Você está na página 1de 123

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social

Thais Klein De Angelis

Norma e desvio na infância contemporânea: o caso do transtorno bipolar


infantil.

Rio de Janeiro
2016
Thais Klein De Angelis

Norma e desvio na infância contemporânea: o caso do transtorno bipolar infantil.

Dissertação apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Rossano Cabral Lima

Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CB/C

A582 Angelis, Thais Klen De.


Norma e desvio na infância contemporânea: o caso do transtorno
bipolar infantil /Thais Klen De Angelis. – 2016.
120
121 f.f.
Orientador: Rossano Cabral Lima.

Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,


Instituto de Medicina Social.

1. Transtorno bipolar – Diagnóstico – Teses. 2. Saúde da criança –


Teses. 3. Psiquiatria infantil – Teses. I. Lima, Rossano Cabral. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social.
III. Título.

CDU 616.895-053.2

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

____________________________________ _____________________
Assinatura Data
Thais Klein De Angelis

Norma e desvio na infância contemporânea: o caso do transtorno bipolar infantil.

Dissertação apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 23 de fevereiro de 2016.


Orientador : Prof. Dr. Rossano Cabral Lima
Instituto de Medicina Social - UERJ

Banca Examinadora: ________________________________________________________


Prof.ª Dra. Rafaela Teixeira Zorzanelli
Instituto de Medicina Social - UERJ
________________________________________________________
Prof. Dr. Benilton Carlos Bezerra Junior
Instituto de Medicina Social – UERJ
________________________________________________________
Prof. Dr. Jairo Werner
Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro
2016
DEDICATÓRIA

Para Luciane, amiga e mãe.


AGRADECIMENTOS

Primeiramente gostaria de agradecer aos meus colegas de mestrado ( Luisa, Maria


Luisa, Carlos, Vítor, Letícia, Brena, Stephanie e Kelliane). Jamais imaginaria que o mestrado
me daria um presente como este: de discussões acaloradas a amizades duradouras. Esta
surpresa também se estende aos professores do IMS, em especial Rossano Lima, Rafaela
Zorzanelli e Benilton Bezerra, a quem gostaria de agradecer. Foi muito importante perceber
que o ambiente acadêmico pode ser amigável e com ricas trocas para além da disputa egóica
tão evidente neste meio. Ademais, sou grata a todos os funcionários da UERJ e do Instituto de
Medicina Social que durante estes dois anos vivenciaram uma série de problemas na
instituição e, se hoje minha dissertação é possível, se deve certamente à sua perserverança e
resistência. Afinal, o que seria de uma Universidade sem estas pessoas?
“O que somos nós, para as crianças que brincam ao nosso redor, senão sombas?”
Bastide, 1961.
RESUMO

KLEIN, Thais De Angelis. Norma e desvio na infância contemporânea: o caso do transtorno


bipolar infantil. 2016. 121f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de
Medicina Social, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

O presente trabalho tem como objetivo analisar a expansão do diagnóstico de


transtorno bipolar em direção à infância a partir de uma perspectiva normativista. Para tanto,
destacam-se, paralelamente, três objetivos específicos. O primeiro deles consiste em traçar um
breve histórico das mutações que a noção de infância vem sofrendo, com ênfase no contexto
atual. O segundo objetivo específico visa um aprofundamento na história da psiquiatria
infantil, procurando destacar suas reconfigurações até as últimas décadas– contexto no qual se
inicia a discussão sobre o transtorno bipolar infantil. Por fim, o último objetivo específico diz
respeito à apresentação do transtorno bipolar infantil, enfatizando principalmente os diferentes
atores sociais envolvidos na propagação deste diagnóstico, bem como as controvérsias em
torno dele. De uma maneira geral, procuraremos delinear o contexto mais amplo, tanto da
infância, quanto da psiquiatria, em que esta patologia passou a ganhar visibilidade. Ademais,
a discussão em torno deste caso, nos permitirá observar outros fatores relacionados aos
inúmeros atores envolvidos no processo de alargamento das categorias diagnósticas, às
controvérsias em torno de um diagnóstico e aos detalhes de extensão de um transtorno para a
infância. Este caso permite, portanto, um questionamento sobre um processo mais amplo que
tem lugar tanto na psiquiatria, quanto na cultura.

Palavras-chave: Transtorno bipolar. Infância. Psiquiatria.


ABSTRACT

KLEIN, Thais De Angelis. Norm and deviation in contemporary childhood: the case of child
bipolar disorder. 2016. 121 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de
Medicina Social, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

This study aims to analyze the expansion of diagnosis of bipolar disorder toward
childhood from a normative perspective. To this end, it stands out, in parallel, three specific
objectives. The first is to trace a brief history of changes that the notion of childhood has
suffered, with emphasis in the current context. The second specific objective aims explore the
history of child psychiatry, seeking to highlight their reconfigurations to the latest years-
context in which it starts the discussion on child bipolar disorder. Finally, the last specific
objective concerns on the presentation of child bipolar disorder, especially emphasizing the
different social actors involved in the spread of this diagnosis as well as the controversies
surrounding it. In general, we will try to outline the broader context of both childhood and
psychiatry, where this disease has become more visible. Moreover, the discussion around this
case will allow us to observe other factors related to the numerous actors involved in the
enlargement process of diagnostic categories, the controversies surrounding the diagnosis and
details of the extension of a disorder for children. This case allows therefore a questioning of
a broader process that takes place both in psychiatry, as in culture.

Keywords: Bipolar disorder. Childhood. Psychiatry.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 9
1 AS NOÇÕES DE INFÂNCIA: NORMA E DESVIO NA INFÂNCIA
CONTEMPORÂNEA ......................................................................................... 15
1.1 A infância moderna: direito e proteção ............................................................ 15
1.3 A criança como agente: a “nova” sociologia da infância ................................. 21
1.4 A infância como consumidora ............................................................................ 25
1.5 Performance e autonomia na infância .............................................................. 28
1.6 Norma e desvio na perspectiva normativista ................................................... 32
2 A FORMAÇÃO DO CAMPO DA PSIQUIATRIA INFANTIL: DA
IDIOTIA AO DSM ........................................................................................... 40

2.1 A criança e constituição do saber psiquiátrico ................................................. 41

2.2 A idiotia como único transtorno mental infantil ............................................. 46


2.3 A discussão em torno da loucura do adulto na criança ................................... 50
2.4 A criação de uma clínica “pedo-psiquiátrica”................................................... 60
2.5 DSM-I e DSM-II: a infância e a transitoriedade das afecções ........................ 67
2.6 O DSM-III e a consolidação de uma seção reservada à infância .................... 72
3 O CASO DO TRANSTORNO BIPOLAR........................................................ 84
3.1 A extensão do transtorno bipolar do humor ..................................................... 84
3.2 A depressão na infância ..................................................................................... 91
3.3 O transtorno bipolar infantil .............................................................................. 95
3.4 Um fenômeno norte americano? ....................................................................... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 108
REFERÊNCIAS ................................................................................................. 113
9

INTRODUÇÃO

Nas últimas três décadas, o transtorno bipolar infantil, embora não sem controvérsias,
se tornou alvo de discussões e passou a ser um diagnóstico amplamente utilizado. De acordo
com um estudo realizado por Blader e Carlson (2007), enquanto em 1996 poucas crianças
eram consideradas bipolares nos EUA, em 2004 este transtorno se tornou o mais frequente na
infância. Logo, uma afecção, que até meados dos anos 80 não era discutida no âmbito da
psiquiatria infantil, alçou grande popularidade nos últimos anos. Esta patologia, no entanto,
não foi a única que ganhou visibilidade expressiva no campo da infância atualmente. Frances
(2013), coordenador da força tarefa do DSM-IV, indica que este manual diagnóstico provocou
ao menos três epidemias não previstas: o transtorno bipolar, o transtorno do déficit de atenção
e hiperatividade e o autismo. Enquanto os dois últimos têm como alvo principal a infância, o
transtorno bipolar, conforme veremos, embora não originalmente relacionado a esta faixa
etária, se expandiu para idades cada vez menores. O número de crianças que podem ser
categorizadas como portadoras de uma doença mental dobrou entre 1970 e 1990 segundo
dados da British Medical Association (TIMIMI,2010).
O aumento significativo de patologias na infância, como exemplificado pelo caso do
transtorno bipolar infantil, pode ser interpretado por vieses distintos relacionados
principalmente à maneira de se conceber o normal e o patológico. O que é normal e
patológico? Como podemos distinguir aquilo que é desvio e norma em um determinado
contexto? Como são descobertas ou fabricadas novas patologias? É justamente no campo da
psiquiatria que se encontram as maiores controvérsias sobre a fronteira entre o normal e o
patológico, sendo o caso do transtorno bipolar infantil um objeto de estudo interessante para
discutir estas questões no âmbito da infância.
Dentre os diferentes pontos de vista sobre o normal e o patológico, destacam-se duas
perspectivas: uma denominada naturalista e outra normativista. Da perspectiva naturalista em
medicina — também chamada de empirista, objetivista ou positivista — aquilo que se
considera normal e patológico é designado por um fundamento racional valorativamente
neutro (GAUDENZI, 2014). De maneira geral, pode-se dizer que os naturalistas concebem o
fisiológico como prioritário em relação à experiência de adoecimento. Esta perspectiva, que
defende a soberania do conceito teórico sobre o conceito prático de doença, tem como um dos
seus principais precursores o médico fisiologista francês do século XVIII Claude Bernard,
sendo Christopher Boorse um de seus representantes na atualidade.
Os naturalistas, grosso modo, defendem uma anterioridade lógica do fato sobre o
10

valor. Cabe ressaltar, no entanto, que a visão naturalista não desconsidera a presença de
valores, apenas afirma que os mesmos são incorporados somente posteriormente na prática
médica (GAUDENZI, 2014). A doença, todavia, é considerada anterior, podendo ser definida
objetivamente: trata-se de um fato. Sendo assim, a distinção entre o normal e o patológico
antecede os valores, uma vez que pertence à esfera daquilo que é considerado factual e, de
certa forma, imutável. Seguindo estes preceitos, a “descoberta” recente do transtorno bipolar
infantil é entendida como consequência de uma maior precisão, um aprimoramento na
detecção de certas patologias.
A perspectiva normativista, por sua vez, se distingue da naturalista na medida em que
afirma que uma explicação satisfatória da saúde e da doença é intrinsecamente carregada de
valores e, portanto, contextual. Nessa abordagem, a saúde e a doença dependem da
experiência subjetiva, de normas e valores morais. Faz-se importante delinear que o debate
entre estas duas posições não se restringe somente a uma discussão sobre a presença ou
ausência de valores na definição das noções de saúde e doença, mas também e
principalmente, diz respeito ao questionamento das diferenças na relação entre fato e valor.
A corrente normativista, também chamada de subjetivista ou construtivista, afirma que
as noções de normal e patológico só fazem sentido dentro de um universo linguístico e
genealógico — de uma história de saberes, de poderes, de determinações éticas ou estéticas
(GAUDENZI, 2014). Sendo assim, os normativistas, diferente dos naturalistas, consideram o
contexto epsitemológico indissociável de um contexto mais amplo, histórico-cultural.
Gaudenzi (2014) afirma que, entendido desta forma, o normativismo é uma variante do
historicismo, do construtivismo e do pragmatismo que defendem que o sentido dado às coisas
dependente de um pano de fundo cultural, genealógico, epistemológico e histórico. É
justamente esta perspectiva, que tem como precursor Canguilhem e como representante na
atualidade Fulford, a condição de possibilidade para esta pesquisa. Isto porque, do ponto de
vista normativista, a ascensão do transtorno bipolar do humor infantil deve ser examinada em
consonância com um contexto histórico-social mais amplo relacionado aos valores que
designam aquilo que se concebe como norma e desvio na infância.
Nossa hipótese, portanto, concebe o caso do transtorno bipolar infantil como
paradigmático de um movimento mais amplo, envolvendo uma reconfiguração dos valores
que ditam aquilo que é norma e desvio na infância contemporânea1 e, paralelamente, uma

1
Na mesma direção, Timimi (2010) afirma que “a emergência dessas epidemias psiquiátricas infantis está
dizendo algo sobre como nós do ocidente concebemos a infância”. No original: “The emergence of these
11

reformulação da psiquiatria infantil. Fazer uma pesquisa de tal ponto de vista significa,
sobretudo, supor que o saber psiquiátrico obedece a “alguma necessidade simbólica específica
de nosso universo cultural mais amplo, por mais complexa e problemática que seja sua
definição” (DUARTE, 1997, p. 2). Isto é, significa conceber as categorias psiquiátricas do
mesmo modo que um sintoma na teoria psicanalítica: reveladores, de maneira distorcida, de
um conflito que não se deixa apreender pela consciência de seu tempo (BEZERRA, 2014).
Diante deste quadro, o objetivo desta exposição é investigar a expansão do diagnóstico
de transtorno bipolar em direção à infância a partir de uma perspectiva normativista. Há,
paralelamente, três objetivos específicos. O primeiro deles consiste em traçar um breve
histórico das mutações que a noção de infância vem sofrendo, com ênfase no contexto atual.
O segundo objetivo específico visa um aprofundamento na história da psiquiatria infantil,
procurando destacar suas reconfigurações até as últimas décadas– contexto no qual se inicia a
discussão sobre o transtorno bipolar infantil. Por fim, o último objetivo específico diz respeito
à apresentação do transtorno bipolar infantil, enfatizando principalmente os diferentes atores
sociais envolvidos na propagação deste diagnóstico, bem como as controvérsias em torno
dele. Ademais, a discussão em torno deste caso, nos permitirá observar outros fatores
relacionados aos inúmeros atores envolvidos no processo de alargamento das categorias
diagnósticas, às controvérsias em torno de um diagnóstico e aos detalhes de extensão de um
transtorno para a infância. Este caso permite, portanto, um questionamento sobre um processo
mais amplo que tem lugar tanto na psiquiatria, quanto na cultura. De uma maneira geral,
procuraremos delinear o contexto mais amplo, tanto da infância, quanto da psiquiatria, em que
esta patologia passou a ganhar visibilidade.
Como metodologia, realizaremos uma revisão bibliográfica (CRESWELL, 2007),
acompanhada da elaboração teórica sobre o tema. Nos dois primeiros capítulos nos
dedicaremos a autores de referência do campo, já no último capítulo angariamos artigos nas
principais bases de dados de saúde (PUBMED e LILACS) com os descritores “transtorno
bipolar” e “infância”. Cabe destacar que devido à atualidade do tema, não foi necessário um
corte temporal. Optamos por privilegiar os artigos mais citados.
No primeiro capítulo, realizaremos um percurso das reconfigurações daquilo que se
entende por infância. Embora nosso enfoque esteja nos dias de hoje, uma pequena digressão
no sentido de examinar as reconfigurações sofridas por esta categoria faz-se importante.
Através de autores como Ariès (1987), Elias (2012), Wells (2011) e Costa (1979),

childhood psychiatric epidemics is saying something about how we in the west regard children.” Tradução
nossa.
12

discutiremos como a criança, de uma posição marginal na sociedade, alçou na modernidade


um lugar central, relacionado à noção de uma fase de preparação para a idade adulta que
merece cuidado e proteção. Delinearemos os destinos desta maneira de se conceber a infância
nos dias de hoje, assinalando algumas reconfigurações que esta vem sofrendo, articuladas
principalmente ao seu estatuto de consumidora2, bem como os valores de autonomia e
performance relacionados à ela . Conforme veremos, também na sociologia da infância pode-
se observar um deslocamento semelhante: de um campo de saber marginal e vinculado à
sociologia da família, a sociologia da infância vem se emancipando, procurando pensar a
criança como um ator social com certa autonomia. Prout (2010), ao versar sobre os desafios
da sociologia em discutir uma concepção de infância nos dias de hoje, aponta:
a maior dificuldade talvez seja o tempo que levará para se dialogar mais
diretamente com as ciências biológicas e médicas que, para o bem ou para o
mal, têm um importante papel na compreensão e constituição da infância na
sociedade contemporânea. (PROUT, 2010, p. 749).
É justamente nesta direção – no sentido de articular a infância e psiquiatria – que
encerraremos o primeiro capítulo com uma discussão epistemológica já introduzida aqui. Esta
serve de ponte entre o primeiro e o segundo capítulo, uma vez que versa de uma perspectiva
normativista sobre a articulação dos valores presentes na maneira de se conceber a infância e
a psiquiatria infantil.
Ao tratar o contexto epistemológico da psiquiatria como indissociável de um contexto
social, o segundo capítulo servirá como um complemento do primeiro, na medida em que
traçaremos um breve histórico da psiquiatria infantil. Procuraremos assinalar seu surgimento
enquanto especialidade ou sub especialidade médica, bem como seu panorama nos dias de
hoje. Observaremos que embora a psiquiatria infantil tenha surgido tardiamente, a criança,
segundo Foucault (2001), foi um objeto importante na constituição da psiquiatria moderna.
Traçaremos um breve histórico da psiquiatria infantil, do seu surgimento e de seu panorama
atual, sendo este último abordado principalmente através do Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais Norte Americano (DSM). Cabe ressaltar que o DSM foi escolhido
como um objeto de estudo privilegiado, pois o consideramos não somente como uma reunião
de categorias, mas também um sinal dos deslocamentos conceituais no interior da psiquiatria
e, sobretudo, um sintoma dos processos políticos, culturais e tecnológicos que nos rodeiam
(BEZERRA, 2014). Diante desse quadro, a análise da maneira como as patologias infantis são
apresentadas no DSM é importante, na medida em que concebemos este manual como um

2
Frances (2013) resume de maneira interessante a ligação entre o que chama de novas epidemias, os diferentes
interesses envolvidos nelas, e o estatuto de consumidor galgado pela criança: “torne uma criança de tenra idade
um consumidor que ela provavelmente será sua durante toda a vida” (FRANCES, 2013, p. 145).
13

objeto cultural mais amplo. Isto é, suas edições são entendidas como uma mostra das ideias
médicas vigentes na cultura e também como uma forma de produzir as noções de doença,
diferença e normalidade (ZORZANELLI, 2014).
Ao nos determos na história da psiquiatria infantil e em um exame detalhado das
cinco versões do DSM, nota-se, a partir da terceira versão, um duplo movimento em relação
às psicopatologias infantis: por um lado um alargamento do número de categorias
diagnósticas e, por outro, uma diluição das fronteiras entre as patologias destinadas ao adulto
e aquelas relativas à infância. É justamente neste ponto que o transtorno bipolar infantil se
destaca3: a criança passa a poder ser bipolar, tendo, assim, uma doença crônica. Nota-se que
esta deixa de ter uma patologia especifica da infância, relacionada a uma lógica
desenvolvimentista clássica, isto é, calcada em etapas que serão superadas na fase adulta, para
uma lógica representada pela noção de neurodesenvolvimento que destaca o aspecto crônico
dos transtornos mentais. Nesse sentido, pode-se dizer que a noção de desenvolvimento,
reformulada através da ideia de neurodesenvolvimento, passa a conter uma lógica de
cronicidade, deixando de etapas superadas na infância ao se estender para toda a vida.
No terceiro capítulo, daremos ênfase ao caso do transtorno bipolar infantil, cotejando
autores do campo da psiquiatria que ajudaram a disseminar este diagnóstico e críticos a ele.
Delinearemos os diferentes atores sociais envolvidos na expansão deste diagnóstico,
ressaltando os interesses das indústrias farmacêuticas e de associações de pais. Muito embora
alguns dados epidemiológicos sejam apresentados, nosso enfoque está principalmente na
discussão dos diferentes interesses envolvidos na ascensão deste diagnóstico. Observaremos
que se trata de um fenômeno eminentemente norte americano; no Brasil, nota-se uma espécie
de importação deste modelo, contudo, este transtorno não possui a mesma popularidade
encontrada nos EUA. De uma maneira geral, abordaremos a ascensão da bipolaridade infantil
em sua relação com o contexto mais amplo apresentado nos primeiros capítulos, tanto da
infância, quanto da psiquiatria.
Por fim, cabe ressaltar que aquilo que nos interessa neste trabalho é retirar
consequências de um estudo normativista do caso do transtorno bipolar infantil, ligadas tanto
à pratica clínica, quanto à maneira de se construir o arcabouço teórico da psiquiatria. Não se
trata de questionar a validade deste diagnóstico, deixemos esta tarefa para aqueles que estão

3
Cabe ressaltar que este transtorno não foi inserido como uma categoria diagnóstica no DSM. Este fato, longe de
retirar a importância deste objeto de estudo, suscita uma série de questões que será aprofundada ao longo deste
estudo.
14

inseridos no campo, mas de pode analisar este caso na sua relação com um contexto mais
amplo.
15

1 AS NOÇÕES DE INFÂNCIA: NORMA E DESVIO NO CONTEMPORÂNEO


A discussão em torno do transtorno bipolar infantil nos obriga a articular dois objetos
de estudo: a infância e a psiquiatria. Este diagnóstico passou a ser investigado no contexto de
uma determinada maneira de fazer psiquiatria infantil e de se entender a infância. Estas duas
variáveis – a psiquiatria infantil e a infância – estão intimamente articuladas. Não se trata
somente de uma relação de causa e consequência, mas de uma via de mão dupla: enquanto a
psiquiatria se vincula a certa noção de infância, ela também a cria de maneira performativa.
Isto porque tanto os transtornos psiquiátricos, quanto a infância são parte de um determinado
contexto social recheado de valores que os moldam: a psiquiatria infantil e os sentidos que a
infância ganha na sociedade caminham lado a lado. Cabe ressaltar, conforme veremos adiante
que, ao pressupor que o contexto epistêmico seja indissociável do contexto histórico-cultural,
nos inserimos em uma perspectiva normativista a respeito dos fenômenos da saúde e da
doença (GAUDENZI, 2014a). Ou seja, para analisarmos, no último capítulo, uma patologia,
um desvio, é preciso entender os valores que ditam aquilo que é normal e patológico em certo
contexto, uma vez que são indissociáveis da maneira de se fazer psiquiatria. É justamente
nesta direção que desenvolveremos uma análise crítica, explorando certas teorias a respeito da
sociedade e da constituição subjetiva contemporânea procurando articula-las à questão da
infância e assinalando, no limite, uma (re) configuração desta noção. Em seguida, nos
aprofundaremos em uma discussão de cunho epistemológico que servirá como ponte entre o
primeiro e o segundo capítulo, uma vez que daremos ênfase a uma perspectiva normativista,
articulando norma, desvio e valor.

1.1 A infância moderna: direito e proteção


Aquilo que se entende por infância, como é sabido, não é um dado, mas suas fronteiras
e características variam no tempo, bem como as ciências que versam sobre ela. É importante
ressaltar que não se trata de dizer que a infância de hoje era concebida de maneira distinta
anteriormente: assim que olhamos para o passado o que chamamos de infância hoje se esvai
no tempo. Embora estejamos atentos às armadilhas do anacronismo, nada nos impede de
abordar brevemente os diferentes sentidos atribuídos a este período de vida. Não há, no
entanto, a pretensão de um maior aprofundamento na genealogia desta noção, uma vez que
nosso foco de interesse está nos dias de hoje.
Cabe destacar que a infância entendida como uma entidade separada do adulto é, de
acordo com Ariés (1987), uma invenção moderna. Como nos aponta o autor, até a Idade
Média, por exemplo, não havia o sentimento de infância, ou seja, não havia particularidade
16

infantil: as práticas de infanticídio para controle natal, bem como de abandono infantil eram
comuns nesse período. Elias (2012) indica que a barreira de sensibilidade dos europeus da Idade
Média e do início da Idade Moderna configurava-se de maneira distinta da atual especialmente no que
se refere ao emprego da violência física; a violência entre os homens era mais frequente e as crianças
não recebiam um tratamento especial4. Na mesma direção, Ariés (1987), através de uma iconografia,
procura mostrar como as crianças nas pinturas até o século XVII não eram retratadas sozinhas,
ademais, quando apareciam nas imagens, assemelhavam-se a pequenos adultos. No século XVII,
observam-se as primeiras pinturas de crianças nobres, fato tratado por Ariés (1987) como um sintoma
de uma mudança do estatuto da infância na sociedade. Foi também nesse século que os retratos de
família tenderam a se organizar em torno da criança que se tornou o centro da composição. A
família configura-se como um lugar chave no qual a preocupação em torno da criança se
desenvolve: o pequeno ser humano torna-se, aos poucos, a “sua majestade, o bebê” de que nos
fala Freud (1914/1974).
Embora este contexto alavanque aquilo que Ariés (1978) denominou de “descoberta da
infância” (p.50)5, a reconfiguração da família e do estatuto ocupado pela criança
evidentemente não foi fruto de uma pura “descoberta”, pois uma série de transformações
sociais impulsionou esta mudança; dentre elas, pode-se destacar a ascensão dos ideais
formulados no Iluminismo, o avanço da medicina e a consequente diminuição da mortalidade
infantil. É importante ressaltar que a ideia de uma descoberta da infância é criticada por
alguns autores (WELLS, 2011; ELIAS, 2012). As críticas vão principalmente na direção de
apontar a valorização excessiva de Ariés (1978) no que concerne a uma “ausência da ideia de
infância” na Idade Média. Muito embora todos concordem que antes do século XVII a
visibilidade e idiossincrasias atribuídas a este período da vida eram menores, os autores
supracitados afirmam que não é possível se falar de uma descoberta, mas de um processo no
qual a criança ganha diferentes papéis na sociedade. Wells (2011), por exemplo, argumenta
que a significância social e política que a criança atingiu principalmente no século XIX e XX
4
Uma reportagem recente sobre a descoberta de uma grande quantidade de esqueletos de bebê em Atenas retrata
de maneira simples esta problemática. Muitos dos crânios de bebê encontrados possuíam marcas de violência
física, ademais a quantidade de esqueletos de crianças impressionou os pesquisadores.
(http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/descoberta-de-450-bebes-em-um-poco-de-atenas-evidencia-
concepcao-da-infancia-na-grecia-antiga-16503923)
5
Um processo semelhante é discutido por Costa (1979) no Brasil. O autor destaca que a noção de infância, no
contexto brasileiro do século XIX, foi bastante influenciada pela medicina higienista. De acordo com Costa
(1979), verifica-se uma mudança na maneira de se conceber a criança. Esta, no Brasil, permaneceu prisioneira do
papel social do filho até o século XIX, que por sua vez, ocupava um lugar puramente instrumental dentro da
família. Sua existência não passava por nenhum conteúdo de ordem positiva: era percebida negativamente em
relação ao adulto. Foi através dos conceitos de evolução, de diferenciação e de desenvolvimento que aos poucos
foram introduzidas, principalmente pela medicina higienista, uma continuidade entre a criança e o adulto.
17

não foi descoberta ou revelada, nem mesmo assinala o nascimento espontâneo de uma nova
sensibilidade. A infância moderna para o autor foi produzida por novas racionalidades e
técnicas de governamentalidade6 que modelam as formas de pensar a criança (WELLS, 2011).
Já para Elias (2012), o descobrimento da infância jamais termina, ou seja, está sempre sendo
refeito através do processo civilizador, cujo grau é variável de tempos em tempos. Há momentos em
que a sociedade “descobre a infância” e outros em que ela é esquecida. Para o autor, descobrir
a criança significa, em última medida, dar conta da sua relativa autonomia, ou, em outras palavras,
definir que ela não é simplesmente um pequeno adulto (ELIAS, 2012). Embora a concepção dos
autores – Ariés, Elias e Wells – tenham pontos de discordância, para todos é inegável que na
modernidade a criança alçou outro estatuto na sociedade.
Paralelamente, Donzelot (1980) descreve uma reconfiguração da família: a mulher
burguesa é circunscrita como responsável pela transformação de suas crianças em virtuosos
cidadãos e burgueses competentes. Em um segundo momento, no entanto, além da família,
outras instituições foram criadas para a educação das crianças, como as escolas, por exemplo.
Inicia-se, assim, um longo processo de enclausuramento das crianças (semelhante ao dos
loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estende até nossos dias ao qual se dá o nome de
escolarização (ARIÉS, 1978).
A partir de então, entende-se que a criança deve ser cultivada para se tornar um adulto,
fato correlato ao nascimento da escola como meio de educação Neste momento, a criança
deixa de ser misturada aos adultos, sendo direcionada para a escola que funciona como uma
espécie de quarentena para que posteriormente possa participar do mundo social adulto. Desta
forma, a figura da criança alça uma visibilidade expressiva, passando a ser vista como
“entidade físico-moral amorfa” que necessita ser educada para a sua ascensão à posição de
cidadão (COSTA, 1979, p.174). Seguindo as indicações de Elias (2012), no curso do processo
civilizador, no qual a cada momento há um modelo específico de regulação de afetos e
pulsões, se estabelece que a criança incivilizada ceda lugar ao adulto mais ou menos
civilizado. A criança torna-se algo que se deve cultivar e educar e não simplesmente modelar
à força; para usar os termos de Rose (1990), torna-se um “cidadão em potencial”. Nota-se que
a associação do infantil a um traço a ser abolido para que se torne adulto remete a uma lógica
que privilegia o desenvolvimento, lógica esta que, conforme veremos adiante, é importante
para a psiquiatria do século XX. A ideia desenvolvimentista da infância é baseada na noção
6
O conceito de governamentabilidade foi introduzido por Michel Foucault, podendo ser entendido, grosso modo,
como a análise das práticas de governo, discursivas e performáticas, operando no sentido de tornar evidentes os
processos pelos quais são produzidas verdades e, sobretudo, subjetividades. Nikolas Rose explora esta temática
buscando articular o surgimento dos saberes e práticas psicológicas com os modos liberais de governo em
diferentes contextos (MILLER & ROSE, 2008).
18

de um desenvolvimento natural: a criança vista como “selvagem” é a precursora do homem


civilizado adulto (ELIAS, 2012).
A criança moderna se tornou foco de estratégias de governamentabilidade com o
intuito de salvaguarda-la de danos físicos, sexuais e morais e, sobretudo, assegurar o seu
desenvolvimento normal (ROSE, 1990). Conforme nos aponta Wells (2011), do século XVIII
em diante, observa-se uma expansão gradual das tecnologias de governamentabilidade que
impulsionam a construção da ideia de uma verdadeira infância. A criança passou a ser um
problema específico de governamentabilidade. Estabelece-se assim uma série de normas que
se instauram no sentido de gerir a vida da criança, normas de cunho disciplinar características
da sociedade moderna. Estas dizem respeito a uma forma de exercício de poder que opera no
sentido da docilização dos corpos através de uma política de coerções com base no
fechamento e ordenamento dos espaços e, sobretudo, na vigilância (FOUCAULT, 1990). Nas
sociedades disciplinares, o poder tem como função o adestramento feito através da criação de
instituições, como a escola, e do uso de instrumentos, como o exame. Produz-se o “sujeito
disciplinado” que, de acordo com Deleuze (1992), não cessa de passar de um lugar fechado
para outro: da família para a escola, para a fábrica, para o hospital, eventualmente para a
prisão e por fim ao túmulo.
Concomitantemente ao estabelecimento de inúmeras instituições com o intuito de
regular o comportamento infantil, há a configuração de uma série de especialistas que versam
sobre a maneira de educar crianças, bem como a formalização de regimes de disciplina que
devem caracterizar um desenvolvimento normal (NADESAN, 2010). Este processo atinge seu
ápice a partir primeira metade do século XX, quando, conforme veremos no próximo capítulo,
a especificidade da infância é estudada pela psicanálise, psicologia, pedagogia e psiquiatria.
Conforme afirmamos anteriormente, de uma maneira geral, a criança passou a ser entrevista
como um alvo constante de vigilância, principalmente devido a seu estatuto de preparação
para a idade adulta. Wells (2011) argumenta que a emergência da ideia moderna de infância
coincide com certa forma de se exercer o poder disciplinar e avança na direção de um
biopoder ou uma política da vida. Nesse sentido, de acordo com o autor, os discursos
desenvolvimentistas são centrais na regulação da vida, regulação esta que caracteriza o
biopoder. Quando a própria vida torna-se um alvo de tecnologias de poder, as crianças, sua
gestação, seu nascimento, bem como o contorno de seu desenvolvimento normal destacam-se
como objetos de governabilidade. O governo da vida na infância visa circunscrever aquilo que
pode retardar ou interromper o desenvolvimento normal no campo de saberes médicos ou
judiciários, por exemplo. Ademais, Foucault (1990) alerta que as políticas da vida
19

configuram-se como o lugar de demandas de direito: ter direito a algo é também uma maneira
de alargar o alcance do poder. Os séculos XIX e XX são justamente marcados por uma serie
de conquistas de direitos da criança7. Na psiquiatria, conforme veremos no próximo capítulo,
também se observa um movimento parecido: há uma mudança da ausência de visibilidade em
relação às particularidades da infância para o nascimento de uma militância na direção do
avanço das discussões teóricas da psiquiatria infantil com o objetivo de alargar o acesso ao
tratamento médico para as crianças8.
O avanço de discursos na direção do cuidado da infância foi impulsionado, seguindo
as indicações de Conrad e Schneider (1980), principalmente devido às características
privilegiadas na construção da infância moderna: a inocência, a dependência e a condição de
preparação para a fase adulta. Ou seja, a infância tornou-se alvo de cuidado e olhar atencioso
principalmente no que concerne às possibilidades de desvio do desenvolvimento normal,
sendo o papel da psiquiatria mapea-los para trata-los. Diante deste quadro, configura-se o
cenário que Nadesan (2010) denomina de “infância em risco” (p.3): sobretudo as crianças das
classes mais altas da sociedade9 passaram vistas, principalmente a partir da metade do século
XX, como em risco no campo educacional, cultural e ambiental, requerendo cuidado parental
e de instituições apropriadas desde a primeira infância. Conforme nos aponta a autora, o
ambiente que cerca esta faixa etária tornou-se potencialmente perigoso: a preparação
acadêmica inadequada, a televisão, a alimentação, os brinquedos – tudo isso se configura
como um cenário arriscado. Com o crescente alarde em torno da vulnerabilidade desta faixa
etária, uma série de profissionais se estabelece como detentora de saber sobre as crianças.

7
Dentre eles destacam-se a criação em 1919 da organização internacional não governamental “Save the children”
que colaborou ativamente para a elaboração da Declaração de Genebra adotada pela Sociedade das Nações,
em 1924. Esta foi a base da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989. No Brasil, além das
contribuições trazidas pela constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990, é um
marco importante no que concerne aos direitos infantis.
8
Conforme veremos no próximo capítulo, o discurso de Kanner (1935/1971) é emblemático deste novo
paradigma.
9
É importante destacar, assim como apontam Nadesan (2010) e Wells (2011), que a necessidade de proteger as
crianças se instaura principalmente em relação à criança branca, burguesa, europeia ou norte americana. Um
exemplo dado por Wells (2011) retrata bem esta situação. Durante o domínio inglês do Zimbábue, enquanto as
crianças brancas eram impedidas de trabalhar e obrigadas a frequentar a escola, o cenário era diferente em
relação às crianças negras. O ato administrativo nacional da juventude (1926) feito pelo governo britânico
obrigava as crianças coloniais negras a trabalhar e, caso não cumprissem esta medida, poderiam ser espancadas
e/ou presas. Cabe ressaltar que isto ocorreu depois de leis antitrabalhistas para crianças foram aprovadas no
Reino Unido (1833). Ou seja, ao mesmo tempo em que o estado Inglês estava engajado em políticas de proteção
social para as crianças brancas no território europeu e nas colônias, excluía as crianças afrodescendentes de tal
política (WELLS, 2011).
20

Este processo ganha destaque principalmente no pós-guerra, quando há o aumento dos


estudos da ligação entre o bebê e sua mãe através das noções de attachment, bonding ou early
objects relation. A criança passa a ser estudada tanto como produto de uma família, quanto
destacada da vida cotidiana familiar. Configura-se assim uma nova criança para a episteme do
século XX, fato consolidado principalmente no pós-guerra. É neste contexto que a psiquiatria
infantil galga espaço como uma especialidade ou subespecialidade médica, se destacando
como uma ferramenta importante para o estabelecimento da ideia da infância em risco. Diante
deste quadro, principalmente nos EUA, conforme veremos no próximo capítulo, clínicas
voltadas para atendimentos de pais e crianças são criadas com o intuito de fornecer uma
espécie de aconselhamento familiar. As clínicas de aconselhamento familiar, de acordo com
Nadesan (2010), são uma espécie de “social welfare institutions” (p.2) o que indica a sua
articulação a uma política de bem estar social voltada para a infância. As políticas públicas e
também a medicina se estabelecem como campos que afirmam a necessidade da criança ser
protegida e cuidada: deve-se agir principalmente na direção de salvaguardar seus direitos.
Conforme apontam Nadesan (2010)10 e Wells (2011), este cenário foi se
reconfigurando significativamente ao longo da segunda metade do século XX e
principalmente no século XXI, o que coincide com uma reconfiguração do papel social da
infância. A generalização de uma economia de mercado calcada principalmente no
neoliberalismo, de acordo com os autores, obrigou a repensar a questão do risco na infância.
Este novo cenário político-econômico influenciou de maneira clara a forma de se governar a
infância: a política de proteção tornou-se política de direitos. Esta transição pode ser notada,
por exemplo, pela diferença de enfoques da Convenção sobre os Direitos da Criança adotada
pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 198911 e sua ratificação de 21 de setembro de
199012. Na tradução brasileira desse primeiro documento encontramos a seguinte passagem:

10
Nadesan (2010) disserta sobre a infância sob a ótica do risco e as formas de governamentabilidade
direcionadas a esta. A autora assinala uma reformulação destas práticas século XXI principalmente na passagem
de uma política de bem estar social para a lógica neoliberal. Destaca-se, no campo da saúde, o deslocamento da
ênfase de riscos em relação a agentes patogênicos externos para riscos genéticos. As pesquisas em biogenética
alavancaram este paradigma na infância e também a testes genéticos realizados com o feto. Na mesma direção, o
transtorno bipolar infantil começou a ser discutido como uma série de sintomas que indicava um risco de
desenvolvimento da bipolaridade quando adulto. No entanto, conforme veremos no terceiro capítulo, este
transtorno deixou de ser considerado apenas um risco para tornar-se uma patologia portada pela criança.
11
A Convenção internacional sobre os direitos da criança é um tratado que visa à proteção de crianças e
adolescentes de todo o mundo, aprovada na Resolução 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de
novembro de 1989. O interesse em torno da questão dos direitos da criança é observado desde a Declaração de
Genebra, de 1924. Com o fim da segunda guerra mundial, este quadro ficou mais claro através da criação
da ONU e sua subsidiária específica para a criança - a UNICEF.
21

Convictos de que a família, elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o
crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber
a proteção e a assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu papel na
comunidade; Reconhecendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua
personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e
compreensão; (p. 3)

Observa-se, através deste trecho e ao longo do documento a ênfase na proteção das


crianças. Embora este discurso não tenha sido abandonado, na ratificação deste documento, o
enfoque recai em outra direção, a saber: de uma política de direitos em relação à infância
(WELLS, 2011). Isto por ser observado, por exemplo, através dos artigos décimo terceiro:

A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de


procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem considerações de
fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha
da criança. (p.18)

O artigo seguinte (décimo quarto) também comporta um teor parecido:

Os Estados Partes respeitam o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e


de religião. (p.18-19)

Nota-se que a ênfase destes trechos está na importância de reconhecer a agência da


criança na constituição do seu mundo social e cultural (WELLS, 2011)13. Ou seja, a criança,
além de ser protegida, também passa a ser entendida como um ator social de direitos. Este
redirecionamento na maneira de se pensar a infância pode ser entrevisto através dos estudos
sociais em torno da criança.

1.2 A criança como agente: a “nova” sociologia da infância


A partir da década de 90, tem início um debate no campo da sociologia da infância que
marca a sua separação da sociologia da família e da sociologia da educação. Prout e James
(1997) afirmam que ambos os campos deram pouca importância para a criança como ator
social. No entanto, a tradicional posição da infância às margens no campo das ciências
sociais, bem como sua localização primária no campo da psicologia do desenvolvimento e da
educação, começou a mudar nos anos 90 quando se iniciou um movimento importante na
direção de remediar esta negligência. É assim que a sociologia da infância torna-se um campo

13
Um processo semelhante pode ser notado no contexto brasileiro. De acordo com Rizzini e Plotti (2011), na
Constituição Federal de 1988, mais especificamente o artigo 227, procura-se enfatizar a proteção de qualquer
forma de abuso. Dois anos mais tarde, sob um novo paradigma jurídico, político e administrativo, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990) vem reafirmar essa defesa, com ênfase principalmente na questão dos direitos
das crianças e no atendimento a esses sujeitos como parte integrante das políticas sociais,
22

autônomo que busca novos métodos e definições para discutir o estatuto da infância (PROUT,
2010)14.
Segundo Prout e James (1997), a história dos estudos sociais da criança não é marcada
pela ausência de interesse na criança, mas pelo silêncio em relação a ela. Os estudos baseados
na teoria da socialização15 de Emile Durkheim que abordavam a infância como apenas um
campo sobre o qual os adultos praticam uma ação de transmissão cultural deram lugar a
perspectivas de assimilação cultural, ou de interações sociais com significado. Em um
primeiro momento, o interesse da sociologia pela infância foi impulsionado principalmente
pelo crescimento do campo da sociologia interpretativa, do interacionismo simbólico e, mais
recentemente, do estruturalismo e da semiologia (PROUT & JAMES, 1997; PROUT, 2000).
O trabalho de Ariés (1978) foi pioneiro no que concerne a um viés social construtivista em
relação à infância, abrindo novas perspectivas neste campo. Já no campo da sociologia
interpretativa, mais do que uma determinação por sistemas sociais de organização, reivindica-
se a ideia de uma produção criativa da vida social 16. Nesta perspectiva, enquanto intérpretes,
as crianças podem ser entendidas como uma fonte de mudança social. A etnografia torna-se
uma metodologia importante nos novos estudos sobre a infância, uma vez que permite as
crianças serem ouvidas mais diretamente na produção de dados sociológicos, distinguindo-se
das pesquisas usualmente feitas através de “surveys” com adultos que as cercam. Os estudos
etnográficos pretendem encorajar os pesquisadores a focar no papel social que a criança
desenvolve, bem como nos significados que elas atribuem a sua vida e ao mundo (PROUT &
JAMES, 1997; QVOTRUP, 1997; SARMENTO, 2008). Nesse sentido, a nova matriz teórica

14
Prout (2010) indica que é evidente que esta nova perspectiva dos estudos sociais estava associada a um
movimento mais amplo no papel social da infância. Uma questão importante, que nos aprofundaremos adiante, é
sua ascensão enquanto consumidora. O autor indica que uma série de livros lançada a partir dos anos 80 serve de
indicativo desta reconfiguração da concepção da infância na cultura geral. Dentre eles destacam-se: ELKIND
(1981) The hurried child: growing up too fast, too soon e POSTMAN (1982) The Disappearance of Childhood.
A esse respeito, Prout comenta: “um indicador disso são os textos semiacadêmicos e populares dessa época que
anunciavam o ‘desaparecimento da infância’. Postman é bem conhecido, mas há inúmeros outros. Não seria
muito difícil desmentir esses críticos. Mas o fato é que eles ajudaram a ver que as velhas ideias sobre a infância
já não eram adequadas, que estava ocorrendo então, como ocorre ainda hoje, uma modificação no caráter da
infância. Inclusive, em alguns aspectos, esses críticos estão corretos ao assinalar o enfraquecimento das
fronteiras entre a infância e a idade adulta.” (PROUT, 2010, p. 731-732).
15
Conforme aponta Samento (2009), a emergência do discurso sociológico centrado na infância toma por
referência uma revisão crítica do conceito de “socialização”, sendo as crianças analisadas como atores no
processo de socialização e não como destinatários passivos da socialização adulta.
16
Segundo James (1997), estas questões estão intimamente ligadas com uma preocupação contemporânea dos
estudos em sociologia: trata-se do debate entre a agência e a estrutura.
23

dos estudos sociais da infância17 ajudou o abandono da ideia de um modelo naturalista de


socialização e desencadeou críticas em relação à noção de desenvolvimento de maneira
universal e linear: ao invés de conceber a criança como um tipo universal, esta foi pensada
como um intérprete competente do mundo social.
Embora a sociologia da infância seja um campo ainda embrionário, há linhas distintas
de pensamentos. Prout e James (1997), por exemplo, inspirados em Giddens, afirmam que
um caminho interessante seria aquele de pensar na direção de uma terceira via, concebendo as
crianças tanto a partir de sua agência no mundo, quanto a partir de processos que moldam
suas vidas nos quais elas não estão necessariamente envolvidas. Prout (2010), alguns anos
mais tarde, chama esta direção de “obsoleto caminho do meio” e afirma que é preciso
fomentar uma lógica do “terceiro incluído” (p. 739) através das noções de
interdisciplinaridade, hibridismo, redes e mediações e mobilidade.
Ainda que não haja um acordo dos destinos da sociologia da infância, é evidente que
um novo campo se consolida voltado especificamente para a criança. Há, no entanto, ao
menos um consenso: a “nova” sociologia da infância18, como denominam alguns autores19,
visa, grosso modo, dar voz a infância, evitando pensá-la estritamente em relação à família e
negativamente em comparação aos adultos. De maneira geral, o que este paradigma
emergente pretende é estudar a criança a partir de si própria e não somente como receptáculo
dos ensinamentos dos adultos. O objetivo é reformular o papel que estas têm nos processos
legais e administrativos que desencadeiam profundos efeitos em suas vidas, mas frente aos
quais elas não são consultadas. Nesse sentido, para os autores, proclamar um novo paradigma
dos estudos sociais da infância é também estar engajado no processo de reconstruir o papel da
infância na sociedade. Prout e James (1997) indicam que as crianças são um grupo minoritário
com pouca influência na direção e qualidade de suas vidas. Qvortrup (1997), por exemplo,
procura demonstrar como há ausência de dados extraídos das próprias crianças em estatísticas

17
Esta nova matriz teórica não consiste em um todo homogêneo. Conforme apontam Sarmento (2008), pode-se
dizer que a sociologia da infância está polarizada em três grandes correntes teóricas da sociologia: a estrutural; a
interpretativa e os estudos ancorados na perspectiva crítica. Um maior aprofundamento nestas correntes
extrapolaria o objetivo deste trabalho. Procuramos extrair as consequências mais gerais destas perspectivas.
18
Cabe ressaltar que este novo paradigma, iniciado nos anos 90, vem sendo redefinido e rediscutido ao longo
dos anos. Um série de questões importantes foi abordada em 2002 no oitavo encontro anual da Associação
Alemã de Sociologia sobre a sociologia da Infância no Max Plank Institut fur Bildunsforschung em Berlim.
Prout (2010) faz um apanhado geral das discussões recentes apontando para os avanços e desafios que este
campo enfrenta principalmente de acordo com o autor na direção de ultrapassar as oposições dicotomizadas da
teoria social moderna.
19
Dentre eles estão: Prout e James (1997), Qvortrup et. al. (1994), Sarmento (2008). No Brasil há um grupo na
UFRJ liderado por Castro (2013) que também faz publicações nesta direção.
24

públicas. Ao caracterizar as crianças como um grupo minoritário, esses autores começam a


tecer práticas que visam aproximar seus estudos ao de outros grupos minoritários, como do
campo do feminismo e da transexualidade. Conforme nos aponta Proust (2010), há uma
preocupação na sociologia da infância em relação ao “terceiro excluído”, ou seja, deve-se
fazer assim como a sociologia feminista que desviou o foco das “mulheres” para se preocupar
com “gênero”. As crianças, de acordo com o autor, devem ser entendidas como produtos “da
interação complexa, das redes e da orquestração de diferentes materiais naturais, discursivos,
coletivos e híbridos.” (PROUT, 2010, p. 747).
Diante desse quadro, Prout (2010) indica que estamos lidando com uma nova maneira
de se conceber a infância. Na mesma direção, Castro (2013) afirma que a lógica
desenvolvimentista, presente tanto na psiquiatria quanto na sociologia da infância no século
XX, foi deslocada dando lugar para as noções de competência e agência. A noção de
competência, segundo a autora, está inserida em uma concepção de sujeito individualizado,
entendido como independente dos demais, guiado pela razão e capaz de decidir e escolher
sozinho. Enquanto a noção desenvolvimentista buscava enfatizar a diferença entre o adulto e a
criança, a nova sociologia da infância “tenta minimizar a diferença para fazer de adultos e
crianças igualmente competentes na sua aquiescência ao sistema.” (CASTRO, 2013, p.20)20.
No entanto, esta nova perspectiva possui ao menos dois desafios: criar um espaço para
a infância no discurso sociológico e enfrentar a crescente complexidade e ambiguidade da
infância como um fenômeno contemporâneo e instável (PROUT, 2010). De acordo com Prout
(2010) e Castro (2013), o capitalismo tardio desencadeou um processo através do qual o papel
do jovem e da criança na cultura está em constante redefinição, marcando uma diferença
importante da posição social que a criança vinha ocupando na sociedade moderna. Enquanto
consumidora, a criança foi alçada ao mesmo status do adulto. Desmonta-se, assim, a visão de
que as crianças deveriam esperar por um tempo ulterior para se integrarem na dinâmica social
(CASTRO, 2013). Rose (1990) afirma que elevar a criança ao status de cidadão 21, fazendo
dela equivalente aos outros membros da sociedade é um processo intrínseco ao sistema
econômico capitalista.

20
Referindo-se a homogeneização das noções de adulto e criança, a autora cita uma passagem de Adorno e
Horkheimer bastante interessante: “Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança”
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985 apud Castro, 2013)
21
Na esteira do pensamento de Rose (1990), a ascensão da criança à posição de cidadão impõe obrigações, mas
também direitos. Embora esteja envolvida uma série de fatores, de uma maneira geral, as discussões recentes no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) bem como em torno da redução da maioridade penal que vem
sido empreendida nos dias de hoje podem ser lidas por esta chave de pensamento.
25

1.3 A infância como consumidora


O estatuto de consumidor da criança permite, mas também alavanca, a reconfiguração
da noção da infância na sociedade. Segundo McNeal (1987) até meados do século XX, a
infância era concebida apenas como um consumidor em potencial. De acordo com o autor, há,
no entanto, nas últimas décadas, uma mudança importante: da infância vista como uma fase
na qual os pais devem economizar para assegurar seu futuro, para a infância enquanto
consumidora.
A infância passa assim a responder às necessidades mercadológicas enquanto
personagem midiático do novo imaginário capitalista. (ESTELLITA-LINS, 2002). Este
cenário pode ser entrevisto através da questão em torno da publicidade infantil. No livro Born
to buy, Schor (2004) procura demonstrar como a criança se tornou um campo de mercado
importante na medida em que o sistema neoliberal necessita produzir constantemente novos
consumidores. De acordo com Kurnit (2000), as empresas de marketing americanas no século
XXI alargaram seu alcance na direção da infância: nas últimas duas décadas há, por exemplo,
a criação de uma nova categoria – “toddlers” - que vai de zero a dois anos. As propagandas
direcionadas para crianças cada vez mais novas visam familiariza-las a certas marcas o mais
cedo possível, com a promessa de que a escolha destas marcas se estenderá para toda a vida
(MCNEAL, 1992). O aumento de uma perícia das companhias de marketing sobre a infância
está diretamente relacionado a um investimento em pesquisas, tanto baseadas em surveys
quanto etnográficas, no sentido de mapear os interesses infantis. É evidente que se trata de
uma via de mão dupla: o mapeamento levará a certas estratégias de marketing que, por sua
vez, são produtoras de desejo na infância.
O que nos interessa é que um enorme complexo mercadológico vem se formando em
torno das crianças, sinalizando uma reconfiguração do lugar que esta ocupa na dinâmica
social. A educação, conforme nos aponta Schor (2004), é outro campo em franca ascensão no
que concerne a lógica mercadológica, tornando-se um negócio bastante rentável. No campo
das indústrias farmacêuticas, articulado diretamente com a produção de novas doenças como
o transtorno bipolar infantil, observa-se que esta lógica esta intimamente presente. Angell
(2007), por exemplo, visa demonstrar como as necessidades mercadológicas orientam as
pesquisas científicas de produção de medicamentos a despeito de sua eficácia clínica.
Segundo a autora, os esforços das indústrias farmacêuticas se localizam principalmente na
direção de angariar novos mercados consumidores, sendo a infância um importante alvo neste
processo. Angell (2009), conforme veremos no terceiro capítulo, comenta o caso do transtorno
bipolar infantil, assinalando que o conflito de interesse principalmente de Joseph Biederman,
26

um de seus maiores defensores, foi determinante na criação desta categoria diagnóstica. Além
disso, de uma maneira geral, pode-se dizer que a infância obtém um papel importante, senão
decisivo, na lógica de prorrogação da patente de medicamentos. Nos EUA, por exemplo, caso
um medicamento tenha seu uso aprovado pela FDA para a infância, sua patente pode ser
estendida em até seis meses (ANGELL, 2007). Este fato impulsiona pesquisas de
medicamentos para crianças e desloca os olhares para esta faixa etária.
As crianças tornam-se, portanto, um campo mercadológico importante. Isto porque
elas, de acordo com McNeal (1987), constituem três mercados em um. O primeiro deles é
aquele vinculado à própria criança, impulsionado por produtos reservados exclusivamente
para esta faixa etária. O segundo interesse consiste na sua condição de mercado consumidor
futuro. Para tal, deve-se desde cedo “educá-las” no sentido de consumir determinados
produtos. O terceiro aspecto, aprofundado por Schor (2004), é chamado de “marketing de
influência”. Isto é, estima-se que as crianças influenciem enormemente as escolhas dos
próprios adultos. Ainda segundo a autora, as empresas de marketing apostam que as crianças
não exercem influência somente de maneira direta, como pedindo para comprar certos
produtos, mas ajudam a “treinar” seus pais a adquirir os itens que preferem (SCHOR, 2004).
Explica-se, assim, o investimento maciço no marketing direcionado para a infância.22
No entanto principalmente a partir de 2004 se inicia uma discussão tem torno da questão da
propaganda infantil. O catalisador deste debate nos EUA foi a crescente preocupação em
torno da obesidade. Para os defensores de uma maior regulamentação das propagandas
infantis, o marketing alimentício é uma das maiores causas do estabelecimento de certos
hábitos alimentares nas crianças. De uma maneira geral, destacam-se dois posicionamentos
distintos em relação à publicidade voltada para a infância, posicionamentos estes que refletem
dois sentidos concebidos a criança. Há aqueles que afirmem, grosso modo, que as crianças
não são capazes de distinguir entre uma propaganda que visa convencê-las a comprar um
produto de uma programação desinteressada. Nesse sentido, o marketing infantil deveria ser
regulamentado e quiçá proibido. A posição da APA (American Psychological Association) vai
nesta direção quando justifica que crianças com a idade de até oito anos são incapazes de
compreender o viés intencional das mensagens das propagandas de televisão, aceitando-as
22
Em 2007, por exemplo, as empresas norte americanas gastavam em média 17 bilhões de dólares anualmente
em publicidade para crianças, o que é mais do dobro do que se gastava em 1992. É curioso notar que em 1983,
há o registro do gasto de apenas 100 milhões de dólares em publicidades de produtos infantis. A internet aparece
com um campo em potencial para esse tipo de propaganda, uma vez que está fora do escopo da maioria dos
regimes regulatórios de propaganda. . Nos EUA, por exemplo, o site da Nickelodeon’s ( www.nick.com) teve o
maior lucro dentre todos os sites para adultos e crianças entre julho de 2004 e julho de 2005: nove milhões e
seiscentos mil dólares. (dados disponíveis em: http://www.apa.org/pubs/info/reports/advertising-
children.aspx. Acesso: 21/07/15).
27

como verdades. Nesse sentido, a associação recomenda que as propagandas para crianças até
oito anos sejam restritas (APA, 2004)23. Também em outros países nota-se um posicionamento
semelhante. Na Suíça, por exemplo, desde 1991 foram proibidas propagandas durante a
programação infantil. No Reino Unido em 2008 foram banidas propagandas para crianças e
adolescentes de até 16 anos. No Brasil, o Conanda24 aprovou em março de 2014 a resolução
16325 que considera o marketing feito diretamente para crianças abusivo, logo, ilegal. A partir
de então, são proibidas propagandas impressas em produtos, na televisão e até mesmo banners
em sites e materiais escolares.
A proibição do marketing direcionado para a infância não é, contudo, uma posição
unânime. Nos EUA, por exemplo, a organização que representa os publicitários, as agências
de publicidades e a mídia em geral denominada Responsible Advertising and Children
Programme (RACP) advoga que não há a necessidade de proibição da propaganda infantil.
Argumenta-se a favor de campanhas educacionais, reivindicando que crianças e pais bem
informados têm autonomia de interpretar criticamente os comerciais. A informação, neste
sentido, seria crucial para inserir as crianças no mundo atual, no qual nos deparamos com
frequência com uma série de propagandas26. A aposta é de que uma política de
regulamentação articulada a campanhas educacionais permitem que o marketing infantil seja
feito de maneira consciente. De uma maneia geral, o que nos interessa no que concerne a
estas diferentes posições é uma espécie de oscilação entre duas concepções distintas, mas não
opostas, em relação às crianças: o primeiro afirma que estas devem ser protegidas e a
segunda, que devem ser educadas de maneira a escolher seus direitos.
Embora a noção de infância oscile entre a ideia de dependência e agência, enquanto
consumidora, a criança alçou uma grande visibilidade, angariando um novo estatuto associado
à ideia de autonomia e de direitos. Nadesan (2010), por exemplo, nos alerta para o fato de que
a economia de mercado é de extrema importância para a maneira em que elaboramos as
políticas públicas em relação à infância. A autora conclui seu livro sobre as políticas de risco
23
Disponível em: http://www.apa.org/pubs/info/reports/advertising-children.aspx. Acesso: 21/07/15
24
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Trata-se de um órgão de caráter
deliberativo previsto no artigo 88 da lei no 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Consiste em uma parte da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).
25
A resolução 163 está disponível online no seguinte endereço:
http://www.mpba.mp.br/atuacao/infancia/publicidadeeconsumo/conanda/resolucao_163_conanda.pdf
Acesso: 21/07/15
26
Referências retiradas do site http://www.responsible-advertising.org/advertisingandchildren.asp Acesso:
21/07/2015.
28

na infância afirmando que o futuro ainda é incerto, mas que um fato é inegável, a saber – que
as formulações da infância que destacam os aspectos de dependência e vulnerabilidade
demandando uma atenção psicossocial serão desafiadas pelo novo ambiente econômico que,
por sua vez, demanda soluções de problemas na direção do gerenciamento de riscos de
maneira individualizada.

1.4 Performance e autonomia na infância


Tanto através do exemplo da sociologia da infância, quanto a partir da questão em
torno da criança elevada ao estatuto de consumidora, pode-se notar uma reconfiguração do
papel social e, logo, da noção de infância nos dias de hoje. A infância deixou de ser entendida
somente como preparação para a fase adulta, consolidando-se uma concepção calcada nas
ideias de competência e agência. A ideia de competência, segundo Castro (2013), está inserida
em uma noção de sujeito individualizado, entendido como independente dos demais, guiado
pela razão e capaz de decidir e escolher sozinho.
Esta nova perspectiva se associa a uma mudança mais ampla no regime de poder: um
deslocamento da sociedade disciplinar para uma sociedade de controle mais bem
desenvolvida por autores como Deleuze (1992). As transformações dizem respeito a uma
dissolução dos limites institucionais no exercício do poder. Conforme desenvolvemos
anteriormente, a sociedade disciplinar se caracteriza pelo confinamento à interioridade dos
espaços, enquanto nas sociedades de controle a vigilância se expande para os espaços
abertos. O fim dos contornos bem definidos, assim como os muros das instituições, indica
também o apagamento dos limites entre dentro e fora, público e privado. Na sociedade de
controle, o poder passa a operar através dos dispositivos informacionais, possibilitando
modulações intermitentes dos corpos. A formação, por exemplo, torna-se contínua e
permanente: não se trata mais de seguir moldes, mas de modular-se continuamente. De acordo
com Chevitarese e Pedro (2005), enquanto a norma moderna estabelecia uma lógica dual (na
escola, por exemplo, “aprovação/ reprovação”), o contemporâneo apresenta-se como um
horizonte infinito e incomensurável de maximização de desempenhos e competências. Essas
regras não são mais calcadas na obediência e disciplina. As palavras de ordem dos dias de
hoje giram em torno da flexibilidade e de uma constante mudança. Na mesma direção, Lima
(2005) indica que a educação deixa de estar atrelada a uma função familiar, tornando-se
dirigida por pessoas equipadas para o “empreendimento, para a imprevisibilidade, para o
autocuidado e a adaptação rápida a mudanças.” (LIMA, 2005, p.41). As exigências que se
impõem aos sujeitos dizem respeito a uma “adaptação permanente a um mundo que perde
29

precisamente sua permanência, um mundo instável, provisório, feito de fluxos e de trajetórias


irregulares" (EHRENBERG, 2010, p. 132).
Ehrenberg (1995) atesta que estas exigências pressupõem um indivíduo fechado em
si mesmo, uma entidade autogovernada. Segundo o autor, a ideia de autonomia se apresenta
como uma espécie de injunção ao indivíduo contemporâneo que se torna impelido a responder
a uma exigência de independência. Entende-se, assim, o sujeito como uma criatura
completamente individual, como um “self-made man” (CASTEL, 2010). A radicalização desta
perspectiva é muito bem ilustrada por uma anedota citada no livro As surpreendentes
aventuras do Barão de Munchausen (RASPE, 2014) na qual o personagem principal escapa
do pântano puxando a si mesmo pelos próprios cabelos. A concepção, de um sujeito autônomo
e autossuficiente, de acordo com Castel (2010), representa tanto a realidade quanto um mito.
Realidade porque de fato a sociedade atual, em especial a norte americana, promove e celebra
indivíduos que constroem a si mesmo e uma entidade mítica, uma vez que não faltam
exemplos de que esta soberania é algo que beira o inalcançável. A infância frente a este
imperativo torna-se um caso particularmente interessante, uma vez que na modernidade, como
vimos, articula-se a ideia de dependência e cuidado. Em contrataste com estas características,
nos dias de hoje, pode-se dizer que o valor em voga aponta para a “a ação do indivíduo que
não dependa de ninguém, a não ser do próprio indivíduo” (EHERENBERG, 2010, p.13). Os
valores que regem o imaginário social exigem que o indivíduo seja um empreendedor de sua
própria vida: deve-se começar desde cedo a façanha de se tornar alguém através do
desenvolvimento de sua trajetória. Castro (2013) aponta que a ênfase da sociologia da
infância vai na mesma direção, no sentido de buscar compreender como a criança se
autonomiza e reconhece-se como sujeito livre e independente, paralelamente, desenvolvendo
capacidades cognitivas de objetificação e domínio do mundo material. A infância, portanto, é
somente um dos muitos começos desta discussão, uma vez que ser bem-sucedido hoje é
construir seu passado o invés de vivê-lo como herança simbólica: todos estão potencialmente
em uma situação de começo. (EHRENBERG, 2010).
O ideal de autonomia individual articula-se à infância como uma imposição a
modular-se desde cedo continuamente para a construção do que Ehrenberg (2010) chama de
um indivíduo trajetória. O indivíduo trajetória é aquele que não tem seu destino traçado por
uma espécie de herança simbólica, ele necessita “constituir uma genealogia ao inverso, uma
história feita de percursos”: trata-se de uma espécie de herói moderno individualizado
(EHRENBERG, 2010 p. 73). A criança contemporânea, conforme ressalta Nadesan (2010), é
cercada com a responsabilidade de assumir uma série de habilidades e conhecimentos
30

necessários para alcançar sucesso econômico e social. Nesse sentido, a autora aponta que o
aumento do tratamento medicamentoso de crianças contra ansiedade, problemas na
aprendizagem e comportamentos agressivos reflete tanto uma cultura comercializada que se
baseia na otimização do indivíduo, quanto uma enorme vigilância e patologização das
diferenças biopolíticas que passam a ser entendidas como problemas individuais.
Salgado (2012) apresenta um aspecto interessante desta reconfiguração do estatuto da
infância sob a ótica da autonomia e da ideia de empreendedorismo de si. Através de um
levantamento na mídia sobre como se referem ao tempo livre de crianças e adolescentes, a
autora pôde observar uma mudança naquilo que é valorizado como lazer nesta faixa etária.
Em reportagens e séries de televisão voltadas para adolescentes dos anos 90, observa-se, em
sua maioria, a valorização do brincar despretensioso. Em contrapartida, a partir dos anos
2000, Salgado (2012) apresenta uma série de reportagens que exaltam as crianças
empreendedoras, aquelas que fazem do seu tempo livre voltado para atividades produtivas
e/ou otimizadoras do desempenho escolar. Destaca-se uma edição da revista Veja Rio de 10
de novembro de 2010 que dedica uma página inteira à história do menino prodígio, chamado
Pedro Henrique. Com 14 anos de idade, o rapaz passa a criar aplicativos para iPhone e
trabalhar, três vezes por semana, como consultor de novos projetos em uma empresa de
tecnologia. A reportagem avalia seu desempenho escolar, concluindo nas entrelinhas, que ser
um bom aluno no colégio não é a única via de promoção ao sucesso: dedicar seu tempo livre à
computação legitima-se sobre os estudos (SALGADO, 2012). Mais do que se preparar para a
idade adulta através da educação, o que é valorizado é o estatuto de empreendedor que o
Pedro Henrique alça desde cedo.
As noções de criatividade empreendedora e de constante produtividade, como aponta
Martin (2009), são atributos extremamente valorizados principalmente nos Estados Unidos. A
autora em sua etnografia sobre o transtorno bipolar no contexto norte americano, enfatiza que
esses comportamentos se associam de maneira explícita a noção de mania. A valorização de
comportamentos que podem ser considerados maníacos está intrinsecamente relacionada com
determinado contexto político e econômico. A mania, em sua forma mais branda, é
extremamente sedutora porque aparentemente oferece capacidades que levam as pessoas ao
sucesso nos negócios e no mundo do entretenimento27. Os comportamentos maníacos são
relacionados a uma ideia de atenção contínua, de energia sem limite, de um alto grau de
motivação e produtividade, consistindo também como indicadores de uma possível fonte de

27
Martin (2009) aponta como certos atores como, por exemplo, Jim Carrie e Robin Williams, têm o seu sucesso
associado a um possível diagnóstico de bipolaridade.
31

inovação e criatividade, de impulsos para começar novos negócios e de um engajamento em


inúmeras atividades simultaneamente. Ademais, as fases maníacas são associadas a uma
maior propensão para o consumo, o que se articula a sociedade consumista norte americana.
Conforme demonstra Martin (2009), o termo mania é cada vez mais usado em campanhas
publicitárias, como por exemplo, a propaganda de um tênis esportivo que afirma “essa é
minha mania”28 (MARTIN, 2009, p. 202). Segundo a autora, há uma linha de continuidade
entre o que foi popularmente entendido como bipolaridade e os valores do capitalismo no
século XXI, baseados principalmente em um frenezi especulativo e oscilações entre altos e
baixos. Nesse sentido, a sintonia entre a cultura e a natureza do novo conceito de transtorno
bipolar permitiu que ele fosse simultaneamente valorizado e patologizado. (MARTIN, 2009)
A autora não pretende se posicionar quanto ao que é mais importante na consolidação de
determinada psicopatologia: se determinantes sociais ou biológicos. No entanto, procura
assinalar que a realidade da bipolaridade está para além dos marcadores biológicos que a
acompanham.
Lima (2005), por sua vez, propõe uma análise nos mesmos moldes, circunscrevendo
os valores sociais que contribuíram para que os sintomas relacionados ao TDA/H fossem
entendidos como patológicos. A este respeito, o autor afirma que a atenção ganha destaque no
mundo moderno, tornando-se central na contemporaneidade. A tríade desatenção-
hiperatividade-impulsividade em forma de doença seria, nesta perspectiva, estimulada por
uma cultura dependente de uma sobrecarga de estímulos perceptivos. Exige-se do indivíduo
uma performance que consiste em manter-se concentrado, mas também em trocar
constantemente o foco de seu interesse. Nesse sentido, “a flexibilização é a necessidade mais
fundamental do novo capitalismo e também dos indivíduos-TDA/H, e por isso o casamento
entre ambos poderia ser perfeito”. (LIMA, 2005, p. 120) 29 Em uma direção parecida,
Ehrenberg (1995) indica que certas patologias, em especial a depressão, podem ser
entendidas como marcadores sociais frente ao ideal de autonomia individual.
Estas perspectivas afirmam que aquilo que é considerado desviante é indissociável dos
valores sociais. Isto é, trata-se de dizer que uma descrição aparentemente livre de valor da
doença mental beira o impossível. Seguindo as indicações de Banzato e Pereira (2012), boa
parte destes valores embutidos na teoria e prática psiquiátricas se encontra implícita. É nesse
sentido que a discussão em torno dos valores que ditam o que é infância nos dias de hoje,

28
No original: “It’s my mania”. Tradução nossa.
32

como a autonomia e agência, configura-se como importante para uma melhor investigação de
um transtorno controverso como o da bipolaridade infantil. A noção de infância e a psiquiatria
infantil são dois lados da mesma moeda, ou seja, a maneira de se conceber a criança na
sociedade produz e é produzida por certa forma de se fazer psiquiatria infantil. O transtorno
bipolar do humor infantil é uma afecção que surge em um determinado contexto social
paralelamente a uma forma de se fazer psiquiatria infantil. É justamente por isso que para se
falar de norma e desvio na infância contemporânea foi preciso primeiro investigar os valores
que ditam e configuram aquilo que se entende por criança nos dias de hoje. No entanto, a
articulação entre os valores sociais e aquilo que é entendido como normal e patológico não é
de forma alguma evidente e consensual. Nos aprofundaremos em uma discussão de cunho
epistemológico no sentido de deixar mais clara esta perspectiva que concebe o contexto social
indissociável do contexto epistêmico. Mais especificamente em relação ao nosso estudo,
visamos esclarecer um ponto de partida importante no qual nos inserimos, isto é, uma
perspectiva que enfatiza a articulação da psiquiatria infantil contemporânea, na qual surge o
transtorno bipolar infantil, à certos valores sociais que ditam o que é norma e desvio na
infância.

1.5 Norma e desvio na perspectiva normativista


Embora, como explicitamos acima, fatos e valores possam ser vistos como as faces de
Janus, dois aspectos indissociáveis do contexto epistemológico, esta visão não é homogênea.
A discussão que versa sobre o papel de fatos e valores no que entendemos como normal e
patológico se localiza em um contexto mais amplo no qual se busca responder a seguinte
questão: o que faz de uma condição física ou mental uma doença? Canguilhem (1966/1995)
foi um precursor neste âmbito, procurando afirmar a contribuição da análise filosófica no que
concerne a conceitos médicos. Décadas depois da publicação do trabalho de Canguilhem, uma
literatura filosófica, principalmente anglo-saxônica, tomou corpo e assumiu o desafio de dar
continuidade à problemática concernente à definição dos conceitos de saúde e doença
(GAUDENZI, 2014). Iniciou-se, assim, uma controvérsia, descrita na maioria das vezes como
um debate entre “naturalistas” e “normativistas”30.
O tema central deste debate gira em torno da descrição da saúde e da doença como
fenômenos naturais ou como estados determinados por valores antropomórficos. Pode-se
dizer que de maneira geral, os naturalistas defendem a primeira assertiva, enquanto os

30
Conforme aponta Gaudenzi ( 2014), muito embora esta distinção remeta a períodos anteriores, este debate
ficou mais claro a partir dos anos sessenta no contexto anglo-saxão.
33

normativistas, a segunda. No entanto, é preciso cautela em demarcar posições antagônicas, em


postular dicotomias que mais se assemelham a uma espécie de maniqueísmo. Esta distinção é
simplista uma vez que desconsidera as diversas escolas interessadas no debate e impede de
perceber as nuanças das fronteiras entre estas duas posições. Muito embora não faça parte do
escopo deste escrito um aprofundamento maior nessas duas perspectivas31, uma breve
apresentação se faz necessária no sentido de reforçar nosso argumento epistemológico, a
saber: a articulação do transtorno bipolar infantil e um contexto social mais amplo.
Diante desse quadro, um ponto nodal do debate entre os naturalistas e os normativistas
diz respeito à prioridade dada aos componentes biológicos na concepção de doença. Enquanto
os naturalistas defendem a anterioridade lógica do componente biológico ou da fisiologia
sobre o componente clínico na definição da doença, os normativistas defendem que a
dimensão prática é anterior à teórica, e que a valoração de uma condição possui uma
anterioridade lógica na conceitualização de uma doença. Estas posições, no entanto, não são
de todo contraditórias, o que pode ser vislumbrado pelas considerações de Canguilhem sobre
o assunto. Se fossemos situar a tese de Canguilhem nesta polarização teríamos dificuldade
(GAUDENZI, 2014). À primeira vista, conforme nos deteremos adiante, Canguilhem se
aproxima da abordagem normativista, pois o autor afirma que os conceitos de saúde e doença
são intrinsecamente normativos, isto é, relacionados a valores. No entanto, o autor indica que
os valores que estão em jogo são, sobretudo, valores vitais, o que aponta para uma questão
naturalista na sua teoria. Nesse sentido, o autor escapa à polarização proposta pelos anglo-
saxões entre normativismo e naturalismo e indica a artificialidade da demarcação entre estas
posições.
No entanto, é precisamente uma assertiva característica da perspectiva naturalista, isto
é, a dedução do patológico do fisiológico e a subordinação da clínica à fisiopatologia, o objeto
de críticas de Canguilhem. Claude Bernard32 , com quem Canguilhem dialoga, concebe a
prioridade lógica do fisiológico sobre o patológico e da fisiopatologia sobre a clínica. Para
Bernard, as normas fisiológicas podem ser determinadas experimentalmente e o patológico
pode ser inferido delas quantitativamente (CANGUILHEM, 1966/1995). É justamente em
oposição a esta afirmação, conforme veremos adiante, que advogam as teses de Canguilhem
e, de uma maneira geral, dos normativistas. Já a defesa da prioridade lógica da fisiologia

31
Indicamos fortemente a leitura de Gaudenzi (2014). A autora apresenta e comenta de forma consistente
pensamentos distintos sobre a normalidade e a patologia.
32
Claude Bernard, médico francês do século XVIII, criador da definição fisiológica e experimental da doença.
34

sobre a clínica ou do conceito teórico sobre o conceito prático de doença é algo que aproxima
os naturalistas de Claude Bernard (GIROUX, 2011).
A perspectiva naturalista, que tem como um representante na atualidade Cristopher
Boorse33, se baseia na biologia evolutiva para sustentar que os conceitos de saúde e doença
são da ordem do fato puramente descritivo, referentes estritamente a uma norma biológica
(GIROUX, 2011; ALMEIDA FILHO & JUCÁ, 2002). A intenção é se aproximar da maneira
mais rigorosa possível de um conceito mais preciso de doença, independente das contradições
dos diversos valores e concepções de mundo. Conforme ressalta Gaudenzi (2014), Boorse
iniciou seus estudos sobre os conceitos de saúde e doença preocupado principalmente com o
que chamou de “virada psiquiátrica”, isto é, um tipo de imperialismo conceitual em que os
conceitos de saúde e doença poderiam ou deveriam substituir nossas ideias de bem e mal.
Faz-se importante destacar, como veremos no próximo capítulo, que as teses de Boorse
começaram a ser redigidas, não coincidentemente, em um período no qual a psiquiatria passou
a ser bastante criticada. Para o autor, é justamente no campo da saúde mental que aparecem
de forma mais clara as grandes controvérsias e os desentendimentos sobre o conceito de
saúde.
Como meio de eliminar as variáveis sociais e encontrar um conceito mais fidedigno de
doença, os naturalistas se escoram no ideário da ciência moderna e buscam um estado da
natureza que possa justificar as normas e os desvios do organismo vivo. A chave dessa linha
de pensamento está na afirmação de que “(...) o normal é o natural.” (BOORSE, 2004, p. 81)
34. O conceito de “função natural” é tomado como garantia da objetividade da noção de
doença e se aporia em dois aspectos, a bioestatística e o selecionismo. A estatística, grosso
modo, é utilizada para sustentar a hipótese de que a anormalidade é definida pelo desvio de
acordo com a média. Já o selecionismo consiste na ideia de que o estado saudável é aquele
que está de acordo com o funcionamento próprio da espécie Homo sapiens. A doença
(disease) é definida como uma interferência danosa na função própria da espécie, ou seja, uma
disfunção biológica.
É nesse contexto que Boorse desenvolve, nos anos 70, a Teoria Bioestatística da Saúde
pautada na noção de função e disfunção com o intuito de determinar de forma segura e válida
a distinção entre o que seria normal e o que seria patológico no nível conceitual. A teoria de
33
Outro autor contemporâneo importante neste campo trata-se de Wakefield. O escopo deste escrito, no entanto,
nos impede de um maior aprofundamento nas ideias deste autor. Sendo assim, nos deteremos nas considerações
de Boorse sobre o assunto.
34
No original: “(...) the normal is the natural”. Tradução nossa.
35

Boorse consiste em quatro elementos fundamentais: (1) Classe de referência, (2) Função
normal, (3) Saúde e (4) Doença (GAUDENZI, 2014). A classe de referência consiste no
universo de membros de uma espécie biológica do mesmo sexo e faixa etária. Este recorte é
possível devido a afirmação da existência de traços funcionais polimórficos que podem ser
incluídos no design da espécie e de diferenças que exigem a geração de designs específicos.
Design nesse sentido diz respeito a uma estrutura fisiológica que consiste em uma
organização funcional interna estatisticamente típica dos membros da classe de referência.
Este é o responsável por tornar a sobrevivência e a reprodução dos membros dessa classe
bem-sucedidas. Sendo assim, a função normal diz respeito àquilo que é estatisticamente típico
de acordo com o design. A saúde consiste no funcionamento do organismo dentro deste
padrão, deste desingn. (GAUDENZI, 2014). Já a doença, trata-se do que se difere das
leis físico-químicas, do comportamento teleológico, da “função própria”. A doença consiste,
portanto, em uma “disfunção”. É importante ressaltar que Boorse preocupa-se, sobretudo,
com a questão da demarcação entre o normal e o patológico e não com uma nosologia ou
causalidade. Nesse sentido, o autor afirma que a fronteira entre o normal e o patológico é
marcada pelo conceito de “disfuncionamento” (BOORSE, 1997). Logo, na tentativa de evitar
o relativismo nas definições de normal e patológico, valoriza-se o conceito de disfunção
biológica, afirmando que é possível caracterizar a doença de forma neutra pela análise das
funções biológicas.
Dessa forma, o naturalismo de Boorse tem como pano de fundo epistemológico a ideia
de que a natureza pode ditar o que é normal e patológico sem a mediação de valores lógicos
ou éticos. Uma definição rigorosa, baseada na natureza, portanto, permite distinguir o que é o
verdadeiro objeto da medicina (enfermidade) daquilo que está fora de seu escopo como
melhoramento ou promoção da saúde (cirurgia estética, aborto etc.) - práticas médicas
periféricas (BOORSE, 1997). Ademais, o autor aponta para o que chama de distorções
ideológicas na definição de doença, como, por exemplo, a homossexualidade como patologia.
Uma definição mais precisa do normal e do patológico, calcada em conceitos cientificamente
observáveis, evitaria estas controvérsias. No entanto, faz-se importante ressaltar que Boorse
não nega que os termos saúde e doença estejam marcados por características valorativas. É
nesse sentido que o autor lança mão das noções de illness e de disease (BOORSE, 1997).
Enquanto esta última se trata de uma disfunção, a primeira consiste na experiência de
adoecimento, sendo marcada por características valorativas. O quociente normativo na
definição de saúde e doença se restringe à illness, cuja normatividade se reflete nas
instituições de prática médica e que, diferentemente da disease, é afetada pelo contexto. No
36

entanto, a posição de Boorse afirma a disease como o conceito primário, cientificamente


estabelecido, e illness o conceito subjetivo derivado. Este ponto é nodal na diferença entre os
naturalistas e os normativistas.
Sob o prisma normativista, as noções de normal e patológico são entendidas como
eventos indissociáveis da experiência subjetiva, de normas e valores morais. Como nos alerta
Gaudenzi (2014), não se pode fazer, no entanto, uma distinção clara entre uma perspectiva
naturalista e uma perspectiva normativista. Isto porque, o debate não se limita a afirmar ou
negar a presença de valores na definição dos conceitos médicos, mas se localiza na forma de
problematizar a relação entre fato e valor, entre os componentes biológicos e sociais na
concepção de doença. A corrente normativista, também chamada de subjetivista ou
construtivista, afirma a primazia do universo linguístico e de um universo genealógico, isto é,
de uma história de saberes, de poderes, de determinações éticas ou estéticas na construção
daquilo que se entende por normal e patológico. A dificuldade de antagonismo entre estas
posições pode ser vislumbrada pela noção de normativismo biológico defendida por
Canguilhem (1966/1995). Para o autor, faz-se importante distinguir norma e média buscando
não reduzir a primeira à última. A média se propõe um conceito objetivo, mas consiste na
tradução de “um equilíbrio instável de normas e de formas de vida mais ou menos
equivalentes e que se enfrentam momentaneamente” (CANGUILHEM, 1966/1995, p. 128).
Trata-se de uma espécie de solução de compromisso que se dá em certas condições
específicas, enquanto a norma ou o normal é variável de acordo com o meio. O que a média
estatística revela é uma possibilidade de estar no mundo em relação a um meio específico, ou
seja, uma medida estanque ignorando a potência criativa da vida. Canguilhem (1966/1995)
concebe a vida como um exercício de valoração onde sempre se está preferindo e excluindo
em relação às adversidades de um meio. Este posicionamento implica a ideia de que o normal
e o patológico não são definidos de forma objetiva em relação ao organismo. Conforme
ressalta Canguilhem (1966/1995), “é, portanto além do corpo que é preciso olhar, para julgar
o que é normal e patológico para esse mesmo corpo” (p. 162). Para o autor, os binômios
saúde/doença e normal/patológico, estão longe de serem formas estanques e observáveis
objetivamente. O normal é instável. Cabe ressaltar que para Canguilhem (1966/1995) a
primazia da experiência clínica é inegável. Segundo o autor, a patologia, longe de ser um
dado descoberto cientificamente, é o produto da denúncia humana de seu mal-estar. Enquanto
a saúde diz respeito ao “silêncio dos órgãos”35, na experiência de adoecimento, um ruído

35
Expressão de Leriche citada por Canguilhem (1966/1995)
37

perturba a imanência silenciosa do corpo. É somente a partir desta experiência que se pode
falar de uma doença desestabilizando a norma vigente.
Isto porque, para o autor, a normalidade não é um dado objetivo, mas está intimamente
articulada a noção de valor. Para sustentar a indissociabilidade da norma e do valor,
Canguilhem (1995) recorre à análise semântica das expressões “anormal” e “anomalia” em
francês. Neste idioma, diferente do português, anomalia é um substantivo sem adjetivo e
normal, por sua vez, é um adjetivo sem substantivo. Sendo assim, na língua francesa,
“anormal” tornou-se o adjetivo de anomalia, o que provocou uma sobreposição destes termos
de origens distintas. “Anomalia” (an-omalos) deriva-se da palavra grega omalos que significa
uniforme, regular. Logo, como seu antônimo, an-omolos, significa desigual. A expressão
“anormal”, no entanto, deriva do grego nomos e do latim norma, significando regra, lei.
Diante desse quadro, Canguilhem (1966/1995) indica que anomalia significa somente uma
variação, uma diferença. Canguilhem enfatiza que nem toda anomalia é patológica. A
anomalia pode transformar-se em doença, mas não é em si mesma uma doença, apontando
para a variabilidade dos organismos.
Já o anormal está referido a uma lei que é formulada através de um valor, isto é, uma
anomalia valorada. O valor de que nos fala Canguilhem é um valor inscrito no organismo,
relativo à vida, aproximando-o de uma visão naturalista, ou melhor, vitalista (GIROUX,
2011). Ou seja, para Canguilhem (1966/1995), o valor está relacionado com a possibilidade
do organismo de conseguir continuar criando novas normas diante das adversidades do meio,
exercitando a sua normatividade vital. Não se trata de valores sociais, mas de um valor
inerente à vida. Na última parte de seu livro, adicionada posteriormente e denominada Novas
reflexões, Canguilhem (1966/1995) aprofunda ainda mais a distinção entre as normas sociais e
a normatividade biológica. Segundo Giroux (2011), Canguilhem (1966/1995) não parece
tratar da influência direta do social ou cultural sobre a saúde e a doença.
O debate anglo-saxão, embora também se insira em uma perspectiva normativista,
possui uma diferença importante em relação às noções de valor e normatividade. Diferente do
ponto de vista defendido por Canguilhem (1966/1995), a normatividade na perspectiva desses
autores, dentre os quais se destacam Nordenfelt e Fulford, é antes de tudo, de natureza social e
cultural. Cabe ressaltar que não faz parte do escopo deste projeto um aprofundamento na
teoria desses autores, uma vez que extrapola o objetivo da nossa discussão. O que
procuraremos destacar é a relação que Fulford (2001) traça entre os valore sociais e as noções
de normalidade e patologia principalmente no que concerne aos transtornos mentais. Fulford
(2001) propõe elaborar conceitos ponte situados entre as teorias biológicas e sociais. Assim
38

como Canguilhem (1966/1995), o autor defende que a experiência de adoecimento


(denominada por Fulford de illness) se localiza logicamente anterior à doença (chamada pelo
autor de disease). A disease é uma subcategoria da illness valorada negativamente, ou seja, a
disease é a illness reconhecida, valorada. O autor não restringe o termo disease à disfunção
biológica e a illness à experiência subjetiva de mal-estar, como o faz Boorse. Ou seja, não se
parte de um fato biológico para um valor, mas de uma experiência de adoecimento carregada
de valores em direção a um fato biológico. Na concepção de Fulford (2001), ambos os termos
são valorativos, sendo a illness mais “puramente valorativa”, menos descritiva ou “científica”
e é o conceito fundamental do qual o termo disease é derivado. Conforme nos aponta
Gaudenzi (2014a), faz-se importante destacar que a teoria valorativa de Fulford não reverte a
relação causal, mas a articulação lógica, entre illness e disease. Para o autor, assim como para
Canguilhem (1966/1995)36, é a illness que define a disease. A illness é logicamente anterior à
disease, pois apenas após a percepção de que a pessoa não está bem, busca-se uma explicação
desse estado. Portanto, para estes autores, a linguagem da doença jamais será isenta de valor.
Conforme ressalta Fulford (2001), o que é identificado como doença é dependente da
experiência subjetiva do mal-estar que ocorre em um determinado contexto social. O grupo de
sintomas adquire um nome e é incluído nas classificações médicas, tornando-se um tipo de
patologia.
Fulford (2001) se inspira nas ideias da “Teoria da Ação”, ou seja, aquilo que vai ser
entendido como saúde e doença para o autor se localiza na (in) capacidade para agir
(GAUDENZI, 2014a). Para Giroux (2011), inscrever a teoria da saúde no quadro da teoria da
ação permite desfazer a oposição entre normativismo e naturalismo, além de desativar o
conflito entre normas biológicas e normas sociais. Assinala-se, então, a estreita relação entre
os conceitos de patologia e o funcionamento das atividades da vida, substituindo a noção de
doença como disfunção biológica por uma noção de doença como disfunção em relação às
expectativas individuais e sociais37. Nesse sentido, Fulford (2001), assim como Canguilhem
(1966/1995), considera impensável oferecer uma descrição aparentemente livre de valor da
doença mental. No entanto, diferente da concepção de valor trazida por Canguilhem

36
Cabe ressaltar que este autor não utiliza essas terminologias.
37
Gaudenzi (2014a) aponta que em relação a doenças físicas a teoria da ação fica mais clara: uma pessoa não
pode ir trabalhar porque quebrou a perna. Já para as doenças mentais que, de acordo com Fulford, obedecem ao
mesmo paradigma, a questão fica mais variável e subjetiva do que a illness física. Em relação à depressão grave
ou à ansiedade, por exemplo, também se pode dizer que são sintomas paralizadores da ação em seu fazer
ordinário. No entanto, como aponta Gaudenzi (2014a), no que concerne às psicoses a questão fica mais
complexa.
39

(1966/1995), o valor de que nos fala Fulford (2001) é o valor social frente às quais certas
experiências de adoecimento serão consideradas doenças. Desta perspectiva, a noção de
patológico no humano possui duas raízes: uma relacionada a variações biológicas, ou seja,
uma anomalia, e outra, de ordem cultural que constringe a vivência desse fenômeno em
direção a uma patologia (MAGREE, 2002). Logo, uma patologia não será nunca da ordem
somente do biológico, sua manifestação deve ser entendida como uma norma inferior frente a
certos aspectos sociais. Considerar a irredutibilidade dos julgamentos em saúde mental à
descrição científica tem implicação para a psicopatologia, para a classificação e para o
processo diagnóstico.
Sendo assim, a discussão empreendida ao longo deste capítulo sobre as
reconfigurações da noção de infância visa servir como base para pensarmos as noções de
norma e desvio na psiquiatria infantil até os dias de hoje. Isto porque, inspirados em uma
perspectiva normativista, consideramos que os valores sociais atribuídos à infância estão
intimamente articulados ao contexto epistêmico, isto é, a certa maneira de se fazer psiquiatria.
É nesse sentido que prosseguiremos esboçando a história da psiquiatria infantil procurando
assinalar que a sua própria consolidação enquanto campo de saber e também o que foi
considerado patológico ao longo do curso desta ciência está associado a certos valores,
discutidos neste capítulo, que regem o que é ser criança em determinada época e em última
instância possibilitam a ascensão da discussão em torno do transtorno bipolar do humor na
infância.
40

2 A FORMAÇÃO DO CAMPO DA PSIQUIATRIA INFANTIL: DA IDIOTIA AO DSM


A reconstrução de uma história só pode ocorrer, como a própria palavra
“reconstrução” indica, em um a posteriori: organiza-se o que se passou somente depois. O
passado, portanto, longe de ser imutável, é recontado através de diferentes perspectivas. Do
que se trata então quando nos propomos a fazer uma história da formação do campo da
psiquiatria infantil? De acordo com Berrios e Porter (2012), “a história da psiquiatria clínica
deve ser definida como o estudo da forma na qual sinais clínicos e sua descrição interagiram
em períodos históricos sucessivos, em seu contexto psicossocial.” (p. 425). Nesse sentido,
para não cair em uma espécie de anacronismo, é preciso estar atento à maneira de como as
regras descritivas e nosográficas são formuladas em cada época. O objetivo deste capítulo está
justamente neste ponto, a saber: discutir a maneira como a questão da infância foi sendo
apropriada pela psiquiatria em diferentes momentos até os dias de hoje, cenário em que a
querela em torno do transtorno bipolar infantil emerge. Logo, não se busca reconstruir a
história da psiquiatria infantil puramente de maneira cronológica, mas uma espécie de
genealogia, uma vez que nosso campo de estudo possui duas faces: a psiquiatria e a infância.
Tendo em vista as considerações levantadas no capítulo anterior sobre as mutações na
maneira de se conceber a infância, faz-se importante pensar, usando a expressão de Berrios e
Porter (2012), na forma em que as descrições clínicas interagiram com a noção de criança em
cada período. Estamos, portanto de acordo com Bercherie (2001) quando afirma que o
determinante em relação às teorias e aos procedimentos e observações dos clínicos é “o olhar
que eles lançam sobre a infância, a concepção que têm de seu desenvolvimento e de seu papel
na formação do adulto” (BERCHERIE, 2001, p. 139).
Faz-se importante destacar que embora a psiquiatria infantil como especialidade ou
subespecialidade médica tenha se consolidado posteriormente, principalmente partir dos anos
1930, a criança foi um objeto importante na própria formação da psiquiatria no século XIX.
Ou seja, ainda que haja um atraso da psiquiatria infantil em relação à psiquiatria voltada para
o adulto no século XIX, a criança, noção que começou a ganhar destaque neste momento, foi
decisiva para a própria expansão da psiquiatria como um saber que têm ingerência sobre o
anormal. Conforme veremos, uma psiquiatria da infância, isto é, que leve em consideração as
idiossincrasias desta faixa etária na formulação de suas noções, surgiu somente no século XX,
em conjunção com uma maior visibilidade que a criança alçou neste período, como
observamos no capítulo anterior.
Do nascimento da psiquiatria moderna até a constituição de uma especialidade ou
subespecialidade denominada psiquiatria infantil, há um percurso a ser feito. É justamente
41

este caminho que seguiremos. Remontaremos, portanto, uma espécie de gênese da


constituição da psiquiatria infantil enquanto uma especialidade médica e sua evolução até os
manuais (DSM) que são o carro chefe da psiquiatria contemporânea. Em seguida,
analisaremos a maneira como se apresentam as patologias relacionadas à infância nesses
manuais. Cabe ressaltar na esteira do pensamento de Hoenig (2012), que no século XIX a
classificação psiquiátrica é um tanto quanto confusa e descentralizada. Nas suas palavras: “a
terminologia é idiossincrática, novos termos são constantemente introduzidos, e um mesmo
termo recebe diversas aplicações” (HOENIG, 2012, p.540). Ademais, como aponta Berrios
(2008), durante o século XIX uma classificação pessoal de cada alienista era valorizada, não
havia uma pretensão de homogeneidade que passou a existir a partir da CID e do DSM. É
nesse sentido que procuraremos, ao fazer um apanhado da formação do campo da psiquiatria
infantil no século XIX, nos apoiar nas principais figuras mais do que nas classificações. No
entanto, também de acordo com Berrios (2008), na medida em que avançamos no século XX,
a uniformização das classificações passa a ser uma questão importante. Justifica-se, portanto,
um enfoque maior em torno dos DSM a partir de então. A importância do estudo deste
manual se destaca na medida em que o concebemos como um objeto cultural mais amplo
(BEZERRA, 2014; ZORZANELLI, 2014). Isto é, suas edições podem ser entendidas como
uma mostra das ideias médicas vigentes na cultura e também como uma forma de produzir as
noções de doença, diferença e normalidade (ZORZANELLI, 2014). Esta discussão é
importante para uma compreensão mais ampla do contexto da psiquiatria infantil no qual o
transtorno bipolar do humor passou a ser abordado.

2.1 A criança e constituição do saber psiquiátrico


Foucault (2001,2006) ao se debruçar na questão da constituição do campo da
psiquiatria moderna privilegia o aspecto de estratégia biopolítica da medicina, ressaltando a
ascensão da psiquiatria como saber e nos jogos de poder envolvidos nesse processo. Sua
preocupação com a infância se expressa no que concerne ao papel que ela teve como objeto
privilegiado da expansão do saber médico. Foucault, portanto, não parece estar preocupado,
diferente dos autores que abordaremos adiante, com a formação de um campo clínico voltado
para a criança, isto é, na ascensão da psiquiatria infantil. No entanto, sua contribuição é
importante para entendermos como a figura da criança é apropriada na constituição de uma
maneira de fazer psiquiatria.
Este processo se deu principalmente a partir de uma mudança de objeto privilegiado.
Distancia-se do domínio das doenças e passa-se a gerir aquilo que é anormal. Três
42

personagens são indicados como ponto de partida para uma genealogia do anormal: o grande
monstro, o pequeno masturbador e a criança indócil. Observa-se que a anomalia é uma
categoria que no século XIX não afetou o adulto, mas a criança. Enquanto ao adulto, atribuía-
se a loucura, à criança restava a anomalia. Nesse sentido Focault (2006) afirma que “o
princípio de generalização da psiquiatria, vocês encontram do lado da criança e não do lado
do adulto; vocês não o encontram no uso generalizado da noção de doença mental, mas, ao
contrário, na demarcação prática do campo de anomalias.” ( p.283)
Para discorrer sobre a apropriação da infância pelo saber médico, Foucault (2001) se
utiliza de um caso de um rapaz denominado Charles Jouy. Considerado uma espécie de idiota
da aldeia, Jouy é masturbado por Sophia Adams, uma menina de doze anos. Em outra ocasião,
os dois se relacionam sexualmente e, em troca, Jouy dá umas moedas para Sophia que logo
sai para comprar amêndoas. A menina esconde o fato de todos, pois tem medo de apanhar de
seus pais. A mãe, contudo, o descobre através de suas roupas e imediatamente comunica ao
prefeito. De acordo com Foucault (2001), ainda que a descoberta do ato tenha sido no seio
familiar, Sophia não levou os bofetões que esperava: a família estava conectada a outro
sistema de controle e de poder. O prefeito, incumbido do caso, indica que o melhor destino
para Sophia Adams é uma casa de correção até a sua maioridade e para Jouy, resta o tribunal
ou o hospital psiquiátrico. Observa-se que ao invés de uma resolução em outros termos, como
a temida surra, o que acontece é uma demanda do prefeito e da família de um saber, judiciário
ou médico, para a explicação e resolução do problema. Nota-se um esboço do recurso a uma
instância de controle qualificada por ramificações múltiplas, uma vez que além da casa de
correção para menina o que é demandado para Jouy é o tribunal ou o asilo psiquiátrico; diante
desse fato, a população apela para instâncias superiores, para “instâncias de controle técnicas,
médicas, judiciárias” (FOUCAULT, 2001, p. 377). Foucault (2001) destaca, portanto, uma
espécie de apelo às explicações médicas: é “na própria base que podemos começar a
desvendar um mecanismo de apelo à psiquiatria”. (p. 376). O autor é bastante cuidadoso ao
tratar da expansão da jurisdição médica sobre certos comportamentos enfatizando que o
processo não ocorre somente a partir de uma participação ativa da psiquiatria. Não se trata,
portanto, de um imperialismo médico, mas de uma dupla via. Este aspecto é destacado no
caso de Jouy.
A especificidade desse caso, que segundo Foucault (2001) é paradigmático no que diz
respeito a certo modo de jurisdição do poder psiquiátrico, realiza-se em comparação a outro
caso, o de uma mulher chamada Henriette Cornier. As duas situações exemplificam momentos
distintos na maneira de se entender as condutas que serão psiquiatrizáveis. Acusada de
43

decapitar uma criança, o caso Cornier também foi entendido através da psiquiatria. No
entanto, sua condição era justificada de uma maneira diferente daquela descrita no caso de
Jouy. Cornier teria passado por uma mudança drástica de humor, instaurando um estado
distinto do usual. O crime foi considerado um dos sintomas dessa nova configuração. Ou seja,
concebe-se que algo atravessa o comportamento de Cornier marcando uma diferença de
conduta: “o caráter repentino, parcial, descontínuo da personalidade – era isso que permitia a
psiquiatrização do gesto de Henriette Cornier” (FOUCAULT, 2001, p. 378). Em
contrapartida, no caso de Jouy, os relatórios médicos locais apontam para uma forma bastante
diferente de se realizar a psiquiatrização. Não é mais uma descontinuidade entre aquilo que se
foi e o que se tornou, mas uma espécie de constelação física permanente que justifica a
condição de anormalidade. Aquilo que é necessário para a psiquiatrização deixa de ser um
processo, passando a se tratar de estigmas que marcam estruturalmente o indivíduo. Dessa
forma, diversas características físicas de Jouy, tais como o tamanho do crânio, do pênis,
dentre outras, formam em conjunção com o próprio ato uma espécie de “constelação
polimorfa”. (FOUCAULT, 2001, p. 379) que compõe o quadro patológico. O ato transgressor
– o relacionamento sexual como a jovem – se relaciona a um estado permanente que foi
desvelado, um estado congênito equivalente à idiotia. Nota-se que do caso de Cornier para o
de Jouy, há o deslocamento da ideia de processos patológicos para a de estados patológicos
com características permanentes e estáveis, como na definição de idiotia desta época que
veremos mais adiante com Pinel (1745-1826).
Diante desse quadro, o fundamental no caso de Jouy diz respeito ao núcleo de
um estado em questão que se relaciona com a insuficiência: trata-se da ideia de interrupção do
desenvolvimento, como passou a se caracterizar a idiotia. Isto é, o que está em jogo é a noção
de um desequilíbrio funcional que faz como que o indivíduo, pela ausência de algumas
funções, fique exposto às instâncias inferiores que se desenvolvem à revelia. A psiquiatrização
decorre de um desequilíbrio funcional calcado em uma noção de desenvolvimento anormal:
consiste em uma espécie de atraso. Portanto, o estado que permite a psiquiatrização de Jouy
não é algo que atravessa seu organismo, uma doença, mas uma interrupção de seu
desenvolvimento, mais precisamente diz respeito à permanência de sua infantilidade. Foucault
apresenta uma série de relatos dos psiquiatras da época que compara o estado de Jouy ao de
uma criança, “ele agiu como uma criança”, dizem. O instinto que será considerado patológico
não é em si doentio, mas se torna a partir de uma inibição de seu curso normal.
Surge assim, a criança anormal, que possui uma anomalia e não uma doença.
Caracterizando esta criança, além da idiotia, pode estar presente uma série de perversões
44

como o onanismo, a mentira, dentre outras. Foucault (2006) ressalta que, neste momento, a
loucura era restrita aos adultos: não se concebeu antes dos últimos anos no século XIX a
possibilidade real de uma criança ser louca. Foi somente em um segundo momento e
unicamente por projeção retrospectiva do adulto louco sobre a criança que finalmente
acreditou-se descobrir a criança louca. Segundo Foucault (2006), a loucura na infância foi
discutida apenas a partir de Charcot e Freud. Antes disso, no entanto, a criança já era alvo da
psiquiatria através da figura da criança anormal. Diante desse quadro, Foucault afirma que é
através dos problemas suscitados pela criança idiota que a psiquiatria não se restringe à
loucura, mas torna-se algo “infinitamente mais geral e mais perigoso” (FOUCAULT, 2006, p.
280). Isto é, o controle sobre aquilo que é norma e anormal e o poder de corrigi-lo.
A infância torna-se, portanto, uma chave importante que permite a psiquiatrização.
Nas palavras de Foucault: “é isso, essa imobilização da vida, da conduta, dos desempenhos
em torno da infância, é isso que vai permitir fundamentalmente a psiquiatrização.”
(FOUCAULT, 2001, p. 384) O novo modo de psiquiatrização que Foucault se propõe a
definir apoia-se na ideia de uma continuidade: é na medida em que um adulto se parecerá com
aquilo que sempre foi que se pode estigmatiza-lo. Enquanto no caso de Cornier há um corte
radical entre a loucura e a infância, no caso de Jouy, é a proximidade em relação a sua
infância e a criança que ele abusou que permite a psiquiatrização. A infância como fase
histórica de desenvolvimento transforma-se em instrumento da psiquiatria. Dessa forma,
Foucault (2001) afirma que “é pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto, e
da totalidade do adulto.” (p. 386). A infância foi, portanto, por onde a psiquiatria pôde se
generalizar, foi “a armadilha de pegar adultos” (FOUCAULT, 2001, p. 387). Esta, por
conseguinte, não se trata de um novo território anexado à psiquiatria, pelo contrário, consiste
em “uma das condições históricas da generalização do saber e do poder psiquiátricos” (p.
387). Tal quadro consolida-se a partir do momento em que a infância ou a infantilidade se
torna o filtro para analisar os comportamentos. “Para que uma conduta entre no domínio da
psiquiatria, para que ela seja psiquiatrizável, bastará que seja portadora de um vestígio
qualquer de infantilidade.” (FOUCAULT, 2001, p. 388). Investigam-se, então, as condutas
das crianças a fim de circunscrever aquelas que seriam capazes de fixar, de bloquear, de deter-
se no adulto. Neste, por sua vez, serão psiquiatrizáveis todas as condutas que podem ser
associadas à infantilidade. Foucault aponta que é a partir de então que a psiquiatria começa a
estabelecer correlações com a neurologia e com a biologia geral. Ocorre uma ligação entre a
psiquiatria e a neurologia do desenvolvimento, assim como a biologia, através das análises
tanto no nível do indivíduo quanto da espécie, garantido o status da psiquiatria como um saber
45

científico.
Constitui-se assim uma nova psiquiatria que nasce entre os anos de 1850-1870
caracterizada por prescindir da doença e se ocupar fundamentalmente com o desenvolvimento
normativo. Diferente da psiquiatria do início do século XIX que, entendida como medicina da
alienação, mantinha seu discurso sobre a loucura como doença, em meados do século XIX,
despatologiza-se o objeto. Não se trata mais de doenças, o poder médico estabelece seu
controle sobre objetos não patologizados, dando início a sua generalização. Nessa direção,
não se buscam sintomas de uma doença, mas síndromes bem especificadas e autônomas
(como por exemplo, a agorafobia e a claustrofobia descritas por Krafft- Ebing). A noção de
“estados” surge correlata a essa lógica na medida em que consiste em “uma espécie de fundo
causal permanente, a partir do qual podem se desenvolver certo número de processos, certo
número de episódios que, estes sim, serão precisamente a doença.” (FOUCAULT, 2001,
p.397).
Aliada a esta lógica, a hereditariedade aparece como a justificativa da presença de
certa anomalia no corpo. O conceito de hereditariedade se expande, uma vez que o foco na
doença some de vez – sua presença não será responsável por reproduzi-la: qualquer forma de
desvio de comportamento, como o alcoolismo pode causar uma doença como tuberculose, por
exemplo38. A psiquiatria passa então à ingerência indefinida nos comportamentos humanos.
Nesse sentido, uma vez que nos afastamos da ideia de doença, o objetivo do tratamento se
distancia da noção de cura. Esta deixa de ser a função da psiquiatria, que se ocupa da proteção
da sociedade contra os perigos proporcionados por aqueles que são anormais. Nas palavras de
Foucault: “ela se torna a ciência da proteção biológica da espécie” (FOUCAULT, 2001, p.
402). A infância, para Foucault, tem um papel importante na configuração desse quadro, uma
vez que consiste no instrumento principal de sua universalização. A investigação da infância
foi uma mola propulsora da expansão da psiquiatria que resultou na criação de uma ciência
desvinculada da noção de doença, mas diretamente ligada a uma ideia da periculosidade do
anormal.
No entanto, não se trata ainda de uma psiquiatria infantil. De acordo Bercherie (2001),
a psiquiatria que surge no final do século XIX, está longe de ser uma a clínica específica da
criança, com conceitos próprios. Uma clínica voltada para a infância só teria se consolidado a
partir de 1930 principalmente com a influência da psicanálise. A possibilidade de conceitos

38
Esta perspectiva se associa a ideia de degenerescência desenvolvida por Morel. Afirma-se a transmissão das
taras, vícios e traços mórbidos adquiridos pelos antecessores. Segundo Pereira (2008), em decorrência dessa
teoria, muitos projetos de intervenção social de cunho higienista foram desenvolvidos, de modo impedir a
propagação da degeneração da raça humana.
46

próprios da infância surgiu, ainda segundo o autor, devido à proposição psicanalítica de


desenvolvimento que traça de trajetórias típicas sem, no entanto, circunscrever estruturas mais
estáveis neste período. Ou seja, o desenvolvimento não estaria calcado apenas em uma
trajetória normativa que leva ao adulto, deve-se observar a criança no sentido de traçar as
possíveis variáveis desse trajeto típico, mas não invariável.
Diante desse quadro, Bercherie (2001) indica que é preciso levar em consideração
certa disparidade entre a psicopatologia do adulto e da criança. Para dar conta deste atraso da
psiquiatria infantil, o autor traz à cena uma discussão que visa circunscrever aquilo que guia a
constituição do saber clínico. Ancorando-se nas ideias de Karl Jaspers, Bercherie (2001)
afirma que o procedimento clínico pode ser entendido como norteado pelo o que a
fenomenologia denomina de “relações de compreensão”. Nesta perspectiva, para se
estabelecer aquilo que é normal e patológico guia-se por um fator subjetivo, ou seja, parte-se
de um conhecimento pessoal dos fenômenos mentais. Diante desse quadro, “o que impedia
que a clínica psicopatológica da criança se constituísse – antes que uma psicopatologia,
digamos suficiente, da criança aparecesse – era a ausência de toda a compreensão do
observador adulto, de toda a medida comum entre o adulto e a criança.” (BERCHERIE, 2001,
p. 142). Segundo o autor, importavam-se categorias do adulto sem nenhuma crítica. Pode-se
dizer que este contexto coincide com a ausência de visibilidade que a criança tinha no
contexto social, conforme discutimos no capítulo anterior. O percurso de formação de uma
clínica psiquiátrica infantil é dividido por Bercherie (2001) em três períodos. Embora façamos
este autor dialogar com outros que discutem a formação do campo da psiquiatria infantil,
obedeceremos a sua divisão em três períodos de formação da clínica psiquiátrica infantil
devido principalmente a seu caráter didático.

2.2 A idiotia como único transtorno mental infantil


O período inicial, datado dos três primeiros quartos do século XIX, tem como foco
principal a discussão em torno da idiotia. Esta condição, como vimos, foi tratada por Foucault
(2001) como um passo decisivo para o campo psiquiátrico se constituir como um saber que
têm ingerência sobre as condutas anormais. De acordo com Bercherie (2001), embora a idiotia
seja uma condição detectável na infância, ela foi estudada e descrita primeiramente no
contexto do adulto, como também pode ser observado através da discussão levantada por
Foucualt (2001) no caso de Jouy. Ainda segundo Bercherie (2001), este primeiro período é
correlato da ideia social de que a criança é percebida como um adulto em potência. Ou seja,
bem como na psiquiatria infantil não havia patologias voltadas para a infância, a criança
47

socialmente era vista como um adulto em potência. O adulto é o destino da criança, sendo este
tudo aquilo que ela tem em latência. É nesse sentido que a idiota torna-se uma patologia
chave, na medida em que, conforme veremos, trata-se de um atraso no sentido de se tornar o
adulto.
A assimilação da idiotia pela psiquiatria não foi tão evidente como pode parecer à
primeira vista. Esta afecção foi descrita primeiramente por Pinel39 (1745-1826). Pinel foi um
marco em relação à sistematização de uma clínica psiquiátrica ao inaugurar a exploração
sistemática e a ordenação dos fenômenos encontrados (BERCHERIE, 1989). O idiotismo era
considerado uma das quatro grandes classes em que se distribuíam as manifestações
mórbidas, junto com a mania, a melancolia e a demência. Enquanto esta última era
considerada uma perda da função de síntese, do juízo, configurando-se como uma incoerência
das atividades mentais, o idiotismo tinha um estatuto diferente. Pinel o considerava a como
uma “obliteração das faculdades intelectuais e afetivas (...) ficando o sujeito reduzido a uma
existência vegetativa” (BERCHERIE, 1987, p. 36). Esta pode ser adquirida ou congênita.
Quando considerada congênita, correspondia a uma condição intratável e de certa forma
excluída da intervenção clínica. Esta divisão foi mais uma vez revista por Esquirol que
aprimorou a classificação de Pinel ao denominar o idiotismo adquirido de demência aguda e
cunhar o termo “idiotia” para a forma congênita.
Foucault (2006) indica que houve uma mudança significativa na maneira de se
conceber a idiotia a partir de Esquirol (1772-1840), médico que deu um primeiro passo na
direção da reviravolta na forma de entendê-la. Esquirol passa a conceber a idiotia não como
uma doença, mas como um estado no qual as faculdades intelectuais nunca se manifestaram
ou não puderam ser desenvolvidas suficientemente. Embora a noção de desenvolvimento em
Esquirol (1772-1840) se faça de um modo binário – ou se tem ou não se tem – esta permite a
clivagem entre duas espécies de afecções: aquelas da ordem da enfermidade e outras
relacionadas à monstruosidade e à anomalia (FOUCAULT, 2006). Inserida neste último
grupo, a idiotia passou a ser caracterizada pela ausência de desenvolvimento, diferente da
demência que se manifesta tardiamente e se agrava ao longo dos anos. Esquirol se destacou
na difusão desta divisão através de sua nosologia sindrômica que descreve este estado como
uma “obliteração das faculdades intelectuais e afetivas do conjunto da atividade mental”

39
Cabe ressaltar que em Pinel e Esquirol podem-se encontrar descrições de quadros de mania e de melancolia o
que mais tarde será a base para a afeção cunhada por Kraepelin com o nome de psicose maníaco depressiva que,
por sua vez, inspirou o transtorno bipolar. No entanto, os sentidos dos termos mania e melancolia, tanto para
Pinel quanto para Esquirol, eram diferentes daqueles que posteriormente ficariam consagrados na psicose
maníaco-depressiva (BERCHERIE, 1987).
48

(BERCHERIE, 2001, p.130). A idiotia é marcada pela ideia de que as faculdades intelectuais
não se desenvolveram devido à impossibilidade de assimilar os conhecimentos relativos à
educação desde a primeira idade. Esta, portanto, passa a ser considerada uma afecção
presente desde a infância sem possibilidade de tratamento, ou seja, está ligada a um fator
constitutivo e congênito. Este quadro, na perspectiva de Esquirol, era formado devido à
insuficiência dos órgãos levando a um impedimento de exercer as funções intelectuais
(BERCHERIE, 1989; 2001). Diferente do demente, que é marcado por uma descontinuidade
entre uma condição prévia e seu estado de doença, o idiota é aquele que sempre o foi,
tornando-se a primeira vista excluído de qualquer possibilidade de tratamento e educação 40. A
idiotia passa, portanto, a ser considerada uma condição que se aproxima da monstruosidade.
Observa-se neste ponto um aspecto apontado por Foucault que veremos mais adiante: é
através da idiotia que a psiquiatria passa a ingerir sobre aquilo que é anormal. Isto porque a
idiotia não é considerada uma doença, mas

um estado no qual as faculdades intelectuais não se manifestam jamais, ou não puderam se


desenvolver o suficiente para que o idiota pudesse adquirir os conhecimentos relativos à
educação que recebem os indivíduos de sua idade, e colocados nas mesmas condições que eles
(ESQUIROL, 1838 apud LOBO, 2008, p. 350).

Para que algo se torne do domínio da psiquiatria nesse momento não é, portanto,
necessário que seja considerado uma doença.
A criança consiste em um objeto da psiquiatria sem que possamos falar de uma
psiquiatria infantil. É nesse sentido que Bercherie (2001) afirma que é através da idiota “se
pode reconhecer o primeiro conceito de uma psiquiatria da criança, o único, em todo o caso,
que a moderna psiquiatria da criança conserva dessa época” (p.131). Tanto a loucura, quanto
outras patologias mentais (como a mania ou a melancolia) não eram estudadas a partir da
infância. O argumento principal, de acordo com Bercherie (2001), consiste na ideia de que o
eu ainda não está totalmente formado nesta faixa etária impedindo a manifestação de uma
doença que seja durável e radical. Griesinger (1817-1868) indica que aquilo que impede que a
loucura se apresente na criança é a incipiência do eu, as patologias infantis só poderiam estar
ligada as interrupções no desenvolvimento, ou um impedimento deste, assim como na idiotia
(BERCHERIE, 1989). Esta condição, contudo, possui um estatuto curioso para a psiquiatria
da época. Isto porque embora os psiquiatras tenham iniciado uma discussão em torno da
idiotia, o impedimento do desenvolvimento que a caracterizava não era considerado passível

40
Nota-se aí a diferença entre o caso de Cornier e Jouy apresentados por Foucault (2001).
49

de ser revertido.
No entanto, esta questão foi aos poucos sendo revista. O primeiro momento da
constituição do campo da psiquiatria infantil discutido por Bercherie (2001) também é
marcado pela querela entre os psiquiatras e os educadores quanto à reversibilidade da idiotia.
Lobo (2008) aponta que a discussão em torno desta condição passou a ganhar espaço em
outros campos, como por exemplo, na pedagogia. O interesse em relação à idiotia pela
pedagogia se deu principalmente através da discussão em torno das chamadas crianças
selvagens. Há uma série de registros destas crianças41 criadas geralmente por animais fora da
civilização, principalmente no final século XVIII. Destaca-se um caso registrado em 179842
de um garoto selvagem que fomentou uma discussão em torno da reversibilidade através da
educação de características congênitas. Este diz respeito ao caso que Itard (1774 - 1838)
43
denominou de Vitor, ficando conhecido como o “Selvagem de Aveyron” . Vitor foi
submetido primeiramente à observação de Pinel, sendo considerado um idiota, ou seja,
portador de uma condição irreversível e intratável através da medicina. Em seguida, a criança
é confiada à Itard, então diretor da Instituição Imperial dos Surdos-Mudos em Paris. Este, ao
empregar algumas técnicas de educação direcionadas a surdos-mudos conseguiu algum
avanço na condição do menino selvagem44, o que fomentou a discussão em torno da
possibilidade de tratamento da idiotia. Em seguida, por intermédio de alguns educadores,
dentre eles destacam-se Séguin (1812-1880)45, aluno de Itard, e Delasiauve (1804-1893)46,
aluno de Séguin, a questão em trono da educabilidade do idiota sofreu uma reviravolta através
da revisão da noção de desenvolvimento. O desenvolvimento deixou de ser considerado uma
propriedade ou faculdade dos indivíduos para remeter-se a um processo universal sujeito a

41
A importância da discussão sobre as crianças selvagens podem ser vislumbradas através do fato de Lineu ter
elaborado uma classificação deste fenômeno.
42
O caso de Kaspar Hauser que inspirou o filme de Werner Herzog (“O enigma de Kaspar Hause” de 1974) foi
registrado próximo ao período que estamos discutindo, por volta da metade do século XIX.
43
O filme “O Garoto Selvagem” (1970) de François Truffaut teve seu roteiro baseado nos relatos de Itard.
44
Em 1801, Itard narra seus esforços junto a Victor no livro “Mémoire sur les premiers développements de
Victor de l´Aveyron”. Esses escritos são importantes no que diz respeito a um relato de uma tentativa de
tratamento de uma criança. Kanner ao cunhar o termo “autismo infantil precoce” em 1943 se refere à Itard como
um dos precursores do estudo daquilo que passou a ser entendido como psicose infantil.
45
Séguin,fez uma espécie de médico-pedagoria, tonando-se um dos pioneiros na sistematização do método
educativo para deficientes. No ano de 1846, foi publicado seu tratado intitulado “Idiocy and its treatment”. Ou
seja, através de um pedagogo passa-se a discutir o tratamento da idiotia.
46
É curioso notar que Delasiauve é apontado como um dos pioneiros na discussão da depressão infantil.
Destacam-se suas “Lições sobre a mania infantil” escrita em 1852.
50

contingências. De acordo com Foucault (2006), os escritos teóricos de Séguin marcam uma
nova forma de se conceber a idiotia. Séguin faz uma distinção entre os idiotas propriamente
ditos e os retardados. O idiota é aquele que pára em algum nível do desenvolvimento,
enquanto o retardado está atrasado nas etapas a serem seguidas. Nesta divisão, o
desenvolvimento aparece não mais como algo binário, mas com um processo que afeta
comportamentos e organizações neurológicas. O processo de desenvolvimento é inescapável,
trata-se de uma espécie de norma em relação a qual todos se situam e não mais uma
virtualidade. O adulto aparece como um ponto ao mesmo tempo real e ideal do término de
desenvolvimento, ele será a norma. Nesse sentido, a idiotia e o retardamento mental não
podem ser entendidos como uma doença, pois consistem em variedades temporais no interior
do desenvolvimento normativo da criança. Na mesma direção, Lobo (2008) aponta para a
ascensão da hipótese de que algumas crianças podem adquirir certo grau de idiotia pela
influência de uma educação primária mal dirigida. Se a educação é capaz de ser responsável
por uma desregulação do curso natural de desenvolvimento, esta também pode reverter os
atrasos. Séguin e Delasiauve são percussores de estratégias educacionais visando empregar
técnicas diferentes em casos de idiotia. Desenvolvem-se assim métodos alternativos que darão
origem à educação especial.

2.3 A discussão em torno da loucura do adulto na criança


Este contexto antecede o segundo estágio que se inicia na segunda metade do século
XIX e se estende até o primeiro terço do século XX. Neste intervalo, Bercherie (2001) destaca
os anos de 1880 em diante, quando há a publicação da primeira geração de tratados da
psiquiatria infantil em inglês, francês e alemão. De acordo com o autor, este período é
marcado pela criação de uma clínica psiquiátrica da criança que consiste basicamente na
transposição da clínica e da nosologia elaboradas em relação aos adultos durante o mesmo
período. Duas mudanças importantes são destacadas em relação à psiquiatria realizada no
primeiro período. A primeira delas consiste na atenção dada à evolução de uma afecção,
aprimorando-se seu caráter diacrônico. Diferente da perspectiva apresentada por Foucault
(2006), para Bercherie (2001), os quadros clínicos passam a ser pensados não mais como
estados, mas como doenças que possuem uma evolução temporal. A clínica psiquiátrica que
se forma no segundo período torna-se aos poucos etiopatogênica, isto é, propõe a pensar estas
entidades clínico-evolutivas através de mecanismos patológicos típicos.
Morel (1809-1873) é indicado como um psiquiatra que consolidou estas mudanças
principalmente ao atribuir às categorias uma causa dominante (BERCHERIE, 1989). Ao
51

investigar estas causas, Morel propõe que hajam patologias mentais adquiridas, cujas causas
provêm do corpo, e patologias mentais constitucionais que se enraízam em um terreno
psicológico. É neste último que a idiotia se encontra, consistindo na quarta classe de
degenerescências de Morel. As doenças mentais adquiridas são entendidas a partir de uma
ideia de fundo constitucional, ou seja, são “defeitos ou insuficiências do desenvolvimento de
certas faculdades mentais”. (BERCHERIE, 2001, p.133) Bercherie (2001) aponta que a partir
de então a discussão em torno da noção de desequilíbrio ganha relevo e passa a ser
relacionada à concepção da patologia em termos de insuficiência do desenvolvimento de
certas faculdades mentais. Ou seja, através desta, pode-se falar do retardamento de certas
funções e não somente da totalidade do psiquismo. Destaca-se assim a continuidade entre a
psiquiatria e a discussão em torno da educação dos idiotas por Séguin e Delasiauve, uma vez
que as afecções mentais não corresponderiam a um comprometimento do organismo como um
todo, mas apenas de faculdades que podem ser trabalhadas através da educação.
Neste contexto, são feitas os primeiros debates em torno das faculdades mentais
infantis visando destacar aquelas passíveis de desvio no desenvolvimento. Nesse sentido,
Bercherie (2001) afirma que não foi a criança louca, mas a idiota que deu origem à
psiquiatrização da infância pela constituição de um saber médico-pedagógico e sua extensão
nas práticas de escolarização.
Foi também por volta desta época, que se têm notícias da primeira classificação oficial
constituída pelo governo norte americano a partir de um censo epidemiológico publicado em
1840 (GAINES, 1992). Neste, somente duas categorias eram utilizadas para abarcar os
problemas relacionados à saúde mental: a idiotia, e outra relativa à fase adulta, a insanidade.
No entanto, na segunda versão deste censo, em 1880, o número de categorias amplia-se para
sete: mania, melancolia, monomania, paresia, demência, dipsomania e epilepsia. Conforme
vimos no capítulo passado, em relação à infância, foi também por volta do final do século
XIX que a criança ganhou visibilidade como uma entidade separada do adulto, o que foi
acompanhado paralelamente no campo da psiquiatria, a um olhar mais atento voltado para a
infância.
A ideia de uma patologia infantil passa a não mais se restringir, neste período, à
idiotia. De acordo com Bercherie (2001), os conceitos de Morel principalmente relacionados à
loucura propiciam a indagação da existência, na criança, de outras patologias mentais, ou
mesmo, da possibilidade de haver uma criança louca. Inúmeros trabalhos publicados no final
do século XIX são marcados pela tentativa de encontrar na criança, ao lado da idiotia, um
apanhado de síndromes mentais presentes no adulto. Logo, “(...) em um primeiro tempo, a
52

psiquiatria infantil – deixando de lado o retardamento mental – é antes um objeto de


curiosidade e um campo complementar da clínica e da teoria psiquiátricas do adulto, do que
um verdadeiro campo autônomo de investigação.” (BERCHERIE, 2001, p. 134). Ou seja, a
criança nesta época passa a ser interesse da psiquiatria somente na medida em que se pode
encontrar nela manifestação de certas afecções discutidas no âmbito do adulto. Os alienistas,
portanto, procuravam encontrar na criança as síndromes mentais descritas nos adultos, o que
impediu a clínica com crianças a se constituir como campo autônomo de prática e de
investigação. (JANUÁRIO & TAFURI, 2009)
A psiquiatria infantil47 só vai ganhar certa autonomia quando a teoria kraepeliniana for
incorporada principalmente através de Bleuer em 191148. Kanner (1935/1971) indica que
importância de Kraepelin (1856-1926) para a constituição de uma psiquiatria voltada para a
infância diz respeito principalmente a seu interesse em destacar a heterogeneidade etiológica
de diferentes tipos de enfermidades. De acordo com Kanner (1935/1971), Kraepelin deixa de
olhar somente para a descrição das patologias, isto é, para a nosologia e passa a pensá-las em
relação a uma pessoa que possui uma série de características próprias que afetam o curso da
patologia. Pereira (2001) indica a psiquiatria a partir de então passou a lidar com entidades
inscritas no campo das ciências naturais e que seu objetivo seria descrever e classificar
doenças mentais justificando a crescente importância dada às classificações psiquiátricas.
Bezerra (2014) destaca que Kraepelin, ao lado de Freud, foi uma das figuras centrais que
alicerçou as bases das classificações contemporâneas. Kraepelin construiu uma classificação
baseada na evolução de seus pacientes que se caracterizava por categorias que se excluíam
mutuamente. Seu método baseava-se na observação e descrição minuciosa dos fenômenos
clínicos, buscando delimitar seus agrupamentos típicos e, sobretudo, sua evolução e seu
“estado terminal”, traçando uma espécie de história natural da doença. É voltando-se para o
curso da doença que se chega na infância. A demência precoce descrita por Kraepelin49

47
De acordo com Alexander e Salesnick (1968), Hermann Emminghaus (1845-1904) é um autor que se dedica
mais profundamente as questões da infância, consistindo em uma exceção no que concerne a importação de
patologias do adulto para a infância. Emminghaus foi autor da obra Die psychischen Störungen des Kindesalters
(Transtornos mentais da infância) que foi publicado em 1887.
48
Bleuler por não concordar com a evolução inexorável para a demência, renomeia o quadro de demência
precoce, indicado por Kraepelin, propondo um novo conceito: a esquizofrenia. A demência precoce, descrita por
Krepelin e a demência precocíssima, formulada por Sante de Sanctis foram renomeadas de “esquizofrenia
infantil” (BERCHERIE, 1987).
49
A noção de demência precoce oscila consideravelmente no tratado de psiquiatria de Kraepelin. O seu
“Compêndio de psiquiatria” começou a ser escrito em 1883 e aprimorado ao longo de 30 anos, tornando-se um
tratado com mais de duas mil e quinhentas páginas (PEREIRA, 2001).
53

consiste numa reunião em uma única categoria que congrega outras no campo dos processos
demenciais precoces. Foi também Kraepelin que cunhou o termo psicose maníaco-depressiva,
essencial na discussão em torno do transtorno bipolar como veremos adiante. No entanto, a
psicose maníaco-depressiva era degenerativa, mas não originária, A possibilidade de sua
existência na infância não era concebida, diferente da demência precoce (BERCHERIE,
1989). Nessas novas trilhas etiológicas, destaca-se uma discussão importante em torno da
chamada “demência precocíssima” realizada por Sante de Sanctis (1862-1935) em 1906. Esta
afecção apontava para o aparecimento de um estado de morosidade e indiferença em crianças
que até então tinham um desenvolvimento normal. Valendo-se dessa obra, outros autores
desenvolveram ideias semelhantes, sendo o primeiro a comprovar a existência de formas
infantis da demência precoce foi o suíço Bertschinger (MARFINATI & ABRÃO, 2014).
A teoria de Kraepelin foi retomada, sobretudo no que diz respeito às modalidades
gerais de sua nosologia, mas também através da demência precoce, mais especificamente, em
relação à possibilidade desta afecção ser um quadro que aparece precocemente, na infância.
Ou seja, passa-se a conceber uma espécie de demência adquirida nos primeiros anos de vida.
Segundo Bercherie (2001), as considerações de Bleuler (1857-1939) sobre a esquizofrenia
permitiram que o tema da demência precoce passasse a ser discutido em termos de psicoses
autísticas e dissociativas na criança50. Nota-se que o termo “autismo” é utilizado como um
sintoma da esquizofrenia do adulto, alçando o estatuto de uma patologia somente mais tarde
com Kanner (1935/1971). Com uma diferenciação clara do retardamento mental, as psicose
ou demências se tornam importantes na formação de uma clínica “pedo-psiquiátrica”, mas
ainda consistem em afecções transportadas do adulto para a infância, como nos indica o
adjetivo “precoce”. Diz-se “pedo-psiquiátrica”, pois os pediatras foram também importantes
na construção desta. De acordo com Kanner (1935/1971), os escritos que existiam na pediatria
até 1928 se restringiam a comentar causas orgânicas, havendo pouca menção a fatores
psicológicos e a relação com o ambiente, com exceção é claro da idiotia que nesta época já
era uma condição totalmente incluída no campo médico. É somente a partir da terceira década
do século XX, como veremos, que se iniciará uma discussão específica do campo da
psiquiatria infantil em conjunto com a pediatria, o que coincide com o que Bercherie (2001)
chama de clínica “pedo-psiquiátrica”.

50
De acordo com Bercherie (2001) já em 1926 encontramos pela primeira vez a expressão “psicose infantil” em
um tratado de autoria de Homburger.
54

De acordo com Kanner (1935/1971), uma série de fatores impulsionou um interesse


maior pela saúde mental infantil principalmente nos EUA no final do século XIX e início do
XX. Neste período, muitos estudos com crianças passaram a ser desenvolvidos, configurando
um panorama bastante distinto dos séculos anteriores. Segundo Bercherie (2001), esta nova
perspectiva é tributária do estatuto que a criança ganha na sociedade. Conforme vimos no
capítulo anterior, esta passa a ser entendida como uma fase de preparação para a vida adulta,
apoiada pela ideia de que “o homem se faz”. Nesse sentido, destacam-se as teorias do
desenvolvimento diante das quais a criança é vista como algo que tem que se desenvolver
para se tornar adulto ressaltando-se o papel da educação. Estellita-Lins (2002) cita como áreas
de destaque o crescente interesse pelo desenvolvimento psicológico51 normal através das
pesquisas de Gesell (1880-1961), o foco no desenvolvimento cognitivo-epistemológico das
pesquisas de Jean Piaget (1896-1980), a questão do enquadramento no corpo e da motricidade
com Henri Wallon (1879-1982) e as investigações centradas no desenvolvimento da
linguagem e problemas em torno da aprendizagem de Vygotski (1896-1934). Além destes,
pode-se citar pesquisas de fundo etológico que empreenderam estudos comparativos do
desenvolvimento entre crianças e animais e a psicologia baseada no gestaltismo que propôs
alguns estudos em relação à maturação da percepção a partir da criança, trançando alguns
diálogos importantes com a fenomenologia. Logo, ainda seguindo as indicações de Estellita-
Lins (2002), pode-se falar de uma espécie de diáspora das pesquisas com crianças, uma vez
que uma gama de pesquisadores do desenvolvimento humano a recortam como objeto de
estudo em funções distintas de acordo com as questões que os interessam enquanto
pesquisadores. As pesquisas com crianças no século XX, portanto, são bastante heterogêneas,
alcançando campos de estudos variados. Observa-se, portanto, um amplo interesse em relação
à infância levando o século XX a ser chamado de o século da infância por Ellen Key em 1909
(KANNER, 1935/1971).
O primeiro fato destacado por Kanner (1935/1971) como impulsor no interesse da
psiquiatria pela infância consiste no estabelecimento da psicometria direcionada à infância.
De acordo com o autor, a atenção voltou-se para os alunos que não se adequavam a seus
níveis escolares. Foram chamados especialistas52 para avaliar estas crianças que passaram a

51
Silk et al. (2000) indicam que neste mesmo período a psicologia infantil passou a constituir uma disciplina
acadêmica. O psicólogo Stanley Hall (1846-1924) é frequentemente creditado por ter inaugurado o estudo
acadêmico com crianças.
52
O nome de Alfred Binet (1857 - 1911) é citado por Kanner (1935/1971) como um percussor deste estudo
avaliativo. Binet, junto com o seu aluno Simon, foi um pedagogo considerado o inventor dos primeiros testes
de inteligência.
55

ser submetidas a uma série de tarefas de diferentes níveis de complexidade. Ao ordenarem-se


os resultados e organizarem-se os dados estatísticos que forneciam uma espécie de média do
desenvolvimento cognitivo de cada faixa etária, consolidou-se o primeiro teste de inteligência
em 1905 com o nome de “Teste Binet-Simon”. De acordo com Kanner (1935/1971) este teste
é importante no que concerne à elaboração de medidas relativas à infância, impulsionando
também a própria psiquiatria a se voltar para este objeto. Consolidou-se também a educação
especial, herança das ideias de Séguin em conjunto com a possibilidade de comprovação de
diferenças cognitivas através dos testes psicométricos.
Outro acontecimento que ajudou a impulsionar a criação de uma psiquiatria infantil
foi a instalação de tribunais para menores. As crianças infratoras, durante muito tempo, eram
tratadas como as mesmas medidas punitivas dos adultos (KANNER, 1935/1971). Aos poucos,
juntamente com um movimento geral de atenção voltada para a infância, passou-se a entender
que as crianças delinquentes deveriam ser atendidas separadamente e de maneiras distinta dos
criminosos mais velhos. As diferenças em um primeiro momento não passavam do uso de
salas especiais e horários distintos para as audiências, no entanto, não tardou o aparecimento
de tribunais direcionados exclusivamente para a infância. De acordo com Kanner (1935/1971)
na medida em que estes tribunais aumentaram de número, despertou-se o interesse de saber o
porquê que os menores cometiam tais infrações, ou seja, despertou-se o interesse em torno das
idiossincrasias da própria criança. Uma série de especialistas foi recrutada para discutir esta
questão, o que impulsionou questões em relação à infância na psiquiatria. Paralelamente a
isto, Silk et al. (2000) apontam que aquilo que modificou diretamente a ideia de uma
psicopatologia infantil foi o reconhecimento da necessidade de ampliar a discussão em torno
dos direitos das crianças. Os autores indicam que nesta época os animais possuíam mais
direitos do que a criança – de fato, o primeiro caso reportado de abuso infantil foi trazido à
corte, em 1874, pela Associação Americana de Prevenção da Crueldade contra Animais
(American Society for Prevention of Cruelty to Animals) (CONRAD & SCHNEIDER, 1980;
NADESAN, 2010). Na mesma direção, inicia-se uma preocupação com a delinquência
infantil.
Kanner (1935/1971) aponta que a partir de então, principalmente nos anos 1920, surge
uma série de medidas e instituições que visam assegurar o desenvolvimento infantil. As
chamadas “casas de crianças” (KANNER, 1935/1971, p. 33) são instituídas como uma
possibilidade de acolhimento e educação das crianças que sofriam maus tratos dos pais. Silva
56

(2013) descreve uma mudança institucional nos EUA significativa neste momento: a criação
das child guidance clinics53(clínicas de orientação familiar direcionadas para a infâncial) que
surgem para atender este novo público através de aconselhamento familiar e diagnóstico das
patologias infantis. Estes serviços ajudavam, sobretudo, os pais que buscavam orientações
para problemas de seus filhos54. Segundo Kanner (1935/1971), as child guidance clinics
(clínicas de orientação infantil, mencionadas acima) contribuíram fortemente para o maior
alcance do tratamento dos problemas da infância. Através delas, o autor indica que se passou a
levar em conta particularidades da infância na organização de medidas terapêuticas. De
acordo com Estellita-Lins (2012), estas clínicas de orientação familiar que se constituíram
principalmente nos EUA e na Inglaterra são congruentes com o momento que da psiquiatria
no que concerne à infância. Como veremos, havia uma forte influência da psicanálise através
de uma vertente pedagógica ligada ao pensamento de Anna Freud e sua apropriação pelo
funcionalismo americano.
Seguindo as indicações de Kanner (1935/1971), o conjunto destas mudanças sugere
que a discussão sobre a criança não se limitava mais em pensá-la a partir do adulto como no
final do século XIX. Passou-se a fazer algo por elas, ou seja, a se discutir medidas
intervencionistas. O nome de William Healy (1869-1963), psiquiatra norte americano
fundador da primeira child guidance clinic, aparece como um dos pioneiros na discussão em
torno dos problemas sociais e psicológicos da criança tendo em vista uma espécie de
prevenção da delinquência infantil ligada à medicina higienista. Foi através de movimentos
organizados por Healy para tratar crianças delinquentes que se chamou atenção para a
necessidade de criação de categorias diagnósticas pensadas a partir da infância. Silva (2013)
indica que o “jovem infrator” tornou-se uma nova figura da patologia infanto-juvenil. Além
da delinquência, o aumento do interesse geral pela higiene mental da população e pela
prevenção de patologias mentais levou à investigação de uma série de problemas na infância
que caracterizariam a possibilidade de uma doença mental. Nas palavras da autora: “se os

53
De acordo com Kanner (1935/1971), a primeira delas foi a Boston Habit Clinic em 1921, seguida de outras em
várias cidades norte americanas. Cada uma destas clínicas possui uma equipe central constituída por um
psiquiatra, um psicólogo e um assistente social. As crianças atendidas eram em sua maior parte levadas por pais,
escolas e agências de atenção infantil devido a condutas desviantes. Ate o ano de 1929 haviam cerca de 500
clínicas somente nos EUA. (KANNER, 1935/1971).
54
Estellita-Lins (2012) aponta que na França pode-se encontrar serviços parecidos com o nome de “clube do
bebe”, “acolhida parental” e “proteção materno-infantil”. Estes funcionam em hospitais, instituições ou aberta ao
público como um todo.
57

problemas relacionados à infância não se resumiam mais à delinquência, o interesse pelo


desenvolvimento e pela adaptação infantil também não se restringia mais aos casos de retardo
mental” (SILVA, 2013, p.38). Os grandes progressos da bacteriologia nesta época levaram a
uma discussão do tema da conversão da saúde e da prevenção. Através do lema da higiene
mental de prevenção da loucura e da delinquência, os holofotes se voltaram para a infância,
devido à ideia de que esta é uma fase que dará a base para aquilo que se configura como a
idade adulta. É necessário, portanto, vigiá-la. Ou seja, a noção de desenvolvimento exigiu que
se olhasse para a criança de modo a prevenir o aparecimento de certas afecções nos adultos.
De acordo com Kanner (1935/1971) para os higienistas não havia melhor ponto de partida do
que os primeiros signos de desvios de conduta que se apresentavam na infância. Os
psiquiatras foram os especialistas chamados a discutir quais eram estes signos e passaram
assim a se interessar mais pela infância e a pensar categorias que se destinavam a esta faixa
etária. Diante desse quadro, as pessoas ligadas à higiene mental tornaram-se os primeiros a
tratarem de categorias psiquiátricas elaboradas a partir da infância (SILK ET AL, 2000). No
entanto, embora os higienistas tenham discutido diagnósticos na infância, tratava-se de um
movimento local, não havendo um alcance nacional. Tal descentralização também ocorria na
psiquiatria de maneira geral nos EUA o que pode ser observado pela existência de diversas
classificações distintas de alcance local. Somente em 1917 a American Medical-psychological
Association produziu uma tentativa de uniformização das classificações que vinham sendo
utilizadas nos hospitais psiquiátricos. Esta deu origem à primeira sistematização oficial
intitulada First Edition of American Medical Association’s Standard Classified realizada em
1934.
Além disso, Kanner (1935/1971) e uma série de autores55 destacam o advento da
psiquiatria dinâmica como um fator importante na criação de uma clínica voltada para a
infância. A psiquiatria dinâmica foi possibilitada pelo interesse que Kraepelin ajudou a
fomentar em relação ao doente e não somente à doença, nas palavras de Kanner:
Quando um psiquiatra devia atender a um adulto ou a um adolescente já não se perguntava
simplesmente ‘que sintomas apresenta?’, ‘que nome daremos a seu mal?’. Agora investigava-
se outras coisas: ‘a que classe de pessoa pertence o paciente?’, ‘como era antes de ficar
doente?’, ‘ quando se produziram as primeiras manifestações da doença, como e em que
circunstâncias?’ (...) (KANNER, 1935/1971, p.31).
Logo, a exploração biográfica passou a ser uma parte obrigatória da anamnese
psiquiátrica. Esta se dá principalmente pela “(...) descoberta de que toda manifestação
psicopatológica é o resultado de um conflito psíquico e que esse conflito, em sua expressão
atual no adulto, repete a história infantil do sujeito (...)” (BERCHERIE, 2001, p. 136). Ora,

55
Bercherie (2001), Silk et al. (2000), Estellita-Lins (2002).
58

uma biografia sempre conduz a infância da personagem central. É justamente aí que Kanner
(1935/1971) enxerga pela primeira vez o interesse da psiquiatria na infância. Diferente de
buscar na criança certas patologias relacionadas ao adulto, o enfoque passou a ser as
vicissitudes da infância. No entanto, trata-se ainda de um interesse biográfico, retrospectivo a
partir do adulto. A infância segue sendo uma espécie de “antologia das reminiscências”
(KANNER, 1935/1971, p. 31). Não havia ainda contato direto com a criança. Mesmo Freud
em 1905 quando discute a questão da sexualidade infantil no texto “Três ensaios sobre a
sexualidade” não trabalhou diretamente com crianças. Ademais, o primeiro caso de análise de
uma neurose infantil, o caso do pequeno Hans de 190956, teve lugar, como é sabido, através
de encontros com o pai do menino – Hans foi visto apenas uma vez por Freud. A infância faz
sua aparição na obra freudiana como uma justificativa da sexualidade infantil ao representar
um regime arcaico de funcionamento que jamais se apagará da vida mental. Esta noção é
melhor designada como o “infantil” do que a criança propriamente dita. Trata-se de uma ideia
de certas fases que diz respeito a uma espécie de estrutura fixa, mas ao mesmo tempo a uma
história cambiante que nunca será ultrapassada mesmo quando adulto: a própria sexualidade é
infantil. Esta noção até os dias de hoje não deixou de ser uma criação da própria psicanálise, o
que tem como consequência um aspecto que aparecerá mais adiante, principalmente com a
segunda guerra mundial: o problema do valor a ser concedido ao desenvolvimento observável
na realidade. (ESTELITTA-LINS, 2002; 2012) Originalmente na teoria psicanalítica havia
um conhecimento da criança através da psicanálise dos adultos, somente em um momento
posterior passou a ser possível falar em uma psicanálise de crianças. A inserção da infância na
psicanálise não foi sem controvérsias57. Duas correntes distintas são consideradas pioneiras na
análise com crianças. O trabalho intitulado “A técnica da análise de crianças pequenas”
apresentado em 1924 por Melanie Klein58 no VIII Congresso da IPA em Salzburgo marca o

56
Foi também neste ano (1909) que Freud proferiu algumas conferências nos EUA. Faz –se importante destacar
que Adolf Mayer assistiu as suas conferências, sendo ele o fundador da Associação americana de psicanálise.
Mayer também tornou-se uma importante figura na configuração do campo da psiquiatria infantil. O prefácio da
primeira edição do tratado de psiquiatria infantil de Kanner foi escrito por Mayer. Além disso, este psiquiatra,
como veremos adiante, que permitiu Kanner abrir, sob sua égide, o primeiro serviço de psiquiatria infantil dos
EUA.
57
O primeiro registro feito de uma psicanálise com criança diz respeito a análise empreendida por Hermine Hug-
Hellmuth ou Hermine Von Hug-Hellmuth (1871-1924) de seu sobrinho. Esta foi terceira psicanalista mulher
depois de Margarethe Hilferding (1871-1942) e Sabina Spielrein (1885-1941). Hermine teve um fim trágico,
assinada pelo próprio sobrinho, talvez por isso, seu nome tenha sido pouco comentado na história da psicanálise.
58
De 1929 a 1946, Melanie Klein realizou a sua famosa análise do caso Dick. Em 1932 publicou a obra “A
psicanálise da criança" simultanemante em inglês e alemão.No próximo capítulo voltaremos a falar de Melanie
Klein devido a sua importância na discussão em torno da depressão na infância.
59

início de uma discussão que se estenderá durante muito tempo na psicanálise e ganha
destaque principalmente no pós-guerra. No outro lado da querela está Anna Freud que publica
em 1927 o livro “O tratamento psicanalítico de crianças” que comporta uma abordagem
distinta em relação à psicanálise de crianças. Enquanto Melanie Klein se dispôs a psicanalisar
crianças muito pequenas através da transposição da técnica de associação livre para o brincar,
Anna Freud tem uma proposição diferente para a psicanálise infantil. Esta valorizava a
questão pedagógica do analista em relação à criança o que deveria ser feito somente após o
desenvolvimento precoce. Os kleinianos pressupunham no bebê questões observadas a partir
da análise com adultos como o complexo de Édipo, por exemplo, que nesta teoria ganha uma
versão precoce. Já a escola fundada pela filha de Freud, não admitia a probabilidade de
fantasias arcaicas de colorido edipiano, enfatizando-se principalmente uma postura
pedagógica do analista em relação à criança. 59
A Sociedade Britânica de Psicanálise tornou-se a principal arena da polêmica sobre a
clínica psicanalítica com crianças, uma vez que devido à ascensão do regime nazista, a
Inglaterra foi o lugar onde os psicanalistas encontraram para desenvolver o seu trabalho 60. O
que interessa, no entanto, é que a psicanálise descobre a criança para além do infantil presente
no adulto. A criança, e mais especificamente o bebê, passa a ser algo central na
metapsicologia. Isto porque a concepção que cada teórico da psicanálise constrói de um bebê
diz sobre a sua compreensão da gênese subjetiva, sendo uma espécie de modelo para outras
hipóteses metapsicológicas.
Para Bercherie (2001), foi justamente através do interesse e da influência da
psicanálise que finalmente consolida-se uma psiquiatria voltada para a infância, configurando,
a partir de 1930, o terceiro momento na formação da psiquiatria infantil como uma
especialidade ou subespecialidade médica. A consolidação uma clínica psiquiátrica da
infância, no entanto, não é tão evidente neste período, uma vez que esta permanece atrelada
intimamente à psicanálise. Contudo, é somente através desta, que o autor vislumbra a

59
Anos depois, ainda em meio a este debate, surge uma espécie de segunda via, o chamado middlegroup, onde
destacam-se D.W.Winnicott e Michael Bälint. Cabe ressaltar que Winnicott é pediatra de formação o que
ressalta o aumento do interesse dos pediatras pela psiquiatria através de sua aproximação com a psicanálise
destacado por Bercherie (2001) e Kanner (1935/1971). Este grupo passou a valorizar o estudo do bebê na sua
relação com meio. Arriscaria a dizer que somente a partir de então se consolida um arcabouço conceitual
psicanalítico sobre a prática analítica com crianças. Embora este debate seja extremamente interessante, não cabe
no escopo deste projeto um aprofundamento maior dos troncos e ramos que a psicanálise foi criando nesse quase
um século e meio de existência. Para um maior aprofundamento ver: Estellita-Lins ( 2002,2012) e Mezan (2014).
60
No pós-guerra este eixo se desloca em parte para os EUA, podemos falar assim de uma prevalência da língua
inglesa no debate da psicanálise com crianças.
60

possibilidade de integração de certas características particulares das patologias que constituem


o campo do infantil, a saber: a sua estreita ligação com o desenvolvimento psicológico que
consiste em etapas fixas, mas por outro lado, a grande mutabilidade que esta faixa apresenta.
Para o autor, uma condição inerente a uma psicopatologia infantil é a impossibilidade de
“definir trajetórias típicas, estruturas fixas, cuja evolução estaria já inscrita nos dados de
início, com exceção, talvez, para as patologias mais grave, a primeira a ser bem descrita”
(BERCHERIE, 2001, p. 139). É provável que Bercherie esteja se referindo aos retardos
discutidos através da idiotia. No entanto, como veremos adiante, é possível que nos dias de
hoje a psiquiatria esteja mais próxima de conceber os transtornos de uma maneira mais
estável nesta faixa etária. Percorreremos antes de chegar neste ponto, o momento de
consolidação da psiquiatria infantil e sua estreita ligação com a psicanálise.

2.4 A criação de uma clínica “pedo-psiquiátrica”


Silk et al. (2000) apontam que a natureza dos problemas vistos como questões de
saúde mental na infância se expandiram significativamente nesta época. De acordo com os
autores, foi por volta dos anos 1920 e 1930 que se começou a discutir problemas da vida
cotidiana da infância, muito provavelmente também por influência da psicanálise. Além disso,
Bercherie (2001) indica que a partir de 1930, a falta de interesse dos pediatras pela psiquiatria
infantil foi substituída por um desejo de incluir em sua prática o ensino da psiquiatria aos
problemas cotidianos da criança. De acordo com Kanner (1935/1971), “o período de 1915 a
1930 ficará indubitavelmente registrado na história como um período em que o interesse
esporádico dos pediatras foi substituído por um desejo geral de incluir na prática pediátrica e
no ensino da psiquiatria os problemas cotidianos da criança comum” (p. 46)61. Surge a
chamada “criança problema” que passa a ser entendida a partir de concepções médicas. Trata-
se de uma criança que apresenta certos comportamentos desviantes em relação a normas de
autoridade na escola e frente aos pais, por exemplo.62 Dentre os problemas cotidianos
medicalizados estão o fato de roer unhas, os pesadelos noturnos, a masturbação. Observa-se,
portanto, um movimento mais geral da psiquiatria, explorado por Foucault (2001), no sentido
de tratar não somente daquilo que é doença, mas do comportamento anormal. Consideramos

61
O autor indica que em 1930, o “Comitê de Assistência e Proteção Médica” ao organizar uma conferência sobre
saúde e proteção das crianças designou um subcomitê especial de psicologia e psiquiatria pediátrica. Kanner
(1935/1971) reproduz na íntegra a carta feita pelo subcomitê que, grosso modo, tem como objetivo afirmar a
necessidade do estudo da psicologia e da psiquiatria infantil pelos pediatras de modo a criar uma espécie de
“inteligência psiquiátrica” (p.47).
61

que este movimento se expande ao longo das versões do DSM, muito embora, conforme
veremos adiante, nas últimas versões a noção de doença é mais uma vez resgatada através da
ideia de transtorno: o comportamento anormal torna-se uma doença.
Segundo Bercherie (2001), ocorre uma espécie de centralização de várias
manifestações consideradas patológicas no âmbito da pediatria através de uma linguagem
psicanalítica, ou seja, os problemas cotidianos configuram questões clínicas. Estellita-Lins
(2002) afirma que o problema do desenvolvimento infantil exigirá que a psicanálise ajuste o
compasso com outras disciplinas como a pediatria, a neurologia infantil e a psicologia do
desenvolvimento. Nesse sentido, “a exigência em propor uma arqueologia espontânea da
doença realizada de modo inconsciente na vida cotidiana normal marca a opção de deter-se no
sofrimento banal e onipresente da existência comum, que no caso dos jovens reúne vida em
desenvolvimento. O que significa chorar, brincar, experimentar e dormir.” (ESTELLITA-
LINS, 2012, p. 891) Seguindo as indicações de Bercherie (2001), a clínica voltada para a
infância que surge na confluência da psiquiatria com a psicanálise além de retomar certas
categorias dos períodos anteriores (como os retardos e as psicoses infantis), permite destacar
uma série de patologias na infância tais como as doenças psicossomáticas, os transtornos do
comportamento e as perturbações do desenvolvimento das funções elementares como a
motricidade, o sono, a fala, dentre outras.
Ainda na esteira do pensamento de Bercherie (2001), podemos encontrar na Europa no
período entre guerras a integração de algumas noções psicanalíticas em uma série de manuais
de psiquiatria infantil. No entanto, de acordo com o autor, é somente na língua inglesa que
uma concepção de conjunto se faz como um todo relativamente homogêneo. Assumpção
(1995) aponta, no entanto, que esta homogeneidade é apenas superficial. De acordo com o
autor, desse momento em diante podemos observar o aparecimento de duas vertentes na
psiquiatria relacionada à infância: uma derivada de Kanner, em quem nos determos mais
adiante, que possui influências ambientalistas, funcionalistas e da higiene mental; e outra,
derivada da psiquiatria francesa que definia a si própria como "organodinâmica" e com a
maior representação no posterior "Tratado de Psiquiatria Infantil" de Ajuriaguerra (1975) 63.

63
Ao longo deste manual, nota-se uma perspectiva multidisciplinar e dinâmica adotada pelo autor. Como, por
exemplo, na seguinte passagem: “ A psiquiatria infantil deverá estudar as ‘formas’ de organização no tempo e no
espaço. Se faz indispensável o estudo evolutivo das funções; não se pode considerar o ser humano como um ser
de uma peça somente, mas – em seu funcionamento – como um ser que se realiza progressivamente ao compasso
de suas próprias realizações funcionais (.... ) É impossível compreender uma criança balizando-se unicamente no
que sucede em seus aparatos funcionais, uma vez que se forma através da comunicação, das relações que
estabelece com o mundo exterior, e através do enfrentamento entre as suas atividades instintivas e o meio ao
redor; a criança se abre para a experiência e vai se construindo sobre a base de suas próprias contradições.”
(AJURIAGUERRA, 1975, p. 7)
62

Essa Psiquiatria infantil de origem francesa é também bastante influenciada pela psicanálise.
Ademais, observa-se o pouco conhecido psiquiatra e matemático suíço Mortiz Tramer (1882-
1963) que foi também pioneiro na definição dos parâmetros da psiquiatria infantil em termos
de diagnóstico, tratamento e prognóstico. Em 193464 Tramer fundou uma revista designada a
publicar estudos somente de psiquiatria infantil a Zeitschirft für Kinderpsychiatrie e somente
no pós-guerra, em 1946, publica um tratado de psiquiatria infantil reunindo os estudos feitos
até então. Neste âmbito, constrói-se todo um corpo teórico no qual não se vinculam somente
os quadros de retardo mental, que passam a construir um capítulo da nova especialidade, mas
também os quadros psicóticos na infância, trazendo os conceitos de psicoses autísticas,
desintegrativas e formas marginais, como os quadros neuróticos reacionais e psicossomáticos.
Principalmente no contexto norte americano, observa-se o nascimento de uma nova
maneira de se entender as afecções e consequentemente de fazer clínica que se reflete em
certa concepção da psiquiatria infantil. Esta se consolida principalmente a partir da
confluência do pensamento psicanalítico com o funcionalismo e procura relacionar as
afecções às adversidades do meio ou à vida interior. Léo Kanner (1894-1981) psiquiatra
austríaco radicado nos EUA foi um dos pioneiros na discussão da psiquiatria infantil como
uma especialidade médica. Tornou-se, com a anuência de Adolf Meyer, diretor do novo setor
de psiquiatria infantil do Johns Hopkins Hospital justamente em 1930. Seu manual de
psiquiatria publicado em 1935, utilizado ao longo do texto como referência, é o primeiro livro
de psiquiatria infantil em língua inglesa. Na introdução deste manual, diferente de Silk e al.
(2000) que possuem uma posição mais crítica a este respeito, a discussão em torno dos
problemas cotidianos infantis é tratada como uma vitória de uma psiquiatria mais humanitária
que passou a enxergar e querer fazer algo pelos problemas das crianças. De acordo com
Kanner, “se descobriu que as condutas que antes se julgavam ‘más’, inexplicáveis,
incompreensíveis, eram reações das crianças contra as atitudes que os adultos mostravam
frente a eles, o perfeccionismo, a oposição, a hostilidade aberta ou dissimulada”. (KANNER,
1935/1971, p.35). É também neste âmbito que se inicia uma discussão em torno da
possibilidade de existência de questões mais severas nesta faixa etária. Surgem livros e textos
que enfocam o tratamento de esquizofrenia e autismo infantil. Kanner publica suas primeiras
considerações acerca do autismo em um trabalho realizado na década de 1940, intitulado
“Autistic Disturbances of Affective Contact”. O autor descreve um estudo feito com onze

64
Ajuriaguerra (1975) indica que em um data próxima, 1937, foi realizado em Paris o Primeiro Congresso
Internacional de Psiquiatria Infantil.
63

crianças (oito meninos e três meninas), as quais se diferenciavam por possuírem algumas
características atípicas em relação à maioria das crianças e que viriam a se caracterizar como
autistas. É também Kanner que fica conhecido por discutir uma teoria que visa explicar a
etiologia do autismo através de um posicionamento materno caracterizado pela figura da “mãe
geladeira”. Ou seja, as questões infantis, como aponta Bercherie (2001), passam a ser
entendidas como situações conflitivas que correspondem a reações às intempéries do meio
ambiente. Esta maneira de compreender as patologias é decorrente principalmente de uma
junção da psicanálise como pensamento funcionalista americano. De acordo com Bercherie
(2001), o funcionalismo americano diz respeito mais a uma forma de pensamento do que um
corpo de ideias doutrinária, nesse sentido, ele pode ser entendido como uma abordagem
intimamente inscrita na vida americana, correlacionando-se a sistemas de ideais de origens
diferentes. A apropriação através de uma concepção funcionalista ocorre tanto com a
psicanálise quanto com a Gestalt- terapia e o pavlovinismo dando origem às ciências do
comportamento. Conforme citado acima, Adolf Meyer é considerado um dos fundadores da
escola psiquiátrica americana e importante disseminador no espírito funcionalista. O
pensamento funcionalista, grosso modo, entende o homem como um organismo engajado em
uma tarefa permanente de adaptação ao meio ambiente. O psiquismo seria uma das funções
que tem a utilidade de mediação entre o ambiente e as necessidades do organismo como um
todo. Desta forma, pensa-se sempre em termos de funções. Nessa perspectiva, a patologia
mental passa a ser entendida como um comportamento que tem uma função, logo, seu
surgimento possui um lugar na história do doente. Como veremos adiante, no DSM-I (1952),
pode-se vislumbrar o imbricamento desta forma de pensamento e a psiquiatria na infância.
Ainda segundo Bercherie (2001), o pano de fundo sobre o qual se apresenta essa
vertente da psiquiatria com crianças consiste nos trabalhos de influência funcionalista e
behaviorista de Gesell (1880-1961). Este é um dos precursores de pesquisas de observação
feita com crianças65, o que resultou em uma quantidade grande de dados e escalas
comparativas. Gessell difundiu métodos de avaliação da capacidade cognitiva enfatizando
uma noção de desenvolvimento voltada para o rendimento e adaptação normalizadora que
acabaram por ganhar fins de conotação higienista no pós-guerra (ESTELITTA-LINS, 2012).
Observa-se, portanto, que a aproximação da psicanálise com crianças para a cultura norte-
americana acarretou em um destaque ao modelo holista da pessoa o que configura uma
espécie de psicanálise voltada para o indivíduo que se adapta a um meio através de seus

65
É atribuída a ele a invenção do espelho com um lado translúcido, ferramenta através do qual se pode observar
o outro lado sem que seja percebido. Algumas pesquisas com crianças foram realizadas com esta ferramenta.
64

mecanismos egóicos. Isto se deve, como vimos, à junção das proposições de Freud e do
pensamento funcionalista e da psiquiatria americana interpessoal (representadas por William
Menninger, Adolf Meyer e Erik Eickson). Outro ator importante nesta conjuntura foi a escola
psicanalítica de Nova Iorque que inclusive fundou um periódico voltado exclusivamente para
a infância, o “Psychoanalytical Study of the Child”. Editado sob a influência de Anna Freud e
da psicologia do Ego, este foi um periódico pioneiro no campo da psicanálise de crianças,
sendo o seu primeiro número anterior à segunda guerra e o segundo somente publicado em
1946. Diferente do que afirma Bercherie (2001) sobre a autonomia que a psicopatologia da
infância ganha em relação ao adulto, Estellita-Lins (2012) indica que a criança por esta
perspectiva foi medida mais uma vez exclusivamente através da ideia de um adulto normal.
Desta forma, o desenvolvimento passa a ser considerado como uma linha progressiva de
caráter teleológico que leva diretamente ao adulto saudável e responsável.
Neste ínterim, no entanto, começa a se configurar um objeto peculiar: as crianças de
guerra que passam a ser um problema de saúde pública. A questão do abandono de crianças
provocado pela guerra, mas também o desmembramento do núcleo familiar levou o campo do
cuidado infantil ter que se voltar para este problema. Ademais, também no pós-guerra, se
assistiu nos EUA ao chamado “baby boom”, ou seja, a um crescimento significativo do
nascimentos o que exigiu um olhar mais atento para a criança66 (SILK ET AL, 2000). A
questão da psicanálise com crianças foi finalmente consolidada no pós-guerra, principalmente
através do desenvolvimento da teoria do apego (attachment)67 que possibilitou ampliar a
discussão com outros campos, ganhando uma progressiva importância no campo científico e

66
Alguns documentos que refletem esse novo olhar sobre a infância são citados pelos autores, dentre eles
destaca-se uma petição assinada pela Joint Commission on the Mental Health of Children em 1969 que exigia
uma melhora nos sistemas de classificação diagnósticos para esta faixa da população em vasto crescimento. O
interesse dos profissionais de saúde em relação a infância pode ser observado através do número de periódicos
dedicados a esta faixa etária criados nesta época. Segundo Silk et al. (2000) alguns periódicos importantes foram
criados nessa época, dentre eles estão o Journal of Abnormal Child Psychology e o Journal of Clinical Child
Psychology .
67
Dentre os teóricos que discutiram a questão do apego, destaca-se o nome de John Bowlby (1907-1990) que
participou do debate Freud-Klein, eximindo-se de tomar partido entre as tendências conflitantes. Para Bowlby, o
vínculo mãe-bebê pode ser estudado objetivamente e consiste em uma via de acesso privilegiada aos problemas
clínicos da criança. Bowlby assume preocupações clínicas e epistemológicas inovadoras para a psicanálise da
época: destaca o valor de estudos observacionais com primatas, por exemplo. Além dele também vale a pena
citar René Spitz (1887-1974) quem inaugurou este tipo de investigação. Sua pesquisa é marcada pela hipótese de
uma depressão precoce, o que faz dele uma figura importante no que concerne a discussão em torno da depressão
infantil. Além destes dois, podemos destacar outros psicanalistas que realizaram uma espécie de observação de
bebês, embora muitas vezes desprovida de registros. Esther Bick foi uma destas, suas observações que versam
sobre a questão de uma criação de uma involtório, uma espécie de segunda pele na relação mãe –bebê foram
claras inspirações de textos psicanalíticos que hoje são utilizados quando se trata de criança. Um exemplo deles é
o já clássico “Eu pele” de Anzieu (1988) que tematiza a questão de um envoltório formado na relação mãe-bebê.
65

teórico da psiquiatria infantil68. A noção de apego fundamentada na observação de primatas


funda um espaço de investigação da díade mãe-bebê que foi progressivamente
compatibilizado com a pesquisa médica, uma vez que obedece ao rigor de formalização
quantitativa da epidemiologia clínica, instaurando um diálogo com hipóteses e procedimentos
provenientes das investigações cognitivas emergentes. Possibilitou-se assim, através do foco
na relação mãe-bebê, uma nova maneira de pensar o pequeno humano, engendrando-se uma
possível conexão com a antropologia social, a psicologia cognitiva e a epidemiologia clínica
(ESTELLITA-LINS, 2012)69. No entanto, observa-se um outro movimento dentro da
psiquiatria infantil, a saber: o estímulo a pesquisas em psicofarmacologia devido a avanços do
uso de fármacos para epilepsia. Pode-se dizer que a partir de então nota-se o início da
separação da psicanálise infantil e da psiquiatria, que será consagrada somente com o DSM-
III em 1980 e que se relaciona com profundas transformações internas da própria psiquiatria.
No que concerne às classificações psiquiátricas, o contexto da segunda guerra também
demandou uma revisão das classificações existentes até então. De acordo com Berrios (2008),
enquanto no século XIX70 cada alienista71 era impelido a criar suas próprias classificações, no
século XX, o cenário é diferente. Neste, as instituições psiquiátricas nacionais, devido a uma
série de fatores, se sentiram obrigadas a formular as suas classificações72. Para Berrios (2008),

68
Estellita-Lins (2012) aponta que a psicanálise a partir de então terá que conviver cada vez mais com a criança
trazida à observação científica, isto é, que foi submetida à investigação da psicologia de orientação positivista, o
que acaba por provocar um conflito interno ao campo.
69
É também nesse sentido que Rego (1975) no prefácio da obra de Ajuriaguera (1975) afirma que a psiquiatria
infantil é “a encruzilhada de muitas disciplinas – pediatria, neurologia, psiquiatria geral, pedagogia, sociologia, e
etc - que com o tempo se desgarrou destes ramos.” (p.6).
70
Bezerra (2014) indica que os dois grandes paradigmas que norteavam a psiquiatria no século XIX consistem
no “clínico –descritivos” presente nos tratados de Pinel e Esquirol e o “etiológico-anatômico” estabelecido nas
obras de Morel e Griesinger principalmente.
71
Berrios (2008) cita uma frase de Philippe Buchez que satiriza esta situação: “Por acreditar que tenham
completado seus estudos, os retóricos irão compor uma tragédia e os alienistas uma classificação” (BOUCHEZ,
1861 apud BERRIOS, 2008)
72
De acordo com Berrios (2008), no ano de 1885, o Congresso de Medicina Mental, na Antuérpia, constituiu
uma Comissão para considerar todas as classificações existentes. Este congresso foi resultado de uma serie de
discussões que vinham sendo empreendidas principalmente na França sobre o estatuto das classificações feitas
por alienistas individuais. Cabe ressaltar que também nesta época, em 1893, surgiu pela primeira vez um acordo
internacional para o uso em todos os países de uma classificação de causas de morte e que passou a ser revista a
cada dez anos. Até a quinta revisão, de 1938, somente estavam incluídas as doenças que eram causas de morte. A
partir da sexta revisão, feita em 1948, passou-se a incluir não apenas aquelas mortais, mas as doenças de uma
maneira geral. A Organização Mundial de Saúde (OMG), desde esta sexta revisão, tornou-se responsável pelo o
que foi chamado "Classificação Internacional de Doenças" (CID) e suas sucessivas revisões (LAURENTI,
1994). Foi justamente nesta edição que a psiquiatria conquistou um espaço neste manual.
66

pensar e forjar classificações dentro de um período histórico é como um jogo de xadrez onde
tudo ocorre dentro de um limite marcado por regras implícitas ou explícitas: nem todos os
movimentos são passíveis de serem feitos e alguns são realizados devido a uma espécie de
regra da moda.
A prevalência de sofrimentos ligados à guerra exigiu uma revisão das classificações
existentes que não davam conta de tais afecções, principalmente em decorrência de uma
demanda por parte da população e dos veteranos de guerra no sentido de sua inserção na
sociedade. Ademais, o espírito da época indicava que as questões estavam cada vez mais
globalizadas, como a própria segunda guerra, o que aponta para uma necessidade maior de
criar uma classificação mais homogênea das doenças, bem como a CID. Em relação à
psiquiatria infantil, Silk et al. (2000) apontam que o foco em distúrbios severos na infância
colaborou para o aumento da necessidade de categorias diagnósticas mais bem sistematizadas.
Além disso, os autores afirmam que no período após a segunda grande guerra, as child clinic
guidance foram cada vez mais substituídas pelo atendimento clínico através de departamentos
de psiquiatria infantil, o que estimulou a pesquisa e também a necessidade de uma
organização da nosologia vigente.
Até então, de acordo com Gaines (1992), os EUA não possuíam nenhuma
centralização de suas classificações: cada área administrativa possuía uma classificação
própria. A falta de sistematização pode ser apreendida pelo número de classificações existes
até então: a Standard Classified Nomenclature of Disease73 (1942), a Armed Forces
Nomenclature (1945) e a Veterans Administration Nomenclature (1946) (APA, 1952). Não
obstante, nenhum desses sistemas era utilizado por hospitais na produção de seus relatórios
(BEZERRA, 2014). Isto levou a Associação Americana de Psiquiatria (APA) a desenvolver
uma proposta de estabelecer uma classificação psiquiátrica mais homogênea.

73
No prefácio da primeira edição do DSM, afirma-se que já em 1927 a New York Academy of Medicine iniciou
um movimento na direção de uma unificação dos sistemas classificatórios. Em 1928, aconteceu uma primeira
reunião intitulada Nation Conference on Nomenclature of Disease que contava com representantes
governamentais e médicos. Um protótipo de um manual foi elaborado e enviado para alguns hospitais. Seu
sucesso fez com que formulada a Standard Nomenclature of Disease em 1933 que foi amplamente adotada por
dois anos, recebendo em seguida outras duas edições até 1942. No entanto, de acordo com os editores do DSM,
além de não se tratar de uma publicação voltada para a psiquiatria, em 1942 muitos centros de estudos
modificavam as nomenclaturas deste manual. ( APA, 1952)
67

2.5 DSM-I e DSM-II: a infância e a transitoriedade das afecções


O contexto que antecede a criação da primeira versão do DSM em 1952 também é
marcado pela publicação da CID-6 (em inglês ICD-6)74, a sexta Classificação Internacional de
Doenças pela Organização Mundial de Saúde (OMS)75. Alguns autores, dentre eles Gaines
(1992) e Silk et al. (2000), afirmam que a criação do DSM também constituiu uma resposta
frente às supostas falhas da CID. Bezerra (2014), por sua vez, indica que a necessidade da
APA em estabelecer um documento separado daquele organizado pela OMS se dá devido ao
fato de que a CID era considerada insuficiente por não contemplar situações que ganham
destaque principalmente através dos veteranos de guerra, como as síndromes cerebrais
cônicas e reações situacionais. No prefácio da primeira edição do DSM, os editores comentam
a exigência trazida pelos sofrimentos ligados à guerra e destacam que uma questão importante
se tratava dos distúrbios de personalidade, o que acabou gerando uma categoria denominada
“Psychopathic Personality” além da questão em torno do estresse pós-combate (APA, 1952).
Ademais, como vimos, uma das principais razões para sua criação consiste na
descentralização do campo da saúde mental americana. O primeiro parágrafo da introdução
deste manual reflete bastante este contexto:
Esta revisão foi programada para incluir as experiências dos psiquiatras na Segunda Guerra
mundial, os resultados de inúmeros anos de uso da nomenclatura das forças armadas pelos
militares e da Administração dos Veteranos, o padrão do código internacional e o resultado de
inúmeros anos de deliberação da Nomenclatura do Comitê da Associação Americana de
Psiquiatria. Como um resultado de tudo isso, nós fomos capazes de oferecer uma classificação
completamente nova em conformidade com um novo pensamento científico e clínico, simples
em estrutura, fácil de usar e virtualmente idêntico a outras nomenclaturas nacionais e
internacionais76 (APA, 1952, p. 1).

O DSM surge assim como uma possibilidade de uniformização destas classificações


e, como veremos, acaba por se tornar uma espécie de bíblia da psiquiatria. É justamente por

74
É importante justificar a ênfase dada ao DSM em nosso trabalho. Consideramos que principalmente a partir de
sua terceira edição, este manual se tornou uma espécie de bíblia da psiquiatra americana. Muito embora seja um
fenômeno eminentemente americano, bem como o transtorno bipolar infantil, entende-se, na esteira do
pensamento de Bezerra (2014) e Zorzanelli (2014), a importância deste manual para além de suas funções
administrativas e assumir que este, desde sua primeira edição, é um objeto cultural mais amplo. Isto é, sua ação
não se restringe ao âmbito médico norte americano, mas ajuda a refletir valores culturais e também a produzi-los
de maneira performativa.
75
Observa-se que neste manual, diferente do DSM-I, há uma categoria restrita para a infância.
76
No original: “This revision is perfectly timed to include the experiences of psychiatrists of World War II, the
results of several years usage by the military and Veterans Administration of a revised army nomenclature, the
pattern of a new international code and the results of several years deliberation of the Nomenclature Committee
of the American Psychiatric Association. As a result of all of these we were enabled to offer a completely new
classification in conformity with newer scientific and clinical knowledge, simpler in structure, easier to use and
virtually identical with other national and international nomenclatures.” (Tradução nossa)
68

isso que faremos uma breve análise da maneira pela qual a patologia infantil foi abordada ao
longo deste manual diagnóstico.
Mais especificamente em relação à psiquiatria infantil, Silk et al. (2000) afirmam que
a criação do DSM-I e suas edições subsequentes tiveram um impacto importante na
compreensão da saúde mental da criança e na elaboração de políticas públicas no século XX.
No primeiro manual, todavia, são feitas poucas menções em relação às patologias específicas
da criança, ademais certas categorias direcionadas para os adultos também possam ser
diagnosticadas na infância (APA, 1952). Alerta-se, contudo, que em condições entendidas
como mais estáveis e duráveis, como a esquizofrenia, por exemplo, a infância possui
especificidades na apresentação dos sintomas. Na categoria “Disorders of psychogenetic
origin or without crearly defined tangible cause or structural change”77, por exemplo,
encontramos a seção “Schizophrenic reaction, childhood type” afirmando que quando se trata
de episódios esquizofrênicos antes da puberdade, os sintomas serão distintos de sua
apresentação na fase adulta devido à “imaturidade e plasticidade do paciente na época em que
78
se iniciou a reação” (APA, 1952, p. 54). A ideia de uma transitoriedade e plasticidade em
relação aos distúrbios infantis também pode ser observada através da seção “Transient
situational disturbances”. Em sua descrição, afirma-se que esta seção é reservada para
reações79 que são mais ou menos transitórias e que consistem em sintomas agudos sem
aparente distúrbio de personalidade subjacente. Como pode ser observado pela seguinte
passagem:
Os sintomas são as vias imediatas usadas pelo indivíduo em sua batalha para se ajustar a uma
situação devastadora. Na presença de uma boa capacidade de adaptação, a recessão dos
sintomas ocorre amiúde quando o estresse situacional diminui. Uma dificuldade persistente
para esta resolução indica um distúrbio mais severo subjacente e deve ser classificado em outra
seção. (APA, 1952, p. 40)80

77
De uma maneira geral, o manual é divido em dois grandes grupos: “Disorders caused by or associated with
impairment of brain tissue function” e “Disorders of psychogenic origin or without crearly difined physical
cause or structural change in the brains”. Enquanto a questão da esquizofrenia é alocada nesta última, na
primeira, encontramos as deficiências mentais, no tópico “Mental deficiency” que parece manter uma linha de
continuidade com a idiotia. Trata-se de uma espécie de deficiência mental presente desde o nascimento e
caracterizada por um déficit de inteligência que varia entre brando, moderado e severo.
78
No original “immaturity and plasticity of the patient at the time of onset of the reaction”. Tradução nossa.
79
Os distúrbios, devido à influência da psiquiatria dinâmica e das ideias do funcionalismo americanos, são
trados como reações ao meio. De acordo com Bezerra (2014), de uma maneira geral, as doenças mentais eram
consideradas uma reação a situações frente as quais o indivíduo não seria capaz de oferecer uma resposta
adequada.
80
No original: “The symptoms are the immediate means used by the individual in his struggle to adjust to na
overwhelming situation. In the presence of good adaptative capacity, recession of symptoms generally occurs
when the situational stress diminishes. Persistent failure to resolve will indicate a more severe underlying
disturbance and will be classified elsewhere.”
69

Através desta passagem, observa-se claramente a concepção funcionalista e dinâmica


que foi a base deste manual, uma vez que os conflitos são entendidos como reações ao meio e
o humano como um indivíduo se modulando para lidar com este. Seguindo as indicações de
Bezerra (2014), os sintomas tinham uma forte dimensão simbólica e relacional exigindo que
seu sentido fosse desvendado em uma possível intervenção terapêutica. As reações
psicopatológicas são assim percebidas como um espectro entre os diferentes graus de
comprometimento psíquico, ou seja, não comportam uma fronteira clara entre os domínios da
saúde e da doença.
A parte “Transient situational personality disorders” é, por sua vez, marcada por
subdivisões. Dentre elas encontramos: “Adjustment reaction of infancy” e “adjustment
reaction of early childhood”, dentre outras que remetem a algum período da vida. A primeira
é caracterizada pelas dificuldades que o bebê vai sofrer devido às intermitências de um meio,
principalmente pela falta deste. Os editores afirmam que dificuldades de dormir e comer são
manifestações comuns nesta faixa etária (APA, 1952). Já a categoria “Adjustment reaction of
childhood” corresponde à reações sintomáticas transitórias em crianças um pouco mais
velhas, sendo divididas em outras denominadas “Habit disturbance”, “Conduct disturbance”
e “Neurotic traits”. Silk et al. (2000) afirmam que grande parte dos problemas infantis
cotidianos passaram a ser cobertos por essas últimas categorias como, por exemplo,
pesadelos, masturbação, dentre outras. Nota-se que no DMS-I a maioria das desordens
infantis são marcadas pela noção de transitoriedade, ou seja, não são afecções duradoras o que
é justificado pela concepção de um eu incipiente nesta faixa etária. A influência da psicanálise
e da psicologia do desenvolvimento ajuda a construir este quadro na medida em que a infância
é entendida como um momento de transição para a vida adulta. Perspectiva esta que se
mantém na segunda versão do manual.
O DSM-II, publicado em 1968, embora não seja um marco de uma mudança de
paradigma, traz algumas novidades em relação à primeira edição. No entanto, a segunda
edição consiste em uma espécie de extensão da primeira. Embora o número de diagnósticos
tenha aumentado, este continuava sendo usado mais como um instrumento administrativo
restrito à psiquiatria americana. Gaines (1992) afirma que nesta edição as influências de
Freud, Kraepelin e Mayer estão aparentes, indicando que se trata de uma coletânea de
diferentes referenciais teóricos. Isto pode ser observado através do lugar central ocupado
pelas noções de neurose e psicose, por exemplo, muito embora a ideia de reação ganhe menos
importância, ficando praticamente restrita à infância.
70

Em relação a esta, a seção “Transient situational disturbances”, presente no DSM-I,


se mantém. A sua descrição conserva a característica de desordens transitórias que ocorrem
devido a uma reação aguda frente a um estresse provocado pelo meio ambiente. Observa-se
que embora a noção de reação tenha desaparecido do restante do manual, nesta seção, ela foi
preservada. De acordo com os editores, estas reações devem sem ser levadas em conta de
acordo com o estágio de desenvolvimento do paciente. A divisão por período da vida também
permanece, há especificações em relação à primeira infância, à infância, à adolescência, à
idade adulta e à terceira idade. Na parte destinada à primeira infância, indica-se que os
diagnósticos alocados aí consistem em uma reação aguda associada, por exemplo, com a
separação do paciente da mãe que se manifesta por choros, falta de apetite e severo retrocesso
social (APA, 1968). Já na categoria “Adjustment reaction of childhood”, diferente do DSM-I,
não se encontram mais divisões internas. Esta se restringe a uma pequena nota a guisa de
exemplo: “ciúmes associado com o nascimento de um irmão mais novo do paciente e
manifestado por enurese noturna, comportamento de chamar a atenção e medo de ser
abandonado” 81(APA, 1968, p.49). A ausência de detalhamento nesta parte é justificada devido
à criação de uma seção exclusiva para a infância e a adolescência, que também estava
presente nas edições da CID-6, 7 e 882. Os editores indicam que muitos dos distúrbios antes
considerados reações transitórias foram alocados nesta nova seção.
A categoria “Behavior disorders of childhood and adolescence” é restrita a desordens
que ocorrem nesta faixa etária e que se apresentam de maneira mais estável, internalizada e
mais resistente ao tratamento do que aquelas inseridas na “Transient situational
disturbances”. Trata-se de uma condição intermediária entre as patologias presentes no adulto
e aquelas reservadas à infância: “Esta estabilidade intermediária é atribuída pela grande
83
fluidez de todos os comportamentos nesta faixa etária.” (APA, 1968, p.50). Este capítulo,
por sua vez, é divido em uma série de subcategorias: “Hyperkinetic reaction of childhood (or
adolescence)”, “Withdrawing reaction of childhood (or adolescence)”, “Overanxious
reaction of childhood ) or adolescence)”, “Runaway reaction of childhood (or adolescence)”,
“Unsocializes agressive reaction of childhood ( or adolescence)”, “Group deliquent reaction

81
No original: “Jealousy associated with birth of patient’s youger brother and manifested by nocturnal enuresis,
attention-getting behavior, and fear of being abandoned”. Tradução nossa.
82
Em uma nota de rodapé na categoria “Transient situational disturbances” indica-se que embora na CID haja
o agrupamento de todas as categorias relativas à infância na seção “Behavior disroders of childhood and
adolescence”, o DSM-II mantém algumas destas em subseções dos “Transient situational disturbances”.
83
No original: “This intermediate stability is attributed to the greater fluidity of all behavior at this age.”
Tradução nossa.
71

of childhood (or adolescence)”, “Ohter reaction of childhood (or adolescence)”. De uma


maneira geral, estas categorias descrevem alguns sintomas que se aplicam à infância e, em sua
maioria, consistem em afecções que não são suficientemente estáveis para se encaixarem em
formas mais estáveis, como personalidade esquizoide ou neuroses, mas que apresentam
alguma particularidade devido a seu aparecimento durante a infância. Nota-se que a
problemática da medicalização de problemas cotidianos84 se expande neste manual, uma vez
que uma série de comportamentos, como a desatenção e o fato de fugir de casa são discutidos.
A última subcategoria desta seção, “Other rection of childhood (or adolescence)” foi feita
para agrupar afecções que não especificadas ao longo desta seção, mas que acometem
crianças e adolescentes. De certa forma, esta última categoria resume bem a função da nova
seção criada especificamente para a infância: ela agrupa distúrbios mais severos que reações
transitórias e menos severos do que aqueles direcionados para os adultos. Silk et al. (2000)
afirmam que estes distúrbios consistem em uma espécie de diagnóstico diferencial entre a
infância e o adulto. No entanto, no DSM-II, indica-se que as desordens relacionadas aos
adultos são padrões mais estáveis que podem ser amiúde observados na adolescência ou mais
cedo. Embora a infância ainda não tenha a especificidade que ganhará no DSM-III, pode-se
dizer que no DSM-II, os transtornos reservados para esta fase são abordados de maneira
diferente do manual anterior. Silk et al. (2000) trabalham com a hipótese de que a segunda
versão do manual reflete um momento no qual a criança na psiquiatria, assim como na
cultura, conforme observamos no capítulo anterior, deixou de ser entendida como um adulto
em miniatura e passou a ter atributos próprios. O DSM-II, desta perspectiva, serve como uma
ponte para publicação do DSM-III no qual a infância ganha uma especificidade ainda maior.
Bezerra (2014) chama a atenção para o fato de que o ano de 1968, data de publicação
do DSM-II, tornou-se um símbolo das turbulências sociais que modificariam profundamente
as instituições e a cultura. De uma maneira geral, pode-se dizer que as expectativas em tornos
dos avanços das pesquisas no campo da biologia, imantando a promessa de uma ciência do
homem total, estavam cada vez mais elevadas principalmente devido à descoberta da dupla
hélice do DNA em 1952. O impacto deste período, um dos motores da mudança de paradigma
instaurada com o DSM-III, já pode ser entrevistos nos debates após a publicação do DSM-II.
Um exemplo significativo é a querela em torno da seção voltada para a descrição de desvios
de natureza sexual, que incluía a homossexualidade no DSM-II. Pela primeira vez, pode-se

84
A noção de medicalização foi tratada, dentre outros autores, por Conrad (2007). O autor procura assinalar um
processo em que comportamentos outrora compreendidos através de outros campos do saber foram sendo
tratados através do vocabulário médico, constituindo-se como verdadeiros problemas médicos.
72

observar a negociação de uma categoria diagnóstica na arena pública. Este debate resultou na
retirada da homossexualidade da sétima tiragem do DSM-II. Ademais é também por volta
desta época que se inicia uma separação da psiquiatria infantil e da psicanálise. A primeira
conseguiu se consolidar em alguns países como subespecialidade ou mesmo especialidade,
caracterizando-se por um aspecto multidisciplinar que pudemos observar na sua própria
criação. A psiquiatria infantil passou a ser uma base para hospitais materno-infantis e se
destacou pelo predomínio de profissionais do gênero masculino. Já a psicanálise com
crianças, embora tenha conseguido vencer uma série de questões internas ao campo, migrou
progressivamente para os consultórios particulares e conta em sua maioria com profissionais
femininos (ESTELLITA-LINS, 2012). O desenrolar desta separação ocorre principalmente,
em um primeiro momento, devido ao desenvolvimento de pesquisas médicas na área
psiquiátrica alavancadas pela psicofarmacologia. Este fato acarretou um distanciamento
paulatino das disciplinas do campo das ciências humanas que marcaram o nascimento da
psiquiatria infantil como a fenomenologia, a hermenêutica, a linguística e a antropologia
social.

2.6 O DSM-III e a consolidação de uma seção reservada à infância


A terceira versão do manual diagnóstico produzido pela Associação Psiquiátrica
Norte- Americana (APA) é, de certa forma, um sintoma desta situação, mas também um
desencadeador de uma nova perspectiva. Esta edição se caracterizou por uma descontinuidade
em relação às outras: a psiquiatria dinâmica presente nas duas primeiras versões foi
substituída por categorias baseadas em sintomas. Buscando distanciar-se de uma descrição
etiológica da doença, a tradição inaugurada pelo DSM-III (1980) visa descrever os sintomas e
agrupá-los. Uma psiquiatria orientada pelos sintomas surgia como promessa de uniformização
e melhor eficácia nos diagnósticos das doenças mentais.
Cabe ressaltar, que esta nova perspectiva não foi resultado somente de avanços
científicos (MAYES & HORWITZ, 2005). Trata-se de uma resposta frente a uma série de
críticas que a psiquiatria vinha sofrendo relacionadas principalmente à dificuldade de
demonstrar eficácia prática nos padrões exigidos pelas companhias de seguro de saúde, à
ausência de uma linguagem comum e padronizada que pudesse orientar as instituições de
financiamento em pesquisa, além da necessidade de diagnósticos mais precisos para atender
as demandas da FDA (Food and Drug Administration) para a aprovação de medicamentos.
Estas críticas podem ser observadas de dentro e fora do campo, como por exemplo, através de
filmes que criticavam severamente a psiquiatria e também pesquisas que comprovavam a
73

frágil confiabilidade dos diagnósticos psiquiátricos.85 De acordo com Frances (2013), a


expectativa era de que este manual encerrasse a anarquia dos diagnósticos, focando a atenção
em uma maneira mais cuidadosa de diagnosticar como um pré-requisito necessário para um
tratamento mais preciso e também servindo como uma ponte entre a pesquisa clínica e a
psiquiatria clínica. Nesse sentido, este manual tem sua importância ligada mais a um
posicionamento político do que a um avanço científico. Destaca-se, portanto, a ideia de uma
descontinuidade entre a terceira versão do manual diagnóstico produzido pela Associação
Psiquiátrica Norte- Americana (APA) e as outras edições. Gaines (1992) indica que esta
mudança se expressa principalmente através de três pontos: na intenção de adotar uma
nosologia puramente descritiva e “a-teórica”, na definição de critérios específicos para cada
categoria diagnóstica e através da introdução de um sistema multiaxial. De acordo com os
editores, “a maior justificativa para uma concepção a-teórica tomada no DSM-III no que
concerne à etiologia é que a inclusão de teorias etiológicas seja um obstáculo para o uso do
manual por clínicos de diferentes orientações teóricas, uma vez que não seria possível
apresentar todas as teorias etiológicas aceitáveis para cada transtorno.” (APA, 1980, p. 6)86
Esta indicação deve ser pensada de uma maneira mais ampla. Assim como a
prevalência da psiquiatria dinâmica era coerente com o período posterior à Segunda Guerra
Mundial, a pretensão de construção de um manual a-teórico nos fornece indícios dos valores
culturais em jogo nas sociedades liberais urbanas, nas quais o saber médico ganha um poder
explicativo em relação a uma série de comportamentos. Um projeto de um manual “a-teórico”
implica o rompimento com a psicanálise. Bezerra (2014) indica que a consequência mais
importante desta cisão diz respeito ao abandono da concepção de sintoma como um signo que
deve ser interpretado para dar lugar à concepção do sintoma enquanto sinal. Ou seja,
pressupõe-se que as afecções descritas no DSM não sejam apenas um indicativo de algo que
deve ser inferido ou interpretado pelo médico. Tratar e diagnosticar se aproximam: deve-se
realizar uma observação e descrição daquilo que se observa, os comportamentos e atitudes do
paciente. Os pressupostos empiricistas têm afinidades evidentes com uma visão fisicalista da
perturbação mental (RUSSO E PONCIANO, 2002). O surgimento e a difusão da nova

85
Os mais citados são o filme “O estranho no ninho” de 1975 e o estudo de Rosenhan de 1972 .
86
No original: “The major justification for the generally atheoretical approach taken in DSM-III with regard to
etiology is that the inclusion of etiological theories would be an obstacle to use of the manual by clinicians of
varying theoretical orientations, since it would not be possible to present all reasonable etiological theories.”
Tradução nossa.
74

nomenclatura presente no DSM-III correspondem à paulatina ascensão da psiquiatria


biológica como vertente dominante no panorama psiquiátrico mundial (RUSSO e HENNING,
1999). Estas são um sintoma do crescente sucesso que as intervenções psicofarmacológicas
alçaram nas décadas anteriores. O efeito de experiências com clorpromazina, dos diazepínicos
e dos antidepressivos triciclos ajudou a abalar a divisão que se destacava principalmente no
DSM-I entre transtornos orgânicos e psicológicos, sendo todos eles considerados como
alguma base biológica. Bezerra (2014) indica que além da eficácia das novas intervenções
biológicas, na cultura de uma maneira geral reforçava-se um paradigma naturalista. Por outro
lado, a mudança na direção de explicações que se atêm aos sintomas serve como uma maneira
de assegurar uma modificação na direção do tratamento. A transformação de paradigma
sofrida pela psiquiatria nos anos 80 não diz respeito somente a um protocolo teórico, um
projeto clínico é completamente indissociável da orientação teórica que norteia a construção
de uma classificação diagnóstica. Neste caso, a intervenção medicamentosa é a principal
direção apontada. A hegemonia que o DSM ganha a partir de então pode ser entendida de
acordo com Sadler (2013) devido ao interesse que o complexo médico-industrial e, de uma
maneira geral, de um sistema econômico de saúde.
A abordagem multiaxial que encontramos neste manual acaba por ampliar o seu uso
para além da clínica, buscando transformar o diagnóstico em um instrumento de pesquisa. De
acordo com os editores do manual, o DSM-III recomenda o uso de um sistema multiaxial para
assegurar que certas informações, importantes no planejamento do tratamento e no
prognóstico para cada indivíduo, sejam registradas através de cinco eixos87 (APA, 1980).
Enquanto os três primeiros eixos consistem na avaliação diagnóstica em si, servindo para
organizar a direção do tratamento e ajudar na noção de um prognóstico, os dois últimos são
usados em situações clínicas e de pesquisa especiais e detém informações suplementares aos
eixos I, II e III. A separação entre eixos permite que o conceito de comorbidade entre em
cena, ou seja, é possível que uma mesma pessoa receba um diagnóstico no eixo I
acompanhado de outro no eixo II. Como, por exemplo, pode-se diagnosticar uma dependência
de álcool no eixo I acompanhado de um transtorno de personalidade antissocial no eixo II.
Neste caso, o principal diagnóstico seria este último, sendo o primeiro uma espécie de
consequência deste. Além disto, os três últimos eixos, em especial os dois últimos, apontam
para uma visão psicossocial dos transtornos. De acordo com Gaines (1992), a abordagem

87
São eles: Eixo I: síndromes clínicas; Eixo II: Transtornos do desenvolvimento e transtornos de personalidade;
Eixo III: Condições médicas agudas e transtornos físicos; Eixo IV: Fatores ambientais ou psicossociais; Eixo V:
Escala de avaliação global do funcionamento ( nos últimos anos).
75

multiaxial redefiniu o alcance do diagnóstico aumentando sua utilidade para além do encontro
clínico. O objetivo deste modelo é transformar o diagnóstico em um instrumento de pesquisa,
uma vez que os dados coletados ultrapassam a necessidade terapêutica imediata, podendo
também ser usados como dados para estudos epidemiológicos, dentre outros. Este sistema,
como veremos, influenciará a maneira de se conceber a patologia infantil.
A terceira mudança discutida por Gaines (1992) – a saber: a adoção de critérios
específicos para cada categoria diagnóstica – reflete uma aspiração de transformar a nosologia
em um empreendimento científico que se baseia em síndromes delimitadas precisamente. Não
obstante aponte-se uma filiação teórica em relação à teoria de Kraepelin, este manual
distancia-se de sua clássica nosologia em ao menos um aspecto: os quadros sintomatológicos
agrupados por Kraepelin se remetiam, como vimos, a hipóteses etiológicas, enfatizando-se os
quadros evolutivos. Já o DSM-III recusa a descrição etiológica e acaba por se focar apenas em
uma variedade de sintomas. Sendo assim, diferente de um princípio explicativo para um
conjunto de sintomas, observa-se no DSM-III o enfoque em critérios diagnósticos específicos
para cada categoria. Além disso, nota-se que o DSM-III fornece uma lista de características
associadas a cada transtorno como idade de início, sua aproximação com determinado gênero
e a relevância do histórico familiar.
Redefine-se, assim, a própria maneira de se conceber a noção de doença mental. Isto
porque, a continuidade entre normalidade e patologia observada nos manuais anteriores foi
abandonada com a ideia de que o manual descreve transtornos, desordens que se afastam da
normalidade. A própria noção de transtorno mental fornecida na introdução do manual nos
indica esta mudança:
No DSM-III cada um das doenças mentais são conceituadas como uma síndrome ou padrão
clínicos significantes, de cunho comportamental ou psicológico que ocorre em um indivíduo e
que está tipicamente associado seja com um sintoma de dor (sofrimento), seja de incapacidade
em uma ou mais áreas importantes do funcionamento. (APA, 1980, p. 6)88

Esta mudança na maneira de se conceber a patologia mental pode ser observada


através do desaparecimento do termo neurose89, mas também a partir da criação da categoria
denominada transtorno bipolar como veremos no próximo capítulo. De acordo com Bezerra
(2014), “este modo de operar a construção das categorias diagnósticas desestabilizou e

88
No original: “In DSM-III each of the mental disorders is conceptualized as a clinically significant behavioral
or psychological syndrome or pattern that occurs in na individual and that is typically associated with either a
painful symptom (distress) or impairment in one or more important areas of functioning (disability)”. Tradução
nossa.
89
Para a questão da retirada do termo “neurose” ver: Dunker (2014)
76

pulverizou os diagnósticos, que passaram a ser agregados uns os outros, fazendo surgir a
noção de comorbidade e precipitando um processo constante de redefinição das categorias
existentes – e a constante criação de novas.” (p. 22) Enquanto no DSM-II encontramos 180
categorias, a sua terceira edição comporta 295.
Este aumento significativo de categorias diagnósticas também pode ser entrevisto no
que concerne às patologias infantis. Não por acaso, o DSM-III possui quatro vezes mais
categorias diagnósticas direcionadas para a infância do que a segunda versão manual (SILK et
al., 2000). Estas estão em sua maioria no novo capítulo “Disorders Usually First Evident in
Infancy, Childhood and Adolecence” que pretende abarcar patologias que se iniciam na
infância. Em sua descrição afirma-se que ao diagnosticar uma criança é preciso primeiramente
verificar os transtornos descritos neta parte. No entanto, sugere-se mais uma vez que crianças
podem apresentar as mesmas desordens reservadas à fase adulta, mas com uma
sintomatologia diferente. Observa-se que há uma diferença semântica no nome desta categoria
para aquela destinada à infância no DSM-II. Enquanto na segunda versão do manual o nome
“Behavior disorders of childhood and adolescence” sugere que as patologias encontradas
nesta parte possuem algo específico da infância calcado no seu caráter de transitoriedade, na
terceira versão indica-se que estas são amiúde diagnosticadas na criança, mas que há grande
probabilidade de se estenderem na vida adulta. Além disso, afirma-se que “devido as suas
características essências” (APA, 1980, p. 35), os transtornos afetivos e a esquizofrenia
reservam os mesmos diagnósticos tanto para os adultos quanto para a infância.
A seção reservada para a infância se estende da página 33 até a página 100 do
manual, sendo organizada em subdivisões que englobam as seguintes categorias: Intellectual,
Behavioral, Emotional, Physical, Developmental. Um caso interessante desta divisão,
fornecido por Silk et al. (2000) consiste na seção: “Specific Developmental Disorders”. Esta é
dividida em cinco subcategorias baseadas em questões relativas à dificuldade de
aprendizagem. Subentende-se que as crianças devam atingir um certo nível de competência
em múltiplas áreas em idades específicas e a ausência destas corresponderia a uma certa
desordem, o que indica um aspecto normativo direcionado a infância. Além disso, os editores
alertam que muitos problemas infantis, tais como sexualidade precoce e sintomas agressivos,
acabam não sendo abarcados pelas categorias já existentes, o que justificaria a existência da
parte “Transtorno mental não específico”, subtópico da categoria específica para a infância,
para alocar estes problemas (APA, 1980).
O DSM-III carrega observações sobre questões relativas à idade nos diagnósticos não
incluídos nesta categoria, afirmando que o mesmo transtorno pode ser apresentado de
77

maneiras distintas. Consolida-se, assim, a possibilidade de que outros diagnósticos também se


estendam para a infância, mas com uma apresentação diferente. O diagnóstico de distimia, por
exemplo, pode ser aplicado à infância caso os sintomas persistam por ao menos um ano,
enquanto na fase adulta estes devem durar dois anos. De acordo com Silk et al. (2000), a
maioria dos transtornos do eixo I podem ser usados na infância, no entanto, os transtornos de
personalidades, pertencentes ao eixo II, diagnosticados amiúde em conjunto com uma
síndrome clínica do eixo I, não são discutidos em relação à infância. Isto porque eles
consistem em condições consideradas mais duradoras e, por isso, restritas à idade adulta.
Muitos dos transtornos do eixo I, quando verificados antes dos 18 anos, podem ser
reclassificados no eixo II na medida em que se atinja a idade necessária. Como, por exemplo,
o transtorno de identidade, pertencente ao eixo I, que pode ser diagnosticado na infância e
mais tarde, caso persista na fase adulta, passa a ser entendido como um transtorno de
personalidade borderline localizado no eixo II. De certa forma, vislumbra-se uma linha de
continuidade com as edições anteriores em relação à infância, uma vez que os transtornos
desta faixa etária são considerados não tão crônicos e imutáveis quanto àqueles no âmbito da
idade adulta.
De uma maneira geral, podemos intuir um duplo movimento em relação às patologias
infantis no DSM-III. Por um lado, observa-se um aumento significativo dessas e por outro,
nos deparamos com uma diminuição da especificidade das outras patologias podendo estas
também estar relacionadas à infância com uma sintomatologia distinta. Observa-se, portanto,
que o DSM-III colaborou para a expansão e maior elaboração dos diagnósticos relativos à
infância. Isto se deu através do aumento das categorias diagnósticas direcionadas
especificamente a esta faixa etária, da introdução de notificações estipulando critérios
relacionados à idade e da introdução de atrasos no desenvolvimento e transtornos de
aprendizagem (SILK ET AL., 2000). Essas mudanças alavancaram o surgimento de uma
gama de psicopatologias relacionadas à infância e um alargamento deste campo. Ademais, a
descrição sistematizada dos comportamentos de cada desordem instaurada neste manual
permitiu a criação de instrumentos como, por exemplo, testes e questionários direcionados
tanto para pais quanto para profissionais de saúde e da educação. Alarga-se, assim, ainda mais
o alcance deste manual, pois se permite a detecção de certas patologias com maior facilidade
e a consequente popularização de explicações médicas para certos comportamentos. Nota-se
também uma maior importância dada à idade como critério. Nas duas primeiras versões, a
qualidade dos transtornos, isto é, o seu caráter transitório, era aquilo que justificava sua
relação com a infância. Como vimos, as patologias infantis eram considerados em sua maioria
78

reações transitórias frente às adversidades do meio. Embora as patologias da infância ainda


sejam consideradas menos estáveis, nota-se no DSM-III uma importância dada ao momento
em que o transtorno surge, isto é, ao momento de uma maturação entendida como biológica.
Isto pode ser entrevisto através do nome dado a seção, “Transtornos usualmente evidenciados
pela primeira vez na infância e na adolescência”, destacando-se, portanto, não a maneira
como os sintomas se apresentam, mas o início precoce. Além disso, também relacionado à
sistematização dos sintomas, observa-se um aumento de pesquisas que visavam produzir
psicotrópicos e outros tratamentos para tais desordens e inclusive com crianças. A
possibilidade de fazer uma lista de sintomas que levariam a um determinado diagnóstico
permitiu a estruturação de uma série de instrumentos, uma espécie de checklists, que se
direcionavam aos adultos próximos às crianças para verificar a presença de alguns
transtornos, como o “Children’s Depression Inventory” para depressão de 1985.
De acordo com Silk et al. (2000) o alargamento do escopo da patologia infantil a
partir do DSM-III reflete a importância do papel que a criança passou a ocupar nesta época.
Esta, como vimos, galgou um lugar central na sociedade ocidental, relacionado
principalmente a possibilidade de integrar uma parcela significativa do mercado consumidor
(TIMIMI, 2010). Na mesma direção, Nadesan afirma que “a fragmentação da autoridade
sobre as crianças e o crescimento do mercado de produtos direcionados a crianças, produziu
uma diversidade de discursos que visam descrever, normalizar, disciplinar, otimizar e celebrar
a infância.” (NADESAN, 2010, p.3)90
Embora a revisão da terceira edição deste manual (APA, 1987) não tenha trazido
muitas novidades em relação à psicopatologia infantil, algumas questões podem ser
destacadas principalmente no que concerne às descrições quanto à possibilidade de fazer um
diagnóstico em outra faixa etária. Um exemplo interessante, diretamente relacionado ao caso
do transtorno bipolar infantil que veremos adiante, diz respeito à depressão maior e à distimia.
Afirma-se, nesta edição, a possibilidade de diagnosticá-las na infância caso a criança
apresente irritabilidade ao invés de humor depressivo. No entanto, em relação ao transtorno
bipolar não há nenhuma especificação de acordo com a idade. Cabe ressaltar, como veremos
adiante, que foi neste manual que o transtorno bipolar do humor passou a conter subtipos,
alargando ainda mais o escopo deste diagnóstico, embora não haja nenhuma menção sobre
esta faixa etária. De uma maneira geral, de acordo com Silk et al. (2000), a revisão da terceira

90
No original: “The fragmentation of authority over childhood and the growth of a marketplace of child-related
goods produced a seemingly diverse array of discourses aimed at describing, normalizing, disciplining,
optimizing, and celebrating childhood.” Tradução nossa.
79

versão do manual procura discorrer mais detalhadamente sobre os sintomas que certa
patologia apresenta na infância, distinguindo-os daqueles que se desenvolvem a partir dos 18
anos. Além disso, a necessidade de sublinhar a importância do desenvolvimento é
evidenciada. Destaca-se o caso do diagnóstico de anorexia nervosa que se torna passível de
ser utilizado em crianças que não alcançam o peso esperado para a sua fase de
desenvolvimento. Em contrapartida, observa-se que os transtornos do desenvolvimento, de
aprendizagem, transtornos de habilidades motoras e de comunicação são inscritos no segundo
eixo, indicando um caráter mais estável e menos reversível. Observa-se também o maior
empenho em apresentar ensaios clínicos para validar as categorias diagnósticas. De acordo
com Silk et al. (2000), os resultados destes ensaios foram usados para validar os diagnósticos
de déficit de atenção e transtornos de conduta.
Já no DSM-IV (1994), deparamo-nos com modificações mais significativas. Seguindo
os esforços de refinar a forma de apresentação dos diagnósticos em relação às diferentes
faixas etárias, gêneros e culturas, todas as categorias diagnósticas passaram a conter uma
seção introdutória denominada: “Specific Culture Age and Gender Features.”. Embora a
criação desta parte não tenha promovido uma modificação na sintomatologia dos transtornos,
através dela possibilitou-se que um número maior de desordens se adequasse a idades
distintas. No campo do diagnóstico de depressão maior, por exemplo, reafirma-se a partir de
uma nota a possibilidade deste quadro também ser diagnosticado na infância com sintomas
distintos. Diferente da sua manifestação posterior, a depressão na infância se apresenta através
de sintomas como a irritabilidade, sintoma este que também passa a ser discutido em relação à
bipolaridade. Na seção destinada ao transtorno bipolar, no entanto, não há nenhuma
especificação quanto a sua manifestação na infância, mas também não encontramos restrições
de idade. Alguns autores como Kaplan (2011) e Olfman (2007) indicam que o alargamento
dos critérios diagnósticos do transtorno bipolar desde o DSM-III-R e a possibilidade de
diagnosticar outros transtornos na infância, como a depressão, permitiram que se iniciasse a
discussão em torno do transtorno bipolar infantil.
A categoria exclusivamente destinada à infância denominada “Disorders Usually First
Evident in Infancy, Childhood and Adolecence” se mantém no DSM-IV e ocupa as páginas 37
a 122. De uma maneira geral, o que pode ser apreendido é um esforço maior em tratar das
especificidades dos transtornos quando apresentados na infância. De acordo com Silk et al.
(2000), as especificações quanto à idade são aprofundadas no intuito de poder detectar
comportamentos precoces que configuram um risco para a consolidação da patologia no
futuro. Pode-se dizer que a discussão em torno do transtorno bipolar do humor infantil surge,
80

em um primeiro momento, relacionada aos riscos de desenvolvimento no futuro91. No entanto,


como veremos, a bipolaridade na criança deixa de consistir apenas em um risco e passa a ser
entendida pelos pesquisadores como uma afecção própria da própria infância, não somente
como uma manifestação precoce de uma patologia relativa à fase adulta. Embora na
bipolaridade haja uma diferença significativa entre a sintomatologia do adulto e a da criança,
abre-se através dela a possibilidade de que uma doença mental de cunho permanente se
manifeste na infância. A bipolaridade infantil não é entendida como uma patologia do
desenvolvimento, mas como uma afecção de caráter crônico que a criança porta desde cedo.
Nessa mesma direção, no DSM-5 (2013)92, de uma maneira geral, podemos observar,
bem como veremos no próximo capítulo em relação à bipolaridade infantil, a ideia de que
afecções mais duradouras podem ser atribuídas à infância, apresentando por vezes um caráter
crônico. Diferente dos transtornos reservados à infância no DSM-I e DSM-II, que tinham
caráter transitório devido à concepção de um ego incipiente, estes dois diagnósticos são
patologias que a criança é portadora para o resto da vida: “ela é TDA/H”, “ela é bipolar”. De
acordo com Lima (2005), atinge-se assim o ápice de um processo de indiferenciação entre ser
e aparência93. Além das características atribuídas a si mesmo passarem a ser referidas a uma
disfunção cerebral, deixa-se de se ter TDA/H para “ser um TDA/H”. Da mesma maneira,
conforme desenvolvemos no capítulo anterior, o estatuto social da infância é reconfigurado na
contemporaneidade. Assim como a infância passa a ser entendida através da ideia de
competência e agência e não mais de preparação para a fase adulta, as patologias de cunho
transitório relacionadas a desvio do desenvolvimento normal não são mais o carro chefe da
psicopatologia infantil, conforme vermos no DSM-5.
De acordo com Bezerra (2014), além da continuação do debate acerca da ausência de
confiabilidade dos diagnósticos que data de desde antes da terceira edição, uma crítica

91
É curioso notar que a única menção sobre faixa etária em relação ao“transtorno bipolar do humor” na parte
“Specific Culture Age and Gender Features.” é a seguinte nota : “Aproximadamente 10-15% de adolescentes
com episódios de depressão maior recorrente desenvolverão transtorno bipolar do tipo I. Episódios mistos
parecem ser mais prováveis em adolescentes e jovens adultos do que adultos mais velhos. “ Tradução nossa.
(APA, 1996, p.353).
92
Neste manual, o transtorno bipolar do humor, que no DSM-IV era uma subcategoria da seção “Transtornos do
humor”, passa a ocupar um lugar de mais destaques através da criação no DSM-5 da seção “Transtorno bipolar e
outros transtornos relacionados”.
93
Este processo está articulado à ideia de bioidentidades. Embora não faça parte do escopo desta exposição um
maior aprofundamento neste tema, cabe ressaltar que a noção de bioidentidades designa processos de
subjetivação nos quais a identidade passa a ser remetida ao corpo biológico, sendo a psiquiatria e suas categorias
diagnósticas um meio de transmissão importante da cultura das bioidentidades. Para um maior aprofundamento
nesta temática ver Ortega (2003) e Lima (2005).
81

importante enfrentada pelo DSM-5 (2013)94 é a questão em torno do excesso de diagnósticos.


Ademais, o índice de conflito de interesse, já verificado nas edições anteriores e denunciado
por Frances (2013), também configura um problema em meio a qual esta edição foi
formulada. Cosgrove e Kimsky (2012) indicam que 69% da força tarefa do DSM-5 era
composta por pessoas que possuíam alguma ligação com a indústria farmacêutica. Como
veremos adiante, através do caso do transtorno bipolar infantil podemos observar estas três
questões que a psiquiatria vinha enfrentando no contexto de criação do DSM-5 e nos dias de
hoje, a saber: a confiabilidade do diagnóstico, o debate em torno do conflito de interesse e o
seu caráter de produção expansão das categorias diagnósticas. Trata-se, por um lado, do
aumento das categorias diagnósticas destinadas à infância e, por outro, mas também na
mesma direção, do fim da especialização dos transtornos infantis.
Este panorama pode ser entrevisto através do fim da seção direcionada exclusivamente
à infância. No DSM-5, esta seção que desde a segunda versão do manual corresponde ao
primeiro capítulo, desaparece. Na quinta edição, a primeira parte é denominada
“Neurodevelopmental disorders” (Transtornos do neurodesenvolvimento). Neste capítulo
estão alocados grande parte dos transtornos antes pertencentes à seção “Disorders Usually
First Evident in Infancy, Childhood and Adolecence”. Um exemplo interessante diz respeito
aos transtornos do espectro autista, uma vez que trazem uma novidade ao englobar o que no
DSM-IV era chamado de desordens autistas, síndrome de Asperger, dentre outros. A
justificativa de elaboração desta categoria pode ser entrevista através do exemplo do
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Este, assim como os transtornos do
espectro autista, encontra-se como um tópico dos “Transtornos do neurodesenvolvimento” e
comporta algumas modificações em relação à edição anterior, como por exemplo, a descrição
de sintomas específicos para o diagnóstico na fase adulta. No site da APA, há uma pequena
nota que pretende justificar, sem muito aprofundamento, o abandono do capítulo dos
diagnósticos usualmente feitos na infância. Nesta os autores dizem que o TDAH
foi colocado no capítulo sobre os transtornos do neurodesenvolvimento para refletir seus
correlatos no desenvolvimento cerebral bem como a decisão no DSM-5 de eliminar o capítulo

94
Em seu aspecto estrutural o DSM-5 rompeu com o modelo multiaxial introduzido na terceira edição do
manual. Os transtornos de personalidade e o retardo mental, por exemplo, anteriormente apontados como
transtornos do Eixo II, deixaram de ser condições subjacentes e se uniram aos demais transtornos psiquiátricos
antes pertencentes ao Eixo I. As questões desenvolvidas no eixo IV, principalmente fatores psicossociais e
ambientais , são tiradas do escopo do diagnóstico, recomendando-se que estes fossem orientados com base na
CID- 10. Por fim, a Escala de Avaliação Global do Funcionamento, anteriormente empregada no Eixo V, foi
retirada do manual.
82

do DSM-IV que incluía todos os diagnósticos usualmente feitos pela primeira vez na primeira
infância, infância ou adolescência. 95

A noção de neurodesenvolvimento remete a ideia de que as patologias estariam


relacionadas a uma disfunção cerebral, ou seja, a um desvio do neurodesenvolvimento normal
que ganham um caráter crônico. Contata-se a diluição da especificidade das patologias
direcionadas para a infância, que foram aos poucos perdendo suas fronteiras. Mesmo aqueles
transtornos alocados na seção que remete ao neurodesenvolvimento, não são exclusivos da
infância. Enquanto o desenvolvimento passa a ser discutido somente no que concerne ao
neurodesenvolvimento, permite-se que na infância sejam diagnosticadas condições mais
estáveis e duradouras. Isto porque, com o fim de uma seção específica para a infância, uma
série de patologias antes restritas aos adultos é atribuída também à infância, bem como certos
transtornos, antes restritos à infância, são estendidos para os adultos, como o TDA/H. Cabe
ressaltar que, diferente do contexto analisado por Foucault, no qual o objeto da psiquiatria
poderia ser aquilo que é anormal, o que nos deparamos nesse caso é que o diagnóstico nesta
faixa etária ganha um caráter claramente relacionado a uma doença. Isto é, no transtorno
bipolar infantil, como veremos, ou no TDA/H, as crianças não são consideradas somente
agressivas ou hiperativas, mas doentes.
Observamos que a criação da categoria de “Transtornos do neurodesenvolvimento” no
DSM-5 surge, dentre outros fatores, como uma tentativa de minimizar as divergências do
campo que, de certa forma, colocam questões parecidas àquelas que a psiquiatria se deparou
em 1980. De uma maneira geral, esta versão não foi recebida com o mesmo entusiasmo
reservado à terceira edição. O DSM-5 foi aclamado com diversas críticas oriundas inclusive
de dentro do campo. De acordo com Bezerra (2014), a tradição inaugurada pelo DSM-III,
repetida no DSM-5, se depara hoje com ao menos duas vertentes distintas de críticas96.
Destaca-se o comentário feito pelo presidente da NIMH (National Institut of Mental Health),
Tom Insel, que anunciou no site da instituição uma reorientação de suas pesquisas visando
distanciar-se das categorias diagnósticas baseadas em sintomas (INSEL, 2013). O argumento
apresentado calca-se na ideia de que essa orientação teórica é deficiente em evidências

95
No orginal: “(...)was placed in the neurodevelopmental disorders chapter to reflect brain developmental
correlates with ADHD and the DSM-5 decision to eliminate the DSM-IV chapter that includes all diagnoses
usually first made in infancy, childhood, or adolescence.” Tradução nossa.
96
Conforme ressalta Ajuriaguerra (1975), a psiquiatria sempre oscilou entre duas tendências: a que admite que a
perturbação mental consiste em um mal funcionamento de uma mecânica e aquela que não advoga nenhuma
importância ao todo orgânico. Nas suas palavras: “Muitas vezes, a uma mitologia cerebral se opõe uma
mitologia animista, carente de bases biológicas.” (AJURIAGUERRA, 1975, p. 6). O desafio, talvez, esteja em
uma solução de compromisso entre estas duas posições.
83

fidedignas, já que não compartilha dos marcadores biológicos que garantiriam uma precisão
científica. "Pacientes com desordens mentais merecem mais”97, afirma Insel (INSEL, 2013).
A instituição investirá seus fundos, que constituem grande parte da verba destinada a pesquisa
nos EUA, no programa denominado Research Domain Criteria (RDoC). Este projeto visa
transformar mais uma vez o paradigma das classificações diagnósticas na direção de
evidências que correspondam aos padrões científicos, para tal, pretende-se distanciar-se dos
sintomas, aliando-se à genética e à neurociência (INSEL, 2013). Desta perspectiva, há a
aposta em um projeto que visa equivaler as classificações psiquiátricas a substratos
biológicos, aproximando a psiquiatria da neurologia. Por outro lado, as perspectivas
fenomenológicas, psicodinâmicas e de uma vertente da psiquiatria que procura se basear em
narrativas em primeira pessoa, grosso modo, advogam a necessidade de levar em conta a
experiência subjetiva irredutível aos determinantes biológicos, embora não questionem a
importância de marcadores biológicos. A psiquiatria infantil hoje sofre as consequências, mas
também protagoniza ativamente este debate de dentro e fora do campo. Em relação ao
transtorno bipolar infantil, conforme veremos a seguir, pode-se também observar posições
diferentes quanto à fidedignidade deste diagnóstico e concepções distintas daquilo que é
entendido como uma patologia na infância, constituindo um cenário que retrata bastante bem
o panorama atual da psiquiatria infantil.

97
No original: “Patients with mental disorders deserve better”.Tradução nossa.
84

3 O CASO DO TRANSTORNO BIPOLAR INFANTIL


O caso do transtorno bipolar infantil (TBI) é paradigmático do contexto da psiquiatria
infantil contemporânea investigada no capítulo anterior e indissociável das mutações que a
noção de infância sofreu nos últimos anos. Isto porque, de uma perspectiva normativista,
tratando-se de um diagnóstico que passou a ser discutido somente por volta dos anos 1980,
seu surgimento está intimamente articulado ao contexto da psiquiatria e da na infância nos
dias de hoje. Nesta direção, o caso transtorno bipolar infantil, conforme veremos adiante, nos
permite observar uma série de questões que marcam a psiquiatria contemporânea, a saber: o
alargamento das categorias diagnósticas, o jogo de forças que permite ou não sua inclusão nos
manuais psiquiátricos, a forte influência da indústria farmacêutica, dentre outros que
desenvolveremos ao longo do capítulo. Mais especificamente em relação à psiquiatria infantil,
observa-se que a bipolaridade marca uma linha de continuidade entre a psicopatologia infantil
e a do adulto de uma perspectiva que se difere da noção desenvolvimentista98. Diante desse
quadro, procuraremos investigar nesse capítulo a gênese da noção de bipolaridade infantil,
bem como as teorias e as controvérsias em torno deste diagnóstico.

3.1 A extensão do transtorno bipolar do humor

A expansão do diagnóstico de bipolaridade para a infância vem na esteira de outro


processo, o de extensão dos critérios do transtorno bipolar do humor99. Embora este último
tenha sido descrito pela primeira vez como uma categoria nosológica no seio do referencial
teórico inaugurado pelo DSM-III, a discussão em torno da oscilação entre episódios de mania
e melancolia remete a teoria hipocrática. (HEALY, 2008; WITHAKER, 2010). Os termos
mania e melancolia estão ligados à teoria humoral que foi deixada de lado pela emergência da
psiquiatria no século XIX. Seguindo as indicações de Martin (2009), a teoria hipocrática,
embora tenha sido dominante até o Renascimento, sofreu influências de outras correntes. Um
98
Referimo-nos a uma lógica de trajetórias fixas que culminam em uma ideia de transtornos específicos da
infância e que serão substituídos por outros correlatos a fase adulta.
99
As noções de extensão e expansão, cunhadas por Conrad (2007), são facetas do processo de medicalização
que consiste, grosso modo, na passagem para a jurisdição médica de comportamentos que outrora eram
apropriados por outros campos. Conrad (2007) destaca, dentre outras, duas facetas do processo de
medicalização: a expansão e a extensão. A primeira é discutida no contexto do diagnóstico de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH) e consiste em um alargamento no sentido de incluir mais pessoas em
termos de idade. O TDAH, originalmente restrito à infância, passou a ser diagnosticado também em adultos.
Já a extensão, estudada no caso da andropausa (correlativo masculino da menopausa), diz respeito ao
alargamento dos critérios e a consequente inclusão de grupos que não seriam englobados antes.
85

exemplo dado pela autora trata-se da influência do pensamento clássico que possibilitou uma
ampliação das etiologias das doenças mentais, podendo estas estar relacionadas a aspectos
externos ao corpo. Somando-se à influência do pensamento cristão que se consolidou alguns
séculos mais tarde, principalmente no período medieval, a mania passou a ser entendida como
consequência de influências demoníacas, por exemplo. Já no Renascimento, um marco
importante no que concerne ao estudo da melancolia trata-se do livro do inglês Robert Burton.
Obra de cunho poético, podendo hoje ser lida literariamente, “Anatomia da melancolia” de
1621, traz uma mistura do pensamento hipocrático e religioso ao versar sobre a melancolia
(BURTON, 1621/2011). Concomitantemente, desenvolve-se o racionalismo cartesiano que
passou a ver a loucura como antítese da razão (MARTIN, 2009).
Logo, muito embora já se falasse de mania e de melancolia100, a associação destas
duas condições como categoria nosográfica não existia. Esta foi formulada pela primeira vez
no século XIX com Kraepelin. No sistema kraepeliniano, a mania e a depressão foram
agrupadas em uma única categoria denominada “psicose maníaco-depressiva”. Esta
classificação se mantinha mesmo quando se manifestavam isoladamente. A “psicose maníaco-
depressiva” correspondia ao conjunto de uma série de sintomas que para Kraepelin se
originariam desta mesma afecção. A diferenciação desta categoria nosológica em relação à
demência precoce foi um importante critério para elaboração da “psicose maníaco-
depressiva”. Enquanto esta era caracterizada por afetar as emoções e possuir um caráter
periódico, a demência precoce tem como alvo o intelecto e possui um prognóstico negativo
uma vez que gera progressivamente prejuízo cognitivo (HEALY, 2008). Esta nomenclatura
perdurou por muitos anos e permaneceu nos manuais psiquiátricos americanos até o DSM-III
(1980), quando se usa a expressão “transtorno bipolar do humor”101.
A separação dos episódios entre fatores unipolares e bipolares característicos do
transtorno bipolar do humor se deu somente em 1957, pelo psiquiatra alemão Karl Leonhard
(WITHAKER, 2010). De acordo com Healy (2008), a ênfase no critério genético acarretou
um esquecimento do trabalho deste teórico por mais de duas décadas. Isto porque, conforme
vimos no capítulo anterior, nos anos do pós-guerra, havia a prevalência de etiologias ligadas a
reações ao meio, o que pode ser observado pelas duas primeiras edições do DSM. No DSM-I,

100
Esses termos, com significados distintos daqueles utilizados no que ficaria consagrado como psicose
maníaco-depressiva, também faziam parte da classificação de Pinel e Esquirol.
101
É importante destacar que não pretendemos dizer que aquilo que era psicose maníaco-depressiva
transformou-se no diagnóstico de transtorno bipolar: é evidente que tal colocação se vincula a uma perspectiva
anacrônica. Não nos sentimos desautorizados, todavia, a fazer um breve histórico destas categorias, apontando
para suas linhas de continuidade e ruptura.
86

por exemplo, a seção que engloba as desordens afetivas referia-se a “Reações maníaco-
depressivas” que incluíam a “Reação maníaco-depressiva, tipo maníaco”, a “Reação maníaco-
depressiva, tipo depressiva” e a “Reação maníaco depressiva, outra” (APA, 1952, p. 25).
Conforme abordado no capítulo anterior, em 1980 observa-se uma mudança de paradigma
no que concerne ao referencial teórico deste manual. A nova orientação, de pretensão a-teórica
possui afinidades claras com um paradigma calcado na biologia. No que concerne à psicose
maníaco-depressiva, esta mudança de paradigma contribuiu para o resgate das ideias de Karl
Leonhard sobre a distinção entre desordens unipolares e bipolares. Healy (2008) cita alguns
estudos realizados a partir da década de 1960 que defendiam a ideia de uma desordem de dois
polos entre a mania e a melancolia. Alguns desses estudos reiteram a tese de Leonhard de que
a bipolaridade e a unipolaridade seriam fruto de heranças genéticas. Concomitantemente,
Healy (2008) afirma que a depressão também passou a ser entendida de maneira distinta
como, por exemplo, através da investigação da hipótese de sua relação com as catecolaminas
(norepinefrina, epinefrina e dopamina). Esta maneira de entender os transtornos é
concomitante, e até mesmo uma espécie de consequência, do surgimento dos primeiros
antidepressivos. Ainda de acordo com o autor, o termo antidepressivo foi cunhado após a
Segunda Guerra, quando se observou que algumas drogas em teste para outros problemas de
saúde melhoravam o humor de pacientes com sintomas depressivos. A substância iproniazida,
por exemplo, foi utilizada em um primeiro momento para tratar a tuberculose, sendo, em
seguida, relacionada à atenuação de sintomas depressivos (HEALY, 2008). Embora sua
ligação com um novo entendimento da etiologia e sintomatologia da depressão seja evidente,
não faz parte do escopo deste trabalho um maior aprofundamento na história da ascensão dos
antidepressivos102. Cabe ressaltar, no entanto, que, desde então, as pesquisas se mantêm nesta
direção, a saber: compreendendo a depressão como uma desordem neuroquímica. A cisão
entre desordens bipolares e unipolares é um exemplo das distinções operadas por esta nova
racionalidade.
O DSM-III inaugura é sintoma e propulsor deste novo paradigma na psiquiatria e, junto
dele, observa-se o fim da noção de psicose maníaco-depressiva e a inclusão da noção de
transtorno bipolar do humor. (HEALY & NOURY, 2007). Cabe ressaltar que não estamos
diante de uma variação estritamente de cunho terminológico, mas de uma transformação na
maneira de se compreender o transtorno e na direção do tratamento (MARTIN, 2009). A
bipolaridade se torna fruto preponderantemente de determinantes cerebrais relacionados a

102
Esta temática foi bastante bem trabalhada por Healy (2008) e Horwitz & Wakefild (2010).
87

fatores genéticos, o que indica uma ideia de cura pela via medicamentosa. De acordo com
Healy (2008), um dos fatores importantes que levou ao surgimento desta categoria foi a
descoberta do lítio como um tratamento possível. Os sais produzidos a partir desse metal
alcalino já eram usados pela medicina há mais de 150 anos, mas apenas na década de 70
foram associados ao tratamento de transtornos de humor103. Em um primeiro momento, não
havia interesse dos psiquiatras norte-americanos nessa substância. No entanto, com a divisão
de episódios unipolares e bipolares, o lítio pôde ganhar um nicho específico relacionado aos
casos de bipolaridade, conquistando um campo de atuação e de mercado. Com o passar do
tempo, uma série de questões em torno deste medicamento, como contradições no que
concerne a sua eficácia e preocupações com efeitos colaterais causados principalmente pelo
uso em longo prazo, levou a sua substituição por substâncias mais inovadoras. Embora o lítio
ainda seja prescrito, os chamados “estabilizadores de humor” foram pouco a pouco ganhando
espaço. Esta categoria medicamentosa engloba substancias distintas como, por exemplo,
anticonvulsivantes e antipsicóticos. De acordo com Healy (2008), o termo “estabilizador de
humor” é vago e impreciso, servindo tanto para driblar possíveis sanções da FDA, quanto
para garantir um mercado consumidor específico: para desestabilização do humor, como na
bipolaridade, nada melhor do que algo para restabelecer o equilíbrio. Segundo Olfman
(2007), a combinação de uma nova nomenclatura classificatória da doença com uma nova
espécie de medicamento “desencadeou uma onda de comercialização delineada para
convencer os médicos e o público da prevalência do transtorno bipolar e incitar a prescrição
de estabilizadores do humor”. (p. 13).
A difusão dos estabilizadores de humor foi fortemente estimulada pelas indústrias
farmacêuticas que passaram, por exemplo, a produzir diferentes formas de literatura para
educar a população sobre o novo transtorno e seu tratamento. Com o advento da internet,
observa-se a ascensão de websites educativos e informativos. Nesta mesma direção, passou-se

103
Um precursor do descobrimento do lítio para o tratamento da psicose maníaco-depressiva foi John Cade,
psiquiatra australiano. Por volta dos anos 40, o médico conduziu uma série de experimentos que acabaram, por
acaso, levando à associação do lítio com a atenuação dos sintomas maníacos. Estes experimentos consistiam
basicamente na injeção de urina de pacientes com doenças mentais no abdômen de porcos da índia. Observou-se
que estes morriam mais rapidamente do que quando em contato com a urina de pessoas saudáveis. A hipótese
levantada por Cade considerava a possibilidade da acidez da ser a causa da morte. O pesquisador notou, no
entanto, que quando injetado lítio, a intoxicação pela urina diminuía significativamente nos animais. Foi testada,
assim, a ingestão de lítio pelos próprios pacientes, sendo observada uma estabilização dos sintomas de mania e
depressão. O efeito foi tão surpreendente que Cade chegou a especular o fato de que a mania poderia ser causada
por uma carência de lítio no organismo. Para um maior aprofundamento nesta temática, ver o documentário:
“Troubled Minds – The Lithium Revolution” de 2004.
88

a difundir uma espécie de prestígio desta afecção através de listas que afirmam que a maior
parte dos artistas do século XIX e XX havia sofrido do transtorno (OLFMAN, 2007). É
importante salientar o caráter anacrônico destas afirmações. Outra manobra consiste em
questionários distribuídos pelas indústrias farmacêuticas como, por exemplo, a Astra-Zeneca,
que dispõem de uma série de perguntas tendo por finalidade uma avaliação da possibilidade
de presença do transtorno bipolar e a necessidade de tratamento medicamentoso. De acordo
com Withaker (2010), o investimento das indústrias farmacêuticas em termos de propaganda
se dá principalmente no que ele chama de “campanhas educacionais” (“educational
campaigns”). Através delas, pretende-se oferecer informações para a população em geral e
indicar a possibilidade de tratamento por meio de psicotrópicos disponíveis no mercado. Um
exemplo dessas campanhas produzidas pelas indústrias farmacêuticas é o “Bipolar Awareness
Day” promovido pela Abbott Laboratories em 2002 que visa selecionar um dia do ano para a
discussão em torno dos sintomas da doença e da direção do tratamento (WITHAKER, 2010).
Segundo Healy (2008), tanto o desenvolvimento do novo tratamento medicamentoso, quanto
este tipo de veiculação do transtorno bipolar foram decisivos na sua promoção e diferenciação
em relação à antiga psicose maníaco-depressiva. Enquanto a psicose maníaco-depressiva
tratava-se de uma afecção rara, o transtorno bipolar do humor tornou-se bastante difundido104
(HEALY, 2008; WITHAKER, 2010).
A difusão deste diagnóstico foi impulsionada, sobretudo, pela expansão dos critérios
diagnósticos iniciada desde a terceira edição do DSM-III. No entanto, uma questão se
colocava aos estudiosos da bipolaridade no momento: se os pacientes hospitalizados em
função da mania eram bipolares e aqueles hospitalizados por depressão eram unipolares, qual
seria a classificação para aqueles que foram internados devido à depressão e que também
apresentavam episódios de mania branda? (HEALY, 2008). O psiquiatra David Dunner
procurou dar uma resposta a esta questão sugerindo uma distinção entre os transtornos bipolar
tipo I e tipo II. Neste momento, o tipo I correspondia àqueles pacientes que foram
hospitalizados tanto por depressão, quanto mania. Já o tipo II, diz respeito aos hospitalizados
por depressão, mas que também haviam sofrido de hipomania sem necessidade de internação.
Esta divisão aparece na terceira edição do manual quando encontramos a divisão do
transtorno bipolar tipo misto, maníaco ou depressivo e transtorno bipolar atípico (entre os

104
De acordo com dados apresentados por Withaker (2010) a partir de informações dos hospitais norte
americanos, a psicose maníaco depressiva tratava-se de um transtorno raro, atingindo somente um em cada 13
mil pessoas nos EUA. Em contrapartida, dados de 2013 disponibilizados no site do National Institute of Mental
Health afirmam que o transtorno bipolar atinge cerca de 5,7 milhões de pessoas nos EUA, aproximadamente 3
por centro da população (WITHAKER, 2010).
89

transtornos afetivos atípicos). Neste último caso, encaixava-se o chamado transtorno bipolar II
caracterizado por depressão maior seguida de episódios de hipomania. Na revisão do terceiro
manual, esta divisão se mantém, mas observa-se uma mudança importante: o transtorno
bipolar atípico passou a ser chamado de transtorno bipolar não especificado (NOS). Esta
nomenclatura alarga ainda mais o escopo do diagnóstico, uma vez que se pode englobar
qualquer quadro que não se adeque aos critérios da bipolaridade tipo I. Admite-se, assim, que
pequenas oscilações de humor sejam consideradas sintomas da bipolaridade. No DSM-IV,
nota-se mais uma mudança na mesma direção: o transtorno bipolar II deixa de ser incluído no
grupo da bipolaridade não especificada, tornando-se um dos principais tipos do transtorno. Os
tipos “misto, maníaco e depressivo” deram lugar para os transtornos bipolar I e II. Ademais,
adicionou-se um novo tipo o “transtorno bipolar de ciclagens rápidas” que tem como critério
ao menos quatro episódios de oscilação do humor entre mania e depressão em um ano. Diante
desse quadro, os casos antes considerados bipolaridade atípica ou não especificada passam a
ser um tipo reconhecido de bipolaridade. Ademais, os critérios que definiam a bipolaridade
tipo II se tornaram mais frouxos: não havia necessidade de hospitalização para o diagnóstico.
O mesmo processo se deu em relação ao tipo I: o critério para definir a fase maníaca deixou
de ser a hospitalização para se tornar o prejuízo causado ao sujeito. Em 1990, outra mudança
nos critérios diagnósticos alargou ainda mais o escopo deste transtorno: a hipomania pode ser
diagnosticada com apenas dois dias de alteração do humor (WHITAKER 2010). O ápice
desse processo se deu em 2003, quando o então diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental
dos EUA, Lewis Judd, cunhou o termo “espectro do transtorno bipolar” argumentando que
uma série de sintomas maníacos e depressivos leves estava deixando de ser diagnosticada nos
critérios anteriores (HEALY, 2008). O espectro bipolar é ainda mais brando do que a
bipolaridade tipo II, tendo uma linha fronteiriça tênue com a normalidade.
O alargamento dos critérios diagnósticos permitiu que um maior número de pessoas
fosse considerado bipolar, o que caracteriza uma das facetas do processo de medicalização
destacado por Conrad (2007), a extensão. Healy (2008) organiza dados que atestam o
aumento efetivo dos casos de bipolaridade nos anos 80 e 90 nos EUA. No ano de 1985, foi
realizado o primeiro grande estudo epidemiológico americano denominado “Epidemiologic
Catchment Area Study”. Este registrou que 1% da população tinha bipolaridade tipo I ou II. Já
em 1994 (ano da publicação do DSM IV), um estudo semelhante chamado “National
Comorbidity Study” atestou que 1,3 % da população americana tinha bipolaridade tipo I.
Enfim, em 1998, outra pesquisa nacional divulgou os dados de que 5% da população era
acometida pelo transtorno bipolar. É importante lembrar, no entanto, que os critérios usados
90

na CID-10 para o diagnóstico da bipolaridade são mais rígidos, sendo o transtorno bipolar
considero ainda uma desordem rara encontrada em adultos (OLFMAN, 2007).
O aumento do número de pessoas com este diagnóstico, que caracteriza a extensão,
faceta do processo de medicalização destacada por Conrad (2007), diz respeito a uma
mudança dos critérios diagnósticos que tem como consequência um alargamento do escopo
do transtorno. Pessoas que antes não se encaixavam na descrição da bipolaridade passaram a
receber este diagnóstico, o que é permitido pela dilatação dos critérios através da inclusão de
subtipos mais brandos desta afecção. No entanto, outros fatores também estão em jogo no
aumento da prevalência da bipolaridade. Uma hipótese apresentada por Withaker (2010)
aposta em um efeito iatrogênico do uso de antidepressivos. Para alguns psiquiatras, a
prescrição de antidepressivos provocou uma forma diferente do curso da doença. Seu uso
acaba por diminuir os longos intervalos entre os episódios maníacos relatados na época de
Kraepelin: iniciam-se assim ciclagens mais rápidas e com maior frequência, levando a uma
espécie de cronificação da doença. De acordo com esta hipótese, a propagação do uso de
antidepressivos favoreceu o aparecimento do transtorno bipolar do humor em certos quadros
de depressão unipolar, alargando a prevalência do transtorno bipolar do humor na população.
Outro viés sobre a popularização do transtorno bipolar nos EUA é trazido por Emily
Martin (2009) no livro Bipolar expeditions já citado anteriormente, principalmente no
primeiro capítulo. De acordo com a autora, a mudança da psicose maníaco-depressiva para o
transtorno bipolar do humor em 1980 não foi sem consequências: produziu-se uma série de
reconfigurações na maneira de se entender a doença. Através de uma etnografia, a autora
aponta que a bipolaridade é entendida como uma disfunção cerebral relacionada a
características genéticas105. Segundo Martin (2009), no mundo ocidental uma doença orgânica
possui mais legitimidade do que uma doença psíquica, nesse sentido, propagada como uma
disfunção cerebral, o terreno para a expansão da bipolaridade estava aberto (MARTIN, 2009).
Enquanto a psicose maníaco-depressiva, bem como demonstra Martin (2009) através de
revistas e jornais populares, inspirava medo, o transtorno bipolar do humor produz uma
espécie de fascinação.
Conforme discutimos brevemente no primeiro capítulo, a antropóloga associa esta
fascinação às noções de produtividade, criatividade, importantes no capitalismo neoliberal,
que se articulam à mania. Em uma visão que tem pontos de conjunção com a ideia de

105
Martin (2009) observa em sua etnografia que um número significativo das pessoas diagnosticadas como
bipolares hesitavam frente ao fato de ter filhos, uma vez que a etiologia genética permita o pensamento de que
tais crianças seriam portadoras do transtorno.
91

indivíduo trajetória de Ehrenberg (2010), a autora afirma que o capitalismo tardio impulsiona
o indivíduo a deixar de ser cidadão para se tornar uma espécie de mini-corporação. O ideal de
um indivíduo que deve ser impulsionado a se otimizar a todo tempo, associa-se a aspectos do
humor relacionados à mania. A capacidade de constante mudança torna-se algo valorizado,
sendo também associado à labilidade emocional. Enquanto a depressão é entendida como um
estado de baixa motivação relacionada à diminuição de interesse e prazer nas atividades, a
mania é considerada um estado de excessivo envolvimento em atividades prazerosas. Como
nos aponta Martin (2009), observa-se assim que tanto em um polo quanto em outro, a
bipolaridade se associa à motivação, palavra-chave no vocabulário empresarial norte
americano. A autora assinala que esta oscilação entre altos e baixos pode ser associada à
inconstância do mercado econômico, por exemplo.
O transtorno bipolar, portanto, a partir dos anos 80, se tornou bastante difundido
principalmente no contexto norte americano. Diferente da psicose maníaco-depressiva,
considerada um quadro raro, a bipolaridade passou a ocupar lugar central na psicopatologia.
Embora antes de 1980 cogitada apenas raramente106 a possibilidade de episódios maníacos na
infância e tanto DSM-III, quanto no DSM-III-R não existam descrições referentes à
bipolaridade nesta faixa etária, na década de 80, iniciou-se uma investigação em torno de seu
aparecimento precoce107. A relação com características genéticas foi o primeiro argumento
para justificar a possibilidade de concebê-la na infância108. Não obstante, como afirmam
Olfman (2007), Healy (2008), Withaker (2010) e Kaplan (2011), nenhuma pesquisa tenha
encontrado indicadores genéticos, a discussão em torno da bipolaridade infantil passou a
ocupar um lugar central no campo da psicopatologia da infância.

3.2 A depressão na infância

Muito embora a possibilidade de se diagnosticar a mania na infância – e


consequentemente a bipolaridade – date do fim do século XX, a discussão em torno da
depressão infantil possui uma história mais antiga, com bastante influência da teoria

106
Alguns poucos episódios, considerados raros, são descritos por Kraepelin.
107
Healy (2008) aponta que uma grande parte de crianças diagnosticadas como bipolares são encaixadas no
subtipo “transtorno bipolar não especificado” que permite englobar outros sintomas além dos descritos nos
subtipos adjacentes.
108
Silk et al. (2000) ressaltam que embora a ideia de uma linearidade ligada a uma espécie de determinismo
genético esteja sendo problematizada, muitas pesquisas com crianças partem desse pressuposto.
92

psicanalítica. Cabe ressaltar que não faz parte do escopo deste trabalho um maior
aprofundamento na história da depressão infantil, uma vez que o nosso enfoque está no caso
do transtorno bipolar. No entanto, um breve apanhado se faz importante na medida em que a
possibilidade de se diagnosticar a depressão na infância está diretamente relacionada ao início
da discussão em torno do transtorno bipolar infantil. A questão da depressão na infância
também trata de um tema chave para uma maior compreensão do contexto da psiquiatria
infantil em que este diagnóstico passou a ser discutido.
A categoria nosológica de depressão na infância não foi vislumbrada antes do século
XIX. Conforme apontamos nos primeiros capítulos, uma psicopatologia voltada para a
infância ainda não havia sido consolidada, bem como a criança possuía um papel marginal na
sociedade. Em 1852, no entanto, conforme citado no capítulo anterior, encontramos o “Leçons
sur la manie infantile” de Deslasiauve que versa sobre a mania e a melancolia na infância. No
entanto, trata-se de uma discussão localizada e não muito difundida.
De acordo com Ajuriaguerra (1975), até meados do século XX, quando se trata de
depressão na infância, a confusão é grande. Cohen e Marcelli (2009) apontam que o conceito
de “psicose afetiva” proposto por Harms em 1952 foi importante na direção de abrir uma
perspectiva semiológica tanto da depressão, quanto do transtorno bipolar infantil, uma vez
que reconhece a possibilidade de expressões sintomáticas próprias da criança. Segundo os
autores, Harms utilizou a expressão serious babies para descrever crianças de 3 a 5 anos que
apresentavam certos sintomas como: tristeza anormal, rosto pouco expressivo, desinteresse
pelas coisas, momentos de agitação e agressividade. Ajurriaguerra (1975) aponta, no entanto,
que um dos fatores que alavancaram a discussão sobre a possibilidade de depressão na
infância, foi a descrição dos estados depressivos do lactente conceituada principalmente por
Melanie Klein. Nesse sentido, pode-se dizer que no que concerne à depressão, estamos de
acordo com as teses de Bercherie (2001) de que a clínica psicanalítica impulsionou uma
psicopatologia voltada para a infância. Cabe ressaltar que Melanie Klein não discute a
depressão infantil, mas o que chama de “posição depressiva”. Esta diz respeito a uma fase que
segue a posição paranóide, correspondendo a um período comum do desenvolvimento
humano. Outros autores importantes neste âmbito são Spitz e Bowlby, já citados
anteriormente. A questão da depressão infantil é tratada, nesses autores, como uma reação
consecutiva a um acontecimento externo e não relacionada a um desenvolvimento maturativo
fantasmático, marcando uma diferença em relação ao trabalho de Melanie Klein (COHEN &
MARCELLI, 2010). Spitz se aprofunda nos estados patológicos ligados à depressão na
infância ao tratar da chamada angústia do sexto mês. Embora teoricamente este fenômeno seja
93

experienciado por todos, algumas crianças que sofreram carência emocional em uma situação
de separação podem, a partir daí, apresentar um quadro patológico denominado depressão
anaclítica. Bowlby também explora as reações das crianças no contexto de separação da mãe
principalmente na idade considerada por ele mais sensível (entre 5 meses e 3 anos). De uma
perspectiva etológica, o autor compara as reações àquelas dos primatas, desenvolvendo a sua
teoria do apego. Bowlby traça, assim, uma série de fases pelas quais a criança passa ao ser
separada da mãe, sendo a segunda delas a fase do desespero que se assemelha às
manifestações depressivas no adulto. Esta se caracteriza por um desinteresse progressivo em
relação ao ambiente, perda de apetite e transtornos do desenvolvimento geral
(AJURIAGUERRA, 1975). No entanto, conforme ressalta Ajuriaguerra (1975), até meados
do século XX, o quadro de depressão infantil foi descrito de formas bastante diversas, seja por
diferenças em sua sintomatologia, seja por questões quanto à etiologia. O autor afirma,
contudo, que um denominador comum de todas as reações depressivas é a perda de objeto de
amor, seja ele real ou imaginário. Observa-se, nesta asserção, um viés com influências
psicanalíticas que considera a depressão como reação a alguma adversidade do meio. Tal
vocabulário e fundamentação teórica, conforme observamos no capítulo anterior, se
sobressaiu nas primeiras edições do DSM até 1980.
Um interesse próprio da psiquiatria em relação à depressão infantil, no entanto, data
somente dos anos 60, muito embora já no início do século possamos encontrar algumas
iniciativas individuais como, por exemplo, em trechos do “Tratado de psiquiatria” de Augusto
Vidal de 1907 (AJURIAGUERRA,1975). Um dos trabalhos pioneiros que expressa a visão
ascendente nos anos 60 – de que a depressão diz respeito a uma disfunção neuroquímica com
origens genéticas – foi realizado por Michael Rutter, com filhos de pais diagnosticados com
depressão. Desenvolve-se, assim, a noção de “depressão mascarada” ou “equivalentes
depressivos” (BARBOSA & LUCENA, 1995). Trata-se da ideia de que é possível o estudo de
depressão na infância, todavia, com uma sintomatologia diferente da apresentada no adulto. A
depressão infantil não se expressaria como anedonia ou humor disfórico, mas como
agressividade, ansiedade e insônia.
Já em 1976, dois neurologistas americanos (Warren Weinberg e Roger Brumback)
propuseram critérios diagnósticos para mania e depressão em crianças e adolescentes
utilizando parâmetros baseados no Reseach Diagnostic Criteria (RDC), proposto por Spitzer
e colaboradores (WEINBERG & BRUMBACK, 1976). Esse artigo é considerado a primeira
sistematização dos sintomas maníacos, hipomaníacos e depressivos na infância no campo
psiquiátrico norte americano. Os mesmos critérios desenvolvidos por Spitzer (presidente da
94

força tarefa do DSM-III) foram utilizados como base para a delimitação do Transtorno
Bipolar em adultos no DSM III.
No que concerne às classificações psiquiátricas, conforme vimos no capítulo anterior,
no DSM-III pela primeira vez distinguiu-se o transtorno depressivo unipolar ou depressão
maior dos transtornos bipolares que continuam todos no na mesma seção de transtornos
afetivos. No entanto, ainda não encontramos nenhuma especificação quanto à idade. Já o
DSM-IV (1994), passou a conter notas que traziam especificações sobre a idade. Neste,
afirma-se que a depressão infantil é semelhante à do adulto, de forma que os mesmos critérios
diagnósticos da depressão no adulto podem ser utilizados para avaliar a depressão na criança.
No entanto, há uma pequena nota alertando que na infância podem-se encontrar outros
sintomas substitutos daqueles discutidos no contexto do adulto como, por exemplo, humor
irritável ao invés de tristeza. Por fim, no DSM-5, pela primeira vez há uma separação em
categorias distintas entre o transtorno bipolar do humor e os transtornos depressivos. Neste
manual, tanto no que concerne ao transtorno depressivo maior, quanto no transtorno
depressivo persistente, encontramos notas indicando que o diagnóstico na infância pode ser
feito a partir de sintomas distintos daqueles encontrados no adulto, tal como o humor irritado
ao invés de distímico (APA, 2013)109. Neste manual, também na seção de desordens
depressivas, localiza-se uma nota diretamente relacionada ao transtorno bipolar do humor na
infância:
Em resposta a preocupações em relação à possibilidade de excesso de diagnóstico e tratamento
do transtorno bipolar em crianças, um novo diagnóstico, transtorno disruptivo de desregulação
do humor, foi incluído para crianças de até 18 anos que exibem irritabilidade persistente e
episódios frequentes de descontrole comportamental. 110

Observa-se, que as fronteiras entre o transtorno bipolar do humor e os transtornos


depressivos são tênues. Isto porque, frente aos impasses provocados pelo diagnóstico de
transtorno bipolar infantil, a solução buscada pela APA foi a criação de mais um diagnóstico:
o Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor. Em um primeiro momento, esta
discussão resultou na proposta de uma nova categoria diagnóstica denominada Desregulação
Severa do Humor (Severe Mood Dysregulation). Muito embora o Transtorno Disruptivo de
109
Cabe ressaltar que em nenhum destes manuais, a depressão infantil foi descrita como uma categoria
autônoma.
110
No original: “To address concerns about potential overdiagnosis and overtreatment of bipolar disorder in
children, a new diagnosis, disruptive mood dysregulation disorder, is included for children up to age 18 years
who exhibit persistent irritability and frequent episodes of extreme behavioral dyscontrol”. Tradução nossa.
95

Desregulação do Humor esteja alocado na seção destinada aos “transtornos depressivos”, este
diagnóstico surge como resultado do esforço de diferenciação da irritabilidade crônica e da
uma irritabilidade episódica própria da mania. A sintomatologia deste novo diagnóstico
inclui, além da irritabilidade crônica, explosões intensas e frequentes de raiva, uma
sintomatologia também presente no TDAH. O Transtorno Disruptivo da Desregulação do
Humor é uma dissidência deste diagnóstico, sua sintomatologia permanece atrelada à
irritabilidade crônica e grave. Estas possuem duas manifestações clínicas típicas: explosões de
raiva relacionadas a situações de frustração e um humor persistentemente irritável ou
zangado. Enquanto as explosões de raiva devem ocorrer com frequência mínima de três vezes
por semana, por pelo menos um ano e em ao menos dois ambientes distintos, o humor
irritável é considerado crônico (APA, 2013). Para que este diagnóstico seja feito, é necessário
um início precoce antes dos 10 anos, no entanto, ele não pode ser aplicado a crianças menores
de seis anos.
Cabe ressaltar que muito embora o transtorno bipolar infantil não tenha sido descrito
como uma entidade nosológica nos manuais diagnósticos, uma vez que uma série de estudos
vem sendo feita no que concerne à sintomatologia, ao prognóstico e dados epidemiológicos,
por exemplo. Pode-se dizer que o Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor não
substituiu o transtorno bipolar infantil, como parecia o intuito da APA. Estes dois
diagnósticos convivem no campo da psiquiatria infantil.

3.3 O transtorno bipolar infantil

A não inclusão como categoria autônoma no DSM do transtorno bipolar infantil, bem
como também nunca foram incluídas a esquizofrenia infantil ou a depressão infantil, é dado
importante a ser analisado, uma vez que reflete os limites dos consensos e as controvérsias na
psiquiatria. Nesse sentido, o nosso interesse consiste em discutir de forma mais ampla as
condições de possibilidade deste transtorno, bem como as controvérsias de dentro do campo
que caracterizam o estatuto da psiquiatria infantil contemporânea. Muito embora os
parâmetros descritos no DSM não se encaixem nas descrições do transtorno bipolar infantil,
os diagnósticos feitos em crianças em sua maioria são rotulados como transtorno bipolar não
especificado (NOS). Trata-se de um diagnóstico que a partir dos anos 90 tornou-se bastante
difundido principalmente no contexto norte americano.
Segundo Moreno (2007), bem como Withaker (2010), entre os anos de 1995 e 2003
observa-se um aumento de quarenta vezes no número de crianças diagnosticadas com este
transtorno nos EUA. Healy (2008), por sua vez, indica que este aumento significativo é
96

bastante surpreendente quando olhado de uma perspectiva histórica. De acordo com o autor,
os dados de admissão nos asilos de North Wales nos EUA em um intervalo de 50 anos (1875-
1924) mostram que entre os 3.500 admitidos, somente 123 foram diagnosticados como
maníacos depressivos. Em todos esses casos, a idade mais baixa para este diagnóstico foi de
17 anos. Na mesma direção, um estudo realizado por Blader e Carlson (2007) aponta que
enquanto em 1996 poucas crianças eram consideradas bipolares nos EUA, em 2004, este
diagnóstico se tornou o mais frequente na infância. Diante desse quadro, fica evidente uma
popularização significativa do transtorno bipolar do humor tanto na idade adulta quando sua
expansão para a infância.
Entendemos que esta popularização não diz respeito a uma revelação de um projeto,
mas a uma lógica de estratégias opostas. Isto é, trata-se de um processo complexo composto
por uma série de atores, envolvendo motivações profissionais, socioculturais, políticas e
econômicas. Destaca-se, conforme ressaltamos no primeiro capítulo, uma reconfiguração do
papel da criança na sociedade atual. Na mesma direção, observa-se que a popularização deste
diagnóstico é refletida e também impulsionada por uma série de produtos culturais norte
americanos. Livros escritos por jornalistas, por pais de bipolares, estabelecimento de websites
com informações sobre o transtorno (muitos deles financiados pela indústria farmacêutica),
são algumas manifestações da difusão deste diagnóstico. Em 2002, o transtorno bipolar do
humor infantil foi o tema da matéria de capa da revista norte americana Time. Nela,
encontramos o título “Depressão maníaca: juventude e bipolaridade” seguido da legenda: “por
que tantas crianças estão sendo diagnosticadas com o transtorno outrora conhecido por
psicose maníaco-depressiva?”.111 Também no mesmo ano, o tema do transtorno bipolar
infantil foi o enfoque do editorial do American Journal of Psychiatry.
Além disso, alguns livros direcionados para as crianças passam a compor este cenário.
Um exemplo é o livro de ficção chamado My Bipolar Roller Coaster Feelings escrito por
Byrna Hebert que conta a história de um rapaz chamado Robert diagnosticado com transtorno
bipolar. De acordo com Healy e Le Noury (2007), a personagem afirma que ao ser
diagnosticado com transtorno bipolar passa a compreender melhor as suas mudanças de
humor que variam assim como os altos e baixos de uma montanha russa. Além desses
sintomas, o menino apresenta outros três comportamentos que compõem a sintomatologia do
transtorno: episódios de extrema raiva, pesadelos constantes ao se deitar e momentos nos
quais tudo parece irritá-lo. Após o diagnóstico, para acalentar o menino, seu pai afirma que

111
No original: ‘Maniac depression: Young and Bipolar” e “Why are so many kids being diagnosed with the
disorder, once known as manic-depression?” Tradução nossa.
97

todas as crianças podem ter problemas no corpo: assim como alguns têm asma ou diabetes,
Robert tem transtorno bipolar, havendo um remédio para curá-lo. Observa-se que neste
discurso, o transtorno é tratado como uma doença orgânica, mais especificamente, como um
desequilíbrio bioquímico e o direcionamento do tratamento é um fármaco que pretende curá-
lo112. Outro livro deste gênero chama-se Brandon and the Bipolar Bear, escrito por Tracy
Anglada. Healy e Le Noury (2007) indicam que ao contar a história de Brandon, a autora
procura fazer um livro educativo sobre o transtorno bipolar infantil. Brandon, em um aspecto
semelhante ao de Robert, acaba de acordar de um pesadelo e, em um ataque de fúria,
destruindo o seu urso de pelúcia. Ao ser levado ao médico por sua mãe, revela-se que ele é
portador do transtorno bipolar e lhe é explicado que seus sintomas podem ser controlados
através de químicos que atuam no seu cérebro. O médico indica que Brandon não está nesta
condição por ser um mau menino, como pensava anteriormente, mas pelo fato de ter herdado
uma doença que o deixa assim. A edição vem acompanhada de um livro de colorir destinado
às crianças.
Alguns desses autores também mantêm sites que visam fornecer informações sobre
este transtorno como o www.bpchildren.com organizado por Tracy Anglada e uma série de
colaboradores113. Logo que se entra na página, depara-se com a mensagem escrita no pano de
fundo “hope” (esperança) cercada de crianças felizes. Podem-se encontrar também respostas
para perguntas frequentes, links para outros sites de organizações de pais, discussões sobre
livros e tratamento do transtorno. Um desses links nos leva à página da organização
denominada Juvenile Bipolar Research Foundation. Nesta, estão localizados alguns
questionários direcionados para o comportamento infantil, similares aos usados para os
adultos, que visam medir se as oscilações de humor da criança correspondem aos sintomas do
transtorno. Cabe ressaltar que grande parte dos diagnósticos feitos nos dias de hoje são
realizados através de um questionário semelhante ao aplicável em adultos para medir as
oscilações de humor. Este é distribuído amplamente por companhias e organizações de

112
Jenkins (2011) faz uma análise interessante de como a metáfora do desequilíbrio bioquímico é gerada no que
ela chama de imaginário farmacêutico e articulada com o self famacêutico. A autora indica uma série de
questões e paradoxos gerados por este tipo de pensamento no que se entende como saúde e doença, bem como na
produção de subjetividade.
113
No Brasil, embora não tenha sido encontrado nenhum site específico sobre o transtorno bipolar infantil, na
págna da ABRATA ( Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtorno Afetivos), há uma
parte destinada ao transtorno bipolar infantil do humor. Com o título “Como identificar o Transtorno Bipolar do
Humor em Crianças”, a página apresenta uma série de critérios associados a este transtorno, bem como um
conjunto de 98 perguntas e respostas mais frequentes entre os pais. http://abrata.org.br/blogabrata/?p=667 (
Acesso em 01/12/2015).
98

pacientes, como a Juvenile Bipolar Research Foundation. O questionário, que contém


sessenta e cinco itens, é usualmente respondido pelos pais, sendo através dele que muitas
crianças passam a iniciar o tratamento. Carlson e Mayer (2006) indicam que o fato de não
serem entrevistadas crianças é decisivo no que concerne ao alto incide de comorbidade. Isto
porque o mesmo sintoma relatado pelos pais e educadores pode ser usado para inúmeros
diagnósticos.
A popularização deste diagnóstico é também sustentada por hipóteses discutidas em
centros de pesquisas renomados nos EUA. Dentre os pesquisadores pioneiros dessa discussão
estão um grupo na Universidade de Washington comandado por Barbara Geller e outro em
Harvard liderado por Joseph Biederman. Ambos alegam que o fato de o diagnóstico ser
desconhecido até então está relacionado ao alto índice de comorbidade com o transtorno do
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e com o transtorno desafiador opositivo (TOD).
Em 1996, Bárbara Geller e seus colaboradores esboçaram a primeira lista de critérios
para o diagnóstico do transtorno bipolar do humor no âmbito de estudos do Instituto Nacional
de Saúde Mental norte americano – National Institute of Mental Health (NIMH). O estudo
aponta para a necessidade de aprofundamento teórico sobre esta afecção, uma vez que muitas
das crianças que apresentavam uma condição que poderia se encaixar nesses critérios teriam
sido diagnosticadas com TDA/H ou esquizofrenia infantil – quando os sintomas se
apresentam de maneira mais severa (OLFMAN, 2007). A partir deste estudo, desenvolveu-se,
em 2001, uma mesa redonda no encontro da NIMH sobre transtorno bipolar pré-puberal. De
acordo com Olfman (2007), desde então, qualquer publicação, seja ela de caráter crítico, ou
até mesmo com teor cético, ajudou a inflamar a discussão em torno deste diagnostico.
Neste momento, as questões principais no que concerne à bipolaridade infantil
giravam em torno da diferença entre os sintomas manifestados no adulto e aqueles referentes
à infância. Ao contrário de sua sintomatologia no adulto, a bipolaridade infantil se manifesta
através de oscilações de humor que podem ocorrer ao longo do dia. A bipolaridade infantil
elimina por fim a noção de um tempo mínimo para os episódios de mania: os chamados de
ciclos ultrarrápidos que a caracterizam podem oscilar entre alguns minutos ou dias. Ademais,
sugere-se de que o curso da doença tende a ser crônico e contínuo diferente da versão adulta
caracterizada por episódios agudos e esporádicos. Geller e Luby (1997) afirmam que o
transtorno bipolar infantil é “não episódico, crônico, com ciclos rápidos, combinando estados
maníacos que podem apresentar comorbidades com o transtorno do déficit de atenção e
99

hiperatividade114”. Papolos (2003)115, outro psiquiatra com bastante influência na difusão


deste diagnóstico, indica que 87 por cento de 195 jovens atendidos por ele e diagnosticados
com transtorno bipolar do humor sofrem de ciclos ultrarrápidos, o que significa que estes
oscilam constantemente entre episódios maníacos e depressivos.
No entanto, encontramos controvérsias dentro do próprio campo da psiquiatria infantil
no que concerne aos sintomas que caracterizam a mania na infância. Geller e Luby (1997)
indicam que a mania na infância se manifesta por euforia, grandiosidade, falta de sono,
hipersexualidade e outros sintomas associados à definição clássica de mania. As autoras
também fornecem exemplos de episódios de mania em adolescentes caracterizados pela
crença de que se irá alcançar uma boa profissão a despeito de maus resultados no colégio, ou
de ter habilidades musicais levando a crer na possibilidade de se tornar uma grande estrela do
roque. Já para o outro psiquiatra que lidera pesquisas pioneiras no que concerne ao transtorno
bipolar infantil, Joseph Biederman, a mania se apresenta de maneira diferente na infância.
Biederman foi diretor da Escola médica de psicofarmacologia pediátrica de Harvard por vinte
anos. Neste ínterim publicou como autor e coautor aproximadamente dois mil artigos
relacionados ao uso por crianças de drogas psiquiátricas (HEALY & LE NOURY, 2007).
Muito embora não seja conhecido pelo grande público, trata-se de um médico com bastante
poder no campo da psiquiatria infantil. Biederman e seus colaboradores afirmam que os
episódios de mania nas crianças apresentam uma sintomatologia distinta daquela descrita no
contexto adulto, mas, diferente de Geller, elegem outros sintomas como indicadores desta
condição. Segundo eles, a mania na infância é caracterizada por “irritabilidade” e “afetividade
tempestuosa” (BIEDERMAN ET AL., 1996, p. 998). Os exemplos fornecidos pelos autores
procuram demonstrar o que eles designam por grandiosidade na infância. O primeiro deles diz
respeito a crianças que constantemente interpelam os professores sobre a maneira de dar aula
buscando ditar a sua própria forma. Outro episódio é caracterizado pela persistência de roubar
coisas caras e a dificuldade de entender que roubo é algo proibido para todos.
De acordo com Biederman et al. (1996), um grande número de crianças diagnosticadas
com TDA/H estaria sendo vítima de um equívoco, uma vez que possivelmente seria portadora

114
No original : “(....)nonepisodic, chronic, rapid cycling, mixed manic state that may be comorbid with
attention-deficit hyperactivity disorder (ADHD) (...)” Tradução nossa.
115
Papolos é, junto com sua esposa, autor de um dos maiores best seller sobre o transtorno bipolar infantil do
humor: o livro “The bipolar child” (2002). De acordo com Healy (2008), este vendeu mais de 70.000 cópias em
seis meses nos EUA. Ainda segundo o autor, neste livro, Papolos indica que muitas das mães entrevistadas por
ele afirmaram que seus bebês eram excessivamente ativos no útero e pareciam felizes em fazer conexões deste
comportamento uterino com a presença do transtorno.
100

do transtorno bipolar do humor. Ademais, autor afirma que 23% das crianças com TDA/H de
sua clínica apresentam comorbidade com TBI. Este dado, no entanto, não foi recebido sem
críticas. Healy (2008), por exemplo, aponta que o estudo apresentado por Biederman não se
baseia em entrevista com as crianças, não se calca em critérios específicos de mania pré-
puberal e utiliza instrumentos feitos para estudar a epidemiologia do TDA/H. Todavia, afirma
que a mensagem foi passada, ecoando no meio acadêmico e na cultura como um todo: casos
de transtorno bipolar do humor não estão sendo diagnosticados e muitas vezes são
confundidos com TDA/H (HEALY, 2008). De acordo com o autor, tendo em vista que muitas
crianças diagnosticadas com TDA/H não respondem bem ao uso de estimulantes, o estudo de
Biederman surgiu como um bom pretexto para os psiquiatras abraçarem um novo transtorno e
outros medicamentos.
Os grupos liderados por Geller e Biederman, embora apresentem ideias divergentes
quanto às características da mania na infância, concordam que as crianças diagnosticadas
como bipolares, em sua maioria em idade escolar, tendem a ficar facilmente raivosas e a
apresentar episódios que envolvem gritos e mordidas, por exemplo. Ambos, no entanto, não
dão muito peso à necessidade de ciclos entre a mania e a depressão. Blader e Carlson (2006),
por sua vez, procurarão defender a episodicidade como uma condição sine qua non para o
diagnóstico do Transtorno Bipolar infantil.
Embora algumas das mais proeminentes instituições tenham se manifestado com
desconfiança em relação a este transtorno, uma série de pesquisas foi realizada principalmente
na direção de teste de tratamentos medicamentosos. O hospital geral de Massachusetts, por
exemplo, desenvolveu ensaios clínicos com o objetivo de testar antipsicóticos em crianças
com a idade por volta dos quatro anos. Healy e Le Noury (2007), no entanto, afirmam de que
há a suspeita que possivelmente crianças de dois anos foram incluídas neste teste. Para
recrutá-los, os coordenadores da pesquisa procuraram conversar com pais alertando que
comportamentos agressivos em crianças com a idade de aproximadamente quatro anos
poderia indicar bipolaridade, argumentando que haveria um tratamento possível ainda em fase
de teste. As pesquisas, de curta duração, produziram algumas mudanças no comportamento
das crianças. Todavia, Healy e Le Noury (2007), em um tom crítico, indicam que dificilmente
substancias como estas não teriam algum efeito em crianças tão novas. Ainda segundo os
autores, este tipo de pesquisa se tornou bastante popular na medida em que é mais atrativo
para as indústrias farmacêuticas financiar acadêmicos para desenvolverem pesquisas clínicas
com medicamentos do que submeter seus dados à aprovação da Food and Drug
Administration (FDA) devido a restrições mais severas que este órgão impõe. Os artigos
101

escritos por acadêmicos seriam suficiente para impulsionar o uso de medicamentos na


infância. Isto porque, a possibilidade de uso off-label permite que os mesmos medicamentos
utilizados para tratar o transtorno bipolar na fase adulta fossem receitados para crianças e
adolescentes116. O fato é que a partir de então, uma série de drogas, em sua maioria
anticonvulsivos e antipsicóticos, como a olanzapina e o risperidona, passou a ser usada em
larga escala para tratar crianças nos EUA. Nesse sentido, observa-se uma aliança entre as
indústrias farmacêuticas e os pesquisadores. Biederman, por exemplo, recebeu uma
quantidade significativa de verba de certos laboratórios que fabricam antipsicóticos e
anticonvulsivos117.
Healy (2008) aponta outros fatores para a propagação do transtorno bipolar e do
tratamento medicamentoso nesta faixa etária, dentre eles, estão o fato de uma série de estudos
terem demonstrado que o uso de antidepressivos em crianças pode ser prejudicial. Ademais,
ainda segundo o autor, através do FDA Modernization Act de 1997118, permitiu-se oferecer
seis meses a mais de patente devido à comprovação da possibilidade de uso na infância, o que
estimulou a pesquisa com medicamentos nesta faixa etária. Nota-se um grande interesse das
indústrias farmacêuticas na direção da difusão deste diagnóstico e do seu tratamento
medicamentoso, uma vez que se trata de um diagnóstico crônico, que se estende para toda a
vida. Healy (2008) aponta que entre 1996 e 2001 houve nos EUA um aumento de cinco vezes
do uso de drogas como Zyprexa e Rispedal em crianças de idade escolar e adolescentes.
Contudo, nenhuma dessas drogas foi licenciada para o transtorno bipolar do humor na
infância, seu uso foi liberado somente para adultos119.
Diante desses dados, Withaker (2010) levanta a hipótese de que a epidemia de
bipolaridade na infância, assim como a do adulto, estaria ligada a um efeito iatrogênico de

116
Martin cita um survey publicado no New York Times em 2006 indicando que nos EUA a prescrição de
antipisicóticos para crianças aumentou cinco vezes de 1993 a 2003 (MARTIN, 2009, p. 13).
117
Nadesan (2010) afirma que Biederman recebeu $1.4 milhões de dólares de indústrias farmacêuticas que
produzem antipsicóticos. Já Angel (2008) que denuncia de maneira bastante interessante a ligação das indústrias
farmacêuticas com os médicos e, em última instância, com a produção de novas doenças, afirma que foi revelado
por um senador norte americano que as empresas farmacêuticas pagaram a Beiderman US$ 1,6 milhão por
consultoria e palestras entre 2000 e 2007.
118
Nova legislação aprovada pela FDA em 1997 que promoveu uma mudança nas diretrizes de regulação de
alimentos, produtos médicos e cosméticos. Esta também propiciou uma mudança significativa na política de
patentes e aprovação de medicamentos.
119
O caso de Rebeca Riley ficou bastante conhecido nos Estados Unidos. A menina foi diagnosticada como
bipolar aos 2 anos de idade, sendo medicada com 3 s drogas diferentes (divalproato, quetiapina e clonidina). Aos
4 anos, Rebeca veio a falecer possivelmente devido ao uso prolongado de clonidina.
102

certos medicamentos. De acordo com o autor, “toda criança medicada com estimulantes se
120
torna um pouco bipolar” (WITHAKER, 2010, p. 238). Esta hipótese afirma que tanto o
uso de antidepressivos, quanto de estimulantes são capazes de provocar episódios parecidos
com aqueles diagnosticados como mania na infância. Esta se baseia no fato de que o TDA/H e
a prescrição de estimulantes para crianças se difundiram bastante nos anos 80. Além disso, de
acordo com Healy (2008) a depressão se tornou um diagnóstico bastante popular nos anos 90
levando ao aumento significativo de prescrições de antidepressivos para crianças e
adolescentes. Para corroborar esta tese, Withaker (2010) cita um estudo no qual entre setenta e
nove crianças e adolescentes diagnosticados com transtorno bipolar, quarenta e nove deles
(62%) foram tratados com antidepressivos ou estimulantes antes de apresentarem um episódio
de mania121. O autor também se refere a um artigo intitulado “Crisis on the Campus”
publicado na revista Psychology Today, indicando que o número de alunos que chegam as
universidades americanas sob o tratamento de antidepressivos tem aumentado bastante assim
como os primeiros episódios de mania. Ainda segundo Withaker (2010), é possível observar
que os estudos apontam o ano de 1988 como um marco no aumento de episódios de mania.
Não coincidentemente, foi também nesta mesma época que o “Prozac” (fluoxetina) entrou no
mercado e passou a ser amplamente consumido, inclusive por crianças122.
A expansão do uso desses medicamentos para a infância não foi recebida sem
controvérsias dentro do campo. Conforme procuramos ressaltar ao longo deste capítulo, as
controvérsias marcam fortemente o caso deste transtorno. Em janeiro de 2007, a Academia
Americana de Psiquiatria da Infância e da Adolescência (American Academy of Child and
Adolescent Psychiatry – AACAP), uma instituição central no que concerne a psiquiatria
infantil Americana, publicou algumas direções visando fornecer novos paradigmas práticos
para o diagnostico e tratamento do transtorno bipolar infantil. Os parâmetros discutidos pelos
psiquiatras da AACAP reafirmam, por exemplo, que a FDA aconselha os dez anos como
idade mínima para testes com medicamentos e que os efeitos colaterais de curto e longo prazo
do uso de antipsicóticos e anticonvulsivos em crianças ainda não foram estabelecidos. Indica-
se também que não há evidência o suficiente para concluir que a maior parte de casos de
mania infantil se estenderá para a vida adulta, ademais, afirma-se que a validade do

120
No original: “every child on stimulant turns a bit bipolar”. Tradução nossa.
121
O estudo citado por Whitaker (2010) se encontra no seguinte artigo: CICERO, D. “Antidepressant expousure
in bipolar children” Psychiatry, n 158, p. 125-127, 2001.
122
A fluoxetina foi aprovada pela FDA nos Estados Unidos em Dezembro de 1987.
103

diagnóstico do transtorno bipolar infantil ainda não havia sido estabelecida (HEALY & LE
NOURY, 2007). Outra questão levantada por esses pesquisadores diz respeito à dificuldade
de diferenciar comportamentos normais daqueles considerados sintomas do transtorno. Nesse
sentido, pretende-se indicar que em relação aos sintomas afetivos, sejam usadas ambas as
sintomatologias – elevação do humor e/ou irritabilidade. No entanto, alerta-se que o critério
irritabilidade, por estar presente em inúmeros quadros infantis, possui baixa especificidade.
Por essa razão, o distúrbio do humor somente pode ser levado em consideração caso
represente mudança marcante no estado de humor basal da criança, sendo acompanhado por
distúrbios do sono, cognitivos e psicomotores. Conforme ressaltam Healy e Le Noury (2007),
as recomendações feitas pelos psiquiatras da AACAP foram levadas pouco em consideração.
Trata-se, portanto, de um diagnóstico controverso. Parens e Johnston (2010) relatam a
discussão em torno das controvérsias deste diagnóstico em cinco encontros de um grupo
interdisciplinar. Formado por psiquiatras infantis, psicólogos, filósofos, sociólogos,
antropólogos, entre outros, o grupo debateu uma série de questões, apresentando posições
diferentes e até mesmo antagônicas. Enquanto a maioria dos psiquiatras e pais defendem que
o aumento de casos de transtorno bipolar infantil está relacionado ao desconhecimento
científico desta patologia, outros apontam para o desacordo em torno deste diagnóstico. O
transtorno bipolar do humor, segundo alguns profissionais, estaria sendo confundido com
TDA/H e com o Transtorno Opositivo Desafiador ou Transtorno de Conduta. Isto indica uma
das grandes questões em torno deste diagnostico e quiçá da psiquiatria infantil
contemporânea, a saber: a sobreposição de sintomas comuns a outras categorias. Estima-se
que a comorbidade entre o transtorno bipolar infantil e o TDA/H chegue a números entre 70 a
90%. Geller e colaboradores (2000), por exemplo, afirmam que 98% de seus pacientes
diagnosticados com TBI também possuíam TDAH. Este alto grau de comorbidade nos leva
consequentemente a indagar a fidedignidade desta categoria diagnostica, muito embora estas
controvérsias não tenham impediram a sua difusão.

3.4 Um fenômeno norte americano?


Embora defendamos que este caso seja paradigmático do que ocorre na psiquiatria infantil
contemporânea, é importante ressaltar que, de uma maneira geral, o transtorno bipolar do
humor infantil trata-se de um fenômeno eminentemente norte americano. Uma série de
pesquisas epidemiológicas denuncia a prevalência desta condição nos EUA. Van Meter e
colaboradores (2011), por exemplo, realizaram uma meta-análise de estudos epidemiológicos
com o intuito de averiguar as diferenças das taxas de prevalência do Transtorno Bipolar entre
104

os países. Foram selecionados 12 estudos – seis referentes à população americana e seis às


populações de Holanda, Inglaterra, Irlanda, Espanha, México e Nova Zelândia. No total esta
pesquisa envolvia 16.222 pessoas entre 7 e 21 anos com diagnóstico de Transtorno Bipolar ou
mania, no período entre 1985 e 2007. Os autores indicaram uma diferença significativa entre
estes outros países e os EUA. Já Reichart e Nolen (2004), apresentam um estudo comparativo
de prevalência do Transtorno Bipolar em diferentes faixas etárias nos EUA e na Holanda.
Observa-se que, embora a taxa de bipolaridade nos adultos seja parecida nos dois países, na
infância, o quadro não se repete. Os pesquisadores holandeses, ao assistirem a episódios de
mania filmados nos EUA, concordam com o diagnóstico feito, no entanto, afirmam que este
tipo de criança não existe na Holanda. Além do TBI não ser difundido na Europa de maneira
geral, a hipótese trabalhada pelos autores serviu de inspiração para as diretrizes de Withaker
(2010). Segundo Reichart e Nolen (2004), a difusão de prescrições de antidepressivos e
estimulantes para crianças e adolescentes nos EUA teria colaborado para o aumento do
número de casos de mania nesta faixa etária.
Olfman (2007), por sua vez, de uma perspectiva normativista, destaca outros aspectos
da cultura norte americana relacionados com a epidemia de transtorno bipolar infantil. Dentre
eles estão a falta de suporte para famílias e a fé em uma resolução pela tecnologia. Para o
autor, a escassez de políticas públicas de bem estar social direcionadas as crianças e as mães
está diretamente relacionada à epidemia de transtorno bipolar infantil. Nessa direção o autor
se pergunta:
como uma mãe que tem que retornar ao trabalho apenas alguns dias após dar luz – enquanto
deixa seu recém-nascido sob cuidados de baixos padrões – pode estabelecer uma relação de
apego segura com sua criança? Se uma mãe solteira tem que trabalhar em dois ou três lugares
que a pagam mal para comprar comida enquanto sua criança retorna para uma casa vazia, como
pode suportar suas árduas rotinas até a idade adulta? 123 (OLFMAN, 2007, p. 8)

Para Olfman (2007), o fato de os EUA possuírem uma política assistencialista pobre,
colabora bastante para o aparecimento de problemas na infância. Crystal e seus colaboradores
(2009), por sua vez, produzem um estudo apontando que as crianças e adolescentes de
camadas mais desprovidas da população norte americana, que não têm plano de saúde
privado, apresentam quatro vezes mais chance de receber prescrição de antipsicóticos do que
as que têm planos de saúde privados. Cabe ressaltar que o estudo não diz respeito
especificamente ao transtorno bipolar do humor, mas a prescrição de medicamentos. Algumas

123
No original: “How can a mother who must return to work only days after giving birth—while placing her
newborn in substa ndard care—establish a secure attachment with her infant? If a single mother must work two
orthree low-wage jobs to make ends meet while her children return to an empty home, how can she scaffold their
arduous journey toward adulthood?” Tradução nossa.
105

hipóteses complementares as de Olfman (2007) são levantadas para explicar esses dados. Os
medicamentos poderiam ser usados como controle social, bem como estas crianças,
submetidas a situações de maior adversidade, apresentariam quadros patológicos graves, o
que justificaria a prescrição de antipsicóticos. Paralelamente, Olfman (2007) aponta para o
fato de que, na sociedade norte americana, o modelo médico de doença mental acaba por se
apropriar de uma série de problemas que poderiam ser descritos de outra forma, colaborando
para uma expansão das categorias diagnósticas124. Seguindo as indicações de Jenkins (2011),
a crença na medicina e na ideia de que a doença mental está relacionada a um desequilíbrio
bioquímico, bastante difundida nos EUA, possui uma fronteira tênue com a crença religiosa.
Para Olfman (2007) esta crença se articula, nos EUA, a uma grande fé na tecnologia e no
tratamento pela tecnologia. Segundo o autor, esta fé vem acompanhada da concepção de
homem como máquina, desencadeando uma tradução de expressões de emoção para a
linguagem de sintomas. Moncrieff (2014), por sua vez, aponta que a descrição do transtorno
bipolar nos Estados Unidos como uma doença localizada no cérebro ajuda a justificar a noção
que esta pode ser tratada por um psicofármaco. A metáfora do desequilíbrio bioquímico
desenvolvida no imaginário farmacêutico contemporâneo, que se aproxima de uma crença,
leva, segundo Jenkins (2011) inevitavelmente a ideia da necessidade de uma droga para
reestabelecer este equilíbrio. Martin (2009), conforme ressaltamos anteriormente, indica que a
mudança da categoria psicose maníaco-depressiva para a bipolaridade, realizada em 1980,
ajudou a difundir este transtorno na medida em que o definiu como uma desordem cerebral.
Ademais, a autora, como vimos, aponta para uma relação importante entre a mania e os
valores culturais norte americanos na contemporaneidade.
Outro fator relevante na discrepância entre a difusão deste diagnóstico nos EUA e em
outros países se refere à ampla utilização do DSM, enquanto em outros países, o manual
diagnóstico mais difundido é a CID. Conforme vimos, embora o transtorno bipolar infantil
não seja uma categoria do DSM, os critérios para o transtorno bipolar adulto neste manual se
tornaram cada vez mais amplos a partir do DSM-III, enquanto na CID permanecem mais
restritos. Permite-se assim que o TBI seja alocado no DSM como um transtorno bipolar não
especificado. Dubicka e colaboradores (2008) compararam a diferença na operação de
completar os critérios diagnósticos feita por americanos que utilizam o DSM-IV e psiquiatras
ingleses que utilizam a CID-10. Nos cinco casos acompanhados, em três observou-se
discordâncias quanto ao diagnóstico. No que concerne a um caso específico, de uma criança

124
Trata-se de um argumento semelhante ao de Conrad (2007).
106

de 11 anos de idade, enquanto 75% dos psiquiatras americanos avaliaram ser um quadro de
mania e 93 % indicaram a presença de TDA/H, apenas 33 % dos psiquiatras ingleses
concordaram com o diagnóstico de mania, 79 % dos psiquiatras ingleses preferiram o
diagnóstico de TDA/H. De uma maneira geral, os psiquiatras americanos diagnosticaram com
mais frequência casos de mania na infância, bem como apontaram mais comorbidades.
Dubicka e colaboradores (2008) afirmam que esta discrepância pode estar relacionada ao fato
de uma diferente perspectiva entre os ingleses e os norte americanos no que concerne aos
transtornos mentais. Enquanto os primeiros calcam-se na semiologia dos episódios
patológicos, os norte americanos baseiam-se preponderantemente em listas de sintomas.
Ademais, conforme ressaltamos anteriormente, os autores destacam o efeito dos interesses da
indústria farmacêutica americana em relação à propagação dos quadros de mania em crianças.
Um indicador importante nesse sentido é uma discrepância significativa nos dados
epidemiológicos no que concerne ao transtorno bipolar infantil. Enquanto 6 a 19% das
crianças e adolescentes de estudos populacionais americanos recebem esse diagnóstico
(BIEDERMAN ET AL., 2005; GELLER ET AL., 2002), na Inglaterra, o número é bastante
diferente: 1.7 casos a cada 100.000/ano (SIGURDSSON ET AL., 1999). No entanto, no
Brasil, Tramontina e Rohde (2003), ao pesquisar a população atendida no serviço de
psiquiatria infantil da UFRS, encontraram dados semelhantes aos norte americanos. Cabe
ressaltar, todavia, que a pesquisa foi feita com uma metodologia distinta da maioria daquelas
realizadas nos EUA. Isto porque, os pesquisadores brasileiros se debruçaram em uma amostra
de 500 crianças que já frequentavam o serviço de saúde mental especializado em atendimento
infantil. Dentro desta amostra, Tramontina et al. (2003) afirmam que 36 foram diagnosticadas
com Transtorno Bipolar Juvenil. Diante desse quadro, depreende-se que 7,2% das crianças
receberam o diagnóstico de bipolaridade. Faz-se importante também levar em consideração
um critério regional, uma vez que, conforme veremos adiante, é justamente no estado do Rio
Grande do Sul onde se encontram os centros de estudos que discutem este diagnóstico no
Brasil.
É impossível, no entanto, negar a influência que a psiquiatria norte americana exerce
sobre o contexto brasileiro. Não demorou muito tempo para que este transtorno também
passasse a ser discutido no nosso país. Algumas publicações enfocando esta temática vêm
sendo feitas no Brasil. Na base “LILACS”, localizam-se 19 artigos brasileiros através dos
descritores “Transtorno bipolar” e “infância”. Já na base “Scielo”, foram detectados 12 artigos
107

com os mesmos termos em inglês e 15 em português125. Além disso, uma série de livros
abordando este transtorno foi lançada, em sua maioria organizada por um grupo de São Paulo
liderado pela psiquiatra Lee Fu-I e do Rio Grande do sul sob a direção de Tramontina e
Rodhe126. Estudos epidemiológicos, no entanto, são mais raros. A pesquisa citada
anteriormente, feita por Tramontina et al. (2003) no Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA) entre 1998 e 2001 além de apresentar a taxa de 7,2% de prevalência deste transtorno,
visa descrever a sintomatologia e analisar a prevalência da bipolaridade infantil no Brasil. Os
autores indicam que “em uma amostra clínica de pacientes externos de uma unidade
psicofarmacológica pediátrica no Brasil, encontramos uma alta prevalência do transtorno
bipolar juvenil”127(TRAMONTINA ET AL., 2003, p. 1046). Além disso, conclui-se que os
jovens diagnosticados com bipolaridade apresentaram irritabilidade ou irritabilidade
combinada com elação do humor e um alto índice de comorbidade com o TDA/H. Nesse
sentido, de acordo com os autores, o padrão dos sintomas maníacos encontrados na amostra
pesquisada é bastante similar ao descrito pelos pesquisadores norte americanos. Nota-se,
portanto, que este transtorno não surge no Brasil como um fenômeno próprio, mas importado
da psicopatologia norte americana, bem como importamos com bastante frequência outros
diagnósticos presentes no DSM. Uma pesquisa mais aprofundada do contexto brasileiro,
todavia, está em vias de ser publicada. Trata-se de um estudo qualitativo que analisa uma série
de entrevistas semi estruturadas aplicadas a uma gama de profissionais em diferentes regiões
do Brasil. O objetivo é traçar um panorama geral da discussão sobre este transtorno no
contexto brasileiro (PIMENTA, 2015). Algumas considerações deste estudo levantam
questionamentos importantes sobre as consequências da popularização deste diagnóstico e de
sua importação o contexto brasileiro. A autora embora não questione a existência deste
transtorno, afirma que os critérios diagnósticos calcados nos signos da irritabilidade e de
ciclagens ultra-rápidas produzem mais falsos positivos do que ajudam a detectar a
bipolaridade infantil. Isto porque esses critérios, de caráter alargado, permitiriam que uma
série de crianças fosse diagnosticada com este transtorno. Na mesma direção, Frances (2013)

125
Pesquisa realiza em 07/11/2015.
126
É evidente que em comparação aos estudos norte-americanos, os números são bem menores. Algumas
hipóteses podem ser levantadas para explicar esta diferença, como a ausência de serviços especializados, a
predominância no Brasil de serviços públicos de saúde que não produzem dados sobre os transtornos e se
utilizam, na maioria das vezes, dos critérios da CID, bem como a escassez de fomentos para pesquisa neste
campo.
127
No original: “in a clinical sample from a pediatric psychopharmacology outpatient unit in Brazil, we found a
high prevalence of juvenile BD”. Tradução nossa.
108

afirma que o transtorno bipolar do humor infantil entendido desta forma acaba por incluir
crianças irritadas, temperamentais, raivosas, agressivas e impulsivas, alertando para a
dificuldade de se distinguir o normal e o patológico neste contexto.
Sendo assim, o transtorno bipolar infantil, conforme destacamos ao longo do capítulo diz
respeito a um fenômeno relativamente recente (últimas três décadas), com raízes
eminentemente norte americanas – muito embora, tenha sido importado como categoria
diagnóstica pela psiquiatria em outros países. A discussão em torno deste diagnóstico não se
deu sem controvérsias, sendo também articulada por uma série de fatores distintos, como os
interesses das indústrias farmacêuticas, das organizações de pais e um possível efeito
iatrogênico causado pelo uso extensivo de psicotrópicos. Pode-se dizer, sem interrogar a sua
fidedignidade, que a discussão em torno deste transtorno está intrinsecamente articulada a
uma reconfiguração da noção de infância, bem como a certa forma de se fazer psiquiatria
infantil.
109

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante desse quadro, observamos que a discussão em torno do transtorno bipolar infantil,
iniciada no final dos anos 80, galgou rapidamente um espaço na psiquiatria, mas também na
cultura como um todo. A esse respeito, Healy (2008) chega a se perguntar se o frenesi em
torno da bipolaridade na infância diria respeito a um episódio de mania global. Embora esta
suposição seja um tanto quanto genérica, ela aponta para um aspecto que procuramos delinear
ao longo desta dissertação, a saber: que a extensão do transtorno bipolar está relacionada com
um contexto mais amplo e foi endossada por uma série de atores sociais diferentes. Conforme
procuramos demonstrar, as mudanças no sistema de classificação psiquiátrica que tiveram
lugar nos anos 80 (em especial o surgimento do diagnóstico de transtorno bipolar do humor e
seus subtipos), o interesse da indústria farmacêutica em alçar mais um espaço consumidor de
certos medicamentos, a força de grupos de pais e clínicos advogando a favor deste diagnóstico
na cultura geral, bem como um efeito iatrogênico causado pelo aumento do uso de
antidepressivos e estimulantes na infância são fatores que provavelmente impulsionaram esta
epidemia.
Ademais, a discussão em torno deste caso, quando abordada de uma perspectiva
normativista, é indissociável de uma reconfiguração do papel da criança na sociedade. Isto
porque, aquilo que é considerado norma e desvio está intrinsecamente relacionado com
valores e com o meio ambiente que nos cerca que, como destaca Magree (2002), quando se
128
trata do humano é “(...) tanto político, tecnológico e social quanto vital” (p. 308) .
Conforme apresentamos no primeiro capítulo, os valores que designam o que é infância se
reconfiguraram significativamente ao longo dos últimos séculos. De um lugar pouco
privilegiado, segundo Ariés (1987), Elias (2012) e Wells (2011), a criança passou a ocupar
um papel central na sociedade contemporânea. Mais uma vez, esta mudança pode ser
entendida através de inúmeros fatores que procuramos analisar separadamente, dentre eles a
infância enquanto consumidora e os valores de autonomia e performance importados para esta
faixa etária. Esta mudança também pode ser observada através de uma breve incursão feita na
sociologia da infância: de um campo subordinado à sociologia da família, a sociologia da
infância conquistou certa independência, procurando pensar a criança como um ator social
que possui maior autonomia.
Nesta mesma direção, procuramos delinear, no segundo capítulo, as mudanças na

128
No original: “(...) this environmemt is a political, technological, and social as well as vial one”. Tradução
nossa.
110

maneira de se fazer psiquiatria infantil. Isto porque, seguindo uma discussão de cunho
epistemológico desenvolvida no final do primeiro capítulo calcada principalmente nas
considerações de Canguilhem (1943/1995) e Fulford (2001) sobre o assunto, consideramos o
contexto epistêmico indissociável do contexto social. Nesse sentido, a reconfiguração dos
valores que ditam aquilo que é infância e a forma de concebê-la socialmente estão
intrinsecamente relacionadas com a maneira de se fazer psiquiatria infantil. Sendo assim, o
segundo capítulo pode ser considerado uma espécie de espelho do primeiro, calcado, todavia,
na história da psiquiatria infantil. Observamos que sua consolidação como ciência se deu, na
esteira do pensamento de Bercherie (2001), tardiamente, e com grande influência do aparato
teórico e clínico da psicanálise. Muito embora, conforme aponta Foucault (2001), a criança
tenha sido uma figura importante na formação da psiquiatria moderna, ainda que não
houvesse uma ciência voltada para esta. Ao longo do capítulo, procuramos demonstrar que a
reconfiguração do estatuto da criança na sociedade é, de certa forma, paralela a uma
reconfiguração da própria psiquiatria. Nos últimos anos, principalmente a partir de 1980,
observa-se um duplo movimento em relação às psicopatologias infantis: por um lado um
aumento significativo e, por outro, um apagamento das fronteiras em relação aos transtornos
destinados ao adulto. Esta mudança está estritamente relacionada a uma reconfiguração da
noção de desenvolvimento. Isto porque a noção de desenvolvimento, através da ideia de
neurodesenvolvimento, deixa de estar ligada a etapas a serem superadas posteriormente,
etapas características de certa faixa etária, para, conforme nos aprofundaremos adiante,
designar um aspecto de prolongamento em relação à vida adulta. Nesse sentido, reforça-se a
ideia de que a criança pode ter um transtorno específico de caráter crônico, o que aproxima a
psiquiatria infantil daquela destinada ao adulto, bem como impele esta especialidade ou
subespecialidade médica a alçar um lugar privilegiado. Esta posição, alcançada tanto pela
sociologia da infância quanto pela psiquiatria e, logo, pela infância de uma maneira geral, a
nosso ver, guarda ao menos duas consequências importantes: uma certa visibilidade do campo
da infância, isto é, uma voz, que incluí direitos, mas também a torna o centro de uma série de
práticas e saberes.
O caso do transtorno bipolar infantil, nesse sentido, evidencia um movimento mais
amplo da psiquiatria infantil, uma vez que se trata de uma categoria diagnóstica antes
destinada à idade adulta e que passou a ser considerada uma afecção crônica. Este movimento
consiste no apagamento das fronteiras entre as patologias relativas à infância e àquelas
direcionadas aos adultos e um consequente alargamento das categorias diagnósticas nesta
faixa etária. Embora não faça parte do escopo deste trabalho um maior aprofundamento nesta
111

questão, a noção de neurodesenvolvimento, que marca a psiquiatria infantil no DSM-5, ajuda


a sustentar o caráter crônico e progressivo da psicopatologia infantil. A tese principal afirma,
grosso modo, que os transtornos mentais podem surgir devido à exposição a fatores
ambientais em determinados períodos críticos do desenvolvimento cerebral. Esta hipótese se
alia às recentes premissas biológicas da plasticidade cerebral, sendo marcada por uma
etiologia calcada na epigenética. A hipótese da plasticidade cerebral apoia-se na existência de
momentos críticos de cristalizações, os chamados “períodos críticos de desenvolvimento”
(SILVA-FREITAS, 2013, p. 108). Desenvolvimento, nesse sentido, deixa de ser entendido a
partir de uma lógica linear, de fases progressivas, tornando-se um processo ativo e dinâmico,
envolvendo características afetivas, cognitivas e aspectos biológicos do indivíduo. Isto
porque, quando atrelado a hipóteses epigenéticas, o corpo biológico passa a ser caracterizado
como modulado pelas experiências individuais. Nos anos 90 a hipótese epigenética, discutida
desde os anos 40, ganha força: afirma-se que os fatores ambientais influenciam diretamente
na própria metilação do DNA. Os estudos em epigenética são utilizados para compor um novo
modelo etiológico das doenças, no qual a interação entre a herança genética e as influências
ambientais é responsável pela formação da vulnerabilidade à doença. Como nos apontam
Silva-Freitas e Ortega (2014), nos anos 90, além de adquirir o vocabulário molecular que a
caracteriza atualmente, a hipótese epigenética passa a ser sustentada por evidências
experimentais surgidas em diversas pesquisas principalmente nos campos dos estudos
genéticos sobre o câncer e da biologia do desenvolvimento.
Os genes deixam, portanto, de ser destino e tornam-se oportunidade (ROSE, 2007),
posto que a partir das considerações levantadas pela epigenética, o caminho não está pronto,
mas deve ser traçado em consonância com uma trajetória individual. Esta oportunidade está
aberta principalmente na infância, e como tal, articula-se um novo campo de estudo, de
práticas e intervenções médicas no sentido do conhecimento sobre a vulnerabilidade para
determinadas doenças. Notam-se esforços no intuito de antecipar e prever desfechos
patológicos, como o screening genético e a investigação da especificidade genética na
resposta aos medicamentos; (SILVA-FREITAS & ORTEGA, 2014). No campo clínico, há a
expectativa de criação de novos instrumentos de diagnóstico precoce, de forma que seja
possível identificar com antecedência os indivíduos propensos a adoecer na idade adulta
(SILVA-FREITAS, 2013).
A criança torna-se, portanto, um campo de pesquisa importante na medida em que a
ideia de neurodesenvolvimento pretende assegurar que as patologias infantis possuem linhas
de continuidade em relação ao adulto. Diante deste quadro, observa-se uma busca na direção
112

da articulação os fenômenos experimentados na infância e na adolescência à psicopatologia


do adulto. O transtorno bipolar infantil, embora não seja descrito como um transtorno do
neurodesenvolvimento, a nosso ver, está inserido nesta lógica e consiste em um caso
interessante que reflete certa maneira de se conceber a norma e desvio na infância nos tempos
de hoje. Este caso é, portanto, paradigmático de uma transformação tanto da infância quanto
da psiquiatria que a estuda.
No terceiro capítulo, apresentamos as teses sobre este transtorno, procurando delinear
os atores sociais envolvidos na ascensão deste diagnóstico. Apresentamos também alguns
dados epidemiológicos principalmente no sentido de demonstrar o seu rápido crescimento e a
prevalência no contexto norte americano, bem como as concordâncias e dissonâncias em
torno deste diagnóstico. A análise deste caso nos traz considerações importantes sobre a
maneira de se fazer psiquiatria e, mais especificamente, sobre o estatuto da psiquiatria infantil
atual. Ademais, o fato deste transtorno não ter se configurado como uma categoria diagnóstica
no DSM, bem como a depressão infantil, nos faz retornar a uma pergunta frequente quando
lidamos com classificações diagnósticas: que critérios são utilizados para a sua inclusão ou
exclusão? Embora a resposta para esta pergunta extrapole o objetivo deste escrito, é possível
assinalar alguns fatores relacionados a esta não inclusão. Estes dizem respeito a grande
divergência das opiniões sobre este transtorno e, principalmente, sobre seu tratamento
medicamentoso, mas também à articulação da psiquiatria infantil à psiquiatria do adulto, na
medida em que este diagnóstico pode ser feito através da categoria “transtorno bipolar não
especificado”.
É evidente que não pretendemos questionar a validade ou não desta categoria,
deixamos esta tarefa para aqueles que se encontram inseridos dentro do campo, nosso objetivo
foi apenas mapear e localizar o surgimento da bipolaridade infantil em um contexto mais
amplo. No entanto, algumas perguntas não cessam de se apresentar – mais do que respondê-
las, cabe a nós ouvi-las e levá-las em consideração: não seria importante investigar outros
interesses que se interpõem, para além da escuta daqueles que sofrem, à prática e à teoria
psiquiátrica? O aumento significativo que os transtornos psiquiátricos infantil vêm sofrendo,
bem como a cronificação de certas patologias, não viria também à serviço de interesses
mercadológicos e disciplinares? Nesta mesma direção, não seria indispensável para uma boa
prática psiquiátrica, entender o contexto mais amplo em que certo transtorno passa a ser
discutido? Por fim, mas não menos importante: não seria necessário para talvez evitar as
inúmeras controvérsias, tais como observadas torno do caso do transtorno bipolar infantil,
procurar levar mais em consideração o discurso das crianças sobre o seu próprio sofrimento?
113

O que este escrito pretendeu foi justamente apresentar um panorama mais amplo da
noção de norma e desvio na infância contemporânea, com enfoque no caso do transtorno
bipolar infantil, visando provocar estas inquietações diante das quais é sempre importante
lembrar, conforme aponta Canguilhem (1943/1995), que é, sobretudo, a partir daquele que
sofre e nos conta sobre seu sofrimento que se pode distinguir aquilo que é normal e
patológico.
114

REFERÊNCIAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder


DSM-II.Washington D. C., 1952.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder


DSM-II.Washington D. C., 1968.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder


DSM-III. Draft, 1980.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder


DSM-IV. Draft, 1990.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder


DSM-5. Draft, 2013.

ALMEIDA FILHO, N.; JUCÁ, V. Saúde como ausência de doença: crítica à teoria
funcionalista de Christopher Boorse. In: Ciência & Saúde Coletiva, vol 7, p. 879-889, 2002.

ANGELL, Marcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro/São Paulo:


Editora Record; 2007.

ANGELL, Marcia. Drug Companies & Doctors: A Story of Corruption. The New York Review
of Books. Disponível em http://www.nybooks.com/articles/22237, janeiro de 2009.

AJURIAGUERRA, Julian. Manual de psiquiatria infantil. 2ªedição. Barcelona: Toray-


Masson, 1975.

ARIÉS, Philipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
1978.

ASSUMPÇÃO, Francisco. Psiquiatria infantil brasileira. Um esboço histórico. São Paulo:


Lemos Editorial, 1995.

ANZIEU, D. O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1988.

BANZATO, Claudio; PEREIRA, Mário. O lugar do diagnóstico na clínica psiquiátrica. In:


Zorzanelli, R; Bezerra JR, B; Costa, J. (org) A criação de diagnósticos na psiquiatria
contemporânea. Rio de Janeiro: Gramond, 2014.

BARBOSA, Genário; LUCENA, Aline. Depressão infantil. Infanto- Rev. Neuropsiq. da Inf. e
Adol. n 3, v. 2, p. 23-30, 1995.

BERCHERIE, Paul. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio


de Janeiro: Zahar, 1989.
115

BERCHERIE, P. A clínica psiquiátrica da criança. In: Cirino, O. (org) Psicanálise e


Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
BERRIOS, German. Classifications in psychiatry: a conceptual history. Archives of
clinical psychiatry. Vol. 35, No 8, 2008.

BERRIOS, German. & PORTER, Roy. Prefácio para edição em língua portuguesa. In:
German E. Berrios & Roy Poter (ed.). Uma história da psiquiatria clínica- II. A origem e a
história dos transtornos psiquiátricos. As psicoses funcionais. São Paulo: Escuta, 2012.

BEZERRA JR, B. A psiquiatria contemporânea e seus desafios. In: Zorzanelli, R; Bezerra JR,
B; Costa, J. (org) A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea. Rio de Janeiro:
Gramond, 2014.

BIEDERMAN, J., et al. Attention deficit hyperactivity disorder and juvenile mania: an
overlooked comorbidity? J Am Acad Child Adolesc Psychiatry, 35, 997–1008, 1996.

BLADER, J.; CARLSON, G. Increased rates of bipolar disorder diagnoses among U.S. child,
adolescent, and adult inpatients. Biol Psychiatry. V.62, n.2, p. 107-114, 2007.

BOORSE, Christopher. On the Distinction between Disease and Illness. In: CAPLAN, Arthur
L., McCARTNEY, James J., SISTI, Dominic A. Health, Disease, and Illness: Concepts in
Medicine. 1.ed. Washington, D.C.: Georgetown University Press, p.77-89, 2004.

BURTON, Robert. Anatomia da melancolia. Vol. I. Tradução: Guilherme Gontijo Flores.


Curitiba: Editora UFPR, 2011. (originalmente publicado em 1621).

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995


(originalmente publicado em 1943).

CASTEL, R. (2010) L’autonomie, aspiration ou condition ? In: www.laviedesidees.fr Acesso:


fevereiro de 2015.
CASTRO, L. O futuro da infância e outros escritos. Rio de Janeiro: Sete letras, 2013.

CARLSON, G.; MAYER, S. Phenomenology and diagnosis of bipolar disorder in children,


adolescents and adults: complexities and developmental issues. Dev. Psychopathol. V. 18, p.
939-969, 2006.
CHERVITARESE, L.; PEDRO, R. Da sociedade disciplinar a sociedade de controle: a
questão da liberdade por uma alegoria de Franz Kafka, em O Processo, e de Phillip Dick, em
Minority Report. Estudos de Sociologia, v.8, n. 12, p. 129-162, 2005.
COHEN, D.; MARCELLI, D. Infância e Psicopatologia. 7 ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
CONRAD, P.; SCHNEIDER, J. Deviance and medicalization. From badness from sickness.
St. Louis: Mosby, 1980.
CONRAD, Peter. The medicalization of society: on the transformation of human conditions
into treatable disordes. Baltimore, J.Hopkins Press, 2007.
116

COSGROVE, Lisa, KRIMSKY, Sheldon. A Comparison of DSM-IV and DSM-5 Panel


Members' Financial Associations with Industry: A Pernicious Problem Persists. PLoS Med
9(3), 2012.
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

CRESWELL, J.W. Projeto de Pesquisa: métodos qualitativos, quantitativo e misto. Porto


Alegre: Artmed, 2010.
CRYSTAL, S.; OLFSON, M.; HUANG, C.; PINCUS, H.; & GEHARD, T. Broadened Use
Of Atypical Antipsychotics: Safety, Effectiveness, And Policy Challenges: Expanded use of
these medications, frequently off-label, has often outstripped the evidence base for the diverse
range of patients who are treated with them. Health Affairs (Project Hope). V. 28, n.5, p.770–
781, 2009.

DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações: 1972-1990.


Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 219-226, 1992

DONZELOT , Jacques. A Polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.

DUARTE, L.F. Introdução: a análise da pessoa moderna pela história e etnografia dos saberes
psicológicos. Cadernos do IPUB, n. 8, p. 1-10, 1997.

DUBRICKA, B.; CARLSON,G. HARRINGTON,R. Prepuberal mania: diagnostic differences


between US and UK clinicians. Child Adolesc. Psychiatry. V. 17, p. 153-161, 2008.

DUNKER, Christian. A neurose como encruzilhada narrativa: psicopatologia psicanalítica e


diagnóstica psiquiátrica. In: Zorzanelli, R; Bezerra JR, B; Costa, J. (org) A criação de
diagnósticos na psiquiatria contemporânea. Rio de Janeiro: Gramond, 2014.

ELIAS, Norbert. A civilização dos pais. Revista Sociedade e Estado, v.27, n.3 Setembro/Dezembro, 2012.

ELKIND, D. The hurried child: Growing up too fast too soon. Reading, MA. Addison-
Wesley, 1981.

EHRENBERG, Allain.. L'individu incertain. Paris: Calmann-Lévy, 1995.

_____. O culto da performance. Da aventura empreendedora à depressão nervosa.


Aparecida: Ideias & Letras, 2010.

ESTELLITA-LINS, Carlos Eduardo. A diáspora dos métodos de pesquisa em saúde da


criança e da mulher. In: Deslandes & Minayo (Editores). Caminhos do pensamento.
Epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, p. 155-194, 2002.

ESTELLITA-LINS, Carlos Eduardo. A psicanalise de crianças e adolescents como ferramenta


clínica. In: Francisco Baptista Assumpção Jr., Evelyn Kuczynski ( editors). Tratado de
psiquiatria da infância e da adolescência. 2. ed. -- São Paulo: Editora Atheneu, 2012

FOUCAULT, M. Microfìsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990.


117

FOUCAULT, Michael. Aula de 19 de março de 1975. In: Os anormais: curso no Collège de


France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, Michael. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France. São Paulo:
Martins Fontes, 1973-1974/2006.

FRANCES. Allan. Saving normal. New York: HarperCollins, 2013.

FREUD, Sigmund. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro:
Imago, 1974.

FULFORD, Bill. What is (mental) disease?: an open letter to Christopher Boorse. Journal of
Medical Ethics, 27, 80-85, 2001.

GAINES, A. From DSM-I to III—R; voices of self, mastery and the other: A cultural
constructivist reading of U.S. psychiatric classification.Social Science & Medicine, Vol 35(1),
Jul 1992, 3-24.

GAUDENZI, Paula Normal e Patológico: leituras contemporâneas. Tese (Doutorado


em Saúde Coletiva), Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2014.

GAUDENZI, Paula. A tensão naturalismo/normativismo no campo da definição da doença.


Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. v. 17, p. 911-924, 2014a.

GELLER, B., LUBY, J. Child and adolescent bipolar disorder: a review of the past 10 years. J
Am Acad Child Adolesc Psychiatry. Sep;36(9):1168-76, 1997.

GELLER, B.; ZIMERMAN, B.; WILLIAMS, M.; DELBELLO, M.; BOLHOFNER, K.;
CRANEY, J.; FRAZIER,J.; BERINGER,L.; NICKELSBURG, M. DSM-IV mania symptoms
in a prepuberal and early adolescent bipolar disorder phenotype compared to attention-deficit
hyperactive and normal controls. Journal Child Adol. Psychopharmacology. V. 21, p. 11-25,
2002.

GIROUX, Élodie. Canguilhem, Boorse y Nordenfelt: entre naturalismos y normativismos.


In: Después de Canguilhem: definir la salud y la enfermedad, Bogota. Universidad El
Bosque, 2011.

HEALY, David; LE NOURY, Joanna. Pediatric Bipolar Disorder. An object of study in the
creation of an illness. Journal Risk & Safety in Medicine, v. 19, p. 209-221, 2007.

HEALY, David. Mania: a short history of bipolar disorder. Baltimore: John Hopkins
University Press, 2008.

HOENIG, J. Esquizofrenia. In: German E. Berrios & Roy Poter (ed.). Uma história da
psiquiatria clínica- II. A origem e a história dos transtornos psiquiátricos. As psicoses
funcionais. P. 533-550. São Paulo: Escuta, 2012.
118

HORWITZ, Allan.; WAKEFIELD, Jerome. A tristeza perdida. Como a psiquiatria


transformou a depressão em moda. São Paulo: Summos, 2010.

INSEL, T. (2013) Transforming Diagnosis. IN: NATIONAL INSTITUT OF MENTAL


HEALTH (EUA) (Ed.) Disponível em:
http://www.nimh.nih.gov/about/director/2013/transforming-diagnosis.shtml
Acesso em: janeiro de 2015.

JANUÁRIO, Milhomem., & TAFURI, Livia. O sofrimento psíquico grave e a clínica com
crianças. Revista Mal Estar e Subjetividade, 9(2), 527-550, 2009.

JENINS, Janis (Ed.) Pharmaceutical Self: The Global Shaping of Experience in an


Age of Psychopharmacology. Santa Fe: School for Advanced Research Press, 2010.

KANNER, Leo. (1935) Psiquiatría Infantil. 2ª edição. Buenos Aires: Editora Psique. 1971.

KAPLAN, S. Your child does not have bipolar disorder : how bad science and good
publicrelations created the diagnosis. Santa Barbara: Greenwood Publishing Group, 2011.

KURNIT, Paul. Kids Getting Older Younger. Advertising Educational Foundation Paper,
2000.

LAURENTI, R. Pesquisas na area de classificação de doenças. Saúde e sociedade. v.3 n 2


p.112-126, 1994.

LIMA, R. Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades. Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2005.

MARGREE, V. Normal and Abnormal: Georges Canguilhem and the question of mental
pathology. In: Philosophy, Psychiaty & Psychology, vol. 9, número 4, p. 299-312, 2002.

MARFINATI, Anahi; ABRÃO, Jorge Luís. Um percurso pela psiquiatria infantil: dos
antecedentes históricos à origem do conceito de autismo. Estilos da Clinica, Brasil, v. 19, n. 2,
p. 244-262, ago. 2014.

MARTIN, E. Bipolar expeditions: mania and depression in American culture. Princeton,


Princeton University Press, 2009.

MAYES, R.; HORWITZ, A. DSM-III and the revolution in the classification of mental illness.
Journal of the History of the Behavioral Sciences. Vol. 41 (3), p. 249-267, 2005.

MCNEAL, J. From Savers to Spenders: How Children Became a Consumer Market. D. C.


Heath and Company, 1987.

MCNEAL, James. Kids as Customers: A Handbook of Marketing to Children. Lexington,


MA: Lexington Books; 1992.

MEZAN, Renato. O tronco e os ramos. Estudos de História da Psicanálise. São Paulo:


Companhia das Letras, 2014.
119

MILLER, Peter & ROSE, Nicolas.Governing the present: administering economic, social and
personal life. Cambridge, Polity Press, 2008.

MONCRIEFF, J. The medicalization of ‘ups and downs’: the marketing of the new bipolar
disorder. Transcultural Psychiatry. V. 51, p. 581, 2014.

MORENO, C. National trends in the outpatiens diagnosis and treatment of disorders in


youths. Archives of General Psychiatry. V. 64, p. 1032-39, 2007.

NADESAN, M. Governing Childhood into the 21st Century: Biopolitical Technologies of


Childhood Management and Education. Critical Cultural Studies of Childhood Series. New
York: Palgrave Macmillan, 2010.

OLFMAN, S. Bipolar children: cutting-edge controversy. In: OLFMAN, S. (Org.). Bipolar


children: cutting-edge controversy, insights and research. Westport: Praeger Publishers, p. 1-
11, 2007.

ORTEGA, Francisco. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos


de saúde coletiva. 11 (1): 59 - 77, 2003
PARENS, E.; JOHNSTON, J. Controversies concerning the diagnosis and treatment of
bipolar disorder in children. Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health, v. 4, 2010.
PAPOLOS, J.; PAPOLOS, D. The bipolar child. The definitive and reassuring Guide to
childhoods most misunderstood disorder. New York, Brodway Books: 2002.
PAPOLOS, D.. Switching, Cycling, and Antidepressant-Induced Effects on Cycle Frequency
and Course of Illness in Adult Bipolar Disorder: A Brief Review and Commentary. Journal of
Child and Adolescent Psychopharmacology. V. 13, n.2, p. 165-171, 2003.
PEREIRA, Mário Eduardo. Kraepelin e a criação do conceito de "Demência precoce" Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. IV, núm. 4, diciembre, pp. 126- 129,
2001.
PEREIRA, M. E. C. . Morel e a questão da degenerescência. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental , v. 11, p. 490-496, 2008.
PIMENTA, J. A expansão das classificações psiquiátricas nos últimos 30 anos e suas
repercussões na psiquiatria infantil: o caso do Transtorno Bipolar em crianças e
adolescentes. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

POSTMAN, N. The disappearance of childhood New York: Delacorte, 1982.

PROUT, Allan & JAMES, Allison. A New Paradigm for the Sociology of Childhood?
Provenance, Promise and Problems. In: PROUT, Allan & JAMES, Allison. (org.)
Constructing and Reconstructing childhood. Contemporary issues in the sociological study of
childhood. USA Falmer Press, 1997.
120

PROUT, A Childhood bodies, construction, agency and hybridity. In: PROUT, A. (Ed.). The
body, childhood and cociety. London: Macmillan, 2000.
PROUT, A. Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de Pesquisa, v.40,
n.141, p.729-750, set./dez. 2010.
QVORTRUP, J. et al. (Ed.). Childhood matters: social theory, practice and politics.
Aldershot: Avebury, 1994.

RASPE, R.E. As surpreendentes aventuras do Barão de Munchausen. Tradução: Claudio


Alves Marcondes. São Paulo: Cosacnaify, 2014. (originalmente publicado em 1785).

REICHARD, C.; NOLEN, W. Earlier onset of bipolar disorder in children by antidepressantes


or stimulants? Na hypothesis. Journal of Affective Disorders. V. 78, p. 81-84, 2004.

REGO, Alfredo. Prólogo a la edición castellana. In: AJURIAGUERRA, Julian. Manual de


psiquiatria infantil. 2ªedição. Barcelona: Toray-Masson, 1975.

RIZZINI, Irene e PILOTTI, Francisco (orgs.). A arte de governar crianças: a história das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez editora;
Rio de Janeiro: CIESPI/PUC-Rio, (3ª ed.), 384p., 2011

ROSE, N. The Young Citizen. In: Rose, N. Governing the soul.New York: Routledge, p. 87-
97, 1990.

RUSSO, J; HENNING, M. O sujeito da “´psiquiatria biológica” e a concepção moderna de


pessoa. Antropolítica, Niterói, n.6, p. 39-55, 1999.

RUSSO, J.; PONCIANO, E. O Sujeito da Neurociência: da Naturalização do Homem ao Re-


encantamento da Natureza.PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 12, vol. 2, p. 345-
373, 2002

SADLER, J. Considering the economy of DSM alternatives. In: PARIS, J.; PHILLIPS, J.
(Eds.). Making the DSM-V concepts and controversies. New York: Springer, 2013. p. 21-38

SALGADO, J. O produtivo tempo livre dos jovens: representações do consumo do tempo na


contemporaneidade. Contracampo, v. 24, n. 1, jul./2012

SARMENTO, Manuel Jacinto. Sociologia da Infância: Correntes e Confluências.


In:Sarmento, Manuel Jacinto e Gouvêa, Maria Cristina Soares de (org.) (2008). Estudos da
Infância: educação e práticas sociais. Petrópolis. Vozes (17-39), 2008.

SILVA-FREITAS, L. Da prevenção ao manejo do risco: contraste e indefinição na história


recente da psiquiatria. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Medicina Social, 2013.

SILVA-FREITAS, L.; ORTEGA, F. A epigenética como nova hipótese etiológica no campo


psiquiátrico contemporâneo.Physis. vol.24, n.3, 2014.
121

SILK, J.; NATH, S.; SIEGEL, L.; KENDALL, P. Conceptualizing mental disorders in
children: Where have we been and where are we going? Development and Psychopathology,
vol. 12, p. 713–735, 2000.

TIMIMI, S. The McDonaldization of childhood: Children's mental health in neo-liberal


market cultures.Transcultural Psychiatry, 47(5), 686–706, 2010.

TRAMONTINA, S.; SCHMITZ, M.; POLANCZYK, G.; ROHDE, L. Juvenil bipolar disorder
in Brazil: cinical and treatment findings. Biol Psychiatry. C. 53, p. 1043-1049, 2003.

ZORZANELLI, R. Sobre os DSM's como objetos culturais. In: Zorzanelli, R; Bezerra JR, B;
Costa, J. (org) A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea. Rio de Janeiro:
Gramond, 2014.

VAN METTER, A.; MOREIRA, A.; YOUNGSTROM, E. Meta-analysis of epidemiologic


studies of pediatric bipolar disorder. Journal Clinic Psychiatry. V. 72, p. 9, 2011.

ZORZANELLI, R. Sobre os DSM's como objetos culturais. In: Zorzanelli, R; Bezerra JR, B;
Costa, J. (org) A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea. Rio de Janeiro:
Gramond, 2014.
WELLS, Karen. The Politics of Life: Governing Childhood.Global Studies of Childhood, vol.
1 no. 1, p. 15-25, 2011.

WEINBERG, W.; BRUMBACK, R. Mania in childhood: case studies and a literature review.
American J. Disord. Child., v. 130, p. 380-385, 1976.
WITHAKER, Robert. Anatomy of an epidemic: magic bullets, psychiatric drugs an the
astonishing rise of mental illness in America. Nova Iorque: Broadway Paperbacks, 2010.

Você também pode gostar