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REPÚBLICA DE URUGUAI

MINISTÉRIO DE RELAÇÕES
EXTERIORES

O Ministério de Relações Exteriores, na figura do Representante Permanente do Uruguai,


saúda respeitosamente o Secretário Geral das Nações Unidas e faz uso da oportunidade para dar
o conhecimento de sua Nota Diplomática acerca do seu posicionamento em reconhecer as
reivindicações da Frente Polisário de necessidade da realização do referendo acerca da real
existência da República Árabe Saaraui Democrática (RASD) e da não ligação de sua terra,
povo e recursos aos interesses de Marrocos, EUA e França, respeitando o princípio da
autodeterminação dos povos e as manifestações da Corte Internacional de Justiça.

I. Breve contextualização do conflito entre a Frente Polisário e o Marrocos

Discute-se aqui sobre um conflito, que, ao menos em suas instâncias físicas, dá-se na
localidade do Saara Ocidental. Ele é uma extensão grande de terra componente do continente
africano, em sua porção setentrional. Da sua especificidade desértica, observa-se dois detalhes
importantes: o primeiro, de que, a princípio, não representava um atrativo a olhares estrangeiros,
motivação essa que explicaria a limitação da Espanha, até o século XIX, de atuação costeira –
visando à pesca; e o segundo, também em derivação ao primeiro, da qualificação dos povos que
ali habitavam – eram, em sua maioria, tribos nômades1.

1
MENEZES, F. L.; MORAIS, J. M. A.; CARVALHO, M. S. M. SAARA OCIDENTAL: a miragem da
descolonização. LEOPOLDIANUM (UNISANTOS), 2018, p. 74.

Às Nações Unidas (ONU)


Essa realidade começa a ser alterada quando a Espanha, incomodada com os ataques
constantes sofridos sobre suas instalações costeiras, decide se embrenhar e marcar domínio sobre
o território do Saara Ocidental2. Veio ao encontro de seu interesse a Conferência de Berlim,
responsável, sob uma ótica colonizatória, por repartir as porções de terra do continente africano
que ficariam nas mãos das metrópoles europeias e representariam um marco importante na
alteração do comportamento das tribos daquela região. Logo, em 1884, dada a Conferência,
utilizando-se de argumentos sobre a soberania que possuía na região, tendo em vista as
expedições e o deslocamento que já realizara por lá, a Espanha consegue reter a decisão de que
seria a responsável por administrar o Saara Ocidental3.

A duração da administração espanhola leva quase 100 anos, sendo substituída, apenas,
em 1975 – data que marca o início do conflito tripartido sobre a região. Com a instabilidade que
começava a se estabelecer sobre o país espanhol por conta da saúde de seu líder, e também em
consideração à expansão que o Marrocos buscava empreender, a Espanha entende ser a melhor
solução abrir mão de sua administração na região 4. Para tanto, assina, em segredo, um acordo
com o Marrocos e a Mauritânia - dito Acordo de Madrid -, dividindo o Saara Ocidental sem se
importar com a opinião do povo nativo saaraui, que na época já era representado pela Frente
Polisário, a qual teve origem dos grupos nacionalistas com uma ideolgoia socialista e pan árabe
advindos de Tan-Tan (estudantes saarauis) e de Zuerat, que percebeu a importância de se lutar
pela sua independência5.

A questão descolonizatória do continente norte-africano tem, aqui, o seu gatilho principal,


afinal, dada a divisão, insurge uma crise responsável por levar a Frente Polisário a instaurar a
República Árabe Saaraui Democrática - a RASD, como mencionamos e é conhecida. Foi a forma
encontrada pela nação saaraui de reunir legitimidade internacional e marcar seu domínio sobre a
região do Saara Ocidental6. Dessa forma, torna-se claro de perceber as conexões interligadas
historicamente entre as potências do Marrocos e da Mauritânia, bem como seus potenciais

2
Ibid, p. 75.
3
Ibidem.
4
Ibid, p. 79.
5
Ibid, p. 78.
6
Ibid, p. 79.
aliados estrangeiros, para com a região do Saara Ocidental, assim como os laços da Frente
Polisário foram desenvolvidos e de que maneira os três atores se encontram no campo de batalha,
que será melhor evidenciado no próximo item.

II. Posicionamento da comunidade internacional

Para nós, é importante estipular essas conexões e relações para perceber não só de quem
vem o apoio para x ou y país, mas para entender o porquê da motivação nesse apoio e quais são
os reflexos que ele implica. A relação do posicionamento da comunidade internacional, dessa
forma, também pode servir de exemplo para a nossa própria decisão nessa Nota Diplomática.
Logo, vejamos.

O conflito, como se percebeu, acontece durante um espaço de tempo concomitante a


outro evento de magnânimo impacto no globo terrestre: A Guerra Fria. Sabe-se, bem como, que
a Guerra Fria fora um embate que, mais do que se verificar na instância armada, era perceptível
pelas estratégias atrás das influências que os Estados Unidos ou a antiga URSS exerciam nos
países de seus interesses, tentando atraí-los seja para a ideologia capitalista, seja para a socialista.
Nesse âmbito, percebe-se que muito do apoio deslocado para o Marrocos e a Mauritânia se deu
pelos Estados ocidentais, quais sejam, os Estados Unidos, além da própria Espanha e da França.

Logo, através das alianças formadas na Guerra Fria, da vontade na luta contra o
terrorismo ou mesmo dos laços coloniais, o Marrocos consegue o apoio dos Estados que, na
divergência entre a prevalência do princípio da autodeterminação dos povos e dos interesses
sobre um Estado aliado, optaram pelo segundo caminho, em uma verdadeira estratégia da
política realística, isto é, a diplomacia que se exerce segundo os interesses nacionais 7. Nesse
sentido, mais do que a valorização da soberania de um povo originário, o que brilhou aos olhos
ocidentais foram: a areia, recursos naturais como fosfato, pesca, recursos energéticos, água - não
só dos aquíferos, mas também como geopolítica de favorecimento do comércio internacional -,
cobre, urânio, ferro e zinco, para citar alguns.

7
Ibid, p. 80.
Do outro lado, ou melhor, ao lado da causa Saaraui e da Frente Polisário, o que se
observou, também pela influência dos laços criados pela Guerra Fria, mas com questões
históricas anteriores envolvidas, foi o apoio dos Estados socialistas, como a Argélia, a Líbia, o
Vietnã e Cuba8. A Argélia, em especial (pela variante histórica), opera seu apoio desde tempos
anteriores, visto que, após a repressão feita em 1958 pelas tropas francesas e espanholas, as
forças atacadas da população saaraui buscaram ajuda na região de Tindufe, em território
argelino, criando nesse momento um laço com o país, que acabara de conquistar a sua
independência, importante e mútuo.

A verificação do apoio internacional, por vezes, dá-se sobre bases delicadas, pois, no
pensamento geral, qualquer política diplomática é um risco para o país em perder um aliado em
potencial. É por isso que a Espanha, por exemplo, tenta (apesar de figurar mais presente ao lado
da influência marroquina) cultivar uma boa relação com ambos os atores da disputa, e, também,
seria por isso que tantos da comunidade internacional tem se mantido em silêncio, não
escolhendo um lado em específico.

Talvez, por conta da construção de um ideário de que todos estão buscando por um
posicionamento neutro, ou na argumentação de que se instaura cada vez mais uma (in)diferença
internacional, é que o conflito, até hoje, não vê perspectiva de uma resolução. O território, ainda
dominado pelo Marrocos, recebe o clamor de reinvindicação da nação saaraui. O que se percebe,
contudo, e aí que se denota a importância do posicionamento da comunidade internacional, e o
porquê dessa nota diplomática na figura do Uruguai, é que não se trata de uma indiferença, nem
de uma escolha de apoio neutro. É consentimento velado. Aquiescência dolosa.

É falácia acreditar que o reino marroquino poderia impetrar uma divergência tamanha que
resultaria em uma implacável crise econômica para o país que reconhecesse a soberania do povo
saaraui. Em verdade, o reconhecimento de um Estado não representa má política nem em tempos
de guerra, cuja situação ainda se faz contornável9. Logo, em vistas de, apesar da Mauritânia ter se

8
Ibidem.
9
NOMOS (produtor). Estrada, R. D.; Costa, R. (Diretor). (2017). Um fio de esperança: Independência ou Guerra
no Saara Ocidental [Youtube]. Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KY1bfcnG3Js&t=1s>.
Acesso em 15 jun. 2022.
rendido e reconhecido a RASD e da elaboração da Missão das Nações Unidas para o Referendo
do Saara Ocidental (MINURSO) ter efetivado um cessar-fogo entre o Marrocos e a Frente
Polisário, o referendo ainda não ter sido realizado, a soberania da nação saaraui não ter sido
consolidada e o Marrocos ocupar o território até hoje, é que implica na importância do
posicionamento do nosso país. O Uruguai, portanto, entende como se segue.

III. A importância cristalina da autodeterminação dos povos

De um lado, para conter os avanços e as vitórias da Frente Polisário, o Marrocos ergue o


muro da vergonha, dividindo o povo Saaraui e seus relativos; a França veta, no Conselho de
Segurança da ONU, a abrangência dos Direitos Humanos na atuação da MINURSO, a favor do
Marrocos. De outro, a ONU10 alça o Saara Espanhol como Território Não-Autônomo e dá ao
povo saaraui a escolha entre a soberania, a livre associação ou a integração em relação à Espanha
por meio de um referendo; a CIJ constata que o Saara Ocidental, apesar de possuir tribos com
alguns vínculos com o Marrocos e a Mauritânia, não lhes pertencia, prevalecendo o direito de
autodeterminação do povo Saaraui11.

Vemos, aos poucos, como o Saara Ocidental era um fator de importância unidade
nacional, na medida em que o Marrocos e a Mauritânia, por serem Estados que conquistaram sua
independência recentemente, e, portanto, ainda se verem consolidados sobre uma estrutura
fragilizada e desestabilizada, tentam remediar essas lacunas pela imposição de sua força
soberana sobre o território. Nesse sentido, o nascimento de uma Soberania pelo interesse e pelo
status se faz sobre o enfraquecimento de outra, especificamente de povos minoritários, qual seja,
as tribos originárias da região. Ou melhor, corrige-se: deve-se desvincular dessa visão dos

10
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DA ONU (AG). Resolução 1514 [XV]. AG index: A/RES/1541(XV), 14
de dezembro de 1960. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em 15 jun. 2022.

______. Resolução 2072 [XX]. AG index: A/RES/2072(XX), 16 de dezembro de 1965. Disponível em:
<http://www.un.org>. Acesso em 15 jun. 2022.

______. Resolução 2229 [XXI]. AG index: A/RES/2229(XXI), 20 de dezembro de 1966. Disponível


em: <http://www.un.org>. Acesso em 15 jun. 2022.
11
CIJ. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Western Sahara Advisory Opinion, The Hague, ICJ, 16 out.
1975.
saaraui como minorias étnicas e entendê-los enquanto povo soberano, conforme consta do
princípio da autodeterminação dos povos na Declaração das Nações Unidas.

Nota-se quão sensível é a relação do povo saaraui para com sua ancestralidade, natividade
e originalidade. Antes da colonização, era forte a correlação entre a sua população e seus
costumes, suas regras, suas religiões - destaca-se, assim, a sua organização sociopolítica, mas
também sua mundividência12. Características essas que só se intensificaram, ou deveria dizer
foram resilientes à violência colonizatória, com a noção de uma identidade una, o sentimento
nacionalista e a consciência de uma comunidade para além da tribo. Assim, cunhou-se no
ambiente externo e no sangue de cada indivíduo, a vontade de pertencer a uma nação Saaraui.
Muito da visão subjetiva mencionada é clara, conforme já adiantado, na Carta das Nações
Unidas13, que, em seu artigo 73, alínea b, demonstra a importância do princípio da
autodeterminação dos povos na medida em que eles possam

desenvolver sua capacidade de governo próprio, tomar devida nota das


aspirações políticas dos povos e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo de
suas instituições políticas livres, de acordo com as circunstâncias peculiares a
cada território e seus habitantes e os diferentes graus de seu adiantamento (Carta
da ONU, art. 73, b).

Esse princípio vem sendo desrespeitado e subestimado frequentemente ao prevalecer


interesses estratégicos na tomada de decisões sobre a questão. Com isso, permite-se que o
Marrocos prolongue o conflito às custas do sofrimento da população saaraui, respaldado pelo
apoio de países estrangeiros com poderes de influência. O povo saaraui vem sendo paciente há
décadas com o cessar-fogo14. Por isso, urge-se que a situação se altere. O Uruguai, um país que
também passou por inúmeros conflitos acerca de sua independência, por vezes sendo bofeteado
de um lado pela Espanha, e, de outro, por Portugal – chegando a ser cerceado, também, pelo
Brasil -, solidariza-se com essa causa. Infelizmente, em nosso país, não foi possível de salvar
àqueles que nos antecederam, os povos indígenas originários.
12
MENEZES, F. L.; MORAIS, J. M. A.; CARVALHO, M. S. M. SAARA OCIDENTAL: a miragem da
descolonização. LEOPOLDIANUM (UNISANTOS), 2018, p. 76.
13
ONU. Carta das Nações Unidas. UNTS (XVI), 1945. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em 15 jun.
2022.
14
NOMOS (produtor). Estrada, R. D.; Costa, R. (Diretor). (2017). Um fio de esperança: Independência ou Guerra
no Saara Ocidental [Youtube]. Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KY1bfcnG3Js&t=1s>.
Acesso em 15 jun. 2022.
Isso não mais será tolerado. Portanto, um reconhecimento oficial do Uruguai à nação
saaraui por certo terá um peso relevante no pedido de que a ONU prossiga com a demanda para
que os atores envolvidos cumpram com a realização do referendo. Além disso, convida aos
países vizinhos da América Latina, bem como a toda comunidade internacional, para que se
posicione no mesmo sentido, visto que o princípio da autodeterminação dos povos deve ser
entendido como uma essência cristalina a ser protegida pela humanidade.

Montevidéu, 22 de junho de 2022

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CIJ. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Western Sahara Advisory Opinion, The Hague, ICJ, 16 out.
1975.

MENEZES, F. L.; MORAIS, J. M. A.; CARVALHO, M. S. M. SAARA OCIDENTAL: a miragem da


descolonização. LEOPOLDIANUM (UNISANTOS), v. 44, p. 73-86, 2018.

NOMOS (produtor). Estrada, R. D.; Costa, R. (Diretor). (2017). Um fio de esperança: Independência ou Guerra no
Saara Ocidental [Youtube]. Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KY1bfcnG3Js&t=1s>.
Acesso em 15 jun. 2022.

ONU. ASSEMBLEIA GERAL DA ONU (AG). Resolução 1514 [XV]. AG index: A/RES/1541(XV), 14
de dezembro de 1960. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em 15 jun. 2022.

______. Resolução 2072 [XX]. AG index: A/RES/2072(XX), 16 de dezembro de 1965. Disponível em:
<http://www.un.org>. Acesso em 15 jun. 2022.

______. Resolução 2229 [XXI]. AG index: A/RES/2229(XXI), 20 de dezembro de 1966. Disponível


em: <http://www.un.org>. Acesso em 15 jun. 2022.

______. Carta das Nações Unidas. UNTS (XVI), 1945. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em 15 jun.
2022.

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