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1 Para um bom resumo das questões envolvidas, ver Aurox, Weil, 1975: p. 115-117.
religiosos de tal forma que não pode ver ou conhecer coisa alguma senão
através da interposição deste meio artificial. (Cassirer, 1975: 47-8)
O que torna nossa espécie − o Homo sapiens sapiens ou, segundo outro
sistema de classificação, simplesmente Homo sapiens − algo à parte no mundo
animal não é, acredita-se hoje, a capacidade de fabricar instrumentos; e, sim, a
linguagem sofisticada que a caracteriza, única no quadro da zoologia terrestre
(Lewin, 1988: 170-186). Mesmo se, nestas últimas décadas, psicólogos e
especialistas em primatologia constataram experimentalmente um nível de
“discurso” impressionante no relativo a chimpanzés e gorilas no cativeiro,
usando linguagens de sinais gestuais − já que o aparelho de fonação dos
monos antropóides atuais não lhes permite falar, no sentido humano do verbo
−, trata-se de algo impressionante pelo fato de antes se crer na impossibilidade
de qualquer discurso da parte desses monos: fica muito aquém, no entanto,
mesmo da capacidade de falar e expressar-se de uma criança pequena.
O desenvolvimento da garganta nos humanos atuais, caracterizado
por uma faringe longa e uma laringe situada muito mais abaixo do que em
qualquer outro mamífero, incluindo todos os outros primatas, impede − e é o
único caso disto entre os mamíferos − que possamos engolir e respirar ao
mesmo tempo, o que parece um problema grave (Laitman, 1984: 20-27). Por
esta razão, se tal desenvolvimento esteve ligado ao da fala, como é provável, e
foi selecionado pela evolução, que vantagens evolutivas a fala apresenta para o
animal humano? O que é o mesmo que perguntar: como pôde emergir na
evolução de nossa espécie?
A resposta que primeiro vem à mente é que a linguagem humana
constitui um poderoso instrumento de comunicação, o mais sofisticado e
diversificado que existe neste planeta. Olhando para a evolução dos homínidas
primitivos, no final do Terciário e durante o Quaternário, um dos aspectos
marcantes, nela, foi a emergência de um modo de vida de coleta
vegetal/animal e mais tarde de caça, mais complexo do que o de qualquer
mono antropóide. A comunicação eficiente permitiria um controle mais
aperfeiçoado sobre tal modo de vida e uma monitoração melhor do meio
ambiente; propiciando, portanto, uma vantagem evolutiva que superaria a
desvantagem da possibilidade de morrer engasgado ao tentar engolir e respirar
ao mesmo tempo. Em outras palavras, a linguagem humana sofisticada seria o
resultado da economia cooperativa de coletores/caçadores e suas
complexidades: seria um elemento posto a serviço das tecnologias de
subsistência (entre elas a produção de instrumentos).2
Esta maneira de ver, que parecia convincente, começou a ser
desafiada pioneiramente, a partir dos anos 60, por Ralph Holloway, da
2 Esta visão do processo foi adotada, por exemplo, em Leakey, Lewin, 1977: p. 148-177. Os
autores posteriormente adotaram a opinião de Holloway, de que se falará a seguir.
o(s) meio(s) ambiente(s) em que vive e atua com muitas espécies não-primatas;
e não pode ser demonstrado que sua exploração da natureza para a busca de
alimentos seja superior a de tais espécies. O mesmo quanto à relação, por
exemplo, entre mamíferos e dinossauros: se a possibilidade de explorar nichos
ecológicos fosse maior nos mamíferos, o número de espécies deles deveria ser
superior, nicho a nicho, ao das espécies de dinossauros; ora, tal número é
grosso modo similar. E, no entanto, não há qualquer dúvida de que os
mamíferos tenham uma capacidade superior à dos dinossauros de construir
um modelo do mundo, ou de que tal capacidade seja maior, nos primatas, do
que nos outros mamíferos, ou ainda que, nos humanos, esteja muito acima da
dos demais primatas.
O que hoje se crê é que, embora a relação de subsistência com o
meio ambiente natural não seja mais eficiente ou exigente no caso dos
primatas do que nos dos outros mamíferos, a coisa muda se a comparação
versar sobre o meio ambiente social. O “xadrez social” jogado pelos primatas
é mais complexo do que o xadrez comum, já que as regras, derivadas de
alianças e antagonismos mutáveis no tempo, se transformam ou até se
invertem, o mesmo se aplicando ao papel e à hierarquia das “peças”
intervenientes no jogo. A importância desse jogo nas relações sociais, ao
estabelecer-se, leva à necessidade de uma infância protraída − de que os
filhotes passem muito tempo aprendendo o modelo mental do mundo, no
tocante à subsistência mas também à interação social −, sendo isto indicador
de uma retroalimentação entre diferentes níveis das interações sociais.
Assentada esta “escola de vida” entre os primatas como mecanismo de
sucesso, biologicamente falando, ela introduziu mecanismos de seleção
próprios. Os primatologistas estão de acordo em que não são os espécimes
mais fortes e mais agressivos aqueles que, entre primatas, conseguem mais
acasalamentos: são os mais capazes de jogar com sucesso o “xadrez social”.
Em função do anterior, alguns especialistas chegam a inverter o que
se afirmava antes: a necessidade de ganhar mais tempo para a socialização é
que teria forçado a melhorar as técnicas de subsistência entre os primatas,
ainda mais no caso dos humanos; por exemplo, quanto a estes últimos,
introduzindo carne na dieta, o que aconteceu, no tocante à caça de animais de
tamanho considerável, 1,6 milhão de anos atrás, na fase do Homo erectus; ou
talvez ainda antes, com o Homo habilis (Lewin, 1988: 178-180).
A psique humana compreende três componentes básicos. A
cognição inclui aprendizagem, lógica, raciocínio, capacidade de resolver
problemas. A emoção envolve coisas como sofrimento, depressão, excitação,
alegria. E a consciência é aquilo que permite ao homem dar-se conta do que
ele sabe, bem como tentar prever o futuro, o que inclui o conhecimento de sua
E ainda:
3 Ver, entretanto, para algumas das variadas opiniões a respeito: Bunak,1973: p. 127-134;
Lieberman, 1975; Lyons, 1988: p. 141-166; Tattersall, 1995: p. 245; Leakey, 1994: p. 119-138.
4 Sintetizaremos as opiniões do autor segundo dois textos: Carr, 1986: p. 15-27 e Carr, 1991.
Não vemos razão de multiplicar as notas de rodapé ao proceder a tal síntese: fique claro que,
cada vez que mencionamos as noções defendidas por Carr, a base são estes dois textos.
À guisa de conclusão
Bibliografia