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E INVENTÁRIO LEXICAL
MAGÜTA ARÜ INÜ. JOGO DE MEMÓRIA: PENSAMENTO MAGÜTA
Um inventário pode ser uma lista, uma relação ou enumeração mais ou menos minuciosa
de coisas, segundo uma determinada ordem, para registro, fixação ou recordação. Aplicado às
palavras de uma língua, um inventário poderia ser uma simples relação de palavras dessa língua.
No entanto, como o inventário que aqui se apresenta é lexical e se encontra associado ao que é
etnológico, ele é diferente, justamente pelo fato de ser lexical e por vir associado ao que é
etnológico.
Quando o inventário é lexical, ele pode ser entendido a partir da palavra léxico.
O léxico é o conhecimento internalizado que os falantes têm do mundo de palavras
constituído em sua própria língua. Esse conhecimento engloba as palavras da língua, seus usos,
as suas possibilidades de emprego em sentenças da língua, os sentidos que essas palavras podem
desencadear. Esse conhecimento também engloba as correspondências que se estabelecem entre
as palavras – correspondências entre sentidos, formas e sons.
O léxico é ainda o lugar em que se lida com categorias e onde podem ser encontradas a
história lingüística e mudanças que atingiram ou estão atingindo o grupo de falantes de uma
língua – mudanças que podem estar fora da língua, mas que a língua reflete. Assim, de qualquer
ponto de vista que se olhe para o léxico, não será possível ignorar a codificação da experiência
por um dado conjunto de falantes.
Como o inventário que aqui se apresenta é lexical, ele traz consigo os sentidos
desencadeados pela palavra léxico. Isso significa que, entre outras coisas, ele traz uma
determinada codificação da experiência: a experiência dos falantes da língua Ticuna, uma língua
tonal, considerada como isolada e falada por uma numerosa população que habita a região
amazônica, distribuindo-se por três países: o Brasil, o Peru e a Colômbia.
Por envolver a coleção Curt Nimuendaju do Museu Goeldi, o inventário lexical possui
uma face etnológica cuja maior exigência é a do dinamismo: as peças coletadas por Curt
Nimuendaju são parte da realidade Ticuna, construída ao longo do tempo e atualizada, dia-a-dia,
em um processo constante.
Assumindo a sua face lexical e a sua dimensão etnológica, o inventário aqui apresentado
não possui a amplitude e determinados detalhes de um dicionário. Mas é resultado, ele próprio,
de um processo em que participaram ativamente falantes da língua Ticuna. Para capturar a
construção contínua da realidade Ticuna, à medida que cada peça do acervo Curt Nimuendaju
era exposta e filmada, durante os meses de novembro e dezembro de 2002, no espaço da
Reserva Técnica do Museu Goeldi, a avaliação de seus detalhes por um grupo de falantes
Ticuna foi continuamente gravada. Com isso, foi possível realizar dois tipos de captura.
Primeiramente, as gravações capturaram os momentos de elucidação de dúvidas de
pesquisadores sobre detalhes técnicos referentes a cada peça avaliada – elucidação sempre
realizada pelos Ticuna. Em segundo lugar, as gravações capturaram os diálogos
espontaneamente travados pelos Ticuna na sua própria língua, diálogos esses suscitados pela
1
Lingüista. Professora Adjunta do Departamento de Antropologia (Setor de Lingüística e Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social)
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visão de cada peça, sendo que a gravação desses diálogos foi, em boa parte do tempo, conduzida
pelos próprios Ticuna. Esse segundo tipo de captura foi o mais relevante para a construção do
inventário lexical: as palavras que constam do inventário foram retiradas daí, a partir do que os
falantes consideraram como relevante após ouvir as fitas. Um resultado positivo desse tipo de
procedimento é que, se detalhes de descrição técnica relacionados a termos em Ticuna podem
ser reencontrados no inventário lexical, também podem ser encontradas aí aquelas palavras que
se situam no campo da produção de sentido de uma determinada peça sem, no entanto, estarem
imediatamente vinculadas à descrição técnica. Ou seja, o inventário lexical também mostra as
palavras “invisíveis”, aquelas associadas a uma peça, mas que a peça sozinha, sem a construção
dos falantes, não é capaz de mostrar. E é essa construção que dá acesso à realidade Ticuna.
As palavras do inventário lexical aparecem aqui em ordem alfabética, representadas na
escrita que vem sendo utilizada pelos Ticuna do lado brasileiro e com vinculação às peças do
acervo a que foram associadas. Na escrita em Ticuna, o tom não se encontra representado e a
representação gráfica não dá acesso imediato à pronúncia das palavras se a pessoa não for
falante da língua Ticuna. Para se ter uma idéia da pronúncia das palavras, é preciso ir à galeria
de palavras sonoras. As palavras do inventário se encontram aí materializadas do ponto de vista
sonoro, pronunciadas por dois falantes diferentes e moradores de pontos distantes dentro da área
Ticuna: Pedro Inácio Pinheiro (Ngematücü), que mora atualmente no Enepü (município de São
Paulo de Olivença, Brasil) e que está próximo dos sessenta anos; Abel Santos Angarita
(Wõtchankü),, que tem trinta anos e que passou a maior parte de sua vida na comunidade Arara,
mas que mora atualmente em Letícia (ambos os lugares na Colômbia). Quando a pronúncia dos
dois falantes mostrou variação dialetal passível de ser apreendida pela representação escrita,
isso foi registrado, indicando-se as alternativas de pronúncia por meio de uma barra inclinada no
interior do inventário lexical, sendo que a galeria de palavras sonoras também revela essa
variação. Quanto à diferença de pronúncia que a representação escrita na língua Ticuna não
captura, essa poderá ser percebida somente na galeria de palavras sonoras. Em ambos os casos,
a variação lingüística é prova da vitalidade da língua Ticuna, que é falada em uma área muito
extensa.
Por fim, para que se possa perceber a conexão entre palavras no interior do inventário
lexical, utilizamos não só o recurso da remissão (quando se manda o leitor ver uma outra
palavra), mas também o recurso do negrito, que aqui está servindo para mostrar como as
palavras se articulam em uma rede produtora de sentidos. É dessa produção de sentidos que esse
pequeno inventário fala, reunindo o lexical ao etnológico.
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Ai Onça, tigre.
RG 4042, RG 4048, RG 4138
Airumacatchi Bicho da terra firme que pode se transformar e entrar na água.
)
Apresenta-se na festa como E’ e) e vem antes do mawü.
RG 4049
Atchamü) Ter casca (estar vestido com pele, com uma casca).
RG 4225
Ãtchatü Máscara em forma de calça; máscara que tem perna em forma de
forquilha (horqueta).
RG 4225
Aü) Tipo de cobra que come defunto e que vive dentro da terra.
RG 4047
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)´
E e) Aquele que sopra, mas não pode falar. Ele só vai cantando e vai
dançando. Significa aquele que não fala, que não tem braço, que imita
som de um bicho (ngo’o) , que só fala no sopro, através de um
instrumento que se faz com galho de caranã ou palma de bacaba.
RG 4049
Enepü Montanha de ene (formiga/hormiga). Montanha onde se encantou um
xamã chamado Ene.
RG 4220.
Epetchii Lacraia comprida, de cor azulada e que é venenosa. Também conhecida
como ãtapetchii (piolho de cobra)
RG 4225
)
E’ta Estrela.
RG 4046
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)
Muütchii Representação do beija-flor na máscara.
RG 4050
Naane Terra, espaço onde se vive. Terra, Universo.
RG 4046
Nacuma Parte do corpo abaixo do umbigo que abarca/inclui os órgãos genitais.
RG 4221, RG 4225
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Naicu 1. Fruta de cor negra que serve para pintar tururi. 2. A planta que dá esse
fruto.
RG 4056, RG 4215, RG 4219
Nai’tchacü’ü Ngo’o que, quando visto, está entre as ramas das árvores. Mesmo que
peratchinü.
RG 4041, RG 4226
Nai’tchime Tronco derrubado e preso no solo. O que restou da árvore.
RG 4260
Na’ne Qualquer tipo de arma.
RG 4225
Napana’amatü Pinta de cobra-corda (uma cobra fina e comprida).
RG 4054
Na’peetchiraü) Pênis. Membro viril (que é pontudo, que está de frente, que sai daí e que
é semelhante a um nariz).
RG 4261
Narü’ütchime Pedaço [de árvore] que cresce. Qualquer tronco que cresce.
RG 4260
Natchametü Rosto de algo ou de alguém.
RG 4225
Na’tchamü Refere-se a qualquer classe de pele ou máscaras.
RG 4225
Na’tchine Roda que levam os mascarados. Essa roda é de tururi e está decorada
com motivos de constelações, estrelas, sol, lua. Às vezes, a dedicam à
moça nova e ao clã a que essa pertence.
RG 4046
Na’tchinü Parte do corpo que fica entre os glúteos; também pode se referir aos
glúteos.
RG 4221
Na’wena Ter algo ou alguém nas suas costas (seguindo ou pegado).
RG 4221
Naweama Atrás de alguém.
RG 4221
Naweta Uma carga que se carrega nas costas. Pode ser um cesto, um cacho de
bananas, um saco, etc.
RG 4230
Nayaetchi)’ü) RG 4073
Nayu Morreu. Ele morreu.
RG 4223
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Ngu’eerüü ) Um instrumento ou algo que serve para aprender ou treinar; algo que
serve para o treinamento de guerra, para o conhecimento, para o saber,
para a ciência.
RG 4054
Ngurina Tipo de ngo’o que vive na montanha e tem o rosto nos glúteos.
RG 4221, RG 4225
Ngutchipa’ Sapo de pele verrugosa. É de terra firme.
RG 4056
O’ma Dono do vento.
RG 4037, RG 4257
O’maacü Filho de O’ma, o dono do vento. O’ma tem um pênis muito comprido,
com o qual derruba as árvores. Os filhos de O’ma carregam o seu pênis,
para que, assim, as árvores não sejam derrubadas.
RG 4058
Onecü Espécie de tururi (tururi verdadeiro).
RG 4047
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Orumatü / Pinta, desenho da cobra oru / ora, espécie de cobra que é aquática.
Oramatü RG 4054
O’ta 1.Barro branco; argila branca.2. Cérebro.
RG 4043, RG 4233, RG 4255, RG 4256, RG 4257, RG 4258,
RG 4267, RG 4270, RG 4272
Paiwecü Desenhos, pintas, traços de tururi entrelaçados triangularmente de uns
aos outros.
RG 4217
Peratchinü É um bicho (ngo’o) que aparece quando o tempo está muito nublado,
quando não dá sol, quando está chuviscando, trovejando. Para não
significar a palavra mal, os Ticuna o chamam de peratchinü. E outras
)
pessoas – do povo Ticuna – dizem Yureugü taca’nangoügu erü i
woomatchigu guü)ma tacü (Porque se cometeu incesto, o conjunto dos
Yureu aparece para nós e todos os demais). A esse se chama peratchinü.
É um bicho (ngo’o) que aparece. É o mesmo que naitchacü’ü.
RG 4041, RG 4226
Petütchipanü Tiras de petü, uma árvore (tipo de balsa).
RG 4225
Peyü / Peyi Espécie de tururi (tururi verdadeiro).
RG 4221, RG 4229, RG 4259, RG 4260
Pota Uma espécie de tururi.
RG 4221
Pune 1. Balsa (tipo de árvore). 2. Tipo de madeira
RG 4037, RG 4048, RG 4057, RG 4225, RG 4226, RG 4233,
RG 4272
Putchametü Rosto com tatuagem.
RG 4221
Putüra Flor de modo geral. Flor de todas as árvores, sejam pequenas ou grandes.
RG 4260
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Üacü Sol. O sol foi humano, falava (e por isso a representação do sol possui
dentes).
RG 4048, RG 4261
Ü’e Passar de um lado para outro; cruzar de um lado para outro. Mesmo que
to’e.
RG 4220
Üta Urucum (árvore e fruto).
RG 4215
Ucae Um ngo’o. Ipi, irmão de Yo’i, ficou preso em armadilha preparada por
Ucae para pegar cutia. Da primeira vez em que Ipi ficou preso, a corda
da armadilha se prendeu em seu pescoço e Ipi, transformado em veado,
morreu. Mas conseguiu se salvar, porque ressuscitou e saiu correndo. Da
segunda vez em que ficou preso, a corda se prendeu novamente no
pescoço de Ipi e esse se transformou em veado. Ucae trouxe um cacete
para bater no veado. Mas quando bateu, o veado se transformou em
folha de patauá e ficou parecendo um aturá. Logo depois, tornou a se
transformar em veado e correu. Em uma terceira vez, Ucae pegou o
veado. Matou e levou para casa. Outros bichos (ngo’o ) que moravam
com Ucae comeram um pouco do veado. Mas pegaram só os intestinos.
Ucae ficou com o resto da carne. Enquanto Ucae estava preparando a
carne do veado, Yo’i ficou bem atrás dele, bateu com um pau em suas
costas e matou Ucae. Yo’i juntou a carne do veado, mais os intestinos e
fez Ipi viver de novo.
RG 4223
Utchuma Piranha
RG 4214
Uwanü ) Aquele que não é do grupo; pessoa de fora que é discordante. Ver
awane.
RG 4055, RG 4142
Wainü Cobra que vive nas árvores. Assim que cai na terra, morre.
RG 4037, RG 4040
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Woramacuri Estrela d’alva. Filho da lua; produto do incesto da lua (macho) com sua
irmã. Ver tawemacü.
RG 4046, RG 4217, RG 4225, RG 4268
Worecü Moça nova. Moça que menstrua pela primeira vez. Chama-se assim à
moça nova para a qual se vai fazer a festa da pelação.
RG 4048, RG 4144, RG 4223, RG 4230
Worecümatü Pinta de moça nova.
RG 4217
Worua Espelho.
RG 4255
Wuwuru Dono da mata.Comumente conhecido como curupira. Dono das árvores.
Cuida dos animais. Quando quer tirar os animais, esses se tornam
abundantes. Também cuida das árvores. Muitas pessoas contam que ele
esconde as madeiras finas (por exemplo, cedro, acapu). Como é o dono,
esconde para que as pessoas não as cortem, não lhes causem dano. Ele é
quem cuida do que existe na mata.
RG 4215
Wü)cütcha Era uma onça/ um tigre que viveu aqui na terra e que comia gente. Foi
morto pelos filhos da lua. E o osso da sua perna foi levado ao céu e
deixado aí. Agora é uma constelação, um conjunto de estrelas.
RG 4046
Yacü Pedaço de palavra que significa grosso.
RG 4229
Yacürana Cigarra venenosa que vive nas árvores, por exemplo, na árvore de
Copaíba. É branca com manchas negras. Se uma pessoa for mordida por
uma yacürana, ela só se salvará se tiver relações sexuais com uma pessoa
do sexo contrário.
RG 4262
Yaire É a personagem da mitologia Ticuna que viu a Ngurina, porque se
perdeu de seu irmão. Eram dois irmãos que foram à mata e essa
personagem aí se perdeu, extraviou-se de seu irmão. Então, para
encontrar seu irmão, correu por outro caminho e foi aí que se encontrou
com Ngurina – o diabo e tem duas caras, uma das quais na parte de trás
da cintura. Quando chegou junto de seus familiares, contou que havia
visto Ngurina, um ngo’o.
RG 4225
Yaanecü/ Seis [horas] da tarde.
Yauanecü RG 4268
Yewae É uma boa gigante, aquática, que pode se converter em pessoa. Foi uma
criança roubada e criada por uma arraia, sendo que essa criança se
converteu em boa gigante poderosa. Dono dos peixes. Cobra Norato.
(Palavras associadas: aquelas referentes a constelações, ao Universo).
RG 4046, RG 4055, RG 4214, 4225
Yo’i Nome do criador dos Ticuna. Foi quem pescou, criou os Ticuna no
igarapé Eware. Ver Magüta.
RG 4225
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Yoi Sucuri.
RG 4220, RG 4229
Yoimatü Pintura, pinta de sucuri.
RG 4220, RG 4229
Yucurutchi Espécie de pássaro muito representado nas máscaras. Pássaro traidor que
vira macaco. É um ngo’o.
RG 4055, RG 4159
Yureu Demônio (no sentido religioso, mais próximo do cristianismo).
RG 4220, RG 4223
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