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Artigo Destaque dos editores

A culpabilidade dos indígenas à luz das


exculpantes penais
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Marcela Baudel de Castro 24/03/2013 às 15:04

4. A Inexigibilidade de Conduta Diversa


A terceira causa de exclusão da culpabilidade é a inexigibilidade de conduta diversa ou
de conduta conforme o direito, que se consubstancia, de acordo com o Código Penal, em
duas hipóteses: a coação moral irresistível e a obediência hierárquica.

A coação moral irresistível é a grave ameaça que vicia a vontade do coagido, tornando
punível apenas o autor da coação. Diferencia-se da coação física irresistível, de acordo com
Luiz Regis Prado, pois:

“ “É possível sustentar que na coação moral, diferentemente da coação física, existe


A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais
espaço para aporvontade,
Marcela mas
Baudelesta se mostra de tal modo viciada, comprometida, que não
de Castro
se pode exigir do agente um comportamento conforme os ditames do ordenamento
jurídico. O coacto, portanto, tem vontade, mas se encontra diante de um dilema: ante
dois resultados indesejados, deve optar por um deles, e é exatamente nesse ponto que
reside o fundamento da inexigibilidade da conduta que visasse a salvaguardar o bem
jurídico que, ao final, resulta lesado”.[24]”

Os requisitos da coação moral irresistível são, conforme doutrina de Guilherme de Souza


Nucci: a) a existência de uma ameaça de um dano grave, injusto e atual, extraordinariamente
difícil de ser suportado pelo coato; b) inevitabilidade do perigo na situação concreto do
coato; c) ameaça voltada diretamente contra a pessoa do coato ou contra pessoas queridas
a ele ligadas; d) existência de, pelo menos, três partes envolvidas; e) irresistibilidade da
ameaça.[25]

No tocante ao último requisito, tem-se que caso a coação moral seja resistível, à
semelhança do erro de proibição vencível, o coagido também responde pelo crime, contudo,
com pena diminuída, porquanto incide a atenuante do artigo 65, inciso III, alínea c, do Código
Penal.

A obediência hierárquica é a segunda causa de inexigibilidade de conduta diversa


prevista no artigo 22 do Código Penal que exige a estrita obediência a ordem não
prevista no artigo 22, do Código Penal, que exige a estrita obediência a ordem, não
manifestamente ilegal, de superior hierárquico. Isso porque nas relações de direito público,
resta ao subordinado tão-só obedecer à ordem, levando à exclusão da culpabilidade deste, a
menos que esta seja teratológica e torne inviável seu cumprimento.

Em suma, a exigibilidade de conduta diversa é elemento da culpabilidade que depende


da “normalidade das circunstâncias”. Assim, a doutrina e a jurisprudência pátrias[26]
reconhecem, a par dos dois casos supracitados, a existência de uma causa supralegal de
inexigibilidade, que ocorre sempre que, em uma situação concreta, torne-se impossível para
alguém agir de modo diverso.

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes e Antonio Garcia-Pablos de Molina aduzem que
“sempre que o juiz constatar que não era possível comportamento diverso do agente, deve
absolvê-lo (com fundamento numa causa exculpante expressa ou com base na
inexigibilidade, como causa supralegal)”.[27]

Paralelamente, Francisco Assis de Toledo afirma sobre o assunto:

“ “A contrario sensu, chega-se à conclusão de que não age culpavelmente – nem


deve ser, portanto, responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da
omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do
que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível
comportamento diverso. A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais
importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui um verdadeiro princípio de
direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se
não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está
intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que portanto
intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto,
dispensa a existência de normas a esse respeito”.[28]”

Ao lado do erro de proibição, a inexigibilidade de conduta diversa apresenta como


solução viável para o tratamento jurídico-penal dos indígenas, nas hipóteses em que, apesar
de conhecerem devidamente o conteúdo proibitivo de norma jurídica, apresentam extrema
dificuldade em cumpri-la tendo em vista a distinção em suas práticas e costumes.

Guilherme Madi Rezende, em estudo sobre o assunto, traz à lume esse entendimento,
explicando:

“ “Para que se possa, então, afirmar esta excludente é importante que se avalie se a
conduta do indígena estava de acordo com os valores próprios de seu povo. Se sim,
considerando que estes valores, apesar de conflitantes com os valores da norma que
incrimina a conduta, são respeitados e protegidos, estará o indígena acolhido pela
inexigibilidade da conduta diversa. Se não, não há se falar nessa excludente”.[29]”

Exemplificando, tem-se o caso de indígenas que ainda preservam em seus costumes o


direito à poligamia e à punição por infidelidade, além de outros, que, apesar da constante
interação com a sociedade, são intolerantes às crianças nascidas dentro da aldeia, fruto de
relação de indígena com homens brancos.

Ainda conforme Guilherme Madi Rezende:

“ “O adultério, o aborto, a prática de duelo, o uso de determinadas substâncias


entorpecentes, a forma de lidar com os cadáveres, a extração de minerais, de madeira, a
caça, a pesca e inúmeras outras condutas que possam ser reprimidas pela legislação
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penal, podem ou não se conformar aos valores de determinados povos. A conformidade
da conduta com os valores do povo a que pertence o agente indígena, será o fator
determinante para a incidência ou não da excludente da culpabilidade em comento”.[30]”

Mesmo que estes indígenas tenham conhecimento dos ditames penais e das normas
proibitivas imperantes em virtude de interação com a sociedade não-indígena, seus
comportamentos dentro de seu povo devem ser respeitados, semelhantemente à proteção
que se dá aos atos em razão de crença ou fé religiosa, sob pena de se incorrer em um
processo sério de aculturação interétnica, provocando mudanças nos padrões culturais,
sujeitando os índios à perda de sua cultura e identidade.

Pode se dizer, enfim, que a inexigibilidade de conduta diversa aparece após a análise da
atuação sob a excludente do erro de proibição, quando se constate que o indígena possuía
plena consciência de seus atos e do padrão comportamental que a sociedade
contemporânea exige, contudo, não pode agir consoante as expectativas em razão do
choque de valores.

5. Conclusão
A política atual, ao contrário do caminho trilhado em quinhentos anos, prega o retorno
dos índios às suas origens e assegura a eles o direito de serem diferentes e de serem
respeitados em suas diferenças. O Direito Penal, contudo, ainda não rompeu totalmente com
o viés de preconceito que assola o pensamento de seus operadores. Em que pese o
surgimento de vozes na doutrina em contrário, o indígena “silvícola” ainda é tratado como
surgimento de vozes na doutrina em contrário, o indígena silvícola ainda é tratado como
inimputável ou semi-imputável, excluindo-se ou atenuando-se a sua culpabilidade com
motivação em um suposto desenvolvimento mental incompleto por sua não-integração à
sociedade, apesar da existência de outros critérios - as exculpantes do erro de proibição

culturalmente condicionado e da inexigibilidade de conduta diversa - mais compatíveis com


o espírito defensor das especificidades dos povos.

REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. 3ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003.

BRUNONI, Nivaldo. Princípio de Culpabilidade – Considerações. 1ª ed. Curitiba: Juruá,


2007.

GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral, v. 2.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1:parte geral. 1. 7ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

REZENDE, Guilherme Madi. Índio - Tratamento Jurídico-Penal. Curitiba, Juruá, 2009.


SÁNCHEZ, Luis E. Francia.  La aplicación Del error de comprensión culturalmente
condicionado. Disponível em: http://www.justiciaviva.org.pe/ documentos_trabajo/
analisis_pleno/aplic_error.doc. Acesso em: 13/06/2009.

SANTOS FILHO, Roberto Lemos dos. Índios e Imputabilidade Penal. Disponível em:
http://www.funai.gov.br. Acesso em: 04/06/2009.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro,
volume 1: parte geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

Notas
[1] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1:parte geral. 1. 7ª ed. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 408.

[2]TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2007, pp. 229-230.

[3] PRADO, Luiz Regis. op, cit., p. 415.

[4] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit., p. 569.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 289.

[6] PRADO, Luiz Regis. op, cit., p. 422.

[7] GATTAZ, Wagner F. apud NUCCI, Guilherme. op, cit., p. 289.

[8] TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. p. 315.

[9]
DALLARI, Dalmo de Abreu apud SANTOS FILHO, Roberto Lemos dos. Índios e
Imputabilidade Penal. Disponível em: http://www.funai.gov.br. Acesso em: 04/06/2009.

[10]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus nº 40.884/PR, 5ª Turma, Rel.


Ministro José Arnaldo da Fonseca, julgado em 07/04/2005. Disponível em: www.stj.gov.br.
Acesso em 20/01/2013.

[11]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus nº 30113/MA, 5ª Turma, Rel.


Ministro Gilson Dipp, julgado em 05/10/2004. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em
17/06/2009.

[12] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 343.

[13] Ibidem, p. 590.

[14]BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. 3ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 84-85.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 348.

[16] É o caso de Luiz Flávio Gomes e Antonio Garcia-Pablos Molina.


[17] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 347.

[18] HUNGRIA, Nelson apud BRUNONI, Nivaldo. op. cit. p. 244.

[19]SÁNCHEZ, Luis E. Francia.  La aplicación Del error de comprensión culturalmente


condicionado. Disponível em:
http://www.justiciaviva.org.pe/documentos_trabajo/analisis_pleno/ aplic_error.doc. Acesso
em: 13/06/2009.

[20] ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. op, cit., p. 554.

[21] Ibidem, p. 548.

[22] Ibidem, pp. 554-555.

[23]Ibidem, p. 555.

[24] PRADO, Luiz Regis. op, cit., p. 427.

[25] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 296.

[26] Para os crimes previdenciários, por exemplo, tem-se admitido a tese da


inexigibilidade de conduta diversa em caso de dificuldade da empresa. Vide in: BRASIL.
Tribunal Regional Federal da Segunda Região, Apelação Criminal 5597, Primeira Turma
Especializada, Rel. Desembargadora Federal Maria Helena Cisne, julgado em 27/08/2008.
Disponível em: http://www.trf2.jus.br. Acesso em 29/06/2009.

[27] GO S lá G CÍ OS O 8
[27] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit., p. 648.

[28] TOLEDO, Francisco Assis de. op. cit., p. 328.

[29] REZENDE, Guilherme Madi. Op. cit., p. 110.

[30] Ibidem. p. 111.

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Sobre a autora
Marcela Baudel de Castro
Procuradora Federal. Pós-graduada em Ciências Penais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)


CASTRO, Marcela Baudel de. A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais.
Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3553, 24 mar. 2013. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/23972/a-culpabilidade-dos-indigenas-a-luz-das-exculpantes-
penais. Acesso em: 28 jun. 2022.

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