Você está na página 1de 12

1.

Gravidade1

2. Guia de Sobrevivência da Pandemia de Covid-192


3

Observado referidos números, foi, assim, com grande choque e polêmica a recepção da
aparente embrionária campanha publicitária do governo federal titulada "o Brasil não pode parar".
A propaganda, segundo a revista Época 4, já havia circulação nos grupos de WhatsApp da
militância bolsonarista em meados do mês de março. Nela, através de mídia visual, ocorre a
divulgação do "isolamento vertical", assertivamente referenciado por Jair Bolsonaro, o qual se
baseia na priorização da quarentena para grupos de riscos e idosos, permitindo com que os demais
voltem à rotina de trabalho flexibilizada; normal. A saber, o conteúdo da campanha, afirmado
através de seu locutor, fora transmitido dessa maneira:

Para os pacientes das mais diversas doenças e os heroicos profissionais de saúde que deles
cuidam, para os brasileiros contaminados pelo coronavírus, para todos que dependem de
atendimento e da chegada de remédios e equipamentos, o Brasil não pode parar. Para
quem defende a vida dos brasileiros e as condições para que todos vivam com qualidade,
saúde e dignidade, o Brasil não pode parar5.

1
Na astrofísica, ao invés de uma força inerente, a gravidade é compreendida como uma flexão do contínuo espaço-
tempo. Pensamos na apresentação do estado da arte da Pandemia de Covid-19, que é o tema central da notícia a qual
escolhemos abordar, em conjunto com a forma de geri-la pelas autoridades governamentais, como uma tomada dual
da palavra gravidade: não só grave na profundidade que se tomou, mas também em situação análoga à gravidade,
como uma interferência tamanha no espaço-tempo capaz de alterar todo o percurso da humanidade. Ela marca,
portanto, o modo como resolvemos abordar a intersecção entre o Direito Penal e o Direito Internacional no trato da
notícia, quer dizer, através de amálgamas e contrapontos com conceitos astrofísicos, para trazer leveza a um tema
que é grave por natureza, mas também para explicar de uma forma dinâmica o que se quer tratar.
2
O título faz referência a um livro famoso na astrofísica, que trata de buracos-negros: ‘Black Hole Survival Guide’.
Aqui, será demonstrada de forma mais específica como atuaram as autoridades governamentais, especificamente
representadas na figura do Chefe de Estado do Brasil, na prevenção e no controle da pandemia de Covid-19. Isso
será feito para suscitar a pergunta que norteará o futuro debate, qual seja, seria essa própria (ausência de) gerência
que incorreu nos graves efeitos sofridos pela população brasileira arrebatada pelo vírus? Se sim, os responsáveis por
ela poderiam ser penalizados a nível internacional? É o que se verá.

4
AMADO, Governo lança campanha Brasil não pode parar.
5
CARVALHO, "Brasil não pode parar": campanha de Bolsonaro contra isolamento vai parar no TCU.
Caso se analise atentamente a relação feita na campanha, há uma tentativa de polarização,
comum entre a ala conservadora ideológica da população brasileira, entre salvar vidas ou a
economia. Apela-se, inclusive, para valores morais e emocionais através do molde de mártir dos
profissionais de saúde, ligando à importância do trabalho deles para com a saúde em equidade com
os demais cidadãos na manutenção do sistema econômico do país. Isso é, confunde-se a
essencialidade da profissão dos serviços médicos e hospitalares, ao realizar o comparativo, uma
vez que essa distinção é feita pela própria legislação, no dispositivo de lei nº 7.783, art. 10, inciso
ll.
Não obstante a confusão, importa, também, uma mediação crítica acerca da polarização
feita. Não existe, verdadeiramente, uma oposição e uma separação entre a proteção à saúde da
população e a proteção à economia e aos empregos da mesma população, conforme consta na
propaganda. É, tão somente, um aspecto compartilhado mundialmente as medidas restritivas em
matéria de saúde e os impactos econômicos advindos delas. Se, portanto, o brasil não adotar
severamente as decisões de contenção da propagação do vírus, há a possibilidade de o país ser
visto como uma ameaça àqueles que o estão combatendo, culminando, então, em um futuro
isolamento econômico.
Em ótica semelhante, a flexibilização das medidas de distanciamento social fatalmente
encaminhará à propagação do vírus, passível de confirmação através da observação da ampla
experiência internacional, e, dessa forma, resultar-se-á na necessidade de medidas de restrição
populacionais ainda mais graves. Conclui-se, por fim, que a demora e a irresponsabilidade nas
decisões sobre o impedimento da disseminação do vírus tendem a aumentar os riscos de efeitos
negativos à economia, o que nos traz à última constatação - sem uma proteção à saúde pública,
não há retorno saudável a um funcionamento estatal em situação de normalidade, conectando a
economia à uma relação de interdependência.
É válido apontar, ainda, a descaracterização política da decisão de flexibilização do
isolamento social por parte do Presidente da República no trato da pandemia. Afinal, não existe
um vasto leque de opções capazes de garantir o bem estar populacional, pois, como assegura a
ciência6, não há a produção de resultado favorável à proteção da vida e da saúde da população na

6
WALKER/WHITTAKER/WATSON, The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and
Suppression.
supressão das medidas de distanciamento social. Logo, inexistindo medidas diversas na condução
da situação, não há outra escolha legítima.
Essa é, inclusive, a linha de raciocínio seguida no acolhimento da arguição de
descumprimento de preceito fundamental de número 669 7. Na decisão liminar, através de
argumentação similar, proibiu-se o governo federal de realizar qualquer campanha contra o
isolamento social solicitado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no intuito de controlar a
pandemia - evitando a sugestão de retorno às atividades plenas à população e a redução da
pandemia à evento de menor gravidade. Caracterizando a campanha como "desinformativa",
afirma-se, por fim:

A atual situação sanitária e o convencimento de que a população se mantenha em casa já


demandava esforços consideráveis. A disseminação da campanha em sentido contrário
pode comprometer a capacidade das instituições de explicar à população os desafios
enfrentados e de promover seu engajamento com relação às duras medidas que precisam
ser adotadas8.

A campanha fora veiculada por canais oficiais do governo federal, através de coordenação
feita pela SECOM, mas retirada de circulação e excluída, por meio da justificativa de que possuía
caráter experimental e não faria parte de uma campanha publicitária, e sim de um ato isolado de
comunicação. Embora a campanha, de fato, não possa ser de maneira sólida e comprovada ligada
diretamente à figura do presidente Jair Bolsonaro, cujo substrato é defendido na ADPF 668, é
inegável que a ideologia perseguida pela propaganda vai ao encontro do pilar discursivo do
governo federal. Afinal, foi frequente, durante o primeiro trimestre da situação pandêmica no
Brasil, a pontuação nas falas do presidente de afirmações polêmicas, por vezes comprovadamente
falsas9, acerca das medidas de isolamento social no país. Em pronunciamento nacional no dia 24
de março, por exemplo, o presidente não foi favorável às medidas de fechamento do comércio,
deixando perpassar em sua fala, ironicamente, a versão dialogada do slogan da campanha
#OBrasilNãoPodeParar, perceptível no seguinte trecho:

7
BRASIL. Dispõe sobre Arguição de Descumprimento de preceito fundamental contra a contratação e veiculação
de campanha publicitária entitulada "O Brasil Não Pode Parar".
8
COELHO, Propaganda "Brasil não pode parar" foi um ato isolado.
9
vide O que Bolsonaro falou do coronavírus - e o que é fato.
Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias
deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades
estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de
transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa10.

Portanto, a questão da campanha, que sequer chegou a ser um projeto grande amplamente
divulgado pelo governo federal, embora não tenha tido crivo e nem a imagem do presidente, por
certo não foge de suas ideias defendidas. Essa ideologia propagandista derivada do slogan, sem
dúvidas, está enraizada em grande parte da população, principalmente no seio de apoiadores
político aliados ao presidente, tornando-se um problema extremamente prejudicial. Afinal, a visão
de um líder político, elegido através da imagem messiânica de idolatria da ala conservadora da
população, ao realizar sequenciais postulações contrárias às recomendações da oms acerca da
pandemia, estimula leigos, ignorantes e apoiadores a banalizarem um vírus perigoso, prejudicando
não só a contenção do mesmo, mas o status quo social e a própria economia.
De forma a abarcar a ideia, um estudo realizado na Universidade de Cambridge busca
reafirmar justamente a relação entre as aparições televisivas do presidente Bolsonaro e a crescente
negação ao distanciamento social no Brasil. Nesse estudo, utilizou-se como base, inclusive, o
discurso presidencial referenciado acima, e se concluiu que "a atitude de um líder pode ter um
significante e possivelmente devastador impacto na saúde individual e no sistema de saúde de uma
nação" 11. Segundo a análise, durante o primeiro trimestre do ano, as cidades onde o apoio ao
mesmo é maior, teve 30% menos índices de distanciamento social se comparados às cidades onde
o presidente recebe um apoio menor, índices esses agravados após a subestimação pública dos
esforços de prevenção da pandemia realizados pelo presidente.
Em suma, torna-se possível de concluir que, mesmo através de detalhes simples, tais quais
um trecho de uma fala durante um discurso presidencial, uma vez desestimulantes acerca do
isolamento social, considerando-se a gravidade da pandemia atual, acabam por prejudicar em
muito o parâmetro situacional da saúde no Brasil e, para além dele, situações outras, como se verá
a seguir.

10
BARRUCHO, Coronavírus: o que diz a Ciência sobre 6 pontos do discurso de Bolsonaro.
11
CAVALCANTI, Bolsonaro's attitude to coronavirus increases 'risky behaviour' in Brazil.
3. Falling into a black hole12: a controversa responsabilização das autoridades
governamentais no trato da pandemia de Covid-19 pelo Tribunal Penal Internacional

O que vai ser colocado em cheque, com a notícia e o contexto dado, portanto, é se as
autoridades brasileiras, majoritariamente representadas pela figura do Chefe de Estado Bolsonaro,
são diretamente responsáveis pela crise generalizada que deixou o país rendido a um ostracismo
internacional. Especialmente em se considerando, pois, que a pandemia de Covid-19 não chegou
de forma invisível - pelo contrário, atingindo, primeiramente, a Itália, a Espanha e o Reino Unido
de maneira grave, o Brasil se encontrava em um estado razoável com as ferramentas necessárias
para implantar ações capazes de antecipar e de prepará-lo para as consequências do vírus. No
entanto, o governo federal não o fez, e, pois, questiona-se: os efeitos que ocorreram se devem pelas
suas ações e omissões? Se sim, ele pode ser penalizado internacionalmente?
Para tanto, devemos emergir no event horizon13 da história que une o Direito Penal ao
Direito Internacional Público: o Tribunal Penal Internacional (doravante TPI). Ele exsurge a partir
do Estatuto de Roma, de 2002, com o objetivo de consolidar uma jurisdição perene 14. Tal jurisdição
serviria para julgar os autores de uma listagem específica de delitos: contra a humanidade, de
guerra, de agressão e de genocídio. Ele não é, contudo, um Tribunal destinado a agir
prioritariamente, mas subsidiariamente: está no princípio da complementariedade que o rege.
Nesse sentido, somente se provoca a jurisdição do TPI para que ela aja na investigação dos casos
quando os próprios Estados não cumprirem com suas obrigações/funções, por conflitos estruturais
ou mesmo pela comprovada incoerência das ações internas, que, eventualmente, podem culminar
em erro15.

12 Na astrofísica, uma curiosidade é que nosso sistema solar está orbitando o buraco negro supermassivo no centro
de nossa galáxia. Orbitar significa, literalmente, estar caindo vertiginosamente e perpetuadamente sob um ângulo.
Então, de certa forma, todos já estamos 'caindo' em um buraco negro. É a nota que se decidiu apresentar o debate
controvertido acerca da possibilidade de responsabilização das autoridades governamentais brasileiras pelas
consequências geradas de sua gerência da pandemia de Covid-19.
13 As estrelas, quando ficam sem combustível termonuclear, entram em colapso sob seu próprio peso. Elas explodem

em uma supernova, deixam um núcleo, e se o próprio núcleo for pesado o suficiente, ele vai continuar entrando em
colapso. Chega a um ponto em que nem mesmo a luz pode escapar. Esse ponto é chamado de event horizon. Mas o
incrível é que deixa esse ponto, o horizonte de eventos, para trás, como um registro arqueológico, porque a própria
estrela não pode ficar no horizonte de eventos mais do que pode correr para fora na velocidade da luz. Aqui, marca o
momento em que a crítica da notícia se aprofunda nas interconexões entre as disciplinas vizinhas, a tal ponto em que
não se poderá mais distinguir elas separadamente.
14
SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 626.
15
DOLINGER/SOUZA SOARES, Direito Internacional Penal: tratados e convenções, p. 1212.
Os casos a serem julgados pelo TPI também passam por uma limitação espaço-temporal,
sua singularity16. O Tribunal, por conseguinte, só é competente para vir a conhecer das condutas
praticadas após a aderência de seu vigor, isto é, 01 de julho de 2002, qual seja, o momento em que
se preencheu os requisitos básicos exigíveis para que o Estatuto de Roma fosse ratificado. Além
disso, os delitos devem ou ter sido praticados em território, navio e aeronaves de um Estado Parte
do Tribunal ou por nacionais a serviço de um Estado Parte – essa é sua condição geográfica 17.
Existem, porém, duas exceções a essa última exigência.
A primeira é a de que, se um Estado concordar e assim o requerer, ele pode receber a
atenção do TPI, ainda que não seja um Estado Parte. A segunda, em seguida, refere-se ao fato de
o Conselho de Segurança das Nações Unidas ser competente para evocar um caso ao Tribunal
mesmo em discordância à exigência estipulada 18. Pode-se argumentar, então, que o princípio da
complementariedade opera sobre a capacidade postulatória e jurisdicional do TPI um movimento
contraintuitivo19: embora respeite os propósitos da justiça internacional, exerce-os podendo
oferecer uma resposta enfraquecida e mais demorada devido às rédeas que o limitam20.
Estipulamos, ainda, brevemente os crimes a serem abarcados pelo TPI, mas não nos
demoramos demasiado em suas explicações. Para a presente notícia, cumpre melhor recepcionar
as dimensões dos delitos de genocídio, do art. 6º do Estatuto, e dos contra a humanidade, do art.
7º. No primeiro, o texto legal estipula que “entende-se por ‘genocídio’, qualquer um dos atos que
a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso”. Parcela da doutrina, porém, vai contestar que se trata de um crime de
intenção21 e de resultado separado22. Nesse sentido, a consumação do delito não está ligada ao
sujeito concluir com seu objetivo final, o que significa dizer que, nesse delito, não é essencial que
o grupo almejado seja exterminado a fim de se configurar sua conclusão, e sim que o sujeito tenha

16
A singularidade, ou o fim de tudo, o esmagamento no centro de um buraco negro, é algo onde tudo está
compactado em um único ponto, é um lugar onde as leis da física não funcionam exatamente. É o ponto alcançado
ao se ultrapassar o horizonte de eventos, no qual o espaço se torna o tempo e o tempo se torna o espaço, num sentido
coordenado.
17 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 627.
18 DOLINGER/SOUZA SOARES, Direito Internacional Penal: tratados e convenções, p. 1213.
19
Nesse sentido, o princípio opera sob medidas semelhantes à explicação astrológica de formação de um buraco
negro. Afinal, na sua formação, quanto maior você fizer um buraco negro, menos denso deve ser o material do qual
você o faz.
20 DOLINGER/SOUZA SOARES, Direito Internacional Penal: tratados e convenções, p. 1214.
21
MELLO, Curso de Direito Internacional Público, p. 967.
22
ZAFFARONI, Manual de derecho penal PG, p. 503.
tido a intenção de fazê-lo e que se tenha consciência da existência de resultado danoso e da conduta
realizada23.
Como se pode observar, não se trata de um delito genérico, mas específico, o que incorre
na comprovação de um dolo também específico. Logo, insuficiente se faz a demonstração da
intenção em concretizar uma conduta prevista como delito, necessitando, em conjunto, o especial
fim de agir24. Caso contrário, a conduta ainda se veria capaz de punir, mas não configuraria,
especificamente, ao crime de genocídio, devido à estipulação de sua moldura legal. O que se veria,
sobremaneira, seria a tipificação de um crime contra a humanidade 25. Sobre esse delito, o art. 7º
da lei aponta que “entende-se por ‘crime contra a humanidade’, qualquer um dos atos seguintes,
quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população
civil, havendo conhecimento desse ataque”, com destaque especial à alinha b, que estipula o ato
de “extermínio”.
Não menos válido é apontar as explicações do próprio Estatuto às concepções de “ataque
contra uma população civil”, definido como “qualquer conduta que envolva a prática múltipla de
atos referidos no parágrafo 1º contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado
ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política” e
“extermínio” que engloba “a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do
acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população”.
Com essas noções em mente e meio ao imbróglio do plexo de relações internacionais, bem como
do intransigente tecnicismo jurídico, buscar-se-á localizar em que tempo se encontra 26 a
responsabilidade conferida às autoridades governamentais quando verificados crimes
internacionais no ajuizamento do Tribunal.
De pronto, notam-se algumas barreiras para essa possível responsabilização. Elas se
devem, pois, embora se tenha notificado o TPI sobre o contexto por que passa o Brasil e se possa

23
BITENCOURT, Tratado de Direito Penal PG, p. 274.
24 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 629.
25
SCHABAS, Genocide in International Law: The Crime of Crimes, p. 274.
26 Procurou-se referenciar a troca do espaço-tempo que ocorre dentro do buraco negro. Como mencionado, uma vez

ultrapassado o horizonte de eventos, o espaço torna-se tempo e o tempo torna-se espaço, num sentido coordenado.
Então, de fora, se você é um astronauta, está vendo outro astronauta entrando no buraco negro, é como se seus
tempos girassem em relação um ao outro. A coisa mais profunda é que, em sendo o astronauta do lado de fora,
olhando para este horizonte de eventos redondo, você pensa no centro do buraco negro como um ponto no espaço,
mas, para a pessoa que caiu, é um ponto no tempo. A singularidade, ou o fim de tudo, o esmagamento no centro de
um buraco negro, está no futuro dele. Assim, ele não pode evitar a singularidade mais do que você pode evitar o
próximo instante de tempo.
fazê-lo de maneira ainda mais incisiva, o Tribunal se concentra em tratar, majoritariamente, de
delitos ligados a conflitos armados 27. Outro impasse, ainda, estaria no fato de ser complexo provar
a intenção do autor em, por exemplo, um crime de genocídio, que pede por um dolo específico, o
que acaba por abrir um debate controvertido acerca de se as ações, a saber, do presidente da
República seriam suficientes para tipificá-lo na moldura do crime, ou, por outro lado, se os
discursos de ódio de Bolsonaro seriam transladados como intenções de extermínio somente devido
a uma veiculação tendenciosa da ideologia política da mídia.
Pode ser que pensar em uma responsabilização para as autoridades governamentais no tipo
penal de genocídio seja uma escolha ingênua, vez que são muitos os riscos em não se preencher
os requisitos formais, qual seja, o dolo, previstos na Convenção para a Prevenção e Repressão do
Crime de Genocídio (1948) e no Estatuto de Roma (1998)28. Se desejamos evitar a ingenuidade
que beira idílicas reflexões infantis da juventude, é válido lembrar de um ditado popular, o qual
diz que para as crianças nós damos respostas, mas, para os adultos, nós oferecemos perguntas.
Questionemo-nos, então. E se, ao invés de um crime específico como o de genocídio, não fosse
possível perquirir a responsabilização das autoridades brasileiras por crimes contra a humanidade?
Vimos, afinal, a gerência omissa do governo federal brasileiro na forma como lidou com o
controle da pandemia de Covid-19 e até mesmo o incitamento irresponsável nos discursos
presidenciais que diminuíam a gravidade da situação - não haveria, aqui, uma possível
responsabilização? Não se preenchem os requisitos de conjunto de atos subsumidos em um ataque
contra uma população, de conhecimento prévio do ataque por parte do autor e dos efeitos de grande
sofrimento intencionalmente praticados contra, inclusive para a saúde, (d)a sociedade? De outro
modo, se o Brasil se encontrava tão favoravelmente posicionado no enfretamento, o que teria sido
responsável pela sequência de erros após a chegada do Covid-19? Vejamos:

O presidente, em particular, tem incentivado as pessoas, especialmente as mais


vulneráveis, a se exporem ao vírus. “E daí?” perguntou Bolsonaro após 5.000 mortes. “Do
que você tem medo? Temos que encarar isso aí!”, ordenou quando atingimos 91.000
mortes; afinal “todo mundo morre”. Com 100.000 mortes, ele disse apenas que “temos
que continuar”. E dias atrás, com 162 mil brasileiros mortos, ele aproveitou uma
cerimônia no palácio presidencial para alertar que “não podemos fugir disso, fugir da
realidade; temos que deixar de ser um país de maricas”. Contra todos os conselhos de
profissionais e acadêmicos da saúde pública, ele tem incentivado aglomerações; interage
com pessoas sem usar máscara; promove o uso de medicamentos não comprovados; e,

27 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 629.


28 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 629.
mais recentemente, até começou a fazer discursos que desestimulam a participação dos
cidadãos em campanhas futuras de vacinação. Essas posições populistas e anticientíficas
dividem ainda mais a sociedade, produzindo um custo significativo para a sociedade29.

O problema não seria esse? Pensamos que sim. O problema está em ignorar todo o poderio
do sistema público de saúde brasileiro, capaz de atender de maneira eficaz a sociedade brasileira
se coordenado da forma correta, descartando-o, e, no se lugar, optando por um laissez-faire
irresponsável e insuficiente, isto é, um inexistente diálogo proativo entre os estados e municípios,
perceptíveis no atraso na obtenção de vacinas e, por vezes, na própria recusa de sequer negociá-
las com os seus produtores internacionais, como os laboratórios Pfizer, Moderna e Janssen 30. Aqui
está demarcada a caracterização de uma intenção de autoria de atos que gerariam severas
consequências para a população brasileira no enfrentamento da pandemia de Covid-19.
Nesse sentido, o combo de reiteradas omissões do governo federal na prevenção e na
gerência do contexto pandêmico e o comportamento anômalo do Presidente da República, gerando
uma camada de consequências que descumprem com os preceitos da OMS, são permissíveis de
enquadramento na moldura de delito contra a humanidade, vez que os elementos mencionados
podem ser entendidos enquanto um ataque sistemático contra a população civil que causam grande
sofrimento ou afetam gravemente a integridade física e a saúde mental 31. A responsabilidade penal
individual do Presidente da República, por si só, através do discurso anticientífico no estímulo da
hidroxicloroquina e da exposição ao vírus, principalmente sobre os vulneráveis, são suficientes
para penalizá-lo, senão como autor indireto, como coautor.
Passível é, enfim, de denúncia e processamento diante do Tribunal Penal Internacional de
Haia, desde que, por certo, não sejam devidamente processadas pelo Poder Judiciário brasileiro 32.
No entanto, a partir dessa conclusão, surgem impasses outros que transcendem, inclusive, o
alcance da presente resenha crítica da notícia: uma vez penalizadas, a responsabilização de
autoridades governamentais a nível internacional não estaria condicionada e influenciada pela
dinâmica da política interestatal? Quer dizer, não estaríamos carentes de mecanismos pelo TPI de
fazer valer a eficácia, de, por exemplo, uma execução de um mandado de prisão, diante do apoio

29
LSE Latin America and Caribbean Blog. Quem é responsável pela catástrofe brasileira na crise de COVID-19?
30 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 632.
31 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 633.

32 SANTOS/CHACCUR, Diálogo dos Direitos Humanos, p. 634.


de potências mundiais que, por vezes, priorizariam a política e a economia acima de princípios e
valores de proteção da pessoa humana?
Por isso, embora alguns juristas defendem que a atuação do TPI contra um chefe de estado
promova a ideia de que o Direito Internacional Penal estava se fortalecendo, e, portanto,
concretizaria a premissa de que os indivíduos deveriam ser responsabilizados na esfera
internacional pelos atos ilícitos cometidos33, o que se vê, qualitativamente, é a crença oposta: de
que os graus internacionais que vão julgar penalmente possuem jurisdição sobre casos muito
seletos e que, na maioria das vezes, a implementação do Direito Penal depende unicamente dos
próprios Estados. Logo, é até sob uma nota de desesperança que se encerra a avaliação
questionando sobre outro caso: haveria a possibilidade de uma leitura análoga ao princípio da
responsabilidade proteger, visto nos delitos de genocídio, aqui nos crimes contra a humanidade?
Isto é, um afastamento temporário do princípio da não intervenção e da soberania estatal para
privilegiar a atuação da comunidade internacional na tentativa de proteger a pessoa humana 34.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, G. Governo lança campanha Brasil não pode parar. Época, 2020. Disponível em:
<https://epoca.globo.com/guilherme-amado/governo-lanca-campanha-brasil-nao-pode-parar-
veja-video-24332518>. Acesso em: 31 jul. 2022.

BARRUCHO, L. Coronavírus: o que diz a Ciência sobre 6 pontos do discurso de Bolsonaro. BBC
News Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52041251>. Acesso
em: 31 jul. 2022.

BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal – parte geral. São Paulo: Saraiva, 2007.

33
SANTOS/PILI, R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, p. 731.
34
Para melhor compreender esse impasse, vide SANTOS/PILI, R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, p. 723-724: “Que seja
claro aqui: não se trata de um meio de afastar a soberania do estado sobre sua própria população, mas apenas a
faculdade de a comunidade internacional assumir este papel, relativizando a soberania, durante certo lapso de tempo
em caso de violações graves dos direitos humanos. (...) É uma modulação da soberania e da ordem jurídica interna
para preservar os bens maiores tutelados pelo Direito Internacional pós-moderno. (...) Dentro desse contexto, a
soberania não é mais puro controle sobre a população, mas a responsabilidade do estado pela proteção dessa mesma
população perante ameaças internas e externas ao estado”.
BRASIL. ADPF n. 669, de 31 de março de 2020. Dispõe sobre Arguição de Descumprimento de
preceito fundamental contra a contratação e veiculação de campanha publicitária entitulada "O
Brasil Não Pode Parar". Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF669cautelar.pdf>. Acesso em:
31 jul. 2022.

CAVALCANTI, T. Bolsonaro's attitude to coronavirus increases 'risky behaviour' in Brazil.


Universidade de Cambridge, 2020. Disponível em:
<https://www.cam.ac.uk/research/news/bolsonaros-attitude-to-coronavirus-increases-risky-
behaviour-in-brazil>. Acesso em: 31 jul. 2022.

CARVALHO, I. "Brasil não pode parar": campanha de Bolsonaro contra isolamento vai parar no
TCU. Brasil de Fato, 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/03/27/brasil-
nao-pode-parar-padilha-vai-a-justica-para-impedir-campanha-de-bolsonaro>. Acesso em: 31 jul.
2022.

COELHO, G. Propaganda "Brasil não pode parar" foi um ato isolado. CNN Brasil, 2020.
Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/04/23/propaganda-brasil-nao-pode-
parar-foi-um-ato-isolado-diz-governo-ao-supremo>. Acesso em: 31 jul. 2022.

DOLINGER, J.; SOUZA SOARES, D. Direito Internacional Penal: tratados e convenções. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006.

LSE Latin America and Caribbean Blog. Quem é responsável pela catástrofe brasileira na crise
de COVID-19? Disponível em: <http://eprints.lse.ac.uk/107717/1/
latamcaribbean_2020_11_19_quem_e_responsavel_pela_catastrofe.pdf>. Acesso em: 31 jul.
2022.

MELLO, C. D. de A. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

O que Bolsonaro falou do coronavírus - e o que é fato. Aos Fatos, 2020. Disponível em:
<https://www.aosfatos.org/noticias/o-que-o-presidente-falou-do-coronavirus-e-o-que-e-fato/>.
Acesso em: 31 jul. 2022.

SANTOS, M. A. M.; PILI, F. W. J. Responsabilidade de proteger: minorias e genocídio. Revista


Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 114, 723-734, 2019.

SANTOS, M. A. M.; CHACCUR, R. C. A Possibilidade de Responsabilização das Autoridades


Brasileiras perante o Tribunal Penal Internacional pela política de enfrentamento da Covid-19 no
Brasil. In: Fábio da Silva Veiga, Rodrigo Vitorino Souza Alves e Maria Hemília Fonseca. (Org.).
Diálogos dos Direitos Humanos. 1ed.Porto - Portugal: Instituto Iberoamericano de Estudos
Jurídicos IBEROJUR, 2022, v. 1, p. 621-635.

SCHABAS, W. A. Genocide in International Law: The Crime of Crimes. New York: Cambridge
University Press, 2009.

ZAFFARONI, E. R. Manual de derecho penal – Parte general. Buenos Aires: Ediar, 1996.

WALKER, P.; WHITTAKER, C.; WATSON, O.The Global Impact of COVID-19 and Strategies
for Mitigation and Suppression. WHO Collaborating Centre for Infectious Disease Modelling,
MRC Centre for Global Infectious Disease Analysis, AbdulLatif Jameel Institute for Disease and
Emergency Analytics, Imperial College London, 2020. Disponível em:
<https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-
fellowships/Imperial-College-COVID19-Global-Impact-26-03-
2020.pdfhttps://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-
fellowships/Imperial-College-COVID19-Global-Impact-26-03-2020.pdf>. Acesso em: 31 jul.
2022.

Você também pode gostar