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MODULO 3 – NOÇÕES DE LITERATURA III: A FORMA

DRAMÁTICA

AULA 10 – A TRAGÉDIA, A COMÉDIA E O DRAMA

Chamava-se Poética o conjunto de regras ou recomendações para o


bem escrever. A Poética de Aristóteles foi a matriz das poéticas do teatro
clássico ocidental e foi escrita na Grécia, no século IV a.C. Deve-se a ela o
conhecimento do modo de organização das peças que constituíam os
principais modos de apresentar as questões humanas no teatro pelos
modos da tragédia e pela comédia, gêneros do discurso dramático.

Tragédia

Na tragédia, os heróis pertencentes às altas dinastias confrontavam-


se com seu destino, ao qual, mesmo que se insurgissem, eram fadados a se
subjugar: na tragédia o homem cumpria um destino que precipitava seu
encontro com a morte. Por outro lado, na comédia, em geral, o homem
parecia ser poupado do destino, expondo-se ao julgamento do próximo,
com quem poderia se reconciliar ao final.

O exemplo clássico de tragédia, Edipo rei, escrito por Sófocles, conta


o mito de Édipo, o rei da dinastia de Labdáco, que herda de seu pai Laio
uma maldição: Laio sofre na juventude uma maldição, a de não gerar filhos.
Mas ao casar, mais tarde, com Jocasta, concebe Édipo que, segundo a
maldição, deveria matar o próprio pai. Para livrar-se desta terrível
possibilidade, Laio deixa o filho bebê com pastores, que deveriam
abandonar a criança, que tivera os pés furados e amarrados, num local
inóspito, para que morresse. Apiedados, os pastores salvam a criança e a
entregam a um outro pastor que a levaria para uma região mais distante de
Tebas, onde Laio reinava com Jocasta.

Chamado Édipo por ter pés inchados, a criança, agora um rapaz,


consulta um oráculo em Delfos, desconfiado de sua origem por ter sido
chamado de filho adotivo de Pôlibo e Mérope, casal com quem vivia como
em uma família. Diz o oráculo que ele estava destinado a matar o pai e
casar com a mãe. Horrorizado com esta possibilidade, ele deixa a casa
daqueles que acreditava serem seus pais e segue estrada afora. Numa
encruzilhada, é desafiado por uma comitiva composta por criados e um
velho, que o insulta. Furioso por ter sido ofendido e surrado, Édipo mata o
velho e dois criados. Da comitiva resta só um criado que consegue escapar.
Na entrada de Tebas, uma esfinge desafiava os passantes a livrarem
a cidade de um tormento se conseguissem resolver uma charada. Édipo
resolve a questão oferecida pela esfinge: é o homem que, em suas etapas
de vida, anda de quatro “de manhã”, pois enquanto é criança engatinha;
anda de “dois pés” de tarde, quando é adulto; e de três pés à noite, quando
velho e se apoia em uma bengala.
A cidade se livra da peste e, visto que o rei tinha morrido,
reconhecido pelo bem que fizera à cidade, Édipo é nomeado rei e se torna
marido de Jocasta. Na completa ignorância dos fatos, Édipo cumpre a
profecia do oráculo de Delfos: o velho que matara na estrada era seu pai
Laio e sua mulher, que Édipo também esposara como prêmio, era sua
própria mãe, Jocasta. Da união nasceram dois filhos (Polinices e Etéocles) e
duas filhas (Antígona e Ismene). Mas os deuses estavam insatisfeitos pois o
oráculo tinha se cumprido, e fizeram cair sobre Tebas uma peste. Creonte,
irmão de Jocasta, é enviado a Delfos para saber por que isto estava
acontecendo, já que os tempos anteriores tinham sido de paz.

Selecionamos um diálogo entre Édipo, o personagem principal ou


protagonista, e seu cunhado Creonte. Quando a peça começa, Creonte está
voltando da visita ao oráculo. O diálogo que se segue é sintomático de todo
o mecanismo da tragédia: o destino há de se cumprir sempre. É o que
veremos:

(Entra CREONTE)

CREONTE Uma resposta favorável, pois acredito que mesmo as coisas


desagradáveis, se delas nos resulta algum bem, tornam-se uma felicidade.

ÉDIPO Mas, afinal, em que consiste essa resposta? O que acabas de


dizer não nos causa confiança, nem apreensão.

CREONTE (Indicando o povo ajoelhado.) Se queres ouvir-me na


presença destes homens, eu falarei; mas estou pronto a entrar no palácio,
se assim preferires.

ÉDIPO Fala perante todos eles; o seu sofrimento me causa maior


desgosto do que se fosse meu, somente.

CREONTE Vou dizer, pois, o que ouvi da boca do deus. O rei Apolo
ordena, expressamente, que purifiquemos esta terra da mancha que ela
mantém; que não a deixemos agravar-se até tornar-se incurável.

ÉDIPO Mas, por que meios devemos realizar essa purificação? De que
mancha se trata?

CREONTE Urge expulsar o culpado, ou punir, com a morte, o


assassino, pois o sangue maculou a cidades.

ÉDIPO De que homem se refere o oráculo à morte?

CREONTE Laio, o príncipe, reinou outrora neste país, antes que te


tornasses nosso rei.

ÉDIPO Sim; muito ouvi falar nele, mas nunca o vi.

CREONTE Tendo sido morto o rei Laio, o deus agora exige que seja
punido o seu assassino, seja quem for.

ÉDIPO Mas onde se encontra ele? Como descobrir o culpado de um


crime tão antigo?
CREONTE Aqui mesmo, na cidade, afirmou o oráculo. Tudo o que se
procura, será descoberto; e aquilo de que descuramos, nos escapa.

(ÉDIPO fica pensativo por um momento)

ÉDIPO Foi na cidade, no campo, ou em terra estranha que se


cometeu o homicídio de Laio?

CREONTE Ele partiu de Tebas, para consultar o oráculo, conforme nos


disse, e não mais voltou.

ÉDIPO E nenhuma testemunha, nenhum companheiro de viagem viu


qualquer coisa que nos possa esclarecer a respeito?

CREONTE Morreram todos, com exceção de um único, que,


apavorado, conseguiu fugir, e de tudo o que viu só nos pôde dizer uma
coisa.

ÉDIPO Que disse ele? Uma breve revelação pode facilitar-nos a


descoberta de muita coisa, desde que nos dê um vislumbre de esperança.

CREONTE Disse-nos ele que foram salteadores que encontraram Laio


e sua escolta, e o mataram. Não um só, mas um numeroso bando.

ÉDIPO Mas como, e para que teria o assassino praticado tão


audacioso atentado, se não foi coisa tramada aqui, mediante suborno?

CREONTE Também a nós ocorreu essa ideia; mas, depois da morte


do rei, ninguém pensou em castigar o criminoso, tal era a desgraça que nos
ameaçava.

ÉDIPO Que calamidade era essa, que vos impediu de investigar o que
se passara?

CREONTE A Esfinge, com seus enigmas, obrigou-nos a deixar de lado


os fatos incertos, para só pensar no que tínhamos diante de nós.

ÉDIPO Está bem; havemos de voltar à origem desse crime, e pô-lo


em evidência. É digna de Apoio, e de ti, a solicitude que tendes pelo morto;
por isso mesmo ver-me-eis secundando vosso esforço, a fim de reabilitar e
vingar a divindade e o país ao mesmo tempo. E não será por um estranho,
mas no meu interesse que resolvo punir esse crime; quem quer que haja
sido o assassino do rei Laio bem pode querer, por igual forma, ferir-me com
a mesma audácia. Auxiliando-vos, portanto, eu sirvo a minha própria
causas. Eia, depressa, meus filhos! Erguei-vos e tomai vossas palmas de
suplicantes; que outros convoquem os cidadãos de Cadmo; eu não recuarei
diante de obstáculo algum! Com o auxílio do Deus, ou seremos todos felizes,
ou ver-se-á nossa total ruína!

O diálogo anuncia o que irá ocorrer: sem se imaginar culpado, Édipo


não mede esforços para descobrir o responsável pela morte do rei. E quanto
mais se aproxima da verdade, mais incrédulo parece se tornar. Mesmo que
os indícios apontem em sua direção, ele não acredita no que ouve, insultado
com acusações que para ele são infundadas. Vejam isso na conversa com o
vidente que manda chamar para esclarecê-lo, Tirésias, um renomado
adivinho cego.

ÉDIPO Pelos deuses! Visto que sabes, não nos ocultes a verdade!
Todos nós, todos nós, de joelhos, te rogamos!

TIRÉSIAS Vós delirais, sem dúvida! Eu causaria a minha desgraça, e


a tua!

ÉDIPO Que dizes?!... Conhecendo a verdade, não falarás? Por acaso


tens o intuito de nos trair, causando a perda da cidade?

TIRÉSIAS Jamais causarei tamanha dor a ti, nem a mim! Por que me
interrogas em vão? De mim nada ouvirás!

ÉDIPO Pois quê! Ó tu, o mais celerado de todos os homens! Tu


irritarias um coração de pedra! E continuarás assim, inflexível e inabalável?

TIRÉSIAS Censuras em mim a cólera que estou excitando, porque


ignoras ainda a que eu excitaria em outros! Ignoras... e, no entanto, me
injurias!

ÉDIPO Quem não se irritaria, com efeito, ouvindo tais palavras, que
provam o quanto desprezas esta cidade!

TIRESIAS O que tem de acontecer acontecerá, embora eu guarde


silêncio!...

ÉDIPO Visto que as coisas futuras fatalmente virão, tu bem podes


predizê-las!

TIRÉSIAS Nada mais direi! Deixa-te levar, se quiseres, pela cólera


mais violenta!

ÉDIPO Pois bem! Mesmo irritado, como estou, nada ocultarei do que
penso! Sabe, pois, que, em minha opinião, tu foste cúmplice no crime,
talvez tenhas sido o mandante, embora não o tendo cometido por tuas
mãos. Se não fosse cego, a ti, somente, eu acusaria como autor do crime.

TIRÉSIAS Será verdade? Pois EU! EU é que te ordeno que obedeças


ao decreto que tu mesmo baixaste, e que, a partir deste momento, não
dirijas a palavra a nenhum destes homens, nem a mim, porque o ímpio que
está profanando a cidade ÉS TU!

ÉDIPO Quê? Tu te atreves, com essa impudência, a articular


semelhante acusação, e pensas, porventura, que sairás daqui impune?

TIRÉSIAS O que está dito, está! Eu conheço a verdade poderosa!

Ainda assim, Édipo não acredita que tenha sido culpado. Continua sua
investigação. Vendo confirmada pelo pastor que o acolheu em criança, e
reconhecendo nesta a própria história, Édipo sabe em seguida que Jocasta,
sua esposa e mãe, em desespero pelo reconhecimento, se enforca. Édipo,
em ato extremo, cega os próprios olhos.

Diz o Corifeu – líder do coro, a Édipo:


Que horrível coisa fizeste, ó Édipo! Como tiveste coragem de ferir
assim os olhos? Que divindade a isso te levou?

ÉDIPO Foi Apoio! Sim, foi Apoio, meus amigos, o autor de meus
atrozes sofrimentos! Mas ninguém mais me arrancou os olhos; fui eu
mesmo! Desgraçado de mim! Para que ver, se já não poderia ver mais nada
que fosse agradável a meus olhos?

CORIFEU Realmente! É como dizes!

ÉDIPO Que mais posso eu contemplar, ou amar na vida? Que palavra


poderei ouvir com prazer? Oh! Levai-me para longe daqui, levai-me
depressa para bem longe. Eu sou um réprobo, um maldito, a criatura mais
odiada pelos deuses, entre os mortais!

CORIFEU Como inspiras piedade, pelo sentimento, que tens, de tua


sorte infeliz! Ah! Bom seria que eu nunca te houvesse conhecido!

ÉDIPO Que morra aquele que, na deserta montanha, desprendeu


meus pés feridos, e salvou-me da morte, mas salvou-me para minha maior
desgraça! Ah! Se eu tivesse então perecido, não seria hoje uma causa de
aflição e horror para mim, e para todos!

CORIFEU Também eu assim preferiria!

ÉDIPO Eu não teria sido o matador de meu pai, nem o esposo


daquela que me deu a vida! Mas... os deuses me abandonaram: fui um filho
maldito, e fecundei no seio que me concebeu! Se há um mal pior que a
desgraça, coube esse mal ao infeliz Édipo!

CORIFEU Teria sido razoável tua resolução, ó Édipo? Não sei dizer, na
verdade, se te seria preferível a morte, a viver na cegueira.

ÉDIPO Não queiras convencer-me de que eu deveria ter agido de


outra forma! Não me dês conselhos! Não sei como poderia defrontar-me, no
Hades, com meu pai, ou com minha infeliz mãe, porque cometi contra eles
crimes que nem a forca poderia punir! E o semblante de meus filhos,
nascidos como foram, como me seria possível contemplar? Não! Nunca mais
poderia eu vê-los, nem ver a cidade, as muralhas, as estátuas sagradas dos
deuses! Pobre de mim! Depois de ter gozado em Tebas uma existência
gloriosa, dela me privei voluntariamente, quando a todos vós ordenei que
expulsassem da cidade o sacrílego, aquele que os deuses declararam
impuro, da raça de Laio! Descoberta, em mim mesmo, essa mancha
indelével, ser-me-ia lícito contemplar os cidadãos tebanos, sem baixar os
olhos? Ah! certamente que não! E se fosse possível evitar que os sons nos
penetrassem pelos ouvidos, eu privaria também da audição este miserável
corpo, para que nada mais pudesse ver, nem ouvir, - pois deve ser um alívio
ter o espírito insensível às próprias dores!...

(Momento de silêncio).

O personagem da tragédia cai em desgraça quando o destino se


cumpre. Um traço forte da tragédia está na ilusão de que é possível
combater o que o destino traçou: a híbris, ou teimosia do ser humano
contra as forças divinas apenas apressa os resultados. Joguete do destino, o
homem se vê compelido a agir conforme o conduzem forças externas.

As situações de exceção trazidas pelos argumentos das tragédias


marcam a vida de reis e príncipes, que de algum modo compartilham ou
têm suas vidas afetadas pelos deuses ou semideuses do Olimpo.

Sob esse aspecto, podemos ver o parentesco que há entre o


teatro clássico e o maravilhoso, pois duas esferas de realidades
convivem lado a lado, a esfera das divindades mitológicas e a esfera dos
humanos. Essa característica ficou preservada do teatro clássico grego (do
sec. V a.C.) ao teatro romano do início da nossa era. Esses argumentos,
ainda que tenham sido retomados durante o Renascimento italiano, só vão
efetivamente repercutir no neoclassicismo francês dos séculos XVI e XVII e
no neoclassicismo, como viés do Romantismo alemão, no final do século
XVIII.

A Comédia

No polo extremo à tragédia está a comédia. Este gênero literário


teatral tem um caráter de crítica das ações humanas na esfera
mundana. Aí não é o cumprimento das decisões do destino que define o
rumo da história, mas a participação humana nas tramas sociais, de
maneira bem-humorada, irônica, buscando a solução final dos conflitos.

Na Comédia, os heróis já não são obrigatoriamente representantes


das altas castas, sobretudo nas Comédias romanas, que se confrontavam
com questões que expunham seus papéis no mundo e na sociedade, na
maioria das vezes, expondo suas fraquezas de caráter e suas diferenças em
relação ao próximo. As comédias grega e romana trazem situações da vida
destes povos.

Do mesmo modo que ocorreu com a tragédia, os gregos e os


romanos serviram de inspiração para o Neoclassicismo renascentista e
também para o Neoclassicismo que povoou o imaginário dos franceses sob
a monarquia de Luís XIV, com Molière, por exemplo. O século XIX viu
aparecer um gênero dramático de sucesso, a chamada comédia de
costumes, tão ao gosto do movimento de base realista.

A comédia de costumes foi um gênero muito explorado no teatro


brasileiro, do final do século XIX ao início do século vinte, período em que
os efeitos da modernização da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
afetavam a vida dos cidadãos.

A comédia de costumes também podia ser chamada vaudeville, que


é uma comédia cheia de quiproquós e situações complicadas. Em um
quiproquó, as confusões voltam-se em geral contra quem as causou,
criando situações embaraçosas. Normalmente envolvem tramas amorosas,
com amantes escondidos em armário, etc. Para dar conta da confusão
criada e poder solucioná-la, a comédia alonga-se em três ou cinco atos.

Mas há dramaturgos que se especializaram em abreviar as cenas da


vida cotidiana que queriam mostrar de forma crítica.

Artur Azevedo foi um dos ótimos exemplos desse teatro, em suas


comédias curtas, publicadas no jornal, em uma série de cem, chamadas
Teatro a vapor. Por serem de curta duração, podiam ser lidas durante uma
viagem de bonde, por exemplo. Vejamos a peça abaixo:

A CASA DE SUSANA, de Artur Azevedo

(Amélia está no seu boudoir [nome francês dado ao quarto de vestir


das damas de sociedade]. Acaba de despedir-se, ajudada pela mucama
[modo como se chamavam as criadas]. Voltou do teatro com o marido, o
Comendador, que, depois do chá, se recolheu a dormir como um bem-
aventurado. É uma hora da noite.)

A MUCAMA – Nhanhã gostou do drama? [veja o registro da fala da


mucama, ainda com vestígios da língua de África que herdou de seus pais,
provavelmente escravos].

AMÉLIA – Não era um drama, era um vaudeville.

A MUCAMA – Engraçado?

AMÉLIA – Não; não tem graça nenhuma, porque é muito imoral. Eu


queria vir para casa no fim do primeiro ato, mas o comendador entendeu
que devíamos ficar até o fim! Se aquilo é espetáculo a que um marido leve a
sua esposa...

A MUCAMA – Ih!... Nhanhã como está indignada!...

AMÉLIA – Pudera! Uma senhora honesta não deve sancionar com sua
presença a exibição de semelhantes peças: dá má ideia de si.

A MUCAMA – Como se chamava o vaudeville, Nhanhã?

AMÉLIA – A Casa de Susana. Só esse título!

A MUCAMA – Susana? É aquela francesa velha que de vez em quando


faz benefício?

AMÉLIA – Não; é outra de igual nome, mas muito pior. Não podes
imaginar o que aquilo é! Eu estava a ver o momento em que, mesmo em
cena... Que horror! Nunca senti tanto fogo nas faces!...

A MUCAMA – Por que Nhanhã não se retirou do teatro?

AMÉLIA – Já te disse que me quis retirar, mas o comendador, que dá


o cavaquinho pela pornografia, dizia-me: - Espere, senhora; deixe-me ver
até onde vai essa pouca vergonha!

A MUCAMA – Pronto! Nhanhã não precisa de mais nada?


AMÉLIA – Não; podes te ir deitar, mas, antes disso, vê se o
comendador já está dormindo. (Mucama sai e volta.) Então?

A MUCAMA – Está ferrado no sono, roncando que é um louvar a


Deus!

AMÉLIA – Bem. Podes ir. Boa-noite.

A MUCAMA – Boa-noite, Nhanhã. (Mucama sai. Amélia diminui a força


ao gás [a iluminação interna das casas, feita a gás], e fica envolta numa
doce meia-luz, em cuja sombra se destacam suavemente as rendas brancas
de sua camisola. Depois, ela vai abrir, sem rumor, uma janela que dá para o
jardim. Ouve-se um assobio.)

AMÉLIA – (À meia voz, para o jardim.) – Podes vir... (Pausa.


Henrique aparece no jardim apoia as mão no peitoril da janela, dá um salto
e entra no boudoir. Amélia fecha a janela.)

AMÉLIA - Meu Henrique!...

HENRIQUE – Minha Amélia!... (Atiram-se nos braços um do outro e


beijam-se longamente.) – Ele dorme?

AMÉLIA – Profundamente. – Queres saber o que me fez hoje aquele


bruto?

HENRIQUE – Dize.

AMÉLIA – Levou-me à Casa da Susana!

HENRIQUE (Com um sobressalto.) Que Susana?

AMÉLIA – É uma peça de teatro.

HENRIQUE (Compreendendo.) – Ah!

AMÉLIA – Uma peça do tal gênero livre.

HENRIQUE – Que tem isso?

AMÉLIA – Uma imoralidade que não deve ser vista e nem ouvida por
uma senhora honesta.

HENRIQUE – Olha, sabes que mais, meu amor? Deixemo-nos de


hipocrisias! O teatro é ficção, é fantasia, é mentira; e esta realidade... sim, o
que nós estamos fazendo, o que nós vamos fazer, é muito mais imoral.

AMÉLIA – Pois sim, mas ninguém vê... ninguém sabe... (Com


frenesi.) Meu Henrique!

HENRIQUE – Minha Amélia! (Atiram-se de novo aos beijos, etc.).

A cena mostra claramente o espírito da comédia, da comédia de


costumes e da crítica que opera à falsidade e hipocrisia de uma certa moral
burguesa do “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”.

Vejam mais uma vez que apenas por meio da troca de falas entre os
personagens pode-se quase descrevê-los, compreender como pensam e
agem, como se faziam os casamentos nesta classe, como viviam essas
pessoas. A economia do teatro ganha mais densidade quando a peça é
posta em cena, é claro, mas a competência do dramaturgo permite bem a
criação de imagens.

A comédia, em geral, segue um princípio latino do poeta


Horácio, segundo o qual “ridendo castigat mores” (que quer dizer “rindo
castigam-se os costumes”), divulgado na Europa, sobretudo a partir do
século XVII na França, pelo comediógrafo Molière (pelo autor latinista
Santeul). O castigo dos costumes por meio do riso provocado pelas
situações, pelas personagens e seus defeitos, pelos ditos e jogos de
palavras constitui uma tendência que se tornou bastante popular na
dramaturgia.

E o drama?

O primeiro a se dizer é que, se na linguagem comum o termo


“drama” e o adjetivo “dramático” são usados para situações que mobilizam
emoções e exprimem tensões – como as brigas de família, por exemplo –
isso se deve ao fato de que, na sua origem, o termo dramático, no
universo teatral, refere-se à ação dramática ou conflito dramático. Portanto,
a tragédia e a comédia, respeitadas suas naturezas específicas que
modificam o tratamento dado ao tema que abordam, são subgêneros de
uma classificação maior, o gênero dramático. Como vimos na aula
anterior, o gênero dramático refere-se ao conjunto de criações
literárias em que as cenas do mundo são escritas para serem
apresentadas concretamente na cena teatral.

Mas há algumas dessas criações que guardam o nome de drama. A


partir do século XVIII, com a falência do sistema monárquico e o
surgimento da burguesia, as pessoas não querem mais ver serem levadas
em cena as tragédias que falam de reis. Antes, querem se ver em cena,
querem reconhecer na cena teatral os problemas que afetam a sua vida
particular, a sua vida em família. Surge assim o chamado drama burguês,
do qual um dos precursores foi o francês Enciclopedista Diderot, com sua
trilogia sobre a família, na qual a peça “O pai de família” é o eixo central.
Esse teatro seria uma forma de expor e reforçar valores da nova sociedade.

Mais adiante, no século XIX, os valores burgueses estão em crise


devido às transformações sociais advindas de mudanças econômicas e do
surgimento das indústrias, e após a descoberta da luz elétrica, que muito
colaborou para o desenvolvimento dos chamados tempos modernos. A crise
também afeta o teatro, os temas que aborda em cena e os modos de se
apresentar. Pulverizam-se as propostas, da comédia ao drama sério, e
entramos no século XX com um imenso leque de possiblidades aberto.

Não é possível aprofundar e ampliar o estudo das formas dramáticas


no restrito espaço desta disciplina. Sem tal pretensão, pois a leitura de um
fragmento não é capaz de dar a noção íntegra de uma peça, podemos dar
um exemplo de como se constituiu o drama no teatro brasileiro do século
XX.

Na Biblioteca Domínio Público, da Universidade Federal de Uberlândia


(UFU), encontramos o drama abaixo, peça em um ato, adaptada do inglês.

Nos degraus

(Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU).

COLETTE (com um leve sotaque francês): Você sabe alguma coisa


sobre o pássaro morto ali nos degraus?

HARRY: Mmmmm...?

COLETTE: Eu disse, tem um pássaro morto na degraus, você sabe


alguma coisa sobre isso?

HARRY: Nada.

COLETTE: Tem também uma sacola aberta, cheia de arsênio com


uma colher lá dentro, no porão.

HARRY: Mmmm...?

COLETTE: Você me ouviu. Eu disse que tem um... você poderia tirar
esse jornal da frente enquanto estou conversando com você? (HARRY olha,
retira o jornal)

COLETTE: Assim é melhor. Eu disse que tem um pássaro morto e um


saco de arsênio aberto. Você teria alguma coisa a ver com isso? (Pausa)

HARRY: Que tipo de pássaro é esse?

COLETTE: Eu não sei. A senhora Plaza chamava ele de pássaro-


tirano.

HARRY: O quê?

COLETTE: Pássaro-tirano. Ela disse que era um tipo de ave grande e


feia, uma raça que rouba o alimento dos pássaros menores. Pássaro-tirano,
Tirano. É a raça.

HARRY: Ah!... então você viu esse pássaro.

COLETTE: Sim.

HARRY: E você não consegue perceber a raça do animal por você


mesma, precisou da opinião da Senhora Plaza!!

COLETTE: Eu não sei nada sobre pássaros.

HARRY (retomando seu jornal): Mais razões ainda para não acreditar
na senhora Plaza.

COLETTE: HARRY, a pobre da mulher está num estado lastimável,


você não ouviu seus gemidos na escadaria?
HARRY: Nada.

COLETTE: Oh, HARRY!

HARRY: O quê? Eu estou consumindo meu jornal aqui, caso você não
tenha percebido.

COLETTE: Bem, a Senhora Plaza tropeçou no pássaro quando saia de


casa hoje logo cedo.

HARRY (rindo, murmúrio zombeteiro): "Hoje logo cedo..."

COLETTE: Ela é uma mulher amável, HARRY, ela ama todas as coisas
viva, e além do mais ela adorava o tirano.

HARRY: Quem?

COLETTE: O pássaro.

HARRY: Tocante, muito tocante, diga a ela que esta ocasião


realmente me toca, fico comovido. Esse é meu suco?

COLETTE: Sim, é.

HARRY: Bem, você pode me dá-lo agora?

COLETTE: Não até você dizer o que você sabe sobre a morte desse
pássaro.

HARRY: Não sei nada.

COLETTE: Não sabe nada.

HARRY: Não. Nada.

COLETTE: Vejo. (pausa; ela coloca o copo de suco no lado oposto da


mesa, fora do alcance dele). Onde você conseguiu este jornal?

HARRY: (Ele olha o suco. Pausa): Onde você acha?

COLETTE: Lá fora...

HARRY: Muito bem, COLETTE, observadora!

COLETTE: Na escadaria.

(Pausa)

HARRY: Não sei sobre o que você está falando.

COLETTE: Não mesmo?

HARRY: Eu não...

COLETTE: Você matou o tirano, você o envenenou com arsênio.

HARRY: Oh, me deixe em paz.

COLETTE: Por que você não admite HARRY? Hein? HARRY? Está
envergonhado de si mesmo não está?... Por que é que você fez isso, por
quê? Primeiro foram os micos da praça, depois os coelhos, depois os
esquilos, agora o pássaro-tirano. Porque, HARRY? Eles não maltrataram
você, eles não... eles não incomodam você.

HARRY (sobrepondo): É um Estorninho, não um pássaro-tirano.

COLETTE: O que vem depois, HARRY? Gatos, cachorros? Vai começar


a matar crianças? O que me diz disso?... Todos os vizinhos sabem que é
você quem mata, já estão começando a falar...

HARRY: O que, avisaram para a Senhora Plaza?

COLETTE: É por que eles te perturbam? Te acordam de manhã?

HARRY: Eu realmente não sei sobre o que está falando, COLETTE,


sinceramente.

COLETTE: Ou você está chateado, HARRY? Está? Você sempre disse


que sabia o que fazer quando se aposentasse. Suponho que esta é uma
grande prova não é? HARRY? Deixe-me lhe dar alguns exemplos, vá ao
clube, faça amigos, vamos fazer picnics, vamos dar uma volta. Admita,
vamos, você matou o pássaro-tirano, por que você não admite que matou....
você realmente espera que eu me divorcie depois de tanto tempo de
casados, HARRY? Hm? Só me diz que foi você HARRY! Você me deixa louca
com isso. Você está me tirando de órbita com suas ações. Não existe mais
energia, não existe mais vida em você. Talvez fosse melhor que você
estivesse morto. É! Sabe de uma coisa, quando você está sonolento na
cadeira de balanço, roncando como uma máquina velha à diesel, sabe o que
me dá vontade fazer? Quer mesmo saber? Tenho vontade de pegar aquelas
almofadas azuis que as meninas gostavam de brincar quando pequenas, e
tirar todo o seu fôlego. É minha fantasia.

(HARRY não mostra nenhuma reação. Pausa. Frustrada COLETTE


começa a sair.)

HARRY (murmurando): Era só uma merda dum Estorninho...

COLETTE (volta-se): Você admite.

HARRY: Vocês mulheres são tão sentimentais.

COLETTE: Nós?...

HARRY: Nah, nah, nah... Eu devia ir pra América e casar com alguma
garota lá, dizem que as garotas de lá são diferentes. Vocês aqui são
insignificantes. Uma merda de um Estorninho, fale direito! Aprenda a falar,
não é pássaro-tirano é Estorninho. Você é a senhora Plaza!!!

COLETTE: É uma conspiração então, contra você... você vai nos


envenenar agora?

HARRY: O quê...?! Você faz as coisas parecerem ridículas e sem


sentido.

COLETTE: Sério?

HARRY: Pro diabo! Foi uma merda um estorninho preto, pelo amor de
Deus! Eu adoro aqueles pássaros.
COLETTE: Foram vários? Você ama...?

HARRY: É! E eu espero envenenar tudo quanto é Estorninho bastardo


que eu encontrar, roubando comida dos outros menores. São uns fascistas.

COLETTE: Inacreditável. Estou farta disso.

HARRY: Ótimo. Me dê agora meu suco. Por favor? Por favor? Por
favor? (ele bebe metade do suco, retoma o jornal) Meu Deus!

COLETTE: deixei sua colher de arsênio, Harry, exatamente como


encontrei. Se quiser mais suco é só pedir.

(Ela sai. Ele de repente imagina que o veneno possa estar em seu
suco, ele dá um salto colocando jogando o copo para longe dele. O suco
derrama na mesa. COLETTE rindo.)

COLETTE: Há! Você não pensou que eu... (ela ri, se descobre
conversando com um jornal. Chora e ri até a luz cair totalmente em
resistência)

[Este texto foi montado em 2002 na Semana de Artes Cênicas UFU,


como parte integrante da Trilogia TRÍADE: coisas. Pessoas. Com Ana
Machado interpretando Collete, e direção de Fernando Prado. Cenário e
figurino de Luciano Heira e apoio do D. A. Grande Otelo].

Vemos então que, apesar da economia de personagens e do curto


diálogo, há uma tensão crescente entre eles e um clima estranho que vai se
estabelecendo, que dissolve toda a trivialidade do diálogo inicial. Vejam
como é esse tratamento que faz com que dessa peça de um ato se possa
dizer que se trata de um drama, e não de uma comédia.

E mais, aplicando-se à peça o conhecimento desenvolvido a respeito


da literatura, podemos dizer que ela traz uma boa dose de humor
fantástico.

Agora que você tem noções sobre o gênero dramático, procure ir ao


teatro toda vez que puder.

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