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Safety

D i s t a n ce

Ana Mundim
Safety Distance
Ana Mundim
Quarteto Foto Editorial Ltda.
1ª Edição - Copyright © 2020 Ana Mundim
Direitos de edição reservados à autora.
www.anamundim.46graus.com
anamundimartes@gmail.com

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Quarteto Foto Editorial Ltda.


quartetofotoeditorial@gmail.com
ka.assaoka@gmail
Tel.: 85 99777-3433
Fortaleza CE
Safety Distance
Ana Mundim
Décimo primeiro dia de confinamento. Da janela do meu quarto, consigo ver a varanda do aparta-
mento dela, embora nunca tivesse me atentado a esse fato. Comunicação “presencial” a distância.
Naquele exato instante me ocorreu que poderia “encontrá-la” uma vez por dia e fotografá-la.

Fiz o convite. Ela aceitou. De imediato.


Dia 01

Um pouco sem jeito ou sem saber o que fazer ela aparece. Acena incessantemente e me manda
beijos, em alegria efusiva. Ela não me enxerga. Há tempos precisa fazer uma cirurgia de catarata
que nunca se efetivou. Escreve-me no celular e pede para que também acene para assim tentar me
ver. Eu aceno. Mas ela segue sem me ver.
Dia 02

Acordo e escrevo uma mensagem no celular chamando-a para a


foto. Ela pede pra eu esperar um pouco. Avisa que está pronta. Fala
que passou a noite esperando o momento do encontro. Aparece
toda arrumada, com flores nas mãos para me oferecer. Ela está
sorridente. Apesar de não me enxergar, sempre direciona seu corpo
exatamente para mim. Entendi que ela enxerga com o coração.
Dia 03

Ela aparece, toda orgulhosa, com uma foto minha nas mãos. Era uma máscara com meu rosto, que
havia sido impressa na ocasião de minha festa de 40 anos para me divertir com os meus amigos
próximos. Observo mais que nunca como me pareço com ela. Mas o que desse reflexo me cabe?
Também percebo ali que as expectativas dela pelos encontros diários se converteram nas minhas
expectativas de saber o que ela aprontaria no dia seguinte...
Dia 04

No dia anterior, um estudo italiano realizado na


Universidade de Turim mostrou que uma grande
quantidade de pacientes infectados pelo corona-
vírus apresentava baixos níveis de vitamina D.
Os especialistas recomendavam que quem pudesse
tomasse pelo menos 15 minutos de sol para produzir
vitamina D. Ela vai para a varanda em sua cadeira
de balanço, vestida de maiô e usando óculos escu-
ros. Os gostos de minha mãe começam a se desvelar
em encontros tão performáticos quanto cotidianos:
ela adora ir à praia, tomar sol e estar na cadeira de
balanço. Seus prazeres se reuniam, de maneira
figurada, nesta cena de quarentena.
Dia 05

O abraço. Ela aparece, se abraça de várias formas e aponta para mim. Neste dia, ela tenta tirar uma
foto minha, mas a distância com o celular, não permite que eu apareça.

Ela segue sem me ver.


Dia 06

Chovia muito. Preocupada, enviei uma mensagem dizendo que ela


não saísse para não correr o risco de gripar. E ela me disse: pois já
estou aqui, de guarda-chuva. E assim a encontro, no melhor estilo
dançando na chuva, esperando meu bom dia. Neste dia, que sua
ação se encontrava na realidade presente, percebi como quase
sempre suas aparições estavam atravessadas por lembranças passa-
das ou desejos futuros. E, eu, em casa, do contrário, seguia vivendo a
radicalidade da improvisação em dança e do ato fotográfico, lidando
com cada aqui e agora, sem rever memórias ou projetar futuros.
Dia 07

É o sétimo dia de fotografia, mas o


décimo sétimo de isolamento social.
As notícias indicam aumento signifi-
cativo de casos confirmados de coro-
navírus, inclusive o aumento de
óbitos. Ela decide rasgar documen-
tos antigos e jogá-los fora, segundo
ela para que eu tenha menos coisas
para jogar fora se ela morrer. E já me
avisa onde estão guardados os docu-
mentos que preciso saber onde estão,
em caso de óbito. Neste dia, ela sai
com a cadeira, a mesa e todos os
papéis. O silêncio que ecoa na rua
me permite ouvir o som de cada
papel por ela rasgado.
Em determinado momento, ela se levanta, abre um mapa de Cuba e faz gestos de que vamos viajar
de novo juntas. Aqui me encontro com o passado. Fomos juntas a Cuba. Lembro-me de ter compra-
do este mapa por uma pequena fortuna, como se fosse um tesouro, pois informação por lá custa
caro. Um dia, pegamos um táxi para ir a um museu de artes que estava neste mapa. Chegando lá, o
museu não existia e realmente o taxista nunca havia ouvido falar dele. Perguntei como um local
poderia estar no mapa se não existia. O taxista me respondeu que, às vezes, quando existiam proje-
tos de construir algum local, eles já inseriam no mapa, mesmo que ele nunca fosse construído. Logo
me imaginei nesse momento de quarentena construindo meus locais possíveis, ainda que eles não
existam. Meu apartamento é pequeno, extremamente quente e não é exatamente confortável. Ele é
viável para minha vida normal: o dia inteiro fora de casa ou viajando. Mas não para demorar-se
tanto dentro. Sonhar com estes outros possíveis seria sair de mim ou mergulhar ainda mais em
mim? Minha mãe sempre gostou de mapas. Desde minha infância ela me mostra mapas e os estuda.
Talvez desse hábito eu tenha me contaminado pelo gosto por viajar. Já mudei de cidade várias vezes,
viajo com alguma constância, estou em permanente deslocamento. Nem meu sotaque tem clareza
em sua existência. É um sotaque borrado. Mas agora meu corpo pausa e pousa há 17 dias. E este
pouso ainda vai durar. Talvez seja desdobrar-me como origami na viagem que construo em mim.
Dia 08

Lá estava outra vez em sua cadeira de balanço. Dessa vez acompanhada de Saramago e suas Peque-
nas Memórias. Esta leitura que perdurou meses, e da qual ouvi vários trechos de sua voz, finalmen-
te se finda. Minha mãe sempre leu para mim, muito, desde minha mais tenra idade. Quando peque-
na, recordo-me dela sentada ao chão lendo uma coleção de livrinhos que de tão lidos, eu já havia
decorado. Meu avô fez parte da Academia Paraense de Letras, cadeira herdada atualmente por um
tio meu. Eu amo ler. Talvez seja hereditário este sabor. Neste isolamento, cumpri um desejo de
anos de colocar uma rede na minha mini biblioteca, abraçada por todos os livros que me acompa-
nham ao longo da vida, uns lidos, outros não. Em um dia de tristeza, eu os olhava e pensava: veja
quantas companhias eu tenho! Vários mundos se abrem a cada página, realidades, ilusões. As
histórias que se desencadeiam em meu corpo, de meu corpo, com o meu corpo, por meio de meu
corpo não me deixam só e desencadeiam flexibilidades espaciais. Saramago é uma de minhas com-
panhias preferidas, ao lado de Mia Couto. Nesse momento que me tira a fome, me alimento de suas
palavras para manter-me de pé. Enquanto meus pensamentos passeiam, recebo uma foto cortada
e borrada. Era a capa do livro que ela lia.
Dia 09

Ontem anunciei à minha mãe um corte substancial em meu salário em detrimento da reforma
previdenciária. Ontem e hoje funcionários públicos recebiam ameaças de mais um corte de salário
de até 50%, devido às absurdas emendas parlamentares que o Partido Novo propôs na PEC
10/2020, segundo eles, em função do “combate ao Covid-19”. O clima de tensão trouxe reverbera-
ções para o meu corpo, me deixando mal por dois dias. Acordei muito tensa com a votação da
câmara dos deputados e não conseguia ter forças para o encontro com minha mãe. Nesse meio
tempo, ela me ligou angustiada e chorosa e disse-me que hoje seria pra eu tirar foto de onde ela
estava, “desconsolada na porta do quarto pelas maldades que existem no mundo”. E assim o fiz. Ela
estava na sombra e comentei que o desconsolo era escuro. E ela me perguntou se eu queria que ela
mudasse de lugar porque ela poderia se desconsolar em qualquer lugar. Ri. Mas não quis. A foto já
estava feita e era mesmo assim, escura, como seu rosto triste. A noite ela me escreveu dizendo que
o quarto dela parecia uma casa, ventilada, com acesso pra rua e ainda dava para ver a minha janela.
Disse que quando eu aparecia e lhe dava adeus, seu coração pulava de felicidade. Terminou a frase
com: “Te amo, meu amor”. Os ventos mudaram seu humor. As emendas foram rejeitadas.
Dia 10

Hoje ela limpa seus anjos. Uma coleção deles.


Um se quebra. E é com este que ela sai à sua
varanda. Em seguida me envia uma foto dele
pelo whats app. É só um bibelô, mas para ela é
uma companhia, um sinal de esperança, um ser
protetor, que se vai.
Dia 11

Dia de Ramos. Ela é muito católica. Chama-se Maria


de Nazaré porque nasceu em Belém, no dia do Círio de
Nossa Senhora de Nazaré. O domingo de Ramos
ocorre no domingo anterior à Páscoa e comemora a
entrada de Jesus em Jerusalém. Para os católicos, os
ramos simbolizam a vitória. Hoje completo a maiori-
dade no isolamento: 21 dias. E ela sai com a vitória na
mão para me abençoar. Em seguida recebo uma foto
do altar que ela fez, na porta de sua casa, com o ramo.
Dia 12

Hoje talvez tenha sido um dos dias mais quentes dessa quarentena. Baixo um termômetro de
ambiente no meu celular. Dentro de meu apartamento fazem 40 graus na frente de ventilador. Ela
sai com um regador para molhar suas plantas e ver a vida florescer. Que assim seja.

Dia 13

Hoje ela sai sem nada na mão. Faz gestos de abraços, beijos, aponta para o sol e para as costas. Vira
de costas. Na varanda de cima, a vizinha se alonga. Em certo momento a vejo debruçada tentando
enxergar o apartamento de minha mãe. Hoje temos duas fotos, uma só e uma atravessada.

Dia 14

Hoje ela sai com uma máscara na mão. Começou a costurar máscaras. Vai tecendo o tempo enquan-
to produz para alguém, não sabe quem. Hoje, após a foto, me sentindo um pouco melhor, levo para
ela os alimentos que chegaram ontem e eu higienizei. Na volta, trago junto comigo a máscara para
o rapaz que tece, desprotegidamente, a limpeza de meu prédio. Enquanto isso, Fortaleza tem o
maior número de casos de COVID-19 por habitantes no Brasil. E a rua segue, cada vez menos silen-
ciosa, porque não costumamos a acreditar naquilo que não é visível. Talvez por isso o amor esteja
saindo de moda. Agradeço por ter minha mãe e poder receber, na invisibilidade, a força que seu
sentimento emana.
Dia 15

Ser filha única é um estado sempre presente, que a qualquer momento pode pesar. Lembro-me de
contar a um amigo que minha mãe não consegue diferenciar seu corpo do meu. Ainda pulsa um
cordão umbilical. Ao caminharmos na rua seu corpo esbarra no meu constantemente, sem ar. Na
ocasião de meu parto, ela teve uma eclampsia. Houve uma suspensão do tempo em que eu e ela
estivemos de mãos dadas com a morte. O amor pode ser letal. Até hoje parece que seu medo da
perda é tanto, que ela agarra a sua vida em mim. Eu, por outro lado, desenvolvi profunda agonia
por situações que me impedem do direito de ir e vir. Vou à janela fotografá-la, e a encontro com
meu rosto em sua barriga e ela, com um gesto de mulher grávida. Com uma mão segura minha
imagem apertando-a contra a sua barriga, e com a outra, me envia um beijo. Hoje completo 25 dias
de prisão domiciliar voluntária espreitando o invisível, e lá fora, me vejo refletida num porvir de
amor encarcerado. Mas nem tudo é tragédia. Talvez minha maior liberdade esteja dentro de mim.

E é sempre possível oxigenar o amor.


Dia 16

Antes da foto ela me envia um áudio:


“Filha, estou pronta e tô indo para lá. Hoje
eu levo um crucifixo na mão. Você atenta
que hoje é sexta-feira santa, né... então
pedindo a Deus pela humanidade e por
todos nós.” E assim ela sai, abençoando a
si, a mim e a cidade, nos recortes de luz e
sombra desenhados pelo sol nas paredes de
concreto.
Dia 17

Minha mãe sempre colecionou babilaques. E


sempre gostou de festas e de celebrá-las com toda
decoração possível. Eu herdei os dois hábitos.
Dentre estas festas está a celebração da Páscoa,
que é, em nossa família, um momento de muita
união. Sua casa costuma ficar com símbolos
religiosos e coelhos distribuídos por todos os
cantos. Este ano estamos distantes. E ela aparece à
varanda, abraçada em uma almofada de coelho. A
nossa Páscoa, à distância.
Dia 18

28 dias em casa. Tenho sofrido em meu corpo o peso da feitura de concreto e calor que me habita.
Olho em volta e tudo é cinza e duro. Eu, que preciso de mato, água e areia para renascer, já começo
a sentir sua ausência com um pouco mais de força. Acordo com tosse seca, dor de cabeça e dor de
garganta. Meu primeiro movimento é ligar para farmácia para comprar um termômetro e telefonar
para o atendimento do coronavírus para me certificar de que não precisaria me preocupar. O
termômetro chega. Não tenho febre embora meu corpo queime a cada poro. Meço a temperatura
ambiente. São 42 graus na frente do ventilador. A moça pergunta ao telefone se me falta ar. Sim. Ar
me falta. Todos os dias. Mas ainda consigo respirar. Subitamente me lembro que é Páscoa. É dia de
ressureição. É dia de comemorar. Vou encontrá-la como de praxe: eu na janela, ela na varanda.
Entre nós um pombo. Ele sempre está lá. Com toda liberdade que ele tem para voar, ele sempre está
lá, pousado, no mesmo lugar. Minha mãe sai com um coelho paraquedista nas mãos. Um coelho
que voa, mas que está ali, parado, como o pombo. Lembrei -me de uma vez quando um grupo de
estudantes me chamou para voar de paraquedas. Tive tanto receio que acordei com crise de sinusi-
te. Autoboicote: paralisada pelo mundo do futuro, no lugar de viver o presente. Um corpo que voa,
mas que está ali, parado, como o coelho, como o pombo.
Agora já não posso voar. Logo eu, que vivo
transitando em voos, deslocando tempos e
espaços. Trabalho em um local que a cada
dia se mostra, nesse momento, mais opres-
sor, exigindo produtividade presente e
produtividade futura, em tempos de
pandemia. E eu só posso agradecer, dia
após dia, porque tenho um trabalho que
me permite estar em home office. Por um
instante me pergunto se estarei livre
quando puder sair de casa. Sinto-me
protegida aqui. O porvir da rua me parece
histérico. Penso no futuro, logo, adoeço. O
presente, de hoje, está acamado.
Dia 19

Hoje ela não carrega nada. Só seu corpo e


seu amor. Abraça-se, acena, manda beijos.
Tardei a tirar a foto. Sigo enganchada na
enfermidade e a verticalidade se demorou
em sua acontecência. Hoje me distraio.
Vejo o rapaz ao telefone no portão, com-
pondo uma diagonal com minha mãe. Ela
está na sombra, mas logo abaixo se encon-
tram os bougainvilles rosas de seu prédio,
com uma réstia de sol. Hoje percebo o
tamanho da distância que parece tão perto.
Dia 20

30 dias em casa. Caos. Acordo com muita tosse, pior que ontem. Tenho que traba-
lhar o dia todo. Abro o instagram e um amigo médico conta que estão trabalhando
sem nenhum suporte: colocam os equipamentos e após paramentados chegam a
ficar 14h em atendimento direto, sem ir ao banheiro, sem comer, sem beber água,
para atender todo mundo, para não desperdiçar o material. Consulta médica
online. “Você tem febre?” Não. “Você tem falta de ar?” Não. Então fique em casa,
isolada. Só vá testar o coronavírus se tiver falta de ar ou febre contínua. Em meio
a reunião da tarde um suadouro, meço temperatura. 37,5. Estado febril. E agora,
o que fazer? Na reunião discutem-se demandas: tem que fazer mais isso, tem que
fazer mais aquilo, fazer, fazer. Um pouco antes recebo ligação de minha tia de 81
anos dizendo que está gripada. Peço para ela ligar ao médico. Em meia hora ligo
de volta e ela diz que não ligou porque já estava ótima. Demanda, demanda. Suo.
Faz muito calor. As pessoas mais próximas me enviam mensagens perguntando se
estou bem. Um fala pra fazer exame, outro pra tirar raio x, outro pra ficar quieta
que não é nada. Dúvida, dúvida. Você tem falta de ar? Não. Você tem falta de ar?
Não sei. Você tem falta de ar? Pensando bem nem sei se tô respirando. Você tem
falta de ar? Sim. Falta ar, falta ar. Como se deslocar sem ar? Ia fazer uma live com
um amigo e foi cancelada uma hora antes. Seu tio faleceu de coronavírus. Ir ao
hospital? Não ir ao hospital? Mas e você? Se protege! Máscara, luva. Lembro da
respiração. Tem que respirar. Tem que respirar. Você já meditou? Você já fez
exercício de respiração? Tem que respirar.
Tem que respirar.
Mando uma mensagem para minha mãe: tiramos a foto hoje? Não, filha. Hoje o dia
foi tão tumultuado... eu lembrei, mas eu vi que você estava sobrecarregada e eu
fiquei quieta. Amanhã... ou a gente tira agora a noite e eu mando um beijo pra você.
Agora. Agora a noite porque já não sei se amanhã estou se amanhã está se amanhã
estamos a foto não vai ficar boa porque não tem luz e já é noite mas o dia se eterniza-
rá o encontro se dará o projeto continuará ar ar. Ela aparece na varanda abro a
janela já fechada faço uma duas três um monte de fotos e todas ficam ruins borradas
tremidas com um milhão de pixels já não me importo só quero que o dia acabe só
quero que o dia acabe só quero que o dia acabe e que eu consiga dormir e que amanhã
esteja tudo bem boa noite até amanhã não durmo não durmo encosto o rosto no
ventilador para respirar para respirar mando mensagem para meu amigo para saber
se está bem só quero sonhar lembro de respirar respirar você já meditou, você já-
Dia 21

-Respirou?

Não sei. O ar tá pesado. Decido não trabalhar. Preciso olhar pra mim, cuidar de mim, buscar ar em
mim. Pauso. Café. Filme. Vamos tirar a foto? Ela sai abraçada em uma foto de uma viagem que
fizemos a Campos de Jordão. Uma foto impressa no azulejo feita em uma loja em que fomos super
mal tratadas. Eu já nem vi ser feita. Não me delongo em locais que não me tratam bem. Ela sim. A
foto ficou bonita. Não a minha, a que ela mandou fazer. A minha segue borrada. Minha mão treme.
Meu cansaço ganha corpo. E ela sente. Saiu chorando na foto. Almoço. Filme. Lanche. Filme. Nave-
gar por outras paisagens. Imaginar. Criar. Sinto o ar entrar. Me acalmo. Vamos tirar outra foto? Ela
sai a varanda. Agora consigo focá-la. Ela sorri. Mas por algum motivo não consegui me desfazer da
foto tremida. O choro e o riso caminham de mãos dadas em tempos de isolamento. Mas pensando
bem, eles caminham de mãos dadas na vida.
Dia 22

Ele: o pombo.

Estava aquele tempo que não dizia nada. Não era sol, não era
chuva. Mas vinha um sopro de vento de algum lugar. Alívio.
A água ameaçava chegar, mas não chegava. Eu espero à
janela. Ele está lá, no mesmo canto: o pombo. Começo a
perceber que cada vez que clico, ele olha para mim. Lembro-
-me que quando vi este apartamento pela primeira vez, fiquei
um pouco em pânico com este pombal no prédio do lado,
bem na janela de meu quarto. Tenho aversão a pombos. Sou
muito sensível a sons e eles costumam acordar cedo resmu-
gando, além do fato de causarem criptococose pelas fezes.
Hoje me lembrei dos sintomas: dor de cabeça, febre, cansaço,
náuseas, vômito, dor no peito, suor noturno, vista embaçada,
falta de ar. Você está com falta de ar? Sei lá. Agora, agorinha,
só sei que ele está lá. E ela chega, como a dama de vermelho,
compondo com os bougainvilles e portando um guarda
chuva como antecipação ao futuro. Hoje o fotografo obser-
vando nosso encontro, ou seria se encontrando conosco, ou,
ainda, seríamos nós cruzando o seu cotidiano? A primeira
imagem de minha mãe é distorcida lá ao fundo. Aos poucos,
vou me aproximando e tornando-a mais nítida. Hoje as duas
fotos conversam e assumo que somos três e não duas.
Dia 23

Ela me diz por mensagem que está acabando a faxina e que vai tomar banho e se arrumar para a foto.
Pergunto porque não vai do jeito que está. Ela responde que é para a foto não ficar fedida e suada,
senão pingará suor na máquina. Respondo que aí a foto estaria de acordo com a realidade. Mas ela
segue para o banho e quando acaba, avisa que está pronta após limpeza e com muitas flores para
alegrar o dia. Hoje, o pombo me olha e voa, antes dela chegar. Algo há movido na paisagem, apesar
da ausência de vento. Ela surge em primavera, esfuziante.

Vou ao quarto no fim da tarde e a encontro na janela, pensativa. Registrei o momento. Ela não sabia
que eu estava lá. Mas no momento da foto olhou em minha direção. Coisas de mãe.
Dia 24

Hoje, ela surge de amarelo, iluminando toda a rua. Amarelo é minha cor preferida. Simboliza ener-
gia, vida e remete Om, mantra mais importante da tradição indiana. Na cosmologia mexicana, é
renovação. Nas mãos, ela trazia uma borboleta. Havia enviado um dia antes para ela uma foto que
fiz com uma borboleta morta que um dia encontrei na rua e guardei comigo. As borboletas me fasci-
nam. Já fiz um espetáculo, Perpetua, falando sobre elas, como metáfora para a efemeridade da
vida. Os japoneses associam a borboleta à figura da mulher, e a psicanálise a encara como símbolo
do renascimento. Reflitamos, então, sobre a insana oportunidade que estamos tendo de nos rever-
mos como humanidade. E que a natureza sábia, continue nos mostrando a importância da vida.
Dia 25

Antes da foto, ela me liga, falando como se falasse com um bebê. Minha mãe se amarra ao passado
com muita força. É um hábito. É como se para ela o mundo tivesse parado no tempo. Talvez por isso
ela não perceba que eu já saí de sua barriga e décadas se passaram depois disso. Sinto que ela quer
me segurar no seu tempo, mas como vivo o tempo presente, escapo. Agora suas memórias se ativam
mais do que nunca. Viu uma reportagem sobre castanha do Pará, mostrando um ouriço com as
castanhas dentro, todas arrumadinhas, e lembrou da infância dela, no colégio, passando em frente
a uma fábrica e pegando o ouriço que ganhava, pra abrir e comer a castanha. A comida sempre foi o
modo que minha mãe encontrou de manter as pessoas em torno dela. É um dos jeitos que ela tem
de espalhar amor e de se sentir menos só. O que mais gosto de comer é empada de queijo. Essa é a
minha memória de infância, do meu Rio de Janeiro, querido. Hoje ela faz empadas de queijo e me
manda as fotos. Estou de dieta. E também hoje, que escolho o dia para chorar, não digiro aquela
imagem, assim como não digeri a fala “tatibitati”. O que para ela é um modo de me ter mais perto
por meio do paladar e da fala, para mim é só dor e afastamento. O que qualquer um acharia fofo, eu
só acho deslocado. Viver o momento presente tem dessas coisas: não é a foto perfeita.

E cada imagem/som é entendida/o da maneira como o corpo


presente lhe permite entender, nas suas falências.
Dia 26

Lá está ela. E só. Já se acabam as surpre-


sas. As ideias começam a se mesclar a
preocupações. Eu sigo doente e sigo sendo
atendida por um médico-whats app, situa-
ção mais rara. Mas nem isso me surpreen-
de mais. Uma rede de apoios se faz em
volta. É bonito de se ver. Sair e saber que
estamos administrando a saúde já é muito.
Hoje a luz rabisca o prédio criando outros
desenhos. Até o pombo cansa de nossa
companhia e investe na sua capacidade de
voar. Minha mãe manda os beijos e abra-
ços cotidianos e se distrai olhando pra
baixo, pro horizonte. Os gestos se alteram.
A repetição nunca é igual. Despeço-me,
mudo de janela e vou ver a nesga de mar.
Hoje conversamos. Ele disse que vai ficar
tudo bem e, em breve, poderemos dançar
juntos novamente.
Dia 27

Fui dormir 3h30. Gradativamente vou trocando a noite pelo dia. Viver abraçada por prédios está
cada vez mais pesado. A noite choveu muito, com relâmpagos e trovoadas. Num impulso fui tomar
banho de chuva debruçada no parapeito da janela, até que o raciocínio pousou sobre mim e lem-
brei-me que poderia piorar daquilo que se instalou em meu corpo e eu nem sei o que é. Corri para
me secar e tomar paracetamol. Ao mesmo tempo que a culpa católica assolava meu corpo pela única
loucura cometida em exatos 37 dias de isolamento, eu estava tão feliz que só podia pensar: se eu
morrer, morrerei feliz. Impressionante os delírios que podemos ter. Acordo e vou fazer a foto dela.
Preciso ser rápida e certeira, pois parece que a chuva não passará e eu não quero que ela adoeça.
Assim é. Como um flash. Hoje é desses encontros apenas para dizer:

Estou aqui e estou viva.


Dia 28

Acordo pior. Meu local de trabalho mantém quase todas as atividades regulares, insistindo numa
possível normalidade dentro de uma pandemia. Reuniões inoperantes que se repetem uma e outra
e outra vez, acerca dos mesmos temas, que dão voltas em torno de si, cuspindo uma verborragia
totalmente desconectada da prática. Quando vamos aprender a ouvir? A natureza parando o
mundo, pessoas se despedindo da vida, e nós, ainda, perdemos tempo nas nossas velhas repetições.
Uma e outra e outra vez, sem sair do lugar. Geração após geração. Cansa-me, canso-me. Não é de
hoje. Não acabará hoje. Então, o que fazer com o cansaço além de adoecer? Penso e repenso... 38
dias sem sair de casa... nem para ir ao mercado... o médico não nomeia o vírus mas parece me tratar
como alguém que tem covid. Acho que não quer me apavorar. Os amigos... Você tomou limão? Gen-
gibre? Tá comendo bem? Meditando? Toma muita água! Assiste algo leve. Faz o que você gosta.
Marina Lima ficou grávida de um liquidificador, se fui viralizada foi por uma sacola de supermerca-
do... Ironias da vida? Decido fazer a foto para me desocupar desses meus pensamentos tão cíclicos
quanto o que eles criticam. Minha mãe aparece estendendo a Nossa Senhora de Nazaré junto com
seu beijo. Estou abençoada e sigo o dia cuidando de mim. Nesse caminho, meus amigos também
estão comigo e aparecem virtualmente um a um ao longo do dia numa rede intensa de afeto que me
abraça com amor. Estou abraçada nessa caminhada.
Dia 29

Tenho meditado. Ontem meditei, quando fui deitar pra dormir. E quando estava quase apagando,
shhhhhhhhhhh o ar insiste em não vir, busco, busco, não consigo engolir, shhhhhhhhh ar teimoso,
cavo tento puxo me movo cadê ele cadê ele não vai pro hospital pode ser contaminada isso parece
alergia diz o médico sim mas não estou respirando shhhhhhh avisa uma amiga avisa as primas
doutor tô indo chego lá técnicos discutindo quem ficaria com quem porque não tem mais gente
suficiente para cuidar enfermeiros como pacientes puxo puxo cadê não vem mede logo a pressão faz
logo isso passar repito tudo não aguento shhhhhhh mais repetir os sintomas os amigos escrevendo as
primas escrevendo o médico que tem me atendido escrevendo muito plástico muito alcool muita
shhhhhhh é alergia toma anti-histamínico com efeito calmante rapidamente drogada vai para casa
tira tudo no corredor alcool gel banho sabão muito sabão deito já quase apagada Acordo sem enten-
der o que ocorreu informo à minha mãe o que aconteceu. Hoje é dia de São Jorge. São Jorge protetor.
São Jorge abre caminhos. Força guerreira. Proteção. Em Barcelona e na Catalunha, em geral, meus
lugares de coração, é o dia onde se trocam flores e livros. Meu São Jorge vermelho caiu e teve a cabeça
quebrada. Minha mãe a colou e ele está na casa dela. Ela sai à varanda, vestida e armada com as
roupas e as armas de Jorge. Escuto Jorge Ben Jor para começar o dia. E encontro um Bando de gente
deshierarquizada reunida pra estudar improvisação em dança. Respiro. Revivo nos braços de Jorge.
Dia 30

Minha mãe tem um jeito só dela de complicar a vida. Coisas muito simples de serem resolvidas
podem se tornar assunto para um dia inteiro. Quando faço uma pergunta, ela faz várias digressões,
mas nunca responde, de fato, o que eu perguntei. É como se ela quisesse estender o tempo de
conversa e para isso dá voltas contínuas sobre o assunto sem chegar ao resultado final. Tento ter
paciência com essa característica. Mas um dos meus defeitos é a impaciência com coisas cotidianas
pouco objetivas. Defeito esse que luto para alterar. Costumo a achar que as pessoas complicam por
demais a vida aumentando obstáculos facilmente removíveis. Tenho o hábito de achar que a vida é
para se resolver e não para nos deleitarmos nos problemas. Eles existem e sempre existirão. Então
sigamos logo para as resoluções, assim me sobra tempo para todo resto que há de bom. Quando
estou de tpm ou doente, minha paciência se acha no direito de tirar férias. Às vezes não me obedece
nem com muita conversa, vira as costas e vai embora. E nesse abandono, hoje discuti com minha
mãe. A foto foi feita duas horas depois. Ela sai à varanda de amarelo, com um sorriso aberto, man-
dando beijos. Pede pra eu esperar. Busca um balão em formato de golfinho. Eu amo golfinhos.
Dizem que na praia perto de casa é possível ver alguns. Mas eu nunca os vi, então sigo olhando o
horizonte na expectativa de um dia encontrá-los. Isso me acalma. Ela me escreve. E suas palavras
dizem: o golfinho é para celebrar a alegria por você estar bem. Mãe é perdão encarnado. Peço a
Yemanjá que junto com os golfinhos, me traga a paciência de volta. Parece que eu a avistei, ao
longe, num passeio de barco. Está mais viajada que eu.
Dia 31

Acordo mareada. Sigo dopada e com sono. O País, acéfalo, precisa de respiradores para manter-se
vivo. Entre os corpos que caem e a economia que se transforma, os ministros da saúde e da justiça
batem retirada da linha de frente, um demitido e outro demitindo-se, desenhando a cada notícia
um ciclo de horrores, no qual a pior crise está sempre por vir. Como disse um amigo meu, brincar
de Bela Adormecida nesse momento pode até ser uma vantagem. Dentre esses nacos e cacos que
deixam rastros daquilo que um dia se chamou de pátria amada, acordar e manter-se de pé já pare-
cem grandes feitos. Acordar com saúde é artigo de luxo. Estou viva e melhor. Isso já me torna uma
privilegiada. Ao que consta, na extrema higienização contraí uma crise alérgica dos químicos da
água sanitária com detergente e do pó que se levantava a cada limpeza. O corpo sempre busca um
modo de morrer. Viver é resistência diária. A gente é que não nota os detalhes. As atuais falências
escancaradas parecem destilar um sabor de coloração ocre com pitada de desesperança. Mas agora
que o buraco virou cratera, acredita quem quer no conto do vigário, mas cair, ahhhh cair, cair,
caímos todos, uns, claro, mais fundo que os outros, como toda desigualdade regulamenta. Quando
ameaço voltar para minha alienação voluntária, ativada como modo emergencial de sobrevivência,
chegam algumas mensagens no direct do instagram. Pessoas escrevem para me dizer como estão
emocionadas com minha história e a de minha mãe. Algumas delas nunca vimos e nem sabemos
quem são. Uma jornalista me escreve querendo sugerir nossa história como pauta para um jornal
local. Um rapaz me escreve se oferecendo para vir com um drone filmar uma mensagem minha para
minha mãe. Envio alguns desses textos para ela, que se assusta com a dimensão que algo tão íntimo
está tomando. Mas logo pondera: estou feliz porque nossa história tem feito bem a tantas pessoas.
Parece que no meio dos destroços sempre se encontra uma rosa e um som de violoncelo ao fundo
para se escutar. E é na força da poesia que desafio a gravidade para levantar. Termino o dia com a
força de Ekman, assistindo ao espetáculo Midsummer Night´s Dream. Por uma hora e meia volto
a acreditar na força do coletivo e da dança.

Vamos sonhar!
Dia 32

Devo acreditar que meu corpo tenha se entendido bailarino do espetá-


culo assistido no tardar da noite passada. Revolvia-me pela cama,
madrugada afora, sem cessar. O calor violentava meu corpo com
alguma fúria. Dormir era assunto desconhecido. Quando desperto, já
se foi meio dia. E com ele, aquela sensação de tempo amassado, que
não se pode voltar. Faço registro de minha mãe. Desde ontem, noto
que ela começou a usar cores mais vibrantes e colares multicores.
Parece que a história da história, em efeito metalinguístico, começa a
lhe alcançar os ânimos. E eu sigo aqui, de camisola, esperando a vida
me içar.

Dia 33

Após outra noite conturbada, dançando, dessa vez, com os cisnes do


Ekman, acordo num dia com cara de não sei. Chove, mas logo pára e
uma massa cinzenta se prolonga no dia. Registro minha mãe no perío-
do que o sol nos permite um pouco de claridade. Ela segue solar em
contraponto às águas que se acumulam do temporal recém suspenso.
O jornal entra em contato conosco. Viraremos notícia de primeira mão
do dia das mães.
Dia 34

Na medida em que os dias passam, percebo que ela já instaurou em seu corpo uma coreografia do
encontro. Dirige-se ao canto principal da varanda, procura a janela. Quanto mais claridade, menos
ela enxerga meu vulto, eu percebo. Dá adeus, se abraça, coloca as mãos nos lábios beijando-as,
envia seus beijos para mim. Olha para baixo, ajeita o cabelo que se atropela com o vento, espera um
pouco com as mãos apoiadas no parapeito, na incerteza se a foto foi registrada, sai. E a cena rotinei-
ra se repete. Todo dia ela faz tudo sempre igual, já diria Chico Buarque, artista de quem herdei a
paixão por meio de minha mãe.
Dia 35

Entre uma tarefa e outra nos encontramos. A coreografia se repete. 1,2,3,4. Parece tudo da mesma
forma, só com outra roupagem. Mas a luz está ali, presente, para lembrar que hoje a composição é
outra. Nada permanece igual. A cena me convida a olhar os detalhes.

Dia 36

Quando chego à janela a coreografia já está sendo dançada. Faço um registro e ela sai da varanda.
Hoje o encontro é esse. Efêmero, como a dança que fiz às 4h da manhã, para dois desconhecidos (ou
conhecidos?) em uma live surpresa no instagram. Um acontecimento.

Dia 37

Hoje ela sai com um livro às mãos. Daqui só vejo um por do sol na capa. Ela me diz por telefone que
o livro se chama As Cores do Crepúsculo, de Rubem Alves. Novamente minha mãe lê sobre a velhi-
ce. Os atravessamentos do tempo têm rodado fixamente ao seu redor.
Dia 38

Hoje acordo com um telefone de um jornal


local. Em seguida o jornalista liga para ela.
Mais um tempo e ele me escreve: “Ana,
confesso: cada vez mais emocionado com
cada vídeo, foto, relato... Acabei de conver-
sar com Dona Nazaré e que presente de
pessoa! Muito obrigada por me permitir o
contato com vocês, a conversa.” Vou à
janela fotografá-la. Ela está radiante. Sai
com um colar de coração, pulsando em tom
maior. Ao terminar a foto ela me liga.
O jornalista perguntou qual era o sonho dela. Na noite anterior, eu tinha feito a mesma pergunta a
ela em função de um ciclo de meditação que tenho feito. Para mim, ela respondeu que era me ter
sempre próximo, mesmo não estando junto, porque aí ela sabia que não estava só. Para ele, ela
respondeu que atualmente é difícil sonhar. Ele havia me perguntado qual era o meu sonho para ela.
E eu havia respondido que era ela aprender a cuidar de si mesma, ter mais amor próprio. Em uma
trajetória marcada por cuidar de amados enfermos, seu próprio corpo foi se apagando. E sua
presença ficou apoiada no cuidado do outro/a, que dependia dela que dependia dele/a. Toda
pergunta pessoal que faço a ela, ela desvia, sabota e redireciona para mim, sem nem ao menos
pensar na resposta. Eu sempre senti que a pessoa que não sonha perambula em pulsão de morte. E
a minha própria mãe parou de sonhar. Quem sabe, então, o dia das mães traga a ela o meu desejo e
ela reaprenda a saborear o tempo presente, redesenhando seu corpo em nova pulsão de vida.
Dia 39

Hoje ela sai com o chinelo na mão, limpando algo do parapeito. Procura-me, sorri. Acena, como de
praxe. Click. Nosso encontro marca o tempo, dos dias que se perdem em si. Eu já me afogo em mim
mesma, no fantástico mundo de Ana. Ouvir o silêncio de Fortaleza é conforto para meus ouvidos.
Olho notícias sobre o aumento de latrocínios na cidade e, também, de casos de Covid-19 provocados
pelo desrespeito às indicações da OMS. Por um relance penso no retorno: os ruídos, o trânsito, a
violência, as reclamações, a ânsia de se viver o que não se viveu. Um filme de terror se apresenta.
Páro. Respiro. Parece que estou bem aqui. Comigo mesma e na companhia de um tempo elástico.
Coisa estranha para alguém que persegue as coletividades. Busco a natureza que sou, fecho os olhos
que abraçam uma árvore e navego nos delírios da criação. Um dia desses, eu dizia: não sei se é a
criatividade que causa insônia ou se a insônia gera criatividade. São 4h18 da manhã, quase hora de
fazer a próxima foto. E eu sigo aqui nas minhas inventividades. A espera do próximo encontro.
Dia 40

Das belas histórias que se criam a partir dessa história, eu já poderia escrever um livro. E hoje vou
contar uma delas. Conforme já relatado aqui, um dia recebo uma mensagem de alguém desconheci-
do. Era um rapaz que, sensibilizado com nosso percurso, oferece-se para vir filmar uma mensagem
minha para minha mãe, com um drone. Seria mentira dizer que não me assustei. Primeiro com o
alcance que uma história de amor pode ter, quando exposta na internet. Depois porque pensava nos
riscos de toda essa ação: o risco dele sair de casa para me filmar, o risco de dar meu endereço para
alguém que não conheço, o risco de me arriscar e por a minha mãe em risco. Lembrei da fala de um
amigo entendendo o risco nesse lugar do desenho, que se constrói e elabora imagens. O que seria a
vida senão o risco? Logo eu, que experencio a improvisação em dança e que vejo ela surgir de
relações muitas vezes inesperadas que se irrompem, não poderia receber esse presente sem refletir
sobre ele. Improvisar é mergulhar no desconhecido, assim como viver. Algumas das pessoas mais
especiais que conheci me foram apresentadas pela vida em situações inusitadas e pelos mergulhos
que me permiti a dar no escuro. É preciso confiar na vida. Deixei o tempo me dar a resposta.
Enquanto os dias se passavam e eu conversava com ele para saber como poderíamos pensar essa
ação, sem colocá-lo em risco, a tia dele, jornalista que já tinha me procurado para pautar a história
no jornal, me telefonou para dizer que eu não ficasse preocupada porque o rapaz era seu sobrinho.
Fortaleza tem algumas curiosidades: apesar de sua imensidão, seu funcionamento social por vezes
pode parecer interiorano. Quando me mudei para cá, um amigo cearense me disse: já já você verá
que aqui todo mundo se conhece. E assim foi, e assim é. Em alguns dias foram se cruzando pessoas
que traziam outras relações com este desconhecido. Hoje acordo bem cedo. Nosso encontro, a
distância, se configura. Ele me escreve dizendo que chegou. De dentro do carro, procura minha
janela. Minha mãe sai à varanda, assim que ele chega, e olha para baixo. Ela não sabe do encontro.
Rapidamente retorna à casa e não aparece mais. Ele me diz que quando levantar o braço é porque
o drone começará a filmar. Ele levanta o braço. E eu danço minha mensagem para a minha mãe. O
barulho do drone desperta a atenção do rapaz que limpa o prédio vizinho. Ele me assiste em contra
plongée. Danço olhando para o vazio da varanda. A presença dela ainda habita este espaço. Ele
levanta o braço novamente. É chegado o fim. Escrevo, emocionada, agradecendo. Ele responde que
é uma satisfação. Chamo minha mãe para fotografá-la. Estou tremendo. Clico várias vezes e sua
imagem permanece borrada. Hoje resolvi insistir. Na dança que fiz para ela, em um momento
dancei com os dedos. Para minha surpresa, na insistência, minha mãe começa a coreografar seus
dedos, tentando me dizer sobre seu impulso de caminhar até aqui. Dançamos juntas em tempos
distintos. As conexões reais transcendem a presença física.
Dia 41

Tem dias que tudo acorda de cabeça para


baixo e segue assim, de ponta a cabeça, para
oxigenar. Tudo se chacoalha, você esquece
de si mesma e rearranja tempo na adminis-
tração do caos. Quando volta o momento de
olhar para si, dá um alívio. Gosto de estar na
minha companhia. Sigo para a janela, aceno
e fotografo. Hoje ela está da cor do céu.
Lembro-me das inúmeras vezes que ficamos
imaginando figuras nas nuvens e o hábito
que tenho de fotografá-las quando voo. As
nuvens nos ensinam que o mundo gira, que
tudo passa, que a vida dança.

Dia 42

Hoje eu já estava na janela quando ela


chegou. Eu assistia a cenas de amor explíci-
tas. Há 3 dias o pombo, que não aparecia,
surgiu acompanhado e enamorado. Por
detrás de suas carícias e beijos aparece
minha mãe, serelepe. Há um clima de
alegria no ar.
Dia 43

Hoje ela volta a rasgar papéis. Encontra entre as


lembranças uma caricatura minha e é com ela
que vem me visitar na varanda. Minha memória
quase sempre é uma imagem vaga no horizonte.
Não lembro onde esta imagem foi feita. Mas é
interessante que logo eu, desatada do hábito de
me olhar no espelho, me veja assim, retratada por
outro alguém. O olhar de cada um sobre nós
também nos constitui como seres humanos.

Dia 44

Cheguei ao fim de semana, exaurida do trabalho.


Nosso encontro hoje foi rápido. O excesso de
contato com equipamentos eletrônicos desfaz
qualquer energia que eu insista em ter. Envio um
beijo, faço o registro e busco descanso. Meu
corpo, em estado de esgotamento, exige pausa.
Dia 45

55 dias de distanciamento social. 45 dias de lockdown. Dia das mães. Acordo e meu celular está
repleto de mensagens. Safety Distance saiu na capa do caderno Verso, do Diário do Nordeste, com
uma matéria feita por pessoas amorosas e cuidadosas, que têm trabalhado de forma incansável e
arriscada nesse período de enfermidade crônica. O projeto foi replicado em território nacional via
twitter e inúmeras pessoas se conectaram com a história ou a repudiaram. Em um país de desigual-
dades sociais latentes, o ódio sempre se manifesta mesmo quando o assunto é amor. Não julgo. Se
o fizesse estaria fazendo o mesmo que fizeram comigo. Ter empatia não é saber a dor do outro, mas
reconhecê-la e respeitá-la. E respeito toda dor que foi projetada em nós, porque sei que ela é fruto
de tantas outras dores provocadas por um sistema sócio-econômico que desfavorece a grande
maioria de nós, historicamente, e o qual dedico minha vida tentando colaborar para alterar. Mas
ainda é pouco. Sempre é. Em um País onde o seu maior dirigente passeia de jet ski em meio a uma
pandemia, apagando a morte de dez mil pessoas e a vida de outras tantas que agonizam por falta de
saúde ou de condições de subsistência mínima, qualquer coisa que fizermos em busca de justiça
social, ainda é pouco. Por outro lado me impressiono com a autoridade operada pela internet que
legitima que as pessoas saibam mais da nossa vida do que nós mesmos. Os posts odiosos inventa-
vam tantos fatos sobre mim, que se poderia criar uma novela das 20h com personagem já montado.
A imaginação realmente é poderosa. A internet também. Mas da mesma forma que elas podem
criar equívocos, distâncias, mentiras, elas também podem criar aproximações, afetos, conexões.
Foi uma avalanche de mensagens carinhosas. Tem um mar de gente que vibra no amor: gente de
todas as cores e todas as dores, de todas as experiências, idades, bairros e de todas as classes
sociais. Muitas delas, muitas mesmo, as quais desconheço, vieram contar suas histórias para mim.
E agradeço. Eu relutei muito para compartilhar essa intimidade, mas quando vejo que ela inspira
sutilezas que precisamos reforçar no mundo, fico feliz pelo caminho escolhido. Não, não somos
exemplo, não somos melhores, não somos perfeitas. Somos apenas duas pessoas que se amam e
que nesse momento não podem se abraçar. Parece conto de fadas mas a vida não é feita dessa maté-
ria. A vida real tem muitas camadas e é muito mais complexa do que possa parecer. Isso não nos
impede de sonhar, lutar e agir pela democracia e justiça nesse País. Junto com a matéria, chega de
presente um vídeo, que também foi produzido por um encontro gerado nessa conexão de afeto.
Ainda não conheço o videomaker pessoalmente. Como contado anteriormente, as imagens foram
feitas a longa distância e sob proteção. Minha mãe se sentiu homenageada e se emocionou profun-
damente. Aos estranhos, tão próximos, que se mobilizaram para presentear-nos, só gratidão. Feliz
dia das mães, que se faz cotidiano. Desejo que juntxs possamos pedir e agir pelas mães e filhxs que
têm se despedido e por aqueles que têm sua sobrevivência marcada pela violência e pela injustiça.
Dia 46

Hoje me preenche o vazio. A foto não sai. O texto não sai. Hoje
é daqueles dias que não tenho nada a dizer. Ou talvez tenha.
Às vezes, ou quase sempre, o silêncio é um modo de fala.
Escuto o silêncio e falo por meio dele. O casal de pombos segue
lá no parapeito, entre beijos ardentes. Ela sai. Com o livro
Pássaro Encantado, de Rubem Alves, nas mãos. Quantas
vezes li e reli este texto, que termina assim: “Ah! Mundo
maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro
encantado que se ama... E foi assim que ela, cada noite ia
pra cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.
– Quem sabe ele voltará amanhã. E assim dormia e sonhava
com a alegria do reencontro.” Que bom que eu estava em silên-
cio para ouvir o som da voz de Rubem Alves lido por minha
mãe. Pois vou dormir, sonhando com o reencontro de cada dia,
ainda que a distância, mas esperando o dia em que poderemos
nos beijar novamente.
Dia 47

Ela sai de óculos. Cada detalhe é um gesto da


passagem do tempo. Veste verde, sua cor
preferida, cor da esperança.

E seguimos.
Dia 48

Hoje tudo está ainda mais do avesso. As simples coisas cotidianas vão ficando cada vez mais com-
plexas com o lockdown. Uma ação atravessa a outra, os horários se mesclam, as coisas se atrasam,
os fluxos são outros. Ela sai à varanda no fim da tarde. O sol está contra a câmera. Uma névoa de
luz recai sobre ela. Impossível fotografar. No entanto, ou é isso ou a foto se tornará desistência pois
as reuniões encavaladas seguem uma após a outra. Faço o registro na possibilidade que se apresen-
ta, ela está meio cabisbaixa nos primeiros clicks porque não me vê, nem o vulto. Mas quando o sol
baixa um pouquinho ela se anima timidamente. Hoje é isso. Voltar para a imersão virtual e seguir
o ritmo para ganhar o pão.
Dia 49

Antes da foto ela estava com rolos na cabeça, antigo


hábito que ainda perdura. Pedi para fotografá-la assim,
mas ela não quis. Foi pentear-se para a foto. Ela sai, o
vento bate e invade seus cabelos com força. O dia escuro
e o corpo em movimentos rápidos deixam a foto turva.
Ela ri. Resta rir. A vida não é controlada como deseja-
mos. É preciso saber rir de si próprio e dos acasos.
Dia 50

Não vi o dia passar. Uma função virtual atrás da outra. O dia está
cinza. E ela vermelha. Seu cabelo reluz como floco de neve. Foi a
única luz que vi fora das telas dos eletrônicos hoje.

Um respiro.
Dia 51

Cada vez que chegam compras no delivery, o meu dia se resume em negociar com o entregador as
ausências, as trocas, os acréscimos, os horários. E, claro, dar banho em coisas. Dos hábitos que
nunca pensei em ter na vida: dar banho em sabonetes. É preciso surpreender-se com as experiên-
cias. A casa se perfumou de baunilha. Ela sai linda. É um alento. Amamos baunilhas e orquídeas.
Quando lembro de orquídeas, lembro de Lenine, cuidadoso e curioso colecionador dessas lindas
plantas e um dos artistas que me fazem flutuar. Ele tem me feito companhia nesse isolamento,
ainda que não tenha tido a linda oportunidade de saber disso. Há pessoas necessárias nesse mundo
porque elas não desistem da poesia. Felizes são os que conectam com elas. Então convido que a
leitura deste dia seja seguida da escuta de sua canção poema, Paciência:

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / até quando o corpo pede um
pouco mais de alma / a vida não pára. Enquanto o tempo acelera e pede pressa /
eu me recuso faço hora vou na valsa/ a vida é tão rara. Enquanto todo mundo espera
a cura do mal / e a loucura finge que isso tudo é normal/ eu finjo ter paciência/
o mundo vai girando cada vez mais veloz / a gente espera do mundo e o mundo espera
de nós / um pouco mais de paciência / Será que é tempo que lhe falta pra perceber /
será que temos esse tempo para perder/ e quem quer saber / a vida é tão rara
(tão rara) / Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / Mesmo quando
o corpo pede um pouco mais de alma/ eu sei, a vida não para / A vida não para não.
Dia 52

Hoje ela sai celebrando o domingo. Decidi fazer biscoitos. Tocar a textura aveludada da farinha de
trigo me acalma. Monteiro Lopes é um biscoito que surgiu entre 1850 e 1890 em torno do meu tão
amado Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, sua terra natal. O biscoito se chama assim em homena-
gem à família que o criou. Minha mãe aprendeu essa receita com minha avó. E eu aprendi com
minha mãe... das poucas receitas que ela me ensinou a medida certa. Porque normalmente as quan-
tidades de sua pedagogia culinária se resumem à célebre frase: é no olho. O tamanho do meu olho
é diferente do dela, então nunca consegui chegar a um resultado gastronômico similar. Como exce-
ção, estão aquelas receitas que ela se debruçou sobre a medida certa, para anotar num caderno que
pedi para ela fazer para mim. Preciso de receita até para cozinhar um ovo. Mas após destruir a
cozinha, costumo obter resultados saborosos. O de hoje não foi diferente. Após permitir de forma
descuidada que a calda derramasse lentamente em todo fogão, que eu havia acabado de limpar,
finalizei minhas pequenas delícias, com cheiro de casa de mãe, para afagar o coração. Ela quis
comer. Por um momento tive um ímpeto de ir visitá-la, mas tivemos medo. Seguem fazendo festas
em meu prédio. Os funcionários começam a adoecer... consideramos, ponderamos, desistimos.
Hoje quem manda a foto dos biscoitos sou eu...
Dia 53

Ela disse: vamos tirar a foto que já estou com minha coroa. E sai reinando alegria, com uma blusa
de borboletas, flores e cores.

Dia 54

Acordo acamada. Garganta inflamada. O mundo pede que eu me cale. Dói falar porque dói sentir.
É isso. O dia seria de pausa. Mas tem que trabalhar. Tem que trabalhar. E tem que lembrar de agra-
decer que tem trabalho. Tem que trabalhar. E agradecer. Agradecer e trabalhar. Já disse isso. Já. E
não só hoje. O texto se repete. A doença se repete. O trabalho se repete. A vida se repete. A repetição
se repete. No meio disso tentamos sobreviver. No meio disso tentamos ser solidários. No meio disso
tem muito meio. E eu costumo falar sobre os meios, questionar os meios, provocar os meios, deses-
tabilizar os meios. Então o mundo me calou. Hoje a foto foi só pra dizer: levantei por alguns segun-
dos, mas me levantei.
Dia 55

Eu já não sei há quantos dias tô aqui. Me perdi. Mais remédios. Mais letargia. Levanta e tela. Tela,
tela, tela. Lembro de comer. Lembro da foto. A luz quase se foi. Foram feitas 30 fotos e nenhuma,
tentando manter a nitidez de uma imagem que não é nítida. Tá tudo embaçado. Tudo. Nem tinha
notado que ela estava com uma blusa que foi minha. Abandono. Minha mãe sente. Seus gestos são
desistidos. Há um cansaço. Há um cansaço. Há mesmo um cansaço. Uma foto é da partida. Tem
que ser da partida. Pela primeira vez o degradé do céu do Ceará que costumava encantar meus fins
de tarde, aparece para me dizer que há um porvir, sempre há um porvir. Aquele dia não saímos para
a foto. Saímos para encontrar o céu. Decido contar os dias. 65. É mesmo...
Dia 56

Meu corpo não sou apenas eu. Meu corpo são muitos. Sou docente, mas antes de tudo sou artista
docente, mas antes de tudo sou cidadã docente. Sentir a dor emocional dos estudantes que me
cercam tornou-se minha dor. Assim como tantas outras dores de amigos e não amigos que fazem
eclodir nesse momento os mundos tão díspares em que vivemos. Hoje a tristeza me alcança, minha
coluna curva, meu pescoço pesa. Há dias e dias. A vida é assim, dentro ou fora do isolamento.
Minha mãe sai com sorriso largo. Suspiro. Eu só queria poder deitar em seu colo.

Dia 57

Hoje a foto é entre uma faxina e uma live. O encontro é pontual. Limpar a casa e tomar um banho
para receber quem chega. Deixar o ambiente perfumado. Buscar a leveza em mim para trazer mais
leveza pro mundo. Estamos precisados. A live é de um amigo que me acolhe como cearense, que me
faz sentir abraçada em Fortaleza, que me faz rir. E hoje também comemoramos seu aniversário. Ele
pede uma receita e fazemos os Monteiro Lopes online. Ele pede que eu conte sobre o projeto com
minha mãe. E assim minha mãe novamente se materializa no instagram sem nem saber que lá
estava. Ela sempre está entre nós. Ele me presenteia com a Peça Aquática, de Yoko Ono: “Roube a
lua da água com um balde. Continue roubando até que não se veja a lua na água. Primavera de
1964.” E agora me sinto no desejo de ser lua dançante. Onde está a lua em mim? Como a lua me
dança? Termino o dia cantando Beradêro, de Chico Cesar. Lembrei que posso cantar.
Dia 58

Hoje acordei cedo e já fui fotografá-la. O


presente que a natureza nos deu foi uma
linda luz recaindo sobre ela. E essa imagem
seguiu ecoando ao longo do dia. O vento
invade seus cabelos. Ela ameaça ajeitá-los
e creio que se lembra da última vez que
ocorreu isso e comentei da beleza daquela
dança dos cabelos provocada pelo ar.
Então pausa e permite o vento seguir seu
curso. Este é o registro de hoje. Neste fluxo
de respiro, um amigo me chama pra tocar
na festa online “Ajuntamento”. Em menos
de três horas a festa está montada. Meu
corpo reage à paralisia dos dias.
Dia 59
Dia de descanso.
Dia 60

Um

corpo

que

cai.
A dor se manifesta novamente, na garganta, no ouvido. Mas talvez seja mesmo a dor da falta. Fecho
os olhos e penso: queria ver o mar, queria ver minha mãe. Vou à janela. Ela sai com as mãos em reza
para me abençoar. O médico tem receio de uma infecção, sugere a ida ao hospital. Lá estou eu de novo
na dúvida. Minha imunidade baixa me traz reticências e pela primeira vez reflito: “estou preparada
para voltar ao mundo?” Volto a tomar o remédio. Química, química. As doenças foram se arrastando
em meu corpo e ontem brinquei: o isolamento me tornou uma hipocondríaca. A noite tenho uma live
agendada para improvisar com 13 pessoas ao longo de uma hora. Preciso estar bem. Esse mantra se
repete, uma e mais uma e mais uma e mais uma vez. E danço. É transcendental. A entrega de todos,
o desejo de encontro, a generosidade, a energia gerada. Termino em êxtase. Corpo em transe.
Dia 61

Acordo bem. Além da química, a benção e o


rito da dança me fazem trasladar. A repeti-
ção dos dias faz com que nosso encontro se
converta quase em uma tarefa a cumprir,
em meio a exaustão das tarefas cotidianas,
mas vê-la traz alento. A saudade aperta. Há
coisas que o tempo não traz de volta. A
presença é uma delas. Faço um bolo de
chocolate com coco, receita dela, e o aparta-
mento se enche de afago.
Dia 62

Definição de infinitude: serviço de casa, misturado a trabalho, misturado a estudo, misturado no


tempo, misturado no misturado. É irônico. Meu sotaque, também misturado, sempre causava
questionamento: de onde você é, de onde você vem? E eu sempre respondia: sou do mundo, moro
no avião. Pois agora aqui estou, há 72 dias dentro de casa, abrindo a porta duas ou três vezes na
semana para pegar entrega e jogar lixo fora. Parte do corpo pausa e pousa, mas a outra parte segue
deslocada. Hoje foi ela quem me ligou, preocupada. A manhã passou de modo invisível. Acordei às
6h e sua ligação me alerta que já são 13h. Tenho tendido a achar que minha casa se auto desorgani-
za, como um organismo independente. Qualquer dia não encontrarei a mim mesma em meio as
coisas que me fazem companhia. Aproveito que ainda não me perdi em mim e vou à janela encon-
trá-la. Hoje ela não me enxerga. Seu rosto está triste.
Dia 63

Acordo e vou fotografá-la. Ontem ela pediu que a foto fosse pela manhã para ela tentar me enxer-
gar. A luz muda muito a possibilidade de existência do meu vulto-corpo para ela. Ela sai e vê algo
de mim. Fica feliz. Hoje, acima, sua vizinha reaparece em alongamento, e no prédio ao lado, meni-
nos jogam futebol. Parece que lá fora anda tudo normal. Às vezes penso sobre minha radicalidade
de não sair, de fato, de casa. E as consequencias disso para o físico/emoção/imunidade. Ontem à
noite, o céu me permitiu ver um degradé entre azul, rosa e amarelo. Fez-se aconchego.
Dia 64

Hoje a luz está favorável para que ela me


veja. Seu corpo se anima quando pode me
ver. Ela está reluzente e a foto se faz na
primeira tentativa. É bonito quando o
encontro se faz fluxo leve.

Dia 65

Ela está com desejo de tomar sorvete


sonho de valsa, o chocolate que mais gosta.
Peço para entregarem na casa dela. Ela sai
à varanda extremamente contente, toman-
do seu sorvete. Os afetos dos alimentos,
por vezes, tentam nos ajudar a diminuir as
distâncias.
Dia 66

Hoje o dia amanhece chuvoso. A gente comemora o tempo


que nos foi dado de suspensão do duro calor. Hoje é dia de
ver filme. A minha paixão pelo cinema veio de minha mãe.
Recordo-me desde muito criança de ir aos cinemas de rua,
no Rio de Janeiro. E, antes, claro, abraçar-me em um pacote
de pipoca, mentex e bala de hortelã garoto. Tornei-me ciné-
fila fervorosa. Ser atriz em um filme é um dos sonhos que
tenho, ainda não realizados. Quem sabe um dia... Enquanto
isso, registro minha história com minha mãe.
Dia 67

Acordo bem cedo para trabalhar. A luz em sua varanda está


linda e peço para fotografá-la. Hoje começam as fases de
abertura do lockdown e meu corpo se sente ansioso. Fico
muito tempo tentando registrá-la. Ver a imagem tão precio-
sa e não conseguir materializá-la em fotografia começa a me
causar irritabilidade. Ou será que a irritabilidade está
instaurada no meu corpo e se manifesta agora? Quanto
mais tempo tardo, mais me incomodo com o tempo de
exposição de minha mãe ao sol para que o registro seja
feito. Insisto, insisto, insisto. Não posso compreender que
uma imagem tão bonita não consiga ser compartilhada com
o mundo. Nós e essa necessidade humana de nos eternizar-
mos de alguma forma... Começo a me preocupar com a
minha visão. Será que está tudo bem? Porque não consigo
foco? Dali já penso na falta de foco na vida... minha vida
anda desfocada... ou minha vida é desfocada? A cabeça dá
voltas, gira, imagina, pensa, se confunde, se emaranha. Um
encontro nunca é só um encontro.

Uma foto também não.


Dia 68

Minha vida atual poderia ser sinônimo de trabalho. São de 12h a 14h na frente do computador. Mais
reuniões para definir o que fazer, como fazer, quando fazer, com a continuidade de um curso/vida
que pressupõe o corpo em movimento dançado, em contato, o esparramar de fluidos. Converso
com uma amiga infectologista. Ela me diz que os infectologistas consideram totalmente despropo-
sitado que todas as pessoas retornem à vida “normal” nesse momento. As ideias circulam, os pensa-
mentos rodeiam, a cabeça pesa. Que decisão tomar sobre o desconhecido, o improvável, o impreci-
so? Tudo é risco. Vou fotografá-la, quase sem luz. E volto a trabalhar. Meu raciocínio “desrracioci-
na”. Só quero dormir e sonhar.
Dia 69

Hoje novamente vou fotografá-la contra luz. Meu corpo dói. São 79 dias imersa no meu apartamen-
to. Meu único contato com o mundo exterior é via internet ou quando desço à portaria para pegar
alguma mercadoria que chega. Hoje o rapaz que trabalha na portaria me disse que eu sou a única
pessoa que não sai do prédio para nada. Hoje ele me disse que emagreci. Hoje ele me disse que já
está acabando. Questiono e requestiono a minha radicalidade (?) de ficar em casa. Combino com a
minha mãe de que amanhã faremos a última foto deste projeto e que irei vê-la. Afinal, é perto. A lua
cheia nos visita e nos brinda com seu jeito doce de existir.
Dia 70

Acordo. Está faltando água no meu prédio.


Coisas simples, como comer, se tornam um
evento. Há espera. Há espera de que volte.
Mas não. Assim segue o dia. Peço que ela vá
à varanda para fazermos nossa última foto.
Ainda não é hoje que conseguirei vê-la.
Não teria como me higienizar na volta.
Mais um dia. 80 dias de lockdown. Ela
entristece. Meu corpo padece.
Dia 71
Finalmente, o encontro!
Hoje não tenho nada a dizer, só a sentir.
Apêndice 1

Ela faz empadas de queijo para mim. Não queria ser fotografada de camisola. Falou que estava feia.
Eu a achei linda. E fotografei. Ela aceitou. Mãe é mãe.
Apêndice 2

Acordo e nos falamos pelo whats app. Ela aprendeu a abrir


o vídeo. Ela pede pra tentar novamente produzir uma foto
minha. Vou para a janela. Em seguida, ela me envia uma
foto dela em sua sacada com meu prédio de fundo. Há uma
minúscula mancha em uma das janelas. A mancha sou eu.
Hoje almoçaremos juntas. Somos sobreviventes, até aqui.
Anexo 1

No dia 14 de abril de 2020 foi anunciado pelo Jornal O Povo que o bairro onde moramos superou o
número de casos de coronavírus de 10 estados brasileiros (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraí-
ba, Acre, Roraima, Alagoas, Piauí, Sergipe, Rondônia, Tocantins).

Anexo 2

Dia 07 de junho de 2020, dia em que a primeira versão deste livro foi finalizada, o Brasil sumiu das
estatísticas mundiais sobre o COVID-19 do site da Johns Hopkins University, porque o Governo
Federal alterou e atrasou a forma de divulgação dos dados do coronavírus no país desde o dia 05 de
junho de 2020. O atual presidente considera o vírus letal como uma “gripezinha” e entende que os
meios de comunicação estão fazendo um alarde desnecessário sobre as mortes decorrentes da
contaminação. Segundo a Uol, no dia 06 de junho de 2020, o portal do Ministério da Saúde excluiu
o número total de infectados pelo coronavírus no País. As notificações da doença a partir deste dia
se referem aos dados de apenas 24 horas. O Brasil é o país que menos testa a população para a
doença e, ainda assim, de volta ao site da Johns Hopkins University na data de hoje, o País aparece
como segundo no ranking do maior número de pessoas infectadas. O site G1 alega que em levanta-
mento exclusivo junto às secretarias estaduais de saúde, os dados atuais são: 36.499 mortes e
691.962 casos confirmados. Mas aponta que o balanço nacional do Ministério da Saúde divulgado
foi de 35.930 mortes e 672.846 casos confirmados. Desde o início da pandemia o governo teve duas
trocas no cargo de ministro da saúde, com saídas, 16/04 e 15/05. Dia 16/05 o terceiro ministro,
militar, assume o cargo como interino. Paralelo a isso, vêm a tona vários casos de assassinatos de
negros no Brasil, incluindo crianças, vítimas de operações policiais em comunidades periféricas.
Infelizmente, esta pandemia é histórica e contínua. Dia 31 de março de 2020 torcidas organizadas
de futebol se juntam nas ruas para protestar a favor da democracia e contra a presidência. Hoje, dia
07, pessoas vão às ruas protestar contra o racismo e contra o facismo. Apesar do uso de máscaras,
é legítima a preocupação de que os protestantes se contaminem lutando pelos direitos básicos à
vida, à igualdade e à dignidade. O meu local de trabalho segue dizendo que não podemos parar, sem
organização geral planificada, sem preocupação pedagógica, sem empatia ou afeto.. Meu curso faz
resistência, assim como outros, na tentativa de não sucatear mais a educação. Afinal, o que seria
viver, senão resistir? Amanhã, em Fortaleza, serão reabertos, entre outros estabelecimentos,
shoppings, salões de beleza, livrarias e comércio em geral. Que seja dada a largada do novo mundo.
Até quando?

Anexo 3

Dia 22 de setembro de 2020. Fechamos o livro para a publicação. Hoje são 965.529 mortes por
Covid-19 no mundo, 137.350 no Brasil e 8.834 no Ceará. Em Fortaleza, de modo geral, as aglomera-
ções sem uso de máscara voltaram a ocorrer com alguma normalidade, como se a cura para o vírus
tivesse sido encontrada. Sigamos em esperança e espera.
Safety Distance

Fotos e textos
Ana Mundim

Conselho Editorial
Presidente:
Juan Esteves

Membros:
Alexandre Sequeira
Danny Bittencourt
Eder Chiodetto
Elinaldo Meira
Elza Lima
João Kulcsar
Lia de Paula
Luciana Arslan
Patrícia Veloso
Yan Belém

Projeto Gráfico
Igor Cavalcante

Este livro contou com o apoio do edital


Arte em Rede da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará.
Safety Distance é um projeto que se inicia no décimo primeiro dia de isolamento social, em função
do surgimento do Covid-19, doença infecciosa causada por um novo vírus e que é transmitida pelo
contato físico entre seres humanos. Nos dez primeiros dias, visitava a minha mãe diariamente. Eu
continuo trabalhando home office e necessito de internet. Ela não a tem e achamos arriscado colo-
car um técnico em sua casa nesse momento, com risco de transmissão. Começo a cair doente e
considero prudente parar de vê-la. Conversamos e decidimos nos afastar fisicamente.

Dados:
Uma mãe. Uma filha única. Pai falecido há 25 anos.
Eu: a filha. Ela: a mãe.

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