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CRÍTICA DE DUAS QUESTÕES RELATIVAS AO ANTI-

REALISMO EPISTEMOLÓGICO CONTEMPORÂNEO

Ciro Flamarion Cardoso*

Resumo. Discute-se criticamente o anti-realismo epistemológico próprio das atitudes


teóricas pós-modernas, a partir do diagnóstico de que estas se fundam no
entendimento falacioso de que qualquer codificação significa, necessariamente, não só
uma seleção ou simplificação como também uma deformação ou deturpação da coisa
codificada. Num primeiro momento, na revisão dessa tese, pautando-se pelos
ensinamentos da paleoantropologia e da neurobiologia contemporâneas, questiona-se
se o sistema nervoso humano deturpa a realidade ao pô-la ao alcance da mente pela
coordenação das informações sensoriais. Em seguida, partindo da indagação de qual
relação existe entre a narrativa e os fatos que descreve, entra-se no debate
epistemológico sobre a a veracidade das explicações dos textos históricos.
Palavras chave. epistemologia; pós-modernismo; teoria da história.

CRITICISM OF TWO ISSUES REGARDING CONTEMPORARY


EPISTEMOLOGICAL ANTI-REALISM

ABSTRACT. This paper is a critical discussion of the epistemological anti-realism


peculiar to post-modern theories from the diagnosis that they are based on the false
notion that any codification necessarily means not only a selection or simplification
bult also a deformation or adulteration of the object codified. In a first step in
revising this thesis and supported by contemporary paleoanthropology and
neurobiology it is questioned if the human nervous system adulterates reality while
putting it at the reach of the mind through the coordination of sensorial information.
Then questioning if there exists a relation between the narrative and the facts
described follows an epistemological debate on the truthfulness of historical textbooks
explanations.
Key words. epistemology, post-modernism, theory of history.

* Professor Titular de História Antiga da Universidade Federal Fluminense.


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Problema antigo, luta sempre renovada

O anti-realismo epistemológico, ponto central das posições pós-


modernas, não é, entretanto, uma invenção delas: é, de fato, bastante antigo.
Posturas radicais a respeito foram defendidas muito antes que existisse o pós-
modernismo.
Assim, por exemplo, para David Hume, em pleno século XVIII, a
legitimidade do conhecimento dependeria inteiramente da natureza humana e
de seus princípios, isto é, as operações mentais, aquilo cuja constância permite
explicar o resto do que deve ser explicado. Mas se, para Descartes, o
sentimento de si do indivíduo é o ponto de partida, para Hume não passa de
uma crença, de uma rede de impressões cuja explicação não pode ser
independente da natureza humana. Esta última, por meio dos princípios de
semelhança, contigüidade e causalidade, promove as associações que originam
idéias complexas a partir das sensações. Se a causalidade, princípio de
associação, configura unicamente uma crença, sendo ela também uma idéia
complexa, as bases metafísicas da prova da existência de Deus são destruídas,
do mesmo modo que o realismo, posto que a realidade das coisas fora de nós
passa a ser percebida como sendo, por sua vez, uma crença inferida por hábito
a partir das impressões sensoriais − comprovadamente pouco confiáveis,
imperfeitas −, o que se estende, aliás, ao próprio sujeito cognoscente. Na
verdade, mesmo se Hume definia a si mesmo como um cético mitigado, é
difícil imaginar, antes ou depois do filósofo em questão, um ataque mais
demolidor às bases mesmas do racionalismo.1
Mais perto de nós, leiamos a passagem seguinte de um livro que
Cassirer publicou originalmente em 1944:
O homem não pode escapar de seu próprio sucesso, não lhe
resta mais remédio do que adotar as condições de sua própria vida: já não
vive somente num universo puramente físico mas, sim, num universo
simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião constituem partes deste
universo, formam os diversos fios que tecem a rede simbólica, a trama
complicada da experiência humana. Todo progresso no pensamento e na
experiência refina e reforça esta rede. O homem já não pode enfrentar a
realidade de modo imediato; não pode vê-la, digamos, frente a frente. A
realidade física parece retroceder na mesma proporção em que avança sua
atividade simbólica. Em lugar de tratar com as próprias coisas, em certo
sentido conversa constantemente consigo mesmo. Envolveu-se em formas
lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos

1 Para um bom resumo das questões envolvidas, ver Aurox, Weil, 1975: p. 115-117.

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religiosos de tal forma que não pode ver ou conhecer coisa alguma senão
através da interposição deste meio artificial. (Cassirer, 1975: 47-8)

Nota-se que, muito antes de se poder falar em pós-modernismo,


bastante antes mesmo do estruturalismo de Lévi-Strauss, as conseqüências da
descoberta da dimensão semiótica para as concepções acerca da natureza
humana − desembocando, nessa opção radical, no homo simbolicus − já
haviam propiciado com toda clareza um pansemiotismo que faz pendant ao
anti-realismo.
A verdade, entretanto, é que certas lutas precisam ser empreendidas
uma e outra vez, empregando as armas que cada época põe à disposição dos
críticos das posições anti-realistas. Estas últimas e o realismo epistemológico
continuarão a ter de enfrentar-se, simplesmente porque não há como provar
que alguma das alternativas em combate seja certa ou errada. No máximo é
possível dizer, com Mario Bunge (1976: 319-321), que a ciência pressupõe o
realismo epistemológico; mas certamente não o prova, o que abre uma brecha
suficiente àqueles que preferem acreditar que a busca da verdade está além das
possibilidades dos seres humanos.

Pode o Homem conhecer a realidade − física, social − a ele exterior?

Criticando a teoria marxista do conhecimento, variante da teoria do


reflexo, escreveu Jacques Monod (1970: 56), prêmio Nobel de Biologia:
...os progressos da neurofisiologia e da psicologia experimental começam a
revelar-nos alguns dos aspectos, pelo menos, do funcionamento do sistema
nervoso. O bastante para que seja evidente que o sistema nervoso central
não pode, sem dúvida nem deve, entregar à consciência uma informação
que não esteja codificada, transposta, enquadrada em normas
preestabelecidas; em suma, assimilada e não simplesmente restituída.
Esta interpretação contém implicitamente uma falácia tomada como
postulado: a de que qualquer codificação signifique, necessariamente, não só
uma seleção ou simplificação como, também, uma deformação ou
deturpação da coisa codificada.
Será verdade que o sistema nervoso humano deturpe a realidade ao
pô-la ao alcance da mente pela coordenação, no cérebro, das informações
sensoriais? É estranho − e lamentável − que os debates a respeito da
possibilidade ou não do realismo costumem deixar de lado o que a
paleoantropologia e a neurobiologia contemporâneas possam ter a dizer sobre
o assunto.

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O que torna nossa espécie − o Homo sapiens sapiens ou, segundo outro
sistema de classificação, simplesmente Homo sapiens − algo à parte no mundo
animal não é, acredita-se hoje, a capacidade de fabricar instrumentos; e, sim, a
linguagem sofisticada que a caracteriza, única no quadro da zoologia terrestre
(Lewin, 1988: 170-186). Mesmo se, nestas últimas décadas, psicólogos e
especialistas em primatologia constataram experimentalmente um nível de
“discurso” impressionante no relativo a chimpanzés e gorilas no cativeiro,
usando linguagens de sinais gestuais − já que o aparelho de fonação dos
monos antropóides atuais não lhes permite falar, no sentido humano do verbo
−, trata-se de algo impressionante pelo fato de antes se crer na impossibilidade
de qualquer discurso da parte desses monos: fica muito aquém, no entanto,
mesmo da capacidade de falar e expressar-se de uma criança pequena.
O desenvolvimento da garganta nos humanos atuais, caracterizado
por uma faringe longa e uma laringe situada muito mais abaixo do que em
qualquer outro mamífero, incluindo todos os outros primatas, impede − e é o
único caso disto entre os mamíferos − que possamos engolir e respirar ao
mesmo tempo, o que parece um problema grave (Laitman, 1984: 20-27). Por
esta razão, se tal desenvolvimento esteve ligado ao da fala, como é provável, e
foi selecionado pela evolução, que vantagens evolutivas a fala apresenta para o
animal humano? O que é o mesmo que perguntar: como pôde emergir na
evolução de nossa espécie?
A resposta que primeiro vem à mente é que a linguagem humana
constitui um poderoso instrumento de comunicação, o mais sofisticado e
diversificado que existe neste planeta. Olhando para a evolução dos homínidas
primitivos, no final do Terciário e durante o Quaternário, um dos aspectos
marcantes, nela, foi a emergência de um modo de vida de coleta
vegetal/animal e mais tarde de caça, mais complexo do que o de qualquer
mono antropóide. A comunicação eficiente permitiria um controle mais
aperfeiçoado sobre tal modo de vida e uma monitoração melhor do meio
ambiente; propiciando, portanto, uma vantagem evolutiva que superaria a
desvantagem da possibilidade de morrer engasgado ao tentar engolir e respirar
ao mesmo tempo. Em outras palavras, a linguagem humana sofisticada seria o
resultado da economia cooperativa de coletores/caçadores e suas
complexidades: seria um elemento posto a serviço das tecnologias de
subsistência (entre elas a produção de instrumentos).2
Esta maneira de ver, que parecia convincente, começou a ser
desafiada pioneiramente, a partir dos anos 60, por Ralph Holloway, da

2 Esta visão do processo foi adotada, por exemplo, em Leakey, Lewin, 1977: p. 148-177. Os
autores posteriormente adotaram a opinião de Holloway, de que se falará a seguir.

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Columbia University. Holloway defendeu a noção de que o desenvolvimento


do cérebro se ligou ao da linguagem, e o da linguagem, mais às demandas
derivadas das interações e controles sociais do que às da tecnologia de
subsistência. Em função da complexidade das relações sociais − perceptível
também, em grau muito apreciável, mesmo nos monos antropóides atualmente
existentes −, o crescimento e a sofisticação do cérebro humano vincular-se-
iam à necessidade de construir um modelo especialmente complexo da
realidade, incluindo nisto o mundo material mas talvez sobretudo os outros
membros da mesma espécie, para entendê-los melhor e jogar eficazmente o
“xadrez social”, que inclui alianças cambiantes e a tentativa de manipular
alguns desses membros, em lugar de prender-se em forma principal a
injunções nascidas da comunicação com outrem e da elaboração da tecnologia
de subsistência.(Holloway, 1983:105-114; Leakey, Lewin, 1992: 252-311)
A função central do cérebro é construir um modelo de realidade
que permita ao animal existir neste mundo, nele funcionando e sendo
bem sucedido. Quanto mais complexos sejam a vida de um animal e os tipos
de interação com o mundo e com outros animais nela implicados, mais
complexa, também, tem de ser a estrutura do modelo de realidade
mentalmente construído. Assim, se um dos sentidos for
especialmente importante para a maneira de viver e atuar de um animal, a(s)
área(s) do cérebro associada(s) a tal sentido desenvolver-se-á(ão)
especialmente. Um sapo vive num mundo sobretudo visual, uma serpente
num mundo principalmente olfativo. Um cão elabora com alguma
complexidade visão (não-estereoscópica nem em cores), olfato e audição. Cada
sentido oferece uma avenida de acesso ao mundo: quantos mais sentidos
forem importantes para um animal, mais complexas têm de ser as avenidas
correspondentes mas, também, os circuitos mentais que permitam integrá-las
num todo, num modelo complexo do mundo. O modo de fazer isto, entre os
animais, é por meio do desenvolvimento do cérebro. Ora, a passagem de
anfíbio para réptil, de réptil para mamífero − como formas surgidas
sucessivamente na evolução das espécies − significou, em cada caso, cérebros
maiores e mais complexos. De modo análogo, entre os mamíferos, o cérebro
dos primatas é em média duas vezes maior em relação ao tamanho e ao peso
do corpo do que os cérebros dos outros mamíferos; e, entre os primeiros
homínidas conhecidos, os australopitecos, e o homem atual, o cérebro em
média triplicou. (Leroi-Gourhan, 1983; Leakey, 1994: 139-157)
O grande cérebro dos primatas não parece poder explicar-se, seja
porque sua subsistência exija uma intelectualidade tão mais desenvolvida, seja
porque explorem melhor seu meio ambiente no sentido da subsistência.
Quanto ao primeiro ponto, cada primata do passado ou do presente partilha

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o(s) meio(s) ambiente(s) em que vive e atua com muitas espécies não-primatas;
e não pode ser demonstrado que sua exploração da natureza para a busca de
alimentos seja superior a de tais espécies. O mesmo quanto à relação, por
exemplo, entre mamíferos e dinossauros: se a possibilidade de explorar nichos
ecológicos fosse maior nos mamíferos, o número de espécies deles deveria ser
superior, nicho a nicho, ao das espécies de dinossauros; ora, tal número é
grosso modo similar. E, no entanto, não há qualquer dúvida de que os
mamíferos tenham uma capacidade superior à dos dinossauros de construir
um modelo do mundo, ou de que tal capacidade seja maior, nos primatas, do
que nos outros mamíferos, ou ainda que, nos humanos, esteja muito acima da
dos demais primatas.
O que hoje se crê é que, embora a relação de subsistência com o
meio ambiente natural não seja mais eficiente ou exigente no caso dos
primatas do que nos dos outros mamíferos, a coisa muda se a comparação
versar sobre o meio ambiente social. O “xadrez social” jogado pelos primatas
é mais complexo do que o xadrez comum, já que as regras, derivadas de
alianças e antagonismos mutáveis no tempo, se transformam ou até se
invertem, o mesmo se aplicando ao papel e à hierarquia das “peças”
intervenientes no jogo. A importância desse jogo nas relações sociais, ao
estabelecer-se, leva à necessidade de uma infância protraída − de que os
filhotes passem muito tempo aprendendo o modelo mental do mundo, no
tocante à subsistência mas também à interação social −, sendo isto indicador
de uma retroalimentação entre diferentes níveis das interações sociais.
Assentada esta “escola de vida” entre os primatas como mecanismo de
sucesso, biologicamente falando, ela introduziu mecanismos de seleção
próprios. Os primatologistas estão de acordo em que não são os espécimes
mais fortes e mais agressivos aqueles que, entre primatas, conseguem mais
acasalamentos: são os mais capazes de jogar com sucesso o “xadrez social”.
Em função do anterior, alguns especialistas chegam a inverter o que
se afirmava antes: a necessidade de ganhar mais tempo para a socialização é
que teria forçado a melhorar as técnicas de subsistência entre os primatas,
ainda mais no caso dos humanos; por exemplo, quanto a estes últimos,
introduzindo carne na dieta, o que aconteceu, no tocante à caça de animais de
tamanho considerável, 1,6 milhão de anos atrás, na fase do Homo erectus; ou
talvez ainda antes, com o Homo habilis (Lewin, 1988: 178-180).
A psique humana compreende três componentes básicos. A
cognição inclui aprendizagem, lógica, raciocínio, capacidade de resolver
problemas. A emoção envolve coisas como sofrimento, depressão, excitação,
alegria. E a consciência é aquilo que permite ao homem dar-se conta do que
ele sabe, bem como tentar prever o futuro, o que inclui o conhecimento de sua

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mortalidade: com a consciência, a vida percebe-se a si mesma no mundo,


domesticando simbolicamente o tempo e o espaço. A consciência provê o
“olho interior” que possibilita a auto-análise e em seguida a aplicação do que
nela se aprenda, estendendo os seus resultados ao esforço de inteligência e
previsão das motivações de outrem − esforço este que informa os
antagonismos, as alianças, as defesas, as manipulações, no complexo jogo
social humano (Leakey, 1994: 139-157).
A linguagem dos homens − sem paralelo em sua complexidade no
mundo animal deste planeta − é acima de tudo um instrumento de construção
de um modelo complexo do mundo físico e social, mais ainda do que um
modo de comunicar e passar adiante instruções. O estudo paleoantropológico
das origens e evolução da linguagem articulada humana é dificultado pelo fato
de que o cérebro não se conserva nos fósseis − tem de ser estudado através de
moldes do interior dos crânios, o que é muito imperfeito, pois não basta uma
idéia de como é a superfície do cérebro para compreender como funciona,
onde nele se localizam as diferentes funções −, o mesmo se aplicando ao
aparelho fonador, que é cartilaginoso ou de carne e tem de ser inferido
indiretamente, por exemplo, analisando-se a formação progressiva de uma
base cranial curva nos homínidas, em contraste com uma base do crânio reta
nos outros primatas. A origem da fala articulada , no entanto, não tem por que
ocupar-nos aqui.3
O neurobiólogo Harry Jerison (1991) estudou a trajetória da
evolução cerebral e, em função dela, da mente, desde o início da vida em terra
firme. Baseando-se em seu estudo, eis aqui as conseqüências tiradas por
Richard Leakey (1994:144):
Qualquer dono de cachorro sabe que existe um mundo olfativo
aberto ao ser canino, mas não ao humano. As borboletas podem ver a luz
ultravioleta: nós não podemos. O mundo dentro da cabeça − no caso do
Homo sapiens, do cão ou da borboleta − é, pois, formado pela natureza
qualitativa do fluxo de informação do mundo exterior para o mundo
interior, e pela capacidade que tiver o mundo interior de processar a
informação. Há uma diferença entre o mundo real ‘lá fora’ e aquele
percebido na mente, ‘aqui dentro’.

E ainda:

“Na medida em que os cérebros aumentaram no curso do


tempo da evolução, mais canais de informação sensorial puderam ser

3 Ver, entretanto, para algumas das variadas opiniões a respeito: Bunak,1973: p. 127-134;
Lieberman, 1975; Lyons, 1988: p. 141-166; Tattersall, 1995: p. 245; Leakey, 1994: p. 119-138.

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manipulados de maneira mais completa, sua informação integrada mais


cabalmente. Os modelos mentais, por tal razão, passaram a equacionar as
realidades ‘lá fora’ e ‘aqui dentro’ mais de perto, embora, como foi
mencionado há pouco, com lacunas inevitáveis na informação.”

Assim, voltando à opinião de Jacques Monod com que comecei, ela


está em desacordo com a corrente principal do raciocínio tanto paleontológico
quanto neurobiológico da atualidade. E, dada a tendência explicativa que
domina agora nessas áreas, seria ainda menos válido afirmar que estejamos
pouco capacitados ao conhecimento adequado da realidade social.

Narrativa e mundo real: continuidade ou descontinuidade?

Que relação existe entre a narrativa e os fatos que descreve? Este é


um importante debate epistemológico, tendo a ver diretamente com a
veracidade (ou não) das explicações que assumem a forma de um relato, como
ocorre freqüentemente no caso dos textos históricos. Portanto, com os
debates envolvendo realismo e anti-realismo (neste caso acompanhado de uma
tentativa de estetização) no domínio específico do conhecimento histórico:
trata-se de decidir se a história produz textos científicos ou, meramente,
textos da mesma ordem dos da literatura ficcional.
Os historiadores tradicionais praticavam o realismo do objeto e
acreditavam na veracidade das narrativas históricas, desde que estas seguissem
certas regras de elaboração. Em anos recentes, porém, num assalto a tal
posição que não é o primeiro mas usa um vocabulário e argumentos por vezes
diferentes dos anteriores, filósofos, teóricos da literatura e certos historiadores
partem do princípio de que os fatos reais humanos não se agrupam como nas
narrativas, pelo qual, qualquer texto narrativo que deles pretender dar conta os
falseia necessariamente pela sua própria forma narrativa de ser. Em história,
este é um dos caminhos que conduzem ao ceticismo epistemológico,
habitualmente por meio do que se convencionou chamar de “virada
lingüística”, configurada na França pela “desconstrução” propugnada por pós-
estruturalistas como, por exemplo, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, nos
Estados Unidos, em especial, pelas propostas filosóficas de Richard Rorty, em
seguida por autores como Hayden White e Dominick LaCapra. (Kelley, 1996:
39-43) Neste texto, estarei seguindo as opiniões, contrárias a tal posição, de
David Carr, o qual afirma que, longe de deformar os fatos que relata, a
narrativa prolonga seus traços fundamentais. Em outras palavras, existiria uma

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comunidade formal de características entre a narrativa e a realidade humana,


tanto a individual quanto a coletiva.4
As teorias que afirmam a descontinuidade entre narrativa e realidade
argumentam com freqüência que a organização do texto em forma de relato
impõe aos fatos a que se refere uma estrutura em forma de relato com
começo, meio e fim − estrutura que procede do fato de narrar, não dos
próprios fatos vividos no mundo real. A narrativa não passa de produto de
uma construção do imaginário (da “imaginação histórica”, diz Hayden White);
não tem qualquer veracidade, mesmo quando apoiada em fontes, pois não se
trata de uma questão de documentação: tratar-se-ia de uma descontinuidade
profunda. Não há começo, meio e fim na vida individual ou coletiva: há mera
seqüência de eventos que “terminam” onde se quiser, mas nunca concluem,
posto que sempre existem um antes e um depois. Se acreditarmos nas
reconstruções narrativas, transformar-nos-emos em prisioneiros de um mito.
A narrativa simplifica − elimina ruído, no sentido dado ao termo pela teoria da
comunicação − e estrutura as coisas, mas isto nada tem a ver com o real, não o
representa adequadamente. Trata-se de uma característica do texto, de um
efeito textual: pertence unicamente aos textos, não à realidade.
Em outros termos: textos e realidades se situam em planos distintos,
que não há como aproximar. Ao se operar uma assimilação dos planos, cai-se
na ilusão, no escapismo, no desvio; ou mesmo, tal operação pode constituir
um instrumento de poder e manipulação.
Os que pensam assim dividem-se em suas opiniões quanto ao
mundo real. Alguns acreditam numa realidade contingente, aleatória, na qual
agem quando muito probabilidades estocásticas. Outros crêem numa realidade
determinada e causal. Mas, em qualquer hipótese, tratar-se-ia de uma realidade
externa ao conhecimento humano ou, pelo menos, estranha às tentativas de
reduzi-la a uma narrativa que de fato a representasse, reproduzisse ou imitasse.
A estratégia, na crítica às posições derivadas da “virada lingüística”,
pode variar. Convém, então, esclarecer em que sentido vão as contribuições de
David Carr de que aqui nos ocupamos. Trata-se acima de tudo de uma
resposta a teorias como as de Louis O. Mink e Hayden White, autores que,
para Carr (1991:89),
...propõem ser a coerência narrativa uma superposição extravagante mas
estranha e deturpadora [em relação à realidade social − C.F.C.], um sonho
de coerência onde de fato ela absolutamente não existe. Para eles, a loucura

4 Sintetizaremos as opiniões do autor segundo dois textos: Carr, 1986: p. 15-27 e Carr, 1991.
Não vemos razão de multiplicar as notas de rodapé ao proceder a tal síntese: fique claro que,
cada vez que mencionamos as noções defendidas por Carr, a base são estes dois textos.

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consiste em supor que o mundo real tem coerência narrativa, quando o


realista convicto deveria supostamente reconhecer que não a tem.
Diante de teóricos que, como Hayden White e (ainda mais
radicalmente) Hans Kellner, neguem a existência, lá fora, de uma história que
precise ser contada (White, 1994: 23-48; Kellner, 1989), uma forma possível de
crítica consiste em demostrar que a história em questão existe sem dúvida lá
fora, isto é, no relativo aos indivíduos e grupos humanos; e que, portanto,
pode e deve ser contada. É esta a estratégia de Carr. Seus argumentos contra a
descontinuidade e a favor da continuidade entre a narrativa e o mundo social
real se organizam em dois níveis: o dos indivíduos e o das coletividades.
Tratemos de resumir, de início, o que tem a dizer no tocante ao patamar
individual.
Segundo Husserl, mesmo a experiência mais passiva inclui a
retenção do passado imediato e a antecipação tácita do futuro, que chama de
“protensão”. Não é possível viver algo como presente se não for em
confronto com aquilo a que tal momento sucede e com o que antecipamos
que sucederá ao momento em questão. Na vida ativa, com maior razão,
consultamos experiências passadas e prevemos o futuro: o presente é só um
trânsito do passado ao futuro. Se o que ocorre na experiência é um
instrumento ou um obstáculo a nossos projetos, desejos e esperanças, a vida
não se configura como uma seqüência desestruturada de eventos isolados.
A estrutura da ação (passado/presente/futuro, começo/meio/fim) é
comum ao texto e à vida, à narrativa e à realidade. Quem propõe a
descontinuidade, afirmando que na vida real não há começo, meio e fim,
esquece não só o nascimento e a morte como, também, inúmeras formas
menos definitivas de estruturações dotadas de inícios e conclusões. Por que
um início não seria real, na vida, só pelo fato de que antes dele aconteceram
outras coisas? Ou por que não o seria um fim, só porque depois vieram outros
eventos?
A estrutura dos acontecimentos da vida é complexa quanto às
estruturações temporais: configurações imbricam-se em durações distintas, que
se entrelaçam e recebem definição e significado a partir da própria ação. O
fato de que haja diferenças entre os projetos humanos e o que deles de fato
resulta traz suspense; mas não faz da ação ordinária um caos desconexo.
Outro modo de argumentar a favor da descontinuidade consiste em
dizer que na vida não há um narrador (um historiador), nem um público leitor.
O relato não só organiza: escolhe, simplifica, elimina as interferências e o
ruído. Unicamente uma minoria de fatos e ações se incorpora ao relato. Na
vida, nada disso é verdadeiro: permanecem todas as interferências e
incoerências, todo o ruído. Outrossim, a posição ex post do narrador que

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escreve um texto permite correlações e deduções totalmente invisíveis (e


impossíveis de estabelecer) para os que viveram o processo que se pretende
estar narrando ou relatando. Por isso mesmo, retrospectivas e antecipações são
possíveis no relato, não na vida real. Na verdade, três pontos de vista acerca da
seqüência de que se estiver tratando são os que interferem: 1) do narrador; 2)
do público; 3) dos personagens. No caso da história, os personagens não têm
acesso à organização dos eventos que, a posteriori, é proposta pelo historiador:
na vida real, ninguém narra os eventos nem os transforma num relato, posto
que narrar supõe um conhecimento externo e superior.

Para criticar esta postura, Carr retoma Husserl: o presente é um


ponto de vista que se abre para o passado e para o futuro. O futuro figura, na
experiência, como uma potencialidade do que ainda vai acontecer. As ações
humanas são teleológicas, orientadas a um fim; isto é, orientadas para um
futuro que se projeta. O centro da atenção, na vida ativa, longe de residir no
presente, está no futuro. Na visão de Heidegger, não se trata das ferramentas
mas, sim, do trabalho a realizar.
Isto acontece tanto quando estamos em plena ação quanto ao haver
um distanciamento reflexivo e deliberado, como por exemplo ao formularmos
projetos, avaliarmos e revisarmos as circunstâncias que mudam, o já realizado
e o que falta em dada seqüência de tarefas, etc. A deliberação é antecipação do
futuro, é o que unifica a ação em passos, etapas, meios e fins. É óbvio que ela
não pode estar limitada ao presente. É claro, também, que na vida há
incoerências e ruído ou estática que, ao deliberarmos acerca do que fazer, não
temos como eliminar; simplesmente, nós reconhecemos a sua existência e os
descartamos das análises.
O futuro é aqui só imaginado ou planejado: não se trata,
obviamente, da posição ex post do historiador, pois esta última é real, não
aparece limitada por circunstâncias que, na vida real, podem furar toda e
qualquer previsão ou projeção do futuro. O que importa, porém, para o
argumento, é que mesmo um futuro projetado ou previsto cria, na vida real, a
possibilidade de transformá-la em relato coerente − para nós mesmos ou para
outros com que falemos − e em função do qual se possa agir. A atividade
narrativa, neste sentido, é parte inseparável do plano de ação, não é só algo
incidental ou externo. A vida não somente se vive, ela se relata, se conta o
tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqüência mudamos o
relato, ou seja, nossa visão acerca da vida, para levarmos em conta novos
eventos incidentes; mas também tentamos, na medida do possível, mudar os
eventos para salvar o relato, isto é, o plano, a versão, o futuro projetado. É
absolutamente falso pretender que primeiro vivamos e só depois contemos o

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que fizemos − falseando-o ao narrá-lo −, já que a narração retrospectiva não é


oposta à visão do agente, é apenas um refinamento e extensão de um ponto de
vista que está embutido na própria ação anteriormente efetuada. Em suma, a
ação narrativa é prática antes de ser cognitiva ou estética. Minha história de
vida é contada − a mim mesmo ou a outros − já enquanto vou vivendo e, não,
unicamente depois; ela é contada no decorrer do próprio processo de viver.
Uma posição similar à de Carr foi exposta por Eric Hobsbawm
(1997: 38):
...a parte maciçamente predominante da ação consciente humana que se
baseia na aprendizagem, na memória e na experiência constitui um vasto
mecanismo para confrontar constantemente o passado, o presente e o
futuro. As pessoas não podem deixar de tentar prever o futuro através de
alguma forma de ler o passado. Elas têm de o fazer. Os processos
ordinários da vida humana consciente, para não mencionar a tomada
pública de decisões, exigem-no.

Vou agora tratar dos argumentos de David Carr, no tocante à


continuidade entre narrativa e mundo social real, quanto ao nível coletivo.
A palavra “nós” às vezes significa só uma forma abreviada de reunir
atores individuais. Mas nem sempre. A vida social inclui casos importantes em
que os indivíduos participantes atribuem, mediante a própria participação, a
sua experiência e as suas ações a um sujeito maior, a um agente coletivo de que
cada um deles faz parte.
Podemos, então, estender do eu para o nós o que se disse
anteriormente: o tempo social humano, tal como o tempo individual, constrói-
se tendo como base seqüências configuradas ou estruturadas que integram
fatos e projetos da ação e da experiência comuns. Também neste caso, a
estrutura do tempo social real é narrativa. Em cada presente, é a projeção
prospectiva/retrospectiva que lhe dá sentido e configuração, unificando os
fatos e ações num projeto reconhecível quanto aos objetivos.
Há, por certo, uma particularidade, ao se tratar de coletividades: a
divisão do trabalho multiplica os pontos de vista e os papéis. Narrador,
público e personagens podem ser pessoas diferentes. Certos indivíduos podem
falar em nome do grupo e relatar o que “nós” estamos querendo ou fazendo.
É preciso, sem dúvida, que o relato em questão seja aceito pelo grupo. Nem
todos os grupos são um “nós” consciente: pode tratar-se de um “eles”
somente estatístico, unificado por residência, sexo, etnia, posição numa
estratificação econômica, etc. Entretanto, as próprias características objetivas
que configuram um “eles” estatístico − alguma(s) dessa(s) característica(s) −
em certas circunstâncias podem servir de base ao surgimento de uma

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Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 59

comunidade, de um “nós” consciente e disposto a uma ação concertada: nós


os socialistas, nós os negros, nós as mulheres, nós os democratas etc.
Para que aconteça algo assim, é preciso um relato articulado, aceito e
interiorizado que diga das origens e destinos da comunidade de que se tratar e
interprete o presente em função do passado reconstituído e do futuro
projetado. Sem isto, não há como conservar o grupo coeso contra ameaças
externas e eventual fragmentação interna, nem como mantê-lo agindo como
grupo. De novo, a função narrativa é prática antes de ser cognitiva, é parte e
condição sine qua non das ações sociais organizadas. Não se trata, também
aqui, de uma reconstituição ex post, mas de algo embutido na própria ação.
Obviamente, as comunidades em questão, os grupos de que se falava, podem
ser efêmeros ou duráveis, mais ou menos vastos e importantes: nações-Estado,
grupos lingüísticos ou religiosos, uma igreja, uma faculdade, um partido ou
facção etc.
O “eu” e o “nós” de que se falou não configuram realidades físicas:
mas têm existência real, não são meras ficções; e se baseiam sempre em
relatos ou narrativas. Por isto, os textos históricos, narrativas eles também, não
são um desvio ou deturpação da estrutura dos fatos ou processos de que
falam, que narram: são uma extensão legítima de suas características
intrínsecas.
O processo narrativo prático de primeiro nível, constitutivo de uma
pessoa ou de uma comunidade, pode converter-se legitimamente em processo
narrativo de segundo nível, cognitivo. Isto acarretará mudanças no conteúdo.
Um historiador pode contar a história de uma comunidade de um modo muito
diferente de como a comunidade narrava-se a si mesma por meio de seus
dirigentes, cronistas, jornalistas, clérigos, etc. Mas a diferença não residirá na
forma. As narrativas de segundo nível não refletem ou reproduzem,
simplesmente, as de primeiro nível que tomam como tema: elas as mudam e
melhoram o relato, mesmo porque sem dúvida se aproveitam da posição ex
post do historiador. Mas não é verdade que a forma narrativa, própria do
segundo nível, inexista no primeiro e que, por isto, narrativa e realidade vivida
sejam irreconciliáveis, existam em planos distintos que não façam intersecção.
Até aqui os argumentos de Carr. Recordarei que há outras formas −
preferidas por Paul Ricoeur num nível filosófico e retórico, ou por Roger
Chartier numa discussão intrínseca à “operação histórica” − de opor-se aos
efeitos anti-realistas da “virada lingüística”. Ricoeur, por exemplo, propõe
reformular o realismo espontâneo do objeto que, na sua maioria, praticam
implícita ou explicitamente os historiadores, mediante a ligação da história-
disciplina com uma teoria da ação e por uma consideração, à maneira de
Michel de Certeau, dos elementos que justificam a continuidade entre a práxis

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dos historiadores e a práxis humana em geral (desembocando num “realismo


crítico”) (Ricouer, 1994: 7-24). Roger Chartier, que também invoca de Certeau,
defende o status da história como prática científica devido à existência, nela, de
regras que permitem controlar operações por meio das quais se produzem
determinados enunciados científicos (Chartier, 1994: 111; Hobsbawn, 1997:
266-277). Por fim, há aqueles que escolhem o caminho da ética, enfatizando os
efeitos socialmente deletérios decorrentes, sem escapatória, da evacuação nos
estudos históricos da noção de verdade − evacuação resultante da
“desconstrução” e da “virada lingüística” (Vidal-Naquet, 1987; Himmelfarb,
1995: 122-161).

À guisa de conclusão

Em seu último livro, o historiador Christopher Lasch, falecido em


1994, traça os contornos do que chama de “novas elites”, de natureza
profissional e gerencial, baseadas mais na manipulação de informação e de
conhecimentos profissionais do que no controle da propriedade ou do capital;
fascinadas, no entanto, pelo jogo do mercado e engajadas numa luta frenética
para aumentar os seus ganhos. Intelectualmente, caracteriza-as uma “cultura
do discurso crítico” − e, eu acrescentaria, do “politicamente correto”. Estas
novas elites também se distinguem das do passado por se reconhecerem muito
mais como integrantes de um sistema internacional que não aceita fronteiras
do que como estando ligadas a um Estado-nação específico.
Declarando-se tolerantes por princípio, os membros dessas novas
elites,
Quando confrontados com resistência a [suas] iniciativas, traem
o ódio venenoso que jaz não muito abaixo da face sorridente da
benevolência de classe média. A oposição (...) [lhes] faz esquecer as virtudes
liberais que afirmam defender. Tornam-se petulantes, auto-justificativos,
intolerantes. No calor da controvérsia política, acham impossível ocultar
seu desprezo por aqueles que teimosamente se recusam em ver a luz:
aqueles que ‘simplesmente não entendem’, na linguagem satisfeita consigo
mesma do politicamente correto. (Lasch, 1995: 28)

Isto se ajusta como uma luva aos pós-modernos. Também eles


pretendem estar combatendo a intolerância, a “evacuação de saberes
alternativos” a partir de discursos que, dos “lugares de onde falam”, exercem
um “poder do saber” que revela um “saber do poder” − ou do “desejo de
dominação”. Sim, mas... Mas, farisaicamente, ninguém costuma ser mais

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Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 61

intolerante do que um pós-moderno no debate intelectual. Mesmo porque,


para quem jogou o racionalismo às urtigas, seja com os argumentos que for, o
remédio é tentar calar o adversário a golpes de afirmações apodíticas e
retóricas. Ou a golpes de ironia: recorde-se, a respeito, o “riso filosófico
silencioso” recomendado por Foucault diante dos que insistam em falar do
homem depois de ter o filósofo francês proclamado a sua morte. Não me
parece, outrossim, que a semelhança com o que diz Lasch sobre as novas elites
seja casual: pelo contrário, elas são a base social fundamental do pós-
modernismo, sobretudo em partes do mundo que contam mais na emergência
e reprodução da corrente, como os Estados Unidos ou os países da Europa
Ocidental. (Callinicos, 1991: 170-171)
A arrogância pode ocultar debilidades ou aporias insolúveis. Isto é
verdade também no plano epistemológico. Vou exemplificar. Lawrence
Cahoone inclui, entre os fundamentos da postura dos pós-modernos, o que
chama de crítica da transcendência das normas, levada a cabo em favor da
afirmação de sua imanência. Seria falso pretender que uma categoria de coisas
− as normas − possa independer da semiose, da experiência, ou de interesses
sociais delimitados. Isto os leva a responder às pretensões normativas de
outros mediante a exposição dos processos de pensamento, escrita, negociação
e poder que, segundo eles, as produziram. Ocorre, entretanto, que os pós-
modernos não se privam de ter suas próprias pretensões normativas: pelo
contrário, são bastante vociferantes a respeito. Como impedir, então, que o
feitiço se volte contra o feiticeiro e seu discurso normativo seja submetido a
uma análise crítica metodologicamente de corte pós-moderno, mas que torne
impossíveis todas as pretensões pós-modernas ao estabelecimento de normas
(as que partam do multiculturalismo como valor, por exemplo)? (Cahoone,
1996: 15-16).
Este artigo teve objetivos limitados. Quis mostrar, escolhendo dois
pontos bem delimitados no campo do debate atual entre realismo e anti-
realismo, que as posições pós-modernas a respeito são, no fundo, bastante
débeis. No tocante aos itens especificamente abordados, num caso ignoram de
todo a questão das bases do conhecimento do mundo e do social pelos
primatas e pelo homem atual como vem sendo enfocada recentemente pela
paleoantropologia e pela neurobiologia: um enfoque que vai em sentido
contrário ao que seria necessário para apoiar o anti-realismo. No outro, os
argumentos de David Carr − que, ironicamente, volta contra os pós-modernos
uma parte de seu próprio arsenal filosófico, ao usar na crítica a eles Husserl e
Heidegger − mostram carecer de substância o divórcio entre narrativa e
realidades humanas (individuais e coletivas) que alguns integrantes da “virada
lingüística” pretenderam estabelecer, por meio de uma abordagem retórica

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parcial − trópica e, no âmbito da trópica, concentrada na ironia − da história


escrita pelos historiadores.
O anti-realismo, nas ciências sociais, não é politicamente inocente.
Independentemente das intenções − e a sabedoria popular afirma que o
caminho do inferno está atapetado de boas intenções −, conduz à idéia de que
todas as versões se equivalem, enquanto qualquer pretensão a um horizonte
mais holístico ou geral seria ilusória, impossível, perversa ou voltada para a
manipulação. Não é possível enfrentar o establishment para valer, isto é, num
sentido que não seja o de meras lutas parcializadas, sem uma visão holística do
social a partir da qual se proponham alternativas. Concluirei citando uma
passagem de Eric Hobsbawm (1997: 277) que conta com minha total
aprovação:
Uma história destinada unicamente aos judeus (ou aos afro-americanos,
ou aos gregos, ou às mulheres, ou aos proletários, ou aos homossexuais)
não pode ser boa história, embora possa ser uma história consoladora para
os que a praticam.

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