contínuo e a crescente radicalização da classe operária"'º· com os "radicais reacionários" mencionados acima, na medida em que
É em meados do século dezenove, na Grã-Bretanha, e no final do também eles estavam defendendo um tipo de identidade que estava
século, no resto da Europa, que surge um movimento trabalhista que sob ameaça.
pode ser rigorosamente considerado um produto do capitalismo; mas, Seria um erro, no entanto, entender esta externalidade do poder
esse movimento trabalhista tende a pôr cada vez menos em questão num sentido puramente" etapista", como se o fato de pertencer a uma fase
t:KNl:.:SIOLACLAUI CHANTAL
MOUFFE 24:

em vias de ser superada fosse a condição necessária para o radicalismo forma, se apresentar em duas variantes fundamentais. Primeiramente
1
de uma luta; se fosse assim, tal radicalismo seria característico apenas pode se tratar de relações de subordinação já existentes que, graça
de lutas defensivas. Se as lutas "anacrônicas" que mencionamos acima a um deslocamento do imaginário democrático, são rearticulada.
ilustram bem a externalidade do poder, que é uma condição de todo como relações de opressão. Para tomar o caso do feminismo uma ve:
antagonismo, certas transformações podem, em contraste, constitt~ir mais, é porque é negado às mulheres, como mulheres, um direitc
novas formas de subjetividade radical, com base na construçao que a ideologia democrática reconhece em princípio para todos o:
discursiva de relações de subordinação como imposição externa - logo, cidadãos, que aparece uma brecha na construção do sujeito femininc
como formas de opressão-, que até aquele momento não tinham sido subordinado, a partir da qual um antagonismo pode surgir. É tambérr
questionadas. É neste ponto que o deslocamento equivalencial pec~li~r o caso das minorias étnicas que reivindicam seus direitos civis. Mas,
ao imaginário democrático entra em jogo. A imagem das lutas radicais o antagonismo também pode surgir em outras circunstâncias - po1
como coisas do passado é inteiramente irrealista. Ela deriva, em grande exemplo, quando direitos adquiridos estão sendo questionados, ou
parte, da euforia não-capitalista das duas décadas seguintes à Segunda quando relações sociais que não tinham sido construídas sob a forma de
Guerra Mundial, que pareciam oferecer uma capacidade ilimitada de subordinação passam a sê-lo, sob o impacto de certas transformações
absorção transformista por parte do sistema, e mostravam uma tendência sociais. Neste caso, é porque é negada por práticas e discursos
linear a uma sociedade homogênea, na qual todo potencial antagonístico portadores de novas formas de desigualdade, que uma posição de
se dissolveria e cada identidade coletiva seria fixada num sistema de sujeito pode se transformar no lugar de um antagonismo. Porém,
diferenças. Tentaremos, pelo contrário, mostrar que a complexidade e em todo caso, o que permite que as formas de resistência assumam
os aspectos frequentemente contraditórios desse processo de expansão, o caráter de lutas coletivas é a existência de um discurso externo, que
como O próprio ato de se satisfazer uma ampla gama de reivindicações impede a estabilização da subordinação como diferença.
durante O apogeu do Welfare State, longe de assegurar a integração A expressão insatisfatória "novos movimentos sociais"
indefinida das formações hegemônicas dominantes, quase sempre agrupa uma série de lutas altamente diversas: urbanas, ecológicas,
revelou O caráter arbitrário de uma série de relações de subordinação. antiautoritárias, anti-institucionais, feministas, antirraciais, étnicas,
Assim, criou-se o terreno que possibilita uma nova extensão de regionais, ou de minorias sexuais. O denominador comum de todas elas
equivalências igualitárias, e, por conseguinte, a expansão da revolução seria sua diferenciação das lutas dos trabalhadores, consideradas como
democrática em novas direções. É nesse terreno que surgem essas lutas "de classe". É inútil insistir na natureza problemática desta última
novas formas de identidade política que, em debates recentes, têm sido noção: ela amalgama uma série de lutas muito diferentes ao nível das
agrupadas sob a designação de "novos movimentos sociais". Devemos, relações de produção, que se distinguem dos "novos antagonismos",
portanto, estudar o potencial democrático e as ambiguidade~ destes por razões que expõem, com a maior clareza, a persistência de um
movimentos, bem como o contexto histórico no qual eles emerguam. discurso fundado no status privilegiado das "classes". O que nos
interessa nestes novos movimentos sociais, então, não é a ideia de
Revolução d.emoc1·ática e novos antagonismos agrupá-los arbitrariamente numa categoria oposta à de classe, mas o
novo papel que eles desempenham na articulação da rápida difusão
O deslocamento equivalencial entre posições de sujeito distintas da conflitualidade social para relações mais e mais numerosas, que é
- que é condição para a emergência de um antagonismo - pode, desta característica hoje das sociedades industriais avançadas. Isto é o que
tt-CNt:SIU LACLAU I CHANTALMOUFFE
245

tentaremos analisar por meio da problemática teórica apresentada produção e modo de consumo" 13• Mais especificamente, é a articulação
anteriormente, a qual nos leva a conceber estes movimentos como uma entre um processo de trabalho organizado em torno da linha de
extensão da revolução democrática para toda uma nova série de relações montagem semiautomática e um modo de consumo caracterizado
sociais. Quanto à sua novidade, ela se aplica a eles pelo fato de colocarem pela aquisição individual de mercadorias produzidas em larga escala
em questão novas formas de subordinação. Devemos distinguir dois para consumo privado. Essa penetração das relações capitalistas de
aspectos desta relação de continuidade/descontinuidade. O aspecto produção, iniciada no começo do século e acelerada a partir dos anos
de continuidade envolve basicamente o fato de que a conversão da 1940, transformaria a sociedade num vasto mercado, no qual novas
ideologia liberal-democrática no "senso comum" das sociedades "necessidades" foram incessantemente produzidas, e no qual cada
ocidentais lançou as bases do questionamento progressivo do princípio vez mais produtos do trabalho humano foram transformados em
hierárquico que Tocqueville chamou de "equalização de condições". mercadorias. Essa "mercantilização" da vida social destrniu relações
É a permanência desse imaginário igualitário que nos permite sociais prévias, substituindo-as por relações mercantis através das quais
estabelecer uma continuidade entre as lutas do século dezenove contra a lógica da acumulação capitalista penetrou em esferas cada vez mais
as desigualdades legadas pelo ancien régime e os movimentos sociais numerosas. Hoje, não é somente como vendedor da força de trabalho
do presente. Mas, desde um segundo ponto de vista, podemos falar de que o indivíduo é subordinado ao capital, mas também através de
descontinuidade, uma vez que boa parte dos novos sujeitos políticos sua incorporação a uma multidão de outras relações sociais: cultura,
se constituiu através de sua relação antagonística com novas formas tempo livre, doença, educação, sexo, e até a morte. Praticamente, não
de subordinação, derivadas da implantação e expansão das relações há um só domínio da vida individual e coletiva que escape a relações
capitalistas de produção e da crescente intervenção do Estado. São capitalistas.
estas novas relações de subordinação e os antagonismos constituídos
No entanto, a "sociedade de consumo" não levou ao fim da
no seu interior que abordaremos a seguir. ideologia, como anunciou Daniel Bell, nem à criação de um homem
Foi no contexto da reorganização que teve lugar após a Segunda unidimensional, como temia Marcuse. Ao contrário, numerosas novas
Guerra Mundial que uma série de mudanças ocorreu ao nível das lutas vêm expressando resistência às novas formas de subordinação,
relações sociais e uma nova formação hegemônica se consolidou. Essa a partir do próprio interior da nova sociedade. Foi assim que o
reorganização articulou modificações ao nível do processo de trabalho, desperdício de recursos naturais, a poluição e destruição do meio
da forma do Estado e dos modos dominantes de difusão cultural, ambiente, e as consequências nefastas do produtivismo deram origem
que gerariam uma profunda transformação das formas existentes de ao movimento ecológico. Outras lutas, que Manuel Castells chama
intercâmbio social. Se examinarmos o problema de um ponto de vista 1
de "urbanas" 4, exprimem diversas formas de resistência à ocupação
econômico, a mudança decisiva é aquela que Michel Aglietta chamou capitalista do espaço social. A urbanização geral que tem acompanhado
de transição de um regime extensivo para um intensivo de acumulação. o crescimento econômico, a migração das classes populares para
Este último é caracterizado pela disseminação das relações capitalistas a periferia urbana ou seu relegamento às decadentes inner cities, e
de produção a todo o conjunto das relações sociais, e a subordinação a falta geral de bens e serviços coletivos têm causado uma série de
destas à lógica da produção para o lucro. Segundo Aglietta, o momento novos problemas que afetam a organização de toda a vida social, fora
fundamental desta transição é a introdução do fordismo, que ele da esfera do trabalho. Daí a multiplicidade de relações sociais a partir
descreve como " ... o princípio de uma articulação entre processo de das quais podem se originar antagonismos e lutas: hábitat, consumo,
nc.UC.l\'IUl~II-\ C e,:, 1 nr-\1 C.\,Jlh VVVIM\.I.J ,....,
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247

serviços vários, podem todos se constituir em terrenos para a luta Seus efeitos em geral se reforçam mutuamente, embora nem sempre
contra desigualdades e a reivindicação de novos direitos. se dê assim. Claus Offe indica, por exemplo, como a provisão, pelo
Estas novas demandas também devem ser situadas no Estado, de serviços ligados à seguridade social, pode ter efeitos que
contexto do Welfare State keynesiano, cuja constituição foi outro fato apontam para a "desmercantilização" 17• Este último fenômeno pode
fundamental do período pós-guerra. Esse é, sem dúvida, um fenômeno afetar de modo adverso a acumulação capitalista, na medida em que
ambíguo e complexo, porque, se de um lado esse novo tipo de Estado uma série de atividades que poderiam ser fonte de lucros passa a
foi necessário a fim de se realizarem certas funções exigidas pelo novo ser provida pelo setor público. Para Offe, tal fenômeno, ligado ao da
regime de acumulação capitalista, ele é também o resultado do que "desproletarização" oriunda dos diversos benefícios que permitem
Bowles e Gintis denominaram" ... o acordo entre capital e trabalho do ao trabalhador sobreviver sem ser obrigado a vender sua força de
pós-guerra" 15, e o resultado, portanto, de lutas contra mudanças nas trabalho a qualquer preço, é um fator importante na crise atual das
relações sociais geradas pelo capitalismo. É, por exemplo, a destruição economias capitalistas. Porém, o que nos interessa de forma crucial
das redes de solidariedade tradicional de tipo comunitário ou familiar aqui é traçar as consequências da burocratização subjacente aos novos
(baseadas, não nos esqueçamos, na subordinação das mulheres), antagonismos. O fato importante é a imposição de múltiplas formas
que tem forçado o Estado a intervir em diferentes "serviços sociais" de vigilância e regulação em relações sociais que, anteriormente,
em favor dos doentes, desempregados, velhos etc. Noutro espaço, haviam sido concebidas como fazendo parte da esfera privada. Este
sob pressão das lutas dos trabalhadores, o Estado interveio para deslocamento na linha de demarcação entre o "público" e o "privado"
garantir uma nova política trabalhista (salário mínimo, duração da tem efeitos ambíguos. Por um lado, serve para revelar o caráter
jornada diária de trabalho, seguro contra acidentes e desemprego, e a político (em sentido amplo) das relações sociais, e o fato de que estas
seguridade social). Se podemos concordar com Benjamin Coriat 16 que são sempre o resultado de modos de instituição que lhes dão sua forma
este planejamento estatal intervém na reprodução da força de trabalho e sentido; por outro, dado o caráter burocrático da intervenção estatal,
com o fim de subordiná-la às necessidades do capital, graças à prática esta criação de "espaços públicos" é realizada não sob a forma de
do contrato coletivo e aos acordos negociados que vinculam aumentos uma verdadeira democratização, mas através da imposição de novas
salariais aos de produtividade, não é menos o caso que estes ganhos formas de subordinação. É aqui que ternos que procurar o terreno onde
têm trazido benefícios reais e importantes para os trabalhadores. emergem numerosas lutas contra as formas burocráticas do poder
Mas, esta intervenção do Estado em níveis cada vez mais estatal. Isto não deveria nos fechar os olhos, todavia, para inúmeros
amplos da reprodução social tem sido acompanhada por uma outros aspectos que apontam na direção oposta, e que dão ao Welfare
crescente burocratização de suas práticas, que veio a constituir-se, State sua ambiguidade característica: a emergência de um novo tipo
juntamente com a mercantilização, numa das fontes mais importantes de direito, designado como "liberdades positivas", também tem
de desigualdades e conflitos. Em todos os domínios em que o Estado transformado profundamente o senso comum dominante, conferindo
interveio, uma politização das relações sociais tem estado na raiz legitimidade a toda uma série de demandas por igualdade econômica
de numerosos novos antagonismos. Esta dupla transformação das e à insistência por novos direitos sociais. Movimentos corno o "Welfare
relações sociais, resultante da expansão das relações capitalistas de Rights Movernent", nos Estados Unidos, estudado por Piven e
produção e das novas formas burocrático-estatais, é encontrada, em 18
Cloward , são um exemplo desta ampliação das demandas dirigidas
diferentes combinações, em todos os países industriais avançados. ao Estado, uma vez que se aceita sua responsabilidade pelo bem-estar
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248

dos cidadãos. É a própria noção de cidadania que se transforma com a emergência de novas lutas, que têm exercido um papel importante na
o Estado de bem-estar social, na medida em que agora se atribuem rejeição de velhas formas de subordinação, como foi o caso, nos Estados
"direitos sociais" ao cidadão. Consequentemente, as categorias Unidos, da luta do movimento negro pelos direitos civis. O fenômeno
"justiça", "liberdade", "equidade", e "igualdade" têm se redefinido e o da juventude é particularmente interessante, e não deveria causar
discurso liberal-democrático tem sido profundamente modificado por admiração que venha a se constituir num novo eixo para a emergência
esta ampliação da esfera dos direitos. de antagonismos. Com o fim de se criarem novas necessidades, a
Não se pode compreender a atual expansão do campo da juventude é cada vez mais construída como uma categoria específica
conflitividade social e a consequente emergência dos novos sujeitos de consumidor, o que a estimula a buscar uma autonomia financeira
políticos sem situá-las no contexto da mercantilização e burocratização que a sociedade não tem a menor condição de lhe dar. Pelo contrário,
das relações sociais, por um lado, e da reformulação da ideologia a crise econômica e o desemprego tornam sua situação realmente
liberal-democrática - resultante da extensão das lutas por igualdade difícil. Se acrescentarmos a isto a desintegração da célula familiar e sua
-, por outro. Por esta razão, propusemos que essa proliferação de crescente redução a puras funções de consumo, de par com a ausência
antagonismos e do questionamento de relações de subordinação de formas sociais de integração destes "novos sujeitos" que receberam
deveriam ser considerados como um momento de aprofundamento da o impacto do questionamento generalizado das hierarquias existentes,
revolução democrática. Isto também tem sido estimulado por um terceiro podemos facilmente compreender as diferentes formas que a rebelião
fator importante na mutação das relações sociais que caracterizou da juventude tem adotado nas sociedades industriais.
a formação hegemônica do período pós-guerra: a saber, as novas O fato de que os "novos antagonismos" sejam a expressão de
formas culturais vinculadas à expansão dos meios de comunicação de formas de resistência à mercantilização, burocratização e crescente
massa. Elas possibilitaram uma nova cultura de massas, que abalou homogeneização da vida social, explica em si mesmo porque eles
profundamente identidades tradicionais. Mais uma vez, os efeitos deveriam frequentemente se manifestar por meio de uma profusão
aqui são ambíguos, já que, juntamente com os efeitos inegáveis de de particularismos, e se cristalizar numa demanda por autonomia.
massificação e uniformização, esta cultura midiática também contém Também é por isto que se pode identificar uma tendência quanto à
poderosos elementos de subversão de desigualdades: os discursos valorização das "diferenças" e à criação de novas identidades que
dominantes na sociedade de consumo apresentam-na como progresso tendem a privilegiar critérios "culturais" (vestuário, música, linguagem,
social e como avanço da democracia, na medida em que ela permite à tradições regionais etc.). Na medida em que, dos dois grandes temas do
vasta maioria da população acesso a um leque cada vez maior de bens. imaginário democrático - igualdade e liberdade -, foi o da igualdade
Ora, apesar de Baudrillard estar certo em dizer que estamos "cada vez que tradicionalmente prevaleceu, as demandas por autonomia
mais longe de uma igualdade vis-à-vis o objeto" 19, a aparência reinante conferem um papel cada vez mais central à liberdade. Por esta razão,
de igualdade e a democratização cultural que é a consequência muitas destas formas de resistência se manifestam não na forma de
inevitável da ação da mídia, permitem o questionamento de privilégios lutas coletivas, mas através de uma afirmação do individualismo. (A
baseados em formas mais antigas de status. Interpelados como iguais esquerda, naturalmente, está despreparada para assumir estas lutas,
na condição de consumidores, grupos cada vez mais numerosos são as quais ela ainda hoje descarta como "liberais". Daí o perigo de que
impelidos a rejeitar as desigualdades reais que continuam a existir. Esta elas possam ser articuladas por um discurso de direita, de defesa de
"cultura de consumo democrática" tem, indubitavelmente, estimulado privilégios). Não obstante, e qualquer que seja a orientação política
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HAI l:.ülA ::;OCIALISTA ERNESTOLAClAU I CHANTALMOUFFE 251

em que o antagonismo se cristalize (isto vai depender das cadeias onda de "igualitarismo" que, em sua perspectiva, causaram uma
de equivalência que o constroem), a forma do antagonismo como tal é sobrecarga nos sistemas políticos do Ocidente. Samuel Huntington,
idêntica em todos os casos. Ou seja, o antagonismo sempre consiste em seu relatório à Comissão Trilateral, em 1975, argumentou que as
na construção de uma identidade social - de uma posição de sujeito lutas por maior igualdade e participação nos Estados Unidos durante
sobredeterminada - com base na equivalência entre um conjunto de os anos 1960 tinham provocado um "surto democrático" que tornou
elementos ou valores, que expelem ou externalizam os outros aos a sociedade "ingovernável". Ele concluiu que "a força do ideal
quais se opõem. Uma vez mais, nos encontramos diante da divisão do democrático cria um problema à govemabilidade da democracia" 2º.As
espaço social. demandas cada vez mais numerosas por igualdade real têm levado a
O mais recente destes "novos movimentos sociais", e sem sociedade, de acordo com os neoconservadores, à beira do "precipício
dúvida um dos mais ativos na atualidade , é o movimento pacifista. igualitário". É aí que eles veem as origens da dupla transformação que,
Parece-nos que ele se enquadra perfeitamente no modelo teórico que em sua opinião, a ideia de igualdade tem experimentado: ela passou da
desenvolvemos. Com a expansão do que E. P. Thompson denominou igualdade de oportunidades à igualdade de resultados, e da igualdade
a "lógica do extermínio", um crescente número de pessoas sente entre indivíduos à igualdade entre grupos. Daniel Bell considera este
que o mais básico de todos os direitos, o da vida, tem sido posto em "novo igualitarismo" uma ameaça ao verdadeiro ideal de igualdade,
xeque. Além disso, a instalação, em muitos países, de armas nucleares cujo objetivo não pode ser a igualdade de resultados, mas uma
estrangeiras, cujo uso não está sob controle nacional, gera novas "meritocracia justa" 21. A crise atual é, então, vista como resultado de
demandas, enraizadas na extensão ao campo da defesa nacional dos uma "crise de valores", a consequência do desenvolvimento de uma
II
princípios de controle democrático que os cidadãos têm o direito de "cultura adversaria!" e das contradições culturais do capitalismo".
exercer no campo político. O discurso relativo à política de defesa - Até aqui apresentamos a emergência de novos antagonismos
tradicionalmente reserva exclusiva de elites políticas e militares seletas e sujeitos políticos como estando ligadas à expansão e generalização
- é assim subvertido, uma vez que o princípio do controle democrático da revolução democrática. Na realidade, esta emergência também
se aloje no seu cerne. pode ser vista corno prolongamento de várias outras áreas de efeitos
A ideia central que vimos defendendo até aqui é que as novas políticos com que nos deparamos com frequência ao longo de nossa
lutas - e a radicalização de velhas lutas, como as das mulheres e de análise. Em particular, a proliferação destes antagonismos nos leva a
minorias étnicas - devem ser entendidas a partir da dupla perspectiva ver em nova luz o problema da fragmentação dos sujeitos "unitários"
da transformação das relações sociais característica da nova formação das lutas sociais, com que o marxismo se viu confrontado na esteira
hegemônica do período pós-guerra, e do deslocamento para novas de sua primeira crise, no final do século passado. Toda a discussão
áreas da vida social do imaginário igualitário constituído em torno sobre as estratégias de recomposição da unidade da classe operária,
do discurso liberal-democrático. Foi isto que forneceu o referencial vista sob essa perspectiva, nada mais é do que o primeiro ato de um
necessário ao questionamento das diferentes relações de subordinação reconhecimento- relutante, é verdade- da pluralidade do social, e do
e a reivindicação de novos direitos. Que o imaginário democrático tenha caráter não-suturado de toda identidade política. Se lermos sous rature
tido um papel fundamental na erupção de novas demandas desde os os textos de Rosa Luxemburgo, Labriola e do próprio Kautsky, veremos
anos 1960, compreenderam-no perfeitamente os neoconservadores que este momento inassimilável da pluralidade está, de uma maneira
norte-americanos, que denunciam o "excesso de democracia" e a ou de outra, presente em seu discurso, minando a coerência de suas
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categorias. Claro está que esta multiformidade não era necessariamente Este enfoque nos permite redimensionar e fazer justiça às
um momento negativo de fragmentação ou o reflexo de uma divisão próprias lutas dos trabalhadores, cujo caráter é distorcido quando
artificial resultante da lógica do capitalismo, como os teóricos da elas são contrastadas en bloc às lutas dos "novos sujeitos políticos".
Segunda Internacional pensavam, mas o próprio terreno que tornava Ao se rejeitar a concepção da classe operária como "classe universal",
possível um aprofundamento da revolução democrática. Como torna-se possível reconhecer a pluralidade dos antagonismos que
veremos, este aprofundamento se revela até mesmo nas ambiguidades tem lugar no campo do que é arbitrariamente agrupado sob o rótulo
e dificuldades que toda prática de articulação e recomposição tem que de "lutas dos trabalhadores" e a importância inestimável da grande
enfrentar. A renúncia à categoria do sujeito, como entidade unitária, maioria deles para o aprofundamento do processo democrático.
transparente e suturada, abre caminho para o reconhecimento da As lutas dos trabalhadores têm sido muitas, e têm assumido uma
especificidade dos antagonismos constituídos na base de diferentes variedade extraordinária de formas em função das transformações
posições de sujeito e, logo, para a possibilidade de aprofundamento no papel do Estado, das práticas sindicais de diferentes categorias
de uma concepção pluralista e democrática. A crítica da categoria de trabalhadores, dos antagonismos dentro e fora das fábricas, e dos
do sujeito unificado e o reconhecimento da dispersão discursiva no equilíbrios hegemônicos existentes. Um excelente exemplo disso nos é
interior da qual toda posição de sujeito se constitui envolve, portanto, dado pelas chamadas lutas dos "novos trabalhadores", que ocorreram
algo mais que a enunciação de uma posição teórica geral: elas são na França e na Itália, no final dos anos 1960. Elas mostram bem como
uma condição sine qua non para se pensar a multiplicidade a partir as formas de luta no interior da fábrica dependem de um contexto
da qual emergem antagonismos em sociedades onde a revolução discursivo muito mais vasto do que o de simples relações de produção.
democrática ultrapassou certo limiar. Isto nos concede um terreno A influência evidente das lutas e slogans do movimento estudantil; o
teórico sobre cujo fundamento a noção de democraciaradicale plural papel central desempenhado por trabalhadores jovens, cuja cultura era
- que será central ao nosso argumento daqui em diante - encontra radicalmente diferente da de seus colegas mais velhos; a importância
suas primeiras condições de compreensão. Somente aceitando que as dos imigrantes, na França, e dos sulistas, na Itália: tudo isto nos revela
posições de sujeito não podem ser remetidas de volta a um princípio que as demais relações sociais em que os trabalhadores estão implicados
fundante positivo e unitário, é que o pluralismo pode ser considerado determinarão a maneira pela qual eles reagem dentro da fábrica,
radical. O pluralismo só é radicalna medida em que cada termo desta e que, em decorrência, a pluralidade destas relações não pode ser
pluralidade de identidades encontra em si próprio o princípio de magicamente apagada para constituir uma única classe trabalhadora.
sua validade, sem que este tenha que ser buscado num fundamento Nem podem as demandas dos trabalhadores, então, ser reduzidas a
positivo, transcendente ou subjacente, para a hierarquia de sentido de um antagonismo singular, cuja natureza é ontologicamente diferente
todos eles, e fonte e garantia de sua legitimidade. E este pluralismo daquela de outros sujeitos sociais e políticos.
radical é democrático na medida em que a autoconstitutividade de Até o momento, falamos de uma multiplicidade de antagonismos
cada um de seus termos é o resultado dos deslocamentos do imaginário cujos efeitos, convergentes e sobredeterminados, são registrados no
igualitário. Logo, o projeto de uma democracia radical e plural, num contexto do que chamamos de "revolução democrática". A esta altura
sentido primário, nada mais é do que a luta por uma autonomização é necessário, entretanto, deixar claro que a revolução democrática é
máxima de esferas; com base na generalização da lógica eguivalencial- simplesmente o terreno no qual opera uma lógica de deslocamento
igualitária. apoiada num imaginário igualitário, mas isto não predetermina a direção
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ERNESTOLACLAU CHANTALMOUFFE 255

em que este imaginário trabalhará. Se tal direção fosse predeterminada, tomam espontaneamente seu lugar no contexto da política de esquerda.
teríamos simplesmente construído uma nova teleologia e estaríamos Muitos se dedicaram, desde os anos 1960, à busca de um novo sujeito
num campo semelhante ao da Entwicklung de Bernstein. Contudo, revolucionário privilegiado, que pudesse vir a substituir a classe operária,
nesse caso, não haveria lugar algum para uma prática hegemônica. A já que se via esta última como tendo fracassado em sua missão histórica
razão pela qual não é assim, e por que nenhuma teleologia consegue dar de emancipação. O movimento ecológico, os movimentos estudantis, o
conta de articulações sociais, é que o circuito discursivo da revolução feminismo e as massas marginalizadas têm estado entre os candidatos
democrática abre caminho para lógicas políticas tão diversas quanto o mais populares à execução desse papel. Mas, é claro que tal enfoque
populismo e o totalitarismo de direita, por um lado, e uma democracia não escapa à problemática tradicional, simplesmente a desloca. Não há
radical, por outro. Portanto, se quisermos construir as articulações posição privilegiada alguma, a partir da qual uma continuidade uniforme
hegemônicas que nos permitam caminhar em sua direção, temos que de efeitos decorra, chegando-se até à transformação da sociedade como
entender em toda sua heterogeneidade radical a série de possibilidades um todo. Todas as lutas, sejam elas dos trabalhadores ou de outros
que são abertas no terreno da própria democracia. sujeitos políticos, entregues a si mesmas, têm um caráter parcial, e
Não se pode duvidar que a profusão de novos antagonismos e podem ser articuladas a discursos muito diferentes. É esta articulação
de "novos direitos" está levando a uma crise da formação hegernônica que lhes confere seu caráter, não o lugar de onde elas procedem. Não
do período pós-guerra. Entretanto, a forma pela qual esta crise pode há, portanto, sujeito algum - nem, para ir mais longe, "necessidade"
ser resolvida está longe de ser predeterminada, assim corno a maneira alguma - que seja absolutamente radical e irrecuperável pela ordem
pela qual os direitos serão definidos e as formas que a luta contra a dominante, e que constitua um ponto de partida absolutamente seguro
subordinação vão tomar não estão inequivocamente estabelecidas. para uma transformação total. (Igualmente, nada há que assegure
Defrontamo-nos aqui com uma verdadeira polissemia. Feminismo ou permanentemente a estabilidade de uma ordem estabelecida.) É em
ecologia, por exemplo, terão múltiplas formas, que dependerão da relação a este ponto que achamos que algumas análises altamente
maneira pela qual o antagonismo é discursivamente constituído. Assim, interessantes, como as de Alain Touraine e André Gorz, não vão longe
temos um feminismo radical, que ataca os homens como tais; um o bastante em sua ruptura com a problemática tradicional 22. Gorz,
feminismo da diferença, que busca revalorizar a "feminilidade"; e um por exemplo, visto que atribui à "não-classe dos não-trabalhadores" o
feminismo marxista, para o qual o inimigo fundamental é o capitalismo, privilégio que ele nega ao proletariado, na verdade não faz mais do que
considerado como estando ligado indissociavelmente ao patriarcado. inverter a posição marxista. É ainda a localização ao nível das relações
Há, portanto, uma pluralidade de formas discursivas de se construir de produção que é determinante, mesmo que, em seu caso, o sujeito
um antagonismo com base nos diferentes modos de subordinação das revolucionário seja definido pela ausência daquela inserção. Quanto
mulheres. O ecologismo, da mesma maneira, pode ser anticapitalista, a Touraine, sua procura pelo movimento social que possa ter o papel
anti-industrialista, autoritário, libertário, socialista, reacionário, e assim na "sociedade programada" que foi ocupado pela classe operária na
por diante. As formas de articulação de um antagonismo, pois, longe de sociedade industrial, indica claramente que ele também não questiona
serem predeterminadas, são resultado de uma luta hegemônica. Esta a ideia da unicidade da força social que pode produzir uma mudança
afirmação tem consequências importantes, uma vez que implica em radical numa determinada sociedade.
que estas novas lutas não têm necessariamente um caráter progressista, Que os meios de resistência a novas formas de subordinação sejam
e que é, portanto, um erro se pensar, como fazem muitos, que elas polissêmicos e possam perfeitamente ser articulados a um discurso
Hl:;ül:;MIJNIA I:; t;:;IHAll:;ülA :;l.)(.;IALl:;IA ERNESTO LACLAU I CHANTAL MOUFFE 257

antidemocrático, pode-se demonstrar claramente pelo avanço da "nova É precisamente este caráter polissémico de todo antagonismo
direita" nos últimos anos. Sua novidade reside em sua articulação que torna seu sentido dependente de uma articulação hegemônica,
bem sucedida ao discurso não-liberal de uma série de resistências na medida em que, como vimos, o terreno das práticas hegemônicas
democráticas à transformação das relações sociais. O apoio popular se constitui a partir da ambiguidade fundamental do social, a
aos projetos de Reagan e Thatcher de desmantelamento do Welfare impossibilidade de estabelecer de modo definitivo o sentido de
State se explica pelo fato deles terem conseguido mobilizar contra este qualquer luta, seja ela considerada isoladamente, seja através de sua
último toda uma série de resistências ao caráter burocrático das novas fixação num sistema relacional. Como dissemos, existem práticas
formas de organização estatal. Fica patentemente demonstrado por hegemônicas porque esta não-fixidez radical torna impossível
este discurso neoconservador que as cadeias de equivalência que cada considerar-se a luta política um jogo no qual a identidade das forças
formação hegemônica constitui podem ser de natureza enormemente oponentes esteja constituída desde o início. Isto significa que nenhuma
diferenciada: os antagonismos constituídos em torno da burocratização política com aspirações hegemônicas pode jamais considerar-se
são articulados em defesa das desigualdades tradicionais de sexo como repetição,como tendo lugar num espaço delimitador de uma
e raça. A defesa de direitos adquiridos fundados na supremacia pura internalidade, mas deve sempre se mobilizar numa pluralidade
branca e masculina, que alimenta a reação conservadora, amplia, de planos. Se o sentido de cada luta não está dado de partida, isto
desta forma, a abrangência de seus efeitos hegemônicos. Constrói-se, significa que ele é - parcialmente - fixado, somente na medida
assim, um antagonismo entre dois polos: o "povo", que inclui todos em que a luta se move para fora de si mesma e, através de cadeias
aqueles que defendem os valores tradicionais e a livre iniciativa; e de equivalência, vincula-se estruturalmente a outras lutas. Todo
seus adversários: o Estado e todos os subversivos (feministas, negros, antagonismo, entregue livremente a si, é um significante flutuante,
jovens e "permissivos" de todos os matizes). Faz-se, assim, uma um antagonismo "indômito", que não predetermina a forma pela qual
tentativa de construir um novo bloco histórico, no qual se articula pode ser articulado a outros elementos numa formação social. Isto nos
uma pluralidade de aspectos econômicos, sociais e culturais. Stuart permite estabelecer a diferença radical entre as lutas sociais atuais e as
Hall destaca, por exemplo, como o populismo thatcheriano "combina que ocorreram antes da revolução democrática. Estas últimas sempre
os temas ressonantes do conservadorismo orgânico - nação, família, tiveram lúgar no contexto da negação de identidades relativamente
dever, autoridade, padrões, tradicionalismo- com os temas agressivos estáveis e dadas; como resultado, as fronteiras do antagonismo eram
de um neoliberalismo redivivo - interesse próprio, individualismo plenamente visíveis e não precisavam ser construídas - a dimensão
competitivo, antiestatismo" 23 • No caso dos Estados Unidos, Allen hegemônica da política estava, consequentemente, ausente. Mas,
Hunter mostra que o ataque da Nova Direita ao Welfare State é o ponto nas sociedades industriais atuais, a própria proliferação de pontos
em que se encontram as críticas cultural e econômica. Ambas as críticas de ruptura amplamente diferenciados, o caráter precário de toda
afirmam que o Estado interfere "nas características econômicas e éticas identidade social, também levam a um borramento das fronteiras. Em
do mercado, em nome de um igualitarismo atraentemente enganador. decorrência, o caráter de construção das linhas demarcatórias se torna
Elas também atacam o liberalismo de bem-estar, por introduzir o mais evidente por meio de sua maior instabilidade, e o deslocamento
intervencionismo estatal nas vidas privadas das pessoas e na estrutura das fronteiras e divisões internas do social se torna mais radical. É
moral da sociedade, em áreas como a socialização das crianças e a neste campo e a partir desta perspectiva que o projeto neoconservador
relação entre os sexos" 24• adquire toda sua dimensão hegemônica.
1.nl"'l.."'IV L.J'\\.,.LAU I l,;HANIAL
MOUFFE 25!

A ofensiva antidemocrática liberalismo como doutrina que visa a reduzir ao mínimo os podere,
do Estado, a fim de maximizar o objetivo político central: a liberdad,
O que a "nova direita" neoconservadora ou neoliberal põe em individual. Urna vez mais, esta vem a ser definida em termos negativos
questão é o tipo de articulação que levou o liberalismo democrático como "... aquela condição dos homens em que a coerção de un:
a justificar a intervenção do Estado na luta contra as desigualdades, e sobre os outros é reduzida tanto quanto possível na sociedade" 26• P
a instalação do Welfare State. A crítica desta transformação não é um liberdade política é ostensivamente excluída desta definição. Segunde
desenvolvimento recente. Já em 1944, em The Road to Se1fdom,Hayek Hayek, " ... a democracia [é] essencialmente um meio, um instrumente
lançava um violento ataque ao Estado intervencionista e às várias utilitário de salvaguarda da paz interior e da liberdade individual" 27 •
formas de planejamento econômico que estavam sendo implementadas Esta tentativa de retorno à concepção tradicional de liberdade,
à época. Ele afirmava que as sociedades ocidentais estavam em vias de que a caracteriza como não-interferência no direito de apropriação
se tornar coletivistas, rumando, assim, na direção do totalitarismo. De ilimitada e nos mecanismos da economia de mercado capitalista,
acordo com ele, o limiar do coletivismo é cruzado no momento em esforça-se para desqualificar toda concepção "positiva" da liberdade
que a lei, ao invés de ser um meio de controle da administração, é como potencialmente totalitária. Ela afirma que uma ordem política
utilizada por esta com o fim de se atribuir novos poderes, e de facilitar liberal só pode existir no contexto de uma economia de livre mercado
a expansão da burocracia. A partir deste ponto, é inevitável que o capitalista. Em Capitalismand Freedom28, Milton Friedman declara que
poder da lei decline, enquanto o da burocracia aumenta. Na realidade, este é o único tipo de organização social ~ue respeita o princípio da
o que está em questão nesta crítica neoliberal é a própria articulação liberdade individual, uma vez que constitui o único sistema econômico
entre liberalismo e democracia que se realizou no curso do século capaz de coordenar as atividades de um grande número de pessoas
dezenove 25• Essa "democratização" do liberalismo, que foi resultante sem recorrer à coerção. Toda intervenção estatal, exceto em conexão
de múltiplas lutas, teria eventualmente um impacto profundo sobre a com assuntos que não possam ser regulados através do mercado, é
forma em que a própria ideia de liberdade era concebida. Partindo da considerada um ataque à liberdade individual. A noção de justiça
definição tradicional de liberdade de Locke - "liberdade é ser livre da social ou redistributiva, na medida em que é invocada para justificar a
coerção e violência dos outros" -, tínhamos passado, com John Stuart intervenção estatal, é um dos alvos favoritos dos neoliberais. Segundo
Mill, à aceitação da liberdade "política" e da participação democrática Hayek, é uma noção completamente ininteligível numa sociedade
corno importante componente da liberdade. Mais recentemente, no liberal, já que " ... num sistema em que se permite a cada um utilizar
discurso social-democrata, a liberdade veio a significar a "capacidade" seu conhecimento para seus próprios fins, o conceito de 'justiça social'
de fazer certas escolhas e manter aberta uma série de alternativas reais. é necessariamente vazio e sem sentido, porque nele nenhuma vontade
Assim é que a pobreza, a falta de educação e grandes disparidades nas pode determinar a renda relativa de diferentes pessoas, ou impedir
condições de vida são hoje consideradas ofensas à liberdade. que ela possa depender parcialmente do acaso" 29 •
É essa transformação que o neoliberalismo deseja questionar. De uma perspectiva "libertária", Robert Nozick questiona
Hayek é, sem dúvida, um dos que se devotaram mais arduamente igualmente a ideia de que possa existir algo como uma justiça
a reformular os princípios do liberalismo a fim de combater aquelas distributiva oferecida pelo Estado 30. A seu ver, a única função do
variações de sentido que permitiram a ampliação e o aprofundamento Estado compatível com a liberdade é a de proteger o que nos pertence
das liberdades. Ele propõe reafirmar a "verdadeira" natureza do legitimamente, apesar de não ter o direito de estabelecer impostos
que vão além do necessário ao desenvolvimento das atividades de Recapturando habilidosamente urna série de temas libertários de
policiamento. Em contraste com os ultralibertários americanos, que 1 movimento de 1968, Alain de Benoist considera que ao atribuir un-
rejeitam toda intervenção estatal31, Nozick justifica a existência do papel fundamental ao sufrágio universal, a democracia coloca todo~
Estado mínimo, isto é, da lei e da ordem. Mas, um Estado que fosse os indivíduos no mesmo plano e deixa de reconhecer as importantei
além disto seria injustificável, pois neste caso ele violaria os direitos dos diferenças entre eles. Donde deriva uma uniformização e massificaçãe
indivíduos. Em todo caso, Nozick assevera, nada haveria disponível da cidadania, sobre a qual se impõe uma única norma, que mostra e
que pudesse ser distribuído pelo Estado, já que tudo que existisse seria caráter necessariamente totalitário da democracia. Em face da cadeic
possuído por indivíduos ou estaria sob seu legítimo controle. de equivalências igualdade=identidade=totalitarismo, a nova direit,
Outra forma de atacar os efeitos subversivos da articulação proclama o "direito à diferença", e afirma a sequência diferença=desi-
entre liberalismo e democracia é, à maneira dos neoconservadores, gualdade=liberdade. De Benoist escreve: "Chamo' de direita' a atitudE
redefinir a própria noção de democracia, de modo a restringir seu que considera a diversidade do mundo, e daí as desigualdades, come
campo de aplicação e limitar a participação política a uma esfera cada boas, e a progressiva homogeneização do mundo, favorecida e geradé
vez mais estreita. Assim, Brzezinski propõe " ... separar cada vez mais pelo discurso bimilenar da ideologia totalitária, como um mal" 34•
o sistema político da sociedade e começar a conceber os dois como Seria um erro subestimar a importância destas tentativai
entidades separadas" 32 • O objetivo é remover mais e mais as decisões de redefinir noções como "liberdade", "igualdade", "justiça" E
públicas do controle político, e torná-las responsabilidade exclusiva de "democracia". O dogmatismo tradicional da esquerda, que atribufr
especialistas. Neste caso, o efeito seria uma despolitização das decisões importância secundária a problemas no centro da filosofia política
fundamentais, tanto ao nível econômico como social e político. Tal baseava-se no caráter "superestrutura!" de tais problemas. No final
sociedade, a seu ver, seria democrática " ... num sentido libertário; a esquerda se interessava apenas por um leque limitado de questõet
democrática, não em termos do exercício de escolhas fundamentais vinculadas à infraestrutura e aos sujeitos constituídos no seu interior.
relativas à elaboração de políticas, mas no sentido de manutenção de enquanto todo o vasto campo da cultura e da definição da realidadE
certas áreas de autonomia para a autoexpressão individual" 33 • Embora construída sobre a base desta, todo o esforço de articulação hegemônie2
o ideal democrático não seja abertamente atacado, faz-se uma tentativa das diversas formações discursivas, foi deixado livre para a iniciativa d2
de esvaziá-lo de toda substância, e de propor uma nova definição de direita. E, com efeito, se toda a concepção liberal-democrática do Estado,
democracia que, de fato, serviria para legitimar um regime no qual a associada à direita, era simplesmente vista como forma superestruturaJ
participação política poderia ser virtualmente inexistente. da dominação burguesa, era difícil - sem que se caísse no oportunismc
Na França, entre os teóricos da nova direita, tem havido crasso - considerar uma possível atitude diferente. Entretanto, uma
uma crítica muito mais audaciosa da democracia. Desta forma, vez que abandonemos a distinção base/superestrutura, e rejeitemos a
seu principal porta-voz, Alain de Benoist, declara abertamente visão de que haja pontos privilegiados a partir dos quais se poderia
que a Revolução Francesa marcou um dos estágios fundamentais lançar uma prática política emancipatória, fica claro que a constituição
de degeneração da civilização ocidental - uma degeneração que de uma alternativa hegemônica de esquerda só pode advir de um
começara com o cristianismo, o "bolchevismo da antiguidade". Ele processo complexo de convergência e construção política, para o qual
prossegue argumentando que é o espírito mesmo da Declaração nenhuma das articulações hegemônicas construídas em qualquer área
dos Direitos do Homem, de 1789, que tem que ser rejeitado. da realidade social pode ser indiferente. A forma em que se definem
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que vão além do necessário ao desenvolvimento das atividades de


policiamento. Em contraste com os ultralibertários americanos, que
rejeitam toda intervenção estatal31, Nozick justifica a existência do
Estado mínimo, isto é, da lei e da ordem. Mas, um Estado que fosse
l Recapturando habilidosamente uma série de temas libertários do
movimento de 1968, Alain de Benoist considera que ao atribuir um
papel fundamental ao sufrágio universal, a democracia coloca todos
os indivíduos no mesmo plano e deixa de reconhecer as importantes
além disto seria injustificável, pois neste caso ele violaria os direitos dos diferenças entre eles. Donde deriva uma uniformização e massificação
indivíduos. Em todo caso, Nozick assevera, nada haveria disponível da cidadania, sobre a qual se impõe uma única norma, que mostra o
que pudesse ser distribuído pelo Estado, já que tudo que existisse seria caráter necessariamente totalitário da democracia. Em face da cadeia
possuído por indivíduos ou estaria sob seu legítimo controle. de equivalências igualdade=identidade=totalitarismo, a nova direita
Outra forma de atacar os efeitos subversivos da articulação proclama o "direito à diferença", e afirma a sequência diferença=desi-
entre liberalismo e democracia é, à maneira dos neoconservadores, gualdade=liberdade. De Benoist escreve: "Chamo' de direita' a atitude
redefinir a própria noção de democracia, de modo a restringir seu que considera a diversidadedo mundo, e daí as desigualdades, como
campo de aplicação e limitar a participação política a uma esfera cada boas, e a progressiva homogeneização do mundo, favorecida e gerada
vez mais estreita. Assim, Brzezinski propõe" ... separar cada vez mais pelo discurso bimilenar da ideologia totalitária, como um mal" 34•
o sistema político da sociedade e começar a conceber os dois como Seria um erro subestimar a importância destas tentativas
entidades separadas" 32• O objetivo é remover mais e mais as decisões de redefinir noções como "liberdade", "igualdade", "justiça" e
públicas do controle político, e torná-las responsabilidade exclusiva de "democracia". O dogmatismo tradicional da esquerda, que atribuía
especialistas. Neste caso, o efeito seria uma despolitização das decisões importância secundária a problemas no centro da filosofia política,
fundamentais, tanto ao nível econômico como social e político. Tal baseava-se no caráter "superestrutura!" de tais problemas. No final,
sociedade, a seu ver, seria democrática " ... num sentido libertário; a esquerda se interessava apenas por um leque limitado de questões
democrática, não em termos do exercício de escolhas fundamentais vinculadas à infraestrutura e aos sujeitos constituídos no seu interior,
relativas à elaboração de políticas, mas no sentido de manutenção de enquanto todo o vasto campo da cultura e da definição da realidade
certas áreas de autonomia para a autoexpressão individual" 33 . Embora construída sobre a base desta, todo o esforço de articulação hegemônica
o ideal democrático não seja abertamente atacado, faz-se uma tentativa das diversas formações discursivas, foi deixado livre para a iniciativa da
de esvaziá-lo de toda substância, e de propor uma nova definição de direita. E, com efeito, se toda a concepção liberal-democrática do Estado,
democracia que, de fato, serviria para legitimar um regime no qual a associada à direita, era simplesmente vista como forma superestrutura!
participação política poderia ser virtualmente inexistente. da dominação burguesa, era difícil - sem que se caísse no oportunismo
Na França, entre os teóricos da nova direita, tem havido crasso - considerar uma possível atitude diferente. Entretanto, uma
uma crítica muito mais audaciosa da democracia. Desta forma, vez que abandonemos a distinção base/superestrutura, e rejeitemos a
seu principal porta-voz, Alain de Benoist, declara abertamente visão de que haja pontos privilegiados a partir dos quais se poderia
que a Revolução Francesa marcou um dos estágios fundamentais lançar uma prática política emancipatória, fica claro que a constituição
de degeneração da civilização ocidental - uma degeneração que de uma alternativa hegemônica de esquerda só pode advir de um
começara com o cristianismo, o "bolchevismo da antiguidade". Ele processo complexo de convergência e construção política, para o qual
prossegue argumentando que é o espírito mesmo da Declaração nenhuma das articulações hegemônicas construídas em qualquer área
dos Direitos do Homem, de 1789, que tem que ser rejeitado. da realidade social pode ser indiferente. A forma em que se definem
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liberdade, igualdade, democracia e justiça, ao nível da filosofia política, 1 esforço de restringir o terreno da luta democrática e de preservar as
pode ter importantes consequências numa variedade de outros níveis desigualdades existentes numa série de relações sociais, exige a defesa
do discurso, e contribuir decisivamente para moldar o senso comum de um princípio hierárquico e anti-igualitário, que foi ameaçado pelo
das massas. Naturalmente, estes efeitos irradiadores não podem ser próprio liberalismo. Daí porque os liberais cada vez mais recorrem
considerados como a simples adoção de um ponto de vista filosófico a um conjunto de temas da filosofia conservadora, nos quais eles
ao nível das "ideias", mas devem, antes, ser vistos como um conjunto encontram os ingredientes necessários para justificar a desigualdade.
mais complexo de operações discursivo-hegemônicas abarcando Estamos, pois, testemunhando a emergência de um novo projeto
uma variedade de aspectos, tanto instihtcionais como ideológicos, hegemônico, o do discurso liberal-conservador, que busca articular
através das quais certos "temas" são transformados em pontos nodais a defesa neoliberal da economia de livre mercado ao tradicionalismo
de uma formação discursiva (ou seja, de um bloco histórico). Se as cultural e social profundamente anti-igualitário do conservadorismo.
ideias neoliberais adquiriram inquestionável ressonância política,
isto se deve ao fato de terem permitido a articulação de resistências Democracia radical: alternativa para uma nova esquerda
à crescente burocratização das relações sociais a que nos referimos
anteriormente. Logo, o novo conservadorismo conseguiu apresentar A reação conservadora, portanto, tem um caráter claramente
seu programa de desmantelamento do Welfare State como uma defesa hegemônico. Ela busca uma transformação profunda dos termos do
da liberdade individual contra o Estado opressor. No entanto, para que discursopolíticoeacriaçãodeumanova "definição da realidade" que, sob
uma filosofia se torne "ideologia orgânica", certas analogias devem a capa da defesa da "liberdade individual", legitimaria desigualdades e
existir entre o tipo de sujeito que ela constrói e as posições de sujeito restauraria as relações hierárquicas que as lutas das décadas anteriores
que são constituídas ao nível de outras relações sociais. Se o tema da tinham destruído. O que está em jogo aqui é, de fato, a criação de um
liberdade individual pode ser mobilizado tão efetivamente, é também novo bloco histórico. Convertido em ideologia orgânica, o liberal-
porque, a despeito de sua articulação com o imaginário democrático, o conservadorismo construiria uma nova articulação hegemônica, por
liberalismo continuou a reter como matriz de produção do indivíduo meio de um sistema de equivalências que unificaria múltiplas posições
o que Macpherson chamou de "individualismo possessivo" 35 • Este de sujeito em torno de uma definição individualista de direitos e urna
constrói os direitos individuais como existentes antes da sociedade, e concepção negativa de liberdade. Defrontamo-nos mais uma vez,
frequentemente em oposição a ela. Na medida em que sujeitos mais e então, com o deslocamento da fronteira do social. Uma série de posições
mais numerosos reivindicaram esses direitos no quadro da revolução de sujeito que eram aceitas como diferenças legíthnas na formação
democrática, foi inevitável que a matriz do individualismo possessivo hegemônica correspondente ao Welfare State são expelidas do campo
fosse rompida, ao colidirem os direitos de uns com os direitos de outros. da positividade social e interpretadas como negatividade- os parasitas
É nesse contexto de crise do liberalismo democrático que é necessário da seguridade social (os "sanguessugas" de Margareth Thatcher), a
localizar a ofensiva que visa a dissolver o potencial subversivo das ineficiência associada aos privilégios sindicais e subsídios esta.tais etc.
articulações entre liberalismo e democracia, reafirmando a centralidade Fica claro, portanto, que uma alternativa de esquerda só pode
do liberalismo como defesa da liberdade individual contra toda consistir na construção de um sistema diferente de equivalentes,
interferência do Estado e em oposição ao componente democrático, que estabeleça a divisão social em novas bases. Face ao projeto de
que se funda nos direitos iguais e na soberania popular. Porém, esse reconstrução de uma sociedade hierárquica, a alternativa da esquerda
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consistiria em localizar-se inteiramente no campo da revolução


democrática e expandir as cadeias de equivalência entre as diferentes
lutas contra a opressão. A tarefada esquerda,pois, não pode ser renunciar
à ideologialiberal-democrática,mas, ao contrário,aprofundá-lae expandi-la
l trabalhadora representa o agente privilegiado em que reside o impulso
fundamental de mudança social - sem se perceber que a própria
orientação da classe trabalhadora depende de um equilíbrio político
de forças e da radicalização de uma pluralidade de lutas democráticas
na direçãode uma democraciaradicale plural. Explicaremos as dimensões que são decididas, em boa parte, fora da classe em si. Do ponto de vista
desta missão nas páginas seguintes, mas o fato mesmo de que ela seja dos níveis sociaisem que se concentra a possibilidade de implementar
possível surge do fato do sentido do discurso liberal sobre os direitos mudanças, os obstáculos fundamentais têm sido o estatismo- a ideia de
individuais não estar definitivamente fixado; e assim como esta que a expansão do papel do Estado é a panaceia de todos os problemas;
não-fixação permite a articulação destes com elementos do discurso e o economicismo,particularmente em sua versão tecnocrática - a ideia
conservador, ela também possibilita diferentes formas de articulação de que a partir de uma estratégia econômica bem sucedida segue-se
e redefinição que acentuem o momento democrático. Ou seja, como necessariamente uma continuidade de efeitos políticos, que podem ser
ocorre com qualquer outro elemento social, os elementos que fazem claramente especificados.
o discurso liberal nunca aparecem cristalizados, e podem ser o campo No entanto, se olharmos para o núcleo último desta fixidez
da luta hegemónica. Não é no abandono do terreno democrático, mas, essencialista, encontraremos nele o ponto nodal fundamental a
ao contrário, na extensão do campo das lutas democráticas a toda a galvanizar o imaginário político da esquerda: o conceito clássico
sociedade civil e ao Estado, que reside a possibilidade de uma estratégia de "revolução", em moldes jacobinos. Naturalmente, nada haveria
hegemónica da esquerda. É, não obstante, importante compreender a a se objetar no conceito de "revolução" se o entendêssemos como a
amplitude radical das mudanças que são necessárias no imaginário sobredeterminação de um conjunto de lutas num ponto de ruptura
político da esquerda, se esta pretende ter sucesso na fundação de política, a partir do qual se seguiria uma série de efeitos espalhando-
uma prática política localizada no campo da revolução democrática e se por todo o tecido do social. Se fosse esta a compreensão, não resta
consciente da profundidade e variedade das articulações hegemónicas dúvida de que em muitos casos a derrubada violenta de um regime
que a presente conjuntura requer. O obstáculo fundamental a esta repressivo é a condição de todo avanço democrático. No entanto, o
tarefa é aquele para o qual vimos chamando atenção desde o início conceito clássico de revolução implicava muito mais do que isso:
deste livro: o apriorismo essencialista, a convicção de que o social é implicava no caráter fundacional do ato revolucionário, a instituição
suturado em algum ponto a partir do qual é possível fixar o sentido de de um ponto de concentração de poder a partir do qual a sociedade
todo evento, independentemente de qualquer prática articulatória. Isso poderia ser "racionalmente" reorganizada. É esta perspectiva que
tem levado a que não se consiga entender o constante deslocamento é incompatível com a pluralidade e a abertura que uma democracia
dos pontos nodais estruturadores de uma formação social, e a radical requer. Radicalizando mais uma vez certos conceitos de
uma organização do discurso em termos de uma lógica de "pontos Gramsci, encontramos os instrumentos teóricos que nos permitem
privilegiados a priori", que limita seriamente a capacidade de ação redimensionar o ato revolucionário em si. O conceito de "guerra
e análise política da esquerda. Essa lógica de pontos privilegiados de posição" implica precisamente no caráter processual de toda
tem operado numa variedade de direções. Do ponto de vista da transformação radical - o ato revolucionário é, simplesmente, um
determinação dos antagonismos fundamentais, o obstáculo básico, momento interno deste processo. A multiplicação de espaços políticos
como vimos, tem sido o classismo:quer dizer, a ideia de que a classe e o impedimento de que o poder se concentre num só ponto são, então,
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precondições de toda transformação verdadeiramente democrática Todos estes obstáculos convergem num núcleo comum, que é a
da sociedade. A concepção clássica de socialismo supunha que o recusa em abandonar o pressuposto de uma sociedade suturada. Uma
desaparecimento da propriedade privada dos meios de produção vez que se descarte isto, porém, surge todo um conjunto de novos
estabeleceria uma cadeia de efeitos que, ao longo de todo um período problemas que devemos agora enfrentar. Estes podem ser resumidos
histórico, levaria à extinção de todas as formas de subordinação. Hoje, em três questões que abordaremos em sequência: 1) Como determinar
sabemos que não é assim. Não há, por exemplo, vínculos necessários as supe1fíciesde emergênciae as formas de articulaçãodos antagonismos
entre antissexismo e anticapitalismo, e uma unidade entre ambos só que um projeto de democracia radical deveria abarcar? 2) Em que
pode ser resultado de uma articulação hegemônica. Segue-se que só medida o pluralismo próprio a uma democracia radical é compatível
é possível construir esta articulação a partir de lutas distintas, que com os efeitos de equivalência que, como vimos, são característicos de
somente exercem seus efeitos equivalenciais e de sobredeterminação toda articulação hegemônica? 3) Em que medida a lógica implícita nos
em certas esferas do social. Isto requer a autonomização das esferas deslocamentos do imaginário democrático é suficiente para definir um
de luta e a multiplicação de espaços políticos, que é incompatível projetohegemônico?
com a concentração de poder e de saber que o jacobinismo clássico Sobre o primeiro ponto, é evidente que, assim como o apriorismo
e suas diferentes variantes socialistas implicam. Obviamente, todo implícito numa topografia do social mostrou-se insustentável, é
projeto de democracia radical implica numa dimensão socialista, pois também impossível definir a priori as superfícies em que se constituirão
é necessário pôr fim às relações capitalistas de produção, que estão na os antagonismos. Assim, embora várias políticas de esquerda possam
raiz de inúmeras relações de subordinação; mas o socialismo é um dos ser concebidas e especificadas em certos contextos, não há uma política
componentes de um projeto de democracia radical, e não vice-versa. da esquerda cujo conteúdopossa ser determinado na ausência de toda
Por isso mesmo, quando se fala da socialização dos meios de produção referência contextual. É por isto que todas as tentativas de proceder a tal
como um elemento da estratégia de uma democracia radical e plural, determinação a prioritêm sido necessariamente unilaterais e arbitrárias,
deve-se insistir que isto não pode significar apenas autogestão dos sem validade alguma num grande número de circunstâncias. A explosão
trabalhadores, pois o que está em jogo é a verdadeira participação de da singularidade de sentido do político-que está ligada aos fenômenos
todos os sujeitos em decisões quanto ao que deve ser produzido, como de desenvolvimento desigual e combinado-dissolve toda possibilidade
se deve produzir, e às formas pelas quais o produto deve ser distribuído. de fixação do significado em termos de uma divisão entre esquerda e
Somente em tais condições pode haver apropriaçãosocial da produção. direita. Digamos que nós tentamos definir um conteúdo último para a
Reduzir a questão a um problema de autogestão dos trabalhadores esquerda, que esteja presente em todos os contextos nos quais a palavra
é ignorar o fato de que os "interesses" dos trabalhadores podem ser for usada: nunca acharemos um que não apresente exceções. Estamos
construídos de tal maneira que não levem em consideração demandas exatamente no terreno dos jogos de linguagem wittgensteinianos:
ecológicas ou demandas de outros grupos que, sem serem produtores, o mais próximo que podemos chegar é encontrar "semelhanças
são afetados por decisões tomadas no campo da produção 36 • de família". Examinemos alguns exemplos. Muito tem sido dito
Do ponto de vista de uma política hegemônica, então, a recentemente sobre a necessidade de aprofundar a linha de separação
limitação crucial da perspectiva de esquerda tradicional é que ela tenta entre Estado e sociedade civil. Não é difícil perceber, no entanto, que
determinar a priori os agentes da mudança, os níveis de efetividade esta proposta não fornece à esquerda qualquer teoria sobre a superficie
no campo do social e os pontos e momentos de ruptura privilegiados. de emergência de antagonismos que possam ser generalizados para
além de um número limitado de situações. Ela parece implicar em que age como freio sobre movimentos de massa; mas, em outras, ele
que toda forma de dominação está encarnada no Estado. Contudo, é
\ pode ser o organizador de massas dispersas e politicamente virgens, e
claro que a sociedade civil é também o lugar de numerosas relações de pode assim servir como instrumento de expansão e aprofundamento
opressão e, consequentemente, de antagonismos e lutas democráticas. de lutas democráticas. O que importa é que, na medida em que o
Com maior ou menor clareza de resultados, teorias como a análise campo da "sociedade em geral" desaparece como referencial válido de
de Althusser sobre os "aparelhos ideológicos do Estado" buscaram análise política, também desaparece a possibilidade de se estabelecer
criar um arcabouço conceituai com o qual pensar estes fenômenos de uma teoria geralda política com base em categorias topográficas - quer
deslocamento no campo da dominação. No caso da luta feminista, o dizer, de categorias que fixam de uma maneira permanente o sentido
Estado é um meio importante de se efetuar avanços, frequentemente de certos conteúdos como diferenças que podem ser localizadas num
contra a sociedade civil, numa legislação que combata o sexismo. Em complexo relacional.
muitos países subdesenvolvidos a expansão das funções do Estado A conclusão a se tirar desta análise é que é impossível especi-
central é um meio de se estabelecer uma fronteira na luta contra formas ficar a priori superfícies de emergência de antagonismos, já que não
extremas de exploração por parte de oligarquias agrárias. Além do mais, existe superfície que não seja constantemente subvertida pelos
o Estado não é um meio homogêneo, separado da sociedade civil por efeitos sobredeterminantes de outras, e porque há, em decorrência,
um dique, mas um conjunto desigual de agências e funções, integradas um contínuo deslocamento das lógicas sociais características de
apenas relativamente pelas práticas hegemónicas que têm lugar no seu certas esferas em direção a outras esferas. Este é, entre outras
interior. Acima de tudo, não se deveria esquecer que o Estado pode coisas, o "efeito-demonstração" que vimos em operação no caso da
ser o espaço de inúmeros antagonismos democráticos, na proporção revolução democrática. Uma luta democrática pode autonomizar
em que um conjunto de funções no seu interior - profissionais ou certo espaço em cujo interior ela se desenvolve, e produzir efeitos de
técnicas, por exemplo - pode entrar em relações de antagonismo com equivalência com outras lutas num espaço político diferente .. É a esta
centros de poder, dentro do próprio Estado, que tentem restringi-lo e pluralidade do social que se liga o projeto de democracia radical, e
deformá-lo. Nada disto significa, naturalmente, que em certos casos a a sua possibilidade emana diretamente do caráter descentrado dos
divisão entre Estado e sociedade civil não possa constituir a linha de agentes sociais, da pluralidade discursiva que os constitui em sujeitos,
demarcação política fundamental: é isto que ocorre quando o Estado se e dos deslocamentos que têm lugar no interior dessa pluralidade. As
transforma numa excrescência burocrática, imposta pela força sobre o formas originais de pensamento democrático estavam ligadas a urna
restante da sociedade, como na Europa oriental, ou na Nicarágua dos concepção positiva e unificada de natureza humana e, nesta medida,
Somozas, que era uma ditadura sustentada por um aparato militar. De tendiam a constituir um espaço único no interior do qual a natureza
todo modo, é claramente impossível identificar quer o Estado quer a teria que manifestar os efeitos de sua liberdade e igualdade radicais:
sociedade civil a prioricomo a superfície de emergência de antagonismos foi assim que se constituiu um espaço público vinculado à ideia de
democráticos. O mesmo pode ser dito quando se trata de determinar cidadania. A distinção público/privado se constituía na separação
o caráter positivo ou negativo, a partir do ponto de vista da política entre um espaço em que as diferenças eram apagadas pela equivalência
da esquerda, de certas formas organizacionais. Consideremos, por universal dos cidadãos, e uma pluralidade de espaços privados em que
exemplo, a forma "partido". O partido como instituição política pode, aquelas diferenças se mantinham em pleno vigor. É nesta altura que a
em certas circunstâncias, ser uma instância de cristalização burocrática sobredeterminação de efeitos ligada à revolução democrática passa a
deslocar a linha demarcatória entre o público e o privado e a politizar as que a identidade dos dois polos do antagonismo é consolidada. O
relações sociais; isto é, a multiplicar os espaços em que as novas lógicas fortalecimento de lutas democráticas específicas requer, portanto,
da equivalência dissolvem a positividade diferencial do social: este é o a expansão de cadeias de equivalência que se estendam a outras
longo processo que vai das lutas dos trabalhadores no século dezenove lutas. A articulação equivalencial entre antirracismo, antissexismo
às lutas das mulheres, diversas minorias raciais e sexuais, e diversos e anticapitalismo, por exemplo, requer uma construção hegemónica
grupos marginais, e às novas lutas anti-institucionais no século XX. que, em certas circunstâncias, pode ser a condição para a consolidação
Assim, o que implodiu foi a ideia e a própria realidade de um espaço de cada uma destas lutas. A lógica da equivalência, então, levada às
único de constituição do político. O que assistimos é a urna politização suas últimas consequências, implicaria na dissolução da autonomia
muito mais radical do que qualquer outra que tenhamos conhecido no dos espaços em que cada uma destas lutas é constituída, não
passado, porque ela tende a dissolver a distinção entre o público e o necessariamente porque algumas delas se subordinassem a outras,
privado, não em termos da invasão do privado por um espaço público mas porque todas elas se tomaram, rigorosamente falando, símbolos
unificado, mas em termos de uma proliferação de espaços políticos equivalentes de uma luta única e indivisível. O antagonismo teria,
radicalmente novos e diferentes. Defrontamo-nos com a emergência de assim, atingido as condições de perfeita transparência, na medida
uma pluralidadede sujeitos, cujas formas de constituição e diversidade em que toda desigualdade teria sido eliminada, e a especificidade
só podem ser pensadas se abandonarmos a categoria do "sujeito" como diferencial dos espaços em que cada uma das lutas democráticas se
essência unificada e unificadora. constituiu teria sido dissolvida. Segundo, a lógica da autonomia. Cada
Esta pluralidade do político não está em contradição, porém, com uma destas lutas retém sua especificidade diferencial com respeito
a unificação resultante dos efeitos equivalenciais que, como sabemos, às demais. Os espaços pol.íticos em que cada uma é constituída são
são a condição dos antagonismos? Ou, em outras palavras, não há uma diferentes e mutuamente incomunicáveis. Mas, pode-se ver facilmente
incompatibilidade entre a proliferação de espaços políticos própria de que esta lógica aparentementelibertária só se sustenta sob a base de
uma democracia radical e a construção de identidades coletivas com um novo fechamento. Pois, se cada luta transforma o momento de
base na lógica da equivalência? Uma vez mais nos deparamos com sua especificidade num princípio absoluto de identidade, o conjunto
a aparente dicotomia autonomia/hegemonia, a que já nos referimos destas lutas só pode ser concebido como um sistema absoluto de
no capítulo anterior, e cujas implicações e efeitos políticos devemos diferenças,e este sistema só pode ser pensado como uma totalidade
considerar agora. Tomemos a questão desde duas perspectivas: a) a fechada. Isto é, a transparência do social foi simplesmente transferida
partir do ponto de vista do terreno em que a dicotomia pode se apresentar da singularidade e inteligibilidade de um sistema de equivalências
como exclusiva; e b) a partir do ponto de vista da possibilidade e das para a singularidade e inteligibilidade de um sistema de diferenças.
condições históricas de emergência daquele terreno de exclusão. Mas, em ambos os casos estamos lidando com discursos que tentam,
Comecemos, então, considerando o terreno da incompatibilidade por suas categorias, dominar o social como totalidade.Em ambos os
entre efeitos equivalenciais e autonomia. Primeiro, a lógica da casos, logo, o momento da totalidade deixa de ser um horizonte e se
equivalência. Já indicamos que, na medida em que o antagonismo surge torna uma fundação. Somente neste espaço racional e homogêneo é que
não somente no espaço dicotomizado que o constitui, mas também no a lógica da equivalência e a lógica da autonomia são contraditórias,
campo da pluralidade do social que sempre transborda aquele espaço, porque é somente aí que as identidades sociais são apresentadas como
somente ao sair de si mesma e hegemonizar elementos externos é já adquiridas e fixadas, e é somente aí, portanto, que duas lógicas
--·•·--·-- -~~v 1 "11ru~1tt1.. w-1vur-rc. 273

sociais em última análise contraditórias encontram o terreno em que para o livre desenvolvimento de todos". Isto é, a equivalência é sempre
estes efeitos-limite podem se desenvolver plenamente. Porém, se, por hegemônica, na medida em que ela não estabelece simplesmente urna
definição, este momento último nunca chegará, a incompatibilidade "aliança" entre interesses dados, mas modifica a própria identidade
entre equivalência e autonomia desaparece. O estatuto de cada uma das forças envolvidas nesta aliança. Para que a defesa dos interesses
se modifica: não se trata mais de fundamentos da ordem social, mas de dos trabalhadores não se faça a expensas dos direitos das mulheres,
lógicassociais,que intervêm em graus diferentes na constituição de toda imigrantes ou consumidores, é necessário que se estabeleça uma
identidade social, e que limitam parcialmente seus efeitos mútuos. equivalência entre estas diferentes lutas. Somente nesta condição é que
Daí podemos deduzir uma precondição básica para uma concepção as lutas contra o poder se tornam verdadeiramente democráticas, e que
radicalmente libertária da política: a recusa a dominar - intelectual e a reivindicação de direitos não é realizada na base de uma problemática
politicamente - todo presumido "fundamento último" do s0cial. Toda individualista, mas no contexto dos direitos à igualdade de outros
concepção que busca se basear num saber sobre este fundamento se verá grupos subordinados. No entanto, se este é o sentido do princípio da
confrontada, mais cedo ou mais tarde, pelo paradoxo rousseauniano equivalência democrática, seus limites ficam igualmente claros. Esta
de acordo com o qual os homens seriam obrigados a ser livres. equivalência total jamais existe; toda equivalência é penetrada por
Esta modificação no estatuto de certos conceitos, que transforma uma precariedade constitutiva, derivada da desigualdade do social.
em lógicas sociais o que anteriormente eram fundamentos, permite-nos Nesta medida, a precariedade de toda equivalência requer que ela
compreender a variedade de dimensões em que se baseia uma política seja complementada/limitada pela lógica da autonomia. É por esta
democrática. Ela nos permite, antes de mais nada, identificar com razão que a demanda por igualdadenão é suficiente, mas precisa ser
precisão o sentido e os limites do que podemos chamar de "princípio contrabalançada pela demanda por liberdade,que nos leva a falar de
da equivalência democrática". Podemos especificar o sentido, porque uma democracia radical e plural. Uma democracia radical e não-plural
se torna claro que o mero deslocamento do imaginário igualitário seria aquela que constituiria um único espaço de igualdade a partir
não é suficiente para produzir uma transformação na identidade dos da operação ilimitada da lógica da equivalência, e não reconheceria
grupos sobre os quais opera tal deslocamento. Com base no princípio o momento irredutível da pluralidade de espaços. Este princípio
da igualdade, um grupo corporativamente constituído pode exigir da separação de espaços é a base para a demanda por liberdade. É
seus direitos à igualdade com outros grupos; porém, na medida em em seu interior que reside o princípio do pluralismo e que o projeto
que as demandas de vários grupos são diferentes e em muitos casos de uma democracia plural pode se vincular à lógica do liberalismo.
incompatíveis entre si, isto não leva a equivalência real alguma Não é o liberalismo como tal que deve ser posto em questão, pois,
entre as várias demandas. Em todos os casos em que a problemática como princípio ético defensor da liberdade do indivíduo de realizar
do individualismo possessivo é mantida como matriz de produção suas capacidades humanas, ele é mais válido do que nunca. No
da identidade de diferentes grupos, este resultado é inevitável. entanto, se esta dimensão da liberdade é constitutiva de todo projeto
Para haver uma "equivalência democrática" é preciso algo mais: a democrático e emancipatório, ela não deveria nos levar, em reação a
construção de um novo "senso comum" que modifique a identidade certos excessos "holísticos", a retornar pura e simplesmente à defesa
dos diferentes grupos, de tal maneira que as demandas de cada um do individualismo "burguês". O que está em questão é a produção de
sejam articuladas equivalencialmente com as dos outros- nas palavras outro indivíduo, um indivíduo que não seja mais construído a partir
de Marx: " ... o livre desenvolvimento de cada um deve ser a condição da matriz do individualismo possessivo. A ideia de direitos "naturais"
Lnm:;:,1v L.Al,l.AU 1 1.:HANTALMOUFFE 275

anteriores à sociedade- e, na verdade, toda a falsa dicotomja indivíduo/ sociedade política são apenas o resultado de um certo tipo de articulação
sociedade_ deve ser abandonada, e substituída por outra maneira de hegemônica, e seus limites variam de acordo com as relações de força
colocar O problema dos direitos. Os direitos individuais nu~ca pod~~ existentes num momento dado. Por exemplo, é claro que o discurso
ser definidos isoladamente, senão no contexto das relaçoes soC1a1s neoconservador, hoje, se esforça para restringir o domínio do político
que definem determinadas posições de sujeito. Consequentemente, e reafirmar o campo do privado face à redução a que este tem sido
tratar-se-á sempre de uma questão de direitos qu~ envolvem_ outros submetido em décadas recentes, sob o impacto das diferentes lutas
sujeitos que participam na mesma relação soda! .. E n~ste ~entido q~e democráticas.
se deve entender a noção de "direitos democraticos , pois estes sao Retomemos, neste ponto, nosso argumento sobre as limitações
direitos que só podem ser exercidos coletivamente, e qu~ s~põem a mútuas e necessárias entre equivalência e autonomia. A concepção de
existência de direitos iguais para outros. Os espaços constitutivos ~as uma pluralidade de espaços políticos é incompatível com a lógica da
diferentes relações sociais podem variar enormemente, segundo se1am equivalência, supondo-se haver um sistema fechado. Mas, uma vez
as relações implicadas de produção, de cidadania, de vizinh~ça, en~e que esta suposição seja abandonada, não é possível derivar, a partir
duas pessoas, e assim por diante. As formas da democr:cia tambem da proliferação de espaços e da indeterminação última do social, a
deveriam, portanto, ser plurais, na medida em que elas t~m ~ue est~r impossibilidade de uma sociedade significar a si mesma - e assim
adaptadas aos espaços sociais em questão - a d~mocra~1a direta nao pensar a si mesma - como totalidade, ou a incompatibilidade deste
pode ser a única forma organizativa, pois ela so se aphca a espaços momento totalizante com o projeto de uma democracia radical. A
construção de um espaço político com efeitos eqmvalenciais não
sociais reduzidos.
É necessário, portanto, ampliar o domínio do exercício dos somente não é incompatível com a luta democrática, como é, em muitos
direitos democráticos além do limitado campo tradicional da casos, um requisito desta. A construção de uma cadeia de equivalências
"cidadania". No que concerne à extensão dos direitos democráticos democráticas frente à ofensiva neoconservadora, por exemplo, é
do domínio "político" clássico para aquele da economia, este é o uma das condições de luta da esquerda pela hegemonia nas atuais
terreno da luta especificamente anticapitalista. Contra os defensores circunstâncias. A incompatibilidade, pois, não jaz na equivalência
do liberalismo econômico que afirmam ser a economia a esfera do como lógica social. Ela surge somente a partir do momento em que
"privado", 0 berço dos direitos naturais, e qt~e nã~ h_á razões para este espaço de equivalências deixa de ser considerado 11m espaço
se aplicar aí os critérios da democracia, a teona soC1ahsta defende o político dentre outros, e vem a ser visto como o centro, que subordina
direito do agente social à igualdade e à participação como prod~ttor_e e organiza os demais espaços. Ela surge, então, no caso em que tem
não somente como cidadão. Alguns avanços foram feitos nesta direçao lugar não só a construção de equivalentes em um certo nível do social,
37
por teóricos da escola pluralista, como Dahl e Lindblo~ , que hoje mas também a transformação deste nível num princípio unificante,
reconhecem que falar da economia como esfera do pnvad~ na ~ra que reduz os demais a momentos diferenciais internos a si mesmos.
das corporações multinacionais não faz sentido, e que, logo, e p_reCJSO Vemos, enfim, paradoxalmente, que é a própria lógica da abertura e
aceitar certas formas de participação dos trabalhadores na gestao das da subversão democrática das diferenças que cria, nas sociedades de
empresas. Nossa perspectiva é certa~e~te muito dife:,en~e, já ~ue é hoje, a possibilidade de uma clausura muito mais radical do que no
a própria ideia de que haja um domm10 natural do p~1vado ~~e passado: na medida em que a resistência a sistemas tradicionais de
queremos questionar. As distinções público/privado, soC1edade CIVtl/ diferenças é rompi d a, e a indeterminação e a ambiguidade transformam
t:KNt:SIU LACLAUI CHANTALMOUFFE
.<.IV 277

mais elementos da sociedade em "significantes flutuantes", surge a um poder puramente sociaJ pode emergir, apresentando-se como total
possibilidade de se tentar instituir um centro que elimine radicalmente e extraindo exclusivamente de si mesmo o princípio da lei e o princípio
a lógica da autonomia e reconstitua em torno de si a totalidade _do do saber. Com o totalitarismo, ao invés de designar um lugar vazio, 0
corpo social. Se, no século dezenove, os limites de toda tentativa poder busca materializar-se num órgão que se pretende representativo
de democracia radical se encontravam na sobrevivência de velhas de um povo unitário. Sob o pretexto de reaJizar a unidade do povo, a
formas de subordinação através de amplas áreas de relações sociais, divisão social que a lógica da democracia torna visível é, desta maneira,
no presente esses limites estão dados por uma nova possibilidade que negada. Esta negação constitui o cerne da lógica do totalitarismo, e é
emerge no próprio campo da democracia: a lógica do totalitarismo. efetuada num duplo movimento: " ... a anulação dos signos da divisão
Claude Lefortdemonstrou como a "revolução democrática", como entre Estado e sociedade e da divisão interna da sociedade. Isto implica
um novo terreno que supõe uma profunda mutação ao nível simbólico, na anulação da diferenciação de instâncias que governa a constituição
implica numa nova forma de instituição do social. E~ _socied~~es da sociedade política. Não há mais critérios últimos da lei, nem critérios
anteriores, organizadas de acordo com uma lógica teolog1co-poht1ca, últimos do saber que estejam separados do poder"3 9•
0
poder era incorporado à pessoa do príncipe, que era representante Se as examinarmos à luz de nossa problemática, é possível
de Deus, quer dizer, da justiça soberana e da razão soberana. A ligar esAta~anál,ises ao que caracterizamos como o campo das práticas
sociedade era pensada como um corpo, apoiando-se a hierarquia hegemorucas. E por não haver mais fundamentos seguros oriundos de
entre seus membros no princípio da ordem incondicional. De acordo urna ordem transparente, por não haver mais um centro que vincule
com Lefort, a diferença radical que a sociedade democrática introduz poder, lei e saber, que se torna possível e necessário unificar certos
é que O lugar do poder se torna um espaço vazio; a referência a um espaços políticos por meio de articulações hegemônicas. Entretanto,
fiador transcendente desaparece, e com ela a representação da unidade estas articulações serão sempre parciais e sujeitas à contestação, já
substancial da sociedade. Em decorrência, ocorre uma cisão entre as que não há majg um fiador supremo. Toda tentativa de estabelecer
instâncias do poder, do saber e da lei, e seus fundamentos não estão uma sutura definitiva e de negar o caráter radicalmente aberto do
mais assegurados. Abre-se, assim, a possibilidade de um int~rminá~el social que a lógica da democracia institui, leva ao que Lefort chama
processo de questionamento:" ... nenhuma lei que se possa fixar, CUJ~S de "~otalitarismo"; isto é, a uma lógica de construção do político que
ditames não estejam sujeitos a constestação, ou cujos fundamentos nao consiste em estabelecer um ponto de partida desde o qual a sociedade
possam ser postos em questão; em suma, nenhuma representa?ã~ ~e possa ser perfeitamente controlada e conhecida. A prova de que esta
um centro da sociedade: a unidade já não pode mais apagar a d1v1sao. é urna lógicapolítica e não um tipo de organização social está no fato
A democracia inaugura a experiência de uma sociedade que não de que ela não pode ser atribuída a uma orientação política específica:
pode ser apreendida ou controlada, na qual o povo será proclamado ela pode resultar de uma política de "esquerda", segundo a qual todo
soberano, mas sua identidade jamais estará definitivamente dada, e antagonismo pode ser eliminado e a sociedade tornada completamente
permanecerá latente" 38 • É neste contexto, segundo Lefor~, q~e se deve transparente, ou resultar de uma fixação autoritária da ordem social
compreender a possibilidade da emergência do totahtansmo, q~e em hierarquias estabelecidas pelo Estado, corno no caso do fascismo.
consiste numa tentativa de restabelecer a unidade que a democracia Todavia, em ambos os casos, o Estado é alçado ao status de único
desfez entre os /oci do poder, da lei e do saber. Abolidas todas as possuidor da verdade da ordem social, quer em nome do proletariado
referências a poderes extrassociais através da revolução democrática, ou da nação, e visa a controlar todas as redes de sociabilidade. Em
tttNt::i I U LACLAU I CHANTALMOUFFE
"-'º 279

face da indeterminação radical aberta pela democracia, isto implica mais unificados num fundamento antropológico que os transforme no
numa iniciativa de reimpor um centro absoluto, e de restabelecer o verso e reverso de um único processo, segue-se claramente que toda
fechamento que, assim, restauraria a unidade. forma possível de unidade entre ambos é contingente, e é, portanto,
Contudo, se não resta dúvidas de que um dos perigos que ela mesma resultante de um processo de articulação. Se este for o caso,
ameaçam a democracia seja a tentativa totalitária de ir além do nenhum projeto hegemônico pode se basear exclusivamente numa
caráter constitutivo do antagonismo e de negar a pluralidade a fim lógica democrática, mas deve também consistir em um conjunto de
de restaurar a unidade, há também um perigo simetricamente oposto propostas de organização positiva do social. Se as demandas de um
de uma perda de toda referência a esta unidade. Pois, mesmo que seja grupo subordinado são apresentadas como puramente negativas,
impossível, esta última permanece sendo um horizonte que, dada a subversivas de uma certa ordem, sem se vincularem a qualquer
ausência de articulação entre relações sociais, é necessário a fim de projeto viável de reconstrução de áreas específicas da sociedade, sua
evitar uma implosão do social e uma ausência de qualquer ponto de capacidade de agir hegemonicamente estará excluída, de saída. Esta
referência comum. Este desmanche da tessitura social causado pela é a diferença entre o que se poderia chamar de uma "estratégia de
destruição do arcabouço simbólico é outra forma de desaparecimento oposição" e uma "estratégia de construção de uma nova ordem". No
do político. Em contraste com o perigo do totalitarismo, que i1:'~õe caso da primeira, o elemento de negação de uma certa ordem social
articulações imutáveis de modo autoritário, o problema aqui e a ou política predomina, mas este elemento de negatividade não é
ausência das articulações que permitem o estabelecimento de sentidos acompanhado por qualquer tentativa real de estabelecer diferentes
comuns aos diferentes sujeitos sociais. Entre a lógica da identidade pontos nodais a partir dos quais se poderia instituir um processo de
total e a da diferença pura, a experiência da democracia deve reconstrução alternativa e positiva da textura social-e como resultado,
consistir no reconhecimento da multiplicidade de lógicas sociais e da essa estratégia está fadada à marginalidade. Este é o caso das diferentes
necessidade de sua articulação. No entanto, esta articulação deve ser versões de "enclave político", seja ideológicas ou corporativas. No
constantemente recriada e renegociada, e não há qualquer ponto final caso da estratégia de construção de uma nova ordem, em contraste,
em que se chegaria definitivamente a um equilíbrio. _ , . o elemento de positividade social predomina, mas este fato, em si,
Isto leva à nossa terceira questão, a da relaçao entre logica cria um equilíbrio instável e uma tensão permanente com a lógica
democrática e projeto hegemônico. É evidente, por tudo o que subversiva da democracia. Uma situação de hegemonia seria aquela
dissemos até aqui, que a lógica da democracia não poder ser suficiente em que o gerenciamento da positividade do social e a articulação das
para a formulação de qualquer projeto hegemônico. Is:o por~ue a diversas demandas democráticas tivessem atingido um máximo de
lógica da democracia é simplesmente o deslocamento equ1valencial do integração - a situação oposta, na qual a negatividade social geraria
imaginário igualitário para relações sociais cada vez mais abran_gentes a desintegração de todo sistema estável de diferenças, corresponderia
e, como tal, é apenas uma lógica da eliminação de relaçoes de a uma crise orgânica. Isto nos permite ver em que sentido podemos
subordinação e das desigualdades. A lógica da democracia não é falar do projeto de uma democracia radical como alternativa para a
uma lógica da positividade do social, e é, pois, incapaz ~e fund_ar esquerda. Este não pode consistir na afirmação, a partir de posições
um ponto nodal de qualquer tipo em torno do qua~ o tec1d,o_sooal de marginalidade, de uma série de demandas antissistémicas; ao
possa ser reconstituído. Mas, se o momento subversivo _da l~g1ca ~a contrário, ele deve se basear na busca de um ponto de equilíbrio entre
democracia e o momento positivo da instituição do social nao estao um avanço máximo da revolução democrática numa ampla gama de
..:.uv cnrVC..:)IV l..P,.l,L>\U I l,f"'H·\l'lll-\L MUUtt-t
281

esferas, e a capacidade de direção hegemónica e reconstrução positiva "utopia", sem a possibilidade de negação de uma ordem além do
destas esferas, por parte dos grupos subordinados. ponto em que podemos ameaçá-la, não há possibilidade alguma de
Toda posição hegemónica se baseia, portanto, num equilíbrio constituição de um imaginário radical - democrático ou de qualquer
instável: a construção parte da negatividade, mas só se consolida na outro tipo. A presença deste imaginário como um conjunto de sentidos
proporção em que consegue constituir a positividade do social. Estes simbólicos que totaliza como negatividade uma certa ordem social é
dois momentos não são teoricamente articulados: eles esboçam o absolutamente essencial para a constituição de todo pensamento de
espaço de uma tensão contraditória, que constitui a especificidade das esquerda. Já indicamos que as formas hegemónicas de política sempre
diferentes conjunturas políticas. (Como vimos, o caráter contraditório supõem um equilíbrio instável entre este imaginário e a administração
destes dois momentos não implica numa contradição em nosso da positividade social; mas esta tensão, que é urna das formas pelas
argumento, uma vez que, desde um ponto de vista lógico, a coexistência quais a impossibilidade de uma sociedade transparente se manifesta,
de duas lógicas sociais diferentes e contraditórias, existindo sob a deveria ser afirmada e defendida. Toda política democrático-radical
forma de limitações mútuas de seus efeitos, é perfeitamente possível.) deve evitar os dois extremos representados pelo mito totalitário da
Conh1do, se esta pluralidade de lógicas sociais é característica de uma Cidade Ideal, e pelo pragmatismo positivista de reformistas sem
tensão, ela também requer uma pluralidade de espaços em que essas projeto.
lógicas possam se constituir. No caso da estratégia de construção de Este momento de tensão, de abertura, que dá ao social seu
uma nova ordem, as mudanças que se pode introduzir na positividade caráter essencialmente incompleto e precário, é o que todo projeto de
social dependerão não só do caráter mais ou menos democrático das democracia radical deve se propor a institucionalizar. A diversidade
forças que seguem essa estratégia, mas também de uma série de limites e a complexidade institucional que caracterizam uma sociedade
estruturais estabelecidos por outras lógicas - ao nível dos aparelhos democrática devem ser concebidas de uma maneira muito diferente
de Estado, da economia etc. Aqui, é importante não cair nas diferentes da diversificação de funções própria de um sistema burocrático
formas de utopismo, que pretendem ignorar a variedade de espaços complexo. Neste último, trata-se sempre e exclusivamente de urna
que constituem aqueles limites estruturais, ou de apoliticismo, que gestão do social como positividade, e toda diversificação tem lugar,
rejeitam o campo tradicional do político em vista do caráter limitado consequentemente, conforme uma racionalidade que domina todo o
das mudanças que se pode implementar desde seu interior. Porém, é conjunto de esferas e funções. A concepção hegeliana da burocracia
também da maior importância não querer limitar o campo do político corno classe universal é a cristalização teórica perfeita desta
à administração da positividade social, e aceitar somente aquelas perspectiva. Ela é transferida para o plano sociológico na medida em
mudanças que se possa implementar no presente, rejeitando-se toda que a diversificação de níveis no interior do social - seguindo-se urna
carga de negatividade que vá além delas. Em anos recentes, tem-se perspectiva funcionalista, estruturalista ou qualquer outra semelhante
falado bastante, por exemplo, da necessidade de uma "laicização - está vinculada a uma concepção sobre cada um desses níveis como
da política". Se se entende por isto uma crítica do essencialismo da se constituindo em momentos de uma totalidade inteligível que os
esquerda tradicional, que trabalhava com categorias absolutas do tipo domina e lhes dá sentido. Mas, no caso do pluralismo próprio de urna
"o Partido", "a Classe", ou "a Revolução", não podemos discordar. democracia radical, diversificaçãose transforma numa diversidade,já que
Mas, frequentemente, essa "laicização" tem significado algo muito cada um desses elementos e níveis diversos não é mais a expressão
diferente: a total expulsão da utopia do campo do político. Ora, sem de uma totalidade que os transcende. A multiplicação de espaços e
Hl:.lil:.MUNIA t t.:::>ll"U\lt:.Ulr\.'.:>UVIMLl..:>1/"\ C.r\1\'C..:>IU U'IVU\U I L.MAl'llAL MUUt-t-t
282 283

a diversificação institucional que a acompanha não mais consistem programa da democracia radical O discurso clássico do socialismo
num desdobramento racional de funções, nem obedecem a uma lógica era de um tipo muito diferente: era um discurso do universal, que
subterrânea que se constitui no princípio racional de toda mudança, transformava certas categorias sociais em depositárias de privilégios
mas exprimem exatamente o contrário: através do caráter irredutível políticos e epistemológicos; era um discurso apriorístico quanto a
dessa diversidade e pluralidade, a sociedade constrói a imagem e níveis diferenciais de efetividade no interior do social - e como tal
a gestão de sua própria impossibilidade. A conciliação, o caráter reduzia o campo das superfícies discursivas em que ele considerav~
precário de todo arranjo, o antagonismo, são os fatos primários, e é só possível e legítimo atuar; era, enfim, um discurso relativo aos pontos
no contexto desta instabilidade que o momento da positividade e sua privilegiados a partir dos quais se desencadeariam mudanças
gestão se dão. O avanço de um projeto de democracia radical significa, históricas - a Revolução, a Greve Geral, ou a "evolução" como uma
portanto, que se force o mito de uma sociedade racional e transparente categoria unificante do caráter cumulativo e irreversível de avanços
a recuar progressivamente para o horizonte do social. Este se torna um parciais. Todo projeto de democracia radical inclui necessariamente I

"não-lugar", o símbolo de sua própria impossibilidade. como dissemos, a dimensão socialista - ou seja, a abolição das
Mas, pelo mesmo motivo, a possibilidade de um discursounificado relações capitalistas de produção; mas rejeita a ideia de que a partir
da esquerda é também descartada. Se as várias posições de sujeito e os desta abolição segue-se necessariamente a eliminação das outras
diversos antagonismos e pontos de ruptura constituem uma diversidade desigualdades. Como resultado, o descentramento e a autonomia dos
e não uma diversificação,é claro que não podem ser levados de volta diferentes discursos e lutas, a multiplicação dos antagonismos e a
a um ponto no qual pudessem ser abarcados e explicados por um construção de uma pluralidade de espaços nos quais aqueles possam
único discurso. A descontinuidade discursiva se torna primária e se afirmar e desenvolver, são condições sine qua non de possibilidade
constitutiva. O discurso da democracia radical não é mais o discurso para que os diferentes componentes do ideal clássico do socialismo
do universal; o nicho epistemológico de onde falavam as classes e os - que deve, sem dúvida nenhuma, ser ampliado e reformulado -
sujeitos "universais" foi erradicado e substituído por uma polifonia possam ser alcançados. E como argumentamos abundantemente
de vozes, cada uma construindo sua própria identidade discursiva nestas páginas, esta pluralidade de espaços não nega, antes exige, a
irredutível. Este ponto é decisivo: não existe democracia radical e sobredeterminação de seus efeitos em certos níveis e a consequente
plural sem que se renuncie ao discurso do universal e seu pressuposto articulação hegemônica entre eles.
implícito de um ponto privilegiado de acesso a "a verdade", somente Concluamos. Este livro foi construído em tomo das vicissitudes
atingível por um número limitado de sujeitos. Em termos políticos, do conceito de hegemonia, da nova lógica do social nele implícita, e
isto significa que assim como não existem superfícies de emergência dos "obstáculos epistemológicos" que, de Lênin a Gramsci, impediram
de antagonismos aprioristicamente privilegiadas, também não há uma compreensão de seu potencial político e teórico radical. Só
regiões discursivas que o programa de uma democracia radical quando o caráter aberto, não-suturado do social é totalmente aceito
devesse excluir a priori como esferas de luta possíveis. Instituições quando o essencialismo da totalidade e dos elementos é rejeitado, ~
judiciárias, o sistema educacional, relações de trabalho, os discursos de que este potencial torna-se claramente visível e a "hegemonia" pode
resistência de populações marginalizadas constroem formas originais vir a constituir-se numa ferramenta fundamental de análise política
e irredutíveis de protesto social, contribuindo desta maneira com toda de esquerda. Essas condições surgem originalmente no campo do que
a complexidade e riqueza discursivas em que se deve fundamentar o denominamos a "revolução democrática", mas só são maximizados em
f 11..\Jll..l'flVl"ln t.. t..,JI IV"'IO ,_.._.,I"'
• ...,..,._,.,,.,_,...,,.
• ... , .,H_...,,.., V'\VU"\u 1 \.onM1~ IML 1v1uutr-t. 285

10 C. Calhoun. TlieQ11estio11of ClassStruggle.Chicago 1982, p. 140. Para um argumento


todos os seus efeitos desconstrutivos no projeto de uma democracia semelhante, ver L. Paramio. "Por una interpretnción revisionista de la historia dei
radical ou, em outras palavras, numa forma de política que se funda movimiento obrero europeo", fiz Teoria8/9. Madrid 1982.
11 A este respeito, ver C. Siriani. "Workers' Centro! in the Era of World War I",
não na postulação dogmática de qualquer "essência do social", mas,
Theory n11dSociety, 9:1 (1980), e C. Sabei. Work a11dPolítics. Cambridge, Inglaterra
ao contrário, na afirmação da contingência e ambiguidade de toda 1982, capítulo 4.
"essência" e no caráter constitutivo da divisão social e do antagonismo. 12 [NT] O original inglês traz a palavra "employees", que se traduziria por
"empregados" ou "trabalhadores". Porém, visivelmente trata-se de um erro de
Afirmação de um "fundamento" que só subsiste pela negação de seu edição, uma vez que no exemplo histórico citado os trabalhadores qualificados
caráter fundamental; de uma "ordem" que só existe como limitação não possuíam empregados assalariados. Traduzimos, então, "employees" como
"patrões".
parcial da desordem; de um "sentido" que se constrói apenas como 13 M. Aglietta. A Theoryof CnpitnlistReg11/ation.London 1979, p. 107.
excesso e paradoxo face ao sem-sentido- em outras palavras, o campo 14 Cf. M. Castells. Ln q11estion11rbni11e.Paris 1972. [A questão11rbn11a.
Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2009.}
do político como espaço de um jogo que nunca é de "soma zero",
15 S. 80\-vles e H. Gintis. "The crisis of Liberal Democratic Capitalism", Politics nnd
porque as regras e os jogadores nunca são inteiramente explícitos. ~ste Society, vol. 2, n. 1 1982.
jogo, que escapa ao conceito, tem pelo menos um nome: hegemorna. 16 B. Coriat. L'ntelieret le clrronometre.Paris 1979, p. 155.
17 C. Offe. Co11tradictio11sof the WelfnreStnte (org. por Jolm Keane). London 1984, p. 263.
18 Cf. F. Piven e R. Cloward. Poor People'sMoveme11ts.New York 1979.
19 J. Bnudrillnrd. Le systeme des objets. Paris 1968, p. 183. [O sistema dos objetos.Trad.
bras. Zuhnira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 1997.)
-o tas do Capítulo 4 20 5. Huntington. "The Democratic Distemper", in N. Glazer and I. Kristol (eds.). T/ze
AmericmzCo111monwealth. New York 1976, p. 37.
1 A. Rosenberg. Democrazíne socialismo.Stori~polílic.n~e~li 11/t!1'.IÍce11to~in_q11nntn
nw1i 21 D. Bell. "On Meritocracy and Equality", The P11blicl11terest.Outono 1972.
(1789-1937). Bari 1937. [Democraciae socialismo:/11s/or,npo/it1cndos 11/t1mos ce11toe 22 Cf. A. Touraine. L'npres-socinlisme.Paris 1980 [O pós-socialismo.Trad. bras. Sônia
cí11q11e11tn
anos (1789-1937). São Paulo: Global, 1986.] Goldfeder e Ramon Américo Vasques. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.];
2 lbid., p. 119. . d f A. Gorz. Adieux nu prolétnrint. Paris 1980 [Adeus no proletariado:para além do
3 A rigor, esta afirmação é, obviamente, exagerada. O real~amento Ae. orças socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.J. Para uma interessante
durante a Revolução Francesa também demandou ope_ra~o_eshegemomcas,_ e discussão sobre Touraine, ver J. L. Cohen. C/ass a11dCivil Society: The Limits of
implicou em certas mudançns de alianças: pensemos em ep1sod1os~orno a Ve~de1a. Mnrxim1Criticai Theory.Amhcrst 1982.
Somente a partir de uma perspectiva histórica, e comparando-se a comple':1d~~e 23 S. Hall e M. Jacques (eds.). The Politícs of Thatc/1eris111. London 1983, p. 29. A
das articulações hegemônicas que caracterizam fases subsequentes da. h~s!ona maneira peln qual o sexismo foi mobilizado a fim de criar uma base popular para
europeiil, é que se pode defender a esta_bilidade relativa da estrutura de d1v1soese o thatcherismo é indicada em 8. Campbell. Wign11PierRevisited:Povertyn11dPolítics
oposições básicas no curso da Revoluçao Francesa. . in t/1e'80s. London 1984.
4 Sobre O conceito de "interrupção", ver D. Silverman e B. Torode. The Material 24 A. Hunter. "Toe Ideology of lhe New Right", in Crisis i11lhe Public Sector:A Render.
World.London 1980, capítulo 1. _ New York 1981, p. 324. Para uma análise atenta da atual conjuntura da política
5 F. Furet. Peuser ln Révolutio11Fra11çnise. Paris 1978, p. 109. [Pimsc'.ndo a revol11çao norte-americana, ver D. Plotke. "The United States in Transition Towards a New
fraucesa.Trad. bras. Luiz Marques e Martha Gambini. Rio de Janeiro: Paz e Tcna, Order", SocialistReview, n. 54 1980; e "The Politics of Transition: The United States
in Transition", SocialistRevíew, n. 551981.
·1989.] - d b D ·
6 H. Arendt. 0 11 Revolutíon. London 1973, p. 55. [Sobren revoluçao.Tra . ras. emse 25 Esta articulnção foi analisada por C. 8. Macpherson, em TireLifemzd Times of Liberal
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.} . Democracy.Oxford 1977. [A democracialiberal:orige11se evolução. Rio de Janeiro:
G. Stedman Jones. "Rethinking Chartism", in Lm1g11ages of Clnss. Cambndge, Zahar Editores, 1978.]
7
lnglaterrn 1983. , . . 26 F. Hayek. Tire Co11stit11tion of Liberty. Chicago 1960, p. 11. [Os f1111dn111e11tos da
8
A. de Tocqueville. De la Démocratie eu Amerzq11e.Pnns 1981, vol. 1, _P· 115. [A liberdade.Trad. bras. Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle. São Paulo: Visão,
democracia11a América. Trad. bras. Eduardo Brnndão. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
27 F. Hayek. T/JeRond to Se1fdo111.
London 1944, p. 52. [O caminho da servidiio.Trad.
2005.] , . . 1 V 1 1 R" d
9 [Edward Palmer Thompson, A fon11açiiodn classe ~p~r~rzn111g esa, ~ ·_ · 10 _ e bras. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Linne de Morais Ribeiro. São Paulo:
Janeiro: Paz e Terra, 1987; A formaçãoda classeoperana mglc!sa:a mnld1çnode Adao, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.]
Vol. TT.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.)
LOU

28 [Milton Friedman, Capitalis1110 e liberdade.São Paulo: Arte Nova, 1977.]


29 F. Hayek. Law, Legislationand Liberty, vol. 2, Chicago 1976, p. 69. [Direito,legislação
e liberdade.São Paulo: Visão, 1985. (3 vols.)] Sobre os autores
30 Cf. R. Nozick. A11arc/1y,
State a11dUtopia.New York 1974. [A11arq11ia, Estadoe utopia.
Trad. bras. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.)
31 Para uma apresentação de suas posições, consultar M. N. Rothbard. For a New
Liberty.TireLibertaria11
Manifesto.New York 1973. [Por 11111a nova liberdade:o 111a11ifesto
libertário.Trad. bras. Rafael de Sales Azevedo. São Paulo: Instituto Ludwig von
Mises Brasil, 2013.J
32 Z. Brzezinski, citado em P. Steinfelds. The Neo-Conservatives.New York 1979, p.
269.
33 Ibid., p. 270.
34 A. de Benoist. Les idéesà /'endroit. Paris 1979, p. 81.
35 [A teoriapolíticado individualismopossessivo:de Hobbesaté Locke.Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1979.]
36 Além do fato de que nossa reflexão se localiza numa problemática teórica
muito diferente, nossa ênfase sobre a necessidade de articular uma pluralidade
de formas de democracia correspondente a uma multiplicidade de posições de
sujeito distingue nosso enfoque daqueles teóricos da "democracia participativa",
com os quais, não obstante, compartilhamos muitas preocupações importantes. . ErneS t o Laclau (1935-2014) foi professor de Teoria Política na Univer-
Sobre a "democracia participativa", ver C. B. Macpherson, op. cit., capítulo 5, e
Carole Pateman. Participatio11 a11dDemocraticTheory. Cambridge, Inglaterra 1970. si~ade de ~ssex, Inglaterra. Ele é autor de Políticae ideologia11ateo,ia 111arxista,
[Participaçãoe teoria democrática.Trad. bras. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: l\nv Refte~l1011s oJO11rTi111e,
011tbe Revolutio11 E 111
a11cipaçàoe difermça;organizador de
Paz e Terra, 1992.)
37 Cf. R. Dahl. Dile111111as New Haven e London 1982; e C.
of Pluralist De111ocracy. of PoliticalIdmtities eco-autor, com Judith Butler e Slavoj Zizek, de
The L:1ak111g
Lindblom. Politics a11dMarkets. New York 1977. [Políticae mercado,;:o;;sistemas Co11tmge11f))
Hege11101!), Recentemente publicou A razãopoplflista.
U11iversali(y.
políticose eco11ô111icos
dClmundo. Trad. bras. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979.J
38 C. Lefort. L'inve11lio11
democrntíque.Paris 1981, p. 173. [A invenção de111ocrática:
os Chant~l Mouffe é professora de Teoria Politica no Centro para O
Estudo
limites da do111i11açtio
totaliMria.Trad. bras. Maria Leonor F. R. Loureiro e Isabel da Democracia, na Universidade de Westminster, Inglaterra. Ela é autora de
Loureiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.)
39 Ibid., p. 100. dopolítico,Tbe Cballmgeoj Carl Schlllitt,The Delllocmt,;
entre outras obras, O regresso
Paradox,e organizadora de Di111e11sions 0,r R ;.· I D
'J at tct1 e111ocmry
e Deco11stmctio11 cmd
Pragmatis111.

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