Você está na página 1de 6

Seria falta de imaginação ou pura preguiça?

: a produção de
ontologias políticas a partir da performatização de
identidades LGBTQ em séries de televisão
Vanessa Azambuja de Carvalho1
Lucas Riboli Besen2

Este trabalho tem como tema a construção e performatização de personagens


Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Trangêneros e Queer (LGBTQ) em
séries de televisão e a sua relação com a visibilização de pautas e experiências de pessoas
LGBTQ no que tange a representação dessas identidades enquanto formas possíveis e
múltiplas de ser/estar no mundo. Busca-se, a partir de uma etnografia simétrica (Latour,
2009), seguir as discussões públicas sobre representatividade das experiências LGBTQ
em séries de televisão a partir do questionamento do uso de tropos narrativos clichês e
não-clichês e os seus respectivos impactos nas vidas de pessoas LGBTQ. Para tanto,
definimos como recorte de pesquisa as discussões sobre tais tropos narrativos utilizados
para construir e performar protagonistas LGBTQ em séries veiculadas pelo serviço de
streaming online Netflix, em particular The 100, Sense8, 3% e Wynonna Earp.
Entendemos o conceito de tropo assim como trabalhado por Duarte (2018) quando
esta questiona as construções narrativas produzidas pela ciência médica para mulheres
diagnosticadas com o vírus HIV. Segundo a autora, o conceito de tropo possui muitos
sentidos dentro da teoria literária, mas são comumente utilizados enquanto dispositivos
poéticos para a construção de sentidos dentro de um texto (a metáfora e a ironia seriam
alguns desses exemplos). Contudo, desde os primeiros anos do século XXI, o conceito
adquiriu um novo sentido, advindo dos estudos de cinema e TV e da literatura. Segundo
a autora,

1 Mestranda em Psicologia Social e Institucional, PPGPSI/UFRGS, azambujadecarvalho@gmail.com.

2 Doutorando em Antropologia Social, PPGAS/UFRGS, misterbesen@gmail.com.

1
[...] tropo começou a ser utilizado de maneira mais sistemática como termo que
sumariza o uso das figuras de linguagem na criação de “uma imagem
universalmente identificada imbuída com diversas camadas de significado
contextual criando uma nova metáfora visual” (Rizzo, 2005). O tropo passou
a descrever, neste contexto, os temas e clichês recorrentes que sempre são
usados para certos tipos de narrativas ou de personagens reproduzindo e
ajudando a produzir interpretações carregadas [...] de significados culturais.
(DUARTE, 2018, p. 84)

Logo, utilizamo-nos do conceito de tropo enquanto um dispositivo narrativo


utilizado dentro de séries de televisão de forma a apresentar certos personagens de
maneira mais rápida ao público. Contudo, como Duarte aponta, o uso de tropos também
pode cair em armadilhas narrativas, como a planificação e simplificação de personagens
ou a sua utilização apenas para o desenvolvimento de outro personagem – por exemplo,
o tropo da donzela em perigo, empregado como forma de produzir motivação para
personagens masculinos em filmes/séries de ação.
Nesse sentido, nos últimos anos, tem crescido a discussão sobre os tropos
utilizados na representação de personagens femininos e LGBTQ, principalmente na sua
secundarização em relação a personagens masculinos cisgêneros heterossexuais. Parte
desse movimento engloba a séries majoritariamente internacionais de produção
Estadunidense ou Canadense. Porém, com essas séries sendo exibidas no Brasil pelo
serviço de streaming online Netflix logo após seu calendário de exibição no exterior ou
ainda conjuntamente com sua veiculação internacional, essas séries se tonaram relevante
para o público brasileiro. Séries como Sense8 e Wynonna Earp tem transmissão exclusiva
no Brasil pela Netflix. Nesse estudo ressaltamos o movimento online que surge pensando
a representação de tropos clichês e não clichês de personagens LGBTQ femininos e
masculinos.
Para ilustrar citamos o movimento “LGBT Fans Deserve Better”, que surge
exigindo uma representação mais plural dos personagens das histórias televisivas. Tal
ação começou como uma reação a morte violenta e súbita da personagem Lexa na terceira
temporada da série The 100. Lexa era uma personagem lésbica guerreira, independente,
comandante do seu povo e destaque na narrativa principal da série. Entretanto, seu fim
brusco se deu por um tropo clichê ao ser assassinada por uma arma de fogo subitamente

2
no mesmo episódio que teve a primeira cena de sexo entre ela e a personagem Clarke,
protagonista bissexual do seriado. Essa ligação entre um momento afetivo explícito entre
as duas e o assassinato causou uma comoção em diversas redes sociais, como Twitter,
Tumblr e Instagram, surgindo a hashtag #LexaDeservedBetter, culminando em uma
concentração de milhares de mensagens de pessoas falando sobre seus sentimentos acerca
desse tropo. Diversas pessoas ao redor do globo se conectaram a partir dessas mensagens
e decidiram fazer ações em conjunto, formando um movimento internacional. Uma das
ações desse movimento foi a criação de uma organização sem fins lucrativos com
voluntários de todas as partes do globo, intitulada LGBT Fans Deserve Better
(LGBTFANSDB) que se uniu à missão de educar as pessoas sobre a representação das
identidades e experiências LGBTQ em séries televisivas. A ONG tem como objetivo ser
um recurso que permita que o público aprenda mais sobre os problemas enfrentados pela
comunidade LGBTQ em relação à sua representação midiática, produzindo espectadores
e criadores mais críticos e informados, resultando em histórias mais criativas e
representativas das experiências e das identidades LGBTQ (LGBTFANSDB, 2018).
Um dos tantos desdobramentos desse movimento foi a criação da convenção
CLEXACON, como o primeiro e maior evento multi-fandom para mulheres e aliados
LGBTQ. O nome é uma alusão ao par que iniciou o movimento, o casal Clarke e Lexa da
série The 100, cujo o apelido é Clexa. O objetivo da convenção é capacitar os criadores
de mídia a produzir e distribuir mais conteúdo LGBTQ positivo, fornecendo recursos
educacionais para a comunidade afim de produzir uma melhor representação nas mídias.
A CLEXACON busca estabelecer as bases para uma melhor visibilidade dentro da mídia
e, ao mesmo tempo, incentivar mais mulheres LGBTQ a participarem na criação das
histórias que desejam. A convenção já teve duas edições em Las Vegas, Estados Unidos
da América (EUA) e a próxima edição ocorrerá em Londres, Inglaterra. Na convenção
desse ano, diversos painéis abordaram temas sobre a criação de narrativas televisivas e a
representação LGBTQ (CLEXACON, 2018). A web-serie brasileira RED participou da
seleção oficial do Festival de Filmes da CLEXACON de 2018, com a representação de
um casal de mulheres lésbicas. Nessa edição da convenção, a dupla de atrizes

3
protagonistas viajou aos EUA para encontros com fãs, bate papos e outros eventos. Tal
fato destaca o caráter de abrangência internacional desse espaço.
As ações descritas acimas nos auxiliam de exemplos para pensar as disputas
acerca dos tropos utilizados para a representação das experiências e identidades LGBTQ
nas séries televisivas. Portanto, seguimos esse estudo tendo aquelas como pontos da rede
de análise. Em termos metodológicos, seguimos os pressupostos dos pesquisadores da
Teoria Ator-Rede, assim como definidos por Bruno Latour em dois momentos diferentes
– a saber, nos livros Jamais Fomos Modernos (2009) e Reagregando o Social (2012).
Segundo Latour (2009), uma etnografia simétrica deve seguir duas grandes regras
metodológicas. A primeira, referente à parte adjetiva do conceito, remete-se ao fato de
que se deve tratar ambos os lados da disputa analisada nos mesmos termos. Ou seja, um
simétrico não se permite utilizar diferentes explicações para um mesmo evento, ou, no
caso estudado, dar apenas atenção para o uso de tropos considerados clichês e não os
justapor com aqueles eleitos como exemplos positivos pelas pessoas LGBTQ. A segunda,
referente à parte substantiva do conceito, remete-se aos termos utilizados nessa
explicação e durante a sua observação. Segundo Latour, devemos observar como os
sujeitos, na compreensão e produção dos fatos, constroem e perfomam verdades,
apresentadas enquanto “caixas-pretas”, ou seja, não sendo necessárias a sua explicação.
Ao etnografarmos esse processo de produção de verdades e obviação do mundo, podemos
melhor entender como que a performatização de identidades LGBTQ pode melhor
produzir e ordenar as múltiplas realidades dos sujeitos que assistem às séries e como esse
processo pode acabar por gerar movimentos e pautas políticas por representatividade.
Em sintonia com o pensamento de Latour (2009), utilizamo-nos das proposições
de Mol (2008) para melhor entender as questões imbricadas nas disputas pelas
performatização de narrativas representativas da multiplicidade das identidades LGBTQ.
Para tanto, lançamos mão do seu conceito de ontologias políticas. Para Mol, o primeiro
termo refere-se ao que, na linguagem filosófica comum, pertence ao real, às condições de
possibilidade com que vivemos. Logo, a sua justaposição com o termo política sugere,
logo, que tais condições não estão dadas de partida, ao contrário, a realidade não precede

4
as práticas banais nas quais interagimos com ela, mas, sim, sendo modelada por elas.
Portanto, o segundo termo sublinha o modo ativo pelo qual este processo aberto de
modelação é constantemente contestado.
O conceito, como trabalhado por Mol (2008), está intrinsecamente relacionado a
sua noção de que a realidade não pode ser entendida enquanto plural (tendo uma forma
que é significada de diferentes maneiras), e sim múltipla: sua realidade se faz na sua
performance; uma vez mudado o sitio de interesse, muda-se a performance da realidade.
Para a pesquisadora,
Falar da realidade como múltipla depende de outro conjunto de metáforas. Não
as de perspectiva e construção, mas sim as de intervenção e performance. Estas
sugerem uma realidade que é feita e performada [enacted], e não tanto
observada. Em lugar de ser vista por uma diversidade de olhos, mantendo-se
intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários instrumentos,
no curso de uma série de diferentes práticas. [...] Mas, enquanto parte de
actividades tão diferentes, o objecto em causa varia de um estádio para o outro.
Aqui é um objecto carnudo, ali é um objecto espesso e opaco, além é um
objecto pesado. Nas histórias de performance, a carnalidade, a opacidade e o
peso não são atributos de um objecto único com uma essência escondida. Tão
pouco é função dos instrumentos pô-los à mostra como se fossem vários
aspectos de uma realidade única. Em vez de atributos ou aspectos, são
diferentes versões do objecto, versões que os instrumentos ajudam a performar
[enact]. São objectos diferentes, embora relacionados entre si. São formas
múltiplas da realidade – da realidade em si. (MOL, 2008, p. 66)

Nesse sentido, entendemos que o conceito de ontologia política nos ajuda a pensar
as disputas político-sociais estudadas no que tange a representatividade das narrativas dos
personagens LGBTQ. Se compreendemos a performance como um momento múltiplo de
produção e ordenamento do mundo, passamos, então, a entender as narrativas desses
personagens como formas possíveis de ser e habitar o mundo – ou, quando da utilização
de tropos clichês e/ou negativos, como a impossibilidade dessa vivência. Logo,
atentarmos para essa disputa narrativa é também colocar a política enquanto algo
produzido cotidianamente, seja nos palanques ou nas histórias contadas através de um
monitor. O achatamento e a secundarização de narrativas de personagens LGBTQ tem
como efeito colocar certos ordenamentos e performances enquanto impossibilidades
político-sociais ou, nos termos de Mol, enquadrar algumas ontologias políticas como
impraticáveis, inexistentes socialmente.

5
Ao produzir debates e discussões acerca dos tropos narrativos, os indivíduos
LGBTQ começam a disputar as ontologias políticas que estão sendo colocadas como
sendo as únicas possíveis, produzindo novos ordenamentos e possibilidades de ser/estar
no mundo. E os seus efeitos são multiplicados em novas discussões, representações e
séries lançadas dentro do mundo do streaming, assim como a obrigatoriedade de resposta
e de satisfação das empresas e produtoras sobre os seus “maus usos” de personagens
LGBTQ. Disputar os tropos é também multiplicar mundos e possibilitar que outras
identidades e sexualidades possam vir a ser visibilizadas em novas narrativas.

Palavras-chave

Tropo; identidades LGBTI; ontologia política; séries de televisão; performance.

Referências bibliográficas

CLEXACON. Our Vision: To empower and connect the LGBTQ+ community.


Disponível em: <https://clexa-con.com/about/vision/> Acesso em: 28 Abril 2018.

DUARTE, Larissa Costa. “A AIDS tem um rosto de mulher”: discursos sobre o corpo
e a feminização da epidemia. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Março,
2018.
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 2009.
______________. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede.
Salvador: Edufba, 2012.
LGBT FANS DESERVED BETTER. Mission Statement. Disponível em:
<https://lgbtfansdb.com/about-us/> Acesso em: 28 Abril 2018.
MOL, Annemarie. “Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas”. In: NUNES,
João Arriscado; ROQUE, Ricardo (org.) Objectos impuros: Experiências em estudos
sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2008, pp. 63-77.

Você também pode gostar