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A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

a composição de um álbum fotográfico: the knowledges, narratives and meanings they evoke to the observer,
their conjoining of temporalities. Through the recovery of images to
OS RASTROS DE UMA AVÓ MATERNA assemble a photo album we can create, unveil, reveal knowledges,
lighten up experiences. Counting on the notion of photobiographies
(Fabiana Bruno, 2009); with the gaze upon the images and their sur-
Cristina Maria da Silva vival (Didi-Huberman, 2011), and with Étienne Samain (2013), when
Universidade Federal do Ceará he instigates us to uncover the skins of the image and to follow what
they think. In the composition of an album we unravel the history of
a woman, as well as the narratives that it unfolds, inscribed in the
Resumo Na montagem de um álbum de fotografias busco um rosto familiar: dedications on the back of the photographs and through the multi-
uma mulher de vestido azul, chamada Tereza, minha avó materna, ple paths and hands those images have passed by until they found
descubro os laços que compõem a sua vida, os sonhos, as flores de each other.
sua preferência, os modelos de seus vestidos, os rastros que seus Keywords: Family Album. Photobiography. Images. Narratives.
passos deixaram nas lembranças de infância de uma criança, as
narrativas dos que com ela conviveram. Um álbum é pensado como Resumen La composición de un álbum fotográfico: los
uma construção narrativa e imagética de múltiplas grafias: daqueles trayectos de una abuela materna
que de modo separado realizaram as fotos, as descontinuidades do
En el montaje de un álbum de fotografías de familia busco un ros-
tempo que as mantiveram separadas, dos conhecimentos, narrati-
tro familiar: una mujer de vestido azul, llamada Tereza, mi abuela
vas e sentidos que elas evocam ao olhar, de sua conjugação entre
materna. Descubro los lazos que componen su vida, sus sueños, las
temporalidades. Através da recuperação de imagens para montar um
flores de su preferencia, los modelos de sus vestidos, los rastros
álbum, podemos criar, descobrir, desvelar conhecimentos, acender
que sus pasos dejaron en mis recuerdos de la infancia. Un álbum es
experiências. Contamos com a noção de fotobiografias (Fabiana Bru-
pensado como una construcción narrativa e imagética de múltiples
no, 2009); com o olhar sobre a imagem e suas supervivências (Didi
grafias: de aquellas que de modo separado realizaran las fotos, las
-Huberman, 2011) e com Étienne Samain (2013), quando nos instiga
discontinuidades del tiempo que las mantuvieron separadas de los
a descobrir as peles da imagem e a acompanhar o que elas pensam.
conocimientos, narrativas y sentidos que ellas evocan al mirar, de su
Na composição de um álbum, compomos uma origem, desbravamos
conjugación entre temporalidades. A través de la recuperación de
a história de uma mulher, bem como de suas narrativas, que se ins-
imágenes para montar un álbum, podemos crear, descubrir, desvelar
crevem nas dedicatórias escritas em seus versos e nos caminhos que
conocimientos, animar experiencias. Contamos con la noción de fo-
as imagens trilharam, em muitas mãos, até se encontrarem, em um
tobiografias (Fabiana Bruno, 2009); con el mirar sobre la imagen y sus
álbum de fotografias.
supervivencias (Didi-Huberman, 2011) e con Étienne Samain (2013),
Palavras-chave: Álbum de Família. Fotobiografia. Imagens. Narrati-
cuando nos instiga a descubrir las pieles de la imagen y a acompañar
vas.
lo que ellas piensan. En el montaje de un álbum, componemos un
origen, exploramos la historia de una mujer, bien en sus narrativas,
abstract Assembling a photograph album: the
que se inscriben en las dedicatorias escritas, en sus versos y en los
trajectory of a maternal grandmother
caminos que las imágenes siguen, en uchas manos, hasta que se en-
Assembling a photograph album, I seek a familiar face: a woman in a contraron en un álbum de fotografias.
blue dress, named Tereza, my maternal grandmother. I discover the Palabras clave: Álbum de Familia. Fotobiografia. Imágenes. Narra-
threads that weave her life: the dreams, her preferred flowers, the tivas.
pattern of her dresses, the tracks left by her steps left in childhood
memories. An album is thought as an imagery and narrative con-
struction of multiple inscriptions: of those who separately took the
pictures, the discontinuities of time that have kept them apart, of

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A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

O rastro inscreve a lembrança de uma presen- quais essa vida esteve inserida. Acionamos en- O que as imagens pensam e desvelam por nos fazer pensar o próprio fazer antropoló-
ça que não existe mais e que sempre corre o redos que nos permitem entender as tramas detrás delas mesmas, que histórias elas nos gico e sobre quem somos, quando pesquisa-
risco de se apagar definitivamente.
dessa vida, ainda que não totalmente a com- contam, adornadas das narrativas que evo- mos. Onde estamos, quando fazemos pesqui-
Gagnebin (2006, p. 44) posição de seu enredo. cam? Que enredos propiciam? O álbum é aqui sa? Como se dão os nossos encontros com as
Tereza (1913-1984), a personagem central pensado como uma das linhas vitais que cos- narrativas que descobrimos, quanto delas nos
Onde se grafa uma vida? Um desse trabalho, não tinha um álbum, nesse turam e enredam a vida e suas relações num inscrevem no que fazemos?
exercício antropológico na sentido, esse trabalho também é a montagem mundo narrado (INGOLD, 2015). Que pedaços Montar quer dizer subir uma montanha,
da vida dela através de fotografias. Assim, de coisas heterogêneas e anacrônicas sobre- projetar, ascender, colocar-se sobre. Olhando
composição de um álbum
esse trabalho consiste em reunir essas ima- vivem nas imagens? (DIDI-HUBERMAN apud para Tereza, surge uma mulher como uma lem-
fotográfico gens, descobrir suas narrativas e conhecer BRUNO, 2012, p. 97). brança, os vestidos que usava, a medalha (da
A antropologia não é etnografia, desafia Tim as experiências que compuseram sua vida. Em um álbum de fotografias, pedaços da congregação Filhas de Maria), que carregava
Ingold (2015). Assim, busco compreender a Nesse sentido, para esse trabalho “Foi pre- vida sobrevivem das lembranças de uma traje- em volta do pescoço, as flores que gostava, no
antropologia como prática que se debruça na ciso, portanto, perseguir rastros, tênues no tória. Na imagem, tudo o que evoca essa vida Ceará, chamadas de riso, mas conhecidas como
crítica do ser e saber humanos, em suas con- início, mais densos depois [...]”, como sugere recupera uma temporalidade heterogênea e buganvília ou primavera. Nas imagens também
dições e potencialidades. Compreender como Kofes (2001, p. 21), pois trinta e dois anos de- fragmentada, ressurgem lugares e situações vemos as pessoas com quem conviveu. Nas fo-
construímos escritos sobre como os outros se pois da morte de Tereza, temos como traços onde cada um recorda de um pedaço do que tos, os poucos registros de sua passagem, as
narram, implica entender que narrar a vida é de sua existência alguns objetos pessoais, as foi uma história de uma vida, ainda que essas pessoas com quem Tereza conviveu: quase
parte do empreendimento que todos nós nos fotografias e as histórias de seus filhos, para sobrevivências não nos permitam recuperar sempre ao lado do marido, os filhos gerados,
lançamos, ainda que nem sempre pensemos desvelar as grafias de sua vida. Artefatos, uma inteireza do vivido, e nem essa história os netos, ao redor de sua casa. As fotos geral-
nas combinações narrativas que montam os imagens e imaginação de uma vida. Pensar seja, claro, um todo coerente. O que aqui, so- mente são feitas fora de casa, todas no claro,
textos que construímos. Escrevemos sobre nesses encontros é pensar nos vínculos en- brevive, sobre Tereza, é montado por palavras por causa da ausência de flash, na época, nas
nós mesmos, ao escrevermos sobre os outros? tre as pessoas que aparecem nas imagens, as e pelas imagens escolhidas, mas é um proces- máquinas Kodak, utilizadas para a realização
Onde se grafa uma vida? Muitas vezes estamos relações que tecemos com nossos antepassa- so contingente, pois outras escolhas poderiam de muitas das fotos que tenho, como me expli-
narrando a nós mesmos. dos, mas também refletir sobre as raízes de ser feitas, o fato é que a cronologia explode cou Gorete, a filha mais nova de Tereza.
Lançamos mão das noções de grafia, nar- nossos comportamentos e ações, olhando e ao mergulharmos na sua existência. Quando Ao ressurgir no movimento das fotos, o pri-
rativas e trajetórias, para seguir a composição conhecendo o outro, que, ao mesmo tempo, é montamos uma vida, pelas composições de meiro acontecimento é a explosão da cronolo-
de um álbum de fotografias e nele desbravar a distante, ausente e familiar. imagens que dela se preservam, lidamos com gia, seus passos se montam pelos vestígios que
história de uma mulher, assim como exercitar, Partimos do entendimento de que a foto- uma “exposição de anacronias” (BRUNO, 2012), ficaram de sua existência na memória. Ela se
nesse percurso, as potencialidades da imagem grafia é um arquivo vivo do tempo e compõe ou seja, a união de tempos, objetos, palavras e compõe pela notícia de sua morte, pelas pes-
adormecida num álbum fotográfico para a ex- as peles de nossa existência. Como arquivo, imagens, advindos de tempos e narrativas di- soas que ainda lembram dela, pelas lembran-
periência antropológica. Grafia é aqui toma- reúne e congrega imagens, como articulações, versos. ças turvas de seus gostos e fazeres. Assim, as
da como a possibilidade de se escrever sobre conjugações e declinações de nossas aventu- As fotografias de um álbum, afirma Fabia- imagens montam uma existência, nossos rela-
uma vida, sobretudo, quando a tomamos pelas ras humanas (SAMAIN, 2013). Um álbum é uma na Bruno, têm uma curta vida visível, ador- tos também são montagens, composições de
imagens, uma escrita que contorna, mais do extensão de nossos corpos. Nele estão reu- mecem no silêncio dos álbuns, nas caixas de temporalidades, fatias da vida colhidas de pes-
que recupera ou restitui uma existência. Nar- nidas fotos daqueles que estão entre nossos lembranças e nos arquivos. O que elas podem soas, seus gestos, objetos e acontecimentos.
rar é aqui entendido como contar, fazer conhe- laços de afeto, inscrevemos suas histórias e despertar e o que nelas se grafa? Labirintos de Onde se grafa uma vida? Na escrita, nos
cer ou fazer alguém conhecedor de algo. Quem prolongamos suas existências através de suas signos? Figuras, palavras, silêncios, contextos? bordados, numa costura, numa pintura, num
narra conhece, fala de algo ou de alguém. imagens, das palavras que ainda resistem so- Quais? A fotografia de um álbum faz explodir, álbum de fotografias? Em combinações: vidas
Acompanhar uma trajetória é, aqui compreen- bre eles nas lembranças. As imagens interli- reacende histórias e lembranças. Acompa- e poesias, fotos e esculturas, comidas e rela-
dido, como estar atento ao que atravessa uma gam-se aos nossos corpos, como memória afe- nhando as noções de montagem, desmonta- tos, colcha de retalhos e narrativas?
vida, o que não quer dizer que reconstruamos tiva, desvelando o que deles sobrevive, o que gem e remontagem (BRUNO, 2012), pensamos Gagnebin lembra-nos que o “[...] rastro ins-
uma vida, mas apenas reunimos experiências deles ainda se revela, em nossas práticas, em no tipo de conhecimento que a imagem pode creve a lembrança de uma presença que não
que nos permitem conhecer as relações nas nossa própria fisionomia. nos trazer. Mas, sobretudo, como ela pode existe mais e que sempre corre o risco de se

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apagar definitivamente [...]”. (GAGNEBIN, 2006, Fig.01 - Tereza e as flores (setembro de 1982). fias na configuração da vida é também pensar se apagam, que desvanecem na imagem foto-
p. 44). Falar em rastros, penso que de uma pes- do que se quer e do que não se quer lembrar. gráfica.
soa, de um acontecimento, de uma experiência Nem sempre os dedos inquiridores serão com- Benjamin (2009) retoma os rastros como a
é também falar, a partir do que a autora apon- preendidos, ao tentarem recuperar a história possibilidade de ler a sociedade que se monta
ta, em memória, o que guardamos, lembramos, de alguém, de uma mulher, no caso, nordesti- com o aparato administrativo moderno, para
esquecemos, e também de escrita, sobre como na, moradora de uma cidade interiorana, invi- ler os vestígios das pessoas envoltas na forma-
escrevemos a respeito de uma vida e suas al- sível, praticamente anônima diante da história, ção da sociedade burguesa. Para isso, ele re-
teridades. mas não menos importante na construção de toma Honoré de Balzac, Edgar Allan Poe, Franz
Quando pensamos em olhar um álbum de um olhar que privilegie a singularidade como Kafka, entre outros, para percorrer os passos e
fotografias, ou melhor, em montar um álbum ponto de partida, sem perder de vista uma es- o que se deixa pelo caminho, na configuração
de fotografias, e procurar os vestígios de uma cala macroscópica. de uma nova ordem social e cultural. Desse
Fonte: Acervo familiar.
pessoa através dele, como buscamos, ao pro- Como exprime poeticamente Inês Pedrosa: modo, Benjamin retoma os rastros.
curarmos conhecer Tereza, é um caminho para Para olhar, sugere-nos Didi-Huberman, é Os rastros da civilização que anota nas
Ninguém quer lembrar-se de nada. Não gosta-
pensar na fragilidade desse rastro, que se ex- preciso cavar e escavar os próprios olhos, e, ram dos meus dedos inquiridores sobre uma praças públicas a hora e a partida dos fiacres,
prime nas fotos já desgastadas pelo tempo, sobretudo, saber fechá-los para poder ver fotografia. O guia-intérprete que me acompa- que conta o número de cartas, que numera as
nas marcas que carregam, por terem ficado ex- melhor. “O olho sempre aberto e desperto [...] nhava ia-me dizendo que tivesse paciência, que casas, que mapeia as ruas, que, através de es-
postas em quadros, amassadas em álbuns que torna-se seco. Um olho seco veria talvez tudo fosse perguntando devagar, com jeito. (PEDRO- tojos, caixinhas, mínimos pertences que são
SA, 2011, p. 195).
viajaram por vários lugares e mesmo ficaram o tempo todo. Mas olharia mal. Para olhar me- utilizados para registrar e conservar rastros in-
adormecidas, guardadas pelos que a conhece- lhor nos são necessárias – paradoxo da expe- “Como ela reuniu tantas fotos da mamãe?” dividuais no cenário social que se delineia. “O
ram. Os detalhes das imagens permitem-nos riência – todas as nossas lágrimas [...]” (DIDI – essa frase ouvi, como se eu não estivesse Rastro é a aparição de uma proximidade, por
olhar os sinais da passagem do tempo, os en- -HUBERMAN apud CASA NOVA, 2014, p. 65). presente, por uma das filhas de Tereza, diri- mais longínquo que esteja aquilo que o dei-
contros que perpassaram essa vida, os objetos Cavando e escavando os próprios olhos gida para as outras que estavam presentes, xou. [...] No rastro apoderamo-nos da coisa...”
que ainda sobrevivem, como rastro do que foi ou fechando-os para melhor ver, descobrimos num encontro familiar, em 30 de janeiro de (BENJAMIN, 2009, p. 490).
usado, tocado, experimentando por quem só que nem tudo se dá pela imagem, muito do 2016. As imagens imprimem em suas películas Em Benjamin, o simples nome das ruas
existe na lembrança. Sinais e indícios de uma que queremos saber tem rastros nas imagens, um devir, a perda temporal e da presença pa- torna a cidade um “cosmos linguístico”. (BEN-
imagem permitem-nos que toquemos na reali- mas também precisa dos suportes das narrati- recem não existir, há uma sobrevivência nelas JAMIN, 2009, p. 563). Percorrer os rastros de
dade que a imagem nos dá, uma realidade fu- vas, do que elas podem nos dizer, do que nem que reacende com o olhar. Somos apreendi- uma vida ou os rastros de uma cidade ou de
gidia, mas uma zona privilegiada onde ainda é sabem que dizem. É como se, para ver melhor dos pela distância, mas, ao mesmo tempo, é um conhecimento é percorrer minuciosamen-
possível pensar sobre a existência de uma vida a imagem, fosse realmente preciso fechar os uma experiência de atualização da vida e de te um caminho que não está feito, mas que se
(GINZBURG, 1989). olhos, sobretudo, da razão, para escutar os seus sentidos, no presente, reconstituindo-a, faz pelos restos, pelos resíduos deixados pelo
A imagem, a seguir, de Tereza, é de setem- ruídos do tempo, sentir os espaços que ainda investindo na perda um gesto de aparição e de caminho, o que nos torna narradores e catado-
bro de 1982, as suas flores favoritas dissolvem- parecem aquecidos com a presença e capturar res, como sugere Gagnebin (2006), procuran-
renegociação com o passado e, por que não di-
se como se não pudessem mais resistir à pas- ainda os sons que soam distantes por detrás do sentidos no que os outros deixaram sobre
zer, com o próprio presente e o futuro.
sagem do tempo, ela e as flores se esvaindo das portas e dos cômodos da casa já inexisten- suas vidas, sobre seus passos. Desse modo, os
com o tempo, mas fixadas na imagem digita- te. Num caminho semelhante ao de Didi-Hu- rastros em Benjamin, e aqui tomados por nós,
Rastros: recompondo a existência
lizada, como se fosse possível parar a ação do berman (2011), o escritor Mia Couto nos lembra levam em conta a intrínseca relação entre os
tempo, para poder pensá-lo, para trazer a vida que: “Certas coisas vemos melhor é com olhos
de Tereza passos individuais e coletivos, tanto de quem
de Tereza à tona e suas vivências. Entre essas fechados” (COUTO, 2003, p. 61). Como recompor as experiências de uma vida? olhamos, como de nossos próprios passos bus-
flores borradas pelo tempo, sua existência Através do conjunto de fotos que compõem Seguindo seus rastros. A noção de rastros é cando compreender as composições linguísti-
ressurge, os rastros do tempo tocam a barra esse álbum de Tereza, criamos um arquivo, aqui apropriada como imprescindível para cas, sociais e culturais do que observamos.
do seu vestido, tocam seus ombros, falam de uma origem, um começo, e porque não dizer pensar a recomposição de uma vida e da ex- Por meio da noção de sinais e rastros tam-
quando nem existia tempo e quando Tereza uma ordem para contar a composição de uma periência antropológica. Sobretudo, ao pen- bém Ginzburg (1989; 2007) retoma um paradig-
apenas vivia. vida. Retomar os lugares do álbum de fotogra- sarmos as fragilidades dos rastros, desses que ma, que percorre as fronteiras entre o raciona-

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lismo e o irracional. Um patrimônio cognosci- esses primos menos distantes do que podem rece como natural de Meruoca-CE e nascida na nhos, interpretações, desvelam experiências.
tivo que se remete aos caçadores, aos críticos parecer à primeira vista, devem decifrar não data de 19 de maio de 1912, mas ela nasceu em As fotos podem contar biografias de uma pes-
só o rastro na sua singularidade concreta, mas
de arte e ao trabalho psicanalítico ou mesmo 20 de maio de 1913, em Massapê, e viveu até 11 soa, mas também de um grupo social, de suas
também tenta adivinhar o processo, muitas
um trabalho arqueológico que busca “pistas de março de 1984; era filha de Francisco Teixei- práticas, de uma cidade, até mesmo a biografia
vezes violento, de sua produção involuntária.
talvez infinitesimais”, que permitem “[...] cap- (GAGNEBIN, 2006, p. 113) ra da Mota e Maria do Livramento de Jesús. do orvalho, se as imaginarmos com Manoel de
tar uma realidade mais profunda, de outra for- Barros (1998).
A partir do álbum fotográfico, pensamos
ma inatingível. Pistas: mais precisamente sin- Arquivar a vida? Álbuns O álbum fotográfico é um arquivo, nele ar-
tomas (no caso de Freud), indícios (no caso de na possibilidade de mergulhar nos rastros que
nos levam à biografia de Tereza, desvelar suas
fotográficos, cartas, diários... quivamos a vida (ARTIÈRES, 1998), arquivamos
Sherlock Holmes), signos pictóricos na arte (no a nós mesmos, e este ato é pensado, não só
caso de Morelli) [...]” (GINZBURG, 1989, p. 150). experiências e o que dela sobra ou sobrevive O arquivo, na sua etimologia, do grego
como individual, mas como uma injunção so-
Os sinais em Ginzburg buscam os gestos nas narrativas dos que com ela conviveram. arkhé (começo), é um começo ao qual se cial; inscrevemo-nos a todo instante na so-
inconscientes, onde faro, golpe de vista e in- Torna-se importante para nós pensar em ex- debruçam o arqueólogo, o arquiteto, o ca- ciedade e nas cidades onde vivemos, através
tuição são elementos imprescindíveis, que periências e em sobrevivências, do indivíduo e çador, o antropólogo, entre outros, para dos registros civis, das fichas médicas, escola-
percorrem a relação entre rastros e narração, de suas estórias, pois igualmente se abre o de- os mais diversos fins. O arquivo é também res, bancárias e dos álbuns fotográficos, hoje
onde os labirintos da realidade se projetam safio de também pensar nessa singularidade
um recomeço, já que, como diz Etienne não mais apenas impressos, mas também vir-
através do fio do relato, dos silêncios e do que em sua relação com a História. Uma tentativa
Samain (2013), não se trata apenas de um tuais. Um álbum, através de sua brancura, da
sobra. Olhares sobre objetos, pessoas, even- de escala que não perca o fio entre as singu-
mergulhar no passado, nem está fadado a visibilidade que pretende colocar diante de
tos; o que caracteriza este saber é a “[...] ca- laridades, muitas vezes, invisíveis, e a história,
permanecer num lugar de exumação, mas nossos olhos, permite catalogar identidades,
pacidade de, a partir de dados aparentemente no seu sentido macroscópico, rotineiramente
também é a possibilidade de construção diferenças, diversidades, desigualdades. Nas
negligenciáveis, remontar uma realidade com- visível.
dobras das fotografias inscrevem-se lacunas,
Através de fios de sua história, através das de um devir, pois o arquivo também nos
plexa não experimentável diretamente [...]” agregam-se registros, que podem ser evoca-
(GINZBURG, 1989, p. 152). fotos, percorremos a morte de Tereza, a sua interroga. Um arquivo é uma memória en-
dos, quando aliamos, à pesquisa com imagens,
O rastro inscreve a possibilidade de uma vida e seus trajetos. Sua existência mostra-se coberta, latente. Arquivos do tempo, arqui-
a valorização das narrativas. O álbum é assim
legibilidade. Percorrer em busca de rastros ou uma paisagem, onde formas, expressões ges- vos do espaço, arquivos que falam de pes-
pensado como um campo de pesquisa, nele
decifrá-los é tão importante quanto também tuais e relações são reconstituíveis pelo que as soas, de eventos, a partir de minúsculos
estão contidos o olhar de quem guardou as
recolher os restos. Os rastros são deixados imagens mostram, pelas narrativas ainda exis- fios que desvelam: imagens e as lembranças que sobreviveram,
ou esquecidos, falando rigorosamente, afirma tentes e também pelo trabalho da imaginação.
Memórias que, de novo, trabalham, que rea- registrando a configuração de existências in-
Gagnebin (2006, p. 113): “Rastros não são cria- Alinhavo aqui as fotos, os objetos, as narrati- cendem velhas lembranças e outras imagens e, dividuais e coletivas. Como aponta Armando
dos – como são outros signos culturais e lin- vas e lembranças que grafam que Tereza exis- com elas, sobretudo, interrogam nosso tempo Silva, outro estudioso dos álbuns fotográficos:
guísticos –, mas sim deixados ou esquecidos”. tiu, ainda que sua biografia aqui apareça como presente. Essas fotografias, essas imagens não
Rastros e escrita estiveram muitas vezes en- suas imagens, sombreadas pelo tempo, pelos são mais simples objetos, nem meras lembran- O álbum conta histórias, mas não somente so-
ças. São questões e questionamentos postos bre fotos, pois a ele são acrescentados outros
trelaçados, vistos como se fossem sinônimos, esquecimentos e pelo que não é mais possível
[...]. Elas são uma espécie de clarão na noite, um objetos, cartões, lembretes, recortes de jornal,
mas a escrita não é a única forma de produzir conhecer de sua história.
grito, um apelo, ao mesmo tempo recordação relíquias e partes do corpo: umbigos de recém-
rastros sobre a existência humana, é uma de- A grafia de seu nome é algo peculiar, em vá- e convocação para aqueles que somos e para nascidos, gotas de sangue, mechas de cabelo,
las, é a presença de um signo. O rastro: rios documentos, confunde-se a escrita de seu outros que nunca chegaremos a conhecer. Me- unhas de mãos e marcas de pés. Em sentido li-
nome entre: Teresa e Tereza, Tereza Maria Car- mórias que não morrem, que viajam, inquietas. teral, o álbum é um pedaço de nossos corpos.
É fruto do acaso, da negligencia, às vezes da
(SAMAIN, 2013, p. 9) (SILVA, 2008, p. 18)
negligência, às vezes da violência; deixado por neiro, Teresa Maria Carneiro, Tereza Maria de
um animal que corre ou por um ladrão em fuga, Jesus, Teresinha de Jesus Carneiro, Teresa Ma- O álbum seria uma forma de ver as orga- Aos álbuns se agregam dedicatórias que
ele denuncia uma presença ausente – sem no ria da Conceição, Tereza Maria da Conceição, nizações familiares, as composições étnicas, lembram que alguém traz uma foto e dá para
entanto, prejulgar sua legibilidade. Como quem
bem como não é precisa a data de seu nasci- as apropriações e trajetos pela cidade, a par- outro, ou lembra dos que estão distantes, e
deixa rastros não o faz com intenção de trans-
mento, nos registros oficiais. Em um dos regis- tir das imagens construídas e registradas e que não tendo a presença física, só lhes resta
missão ou de significação, o decifrar dos rastros
também é marcado por essa não-intencionali- tros civis da cidade de Meruoca-CE, em uma das experiências relatadas. Como “escalas do a imagem fotográfica como elo com a família. É
dade. O detetive, o arqueólogo e o psicanalista, cópia de certidão de casamento, Tereza apa- mundo” (SONTAG, 2004), as fotos são testemu- uma lembrança para quem fica, daqueles que

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A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

estão distantes, partem em uma viagem, mu- A fotografia confronta-nos com o outro, vi- ção de só depois entender o essencial, de amar Sylvie Meunier através da exposição foto-
dam de cidade ou saem desta vida. sibiliza o que não queremos ver, quando nos as distâncias como única proximidade do céu. gráfica realizada em Paris, no dia 30 de no-
(PEDROSA, 2011, p. 137)
As anotações no verso das fotos são revela- incomodam, não olhamos para elas, nós as vembro de 2014, intitulada Avant que tu dispa-
doras, inscrevem pessoas, eventos na história confinamos num álbum fotográfico escondido Nas fotografias de Tereza, encontro uma raisses, lembra-nos da poética do desapareci-
da família e de suas singularidades. Acionam num fundo de uma gaveta, oculta por baixo de mulher, algumas vezes, de rosto abatido, de mento, lembra-nos do que sobra dos outros,
a ação de lembrar; atuam no sentido de que outras fotografias, guardadas em envelopes, olhos fundos, delineados por olheiras, marcas dos rastros e dos restos que escrevem as tra-
as pessoas não se esqueçam das outras, dos dentro de armários, esquecidas, em alguns ca- de mulher de traços indígenas, que pariu de- jetórias individuais. O que podemos colher das
seus pertencimentos e de seus lugares de ori- sos, quando não são cortadas, rasgadas, afas- zessete filhos em casa, de cócoras, dos quais imagens em vias de desaparecer? O que seus
gem, além da imagem, agregam-se as notas, as tadas do olhar. quatorze sobreviveram. Muitas de suas ima- rastros suscitam? O que eles fazem arder em
dedicatórias, o envio das fotos por cartas, em As fotografias também são para Camila a nós? O que despertam? A exposição Avant que
gens estão perdendo a nitidez, pela passagem
mãos, ou através de parentes, amigos, conhe- possibilidade de encontrar a si mesma, atra- tu disparaisses:
do tempo, mas as rasuras do tempo podem
cidos. vés do autorretrato. Ela exprime: “Decidi então nos fazer pensar sobre o tempo e como ele se é uma série de retratos anônimos de fotografias
A escritora portuguesa Inês Pedrosa cons- fazer este a autorretrato, memória do instante de identidade do fim do século XIX, já envoltas
inscreve na passagem da história individual de
trói em Nas tuas mãos, uma história sobre a em que realmente comecei a gostar de mim num processo de apagamento. Reunidas, re-
uma pessoa. O que fica dessa vida? Que pas-
sociedade portuguesa a partir das narrativas produzidas em serigrafias sobre dois suportes
[...]” (PEDROSA, 2011, p. 132) A imagem foto- sos e rastos podemos colher e como podemos
de três mulheres: uma avó, uma filha e uma de tecidos, uma organza de seda transparente
gráfica é uma maneira de Camila reconstituir fazer isso? e crepe opaco, que adquirem uma outra exis-
neta, tomando como referência: um diário, um a si mesma, reconhecer os seus méritos, nem O encontro com a imagem pode nos trazer tência, um estado flutuante comparável a uma
álbum e as cartas. O Diário da avó, Jenny, o ál- sempre reconhecidos em seu trabalho profis- imagem mental, uma lembrança vaga. Ao parar
o que Didi-Huberman (2011) argumenta, ci-
bum da filha Camila e as cartas da neta Natá- sional. Diante de seu autorretrato, ela exprime: o fluir irreversível do tempo sobre o papel, Syl-
tando Maurice Blanchot, uma abertura para a
lia. Nestas narrativas desvelamos a sociedade vie Meunier define tanto a desaparição e a ine-
Gosto dessa mulher de olhos cinzentos cerca- irrealidade, uma aparição propriamente dita. fável presença desses personagens em nosso
que as cercam e suas clausuras, como também
dos por olheiras roxas, cavadas. Gosto das so- A imagem de Tereza aparece como uma mu- século. Sem reparar ou recompor a fotografia
desvelamos a intimidade dessas mulheres,
brancelhas ralas desta mulher, das rugas que lher, geralmente, vestida de azul, com a qual original, ela utiliza sua alteração, sua fragilida-
suas histórias e as heranças que elas transmi- lhe reduzem a cor dos olhos a um traço de
pouco convivi e não tenho mais a possibilida- de, para solicitar o imaginário daquele que a
tem, umas às outras, de seus sonhos, seus de- luz. Gosto das suas faces cavadas, do queixo olha. (CAZENAVE, 2014, s. p., tradução livre).1
sejos e vivências. “Viver era lembrar continua- demasiado agudo, os ossos quase à transpa- de do encontro físico, apenas imagético, e de
mente até à náusea, devolver visitas, celebrar
rência da pele. Gosto desta boca lisa, sem cor narrativas ditas ou grafadas nas lembranças, A que processo combinatório a imagem
nem volume. Gosto das dobras deste pescoço no imaginário ou no revirar das imagens no ál- fotográfica deve a sua existência? À máquina,
nascidos e finados [...]” (PEDROSA, 2011, p. 66). como de um mapa esborcinado depois de mui-
No álbum de fotografias de Camila, não te- bum de fotografias. A imagem traz Tereza como à pessoa retratada; às maneiras de observar,
tas viagens. Esta mulher imprimiu-se inteira na
mos nenhuma imagem, mas a descrição das sua vida e sabe que vai morrer. Ninguém pode um relâmpago no tempo, preciso captar o que pensar, expressar, enquadrar, manipular: à
vivências; temos um álbum escrito, onde as já fazer-lhe mal, ninguém pode sequer já fazer os segundos de entendimento me dão entre existência do tempo, do espaço; aos especta-
mossa sobre o seu corpo excessivamente leve. olhar as imagens e descrevê-las. Para Didi-Hu- dores? O que arde nas imagens de Tereza? Que
palavras desenham as cenas experimentadas
(PEDROSA, 2011, p. 133) signos secretos nelas se escondem ou melhor
e as pessoas com quem ela conviveu. berman (2011), essa imagem gera um fascínio,
Nas suas fotos, Camila vê a si mesma, con- Natália, a filha, através de suas cartas, de- mas não porque nos engane, mas porque nos o que essas imagens mostram? O que sabemos
fronta-se com sua mãe e com a sua filha: clara o que descobre através das fotografias da submete à aparição que retorna. Aparição tal- 1 Avant que tu ne disparaisses est une série de portraits
mãe. vez da pessoa, de um sentimento, de uma sen- d’anonymes, issus de photographies d’identité de la
Custa-me muito olhar para esta fotografia da fin du 19 ème siècle déjà engagées dans un processus
minha filha mulher. Tenho álbuns dela em bebé sação. Assim: d’effacement. Réunies, reproduites et sérigraphiées
Descobri desde cedo nas fotografias da minha
sur deux supports de tissu, un organza de soie trans-
e menina; na adolescência, passei a fotografá-la mãe que a felicidade é uma coleção de instan- Ver supõe a distância. [...] ver significa que essa parent et un crêpe, elles acquièrent une autre existen-
menos e, sobretudo, a esquecer-me de organi- tes suspensos sobre o tempo que só depois de separação tornou-se, porém, encontro. Mas o ce, un état flottant, comparable à une image mentale,
zar as fotografias. Muitas vezes, aliás, nem che- amarelecidos pela ausência se revelam. Nessas que acontece quando o que se vê, ainda que un souvenir vague. En arrêtant la sape irréversible
guei a revelar os rolos. [...] A verdade é que não du temps sur le papier, Sylvie Meunier fixe à la fois la
fotografias aprendi a não temer o amor e a nos- à distância, parece tocar-nos por um contato disparition et l’ineffable présence de ces personna-
gosto que Natália tenha crescido. É mais bonita talgia dele, e tornei-me, sem que ela se aper- comovente, quando a maneira de ver é uma ges dans notre siècle. Sans réparer ou recomposer les
do que eu, mais inteligente, e, sobretudo, mais cebesse, uma outra espécie de caçadora da luz. espécie de toque, quando ver é um contato à supports originaux, elle utilise leur altération et leur
feliz. E insultuosamente jovem. É isso que que fragilité pour solliciter l’imaginaire de celui qui regar-
[...] Trago no meu sangue que é dela esta calada distância? (BLANCHOT apud DIDI-HUBERMAN, de. Disponível em: <http://www.tsldesign.fr/2014-syl-
não gosto de ver. (PEDROSA, 2011, p. 125) paixão pelos amores mortos, esta determina- 2011, p. 29) vie-meunier/>. Acesso em: 19 abr. 2016.

436 Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 01, n. 03, p. 428-446, set./dez. 2016 Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 01, n. 03, p. 428-446, set/dez. 2016 437
A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

e o que não sabemos? Ou o que podemos ain- uma coisa ela dizia que ia usar logo, pois não nítidas, eu comecei a perguntar a suas filhas pe- tiam de fato, suponho que elas queriam falar
da recuperar? O que sobrevive nas imagens? sabia até quando era viva” las imagens. Essa pergunta me foi suscitada em sobre a visibilidade dessa mulher, a importân-
Tereza, a quem pouco conheci, foi-me apre- 2003, sobretudo por conhecer o trabalho de Fa- cia dela para as filhas, os seus ensinamentos,
[...] a imagem é uma vivência, melhor, uma so-
brevivência e, mais: uma supervivência que sentada como “mãezinha”, uma maneira habi- biana Bruno, que, ao explorar a ideia de vincular os sonhos não realizados, tudo o que dela se
atravessa o tempo (histórico) e que se nutre de tual de se referir carinhosamente a uma avó, o estudo da biografia ao da fotografia, criou um apreendeu e que não está projetado nos regis-
um tempo- passional, pulsional, patético, isto no interior do Ceará, como em outros lugares caderno fotobiográfico de sua própria avó (BRU- tros fotográficos que sobreviveram.
é, humano-anacrônico. (SAMAIN, 2012, p. 33) do Nordeste. Tereza foi minha avó materna. NO, 2009). Em 30 de janeiro desse ano de 2016, Didi-Huberman no livro Écorces, “Cascas”,
Mais do que isso, as imagens pertencem a Das poucas lembranças, sinto ainda sua por ocasião do aniversário de 80 anos da filha percorre Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em
presença na cozinha, perto do fogão a lenha, mais velha de Tereza, chamada Maria Delourdes, junho de 2011, visitando pela primeira vez o
um tempo imemorial, tempo de várias conju-
ou sentada no chão, costurando, enquanto eu mostrando o álbum para elas, uma das filhas campo de extermínio onde seus avós morre-
gações, tempo heterogêneo, que desperta em
brincava. A casa, apesar de não mais existir, mais novas, Maria Augusta, perguntou: “como ram. De “[...] sensação em sensação o fotógra-
nós ideias, quando as olhamos, como recupe-
ainda mora em mim e também é possível lem- ela conseguiu reunir tantas fotos da mamãe?” fo-narrador percorre com o olhar procurando
ram lembranças até então perdidas, adormeci-
brar do tempo em que Tereza ali viveu, mes- Ao que eu respondi: “as fotos estavam com vo- restos, ruínas, lembranças e sofrimentos [...]”
das e guardadas. Convocam-nos a olhar a nos-
mo que este tempo se esvaia e que dele sobre cês. Separadas, mas estavam com vocês!” (CASA NOVA, 2014, p. 66). O filósofo e historia-
sa história, nos colocam em relação com ela
apenas imagens e ângulos, que nunca mais se Comecei a perguntar para as suas filhas. dor da arte guarda consigo pedacinhos de cas-
e com o nosso destino. As imagens pensam,
aproximarão do vivido e experimentando por Maria Alice entregou-me um envelope com ca de bétula, árvore que antigamente se cha-
pensam como o tempo dos rios e das nuvens,
ela, nem por mim. No chão daquela cozinha, imagens, que até mesmo as outras irmãs des- mava planta da sabedoria, e com esses peda-
propõe Samain (2012). Isto pode nos fazer lem-
lembro-me da descrição de Mia Couto, ao nar- conheciam. Para as duas que moraram perto ços ele tenta compor, por meio de fragmentos,
brar do guardador de rios, personagem de Mia
rar as lembranças de Mariano, em Um rio cha- dela até o fim de sua vida: Maria Dôra e Maria o tempo, os pedaços da memória.
Couto, que fiel a si mesmo dialoga com “invisí-
mado tempo e uma casa chamada terra: “Ali Delourdes, perguntei quais as fotos que elas
veis rios” e tudo ao seu redor se torna parede, Olhei. Olhei pensando que olhar me ajudaria
escutei falas e risos, ondulações de vestidos. tinham, e aos poucos comecei a encontrar ou- talvez a ler algo que nunca tinha sido escrito.
onde ele registra os dados da estação hidro-
Naquele lugar recebi os temperos do meu sa- tras imagens. Muitas dessas fotos estão com Olhei os três pequenos fragmentos como se
métrica, mesmo durante a guerra, fazendo das fossem as três letras de uma escrita – anterior
ber[...]” (COUTO, 2003, p. 145). marcas da passagem do tempo, já rasuradas,
paredes uma cobertura de inscrições, como se a todo alfabeto. Ou talvez, como o começo de
Reconstituir imagens de Tereza é recom- por terem ficado muitos anos em quadros fi-
estas fossem um imenso livro de pedra (COU- uma carta a ser escrita, mas para quem? [...]
por, nas lembranças, aquela casa que, para xados na sala de sua casa, mesmo depois de
TO, 2011, p. 8). Três fragmentos de tempo. Meu próprio tempo
mim, foi a casa da infância. Ao encontrar as sua morte, em 1984, e até um pouco depois em seus pedaços; um pedaço de memória, essa
Convivi quatro anos com Tereza, talvez suas imagens, percebo o quanto esquecemos de 2007, ano que seu marido também falece e, coisa não escrita que procuro ler; um pedaço do
esse tempo possa ser considerado muito, se das imagens, dos lugares, dos acontecimentos, aos poucos, a casa onde viveram e criaram os presente, aí sob os meus olhos, sobre a branca
não fossem os primeiros quatro anos de mi- como hoje precisamos de muitas vozes, obje- quatorze filhos foi desmoronando. Com minha página; um pedaço de desejo, a carta para es-
nha vida. Sempre me fascinou ouvir o nome tos e imagens para lembrar das experiências mãe, encontrei em binóculos antigos outras crever, mas para quem? (DIDI-HUBERMAN apud
de Tereza, talvez por isso eu goste tanto das SAMAIN, 2013, p. 1)
vividas. Daquela casa saí e nunca me despe- imagens e um quadro pintado.
histórias da santa andarilha espanhola Tereza di, mas muito dela ainda mora em mim, talvez Na casa tinha um quadro na parede onde as Olhar cascas, rastros, objetos deixados por
D’Ávila (padroeira dos professores). nunca tenha me despedido por que: “Em crian- fotos de todas as pessoas da família estavam alguém é uma forma de ler, talvez uma ampla
Sobre a Tereza que aqui falamos, nunca ça não nos despedimos dos lugares. Pensamos fixadas, vivos e mortos, a foto de Tereza, mes- forma de ler, tal como suscita Alberto Manguel,
soube nada de suas andanças, delas penso que voltamos sempre. Acreditamos que nunca mo no caixão, com os filhos e o marido ao seu em A última página, como o astrônomo lendo
que ela teve mais sonhos. Um deles chegou até é a última vez [...]” (COUTO, 2009, p. 216). redor, permaneceu ali, durante mais de vinte um mapa de estrelas, o zoólogo lendo os ras-
mim, por uma de suas filhas: “morar na cida- Cresci ouvindo que na família não tínhamos anos. Foto disposta ao lado de outras tantas, tros de animais na floresta, o jogador lendo os
de”. Mas sei que ela nunca realizou, sobretudo, registros fotográficos dela, não tínhamos ima- em quadros que percorreram a vida dos fami- gestos do parceiro de cartas, o organista lendo
por causa do marido, que sempre quis morar gens dela. Depois fui descobrindo que a questão liares e o passar do tempo. linhas musicais, os pais lendo sinais no rosto
num sítio, no munícipio de Massapê-CE. Uma é que suas filhas achavam que as imagens não Quando penso no motivo por que as suas de um bebê, o adivinho procurando as marcas
sabedoria de vida também chegou até mim, eram “muito boas”. Então, havia imagens? Inda- filhas falavam que não existiam fotos de Tere- da vida, o tecelão lendo os fios de um tapete, a
através do relato de Maria Alice, sua filha, em 8 guei-me. A partir dessa ideia, de que não havia za, fico pensando, e tenho como hipótese, de dançarina lendo os movimentos do coreógra-
de maio de 2016: “Mamãe sempre que ganhava ou que essas imagens existiam, mas não eram que não era propriamente por que não exis- fo, o amante lendo cegamente o corpo amado

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A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

à noite, o psicólogo e o psiquiatra ajudando a garem até nós, ou mesmo por quanto tempo Para quem destinamos as nossas imagens Toco a imagem, mas as palavras apenas
ler os sonhos perturbadores de seus pacien- ficam guardadas ou esquecidas. quando, no seu verso, tecemos dedicatórias? a contornam, não a dizem, não inteiramente.
tes. “Todos esses compartilham com os leito- Sobre isso é importante lembrar o aponta- Ou melhor, o que estamos realmente dizendo Reencontro Tereza numa imagem que é con-
res de livros a arte de decifrar e traduzir sig- mento de Fabiana Bruno: nessas inscrições? Nesse ato de dar ao outro tingente, que poderia (ou não) ter sido feita,
nos” (MANGUEL, 1997, p. 19). uma imagem de nós mesmos ou de pessoas um rastro de sua passagem, e, nesse caso, de
As fotografias que produzimos circulam, viajam
entre parentes, amigos e amantes. Terão, no importantes para nós? Geralmente, as dedica- sua presença ao meu lado. Como lembra Bar-
Como as imagens pensam: entanto, uma curta vida visível. Além dos avôs, tórias de fotos são feitas para quem está lon- thes (1984): “Eu consultaria imagens em vão,
trajetos das imagens ou como que ocupam uma parede da casa [...], muitas fo- ge, como é esse o caso. Elas querem pedir que não poderia nunca mais lembrar-me de seus
tografias, uma vez vistas – não necessariamente sejamos lembrados, mas, no verso dessa foto, traços (convocá-los, inteiros, a mim) [...]” (BAR-
elas chegam até mim? olhadas –, voltam ao silêncio de álbuns, caixas
é uma maneira de inscrever o filho distante na THES, 1984, p. 95). Não poderei nunca saber o
Para Samain (2013), a imagem não é um objeto de lembranças, bolsos, arquivos – espécie de
relicários – onde serão guardadas, antes de ser
rotina familiar, de lembrá-lo de um universo que sentia ao olhar o seu rosto ou recuperar
é um ato diante de nós e que exige de nós uma
engavetadas com respeito. Como as grandes ár- do qual ele faz parte. Essa imagem foi enviada a sensação de proteção que a imagem me dá,
tomada de posição diante delas, com elas. Nos
vores, as fotografias precisam envelhecer. (BRU- para o único filho que partiu e não voltou, nem sobretudo, pela sombra onde a foto é feita ou
retratos de Tereza, chega até mim uma foto na NO, 2013, p. 130) mesmo para ver a mãe, quando doente, ou no pelo escurecimento deixado pelo tempo na
qual eu, como neta, estou ao seu lado, e toca-
dia de seu falecimento. As fotos e suas dedi- fotografia. Não poderei recuperar o toque de
me profundamente, como a estou olhando. Fig. 02 - Tereza, filhas e neta (setembro de 1982).
catórias são, assim, uma maneira de inscrever, sua mão sobre o meu ombro, mas sei que ela
Uma fotografia é perda ou encontro? É me-
em seu verso, a história da família e de seus existiu e esteve perto de mim. A imagem não
lhor estar com os olhos abertos ou fechados?
movimentos. Nas fotos, depositam-se resíduos me faz rememorar o passado, “[...] o efeito que
Parece-que fechados enxergamos melhor os
de tempos passados, marcas de mãos cheias ela produz em mim não é o de restituir o que
movimentos que não só estão nas imagens,
de saudades, que as enviam, e de mãos dos é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o
mas que são disparados através delas. A fo-
que as acolhem como o único meio de não se- de atestar que o que vejo de fato existiu [...]”
tografia é o brilho reluzente de uma ausência.
rem esquecidos. (BARTHES, 1984, p. 123).
Um lampejo de um tempo e de uma pessoa
Compor uma fotobiografia é mergulhar nos Toda a história de Tereza começa para mim
que não voltam mais. Se organizo um álbum
álbuns, nos quadros, baús e carteiras dos ar- através da foto do dia de sua morte. Talvez
é antes de tudo para mim e para os que con-
quivos de família (BRUNO, 2009); é percorrer aqui a importância de retomar Didi-Huberman
viveram com Tereza. As imagens potencializam
imagens depositadas no ambiente das rela- (2011) sobre como as nossas lágrimas são im-
uma experiência afetiva, um caminho que se Fonte: Acervo familiar.
ções familiares e trazê-las para pensar, de ma- portantes na nossa experiência para saber ver
abre com o olhar. Rastros que se guardam em
Essa foto de Tereza chega até mim depois neira mais ampla, sobre a existência humana. as imagens e o que elas nos dizem. Fotogra-
gestos, existência que se desvela em narrati-
da volta desse tio. Um dia folheando seu ál- É também recuperar as inscrições que se asso- far os mortos é uma prática ainda comum no
vas, todas depositadas sobre um frágil registro
bum de fotografias, deparo-me com esta ima- ciam às fotos, que constroem, através da grafia Nordeste do Brasil, para preservar a recorda-
que guarda um acontecimento, um fragmento
gem. Fui fotografada com Tereza, em setembro da letra e da imagem, pertencimentos. ção sobre os entes queridos, no dia da partida.
de passagem de uma vida.
de 1982. Não é a única foto dela com os netos, Essa vai ser a principal foto que sempre mar-
A única foto em que estou com Tereza che-
em outra foto, outros dois netos, mais velhos, Fig. 03 - Tereza, filhas e neta, verso cou as minhas lembranças. É a partir da morte
ga até mim através de um de seus filhos, José
aparecem ao seu lado. Mas para mim, esta foto (setembro de 1982). dela, que ela passa a fazer sentido para mim.
Carneiro Neto – que viveu por volta de 30 anos
é única, e me faz pensar nas muitas viagens de Lembro-me do anúncio de sua morte, através
longe da família, em Porto Velho –Rondônia,
uma foto até que, entre as suas migrações, ela de uma prima, enquanto eu brincava ao redor
quando ele retorna ao Ceará. Para ele foi en-
chegue a quem é destinada. Sim, por que, ao de casa. E eu, com quatro anos, tentava en-
viada a única foto em que estão presentes a
mãe Tereza, as duas irmãs, Assunção e Dôra abrir o álbum, o meu tio me ofereceu a foto, tender o que significava aquilo? “Sua avó mor-
Carneiro, que com ela viveram até o fim da vida e essa é a única imagem na qual eu estou ao reu”. Primeiro ela não era minha avó, ela era a
e eu, sua neta Cristina, marcada como a “me- lado de minha avó Tereza. Essa foto é feita fora mãezinha. Eu me lembro de minha prima me
nina da Creuza”, pequena, olhando para ela, da casa, perto de suas flores preferidas: “o pé contando, mas eu não tinha ideia do que aqui-
como se tentasse decifrá-la. Podemos pensar de riso”, comum no Ceará, e outras flores resis- lo queria dizer, não sabia o que era a morte.
nas muitas viagens que as fotos fazem até che- tentes ao calor e ao tempo seco. Fonte: Acervo familiar. Depois, a noite, vi seus filhos chorando e lem-

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A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

bro-me de indagar minha mãe se eu precisava existência: o vestido, que ela um dia usou, feito sua morte. Diante dessa foto do vestido, uma diano, muitas vezes, possivelmente sofrido e
chorar também. Nesta época, eu tinha quatro por uma de suas filhas Eloisa; a aliança, a me- das outras filhas mais velhas, que também silencioso. Aceitar suas imagens, seus sonhos,
anos de idade. Depois associei que dias antes, dalha, as fotos que tenho buscado para com- costurava para a mãe e para as irmãs, Maria sua vida, é talvez fazer com elas sigam adiante,
pelas dificuldades e a distância da cidade do por seu álbum de fotografias. São essas fotos, Alice, disse: “mas mamãe nem gostava de ves- como “num revezamento”, como sugere Gag-
sítio onde morávamos, meu avô já tinha en- o que eu imagino e o que eu lembro, imagens tido estampado”. Mas a outra filha, Dôra, diz nebin:
comendado o caixão e guardado num quarto, turvas, mas imagens muito fortes e imagens que: “ela gostava sim”. Muitos vestidos que Te- Não por culpabilidade ou compaixão, mas por-
que foi descoberto por uma de suas filhas, que que começam com esse dia da morte, com o reza veste são azuis, como esse tem tons de que somente a transmissão simbólica, assumi-
chorou muito, não se conformando com ideia, que seria o fim. É com esta imagem que parece azul. O vestido é uma parte de sua história, so- da apesar e por causa do sofrimento indizível,
e me lembro que ela disse que estavam que- ser o fim que Tereza ganha existência na minha bretudo, como era feito, em casa, pelas filhas, somente essa retomada reflexiva do passado
rendo matar a sua mãe. É com a morte que ela vida, não só como sua neta, mas como pesqui- e com a finalidade de viajar nas poucas vezes pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente,
ganha sentido na minha vida, passo a recupe- sadora que procura, na antropologia e nos es- mas a ousar esboçar uma outra história, a in-
em que saiu do sítio, em Massapê-CE. Este ela
rar memórias, é a partir dessa morte que eu tudos biográficos, um lugar para a fotografia e ventar o presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 57)
usou quando a filha Eloisa a levou para a cida-
descubro que tenho uma avó. É a partir dessa a composição de álbuns fotográficos.
de de Massapê-CE, e depois para uma viagem Mergulhar numa vida que ressurge através
morte que eu descubro essa pessoa chamada
Fig. 04 - Morte de Tereza, em 11 de março de 1984. até Fortaleza-CE. de imagens permite-nos olhar a nós mesmos e
Tereza. Uma imagem que sempre esteve pre-
Tim Ingold lembra que os “[...] homens fa- o nosso próprio tempo, ou mesmo quanto de
sente num quadro, na sala de estar; através
zem a história com as mãos [...]” (INGOLD, 2015, uma época e de uma pessoa sobrevivem em
dessa fotografia, que passou muitos anos en-
p. 89). São as mãos e os braços que imprimem nós. Tereza teve uma vida dedicada à condição
tre as fotos dos vivos.
o que se deseja criar, os projetos de inteligên- de esposa, cuidando da casa e dos filhos, lon-
A consciência da perda de Tereza é o que
cia, a história da tecnologia humana. Isto é ge da cidade, que era um de seus sonhos.
torna possível recuperar, pela palavra e pelos
muito interessante para pensar aqui, pois Te- Seu nome e as diversas grafias dele revelam
vestígios das imagens, sua grafia de vida. Uma
reza, de acordo com o relato de sua filha Dora, como são frágeis os registros institucionais
mulher simples, nordestina, de traços indíge-
em abril de 2015, que era uma mãe sem ha- diante de uma vida e também imprecisos em
nas, casada e mãe de dezessete filhos. Uma
bilidades, que não sabia fazer nada, enquanto datar vivências, por mais legítimos que ten-
mulher que não pôde aprender a ler, que não
realizou o sonho de viver numa cidade, mas as filhas costuravam, faziam crochê, cozinha- tem ser como registros oficiais de alguém que
que, em suas imagens, foi geradora de vida, é vam. Mas essa filha lembra que ela sabia fazer, existiu. As singularidades de uma pessoa, seus
uma mão que afaga, um rosto silencioso, qua- muito bem, renda de bilro. Maria Alice, uma de gostos e preferências, nos lembram das muitas
se esboçando um sorriso, que está sempre ao suas filhas, lembra-me uma conversa, no dia 7 escritas que deixamos impressas na vida, que
lado do marido, dos filhos e netos. O que dela de maio de 2016, enquanto nos deslocávamos ultrapassam a escrita, mas se escrevem nas
sobrevive, nos faz pensar que o que se narra de carro até minha casa: “O pai da mamãe não nossas preferências, nas cores que gostamos,
de uma vida ou nos ajuda a compor uma bio- quis que nenhuma filha estudasse para que dos sonhos, do que lembram de nós.
grafia é menos um todo coerente e mais um não aprendesse a escrever carta para namora- Nos objetos, lemos outras grafias que uma
Fonte: Acervo familiar.
aceno, uma lembrança, que vem desgarrada do [...] a mamãe não sabia nem contar dinhei- vida deixa. Com as imagens, temos uma apa-
das cronologias e nos devolve uma experiên- Com um de seus vestidos eu me encon- ro”. Assim, Tereza não estudou, não sabia ler e rição, que elas realizam, permitindo um en-
cia de alguém que existiu. Uma vida que nos trei, para minha surpresa, em abril de 2015 na nem contar. contro com o outro, sobretudo em narrativas.
acena com rastros, deixados, esquecidos ou casa da minha tia Dôra, em Meruoca-CE. Esse Com os fios entre os dedos, essa mulher Uma irrealidade, pois torna possível que vidas
considerados, seja para compreendê-los, se- vestido foi feito por uma de suas filhas Eloisa, certamente sabia que o encontro desses fios há tanto tempo separadas se encontrem no
gui-los ou rasurá-los. que é vista pelas outras filhas como “o xodó da cruzados, por entre as peças de madeira, é que tempo. A separação torna-se imaginariamen-
A partir da história dela, eu começo a des- mamãe”; era uma das filhas mais próximas da teciam a vida, passando entre os dedos, fio a te um encontro. Com as imagens, os artefatos
cobrir parte também da minha própria histó- mãe e quem fazia os seus vestidos. Este vesti- fio, tecendo a vida, as relações, a sua biografia. também nos contam sobre os rastros da vida
ria. O que ela deixa para mim vai se constituin- do foi herdado por Dôra, junto com a aliança Entre as rendas, era a vida que se tecia. Percor- de uma pessoa. Inscrevem uma biografia numa
do a partir de rastros que ela deixou e dos res- de casamento de Tereza. Ela não é a filha mais rer sua vida é ser testemunha de seus passos totalidade, como uma escrita da vida, no seu
tos, os pequenos vestígios que compõem a sua velha, mas é a filha que cuidou da mãe até a e rastros, ouvindo as narrações de seu coti- sentido mais amplo, fazendo com que leiamos

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A composição de um álbum fotográfico: os rastros de uma avó materna Cristina Maria da Silva

a vida no orvalho (BARROS, 1998), em cascas Fig. 05 - Vestido de Tereza (abril de 2015). dologia da estética em antropologia. 2009. 351 f. __________. Lembrar, escrever, esquecer. São Pau-
(DIDI-HUBERMANN, 2011), pois recuperam par- Tese (Doutorado em Multimeios) – Programa de lo: Ed. 34, 2006. p. 49-57.
tes de contextos vividos e experimentados, Pós-Graduação em Multimeios, Instituto de Artes,
__________. O rastro e a cicatriz: metáforas da me-
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
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