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AGRADECIMENTO

A tod@s que de alguma forma incentivaram, apoiaram, contribuíram, torceram e/ou desejaram
que esta história fosse publicada. E às que solicitaram e tornaram essa segunda edição possível.
Especialmente:
Manuela Neves, por ter acreditado, abraçado e materializado esse sonho, sem você este livro
não existiria.
Da mesma forma, minhas amadas e insubstituíveis amigas que sempre apoiam, torcem e sofrem
comigo em cada delírio meu que toma vida: Carla Gentil, Célia Tapety, Nádia Lopes e Socorro
Medeiros.
Meu mestre da vida, Daisaku Ikeda. Comprovando, Sensei! Nam myoho renge kyo!
Wind Rose... Minha Rosa dos Ventos deliciosa e linda... Brisa e Ventania... Com você a razão tem
sentimento e o sentimento tem razão... Eu te amo.
APRESENTAÇÃO
Por Carla Gentil
Uma tarde quente, termômetros passando dos 40˚ levando embora qualquer vontade de sair de
casa. Nada para fazer, todos os livros devidamente lidos e relidos. Procurar algo novo na internet
foi, então, uma aventura com bons resultados. De repente, estava lá o site com romances e contos
escritos não por autores renomados, disputados por editoras, mas pessoas com história de vida,
com sonhos, com vivência igual a ela mesma. Uma surpresa agradável, mas que nem sempre se
repetia. Algumas histórias fantásticas, algumas autoras apaixonantes, mas um grande espaço a ser
preenchido, muitas histórias pedindo para serem contadas.
Assim surgiu Diedra Roiz, um nome fictício para se inserir de alma no contexto da ficção. O título
de seu primeiro romance, Legado de Paixão, diz bem a que veio a autora que nos últimos anos
acumula muitas histórias compartilhadas, todas elas com uma entrega total; cada personagem
retratada da forma mais interior, mais próxima da pele possível, com toda a paixão que domina.
Um grande legado.
A NOTÍCIA INESPERADA
– Belinha, meu amor! Levante e brilhe para um novo dia!
Era desse jeito que Isabela era acordada todas as manhãs. A voz amorosa da tia a despertava,
e ela se espreguiçava na cama. Depois jogava o lençol para o lado e se levantava de um pulo só.
Tia Carmen e Tio Zé tinham criado e paparicado a sobrinha desde que ficara órfã aos sete
anos de idade.
Não que Isabela fosse mimada. A educação primorosa dada pelos tios não permitia. Um pouco
mal acostumada, talvez, a ter atenção absoluta e a conseguir tudo que queria. Como a própria Tia
Carmen sempre dizia:
– Ainda está pra nascer pessoa mais obstinada do que essa menina!
Com a morte do tio dois anos antes, só as duas viviam no apartamento no Flamengo, e, com a
pensão da tia e o salário mixo do estágio de Isabela, estava cada vez mais difícil pagar todas as
contas no final do mês.
Na verdade, Isabela estava começando a pensar em abandonar a faculdade e arrumar um
emprego de verdade.
Saiu do quarto ainda esfregando os olhos. Chegando à sala, deu dois beijos na tia:
– Bom dia, titia!
Apertou a senhora carinhosamente entre os braços. Foi correspondida com o mesmo carinho e
alegria:
– Bom dia, lindinha!
Como sempre, o café da manhã já estava esperando por ela na mesa da sala.
Serviu-se de leite e achocolatado. Começou a bebericar o líquido distraidamente enquanto
folheava o jornal.
Fez menção de levantar quando o telefone tocou, mas Tia Carmen a impediu com um gesto de
“deixa comigo, termina seu café” e atendeu:
– Alô? É ela. Sim...
Não prestou atenção na conversa da tia. Tinha combinado de passar o dia de folga com Cris.
Fazia muito tempo que não ficava um dia inteirinho com a namorada, os horários das duas
simplesmente não batiam.
Na verdade, o relacionamento estava meio no ponto morto. Morno, sem grandes entusiasmos,
muito diferente do fogo do início. A experiência de Isabela dizia que precisava dar um jeito
naquilo, que não podiam continuar assim.
Não que reacender a paixão entre elas fosse algo difícil. Nunca tinham tido problemas na cama,
ao contrário de em todos os outros aspectos. Cris e ela eram extremos opostos. Polos magnéticos
contrários e, exatamente por isso, tinham sentido, assim que se conheceram, uma atração irresistível
que culminara no namoro de dois anos repleto de momentos absolutamente inesquecíveis.
Os lábios de Isabela se abriram num sorriso de antecipação. Pensando em mil formas deliciosas
de usufruir do final de semana e recuperar o tempo perdido.
Foi quando a tia desligou o telefone e se atirou na cadeira mais próxima, tão pálida que
Isabela se levantou, preocupada.
– Nossa, o que foi, titia?
Tia Carmen levou a mão ao coração. Sem ar, como se lhe falhasse a respiração. Com muito
esforço, conseguiu gaguejar:
– A Guida... A Guida faleceu – disse antes de cair num choro baixo e sofrido.
Isabela imediatamente abraçou a tia, tão perplexa quanto ela. Tentando digerir a notícia.
A irmã de Tia Carmen, Guida, vivia isolada em um sítio no interior de Goiás. Solteirona convicta,
uma quase reclusa com cara de poucos amigos. Isabela tinha passado uns tempos com ela no tal
sítio quando os pais morreram, mas logo depois foi morar com Tia Carmen e Tio Zé.
Na verdade, não se lembrava direito, pois essa era uma época de sua vida muito confusa e
triste, da qual quase não tinha lembranças. Nem queria.
Só depois que os soluços cessaram e Tia Carmen pareceu um pouco mais tranquila, permitiu-se
perguntar:
– Como assim, morreu? Como? Do quê?
Tia Carmen respirou fundo. Lançou para Isabela um olhar desolado, muito mais do que triste,
antes de finalmente esclarecer:
– Em um acidente, parece. Estava montando e caiu. Morreu na queda, nem chegou a ir para o
hospital. Guida sempre foi louca por cavalos, desde menina. O enterro foi ontem. Não adianta mais
irmos. Quem ligou avisando foi um advogado que, não sei o porquê, quer que você vá ao
escritório dele o mais rápido possível.
Isabela não disse nada. Nem precisava. Tia Carmen a conhecia bem o suficiente para entender
o que se passava na cabeça dela. Tanto que frisou:
– Hoje, Belinha.
Sem conseguir disfarçar o quanto estava contrariada, Isabela desabafou:
– Logo hoje?
Mas Tia Carmen insistiu:
– Ele disse que é urgente.
Isabela fez uma careta, porém sabia que a tia não sossegaria enquanto ela não concordasse
em ir. Informou, resignada:
– Tá, então vou agora, quero me ver logo livre disso. Só preciso dar um telefonema e me vestir.
Tia Carmen se ofereceu, com aquele jeitinho dela que não admitia contestação:
– Eu vou com você.
Depois de concordar com um aceno de cabeça e beber um último gole da xícara, Isabela foi
para o quarto.
Um pouco chateada porque sabia que Cris não ia gostar nada de ficar esperando, mas fazer o
quê?
Pegou o telefone e apertou o botão de redial – tinha ligado para a namorada antes de dormir.
O tom de voz sonolento do outro lado deixou claro que Cris ainda estava acordando:
– Alô?
Foi só o que ela disse. Com o tom mais carinhoso possível, Isabela respondeu:
– Oi, amor... Bom dia!
Uma pequena pausa. Provavelmente para Cris tirar a máscara dos olhos com que sempre
dormia:
– Bom dia, amor! Ainda nem levantei... Já tá vindo pra cá, né?
Isabela engoliu em seco:
– Na verdade preciso resolver um negócio com a minha tia antes, mas...
Cris nem a deixou completar. Com a voz já alterada, quase gritou:
– Porra, Isa! Você prometeu! Eu não acredito!
Bastava uma pequena contrariedade para Cris começar a dar o showzinho de sempre.
Exatamente por isso, depois de dois anos, amansar a fera era algo que Isabela sabia fazer muito
bem:
– Poxa, amor... É rapidinho. Juro que daqui a pouquinho eu tô aí...
Funcionou. A voz de Cris melhorou um pouco:
– Tá, mas não demora!
Não o suficiente. Isabela redobrou os esforços, nem um pouco a fim de ficar ouvindo milhares de
reclamações depois:
– Tô louca pra chegar aí! Te amo! Muito, muito, muito!
E resolveu a questão. Cris se derreteu toda:
– Eu também, amor! Vem logo!
***
Saiu de casa quase arrastando a tia. Estava com pressa, queria resolver tudo o mais rápido
possível.
Quando chegaram ao escritório do tal advogado, a recepcionista pediu que aguardassem um
pouco.
Instalaram-se lado a lado no sofá. Tia Carmen achando graça da impaciência nítida da
sobrinha.
Os olhos de Isabela procuraram várias vezes – tantas que perdeu a conta – o relógio na
parede em frente durante os dez minutos que se passaram até que finalmente pudessem entrar.
O advogado, um senhor muito educado, pediu para que se sentassem antes de explicar:
– Eu sou o doutor Macedo. Chamei as senhoras aqui porque estou em posse do testamento da
senhora Margarida de Brito Oliveira. Ela deixou todos os bens, que incluem o sítio Sol Nascente,
para a sobrinha, senhorita Isabela Oliveira Morais.
Tia Carmen tapou a boca com a mão. Isabela arregalou os olhos, ainda sem acreditar:
– O quê?
O Doutor Macedo sorriu e continuou:
– A senhorita é a única herdeira.
Tia Carmen deixou escapar, como se pensasse alto:
– Essa Guida! Sempre cheia de surpresas!
Perplexa, Isabela tentou confirmar:
– Mas então... Quando... O que eu... É tudo meu, de verdade? Assim, do nada? – disse,
obrigando o Doutor Macedo a completar:
– Na verdade, a sua tia deixou uma cláusula no testamento com algumas condições.
Isabela e tia Carmen se entreolharam, surpresas e curiosas, sem imaginar o que o Doutor
Macedo iria dizer.
– Para que o sítio se torne realmente seu, a senhorita deverá administrar e morar nele, sem se
ausentar, pelos próximos três meses.
Isabela chegou a se levantar, sem nem perceber:
– Como assim?
A ideia de passar três meses embrenhada no meio do mato e, ainda por cima, deixando a
namorada sozinha no Rio de Janeiro era absolutamente impensável.
Mas o Doutor Macedo informou:
– Caso a senhorita não o faça, automaticamente o sítio passará a pertencer à outra pessoa que
consta na cláusula do testamento que sua tia deixou.
Tia Carmen também não gostou nem um pouco da ideia da irmã. A última coisa que queria era
ver a sobrinha querida isolada tão longe, em um lugar ermo. Quase gritou:
– Outra pessoa? Que outra pessoa? Essa Guida, realmente, nunca teve juízo!
Do alto de sua imparcialidade de advogado, Doutor Macedo leu no papel que segurava:
– “A senhora Fernanda Quintanilha, proprietária da fazenda vizinha e minha grande amiga”.
Tia Carmen não se conformou:
– Grande amiga? Mas a Guida era quase uma eremita! Afinal, o que é que estava se passando
na cabeça da minha irmã? Isso não está certo, é um absurdo, isso é o que é!
Isabela voltou a se sentar. Muito pensativa. Os olhos fixos no nada enquanto ouvia:
– Sinto muito, ela deixou bem claro. A senhorita Isabela tem exatamente setenta e duas horas
para chegar ao sítio. Caso contrário...
As palavras do advogado fizeram Isabela reagir:
– A tal senhora Fernanda fica com tudo. Tá, eu já entendi! Não temos opção, titia, eu tenho que
ir!
Tia Carmen tentou protestar:
– Mas, Belinha...
Porém Isabela estava irredutível. Sabia que não tinha opção. Precisava pensar no futuro, dela e
da tia. Resolveu agarrar com todas as forças a oportunidade que lhe era oferecida:
– Eu vou.
Essa era a única certeza que tinha. Sobre o resto pensaria depois.
O Doutor Macedo encerrou o assunto de forma muito simples:
– Vou avisar os empregados do sítio sobre a sua chegada então.
UMA HERANÇA QUE INCOMODA MUITA GENTE
Tia Carmen discutiu, durante todo o caminho de volta, tentando convencer a sobrinha de que
aquilo era absurdo.
– Afinal de contas, o que uma garota da cidade entende de sítios? O que você vai fazer lá,
Belinha, no meio daquela gente da roça e um monte de bichos?
Mas quando Isabela colocava uma ideia na cabeça, ninguém tirava.
Eram apenas três meses de sacrifício e, depois disso, poderia vender o tal sítio, terminar a
faculdade sem problemas e também dar uma vida melhor para a tia, que, afinal de contas, bem
que merecia.
Realmente não entendia nada de vida rural. Era tão absolutamente urbana que nunca tinha visto
uma galinha, muito menos uma vaca ou um porco de perto. Não que se lembrasse. Mas... Possuía
disposição e boa vontade o bastante para aprender rapidamente o necessário para enfrentar
aquilo que parecia um universo distante e totalmente desconhecido.
Bem no fundinho, tinha a esperança de levar Cris junto. Aí sim não seria sacrifício nenhum.
Mas, se a reação da tia tinha sido ruim, pior ainda foi a da namorada:
– Se você for tá tudo acabado, tá me ouvindo?! Acha mesmo que eu vou ficar três meses aqui
sozinha, esperando pela senhorita?
Isabela tentou usar a tática de sempre. Adoçou a voz, colou o corpo no de Cris, beijou-a com
ímpeto a ponto de ficarem sem ar e terem que se separar para respirarem. Subiu os lábios pelo
pescoço dela, em direção ao ouvido e sussurrou com o tom de voz mais irresistível possível:
– Ah, amor... Você sabe que sem você eu não vivo... Vem comigo...
Incrivelmente, pela primeira vez, não funcionou:
– Nem morta! Você pode escolher: ou eu, ou esse sítio idiota!
Isabela ainda tentou explicar:
– Cris, sabe que eu não posso, eu preciso do dinheiro.
Mas Cris estava irredutível:
– Não quero saber, faça a sua escolha!
Foi o bastante para Isabela perder o restinho de paciência que tinha. Gritou, brigou, discutiu.
Depois pediu desculpas, humilhou-se, suplicou. Inútil.
Cris repetiu:
– Ou eu, ou o sítio.
***
Depois de ser expulsa da casa da namorada – ou melhor: ex-namorada, porque não abriu mão
da herança, afinal era a única chance que tinha de melhorar de vida –, ficou andando pelo
calçadão de Copacabana meio sem rumo, a cabeça a mil.
Chegou em casa já de noite e se trancou no quarto sem querer falar com a tia. Enfiou a cabeça
no travesseiro e chorou até dormir.
Passou o dia seguinte resolvendo coisas.
Trancou a faculdade, avisou no estágio que não iria mais, comprou a passagem, fez as malas...
De tia Carmen foi a interminável choramingação para que ela não fosse, para que esquecesse:
– Essa última loucura da Guida!
De Cris nem telefonema, nem e-mail, nem torpedo, nem mensagem, nem nada.
Viajou com o coração apertado, sem o apoio de ninguém, sentindo-se absolutamente sozinha.
Como nunca, nem mesmo depois da morte dos pais, havia se sentido.
Mas não tinha como voltar atrás. Por isso, e só por isso, manteve-se firme em sua decisão.
Xingando mentalmente durante todo o caminho:
– Se a intenção da tia Guida era bagunçar a minha vida inteira, com certeza conseguiu!
***
A viagem em si não foi cansativa. Fisicamente não. Emocionalmente... Bom...
Sem dormir direito nas duas noites anteriores, arrasada por Cris ter terminado com ela e sem
saber ao certo o que a esperava, Isabela chegou exausta.
A vontade que sentia de gritar só aumentou quando viu o estado em que o sítio estava: velho,
decadente, só não parecia abandonado porque tinha um senhor e duas moças coradas e risonhas
esperando por ela na varanda em frente ao que parecia ser a porta principal.
Estendeu a mão, com o sorriso mais simpático possível:
– Oi. Eu sou a Isabela.
As duas moças responderam juntas, ou melhor, meio que dividindo a frase:
– É a sobrinha da Dona Guida, que Deus a tenha! Seja bem-vinda!
Disseram de uma forma que fez Isabela se questionar se pensavam juntas ou, quem sabe, se
dividiam o mesmo cérebro.
Arrependeu-se do pensamento maldoso na mesma hora, porque as duas pareciam muito
simpáticas. Ela é que estava azeda por tudo que tinha acontecido.
Esforçou-se em voltar a sorrir:
– Obrigada.
Elas se apresentaram:
– Nós somos Rosa e Janaína.
Isabela continuou sem diferenciar uma da outra.
Completaram:
– Esse é o Roque.
O senhor fez um cumprimento simples com a cabeça, olhando para baixo. Isabela estendeu a
mão, dizendo:
– Muito prazer.
Ele apertou a mão dela, ainda mais sem jeito. Depois se desculpou, como se quisesse sumir:
– Com licença, moça, tenho umas coisas pra fazer...
E saiu – ou melhor, fugiu – rapidinho. Parecia excessivamente tímido e reservado. Ao contrário
das moças:
– Vamos entrando, dona Isabela.
Isabela foi atrás das duas, que tanto insistiram que carregaram todas as malas sozinhas.
Falavam sem parar sobre tia Guida, sua morte, o enterro, sempre daquela forma estranha de
uma terminar a frase da outra.
A sala era mobiliada por uma mesa de jantar grande com seis cadeiras de madeira pesadas e
antigas, um sofá, duas poltronas de couro e uma cristaleira que absolutamente não combinava com
a rusticidade do resto. Mas, naquele momento, decoração era a última coisa na qual Isabela estava
pensando.
Uma música sertaneja altíssima ressoava pela casa, provavelmente vinda da cozinha, fazendo
voltar ainda mais forte a vontade de gritar, acompanhada pelo desejo de desistir de tudo e
simplesmente fugir dali.
Disfarçou e controlou bem o que sentia. Continuou sorrindo para as duas, fingindo apreciar o
tour pela nova moradia que, a cada passo, parecia mais e mais horrível.
As duas moças mostraram o resto da casa: cozinha, dois banheiros, dois quartos de hóspedes, o
quarto da tia que, segundo exclamaram juntinhas, estava:
– Exatamente como dona Guida, Deus a tenha, deixou.
Finalmente, chegaram ao último quarto, preparado para Isabela. A única boa notícia, porque de
jeito nenhum ia ficar no quarto da “falecida”.
– Agora vamos deixar a senhorita descansar um pouco. A gente chama quando o almoço ficar
pronto.
Enquanto elas depositavam as malas perto da cama, Isabela murmurou automaticamente:
– Obrigada.
Assim que as duas saíram fechando a porta, deixou escapar um profundo e desesperado
suspiro.
Olhou desolada para o cômodo que, nos próximos três meses, serviria de quarto: rústico, simples,
com uma grande cama de casal que ocupava quase todo o espaço, duas mesinhas de cabeceira,
cada uma com um abajur em cima, um armário também de madeira escura, como todo o resto, e só.
Escancarou a cortina florida, deixando um pouco de claridade entrar. Riu, para não chorar, da
música deprimente que continuava vindo da cozinha enquanto abria a janela.
Olhou para a vista. Em qualquer outra situação, teria achado linda. Se estivesse acompanhada
ou de férias, seria perfeito, um verdadeiro idílio.
Porém, o chão plano a se perder de vista criou nela uma sensação de solidão terrível,
ampliando a impressão de perda, de vácuo, de vazio.
Sentiu falta dos prédios, da poluição, das buzinas, de gente amontoada nas calçadas, dos
engarrafamentos, do Cristo de braços abertos sobre a cidade, da tia e, principalmente, de Cris.
Deitou na cama pensando que provavelmente, a essa hora, a namorada estaria na praia de
Ipanema, em plena Farme, exibindo o corpinho.
Enfiou a cara no travesseiro e começou a chorar. Completamente infeliz, como nunca tinha se
sentido na vida.
UM ENCONTRO SURPREENDENTE
Acordou com batidas na porta.
As lágrimas a tinham embalado, fazendo com que Isabela adormecesse sem querer.
Nesse pouco tempo de sono conseguira esquecer que estava sozinha, no meio do nada,
escutando... O que diabos era aquilo? Passarinho? E odiando a miserável da tia Guida!
O ressentimento contra a falecida foi afastado pelas duas vozes, sempre em jogral, que
anunciavam:
– Dona Isabela, o almoço tá na mesa!
Com um esforço imenso, conseguiu se levantar. Afastou o último resquício de depressão de uma
forma muito mais do que rápida. Não era mulher de se abater, por pior que fosse a situação.
Sentou-se à mesa da sala, que parecia imensa para um só prato. Convidou:
– Vocês não querem almoçar comigo?
Pouco se importando se deveria ou não dar intimidade às novas e ainda desconhecidas
empregadas.
Rosa e Janaína riram um bocado antes de finalmente explicarem:
– Já comemos faz tempo. Daqui a pouco vamos é lanchar.
Isabela então se serviu. Tentou comer, não querendo ser indelicada.
Mas não descia.
Não que a comida estivesse ruim, pelo contrário, mas a mesa vazia e o radinho infame que não
parava de tocar fizeram-na sentir uma nostalgia terrível.
Rosa e Janaína perguntaram, preocupadíssimas:
– A senhorita não gostou da comida?
– Gostei sim, é que eu comi no caminho – mentiu, sem querer deixar as duas chateadas. – Tem
alguma cidade próxima?
– Cidade, cidade, não, mas tem uma vila uma meia hora daqui.
– Meia hora andando?
– Não, de carro, né? Andando é mais tempo...
– E tem algum... Ônibus, ou sei lá... Alguma condução que me deixe lá?
As duas riram, achando muita graça na pergunta da mocinha da cidade grande acostumada a
ter ônibus, metrô, táxi...
– Tem a “jubiraca”.
Isabela não fazia ideia do que diabos era “jubiraca”, mas seguiu as duas até atrás da casa,
onde mostraram uma caminhonete velha que parecia um dia ter sido azul.
– Era da dona Guida.
A “jubiraca”, como o sítio, como tudo que tia Guida tinha deixado, era um lixo.
Mas Isabela queria muito dar uma volta, conhecer a tal vila, espairecer a cabeça um pouco, por
isso resolveu que não custava nada tentar.
Por dentro, o estado da caminhonete era ainda pior: o banco rasgado em vários lugares, a
carroceria tão enferrujada que Isabela jurava que poderia a qualquer momento cair com tudo no
chão. Inacreditavelmente, o motor ligou, ela passou a marcha e, seguindo as instruções que as duas
tinham dado, saiu estrada afora.
Foi bem fácil chegar à vila, que, por sinal, nada mais era do que uma igreja, uma farmácia, um
mercadinho, uma padaria e algumas casas em volta de uma praça. Sentou na pracinha sem se
importar com o fato de todas as pessoas que passavam olharem para ela. De vez em quando, um
sussurro mais alto: “É a sobrinha da Guida... Chegou hoje do Rio de Janeiro... Veio tomar conta do
sítio...”
Comprou um sorvete na padaria e deu mais uma volta na praça antes de voltar para casa.
Vinha contente pela estrada, sem pensar em nada, quando, na metade do caminho, a “jubiraca”
resolveu morrer. Tentou várias vezes fazer o motor pegar novamente e nada.
Já xingando mentalmente tia Guida, percebeu que estava parada no meio de uma estrada de
terra com nada a sua volta e um sol escaldante na cabeça.
O jeito era andar. Não que fosse problema, estava mais do que em forma, super acostumada a
correr na esteira, mas o par de sandálias que estava usando não ajudava. Depois de uns vinte
minutos e algumas centenas de impropérios contra tia Guida, o esfregar dos dedos contra o couro
da sandália já tinha rendido algumas bolhas.
Se não tivesse escutado um galope antes de olhar para trás, pensaria que o sol a estava
fazendo ver coisas.
A visão era impressionante: uma mulher ofuscantemente linda, montada num magnífico cavalo
negro, com os cabelos vermelhos esvoaçantes.
– Perdida? – ela perguntou.
– Ãh? – foi só o que Isabela conseguiu responder.
– Tá perdida, moça? – E, como ela não respondia, completou: – Tá se sentindo bem?
Rápida, com uma agilidade surpreendente, a mulher desceu do cavalo.
Isabela só pensava no estado lamentável em que deveria estar, toda suada, descabelada, o
rosto vermelho do sol e os pés em frangalhos...
A mulher, por outro lado, era ainda mais interessante de perto, com a camiseta e a calça tão
justas que deixavam todas as curvas do corpo perfeito desenhadas. Botas de montar até os joelhos
completavam o quadro avassalador.
– O que faz aqui, no meio do nada?
– Meu carro quebrou, então o jeito foi andar.
– Andar? Com essas sandálias?
O olhar que ela lançou para Isabela deixou claro que a achava uma completa e total idiota da
cidade.
– Vai pra onde?
– Pra casa...
Antes que pudesse completar a frase, a mulher lançou um olhar impaciente, como quem diz: “tudo
bem, mas onde fica isso?”
– Sítio do Sol Nascente.
Isabela percebeu que, até então, a mulher não a tinha olhado de verdade. Os olhos castanhos
avaliaram-na de cima a baixo, com um misto de surpresa, curiosidade e algo mais que Isabela não
conseguiu desvendar. Depois se fixaram profundamente nos dela, enquanto dizia:
– Eu te levo.
Montou novamente no cavalo, com uma destreza impressionante, e estendeu a mão. Isabela, que
nunca na vida tinha andado a cavalo, hesitou:
– Melhor não.
– Nunca montou?
O arzinho de superioridade da outra já estava irritando Isabela. Ia dar a resposta merecida
quando, com um sorriso irresistível, a mulher disse num tom de voz quase carinhoso:
– Não precisa ter medo. Vem, pode confiar.
Segurar a mão que a outra estendia para ajudá-la a montar causou em Isabela um arrepio
gostoso, mas melhor ainda foi sentar atrás daquela mulher linda no cavalo. Usando o medo como
desculpa, passou os braços em torno da cintura dela com força, colando totalmente os dois corpos
no abraço. Fechou os olhos e curtiu aquela sensação deliciosa do vento batendo em seu rosto e a
intensidade do corpo quente da outra contra o dela.
– Chegamos.
Abriu os olhos e viu com surpresa que já estavam paradas em frente ao sítio.
– Obrigada – Isabela disse, desmontando, bastante sem graça.
– Disponha.
– Meu nome é Isabela.
– É, eu sei. Eu sou Fernanda.
Virando o cavalo, Fernanda foi embora deixando Isabela estática.
A amiga da tia Guida não era nenhuma senhora como ela pensava. A mulher que herdaria o
sítio caso ela falhasse não era ninguém menos que a linda e incrivelmente atraente ruiva que, em
um único encontro, já deixara Isabela totalmente fascinada.
PERGUNTAS E REVELAÇÕES
Antes de Isabela cruzar a soleira da porta, foi rodeada por Rosa, Janaína e uma enxurrada de
perguntas:
– Dona Isabela, o que aconteceu? Cadê a “jubiraca”?
Sem responder, sentou na primeira cadeira que encontrou e descalçou as sandálias. Algumas
bolhas nos dedos, o rosto e o ombro ardidos do sol... O estrago maior não tinha sido físico. Não
conseguia tirar a imagem de Fernanda da cabeça. Precisava saber mais sobre ela.
– Essa mulher que me trouxe...
– A dona Fernanda. Muito rica, dona da Boqueirão, a fazenda aqui do lado. Amiga demais da
dona Guida. Vinha aqui todo santo dia. Foi ela que encontrou o... O corpo. Chorou muito no
enterro, coitadinha.
Já que estavam fofocando, Isabela resolveu aproveitar:
– E ela tem um marido ou um namorado?
Rosa e Janaína riram muito da pergunta.
– Essa é boa! Namorado, a dona Fernanda? – Riram muito antes de concluir: – Olha, dona
Isabela, por aqui todo mundo sabe que a dona Fernanda não gosta disso não.
– Não entendi.
– A dona Fernanda não morava aqui, mas todo mundo sabe que ela vivia com uma outra moça
na cidade. As duas vinham sempre passar o Natal na fazenda. Parece que a tal moça morreu, e a
dona Fernanda voltou a morar com a mãe na Boqueirão. Esteve muito doente, dizem que quase
morreu de tristeza. Mas depois ficou amiga da sua tia, foi melhorando, melhorando... Muita gente
diz por aí que as duas eram mais do que amigas, se é que a senhorita me entende... Depois da tal
cláusula do testamento então...
– Quer dizer que ela sabe do testamento?
– Ué, dona Isabela, pode ir se acostumando. Por aqui todo mundo sabe de tudo que acontece. E,
por mais que a dona Fernanda teja doidinha pra botar as mãos no sítio, a senhorita não vai
deixar, não é mesmo?
– Mas se ela é rica, dona de uma fazenda, por que ela quer esse lugar... – “Caindo aos
pedaços”, ela pensou, mas não disse. – Que nem vale tanto assim?
– É uma questão de honra.
– Honra?
– O Sol Nascente já pertenceu à família dela. O bisavô da dona Fernanda perdeu no jogo de
cartas pro avô da dona Guida. Depois ele passou o resto da vida tentando comprar o sítio de
volta, mas nunca conseguiu. Dona Guida dizia que o pai da dona Fernanda fez várias propostas
de comprar o sítio, mas ela nunca quis. E, nos últimos tempos, mesmo sendo tão amiga, a própria
dona Fernanda cansou de tentar comprar da dona Guida, mas também nunca conseguiu. Agora,
com licença que vamos terminar de fazer a janta.
Isabela foi tomar banho, a cabeça tentando organizar a enorme quantidade de informações. Só
uma última dúvida ainda não tinha sido respondida: tia Guida e Fernanda eram mais do que
amigas? Ou não?
À GALOPE
Fernanda esporeou o cavalo. Gostava de galopar sentindo o vento no rosto, de viver com
voracidade, ou melhor, de devorar a vida.
A mãe preferia dizer que, na verdade, ela não tinha amor à vida. Talvez estivesse certa. Talvez,
depois da morte de Luisa, realmente tivesse desenvolvido um desejo extremo de se arriscar. Ou
então, exatamente por ter visto Luisa morrendo tão jovem, a doença fazendo a vida dela se esvair
pouco a pouco sem que pudesse fazer nada, tivesse desenvolvido essa compreensão de que
nenhum segundo poderia ser desperdiçado, pois qualquer momento poderia ser o último.
Isabela...
Até o nome parecia doce. Pelo jeito, não se lembrava dela, mas Fernanda se recordava
perfeitamente da menina magricela, com a franjinha sempre caindo nos olhos e o olhar mais triste
de todo o mundo, que tinha passado alguns meses no Sol Nascente. Como poderia esquecer se
tinha sido a primeira menina que tinha feito o coração de Fernanda bater mais rápido?
Percebeu que sorria e se sentiu culpada por estar pensando em alguém que não fosse Luisa.
Mesmo depois da morte dela, Fernanda nunca tinha pensado em outra mulher.
Mas o encontro com Isabela tinha despertado coisas que Fernanda achava não ser mais capaz
de sentir. E tinha quase certeza de que Isabela também tinha sentido, pela forma como ela tremeu
quando as mãos se tocaram e como a respiração e o coração dela aceleraram ao colar o corpo
no de Fernanda em cima do cavalo. O pulso de Fernanda também acelerava só de pensar em
Isabela. Por isso mesmo não queria pensar nela.
Forçou-se a voltar os pensamentos para Guida. A amiga tinha sido a única pessoa que
conseguira tirar Fernanda da depressão depois da morte de Luisa. Conversavam sobre o amor,
sobre a morte, sobre a vida, sobre tudo e nada... Durante horas a fio...
Guida era uma mulher forte, inteligente, com idade para ser mãe de Fernanda e, no entanto, a
amiga a compreendia. Sentia muita falta dela.
Mas, afinal, o que Guida tinha na cabeça ao exigir que a sobrinha, tão frágil, tão delicada, tão
nada a ver com um sítio, fosse obrigada a administrar e morar no Sol Nascente? Isso só a própria
Guida sabia.
Fosse o que fosse, tudo o que Fernanda queria era comprar o sítio e, finalmente, ter de volta o
que por direito sempre deveria ter pertencido à sua família. Ou será que estava começando a
querer mais do que isso?
VÁRIOS E DIFERENTES SORRISOS
Nos primeiros dias, a vida no sítio transcorreu sem problemas. Isabela espantou todos com a
rapidez com que se adaptava e aprendia a fazer as coisas.
Roque conseguiu consertar e trazer de volta a “jubiraca”, mas, achando melhor não se arriscar,
a primeira coisa que Isabela quis fazer foi aprender a montar.
Afinal, além dos cavalos da tia serem definitivamente a melhor opção de transporte, não
poderia desperdiçar logo a única coisa que tinha herdado que não precisava de consertos nem
remendos.
Como no sítio não tinha Internet e o celular dela não funcionava, o jeito era falar com tia Carmen
por telefone convencional mesmo. Falavam-se todos os dias, a senhora nunca desistindo de tentar
convencer a sobrinha a voltar. Isabela só ria e voltava ao trabalho. Aliás, muito trabalho mesmo.
Passava o dia inteiro ajudando Roque a fazer mil coisas que ela jamais sonhara que um dia faria.
Num dos dias em que acordou sentindo saudades do “Belinha, meu amor! Levante e brilhe para
um novo dia!” da tia, percebeu que Rosa não estava na cozinha.
– Minha irmã tá de cama, dona Isabela.
– Mas o que ela tem?
– Sei não... Um febrão alto... Daqui a pouco levo um caldo pra ela...
Saiu para consertar uma cerca que estava caindo. Roque já a esperava na frente da casa:
– Dona Isabela, vamos precisar de mais pregos, esses tão quase no fim.
– Tudo bem, eu vou até à vila.
Resolveu ir a cavalo mesmo. Afinal estava montando muito bem e qualquer coisa era melhor que
a “jubiraca”.
Depois de comprar os pregos, saiu do mercadinho e deu de cara com Fernanda encostada numa
picape preta. Por trás dos óculos escuros, ela deu um enorme sorriso para Isabela.
– Oi!
– Oi...
Isabela retribuiu o sorriso sem nem perceber.
“Também, como resistir a uma mulher bonita dessas? Chega a ser covardia...”
– Tudo bem com você?
– Tudo.
Fernanda levantou os óculos para avaliá-la melhor:
– Chapéu de couro... Botas de montar... É... Parece que você não precisa mais de mim...
Em qualquer outra situação, Isabela aproveitaria a deixa. Mas aquele não era, definitivamente,
o momento para Isabela pensar em mulher nenhuma, precisava manter toda a atenção no sítio.
Claro que achar Fernanda linda, interessante, maravilhosa e tudo de bom dificultava muito, mas
muito mesmo. Perto dela, Isabela não conseguia nem controlar os olhos, que involuntariamente
passearam pelo corpo de Fernanda inteiro.
Pelo jeito, ela não era tão frágil, delicada e inocente como Fernanda pensava. Se fosse, não
ficaria ali, parada no meio da vila, praticamente devorando Fernanda com os olhos.
– Ou será que precisa?
– De quê?
– De mim...
Isabela sentiu uma leve irritação com o tom de superioridade da outra.
“O que ela está pensando?” Era uma carioca experiente e descolada, não ia deixar barato.
– Se precisar, eu te aviso.
E saiu andando em direção ao cavalo. Um sorriso largo se abriu no rosto de Fernanda.
“Bravinha ela...”
Imaginou mil formas de domar aquela braveza toda e sorriu mais ainda...
– Ei, Bela!
O jeito como Fernanda a chamou fez Isabela sentir um arrepio delicioso, como se a boca da
ruiva tivesse sussurrado baixinho no seu ouvido. Mas não ia dar à outra o gostinho da vitória.
Virou-se com a cara mais séria do mundo:
– Oi?
– Se precisar de qualquer coisa, a qualquer hora, o que precisar, pode contar comigo.
O oferecimento era sincero, estava escrito nos olhos de Fernanda. E isso amoleceu Isabela muito
mais do que qualquer outra coisa. Agradeceu com um sorriso que Fernanda achou lindo:
– Obrigada.
Sem olhar para trás, montou no cavalo e pegou a estrada. Na sua mente, a imagem da outra
era inevitável.
“Que mulher é essa?”
Realmente difícil resistir e pensar em herança, sítio ou qualquer outra coisa. Até Cris já fora para
o espaço...
Durante todo o caminho de volta, Isabela manteve um grande sorriso nos lábios.
TRAVANDO CONHECIMENTO
No dia seguinte, depois de mais uma longa jornada de trabalho físico exaustivo – principalmente
para quem, como ela, não estava acostumada –, Isabela se deu ao luxo de tomar um banho
demorado. Apesar dos músculos doloridos ainda incomodarem, ficou bem mais relaxada. Chegou a
esboçar um sorriso, que morreu no mesmo instante em que abriu a porta do banheiro, ainda
enxugando os cabelos molhados, e deparou-se com... A maldita música caipira que nunca parava
de tocar!
A repulsa de Isabela por aquele tipo de som não vinha de um apurado gosto musical. Muito pelo
contrário. Era adepta de todo e qualquer tipo de bobagem que tocava nas rádios. Só que o ritmo
sertanejo lhe causava uma sensação estranha, incompreensível, que não conseguia dominar.
Depressão, tristeza, nostalgia... A única saída que conhecia para aquilo era a... Raiva!
Caminhou pisando firme, pronta para um embate com Rosa e Janaína. Só quando entrou na
cozinha e viu apenas uma das duas é que lembrou-se de que a outra – Rosa? Janaína? Não
conseguia lembrar qual – estava doente. Sentindo-se absolutamente mal por ter sido tão insensível,
egoísta, negligente, irresponsável e muitas outras coisas que sequer poderia nominar, não teve
coragem de reclamar do rádio:
– Sua irmã tá melhor?
A gêmea solitária deu um pulo.
– Ai, dona Isabela! Quase me mata de susto!
Depois de se desculpar e de ouvir milhares de informações nem um pouco esclarecedoras sobre
o estado da “adoentada”, foi pendurar a toalha que ainda segurava no varal nos fundos,
tentando ignorar o medo que as galinhas ciscando soltas no terreno ainda lhe causavam. Sem
resultado. Voltou quase correndo para dentro de casa e... Para a dupla de vozes que melosamente
cantava, dando vontade de chorar.
Exasperada com a melancolia ainda maior da canção que agora tocava, pegou o celular no
quarto. Pelo menos o som do aparelho funcionava. Sentou-se com o fone no ouvido na balaustrada
de madeira da varanda na frente da casa, encostada numa das pilastras que sustentavam o
telhado. Pela primeira vez desde que tinha chegado, conseguiu sentir-se à vontade. Fechou os olhos
e, curtindo a seleção que estava gravada no cartão de memória, deixou-se transportar para longe
daquele lugar. Por um momento, foi como se estivesse num sonho do qual, a qualquer momento,
fosse acordar. Quase podia ouvir a voz da tia chamando...
Abriu os olhos, forçando-se a encarar a realidade. Não tinha tempo para lamentações, revoltas,
angústias existenciais, muito menos para irresponsabilidade. Menos de três meses e teria a própria
vida de volta, com uma condição financeira bem mais favorável. Tinha que – e iria – aguentar.
Voltou a fechar os olhos, afastando todos os pensamentos negativos. E isso a levou a pensar na
única coisa boa que tinha acontecido nos últimos dias: Fernanda...
Lembrou-se do jeito que ela a tinha olhado na véspera, os sorrisos, as insinuações, o tipo de
conversinha boba que conhecia muito bem. Sim, a ruiva absolutamente maravilhosa a tinha cantado
abertamente. Se fosse alguns dias antes, Isabela cairia dentro, nem pensaria duas vezes.
Mas, naquele exato momento, não podia se dar ao luxo de ser inconsequente. Infelizmente.
Precisava manter o foco, tinha que...
Foi interrompida por um toque suave no braço. Abriu os olhos e... Quase caiu com o susto que
levou ao deparar-se com a ruiva parada, ou melhor, montada num cavalo negro, bem na frente
dela.
***
Fernanda foi ao Sol Nascente sem tentar encontrar desculpas para si mesma. Admitindo
integralmente o que queria: satisfazer o desejo de encontrar Isabela outra vez.
Assim que se aproximou, pôde vê-la. Sentada na frente da casa. Empoleirada na balaustrada,
seria melhor dizer.
Aproximou-se devagar, sem saber ao certo como seria recebida. Esperava tudo, menos o que
aconteceu: Isabela simplesmente não teve reação nenhuma. Nem quando Fernanda ficou a
centímetros dela.
Só então compreendeu o porquê de ela não se mover. Estava de olhos fechados, com fones no
ouvido, desligada do mundo. Na verdade, num mundo particular só dela.
Aproveitou para observá-la, o sorriso aumentando nos lábios à medida que aprovava cada
detalhe e permitia que a imaginação corresse livremente.
Linda... Tão linda... Adoraria ler seus pensamentos... Os lábios muito próximos, na mesma altura
dos de Fernanda, pareciam pedir um beijo...
Chegou a inclinar-se, movida por uma vontade absolutamente incoerente de...
Atacar uma quase desconhecida se aproveitando enquanto ela estava tranquilamente sentada
na varanda da própria casa?
Riu de si mesma.
E optou por agir civilizadamente. Chamou-a duas vezes. Ela não escutou. Devia estar ouvindo
música num volume muito alto.
Fernanda não hesitou. Não era mulher de recuar por besteira. Estendeu a mão e tocou no braço
de Isabela, que... Saltou e gritou, antes de fitá-la como quem não estava entendendo.
Isabela tirou os fones e piscou, inconscientemente. Como se a ruiva na frente dela fosse uma
visão que pudesse desaparecer.
– Desculpe, minha intenção não era assustar você.
Foi só quando ela falou que Isabela percebeu que era real: Fernanda estava mesmo ali,
parada, sorrindo para ela. Um embaraço absoluto a acometeu:
– Não, eu que peço desculpas, eu...
– Estava longe. É, deu pra perceber.
Sorriram uma para a outra. As duas tentando encontrar alguma coisa para dizer. Foi Fernanda
quem se rearticulou primeiro:
– Precisamos parar de nos encontrar desse jeito.
Pura instigação. Isabela sabia perfeitamente. Deu corda assim mesmo:
– De que jeito?
Fernanda não respondeu de imediato. Sorriu para Isabela antes de revelar:
– Sem você estar pronta.
Isabela deixou escapar uma risada que Fernanda achou deliciosa, antes de retrucar no mesmo
tom provocante:
– Pronta pra quê?
– Não sei. Me diga você.
O sorriso provocante da ruiva fez Isabela sentir uma vontade insana de beijá-la. Ali, sem mais
nem menos.
Vontade que só aumentou quando o olhar de Fernanda desceu para os lábios de Isabela antes
de voltar a encontrar o dela.
Ficaram se fitando durante algum tempo, num duelo silencioso, carregado de uma tensão que
ambas sabiam muito bem reconhecer.
Foi Isabela quem desviou os olhos primeiro:
– Desculpa... Eu... Onde eu tô com a cabeça? Você deve estar me achando super mal educada,
né? Não quer entrar? Tomar um café, talvez?
Fernanda não vacilou:
– Como recusar um convite desses?
***
Nenhuma das duas saberia precisar quanto tempo ficaram sentadas naquela sala conversando.
Umas três xícaras de café para cada uma, pelo menos... Foi de forma completamente contrária à
própria vontade que Fernanda finalmente pousou a dela na mesinha de centro e falou:
– Vou indo.
“Já?”, Isabela pensou, mas não falou. Apenas se levantou para acompanhá-la. Quando
cruzaram a soleira da porta, parou encantada com o pôr do sol que se apresentava. Deixou
escapar sem perceber:
– Que lindo...
Parada a milímetros dela, Fernanda se deixou fascinar... Não pelas matizes de cor no horizonte,
mas pelo que vislumbrou quando Isabela se virou e seus olhares se encontraram.
Aproximaram-se devagar, num movimento que pareceu inevitável, irresistível, quase mágico. Os
lábios se atraindo, buscando-se, tomando-se... Sem que nenhuma das duas tivesse previsto ou
planejado.
Respiraram juntas, numa entrega recíproca. Sem pressa, suave e, ao mesmo tempo, intensa,
urgente e necessária.
Durou pouco. O suficiente para Isabela recuperar a própria razão e se lembrar de que estava
ao alcance da vista de qualquer pessoa que passasse... Ainda assim, teve que fazer um esforço
enorme para conseguir se afastar.
Fernanda a soltou assim que as mãos de Isabela mudaram a intenção, empurrando-a ao invés
de continuarem a puxá-la. Não se espantou com a resistência dela, e sim com o tempo que levou
para se manifestar.
Olharam-se em silêncio durante um breve momento. As duas tentaram, mas não encontraram
palavras. Sequer havia o que dizer. A não ser:
– Boa noite.
Antes de Fernanda se virar, descer as escadas e montar no cavalo.
Isabela ainda ficou ali parada, observando-a até perdê-la de vista na primeira curva da
estrada.
PRECISANDO DELA
Quando entrou em casa, Isabela se deparou com uma situação catastrófica: Janaína também
tinha caído de cama, com o mesmo febrão misterioso da irmã.
Cuidou das duas o melhor que pôde, mas a febre não baixava.
Pior mesmo foi quando tentou improvisar algo para o jantar. Roque acabou fazendo uma sopa
de legumes para que não morressem todos de fome. Estavam acabando de tomar a sopa quando
ouviram trovoadas.
– Dona Isabela, preciso subir no telhado e consertar as telhas quebradas antes que comece a
chover – disse e saiu para resolver o problema.
Enquanto lavava os pratos, Isabela podia ouvir os passos de Roque lá em cima. De repente,
ouviu uma barulheira no teto e um baque. Correu para o lado de fora. Roque estava caído no
chão, gemendo. Uma das pernas dele – Isabela quase morreu quando viu – estava toda torta.
– Acho que quebrei a perna...
Pela voz, era óbvio que ele estava com muita dor. Devagar, com muito cuidado, ajudou o homem
a ir mancando e gemendo até o quartinho dele. Assim que o deitou na cama, começou a chover.
– Fica calmo que vou buscar ajuda.
Foi até o estábulo, vestiu a primeira a capa de chuva que encontrou, selou um cavalo e saiu a
galope. Chovia muito, um verdadeiro temporal. O cavalo patinava na lama, fazendo Isabela ter
certeza que quebraria o pescoço antes de chegar à fazenda Boqueirão. Mas outras pessoas
precisavam dela, não podia desistir.
Mesmo de longe, dava para se ver a casa da fazenda. Uma mansão enorme, imponente e, para
alívio de Isabela, totalmente iluminada.
Depois de entregar o cavalo para um rapaz que encontrou ali por perto, Isabela foi bater na
porta da frente.
A mulher que abriu a porta a olhou de cima a baixo em reprovação e, só então, Isabela
percebeu que estava toda molhada e cheia de lama.
– Se quiser comida, dá a volta, a cozinha é ali atrás.
Sem tempo para mais explicações, foi empurrando a mulher para o lado, enquanto entrava e
dizia:
– Quero falar com a Fernanda, por favor!
***
Fernanda tinha acabado de jantar. Fora com a mãe para a sala de estar assistir à televisão,
mas os pensamentos estavam longe...
Como Isabela estaria se virando no sítio cheio de goteiras? A tempestade parecia que ia durar
a noite toda... Então ouviu alguém bater, uma falação vinda da porta e, de repente, uma voz que
estava se tornando bastante conhecida:
– Já disse que preciso falar com ela!
Chegou ao hall de entrada bem a tempo de ver a empregada obrigando Isabela a tirar as
botas e a capa de chuva molhada, numa tentativa de evitar que o chão de mármore ficasse ainda
mais enlameado.
– Pode deixar, Selma, obrigada.
Selma saiu se desculpando, mas levando as botas e a capa de chuva.
Fernanda viu o quanto Isabela estava tremendo. Os cabelos escorriam e a roupa, toda
respingada de lama, estava encharcada. Era óbvio que algo muito errado tinha acontecido.
Rapidamente, Isabela explicou a situação. Fernanda ouviu tudo em silêncio, para depois dizer:
– Deixa que eu resolvo. Você fica aqui.
– De jeito nenhum, eles são minha responsabilidade!
– Adianta cair doente também? O melhor que você tem a fazer agora é tirar essa roupa
molhada e descansar...
– Não mesmo! Onde estão as minhas botas?
Isabela apenas ameaçou ir em direção à porta por onde Selma tinha saído. Fernanda não
permitiu, puxou-a pelo braço antes que ela pudesse dar um passo. Com tanta força que fez
Isabela parar entre os braços dela.
O corpo inteiro de Isabela foi invadido por uma onda de calor. Percebeu que o contato teve o
mesmo efeito em Fernanda, a respiração dela parecia mais difícil... Estavam muito próximas, mas
não o bastante.
Fernanda colou a boca na de Isabela, a língua invadindo, buscando, encontrando. Abraçou-a
pela cintura, colou o corpo no dela, deliciando-se com a reciprocidade...
Isabela se deixou levar pelo prazer que era beijar aquela mulher... Passou os braços em torno
do pescoço dela, enfiou os dedos nos cabelos ruivos, gemeu quando sentiu que uma mão de
Fernanda acariciava seu seio enquanto a outra agarrava suas nádegas com força...
Então se lembrou de Roque, Janaína e Rosa.
– Meus empregados... – balbuciou fracamente.
Fernanda até ouviu o protesto da outra, mas não conseguiu parar. Foi preciso um esforço
enorme para Isabela conseguir se soltar, a respiração alterada, o coração dando pulos no peito...
– Bela...
– O quê?
– Você fica aqui.
E, dizendo isso, Fernanda saiu porta afora.
UMA MÃE COM SEGUNDAS INTENÇÕES
Isabela ficou ali sem saber o que fazer. Se pelo menos a tal Selma não tivesse sumido com as
botas...
Quase caiu para trás quando se virou e deu de cara com uma senhora, que sorria simpática,
parada na porta do que parecia ser uma sala de estar.
– Boa noite, querida, sou Clara, mãe da Fernanda.
Isabela se perguntou há quanto tempo a senhora estava parada ali.
– Muito prazer, Isabela.
– A sobrinha da Guida, né? Eu me lembro de você. Claro que na época você era só uma
menininha. O tempo passa muito rápido... Mas vem comigo, vem. Você deve estar louca pra tirar
essa roupa molhada e tomar um bom banho.
Dona Clara subiu as escadas seguida por Isabela e entrou num quarto grande, aconchegante,
com uma cama que parecia muito macia e convidativa.
– Pode ficar à vontade. Aqui é o banheiro – disse, abrindo uma porta. – E aqui é o quarto da
Nanda.
Tinha uma porta de ligação entre os dois quartos. Isso fez Isabela ter certeza de que a mãe de
Fernanda tinha visto, se não toda, pelo menos parte da cena entre as duas no hall de entrada.
Antes que Isabela pudesse concluir o pensamento, Dona Clara voltou do outro quarto trazendo
uma camisola.
– É da Nanda, pode usar. Você está com uma carinha tão preocupada... Pode ficar tranquila
que a doutora Fernanda vai deixar seus empregados novinhos em folha.
– Doutora Fernanda?
– A Nanda é médica, não sabia? Bom, vou pedir pra Selma trazer um lanchinho pra você. Sinta-
se bem-vinda e fique à vontade.
Assim que Dona Clara saiu, Isabela se livrou das roupas molhadas e se enfiou num maravilhoso
banho quente.
Quando saiu do banheiro, tinha uma bandeja com um lanche na mesinha perto da porta e suas
roupas tinham sumido.
Vestiu a camisola de Fernanda, só então percebendo que era um tanto quanto curta e
transparente.
“Nossa, o que é que essa dona Clara tá querendo me colocando num quarto ligado ao da
Fernanda e me dando uma camisola dessas?”
Mal tocou na comida, estava cansada demais para ter fome. Assim que deitou na cama,
adormeceu.
***
Quando Fernanda voltou do Sol Nascente, dona Clara ainda estava acordada vendo televisão.
– Gostei da moça, Nanda. Fico feliz por você.
– Mamãe, ela é só uma amiga.
– Não foi isso que eu vi...
Dona Clara riu da expressão surpresa e envergonhada da filha.
– Minha querida, vocês estavam se beijando no hall, como eu não ia ver? E não me venha falar
da Luisa. Já faz muito tempo, Nanda, você precisa tocar a sua vida.
– Tá bom, mamãe, você já deu sua opinião. Agora, por favor, com licença, eu tô morta de sono.
– Boa noite, filha. Durma bem.
– Boa noite, mamãe.
Beijou a mãe e foi saindo, mas, antes de cruzar a soleira da porta, dona Clara disse
bombasticamente:
– Se quiser falar com a sua “amiga”, coloquei-a no quarto ligado ao seu...
UMA NOS BRAÇOS DA OUTRA
A primeira coisa que Fernanda fez não foi tomar banho, nem mudar de roupa: foi bater na
porta de comunicação entre os quartos.
Como não obteve resposta, abriu a porta devagarzinho. Isabela dormia profundamente, vestida
na menor e mais transparente camisola que Fernanda tinha.
“Realmente, a mamãe é terrível!”
Mas não podia deixar de agradecer mentalmente à mãe pela visão oferecida. Com dificuldade,
desviou o olhar dos seios absolutamente irresistíveis e voltou para o seu próprio quarto. Deixou a
porta de comunicação aberta e entrou num banho frio.
***
Isabela acordou um pouco perdida, sem saber que horas eram ou onde estava. Viu a porta de
comunicação aberta, a luz do quarto de Fernanda acesa e entrou sem bater.
Fernanda tinha acabado de sair do banho. Vestida num roupão, enxugava os cabelos quando
percebeu a presença de Isabela.
– Desculpa, eu te acordei?
– Eu queria agradecer... Por tudo que você tem feito por mim...
O olhar que Fernanda lançou lembrou-a que estava vestindo uma camisola que a deixava
quase nua...
– E dizer que, quando eu puder, vou pagar pelos seus serviços... Como médica, quero dizer...
Fernanda já tinha nos lábios um sorrisinho divertido, achando Isabela uma graça...
Mas Isabela não estava nada satisfeita com a ideia de deixar transparecer tanto que a outra a
intimidava. Nunca tinha encontrado uma mulher que a deixasse assim, desarticulada, enrolando-se
nas próprias palavras. Normalmente tinha um papo interessante, sabia como ninguém dar uma
cantada... Precisava dizer algo inteligente, mas não lhe ocorria nada. Então resolveu ser simples e
direta:
– E que gostei muito do seu beijo e quero mais...
Fernanda foi totalmente pega de surpresa. Isabela a puxou pela cintura, beijando-a com
voracidade, chupando sua língua, arrancando gemidos... Abriu e jogou o roupão de Fernanda no
chão, queria provar aquele corpo perfeito. Tocou e acariciou os seios dela, enquanto a empurrava
para a cama. Deitou por cima dela, beijando a parte mais sensível do pescoço, o perfume dos
cabelos ruivos a embriagando. Isabela admirou a beleza dos seios que tinha nas mãos, brincou
passando a língua nos biquinhos duros, chupando, lambendo, fazendo Fernanda suspirar e pedir
mais. Então, desceu a mão pelas coxas dela e tocou-a entre as pernas, a excitação aumentando ao
ver o quanto ela estava molhada... Era uma delícia aquela mulher... E estava ali, em suas mãos.
Ao sentir os dedos que a invadiam, Fernanda segurou Isabela pelos cabelos, fazendo-a descer
a boca. Ela foi provando cada pedacinho de pele que encontrava pelo caminho. Quando encostou
os lábios no sexo de Fernanda, esta gemeu alto... A boca de Isabela era uma tortura. Passava a
língua devagar, depois com força, fazendo Fernanda gemer cada vez mais alto. Isabela sentiu que
ela estava perto e aumentou o ritmo da língua, os dedos se movendo cada vez mais fundo e com
mais força.
– Goza pra mim... Goza...
O efeito das palavras foi imediato. O corpo de Fernanda estremeceu e ela gozou
demoradamente, gemendo alto.
Isabela deitou em cima dela novamente, beijando-a na boca com um sorriso satisfeito nos lábios.
Fernanda trocou de posição com ela, assumindo de volta o controle da situação. A carioca sabia
o que fazia, realmente a tinha surpreendido. Tinha devorado Fernanda, fazendo-a se entregar
completamente.
Mas agora era sua vez de fazer aquela mulher deliciosa se render também. Roçou os lábios na
orelha dela sem pressa, sussurrando palavras que deixaram Isabela arrepiada. Desceu a boca
pelo pescoço, espalhando um calor que a fazia ofegar. As mãos de Fernanda tocaram e
acariciaram o corpo inteiro dela, a boca sugando os seios ainda por cima do tecido da camisola.
A pele de Isabela queimava, ardia por aquela mulher. Quando se deu conta, já estava sem
camisola, totalmente entregue nas mãos dela, o corpo vibrando e querendo sentir todo prazer que
ela pudesse lhe dar. Quando as mãos de Fernanda a tocaram entre as coxas, Isabela estremeceu.
Fernanda arrancou a calcinha dela, deliciando-se ao sentir o tecido completamente molhado. Então
desceu a boca pelo ventre, os cabelos ruivos se espalhando sobre o corpo de Isabela e causando
pequenos tremores. Lambeu as coxas, provocando antes de mergulhar a língua faminta no sexo
dela. Isabela gemeu alto, com vontade. O toque foi se tornando mais intenso, os gemidos cada vez
mais desesperados. Fernanda penetrou-a com os dedos, acompanhando o ritmo dos quadris.
Isabela gemeu, dizendo que ia gozar... Fernanda foi aumentando o ritmo até que Isabela gritou, o
corpo sacudido por um violento espasmo.
Demorou algum tempo para recuperar as forças e abrir os olhos. Quando o fez, Fernanda
estava deitada em cima dela, os corpos colados. Olhando-a com um sorriso lindo, acariciou o rosto
corado de Isabela ao dizer:
– Minha Bela...
Ficaram se olhando nos olhos por algum tempo. Então Fernanda a beijou, um beijo preguiçoso,
carinhoso, mas nem por isso pouco intenso. Brincou:
– Foi bom pra você?
– Não sei... Preciso de mais pra poder opinar...
Fizeram amor a noite inteira, até ficarem exaustas. Adormeceram uma nos braços da outra,
sentindo uma grande sensação de paz.
***
Foi Fernanda quem acordou primeiro. Ficou observando a mulher adormecida ao seu lado.
Isabela estava com um dos braços debaixo do travesseiro, os cabelos castanhos claros muito lisos
espalhados. O lençol tinha escorregado, deixando a nudez dela à mostra. Os olhos de Fernanda
passearam felizes pelas pernas, bunda, barriga... Pararam na marquinha de biquíni que destacava
os seios bem feitos e firmes. Ela era linda, deliciosa, incrível... Em tão pouco tempo já causava em
Fernanda uma dorzinha no coração.
Foi quando os olhos, que antes admiravam Isabela, depararam-se com a foto em cima da
mesinha de cabeceira, de onde um par de olhos muito azuis pareciam fitá-la. Luisa... Aquela que
um dia fora sua vida, sua alma. Durante três anos, as lembranças de Luisa tinham sido seu único
pensamento. Nunca a esqueceria, mas, no fundo, percebia que aquele era o momento em que ela
finalmente passara a fazer parte do passado.
O presente estava ali, na figura daquela linda mulher adormecida. E, se dependesse de
Fernanda, um presente que ela gostaria de transformar em futuro.
A primeira coisa que Isabela sentiu quando acordou foi o braço de Fernanda envolvendo sua
cintura. A primeira coisa que viu foi a foto de uma mulher loira, de olhos muito azuis. Provavelmente
a ex dela, a que tinha morrido. A presença da foto ao lado da cama incomodou Isabela, um misto
de culpa e ciúme crescendo dentro dela.
– Bom dia! Dormiu bem?
– Muito...
Mas então Fernanda já estava beijando-a com paixão, e ela esqueceu-se de tudo que não
fossem os lábios macios, a língua ávida e a pele quente encostada na dela. Permitiu-se deliciar com
o poder de sedução daquela mulher.
– Com fome?
– Tô faminta!
– Então vamos tomar um banho e descer. Mamãe deve estar morrendo de curiosidade...
– O quê? Então sua mãe fez mesmo de propósito?
– Digamos que ela gostou de você... E quis dar um empurrãozinho...
– Lembre-me de agradecê-la...
– Só depois que eu agradecer!
Beijaram-se novamente. As mãos de Fernanda começaram a percorrer o corpo de Isabela, a
boca beijou o pescoço já causando arrepios.
– Acho melhor parar com isso... Senão não vamos descer tão cedo...
– Quem tá com pressa?
– É que... Tô preocupada com o pessoal lá do sítio... E além disso eu... Eu não... Ah, nada não,
deixa pra lá...
– O que é? Fala...
– Não fica chateada, mas... Não me sinto bem com essa foto aí me olhando...
– Desculpe...
– Não, eu é que peço desculpas... Afinal, ela é sua mulher...
– Foi minha mulher. Ela... Faleceu.
Fernanda entendia perfeitamente o desconforto dela. Queria dizer para Isabela o quanto ela se
tornara importante em tão pouco tempo, importante o suficiente para ela resolver guardar aquela
foto... Mas ainda não sabia como. Resolveu encerrar o assunto levantando e puxando Isabela para
o chuveiro. Pegou o sabonete e começou a ensaboá-la carinhosamente, as mãos deslizando
primeiro pelos braços, pelos ombros, pelas costas e depois se demorando um pouco mais nos seios,
que endureceram involuntariamente com o toque.
Então as mãos dela tocaram o sexo de Isabela, abrindo, entrando, fazendo-a morder os lábios
para sufocar um gemido... Fernanda a encostou na parede, mergulhou a boca nos lábios famintos,
aumentando o ritmo ao sentir as mãos dela encontrando seu sexo também. E entre palavras
sussurradas, suspiros e gemidos, os corações batendo juntos, as duas explodiram num orgasmo
intenso.
UMA GRANDE DECEPÇÃO
Tomaram café com dona Clara. No começo, Isabela ficou um pouco sem graça porque a mãe de
Fernanda não parava de sorrir para ela.
Também, os olhares carinhosos que Fernanda lhe lançava, o sorriso maroto que não abandonava
seu rosto e a preocupação que demonstrava em servir Isabela não deixariam dúvidas ao pior
entendedor.
A senhora estava nitidamente satisfeita, mas, para alívio de Isabela, não fez nenhum comentário.
Quando acabaram, Fernanda se ofereceu para levar Isabela.
– Mas e o meu cavalo?
– Levei ontem, já tá no sítio...
Dona Clara se despediu com as seguintes palavras:
– Pode deixar que assim que suas roupas estiverem secas a Selma guarda no quarto da Nanda.
O rosto de Isabela estava muito corado, e Fernanda a abraçou, rindo.
– Pelo visto mamãe quer que você volte... Eu também...
Isabela estava usando uma camiseta e uma calça jeans de Fernanda. Teve que dobrar as
pernas da calça, por ser alguns centímetros mais baixa, mas, fora isso, por Fernanda ser bastante
esguia, até que tinham servido muito bem.
Isabela falou baixinho no ouvido dela:
– Vou voltar...
***
A ida para o sítio foi perfeita. Conversaram amenidades, a mão de Isabela pousada
intimamente na coxa de Fernanda, que dirigia devagarzinho para prolongar os beijos, carinhos e
olhares. Foi com tristeza que se separaram.
– Pode ficar tranquila porque o Roque já está engessado, só não pode andar até amanhã pro
gesso secar. As meninas estão com dengue, mas já estão medicadas. A Déia tá cuidando delas e
sabe o que fazer. Vai ficar aqui até elas ficarem curadas. Qualquer coisa me liga, tá? Eu volto
mais tarde.
– Vou estar consertando a cerca...
– Ah, isso é uma coisa que eu não quero perder – disse com um sorriso implicante.
– Fique sabendo que sou muito boa com as mãos...
– Isso eu sei muito bem, linda...
Despediram-se com um beijo e Isabela ficou olhando até a picape desaparecer na estrada.
Rosa e Janaína estavam com uma aparência muito melhor, mas ainda pareciam bastante
debilitadas. Déia era uma senhora gordinha com as faces coradas, muito simpática.
– Pode deixar, dona Isabela, que elas tão em muito boas mãos!
Roque, por outro lado, parecia muito nervoso, quase desesperado. Isabela pensou que ele não
devia estar acostumado a ficar tanto tempo deitado...
– Dona Isabela, me desculpe, não pude fazer nada.
– Que é isso, Roque... Sei que não foi sua culpa ter caído do telhado...
– Não fique com raiva de mim, por favor...
– Mas por que eu ficaria?
– Eu não tive como avisar a senhorita...
– Avisar? Avisar o quê? – Ela estava começando a ficar preocupada.
– A cláusula do testamento... Os três meses...
– Sim, o que é que tem? Fale logo, homem!
– A senhorita perdeu o sítio... Perdeu... Eu não pude fazer nada... Três meses sem se ausentar... –
Roque nem precisava concluir para que ela entendesse. – Ontem a senhorita dormiu fora de casa...
Isabela saiu furiosa, deixando o pobre homem falando sozinho, desculpando-se sem parar.
“Como pude ter sido tão estúpida?”
Então por isso a insistência de Fernanda para que ela ficasse na fazenda. Ela tinha planejado
tudo e Isabela caíra fácil, muito fácil...
Mas então se lembrou dos beijos famintos, de todas as carícias e palavras que trocaram.
Fernanda não podia estar só fingindo e agindo de forma calculada...
Não... Isso não queria dizer nada. Fernanda a fizera dormir na fazenda, porém Isabela é que
tinha ido ao quarto dela seminua, quem tinha tomado a iniciativa de beijá-la. E ela, lógico, tinha
correspondido. Desde o primeiro encontro existia uma química impressionante entre as duas, não
tinha como negar. Mas era uma coisa física, nada garantia que passasse de pura atração sexual.
Isabela sentiu uma pontada no coração quando lembrou da fotografia na cabeceira da cama.
O retrato da mulher que Fernanda realmente amava.
Tinha perdido o sítio por se deixar levar pelo fascínio que Fernanda exercia. Por uma noite
totalmente maravilhosa, intensa e apaixonante que, aparentemente, só tinha algum significado para
ela.
Com esse último pensamento, Isabela começou a chorar.
AMANSANDO A FERA
Depois da perda dos pais, Isabela tinha se tornado o tipo de pessoa que não gostava de
chorar. Por isso, quando chorava, sempre se obrigava a substituir rapidamente a tristeza por um
sentimento que lhe desse força. Naquele momento, o sentimento que encontrou foi a raiva.
Sem pensar duas vezes, pegou o telefone e discou.
– Alô?
– Oi, quero falar com a Fernanda, por favor.
– Bela? Aconteceu alguma coisa?
– Sei que o sítio é importante pra você, mas não precisava ser assim.
– Do quê você tá falando?
– Você sabe muito bem!
– Não, eu juro que não tô entendendo nada...
– Você me fez dormir aí porque sabia que isso me faria perder o sítio... Eu nunca vou te
perdoar...
– Bela, me escuta: eu nunca ia fazer isso com você!
– Só te peço para me deixar ficar aqui até o Roque e as meninas se recuperarem. E para, por
favor, você não aparecer enquanto eu estiver aqui, não quero te ver nunca mais!
Dizendo isso, desligou sem dar chance de Fernanda falar.
Do outro lado da linha, Fernanda se recuperou rapidamente do choque. Não tinha a menor
intenção de perder Isabela. Ligou para o doutor Macedo, o único que poderia explicar a situação.
– Pelo testamento, se a senhorita Isabela passar uma noite fora do sítio, este passa pra senhora.
Pra isso é só fazer um requerimento e, lógico, provar que ela realmente se ausentou. Mas por que
pergunta?
– Nada, só curiosidade... Muito obrigada!
Desligou bem mais tranquila. O negócio agora era amansar a fera.
***
Isabela martelava os pregos com vontade, descontando todo o ódio que sentia. Quando ouviu o
cavalo se aproximando, sabia que era Fernanda. Por isso mesmo nem sequer olhou para trás.
Percebeu quando ela desmontou, aproximou-se e parou bem próxima, mas continuou com os olhos
fixos na cerca.
– Eu quero falar com você.
Como resposta, só as marteladas. E, pela força com que Isabela usava o martelo, Fernanda
podia calcular o quanto ela estava brava.
– Bela, você precisa me ouvir...
– Já disse que não quero mais olhar pra sua cara.
Fernanda esperou pacientemente até ela pregar a última tábua. Porém paciência tinha um limite
e a dela acabou quando Isabela lhe deu as costas e caminhou para o próprio cavalo.
– Escuta aqui... – disse, puxando-a pelo braço.
Isabela se virou para ela, os olhos faiscando. Não de desejo, como Fernanda gostaria, mas com
uma profunda raiva.
– O sítio é seu, você venceu! O que mais você quer?
– Eu quero você!
O sorriso que ela deu, um misto de ironia e desprezo, fez Fernanda recuar.
– Pois isso você não vai ter.
Montou no cavalo e saiu a galope. Fernanda ficou ali parada, incrédula. Não tinha nem
conseguido se explicar.
Isabela se distanciou o mais rápido que pôde. Quando Fernanda a puxou pelo braço e os seus
olhos se cruzaram, percebera que a única chance que tinha de resistir era não deixando que ela
se aproximasse mais...
***
Chegando ao sítio, Isabela se trancou no quarto sem jantar. Ficou andando de um lado para o
outro, tentando cultivar a raiva por ter sido usada e enganada, mas não conseguia parar de
pensar no gosto, no cheiro, nos beijos de Fernanda. Atirou-se na cama esmurrando o travesseiro,
odiando-se por desejar tanto aquela mulher.
Acabou adormecendo e sonhando com ela. A mão de Fernanda acariciava seu rosto, a boca
sussurrava em seu ouvido e depois colava na dela. O sonho era tão real que quase podia sentir o
gosto daqueles lábios, o calor do corpo em cima do seu...
De repente, Isabela percebeu que estava acordada. Abriu os olhos e deu de cara com
Fernanda em cima dela.
– Como você entrou aqui?
– Pulei a janela...
Isabela mal conseguia respirar. Não apenas por Fernanda estar tão próxima, mas pelas milhares
de lembranças e sensações que o simples toque daquela mulher despertava.
– Me solta!
– Não...
Ela desceu a boca sobre a de Isabela de forma lenta, torturante. Mas não a beijou. Ficou só
roçando os lábios nos dela, fazendo Isabela fraquejar. Juntando todas as forças que tinha,
conseguiu protestar com uma voz que falhava, vacilante:
– Não faz assim... Eu... Eu não quero...
– Quer sim...
Foi um beijo longo, possessivo, inebriante. Isabela correspondeu, sentindo um delicioso tremor no
corpo inteiro. Quase se rendeu, mas era dona de uma enorme força de vontade. Empurrou
Fernanda com força, cortando brutalmente o contato dos lábios:
– Eu nunca vou te perdoar.
A língua de Fernanda explorou lentamente o pescoço de Isabela, antes de sussurrar no seu
ouvido:
– Vai se me escutar.
Os lábios de Fernanda brincavam mordiscando o lóbulo da orelha dela. Resistir às carícias era
uma verdadeira tortura e deixava a voz de Isabela ofegante:
– Não assim, não desse jeito...
A voz de Fernanda também estava rouca e trêmula quando disse:
– Tudo bem, eu vou te soltar, mas promete que me deixa falar?
– Prometo.
Devagar, hesitante em terminar as carícias e se afastar dela, Fernanda se levantou, esperando
Isabela sentar na cama.
– Pode falar.
– Bela, eu juro que só queria ajudar... A minha intenção não é e nunca foi tirar o sítio de você...
Ontem à noite foi simplesmente maravilhoso...
– É sobre isso que você quer falar? Sobre o que aconteceu entre nós?
– Também, mas primeiro quero que você saiba que o sítio é seu. Hoje liguei pro doutor Macedo
e esclareci tudo...
– Ah, sei... Você quer que eu acredite que não tem nenhuma intenção de ficar com o sítio?
– Claro que não! Pelo menos não desse jeito. Se um dia você quiser me vender, aí já é outra
história...
– Pois fique sabendo que eu nunca, jamais venderia pra você.
Nesse momento ouviram batidas tímidas na porta.
– Dona Isabela, tudo bem aí?
Aproveitando a deixa, Isabela abriu a porta dando de cara com Déia, Rosa e Janaína paradas
lá fora de camisola, com os olhos muito arregalados.
– Tudo bem, não precisam se preocupar. Desculpa o barulho... A dona Fernanda já está indo
embora...
Isabela ficou segurando a porta aberta, deixando bem claro que a conversa estava encerrada.
– Se você quiser saber a verdade, liga pro doutor Macedo.
E Fernanda saiu sem dizer mais nada.
ALGUMAS SURPRESAS...
Alguns dias se passaram sem que Isabela tivesse notícias de Fernanda. Trabalhava o dia inteiro
para manter a mente ocupada, mas nada adiantava. Volta e meia, quase não conseguia conter a
vontade de deixar o orgulho de lado e correr até a fazenda.
Num desses dias, quando voltou para casa na hora do almoço, recebeu um telefonema do
doutor Macedo.
Mal ouviu o começo da conversa, estava ansiosa demais. Quando o advogado chegou aos
finalmentes, o coração saltava no peito.
– Como já sabe, pelo testamento de sua tia, a senhorita tinha que ficar três meses no sítio
ininterruptamente. No entanto, a senhora Fernanda fez o requerimento da propriedade e
apresentou provas de que a senhorita se ausentou por uma noite. Legalmente, o sítio passou a
pertencer a ela. Agora, o que acontece é que...
De olhos fechados, Isabela afastou o fone do ouvido. Então Fernanda estava mentindo, afinal.
Por isso nunca mais a tinha procurado.
Sem querer ouvir mais nada, desligou o telefone e o deixou fora do gancho.
Quando se virou, Isabela deu de cara com... Tia Carmen!
A tia agarrou a sobrinha, apertando-a num abraço cheio de saudade.
– Belinha, minha querida!
– Titia? Mas o quê...? Como...?
– Você tá tão pálida! Tá se sentindo bem?
Isabela não podia contar que tinha perdido o sítio. Não naquele momento. Para tranquilizar a
tia, mentiu:
– Tô ótima, titia! Você veio sozinha?
Foi quando taparam seus olhos por trás e uma vozinha safada disse em seu ouvido:
– Adivinha quem é?
– Cris?
– Euzinha, baby!
– O que você tá fazendo aqui?
Ela riu, fazendo cara de desentendida.
– Puxa, Isa, nem parece que ficou feliz em me ver...
– Claro que ela ficou feliz... É que ela está surpresa... Sua amiga foi muito boazinha comigo,
sempre ligava lá pra casa. Foi dela a ideia de eu vir te visitar e, olha só que menina gentil, veio só
pra me fazer companhia...
– É, titia, a Cris é a gentileza em pessoa...
Instalou as duas nos quartos de hóspedes e foram almoçar. Durante o almoço, para desespero
de Isabela, Cris ficava esfregando a perna na dela debaixo da mesa.
Quando acabaram, ficou insistindo que Isabela desse uma volta com elas para mostrar o sítio.
Como Cris espertamente tinha calculado, tia Carmen recusou o passeio, alegando estar cansada.
– Mas vão vocês duas, meninas.
Não tendo remédio, Isabela saiu com Cris. Assim que se afastaram um pouco da casa, fez a
pergunta que não queria calar:
– Posso saber o que você veio fazer aqui?
– Senti falta de você, meu amor... Quase morri de tanta saudade...
E, dizendo isso, já foi logo se pendurando no pescoço de Isabela, que imediatamente se soltou.
Se aquilo era uma piada do destino, não estava achando a menor graça.
– Parece que você tá se esquecendo de um pequeno detalhe: a senhora terminou comigo, não
somos mais namoradas!
– Ai, amor, para com isso... Vai dizer que não me ama mais?
– Cris, acabou...
Cris deu uma gargalhada.
– Não acredito em você.
– Por incrível que pareça, é a pura verdade.
– Isso é o que nós vamos ver! – disse, avançando determinada.
O que Cris estava pensando em fazer Isabela nunca saberia, porque nesse exato momento ela
foi salva pelo gongo, ou melhor, por tia Carmen gritando:
– Belinha! Belinha!
– Já vou, titia!
E voltou para casa quase correndo, com uma Cris irritantemente persistente em seu encalço.
UM JANTAR REGADO A VINHO
Tia Carmen estava muito empolgada:
– O que o telefone tava fazendo fora do gancho? Foi só colocar de volta e... Adivinha, Belinha?
Fomos convidadas pra um jantar!
– Jantar? Que jantar, titia?
– Aniversário da Clara, dona da fazenda vizinha. E nem adianta fazer essa cara... Já confirmei
que vamos, ela vai mandar um carro buscar a gente. Além disso, a Clara disse que faz questão da
sua presença! Aliás, elogiou muito você.
– Mas, titia...
– Nem mais nem menos, dona Isabela!
A última coisa que queria era pisar de novo naquela fazenda. Mas quando a tia dizia o nome
dela inteiro, Isabela sabia que não tinha jeito. Assim, viu-se obrigada a ir ao tal jantar.
Resolveu não deixar barato. Não ia dar o gostinho de aparecer abatida e derrotada.
Caprichou na roupa, no penteado e na maquiagem. Quando chegou à sala, o olhar empolgado de
Cris foi a confirmação que precisava: tinha conseguido o resultado desejado.
– Nossa, Isa... Você tá... Tá... Fantástica! Vestida para matar!
***
Dona Clara recebeu as três na porta com um enorme sorriso.
– Que bom que vocês vieram! Isabela, minha querida, como você está linda!
– Obrigada, dona Clara. Parabéns!
– Obrigada, querida...
– Essa é minha tia, Carmen...
– Já nos falamos por telefone... Prazer, Carmen!
– O prazer é meu, Clara! Feliz Aniversário! Essa aqui é a Cris, uma amiga da Belinha que veio
comigo lá do Rio.
Isabela já não estava ouvindo a conversa. Aquele hall trazia recordações que a torturavam...
Felizmente, Dona Clara logo as conduziu para uma grande sala, onde outros convidados bebiam e
conversavam, e desapareceu no meio deles levando tia Carmen.
Os olhos de Isabela percorreram a sala, procurando Fernanda. E então uma mão quente pousou
íntima em seu pescoço, causando um arrepio.
– Nossa, Bela, você está maravilhosa...
Isabela se virou para ela e, se tinha se impressionado com Fernanda da primeira vez em que a
vira, dessa vez, então... Ela estava incrivelmente linda em um vestido vinho que deixava as costas
totalmente à mostra e fazia os cabelos parecerem fogo.
Respirou fundo, forçou-se a pensar no sítio, no retrato da ex na mesinha de cabeceira, qualquer
coisa que a fizesse desejar um pouco menos aquela mulher...
– Não vai me apresentar, Isa?
Se olhar matasse, Fernanda tinha certeza que, se dependesse da loirinha aguada do lado de
Isabela, cairia morta naquele exato momento.
– Essa é Cris, minha...
– Namorada – Cris completou rápida como um raio.
– Engraçado, a Bela nunca me disse que tinha namorada – Fernanda disse, olhando para Cris
como se ela fosse um nada.
Para profundo alívio de Isabela, antes que Cris pudesse dar uma resposta, dona Clara chamou
todos para a sala de jantar.
Sentaram-se numa grande mesa, dona Clara em uma das cabeceiras, com Tia Carmen e Cris,
uma de cada lado.
Para profundo desespero de Isabela, tudo tinha sido muito bem combinado, porque o lugar dela
era ao lado de Fernanda na cabeceira oposta.
– Nós precisamos conversar...
– Não tenho nada pra conversar com você.
– Por que você desligou na cara do doutor Macedo? Nem ouviu o que ele ia te falar...
– Já disse que não quero falar com você!
Isabela esvaziou de um gole só o copo de vinho à sua frente. No mesmo instante, um dos garçons
a serviu novamente. Ela tornou a esvaziar o copo, que, mais uma vez, voltou a se encher. Fernanda
olhou-a, preocupada:
– Ei, devagar!
Isabela sorriu e... Voltou a beber. O garçom continuava a encher o copo. Por sorte, ninguém
estava prestando atenção nela. Fernanda segurou a mão de Isabela:
– Não faz isso...
– Por que não? Eu quero brindar! A você, Fernanda, e ao seu sítio!
– Depois a gente conversa sobre isso? Por favor, pare de beber...
– Mas eu quero beber... Quero beber muito! Motivos não faltam, não é mesmo?
Fernanda perdeu a conta de quantas vezes Isabela esvaziou o copo. Quando chegou o bolo e
cantaram parabéns, ela já estava visível e, diga-se de passagem, audivelmente alterada.
Depois de um tempo, que pareceu interminável, Fernanda fez um sinal para a mãe. Dona Clara
pegou tia Carmen e Cris pelo braço e as levou para a outra sala com o resto dos convidados.
Quando olhou novamente pra Isabela, ela estava com a cabeça deitada sobre os braços em cima
da mesa.
– Tá se sentindo bem?
Ao invés de responder, Isabela se levantou, derrubando a cadeira. Estava muito tonta e quase
caiu, mas Fernanda a segurou, praticamente carregando-a para fora da casa. A voz de Isabela
soou pastosa, mas muito doce, ao dizer:
– Pra onde você tá me levando, Fê?
– Pra tomar um ar, minha maluquinha...
Pararam por uma parte da fazenda que Isabela não conhecia. A piscina toda iluminada poderia
tranquilamente ter saído de um filme.
– Como você tá?
– Apaixonada... Louca por você...
Beijou Fernanda com paixão, as mãos tentando tocar a pele por baixo do vestido dela.
– Bela, para com isso... Você bebeu demais e não sabe o que tá fazendo...
Isabela deu um sorriso lindo, daqueles que faziam o coração de Fernanda bater mais forte.
– Sei muito bem...
E beijava Fernanda no pescoço, na boca, no colo, as mãos acariciando o corpo dela
incansavelmente enquanto murmurava enrolando um pouco as palavras:
– Você é tão linda, Fê... Tão gostosa... Não consigo te tirar da cabeça... Morro de tesão por
você... Quero que você seja minha mulher...
– Quero que você me diga tudo isso quando estiver sóbria...
As palavras de Isabela, seus toques, seus beijos estavam enlouquecendo Fernanda... Mas não
queria arriscar, queria ter certeza que, no dia seguinte, Isabela não se arrependeria nem a
acusaria de ter se aproveitado dela.
– Tudo bem. Mas só depois que você esfriar a cabeça!
E, dizendo isso, jogou-se dentro da piscina puxando Isabela. O choque da água fria melhorou
bastante a bebedeira dela. Isabela tossiu, cuspiu um pouco de água, tirou os cabelos do rosto e
disse rindo:
– Eu não acredito que você fez isso! Tô toda molhada!
Fernanda passou os braços ao redor do pescoço de Isabela e sussurrou baixinho no ouvido
dela:
– Eu também...
Os braços de Isabela envolveram a cintura de Fernanda... Olharam-se nos olhos, fitando-se
ardentemente. As bocas foram se aproximando devagar... Isabela fechou os olhos, antecipando o
beijo... Foi então que ouviram uma voz furiosa vinda da beira da piscina:
– Isa, o que tá acontecendo aqui?
Cris fulminava Fernanda com os olhos.
– Bela, responde sua namoradinha...
– Ela é minha ex!
Então Tia Carmen e Dona Clara apareceram, e elas acabaram contando uma história meio sem
pé nem cabeça de terem escorregado e caído na piscina. Dona Clara quase não conseguiu conter
o riso. Cris estava furiosa e praticamente arrancou Isabela de dentro d’água. Tia Carmen apenas
disse:
– Todo mundo já foi, acho melhor irmos também...
Cris foi levando Isabela, que ainda tropeçava bastante. Tia Carmen se despediu e saiu
acompanhada por dona Clara.
Fernanda se despiu toda e começou a nadar nua na piscina, desejando não estar ali sozinha...
“A bebida entra e a verdade sai”. Não era assim que o povo dizia? Lembrou tudo que Isabela
tinha dito e sorriu, confiante de que no dia seguinte ficaria tudo resolvido.
O TÃO ESPERADO AMANHECER
Chegando ao sítio, tia Carmen deu boa noite rapidamente e foi dormir. Era a deixa que Cris
esperava. Sentou no sofá, fazendo a carinha sexy que antes Isabela tanto gostava.
– Isa, vem cá... Senta aqui comigo...
Mas Isabela nem prestou atenção, sequer a olhou enquanto dizia:
– Tô morta de sono, vou dormir... Boa noite, Cris.
Cris a alcançou no corredor, rápida como um raio. Passou os braços em volta do pescoço dela,
tentando beijá-la, mas Isabela a empurrou, irritada.
– Olha só, Cris, eu já disse que acabou.
– Eu não vou desistir de você assim tão fácil!
A cabeça de Isabela ainda estava zonza, o que dificultava um pouco a conversa. Precisava
explicar para Cris que não queria nada com ela da forma menos indelicada possível. A situação
não era nada agradável.
– Eu sinto muito, mas não dá mais... Por favor... Entenda... O melhor que você tem a fazer é voltar
pro Rio amanhã.
– Isa, não faz assim. Me dá uma chance. Eu amo você!
Ciente de que não havia uma forma menos dolorosa de fazer Cris entender, Isabela não teve
outra opção além de dizer a verdade, esperando que depois disso ela a deixasse em paz:
– Eu amo a Fernanda.
Naquele momento, quando disse aquelas palavras, foi como se finalmente aceitasse a verdade.
O sítio, o retrato da ex-mulher... Nada disso importava. E, de repente, tudo pareceu muito simples e
fácil.
Foi dormir decidida a procurar Fernanda no dia seguinte e fazer as pazes.
***
Fernanda rolou na cama pela milionésima vez aquela noite. Olhou o relógio, que ainda marcava
cinco horas da manhã. Estava nervosa, ansiosa, não tinha conseguido dormir nada. Além disso, tinha
começado a ter ideias horríveis de tão desagradáveis.
“O que Cris e Isabela estão fazendo nesse momento? A loirinha parecia esperta o bastante
para se aproveitar da bebedeira de Bela e...”
A simples ideia das duas juntas a fazia sentir um nó por dentro...
Procurou se concentrar no que Isabela tinha dito na piscina. A forma como ela a tinha acariciado
e beijado... Fernanda estava perdidamente apaixonada por ela, mal podia esperar que o sol
nascesse.
Quando amanhecesse, contaria toda a verdade. A verdade que Isabela já saberia se tivesse
escutado doutor Macedo até o fim: que o sítio agora era dela, não precisava mais esperar pelos
três meses do testamento porque tinha requerido a propriedade apenas para doá-lo para Isabela.
Olhou para o relógio novamente. Já eram cinco e meia da manhã. Estava quase amanhecendo.
Levantou-se de um salto da cama e começou a se vestir. Não queria esperar nem mais um
momento.
***
Cris virou para o outro lado na cama. Tinha passado a noite em claro, remoendo o que Isabela
lhe dissera. Sempre tinham se dado muito bem na cama e, se ao menos conseguisse pegar Isabela
de jeito, talvez a fizesse mudar de ideia e ficar com ela...
E, por essas coisas da vida que cada um chama de um nome – coincidência, carma, sina, destino
ou acaso –, no exato momento em que Fernanda saiu da fazenda a cavalo, Cris levantou da cama
e abriu a porta do quarto de Isabela, resolvida a dar sua última cartada.
Isabela dormia profundamente, nua debaixo do lençol. As roupas molhadas estavam emboladas
no chão, ela tinha se jogado na cama depois de tirá-las.
Cris tirou a camisola e se deitou na cama, com cuidado para que Isabela não acordasse, e a
abraçou por trás, colando o corpo no dela. Nesse exato momento, ouviu o barulho de um cavalo se
aproximando. Se fosse quem estava pensando, não poderia ser mais perfeito...
***
O coração de Fernanda batia loucamente no peito. Nem prestou atenção no magnífico sol
vermelho amanhecendo no horizonte. Amarrou o cavalo de qualquer jeito e quase correu para a
janela de Isabela.
O que viu quando olhou para dentro do quarto a deixou estática. Isabela com a loirinha na
cama, as duas nuas e abraçadas. Cris estava de olhos abertos e a fitou, com um sorriso vitorioso e
cínico nos lábios.
Isabela acordou de repente, do nada, e deu de cara com Fernanda na janela, olhando-a. O
olhar de Fernanda – um misto de raiva, dor e decepção – cortou o coração de Isabela. Foi quando
percebeu que alguém a abraçava. Imediatamente se soltou, mas Fernanda já tinha desaparecido.
Correu até a janela, tentou gritar por ela, mas era tarde demais. Só ouviu um galope se
distanciando rapidamente.
Quando se virou para Cris, cerrou os punhos com força. Naquele momento, poderia matá-la...
– Quero que você faça suas malas e saia daqui agora!
Cris não era burra, pelo contrário. Viu o brilho quase assassino nos olhos de Isabela, o ódio
profundo na voz dela e obedeceu sem discutir.
Isabela se sentou na cama e passou a mão no rosto, desesperada, sem saber o que fazer... Os
olhos de Fernanda, o jeito que ela a tinha olhado. Ela estava chorando... Nunca ia acreditar que
não tinha dormido com Cris. Tinha perdido a mulher que amava. Isabela sentiu uma dor incrível no
peito. Aquela que se sente quando se tem a certeza de que perdeu a felicidade para sempre.
UM PEQUENO EMPURRÃOZINHO
Se tivesse que escutar mais uma porta batendo, dona Clara jurava que perderia a razão. Fazia
dias que Fernanda estava daquele jeito, emburrada, mal humorada, intratável e... Infinitamente
triste.
Esse temperamento forte, passional, quase irracional da filha, que Clara conhecia muito bem,
quase a tinha matado quando perdera Luisa. E era exatamente disso que dona Clara tinha medo.
Fernanda voltara a galopar como se o diabo a perseguisse, parecendo sentir algum tipo perverso
de alívio no risco insano de quebrar o pescoço. E, como se isso não bastasse, voltara também a
afogar as mágoas na bebida. Todas as noites era obrigada a ver a filha pegar uma garrafa,
dizendo sarcasticamente “Consolo in vitro!” e só largar quando ficava completamente vazia.
Então dona Clara a levava para o quarto e a colocava na cama, como quando ela era criança.
A única diferença era que, quando criança, Fernanda confiava nela o bastante para contar seus
problemas. Agora se recusava a conversar.
Numa das muitas noites em que os soluços de Fernanda eram audíveis em todo o segundo andar
da casa, dona Clara entrou de sopetão no quarto da filha.
– Nanda, meu amor, chega! Quanto tempo mais você vai ficar assim? O que quer que tenha
acontecido entre você e Isabela precisa ser resolvido. Pra tudo se tem uma solução, filha...
– Mamãe, você não entende... E eu não quero conversar sobre isso...
– Mas esse é o problema, Nanda. Vocês pelo menos conversaram?
– Não, e é isso que mais me dói... Ela me deixou ir embora, nem tentou falar comigo... Mas,
também, eu não ia querer falar com ela, não depois do que ela fez.
– Talvez ela saiba disso...
– Não, mamãe, ela não tentou porque não quis...
Dona Clara suspirou. A filha era teimosa e, quando enfiava uma ideia na cabeça, era difícil
mudar.
– Se bebesse menos ia perceber que, desde que vocês brigaram, toda noite o telefone toca. E o
engraçado, Nanda, é que quando a pessoa do outro lado escuta a minha voz, desliga sem dizer
uma palavra.
Uma pontinha de esperança começou a brotar no coração de Fernanda. Mas ela não queria
nem ia permitir isso. O que Isabela tinha feito era imperdoável.
– Que seja. De qualquer forma, não tenho nada pra falar com ela...
***
Tia Carmen conhecia bem aquele olhar perdido de Isabela, como se toda tristeza do mundo
estivesse dentro dela. O mesmo olharzinho que tinha aos sete anos.
Isabela tinha passado a vida inteira apresentando as namoradas como amigas. Carmen ficava
triste com a falta de confiança, mas respeitava a posição da sobrinha e fingia que não sabia de
nada.
Se pelo menos pudesse imaginar a confusão que causaria, jamais teria trazido Cris com ela.
Achava que seria uma ótima surpresa. Não contava com a existência da vizinha ruiva por quem
Isabela estava tão obviamente apaixonada.
E agora era obrigada a ver a sobrinha amuada, triste, sofrendo pelos cantos. Isabela
trabalhava o dia inteiro. Depois, de noite, ficava sentada na sala, fingindo que ouvia as conversas
de Rosa e Janaína com a tia. E, quando achava que ninguém estava olhando, pegava o telefone,
discava e sempre desligava sem falar nada. Tia Carmen tinha certeza de que se aquele telefone
velho tivesse um botão de redial, ela poderia apertar e ouvir a voz de Clara atendendo do outro
lado.
Foi então que teve a ideia. Correu para o telefone e ligou para a fazenda. Clara atendeu e,
quando ouviu o que Carmen disse, imediatamente concordou. Ela tinha razão, como ainda não tinha
pensado nisso? Fernanda e Isabela se amavam, mas eram cabeças duras o suficiente para ficarem
brigando pelo resto da vida. Para que se entendessem, bastava apenas... Um pequeno
empurrãozinho.
***
Isabela tinha acabado de sair do banho, no fim da tarde, quando Tia Carmen apareceu com um
belíssimo buquê de rosas vermelhas.
– Querida, preciso que você entregue essas flores na vila pra mim, por favor...
A tia nem deu chance para as mil perguntas que Isabela tinha, como, por exemplo, onde ela
tinha conseguido aquelas flores e para quem eram.
Foi logo cortando o assunto dizendo que era um favor simples e que, se Isabela não queria
fazer, não precisava, como quem diz: “não me faça perguntas”. Então concluiu:
– Preciso que você entregue às seis horas na frente da igreja, pra uma mulher que vai estar
usando uma blusa preta e uma saia com listras pretas e brancas.
– Tudo bem, só não sei pra que tanto mistério...
– Confie em mim, Belinha, e lembre-se: na vida, a gente precisa saber aproveitar as
oportunidades!
– Nossa, titia, hoje você tá mesmo estranha, sabia?
***
Fernanda acordou tarde, depois das duas horas, e Dona Clara pediu que ela buscasse uma
encomenda na vila.
Não estava com nenhuma vontade de sair de casa, por isso sugeriu que a mãe mandasse um
dos empregados, mas dona Clara disse que “de jeito nenhum, pois é uma coisa de valor, e a única
pessoa em quem confio para buscar é você”.
Diante de muita insistência, acabou aceitando. Mas tinha que confessar que estava achando tudo
muito estranho.
– Mas, mamãe, como a tal pessoa misteriosa vai saber quem eu sou?
– Por causa da roupa... Combinei que você vai estar de blusa preta e saia com listras pretas e
brancas.
– Isso não é nenhum encontro às escuras, né?
– Ai, Nanda, chega de tantas perguntas! É tão difícil assim fazer um favorzinho pra sua mãe?
Com um argumento desses, Fernanda não teve opção: vestiu a tal roupa que a mãe tinha
escolhido, pegou a picape e lá se foi.
***
Quando Isabela desmontou do cavalo, o sino da igreja começou a badalar: seis horas! Parecia
que todas as pessoas da vila estavam ali na porta daquela igreja, exatamente onde ela tinha que
entregar as rosas. Ficou parada com as flores na mão, olhando cada pessoa que entrava para a
missa.

Quando o sino tocou, Fernanda já estava parada na escadaria da igreja, no meio de um


verdadeiro formigueiro humano entrando naquele passinho lento de procissão. Já que não sabia
quem ia entregar a tal encomenda, esperar era o único remédio. E, como em lugar pequeno todo
mundo se conhece, teve que cumprimentar um mundo de gente.
Estava dando um último “boa tarde!” para as últimas pessoas entrando na igreja quando se
deparou com um par de olhos que fizeram seu coração parar de bater por um momento.

Quando as últimas pessoas entraram na igreja, o coração de Isabela foi na boca. Parada na
frente dela, vestindo uma blusa preta e uma saia com listras pretas e brancas, estava ninguém
menos que Fernanda.
No primeiro instante, Isabela só a fitou, surpresa. Fernanda, por outro lado, parecia paralisada.
Isabela avançou para ela, caprichando no seu melhor sorriso, sem resultado. Não foi retribuído. Se,
normalmente, na presença de Fernanda, não sabia direito o que dizer, naquele momento muito
menos:
– São pra você...
Entregou as flores, sem conseguir definir a reação de Fernanda ao recebê-las. As mãos se
tocaram, e o breve contato pareceu fazê-la estremecer. Mas, por trás da muralha dos óculos
escuros, qual seria a expressão dos olhos dela?
Um mar profundo de dúvidas, medos e desejos estourava em turbilhão no coração de Fernanda.
Era impossível não reagir ao mais leve toque das mãos... Impossível olhar para Isabela e não achar
lindo o jeito dela morder o lábio inferior quando Fernanda não sorriu de volta para ela.
Mas ainda estava com muita raiva. A imagem de Isabela nua na cama com outra a perseguia
noite e dia. Levantou os óculos, deixando-os presos como um arco nos cabelos, e olhou bem fundo
nos olhos dela.
Tudo o que Isabela queria era se explicar, tomá-la nos braços, dizer o quanto a amava e
precisava dela. Mas os olhos de Fernanda eram duas pedras de gelo.
– Cadê a sua namoradinha?
– Fê, minha namorada é você...
Fernanda riu, balançando negativamente a cabeça. Um riso amargo, sarcástico, doído, como
Isabela nunca tinha visto. Um riso que pareceu abrir uma comporta de palavras, que jorraram
furiosamente:
– Não foi o que pareceu... Vocês duas estavam juntas... Nuas... Na sua cama... A mesma cama de
onde eu fui expulsa! Por causa de uma noite, a única noite que passamos juntas, que você estragou
enfiando nessa sua cabeça dura que eu te enganei pra roubar o seu precioso sítio... E eu fiz de
tudo pra te mostrar que não era nada disso... Mas você não quis me escutar, não quis nem escutar
o doutor Macedo quando ele te ligou pra explicar que eu doei o sítio pra você! É, é isso mesmo... O
sítio é e sempre foi seu... No final, eu é que fui enganada por você!
Fernanda disse com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Isabela avançou, querendo secar
aquelas lágrimas, mas Fernanda recuou, não a deixando encostar nela.
– Fê, eu não aguento te ver assim... Preciso te explicar tanta coisa... Preciso te contar o que
realmente aconteceu... Não é nada disso que você tá pensando... Nós... Precisamos muito
conversar...
Eram muitas coisas ao mesmo tempo. Mesmo estando brigadas e Isabela se recusando a ver,
ouvir ou falar com ela, Fernanda tinha doado o sítio para ela? Como tinha sido absurdamente
teimosa e burra! Se nem a própria Isabela conseguia se desculpar, será que um dia Fernanda
poderia?
– Não quero conversar com você, Isabela. Não agora. Não é o momento.
Tudo bem: ela não tinha dito que não tinham mais nada a conversar, nem algo definitivo desse
gênero.
Mas, por outro lado, por trás da polidez contida, aquela era a primeira vez que Fernanda a
tinha chamado pelo nome inteiro.
UM SIMPLES OLHAR
A despedida de Fernanda foi fria, quase seca. Isabela ficou ali parada, com um vazio por
dentro, vendo a mulher da sua vida se afastar e se aproximar da picape sem olhar para trás.
“Se eu ainda tiver chance, ela vai olhar. Antes de entrar no carro, nem que seja uma olhadinha...
Ela vai me olhar”. Repetiu o pensamento involuntariamente. Como um mantra, ou... Algo a que se
apegar.
Enquanto Fernanda pegava o alarme do carro e o apertava fazendo os faróis piscarem – tudo
isso com uma lentidão imensa –, a ansiedade de Isabela a acelerava a ponto de tudo parecer
estar em câmera lenta.
“É agora. Ela tem que olhar...”
Foi um pedido, quase um desejo.
Fernanda abriu a porta, hesitou alguns momentos e, então, antes de entrar no carro, seus olhos
se ergueram, procuraram e encontraram os de Isabela.
Sabendo que o momento de fraqueza tinha sido muito mais explícito do que gostaria, e se
odiando por isso, Fernanda sentou atrás do volante e colocou as flores no banco de trás. Mas não
foi rápida o bastante. Isabela entrou e se sentou ao seu lado.
Fernanda fez um esforço incrível para não sorrir da expressão que Isabela tinha no rosto:
esperançosa, insegura, adorável de tão boba...
Mais difícil ainda foi quando ela pegou as mãos de Fernanda nas dela e as beijou de uma
forma muito doce:
– Fê, me perdoa... Tudo que eu te disse aquele dia na piscina é verdade... Acredita em mim... Eu
não dormi com a Cris, eu juro que não aconteceu nada... Eu te amo... E sou sua, só sua, de corpo e
alma...
Os lábios de Isabela encostaram nos dela e, por um instante, as duas esqueceram de tudo e
apenas se entregaram àquele beijo tão desejado.
Era a primeira vez que Isabela dizia que a amava e, para Fernanda, seria tudo perfeito se não
fosse um pequeno detalhe: não conseguia parar de pensar em Isabela com a outra...
Isabela sentiu Fernanda corresponder ao seu beijo com a mesma saudade e, por um momento,
pareceu que estava tudo certo. Mas, de repente, ela parou, ficou estática e depois se afastou sem
olhar para Isabela nem dizer nada. Apenas se virou para frente e cobriu o rosto com as mãos.
Durante alguns segundos, ficaram assim: Isabela olhando para ela, e Fernanda tentando
acalmar a respiração. Então ela tirou as mãos do rosto e olhou intensamente para Isabela:
– Eu quero que você entenda que se você me beijar, tocar, olhar desse jeito, eu vou ceder e
corresponder... Eu não consigo evitar, porque sou louca por você... Não é esse o problema... O
problema é que eu não consigo acreditar que não aconteceu nada, nem parar de pensar em você
com aquela mulher...
Fernanda começou a soluçar. Isabela a envolveu em um abraço carinhoso e protetor, querendo
poder voltar no tempo e evitar tanto sofrimento. Era de cortar o coração ela chorando daquele
jeito. Isabela acariciou os cabelos dela, beijou-a na testa, no rosto encharcado de lágrimas,
enxugando-as com os lábios. E então a boca de Fernanda encontrou a dela, e estavam novamente
coladas num beijo, as línguas se procurando, provando-se, devorando-se...
Foi o sino da igreja, tocando para anunciar o fim da missa, que fez as duas se afastarem.
Fernanda ajeitou os cabelos, enxugou as lágrimas e disse de forma bem humorada, mas com um
sorriso meio triste:
– Acho que por hoje chega, né?
Tirou um envelope do porta luvas e entregou para Isabela.
– O que é isso?
– A doação do sítio e a escritura no seu nome. Estou com isso aqui pra te entregar há séculos.
– Fê, eu não posso aceitar...
– Ah, não, não começa com as suas bobagens. Me deu um trabalhão, sabia? Além disso, era o
único jeito de você poder dormir lá em casa sem tempestades...
Ela riu de uma forma deliciosa que fez Isabela se lembrar da noite maravilhosa que passaram
juntas.
– Você é linda, Fê...
– Você também...
Trocaram olhares apaixonados, os corações já saltando dentro do peito. Só não se beijaram de
novo porque todas as pessoas começaram a sair da igreja, e o insulfilme nos vidros não impedia
que os olhares mais curiosos as vissem dentro do carro.
– Eu não quero te perder...
Fernanda ajeitou uma mecha de cabelo que caía no rosto de Isabela, prendendo-a atrás da
orelha:
– Bela, por favor... Eu preciso de um tempo.
Antes de sair do carro, Isabela concordou com um movimento de cabeça. Até tentou sorrir
enquanto acenava para a picape indo embora.
Fernanda sabia o quanto ela estava triste, mas precisava colocar as ideias em ordem. Antes
disso, ainda não seria nem o momento nem a hora.
O CORAÇÃO ENTALHADO
Fernanda tinha certeza de que, quando chegasse, a mãe a estaria esperando na porta e daria
um sorrisinho satisfeito ao ver o buquê de rosas.
Sem dar uma palavra, passou por ela e se jogou no sofá da sala. Clara não aguentou mais de
curiosidade:
– Como foi? O que aconteceu?
– Francamente, né, mamãe? Não quer que eu conte detalhes da minha vida amorosa pra você,
quer?
– Ah, então foi um encontro amoroso... Bom saber...
– Vamos mudar de assunto?
– Vocês conversaram? Se entenderam?
Sabendo que a mãe nunca a deixaria em paz se não respondesse, cedeu, mesmo contra a
vontade:
– Conversamos. Não nos entendemos. Preciso de um tempo... Pra pensar...
– Pensar em quê, Nanda? Presta atenção no que eu vou te dizer: ninguém entra à toa na vida
de alguém, muito menos pela segunda vez!
***
Tia Carmen estava muito mais do que ansiosa quando Isabela chegou na sala, mas esperou a
sobrinha falar. Isabela se fingiu de brava:
– Muito bonito, hein, titia?
E depois abraçou a tia com força, um abraço bem apertado.
– Desde quando você sabe?
– Desde sempre, né, Belinha? Ou você acha que me engana?
Isabela riu. Mas, pelo olhar tristinho da sobrinha, Carmen já sabia que Isabela e Fernanda não
tinham se acertado.
***
O final de semana chegou sem novidades. Parecia que os dias se arrastavam. No sábado à
tarde, Fernanda selou seu cavalo e saiu. Pela direção que tomou, Dona Clara sabia muito bem
para onde ela estava indo. Correu imediatamente para o telefone e ligou para o sítio.
Fernanda esporeou o cavalo com os pensamentos longe... Tinha decidido ir para seu lugar
preferido da fazenda, o lugar para onde sempre ia quando era menina e queria ficar sozinha.
Não sabia a razão de ter acordado naquele dia com essa ideia, porque fazia muito, mas muito
tempo que não ia lá.
Amarrou o cavalo e entrou no meio das árvores, precisando se abaixar para passar debaixo
de alguns galhos.
Para qualquer outra pessoa, aquele lugar não era nada de mais, apenas uma pequena clareira
escondida pela mata cerrada.
Com um sorriso cheio de lembranças, Fernanda passou a mão no tronco de uma das árvores,
onde ainda se via um velho coração entalhado.
***
Isabela amarrou o cavalo ao lado do de Fernanda. Dona Clara tinha ligado para ela, dizendo
que Fernanda a estava esperando ali.
Depois da história das flores, ela não tinha acreditado nisso. Sabia que era mais uma armação
das duas senhoras. Já conhecia Fernanda o bastante para saber que, se quisesse falar com ela,
jamais mandaria recado por quem quer que fosse.
Mas a saudade, a falta e o desejo que sentia eram mais fortes que a razão. E, apesar de
Fernanda ter pedido um tempo, precisava vê-la, nem que fosse só de longe.
Quando chegou na pequena clareira, quase esbarrou em Fernanda que, por sorte, estava de
costas para ela. Isabela recuou, com o máximo de cuidado para não ser vista. Mas, sem querer,
pisou em um graveto, tirando Fernanda do transe em que se encontrava.
***
O coração entalhado na árvore ficava na altura da cintura de Fernanda. Ela tinha gravado
aquele coração para que Isabela o pudesse alcançar. Mas, antes que pudessem gravar seus nomes
nele, Isabela tinha partido com os tios para o Rio, deixando o coração de Fernanda vazio.
Perguntava-se por que motivo Isabela não se lembrava. Como ela podia não lembrar se a
menina de 10 anos que Fernanda era tinha sofrido tanto? Quando Isabela voltara, 20 anos depois,
aquele sentimento renascera com toda força.
Esse pensamento era apenas mais um para confundir a cabeça de Fernanda. Ardia de ciúmes
de Isabela com a ex-namorada ao mesmo tempo em que se derretia com a simples lembrança das
flores, dos beijos trocados dentro do carro, da doçura com que ela tinha dito que a amava...
Naquele momento, o amor venceu, gritando de saudade, desejando ardentemente que Isabela
estivesse ali. Ouviu um ruído atrás dela e, quando se virou, de uma forma estranha, quase mágica,
ela estava lá.
Os olhos de Isabela eram duas chamas suplicantes. Fernanda podia ver neles a mesma entrega
dos seus.
– Fê, eu...
Antes que pudesse terminar a frase, Fernanda já a tinha puxado. Levantando Isabela do chão,
girou-a e a encostou na árvore em que estava o coração.
– Não fala nada – Fernanda disse simplesmente.
Não queria falar, não queria pensar, queria apenas obedecer o que seu coração, suas mãos,
sua boca, seu corpo inteiro mandavam.
Beijou Isabela com uma paixão reprimida durante dias. Foi um beijo voraz, urgente e
enlouquecido, que as deixou sem fôlego.
Fernanda mordeu os lábios dela, comprimindo com força o corpo contra o de Isabela. Isabela
não esboçou a menor resistência, apenas gemeu baixinho enquanto a boca de Fernanda descia
pelo seu pescoço, as mãos quase arrancando os botões da blusa quando a abriu... Ofegante,
totalmente entregue...
Gemeu ainda mais alto quando Fernanda afastou o sutiã para chupar seus seios, mordendo os
biquinhos com força, com uma ânsia que excitava Isabela de uma forma que beirava loucura.
A boca de Fernanda voltou a se colar na dela, a língua invadindo possessivamente, dominadora,
enquanto as mãos abriam e desciam as calças de Isabela e passeavam entre as coxas dela, ainda
por cima da calcinha...
Fernanda sorriu, deliciada. Afastou a peça íntima para o lado para tocar e acariciar o sexo
dela... Isabela tentou tocar em Fernanda também, mas ela não deixou. Os dedos de Fernanda a
penetraram, fazendo Isabela mexer os quadris no ritmo do intenso vai e vem. Quando sentia que
estava quase gozando, Fernanda não deixava, afastava os dedos... Depois voltava a invadir
Isabela devagar, sem pressa... Então mudava a cadência, cada vez mais fundo, mais forte,
fazendo-a implorar:
– Ai, Fê, não me tortura assim... Me deixa gozar...
Fernanda sussurrou no ouvido dela, a voz rouca de tanto tesão:
– Goza na minha mão, linda... Goza gostoso... Goza...
Isabela explodiu no mais forte e fantástico orgasmo de toda a sua vida. Seu corpo todo
amoleceu, sem forças; as pernas bambearam e teria caído se Fernanda não a abraçasse e
amparasse.
Quando se recuperou, Isabela tentou beijar Fernanda, mas ela se afastou.
Magoada por Fernanda ter rompido o contato dos corpos tão bruscamente, Isabela ajeitou o
sutiã e abotoou as calças e a blusa devagar.
Fernanda continuou o tempo todo de costas, em silêncio. Então se virou para ela, dizendo:
– Bela, desculpa...
Queria pedir desculpas por ter saído do abraço, por ter fugido do beijo. Mas, ao ver os olhos
de Isabela, imediatamente se arrependeu. Pareciam os de um animal mortalmente ferido.
Isabela não acreditou no que ouvia. Depois de Fernanda ter feito sexo com ela, sem sequer
deixar que Isabela a tocasse, aquele pedido de desculpas foi como um tapa na cara. Deu as
costas para Fernanda, desejando que um buraco se abrisse no chão para poder entrar e
desaparecer.
Foi então que olhou para a árvore onde antes estavam e viu... Um coração entalhado! Ficou
pálida ao ver aquele coração. Um coração antigo, que parecia estar ali há anos. Um coração
para o qual Fernanda estava olhando, hipnotizada, e que provavelmente estava cheio de
lembranças da ex-mulher dela. Um coração que, por mais que Isabela tentasse se enganar,
pertencia à Luisa.
Rápida como um raio, Isabela correu para longe dali o mais depressa que pôde, montou no
cavalo e fugiu sem olhar para trás. Fernanda a seguiu, sem alcançá-la.
Podia ter pegado o cavalo, corrido atrás dela, com certeza a alcançaria com facilidade, pois
montava bem melhor do que Isabela... Mas não o fez porque, depois que a alcançasse, não
saberia o que falar. E pela primeira vez sentiu medo. Muito medo de que pudesse ser tarde
demais.
EM MEIO AO SILÊNCIO
Tia Carmen realmente se assustou com o estado no qual Isabela chegou em casa. Nunca tinha
visto a sobrinha daquele jeito.
Isabela libertou toda a dor que sentia em soluços convulsivos. Chorou durante muito tempo. Tia
Carmen apenas a abraçava, dizendo palavras carinhosas e acariciando seus cabelos. Quando
finalmente a respiração dela se acalmou, ficou um tempo calada, as mãos enxugando os olhos
inchados. Então disse lentamente, com uma voz muito fraca:
– Chega, titia. Acabou. Vamos voltar pro Rio.
No resto do dia, tia Carmen tentou fazer Isabela mudar de ideia, sem resultado. Sem opção,
acabou fazendo as malas. As da sobrinha já estavam feitas e empilhadas junto à porta da sala.
***
Galopou como se pudesse fugir de si mesma. Mas não adiantava, cada canto daquele sítio
estava impregnado pela presença de Fernanda.
A única forma de esquecer era voltar para o Rio e continuar sua vida... Não sabia que vida
seria, mas não via escolha.
Precisava arrancar aquela mulher de dentro dela. Precisava recuperar o bom senso, o amor
próprio, a autoestima...
Até o simples ato de cavalgar a fazia pensar em Fernanda. Lembrava a primeira vez que tinha
montado, sentada na garupa, o corpo colado no dela...
Ali, naquele fim de mundo, acabaria enlouquecendo dominada por esse tipo de pensamento. No
Rio de Janeiro, poderia retomar as rédeas da própria vida. Encontraria todos os bares, boates,
festas e mulheres bonitas que fosse preciso para desfazer de vez o feitiço que a dominava.
Foi então que Roque se aproximou a cavalo, gritando desesperado:
– Dona Isabela, é a dona Carmen... Ela tá passando mal... Desmaiou... A senhora tem que vir
depressa!
***
Entrou correndo na casa, em total desespero. Encontrou Rosa e Janaína muito nervosas na sala.
As duas foram seguindo Isabela pelo corredor, falando naquele jeito único que só elas sabiam
fazer:
– Dona Isabela, ela não tá nada bem... Foi de repente... Ela tava conversando e foi caindo... O
Roque ajudou a colocar ela no quarto... Ela ainda disse pra gente ligar pra dona Clara... A dona
Fernanda já tá com ela...
Tia Carmen estava deitada na cama com os olhos fechados quando entraram no quarto. Isabela
e Fernanda se olharam rapidamente, mas nenhuma das duas disse nada.
A preocupação de Isabela era palpável. Passava as mãos no cabelo, ajeitava a roupa, jogava
o peso do corpo de uma perna para a outra...
Fernanda examinou tia Carmen minuciosamente. Depois que acabou, chamou Isabela para fora
do quarto. Isabela a seguiu até a sala.
– O que foi? O que ela tem? Fala!
– Nada. Sua tia está ótima.
– Não pode ser, você não examinou direito...
– Acredite, ela não tem nada...
– Desculpe, eu não quis duvidar da sua competência como médica...
“Que malas são essas na porta?”, Fernanda pensou.
– Vai viajar?
– Vamos voltar pro Rio. Vou vender o sítio.
“Ela vai embora... Como vou viver sem navegar nas marés desses olhos que se entornam tão
profundamente nos meus?”
“Ela ficou tão séria... Não disse nada, desviou os olhos...”
– Uma vez você me disse que gostaria de comprar...
“E você me disse que nunca, jamais venderia pra mim”.
– É, disse sim. Pede pro doutor Macedo entrar em contato comigo...
– Tá certo então.
“Certo, certíssimo que eu vou vendar meu coração pra ele não ver que é esse sorriso lindo que
inunda o meu mundo de luz...”
– Bom, então boa viagem...
“Que vai ser de mim quando eu sair por aquela porta sabendo que nunca mais vamos nos ver?
Se ela disser alguma coisa... Qualquer coisa... Eu esqueço tudo e faço ela ficar...”
– Obrigada...
“Ela vai embora... Sem me pedir pra ficar... Vai atravessar aquela porta e será a última vez que
nos veremos... Se ela disser qualquer coisa... Basta uma palavra... Eu esqueço tudo e não vou
mais...”
Olharam-se durante alguns segundos mudos, desconcertantes. Aqueles segundos em que o
mundo inteiro parece parar. Desviaram os olhos juntas, com o mesmo doloroso sentimento de
término definitivo.
Fernanda se virou e saiu. Isabela fechou os olhos para ouvir melhor o distanciar rápido do chão
sob as botas, depois respirou fundo e voltou para o quarto da tia... Sem enxergar nada à sua
volta.
SOLTEIRA NO RIO DE JANEIRO
Sempre que Isabela viajava, sentia uma alegria inexplicável ao voltar para o Rio de Janeiro.
Amava o Rio de uma forma incontrolável. Aquela era a primeira vez que estava completamente
triste por ter retornado.
Não viu nada do trajeto, quando deu por si já estavam em plena Rua Senador Vergueiro. Entrou
no apartamento e foi direto para o quarto, com a sensação de que ia enlouquecer.
Como um animal enjaulado, andou em círculos por alguns minutos, pensando se tinha feito a coisa
certa, se não tinha desistido cedo demais, fácil demais...
Mas era exatamente por causa desse tipo de desespero que tinha voltado, e, se queria
esquecer, precisava retomar sua vida normal.
Ligou o computador e viu que tinha tantos e-mails que acabou apagando mais da metade sem
ler. Nem percebeu que o MSN tinha entrado direto.
De repente uma mensagem: “Oi, amiga! A Internet chegou aí no fim do mundo? rs...” .
Com um alívio enorme, respondeu: “Oi Rô! Tô no Rio.”
Na mesma hora, o telefone tocou. Em menos de cinco minutos, marcou de encontrar a amiga na
Rua Alice.
***
Quando chegou, Roberta já estava sentada com um chope quase vazio na frente. Depois dos
dois beijinhos de sempre, atirou-se na cadeira e pediu um chope. A amiga, que a conhecia mais do
que bem, imediatamente disparou:
– Que cara é essa? O que aconteceu?
Foi o bastante para que Isabela desabasse. Pouco ligando se estavam em público, contou tudo
com detalhes e até chorou... Isso, por sinal, parecia estar se tornando um hábito.
Espantosamente, Roberta não ficou surpresa, nem chocada, na verdade apenas disse com um
sorriso misterioso nos lábios:
– Isso é muito fácil de resolver. Vou te ensinar umas palavrinhas mágicas...
– Não vem com simpatia pra cima de mim porque não acredito nessas coisas!
– Ai, dona Isabela, até parece que a senhora não me conhece, né? E eu por acaso acredito?
Olha, vai por mim: se não acontecer nada você pode bater com um pedaço de pau na minha
cabeça!
Deu pra ela um cartãozinho onde Isabela leu: Nam Myoho Renge Kyo!
– Como é que é?
– É, amiga, nesses três meses que você passou fora do ar, muita coisa aconteceu... Eu virei
budista!
– Sei... E desde quando budista bebe chope?
– Não tô falando de Zen budismo, queridinha, esse é o budismo de Nichiren Daishonin, o mesmo
da Tina Turner, lembra do filme? Olha só, eu não vou ficar aqui te dando aula de budismo, sabe?
Se quiser te levo numa reunião, lá você fica sabendo tudo! Até lá, é só você juntar as mãozinhas e
repetir essas palavras de olhos abertos se concentrando num ponto na parede, ok?
– Tá, vou experimentar. Afinal de contas, não tenho mesmo nada a perder...
***
Se para Isabela os dois primeiros finais de semana demoraram a passar, os dias da semana
pareceram durar meses. Na tentativa de se ocupar, acabou fazendo o que se faz numa situação
como essa: apelar para os amigos.
Por sorte, isso era o que não faltava. Aliás, diga-se de passagem, amigos de vários e diferentes
tipos. Preencheu os dias com todo e qualquer programa que aparecesse, pouco se importando se
antes provavelmente achasse alguns deles bem “passeio de índio”. O objetivo era voltar pra casa
tão cansada à noite que conseguisse bater na cama e dormir até o dia seguinte...
Nas duas terças-feiras à noite que se passaram, foi na reunião budista com Roberta, estava
adorando. Começou a recitar Daimoku – como ficou sabendo que se chamava recitar Nam Myoho
Renge Kyo – todos os dias. O Daimoku a tranquilizava, fazia sentir uma estranha sensação, quase
certeza de que a felicidade estava ao seu alcance.
E, então, mais uma sexta-feira chegou...
– E aí, Isa? Que vai fazer hoje?
– Qualquer coisa, menos ficar empatando seu namoro, né, Rô?
– Deixa de besteira! Amigas servem pra quê? Além disso, eu e a Mari estamos preocupadas com
você...
– Eu tô bem, sério!
– O Daimoku é tudo, amiga! Eu não te disse? Mas mudando com-ple-ta-men-te de assunto: hoje
tem o aniversário de uma amiga da Mari, vamos?
– Vou pensar...
– Não pensa, se arruma! Passo aí às dez e meia!
***
A boate estava cheia, o que não queria dizer uma multidão de pessoas porque o lugar era
realmente pequeno.
Separou-se de Roberta e Mari, dizendo que ia circular. Elas queriam e mereciam namorar em
paz e não estava a fim de segurar vela.
Bebeu um pouco, dançou outro pouco, recebeu algumas cantadas e até uma investida muito
direta da aniversariante, que quase resultou num beijo na boca, mas não estava ali para beijar
por beijar e educadamente se esquivou.
Até então tudo ia muito bem, estava se divertindo e tinha conseguido mais de uma boa
massageada no ego. Foi quando esbarrou com a pessoa que menos esperava, o que, se levando
em conta o tamanho da cidade, realmente parecia mais uma brincadeira sem graça do destino:
– Isa!
– Oi – respondeu com cara de poucos amigos para uma Cris muito bem acompanhada e feliz.
– Essa aqui é a Adriana.
– Tudo bem?
Cumprimentou a menina. Afinal, ela não tinha culpa de estar com uma pessoa que Isabela
adoraria estrangular. Mas Cris, ao que parecia, continuava totalmente sem noção:
– Cadê a Fernanda?
– O que você acha?
– Vocês não tão juntas? – ela ainda teve coragem de perguntar, com a cara mais surpresa do
mundo...
– Quer que eu te agradeça?
Isabela deu as costas e saiu, deixando Cris muito séria e pensativa.
Quando encontrou Roberta e Mari, foi obrigada, a contragosto, a interromper mais um dos
intermináveis beijos cinematográficos das duas:
– Meninas, eu vou indo...
– Já? Mas por quê?
– Que Daimoku é esse que eu faço pensando na Fernanda e dou de cara com a Cris?!
– Pois fique a senhorita sabendo que reclamar é jogar toda a sua boa sorte fora! Além disso,
meu bem, sabe lá o que isso quer dizer? Se você não enxerga nem mesmo as suas sobrancelhas
que estão tão próximas dos seus olhos...
***
Isabela voltou para casa pensando no que Roberta tinha dito. Encontrar Cris era muita
coincidência... E coincidências não existiam. Se fazia Daimoku todo dia determinando ter Fernanda
de volta, não conseguia entender, não conseguia saber o porquê – se é que tinha um porquê –
daquele encontro. Demorou a dormir, remoendo a ideia.
Não ouviu quando o telefone tocou de manhã bem cedo, nem escutou tia Carmen conversando
por telefone durante muito tempo com Cris.
O UNIVERSO CONSPIRA A FAVOR
A fazenda tinha perdido toda a graça para Fernanda. Ocupava-se como podia. Nunca andara
tanto a cavalo ou nadara tanto naquela piscina...
E, ainda assim, tinha uma insônia que não passava. Algumas noites, ficava rolando na cama;
outras, vagando pela casa escura até altas horas da madrugada, os olhos ardendo, pedindo
descanso à cabeça que se recusava a parar de trabalhar, queimando em pensamentos, dúvidas,
lembranças...
Não sabia dizer quantas e quantas vezes sua mente tinha passado e repassado cada gesto,
cada palavra, cada momento vivido com Isabela...
Quando o galo cantava, o sol já ameaçando nascer, só ouvia o próprio pulso latejando sem
sossego e tinha ímpetos de correr para o sítio. Apenas um detalhe a impedia: Isabela já não estava
mais lá.
E a tortura continuava, dia após dia...
Mesmo dormindo tarde, nunca acordava depois das oito da manhã. Era abrir os olhos e, pronto,
a mente voltava a funcionar obsessivamente e não conseguia mais dormir.
Em um sábado em que ficou deitada na cama mais um pouco por ainda ser muito cedo, ouviu o
telefone tocar e a mãe gritar:
– Nanda! É pra você!
Atendeu rapidamente, com aquela esperança – por mais estúpida e improvável que fosse – que
sempre acalentamos quando estamos apaixonadas: de que fosse ela!
– Oi Fernanda, não desligue porque é muito importante, é sobre a Isabela.
– Quem tá falando?
– É a Cris.
– Era só o que me faltava, né?
– Por favor, me escuta: preciso consertar a sacanagem que fiz com vocês. Naquela noite, eu
tentei de tudo, mas ela não quis. Disse que não queria mais nada comigo porque amava você e foi
dormir sozinha. Quando você apareceu, eu tinha acabado de deitar naquela cama. Eu juro que
nada aconteceu.
– Você quer que eu acredite que, depois desse tempo todo, de repente, sua consciência doeu?
– Eu fiz a minha parte, agora é com você. Só sei que, depois do olhar que ela me deu quando
perguntei se vocês estavam juntas, eu tinha que te ligar. E olha só: se você conhece a Isa pelo
menos um pouquinho, sabe que eu tô falando a verdade.
E desligou. Simples assim. Fernanda ficou menos de um segundo parada. Levantou-se de um salto
e pegou a primeira mala que viu no armário.
Dona Clara estava tomando café tranquilamente quando ouviu a filha chamando. Pelos gritos
desesperados que vinham do andar de cima, parecia ser um caso de vida ou morte. Correu para o
quarto dela preocupada.
Quando abriu a porta, não entendeu nada. Viu Fernanda rindo, jogando várias roupas dentro
da mala, parecendo apressada, agitada e, como há muito tempo não a via... Totalmente feliz!
– Mamãe, liga pra dona Carmen e pede o endereço delas, mas sem a Bela saber! Rápido,
porque quero pegar o primeiro avião pro Rio de Janeiro!
***
Naquele sábado, Isabela acordou muito tarde. Estranhou um pouco não ter sido acordada, mas
tia Carmen disse que tinha chamado sim, ela é que não tinha escutado e, como parecia muito
cansada, não tinha insistido.
Tomou café o mais rápido que conseguiu porque ia sair com Roberta e Mari. A tia estava
estranha, puxando vários assuntos, um atrás do outro, todos intermináveis.
– Mas me explica, Belinha, esse negócio de lei de causa e efeito, desse tal de Nam Myo... Como
é mesmo?
– Nam Myoho Renge Kyo, titia! Lei de causa e efeito, a lei mística que rege o universo. Resumindo:
esse mantra faz o universo conspirar a seu favor. Mas agora tô muito atrasada, te explico melhor
outro dia, tá?
Tinha combinado encontrar as amigas na praça da Rua General Glicério – como a maioria dos
programas da Roberta, perto da casa dela em Laranjeiras –, onde tinha uma feirinha de
artesanato todo sábado. O legal dessa feirinha era o chorinho tocado ali mesmo na rua, no meio
da pracinha.
Quando chegou, as duas estavam sentadas num banco de cimento muito bem posicionado, diga-
se de passagem: entre três vendedores de cerveja e a barraca das caipirinhas. Atrás delas já
estava um respeitável amontoado de latinhas vazias.
– Caramba, como vocês bebem!
– Caramba, como você tá atrasada! O chorinho já acabou há mais de uma hora! A gente tava
até indo embora.
– Nada disso! Agora que eu vim até aqui vocês vão ter que beber comigo!
– Tudo bem, por você a gente faz esse sacrifício!
Riram muito, porque quem conhecia a Roberta sabia que, quando ela começava, era capaz de
beber até o dia seguinte num piscar de olhos.
Quando Isabela abriu a terceira cerveja, seu celular tocou. Pegou na bolsa sem pressa, olhou o
visor e seus olhos se arregalaram antes de atender correndo... O prefixo era de Goiás!
– Alô?
– Oi, minha Bela!
Ouvir a voz de Fernanda fez ficar muito difícil falar sem gaguejar:
– Oi... Oi, Fê...
– Tô morrendo de saudade...
Quem quase morreu foi Isabela. Se estivesse bebendo cerveja, ao invés de estar ali sentada
totalmente sem ação, com certeza teria engasgado. Não conseguiu dizer nada antes de Fernanda
continuar:
– E querendo muito conversar com você... Só não sei se vou conseguir me concentrar na conversa
com você tão linda nesse vestidinho verde...
Dessa vez, Isabela se levantou, procurando com os olhos:
– O quê? Mas como? Como você? Onde você tá, Fê?
– Atrás de você...
Quando se virou, Fernanda estava a menos de um metro dela. Tão linda que chegava a doer,
com aquele sorriso que irradiava o ardor intenso dos olhos e derretia Isabela inteira.
O REENCONTRO
Que a beleza de Fernanda sempre a impressionava já não era novidade para Isabela. Tinha os
cabelos presos num rabo de cavalo frouxo e vestia camiseta branca e jeans bem básicos. Um
visual prático, simples e casual. Nada de mais. Para Isabela, continuava sendo a mulher mais bonita
em toda a face da Terra.
– Bela, quero falar com você.
Se Fernanda pensava que aparecer ali, do nada, com aquele sorriso lindo estampado na cara
faria Isabela esquecer de tudo, estava certa. A não ser pelo fato de Isabela estar determinada a
tentar ser pelo menos um pouquinho difícil.
– Ok. Pode falar.
A recepção inicial até que tinha sido calorosa. Mas depois Isabela fez aquela cara de bravinha
que Fernanda adorava. Estava determinada a desmanchar toda e qualquer resistência dela.
Estarem numa praça cheia de gente não ia ajudar.
– Vamos pra outro lugar...
Segurou o braço de Isabela, o simples contato parecendo causar nas duas uma pequena
descarga elétrica.
– Não quero que você me toque.
Quando Isabela desfez bruscamente o contato das peles, Fernanda disse, com um sorriso
malicioso nos lábios:
– Não mesmo?
Os olhos duelaram. Os de Fernanda afirmando que estava certa. Os de Isabela tentando negar
o óbvio. Um único olhar de Fernanda era o bastante para fazer seu corpo estremecer. Com um
suspiro profundo, Isabela se rendeu:
– Você tá certa...
– O quê? – Fernanda não poderia ficar mais surpresa.
Com o mais sedutor de todos os sorrisos, ela continuou:
– Eu quero muito...
Isabela se aproximou, deliciando-se com o perfume de Fernanda enquanto dizia baixinho no
ouvido dela:
– Tô morrendo de saudade da sua boca, das suas mãos, do seu corpo, de você inteira...
Antes de se afastar, roçou os lábios na orelha de Fernanda, fazendo-a se arrepiar dos pés à
cabeça.
Quando Fernanda pensava que não tinha como ficar mais apaixonada, Isabela saía com uma
daquelas... Não esperava por essa virada excitante, surpreendente... Muito menos pelo final:
– Quer saber? Não quero saber de conversa fiada, Fê. Não quero que você fale nada, quero
que mostre o que sente!
A única coisa que importava naquele momento era reconquistar aquela mulher. Com cuidado,
como se ela pudesse quebrar com o mais leve toque, Fernanda segurou o rosto de Isabela entre as
mãos. Os olhos mergulharam fundo nos dela e Isabela pôde ver uma incendiária mistura de paixão
e amor neles.
De repente, sem aviso, Fernanda se apossou dos lábios dela, as respirações se misturando, a
língua explorando sensualmente a doçura da boca de Isabela. Fernanda a sentiu corresponder
com o mesmo desejo, os braços de Isabela ao redor de sua cintura, apertando-a com força,
fazendo o beijo se tornar ainda mais intenso.
Quando os lábios se separaram, continuaram se fitando como se o mundo inteiro se resumisse
nas duas ali abraçadas naquele momento. Mas não era assim.
– Oi... Dá licença? Eu sou a Roberta, e essa aqui é a Mariana. Meninas, vocês tão dando um
show, tá todo mundo olhando! E eu tô adorando, é claro!
Fernanda e Isabela se afastaram, mas Fernanda ainda demorou alguns segundos para desviar
os olhos de Isabela e sorrir para as amigas dela:
– Oi. Prazer... Fernanda.
– Você nem imagina o quanto ouvimos falar de você...
Antes que Fernanda pudesse responder ou que a amiga pudesse falar mais, Isabela deu uma
cotovelada em Roberta.
– A gente já tá indo... Prazer... Tchau...
Nenhuma das duas precisava olhar em volta para saber que vários olhares continuavam fixos
nelas. Na verdade, não estavam ligando. Pairava entre elas uma atmosfera de encanto. Foi
Fernanda quem falou primeiro:
– Eu te amo...
– E eu amo você...
Trocaram olhares cúmplices. Os olhos de Fernanda desceram para os lábios de Isabela e se
perderam no decote do vestido dela antes de dizer:
– Vamos sair daqui?
Isabela puxou Fernanda pela mão, com uma súbita e inegável urgência:
– Vem...
OLHOS NOS OLHOS
A primeira ideia que Isabela teve foi levar Fernanda para o motel mais próximo. Se tinha uma
coisa que Isabela gostava era motel. Nunca tinha concordado com as pessoas que dizem que é um
lugar frio, pouco romântico. Achava instigante, excitante, divertido até.
Mas, quando sentaram no táxi de mãos dadas, sentiu vontade de levar a ruiva que a olhava
com o mais lindo de todos os sorrisos para casa:
– Senador Vergueiro, por favor.
***
Entraram no elevador e Isabela apertou o botão do 11º andar várias vezes. Achou engraçado
estar assim nervosa, desde adolescente não ficava desse jeito.
– Minha tia não tá em casa. Sábado ela sai com as amigas.
Explicou, apesar de Fernanda não ter pedido explicação nenhuma.
Fernanda apenas olhava, achando graça, o nervosismo de Isabela fazendo-a parecer ainda
mais linda.
Isabela voltou a entrelaçar os dedos nos dela, e Fernanda sentiu uma felicidade tão grande que
fazia as batidas do coração parecerem o tic tac de uma bomba relógio.
***
Quando fechou a porta do apartamento, Isabela disparou a falar sem parar:
– Essa porta aqui no hall é um armário embutido, tá vendo? Uma vez, quando eu era pequena,
minha tia chamou o cara da farmácia de madrugada pra me dar uma injeção e, na hora de sair, o
cara entrou dentro do armário. Minha tia teve que abrir a porta pra ele sair, porque ele ficou
parado lá dentro, acredita?
Riram juntas, aquele riso solto, bobo, que só as pessoas apaixonadas têm. Fernanda estava
achando fofo o tour pela casa e, de certo modo, pela vida dela. Tinha uma infinidade de coisas
que desconhecia e queria saber tudo sobre aquela mulher.
Ajeitou uma mecha do cabelo de Isabela, depois acariciou o rosto dela.
Isabela fechou os olhos, suspirou, e... Pegando Fernanda pela mão, puxou-a para atravessarem
juntas uma sala enorme, com vários sofás, poltronas e mesinhas.
– Todo ano faço uma festa no meu aniversário e aqui é oficialmente a pista de dança, é só tirar
os móveis...
Com um jeito sapeca, deu um beijo rápido nos lábios de Fernanda antes de puxá-la novamente
pela mão. Dessa vez foi Fernanda quem suspirou.
Abriu uma porta de correr e outra sala apareceu. Essa era dividida em dois ambientes: o
primeiro com a mesa de jantar e o outro com um sofá e duas poltronas em volta de uma TV.
– Bom, essa sala dispensa qualquer tipo de comentário, né?
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Fernanda a puxou pela cintura, os lábios
procurando os dela. Mas Isabela fugia, desviava a boca, provocando e rindo. Depois segurou
Fernanda pela nuca e mergulhou os lábios nos dela com paixão. Quando finalmente as bocas se
separaram, chegou bem perto do ouvido de Fernanda e disse, causando mil arrepios:
– Te amo tanto que chega a doer...
Afastou-se com um sorriso safado que fez Fernanda pensar que ia morrer.
Outra porta de correr e um corredor com uma mesinha de telefone e várias portas. Isabela
agora tinha pressa, por isso apenas apontou para cada uma delas rapidamente, dizendo:
– Cozinha. Quarto da titia. Escritório. Banheiro.
Abriu a última porta, revelando um quarto com um surpreendente papel de parede de... Arco-
íris!
– Meu quarto. Antes de você falar qualquer coisa, esse papel de parede tá aqui desde que eu
tenho dez anos!
Fernanda não teve como conter o riso.
Olhou ao redor. Cama de casal, uma estante pequena cheia de livros, uma escrivaninha,
televisão e, na mesinha de cabeceira, a foto de um jovem casal.
– Meus pais.
– Você e sua mãe são muito parecidas.
– É, todo mundo diz...
Uma centelha de tristeza passou pelo rosto de Isabela, mas então ela levantou os olhos, fitou
Fernanda e o simples fato de estar ali com ela a fez voltar a sorrir.
– É isso. Acabei.
– Então agora é a minha vez...
Fernanda se aproximou devagar, de forma absolutamente sedutora. Fazendo Isabela recuar até
se encostar na porta fechada, pressionou o corpo contra o dela, causando um primeiro gemido.
Rodou a chave, trancando a porta, o movimento fazendo os corpos se roçarem por inteiro. Os
olhos de Isabela se tornaram duas chamas suplicantes, trêmulas de antecipação e desejo.
Com uma lentidão torturante, Fernanda desceu os lábios sobre os dela.
Isabela suspirou quando as línguas se tocaram sensualmente. Era uma delícia a facilidade com
que Fernanda a fazia perder o controle...
O coração de Fernanda acelerou na hora. Enfiou as mãos por baixo do vestido de Isabela,
percorrendo sem pressa, saboreando cada pedaço de pele, a respiração se tornando difícil ao
perceber que ela se arrepiava ao menor toque. Explorou o pescoço e a nuca dela com a boca,
beijando, chupando, mordendo até fazer Isabela se contorcer.
Isabela apertou as nádegas dela com força, colando coxa com coxa, sexo com sexo, arrancando
de Fernanda um primeiro gemido.
– Adoro quando você geme assim...
Isabela riu, satisfeita por conseguir mais um gemido com o que disse. Mas então Fernanda já a
tocava nos seios, fazendo Isabela ofegar.
– Tira o vestido, tira...
Não foi bem uma ordem, foi mais um pedido dito de forma rouca, excitante e totalmente
irresistível. Isabela soltou as alças e o vestido escorregou, caindo no chão.
Fernanda pressionou o joelho entre as pernas dela, enquanto colava a boca num dos seios,
chupando, lambendo, enlouquecendo-a...
– Olha como eu tô...
Pegou a mão de Fernanda e enfiou dentro da calcinha, oferecendo-se de forma absolutamente
convidativa.
Fernanda a beijou com paixão enquanto acariciava o sexo dela, deixando Isabela ansiosa,
insatisfeita, querendo muito mais. Mordeu de leve o lábio inferior de Fernanda, a voz dengosa
exigindo:
– Fê...
Fernanda sorriu, morrendo de vontade também, mas queria provocar:
– Quer mais?
– Quero...
– Então fala, o que você quer?
As palavras de Fernanda só serviram para instigar a vontade que Isabela sentia... De pertencer
àquela mulher inacreditavelmente sedutora.
– Quero você...
– Não entendi...
Fernanda intensificou as carícias, estimulando o desejo dela até Isabela não aguentar:
– Ai, Fê... Enfia logo esses dedos em mim...
A forma como Isabela falou fez Fernanda esquecer que poderia prolongar mais, brincar mais.
Isabela gemeu alto quando finalmente sentiu os dedos de Fernanda dentro dela. Fechou os olhos
e acompanhou o delicioso movimento de vai e vem.
As bocas se colaram novamente, as mãos de Isabela acariciaram os seios de Fernanda ainda
por cima da camiseta.
Nem viu quando Fernanda a livrou da calcinha, estava quase gozando.
Pelos tremores de Isabela, Fernanda sabia que, se continuasse, ela gozaria a qualquer momento,
rápido demais, e não como queria, por isso parou. Antes que Isabela pudesse reclamar, Fernanda
a levantou, fazendo-a passar as pernas ao redor dela.
A aspereza do jeans contra o corpo nu só deixou Isabela mais excitada. Esfregou-se em
Fernanda quase com desespero.
Com uma rapidez impressionante, Fernanda a colocou na cama, livrou-se das roupas e se deitou
nua de frente para ela. Colaram os corpos, beijando-se com uma necessidade extrema.
Fernanda a olhou profundamente e pediu:
– Olha nos meus olhos...
Fernanda a tocou entre as pernas, acariciando, abrindo, entrando dentro dela. Isabela fez a
mesma coisa com Fernanda. Cada vez mais e mais ofegantes, os gemidos aumentando conforme os
dedos aceleravam o ritmo. Pulsavam juntas, ardendo, febris de amor e desejo uma pela outra.
Olhos nos olhos o tempo inteiro.
Gozaram juntas, como dois espelhos frente a frente cujas imagens se multiplicam infinitamente, os
olhos refletindo o que sentiam e o que faziam sentir, num ciclo vicioso de prazer sem fim.
Isabela sorriu preguiçosamente. Olhou para a ruiva linda que a abraçava com força e a encheu
de beijos... Os olhos de Fernanda brilharam, e ela retribuiu imediatamente.
Os corpos se grudaram famintos, cheios de desejo de novo. Isabela deslizou as pernas entre as
de Fernanda, abrindo-as, colando e esfregando o sexo no dela.
A forma sensual de Isabela se mover entre suas pernas deixava Fernanda ofegante, louca de
desejo... Colocou os seios de Isabela na boca, lambendo, mordendo, chupando.
Não demorou muito e Fernanda estremeceu, gemendo alto, deixando Isabela incontrolavelmente
arrepiada de prazer ao vê-la gozando embaixo de si.
Fernanda a puxou pelos cabelos, colou os lábios nos dela, agarrou-a pelas nádegas acelerando
mais e mais o movimento.
O gosto, o cheiro e a pele a estavam enlouquecendo. Fernanda estava quase gozando
novamente. Sentiu Isabela contraindo todos os músculos do corpo, revirando os olhos, dizendo que
ia gozar. E foi o suficiente para que gozasse também.
Isabela se deixou cair em cima de Fernanda e ficou ali largada, o corpo totalmente relaxado,
ouvindo os corações batendo juntos, descompassados.
O celular de Isabela tocou, e ela se levantou da cama para atender.
Fernanda continuou deitada, apreciando a visão, com um sorriso satisfeito nos lábios, achando-a
muito, mas muito linda mesmo, uma graça.
– Oi, titia! Ela tá comigo sim... Tá, pode deixar, eu digo... Beijo... Tchau... Era minha a tia.
Perguntou por você e... Te mandou um beijo...
Dizendo isso, pulou em cima dela, dando-lhe um beijo estalado nos lábios. Elas riram, rolando na
cama. Então Isabela estava deitada de bruços com Fernanda em cima dela, mudando totalmente a
brincadeira.
Fernanda desceu a boca lentamente e Isabela sentiu a respiração quente dela no pescoço antes
de invadir sua orelha com a língua, causando arrepios. Afastou os cabelos de Isabela e mergulhou
os lábios no pescoço dela, beijou a parte sensível do pescoço, depois mordeu... Isabela suspirou e
estremeceu, com um sorriso absolutamente safado nos lábios.
Fernanda começou a chupar o pescoço de Isabela, os quadris se movendo quase que
involuntariamente e Isabela gemeu e empinou a bunda contra o sexo que se esfregava nela.
Fernanda agarrou um dos seios de Isabela enquanto a acariciava entre as pernas com a outra
mão, fazendo-a mover os quadris e gozar rápida e intensamente.
Fernanda continuou movendo os dedos em Isabela, o prazer aumentando até estremecer
violentamente. Isabela ouviu os gemidos, sentiu a umidade deliciosa de Fernanda em cima dela e
gozou novamente.
Fernanda rolou, deitando-se de costas na cama, saindo de cima dela, mas Isabela queria mais,
queria devorar aquela mulher inteira. Beijou-a na boca, as mãos acariciando-a toda. Desceu os
lábios sobre um dos seios, passou a língua em volta do bico, sugando com força quando Fernanda
gemeu. Tocou o sexo, enfiou os dedos com facilidade, começou a movê-los lentamente. Então
mergulhou a língua entre as pernas dela, lambendo, sugando, invadindo e a fazendo gozar várias
e várias vezes.
Fraca, esgotada e incrivelmente feliz... Era como Fernanda estava. Isabela a beijou na boca,
saboreando os lábios dela sem pressa. Quando o beijo se tornou mais exigente, Fernanda disse,
rindo:
– Você quer acabar comigo, é?
– Quero...
Isabela passou a língua nos lábios enquanto voltava a devorar o corpo de Fernanda com os
olhos.
– Safada!
– Gostosa!
Começaram a se beijar novamente.
A LEMBRANÇA
É incrível como os dias passam rápido quando se está feliz. Com Fernanda e Isabela foi assim.
Mal sentiram passar as semanas seguintes.
Passearam muito, namoraram mais ainda, amaram-se diversas vezes. Também decidiram várias
coisas, entre elas que ficariam morando no Rio de Janeiro até Isabela terminar a faculdade.
Num golpe de sorte, encontraram um apartamento no Cosme Velho, numa ruazinha tranquila
perto do bondinho, com uma varanda no quarto que tinha uma incrível vista para o Cristo. Além do
apartamento, Fernanda também comprou um carro. Isabela adorava esse jeito prático, objetivo,
nem um pouco indeciso dela.
Num domingo ao anoitecer, estavam sentadas num quiosque da Lagoa, sem dúvida o lugar
preferido de Isabela em toda a Cidade Maravilhosa, admirando o belíssimo pôr do sol, as mãos
dadas em cima da mesa.
Fernanda suspirou e deu um gole no chope que estava em sua frente antes de dizer:
– Preciso resolver umas coisas na fazenda. Você vem comigo, né?
Isabela concordou, sem pensar duas vezes. Se dependesse dela, nunca mais passaria um único
dia longe daquela mulher.
***
Isabela desviou os olhos do chão de nuvens do lado de fora do avião.
Ficou muito tempo observando a ruiva adormecida ao seu lado, os dedos entrelaçados nos dela.
Fernanda tinha uma expressão muito doce no rosto, os lábios entreabertos num quase sorriso,
bastante convidativos.
Controlou a vontade de beijá-la e preferiu ficar ali tranquila, zelando pelo sono dela.
Lembrou-se da primeira vez que a tinha visto... Se alguém tivesse dito que montada naquele
cavalo negro estava a mulher da sua vida, jamais acreditaria. Muito menos que a herança
aparentemente sem valor de Tia Guida a faria encontrar o amor.
Todas as dúvidas, conflitos e mal entendidos estavam resolvidos. Todos, menos um. O pensamento
fez o sorriso que antes estava estampado no rosto de Isabela morrer.
Na árvore da pequena clareira permanecia entalhado aquele coração antigo.
***
Dona Clara as recebeu na porta, com um sorriso enorme no rosto e muitos abraços e beijos.
A primeira coisa que Isabela fez quando entraram no quarto de Fernanda foi olhar para a
mesinha de cabeceira. Um grande alívio tomou conta dela quando viu que o retrato de Luisa tinha
sumido.
– Melhor você tomar banho primeiro.
– Ah, não, Fê... Quero tomar banho com você...
Pendurou-se no pescoço de Fernanda, beijando-a com sofreguidão.
– Mamãe tá esperando a gente pra almoçar.
Isabela fez biquinho, mas acabou concordando e indo para o banheiro.
Quando Fernanda terminou de desfazer a mala, Isabela voltou enrolada numa toalha, com os
cabelos molhados... A imagem da tentação. Fernanda sentiu as primeiras pontadas de desejo.
Aproximou-se dela, tentou livrá-la da toalha, mas Isabela a impediu, dizendo:
– Sua mãe tá esperando, lembra?
– Me dá só um beijo...
– Até parece, doutora Fernanda, que vai ser só um beijo...
Fernanda não disse nada, apenas a puxou... Os lábios se encontraram, as respirações
imediatamente se alteraram... Os corpos tão colados que Fernanda sentiu quando os seios de
Isabela endureceram... Subiu as mãos para tocá-los, mas foi interrompida por batidas na porta e a
voz de Selma dizendo:
– O almoço tá na mesa!
***
O almoço foi ótimo. Dona Clara fazia questão de ser simpática com Isabela.
Tomaram um cafezinho na sala, e dona Clara, como toda boa mãe, resolveu mostrar para
Isabela algumas fotografias. Apesar dos protestos da filha, ela apareceu com milhares de álbuns
antigos de quando Fernanda era criança.
Já estavam no terceiro álbum, quando Selma apareceu esbaforida:
– Dona Fernanda, o Cicinho, filho do seu Anselmo, tava montando um cavalo bravo e caiu... Tá
muito machucado...
Fernanda foi até o quarto e voltou com uma maletinha, a mesma que ela tinha levado para
examinar tia Carmen no sítio.
– Vem comigo?
Antes que Isabela pudesse responder, dona Clara disse:
– Ah não, Nanda, deixa eu curtir a minha nora um pouquinho...
Isabela achou tão bonitinho o jeito que dona Clara falou que nem ficou chateada de não ir com
Fernanda.
Ficaram olhando as fotos, as duas achando Fernanda o bebê e a menininha mais fofa do
mundo, cúmplices no amor que sentiam por ela.
Então, de repente, os olhos de Isabela se fixaram numa foto onde se viam duas meninas: a
primeira, inconfundível por causa dos cabelos cor de fogo, usando rabo de cavalo, tênis velho,
calça jeans surrada e camiseta com estampa de onça, fazia careta para a câmera. Um degrau
acima, para ficar na altura de Fernanda, com uma carinha bem séria, usando um vestidinho florido
amarelo, maria-chiquinha e sapatinhos de boneca, estava Isabela.
Na hora em que viu a foto, mil recordações pipocaram em sua mente, as cenas vindo como
pedacinhos de um filme: imagens dela e Fernanda quando crianças brincando, correndo e rindo...
Mas uma cena passou inteira na sua cabeça.
***
Fernanda estava sentada no galho de uma árvore quando Isabela saiu pela porta da cozinha
do sítio, carregando com muito esforço uma cesta de piquenique quase do tamanho dela.
Depois de pular do galho com a maior facilidade do mundo, Fernanda correu para ajudar
Isabela. As duas foram caminhando devagar, andando um pouco cambaleantes por terem que
coordenar os passos para andarem juntas carregando peso.
Pararam no jardinzinho atrás da casa e colocaram a cesta no chão. Isabela pegou uma toalha
quadriculada dentro dela e, com a ajuda de Fernanda, estendeu-a na grama. Com um jeitinho
sério e compenetrado, foi tirando alguns pratos, xícaras, pires, colheres e até um bule e um
açucareiro de brinquedo, que arrumou em cima da toalha. Fernanda sentou com as pernas
cruzadas, as mãos apoiadas no queixo, olhando-a com um arzinho de admiração.
– Ajuda, Fê! Vai ficar só olhando, é?
– Desculpa...
Fernanda fingiu ajeitar um pratinho, sem tirar os olhos dela. Isabela então tirou da cesta a
melhor parte: uma garrafa térmica com achocolatado e alguns biscoitos e bolinhos que tia Guida
tinha feito para elas. Tudo de verdade! Terminou de arrumar e se sentou também, batendo palmas
e dizendo:
– Eu sirvo!
Colocou o chocolate nas pequenas xícaras, entornando grande parte enquanto servia. Entregou
uma das xícaras meladas para Fernanda, que já ia tomar quando Isabela a interrompeu:
– Espera! Primeiro o brinde!
Isabela fez um sinal para Fernanda, lembrando que ela é que tinha que fazer o brinde.
Fernanda levantou a xícara e disse com um tom formal que era no mínimo engraçado:
– Tim tim!
Ao que Isabela respondeu “Tim tim” e, batendo a xícara na dela, derramou mais chocolate
ainda.
– Agora bebe de uma só vez!
Fernanda, como sempre, obedeceu. Começaram a comer os biscoitos, e Isabela exigiu:
– Agora me conta o segredo!
– Que segredo?
Fernanda se fez de desentendida e Isabela perdeu a pouca paciência que tinha:
– Você não disse que tinha um segredo pra me contar, ué?
– Eu disse surpresa!
– Melhor ainda! Conta, Fê!
Fernanda olhou para cima, respirou fundo, como se tomasse coragem, e disse:
– É uma coisa que eu vi num filme: a gente faz um coração numa árvore. E escreve dentro dele
o nome da pessoa que a gente mais gosta.
Isabela franziu a testa e torceu o nariz:
– Só isso? Que surpresa sem graça...
Mas logo se arrependeu porque Fernanda fez uma carinha muito triste com o comentário.
Imediatamente consertou:
– Mas é um ótimo segredo! Vai ser o nosso segredo. E nunca, jamais vamos contar pra ninguém.
Jura?
O rosto de Fernanda se iluminou. Ela levantou os dedos indicador e médio da mão esquerda e
colocou a mão direita no peito dizendo:
– Juro pela minha mãe mortinha!
Dessa vez foi Isabela quem se entristeceu.
– Desculpa, eu... Eu...
A preocupação de Fernanda parecia tão sincera que Isabela sorriu para ela novamente.
– Bela, que nome você vai escrever?
– Não sei... E você?
– Também não sei...
Isabela comeu um dos bolinhos e ficou com a boca toda lambuzada de açúcar.
– Sua boca tá toda suja...
Isabela passou a língua na boca, tentando limpar, sem conseguir:
– Saiu?
– Eu tiro pra você...
Fernanda se aproximou, passou os dedos no açúcar melado e também não conseguiu. Então
cuspiu nos dedos e levou-os na direção de Isabela, que recuou dizendo:
– Eca! Que nojo!
– Deixa de ser boba! Assim você nunca vai beijar na boca!
– Isso não é beijo, é cuspe!
– Aposto que se fosse beijo você também tinha nojo!
– Não tinha nada!
– Tinha!
– Não tinha!
– Tinha!
– Não tinha!
– Tinha!
– Quer apostar?
– Duvido!
– Quer ver?
E encostou os lábios nos de Fernanda. Ficaram se olhando, ainda com os lábios encostados. Os
olhos de Fernanda, muito arregalados, arregalaram-se ainda mais quando ouviram a voz de tia
Guida gritando:
– Isabela! Já pra casa!
– Tia Guida...
– Agora!
Levantou e entrou em casa correndo. No dia seguinte bem cedo, Tia Guida a mandou para o Rio
de Janeiro.
PARA SEMPRE NO CORAÇÃO
Isabela se levantou de repente, quase de um salto:
– Preciso sair... A senhora tem um canivete?
– O quê? Um... Canivete?
– Uma faca, qualquer coisa assim?
Dona Clara não entendeu nem perguntou nada, já estava começando a se habituar com aquele
monte de coisas estranhas que aconteciam. Limitou-se a entregar um canivete para Isabela e
mandar um dos empregados selar um cavalo para ela.
***
Enquanto cavalgava, a mente de Isabela era um turbilhão de pensamentos.
Tia Guida a tinha mandado para o Rio de Janeiro por causa do beijo que tinha trocado com
Fernanda. E então, anos depois, com aquela cláusula do testamento, tinha obrigado Isabela a
voltar, como se quisesse consertar o que tinha feito, colocando Fernanda e Isabela juntas
novamente. Com certeza, ela sabia que a pequenina semente plantada quando crianças ia
desabrochar e florescer com facilidade.
Mas, quando finalmente chegou à árvore e olhou para o coração, quem teve uma enorme
surpresa foi ela, porque... Já tinha um nome escrito...
Isabela não conseguiu conter o sorriso, nem os olhos que se encheram de lágrimas quando leu
“Bela”.
Naquele momento, uma certeza absoluta pulsava dentro dela: Fernanda tinha sido seu primeiro
amor e agora era a mulher com quem ia passar o resto da vida.
Com um brilho de felicidade iluminando seu rosto, pegou o canivete e começou a escrever.
***
Quando Fernanda chegou à fazenda, dona Clara contou com detalhes tudo o que tinha
acontecido.
Bastou ver a foto e ouvir que ela tinha pedido um canivete antes de sair quase correndo para
que Fernanda compreendesse.
Foi atrás dela, o coração disparando no peito... No dia em que Isabela partira de volta para o
Rio, Fernanda tinha achado que a perdera. Então gravou o nome dela no coração entalhado.
Como uma silenciosa jura de amor...
Quando chegou à clareira, encontrou Isabela terminando de escrever dentro do coração. Da
distância em que estava, Fernanda conseguiu ler... A declaração eternizada do amor delas. Um
amor gravado para sempre naquele coração.
Um coração onde agora se lia “Bela e Fê”.
***
Assim que a viu, Isabela correu para ela, puxou-a pela cintura e a abraçou com força, colando
os lábios nos de Fernanda como se não a visse há muito tempo.
Quando o beijo terminou, Isabela encostou a cabeça no ombro dela, e ficaram conversando
abraçadas, os corações palpitando juntinhos:
– Pensei que você tivesse se esquecido, meu amor...
– Não... Sim... Quer dizer... Tinha... Mas quando eu vi a nossa foto... Eu lembrei... De você... De
nós... De tudo... Fê, eu...
Isabela falava rápido, aos tropeços, a voz embargada por uma estranha emoção que enchia
seus olhos de lágrimas. Fernanda apenas a abraçava, acariciando os cabelos dela carinhosamente.
– Eu... Eu beijei você... Tia Guida viu a gente... Ficou furiosa e me mandou embora... E esse
coração... O coração que você fez... Pra mim... É o nosso coração... Que agora não tá mais vazio...
Fernanda acariciou o rosto dela suavemente, com um lindo sorriso. Segurou o rosto de Isabela
entre as mãos, olhou-a fundo nos olhos e disse:
– Minha Bela... Amo tanto você...
Isabela suspirou, esfregando o rosto na mão dela de uma forma quase felina:
– Também te amo demais, Fê...
As bocas se encontraram, os lábios se abriram para as línguas se provarem... Doce, muito doce...
Entorpecente mistura de salivas, respirações e almas.
Agradeceram mentalmente à responsável por tanta felicidade. Para elas, tia Guida tinha
deixado a mais perfeita de todas as heranças: um imensurável legado de amor e paixão.
SUMÁRO
AGRADECIMENTO
APRESENTAÇÃO
A NOTÍCIA INESPERADA
UMA HERANÇA QUE INCOMODA MUITA GENTE
UM ENCONTRO SURPREENDENTE
PERGUNTAS E REVELAÇÕES
À GALOPE
VÁRIOS E DIFERENTES SORRISOS
TRAVANDO CONHECIMENTO
PRECISANDO DELA
UMA MÃE COM SEGUNDAS INTENÇÕES
UMA NOS BRAÇOS DA OUTRA
UMA GRANDE DECEPÇÃO
AMANSANDO A FERA
ALGUMAS SURPRESAS...
UM JANTAR REGADO A VINHO
O TÃO ESPERADO AMANHECER
UM PEQUENO EMPURRÃOZINHO
UM SIMPLES OLHAR
O CORAÇÃO ENTALHADO
EM MEIO AO SILÊNCIO
SOLTEIRA NO RIO DE JANEIRO
O UNIVERSO CONSPIRA A FAVOR
O REENCONTRO
OLHOS NOS OLHOS
A LEMBRANÇA
PARA SEMPRE NO CORAÇÃO
A reprodução de parte ou do todo do presente texto, em qualquer meio físico ou eletrônico, é
expressamente proibida sem a autorização prévia por escrito da autora.
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Editora: Vira Letra
Editora Responsável: Manuela Neves
Produção: DiWind Produções

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