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PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E

FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD

Lucília Maria Abrahão e Sousa1


USP
Dantielli Assumpção Garcia**
Daiana de Oliveira Faria***

Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a metodologia da Análise


de Discurso. Mobilizando as noções de paradigma indiciário
(Ginzburg, 1989), escriturística (De Certeau, 1999), e recorte
(Orlandi, 1984), as autoras propõem a noção de língua-concha, a qual
remete aos indícios, aos furos, às contradições, às falhas, às dobras, às
frestas do imenso mar do discurso.

Abstract: This article presents a reflection on the methodology of


Discourse Analysis. Mobilizing the notions of evidential paradigm (as
in Ginzburg, 1989), scripturistics (as in De Certeau, 1999), and cut (as
in Orlandi, 1984), the authors propose the notion of shell-language,
which refers to the evidence, the holes, the contradictions, the failures,
the folds, the cracks in the vast sea of discourse.

“Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo”


Chico Buarque

A concha seca, alguns grãos de areias, os restos de um mergulho que


já não há, o mar ausente no de-dentro dela, a concha, a língua: há quem
diga ser possível até mesmo ouvir o gemido de mar dentro de uma

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concha. Emprestamos a metáfora para tomar aqui a língua como concha


que manifesta marcas de rolamentos, de navegação, de rachaduras e de
trincados que o analista do discurso precisa escutar. Estamos no campo
da metodologia de Michel, cujo cerne não é desenhado pela
compreensão de uma mensagem ou conteúdo por meio de “modelos
prontos, definidos anteriormente a seus objetos, que podem nos levar a
uma análise conteudística, onde o que temos a dizer serve apenas para
comprovar uma conclusão pré-estabelecida” (LAGAZZI, 1988, p.51),
mas pela escuta dos modos de inscrição de posições discursivas na
ossatura da língua-concha, nosso alicerce, nosso chão, sempre o mar.
Materialidade linguística – de língua-concha – que o analista do
discurso coloca na orelha, escuta, desdecifra (e devora); entre ruídos e
silêncio se constituem pistas e indícios do discurso. Silêncio que ecoa,
que é efeito e que não pode ser apreendido, se não por seus ecos. A
língua-concha dá corpo a registros e marcas por onde escorrem efeitos
de sentidos, rabiscando regularidades, repetições e desvios, sendo esses
nossos objetos de interesse e estudo. Para pensar à moda de Pêcheux,
faremos um percurso nos seguintes termos: i. definição de paradigma
indiciário; ii. anotações sobre o modo discursivo de pensar a língua
como concha; iii. noção de recorte e funcionamento discursivo.

O paradigma indiciário começou a ser esboçado por Ginzburg


(1989) ao observar os estudos do final do século XIX. A pergunta que
se fazia então era a seguinte: como uma tela poderia ser identificada se
a sua data e autor eram desconhecidos? E no caso de uma incerteza,
como afirmar com precisão quem foi o pintor da obra, como reconhecer
certa dose de pertença/pertencimento nesse caso? As características da
escola artística não se mostravam suficientes para solucionar impasse
desse tipo, tampouco respondiam à questão de situar pintor e obra.

“É necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis” (op.


cit., p.144) adverte Ginzburg, o qual sinaliza também como o
considerado pequeno e desprezível pôde ser anotado nos trabalhos de

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Morelli que, nas obras de arte, atentava para detalhes como o formato
das unhas, o tamanho do lóbulo da orelha e a forma dos dedos das mãos
e dos pés, inaugurando uma interpretação a partir de elementos tidos
como marginais, simulando a postura de um detetive que, diante de uma
obra de arte, precisa atiçar os olhos para perceber a grandiosidade de
detalhes, o minúsculo em movimento, a erva daninha pouco reparada
na imensidão de corpos.

Esse exemplo ilustra uma postura indagadora (e por que não dizer
científica?) que, segundo Ginzburg (op.cit., p.151-152), revisita alguns
outros períodos históricos. Em vários momentos, o homem comportou-
se dessa forma para resolver questões cotidianas, muito embora esse
saber nunca tenha chegado ao estatuto científico. O homem como
caçador de pistas, como olheiro dos objetos do mundo incógnitos e
tantas vezes hostis, como construtor de um meio para sistematizar seus
desconhecidos diante do enigma de estar no mundo.

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições,


ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas
invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de
esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados.
Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações
mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso
bosque ou numa clareira de ciladas (...) Decifrar ou ler as pistas dos
animais são metáforas (GINZBURG, 1989, p.151-152).

Ele ainda o completa apontando como as práticas divinatórias e a


leitura dos astros encerram esse tracejado de invencionices e
interpretações destinadas ao resto, à sobra de algo que não está presente,
mas presentificado na marca deixada para trás, ao sinal que ficou... Uma
pegada que iremos tomar para nós como analistas do discurso... Os

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astros no céu de então, quando lidos nos detalhes de seus arranjos,


apontavam previsões sobre mudanças no clima e no desenvolvimento
da agricultura, por exemplo. A análise de vestígios dos rastros de
animais também implica momentos de defesa humana, sobrevivência
ou indiciava a proximidade com o horror da morte; ler sinais e pistas
deixadas no oco ausente/presentificador para sobreviver... Perceber a
fundura e a umidade da pata no barro, a grossura do pelo deixado na
árvore, o tamanho da plumagem derramada no chão, o tamanho da
mordida no corpo do animal estraçalhado: “por trás desse paradigma
indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da
história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama,
que escuta as pistas da presa” (GINZBURG, op.cit., p.154).

Anota o autor italiano que a medicina também bebeu nessa fonte, ao


observar fezes, suores e toda espécie de secreções de pacientes,
passando do sintoma ao diagnóstico da doença e à cura num pulo
indiciário. Ler os indícios no/do(r) corpo exige perscrutar o detalhe, o
sinal, a minúcia que apenas o olhar refinado para o indício, a pista e o
sinal pode perceber. Nesses termos todos nós, que trabalhamos com a
metodologia da teoria discursiva francesa, encontramo-nos debruçados
diante do texto como caçadores de pegadas do sujeito, de secreções de
sentidos e de vestígios da estrutura e do acontecimento, tocando os
suores do enunciado pelo que escorrega às margens. Não nos interessa
a mensagem como bloco fechado, mas as fissuras que ela conserva, o
minúsculo de um pêlo esquecido em um passo de equívoco, em uma
troca de palavra e de som, em um caco de desarranjo que reclama
acuidade de escuta.

No que toca ainda um pouco mais o pensamento de Carlo Ginzburg,


De Certeau (1999, p.247-248) fala do mesmo lugar ao refletir sobre a
escriturística. Ao fazer um passeio pela obra de Daniel Defoe, relaciona
as metáforas da ilha, do cachorro, do Sexta-feira e do protagonista
Robison Crusoé com a escriturística, ou seja, com a prática do texto

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escrito (e poderíamos ampliar aqui com a prática metodológica do


analista do discurso).

Robison Crusoé já indicava como é que uma falha se introduz em


seu império escriturístico. Durante algum tempo, seu
empreendimento é como efeito interrompido, e habitado, por um
ausente que volta ao terreno da ilha. Trata-se da impressão (print)
de um pé descalço de homem na areia da praia. Instabilidade da
demarcação: a fronteira cede ao estrangeiro. Nas margens da
página, o rastro de um invisível fantasma (na apparition) perturba
a ordem construída por um trabalho capitalizador e metódico (...)
Na página escrita aparece então uma mancha – como as garatujas
de uma criança no livro que é a autoridade do lugar. Insinua-se
na linguagem do lapso. O território da apropriação se vê alterado
pelo rastro de alguma coisa que não está lá e não ocupa lugar
(CERTEAU, 1999, p. 247-248).

De Certeau (op. cit.) enuncia poeticamente o que nos parece uma


contribuição ao conceito de indício: anota o que vai além da fronteira e
demarcação das palavras do enunciado, o que é puro discurso, curso de
sentidos em movimentos, o ausente que presentifica um modo de
sustentar o dizer, a pegada que coloca sentidos em possibilidade de
leitura. Investe atenção na linguagem do desvio, da falha e do vacilo,
daquilo que re(in)siste, como coloca Pêcheux:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar”


as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo,
falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua
estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido
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das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;


deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com
as palavras... (PÊCHEUX, 1990, p.17).

Preocupa-se com o que não está “escrito e visível”, sai em busca do


rastro (da pegada) “do estrangeiro”, melhor dizendo, do sujeito
enquanto posição discursiva. Da mesma forma, Tfouni (1992, p.205-
224) sublinha esse mapeamento das pistas e indícios na materialidade
linguística, colocando tal enfoque como decisivo para a compreensão
da linguagem.

Para Carlo Ginzburg, as ciências humanas sempre se debateram


(e isso é histórico) entre a adoção de um método galileano,
experimental, que considera o dado como fato objetivo,
quantificável, de um lado, e um paradigma científico segundo o
qual ‘o conhecimento é indireto, indiciário, conjetural’. (...) Para
aqueles que pesquisam a linguagem, seguir o paradigma
galileano significa, ainda segundo Ginzburg efetuar uma
‘progressiva desmaterialização do texto, continuamente
depurado de todas as referências sensíveis’. Em contraparte,
seguir o paradigma indiciário significa restituir ao texto suas
qualidades individuais, restituir-lhe os contextos em que foi
produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção
(TFOUNI, 1992, p.205-224).

Anotando que quando falamos em condições de produção, temos


imbricados sujeito e situação, em sentido estrito e em sentido lato,
funcionando conjuntamente: contexto imediato e contexto sócio-

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histórico ideológico mais amplo não podem ser dissociados


(ORLANDI, 2006).

Chartier (2001, p.167-168) também faz referência ao trabalho de


Ginzburg e compreende o ganho científico de “tornar visível uma série
de fatos ocultados no curso das investigações de história social clássica:
vinculações, negociações, conflitos, elementos que geralmente não se
vêem em uma escala mais ampla”. Comprometido com a acuidade do
olhar do pensador italiano, ele faz a seguinte síntese:

Para Ginzburg, o importante é a anomalia, o que se pode ver por


meio de uma situação excepcional (...) utiliza referencialmente
uma nova técnica de classificação, de identificação (...) que
apesar dos traços visíveis das espécies reconstrói as famílias a
partir de uma série de traços que podem ser completamente
invisíveis e que pertencem à anomalia (...) Assim, os animais que
pareciam próximos por suas formas ou sua aparência, são
separados e colocados em outras famílias (...) Ginzburg é um
desafio aos historiadores mais apegados às descontinuidades,
variações, discrepâncias e defasagens, pois propõe uma espécie
de retorno ao antropológico no sentido do universal e reformula
assim uma questão clássica: como pode-se entender-se com o
passado ou o outro, o estranho e o alheio, se não há algo comum
que permita essa compreensão? Se temos alguma possibilidade
de reconstruir estas diferenças é porque há algo compartilhado
(CHARTIER, 2001, p.167-168).

Nesse mapa de pistas e sinais à mostra, a língua-concha indicia. Nos


seus relevos, irrompem rotas seguras e reviravoltas cheias de surpresas.
Os indícios que nos interessam emergem na materialidade linguística,

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em (des)arranjos de língua, em marcas deixadas pelo sujeito após


fal(h)ar e depositar na areia do dizer as pegadas de seus pés andarilhos.
Quando falamos em materialidade linguística, apontamos para o que dá
forma aos indícios e marcas discursivas. Vale ressaltar que não se trata,
apenas, de um suporte ou de algo acabado. Pela via do materialismo
histórico-dialético, de onde emerge essa noção na teoria do discurso, o
mundo não pode ser considerado um complexo de coisas acabadas, mas
um processo onde as coisas e os conceitos estão em incessante
movimento (ORLANDI, 2012, p. 73). É nessa direção que falamos em
materialidade, como processo em que estão imbricados sujeito e
condições de produção, processo que se materializa na língua. Nesse
sentido, a língua é concebida enquanto lugar material em que se
realizam os efeitos de sentidos, dá as condições materiais de base do
processo discursivo (ORLANDI, 2012). Com isso, materialidade
discursiva é o nível de existência sócio-histórica que remete às
condições verbais de existência dos objetos (PÊCHEUX, 2011).
Indursky (1997, p.22-23) desenvolve um pouco mais esse pressuposto
da língua nos seguintes termos:

Examinar o mesmo pronome e seu funcionamento no discurso


coloca o analista diante de um dado lingüístico e a seu
funcionamento discursivo (...) A AD busca, pois, detectar um
conjunto de elementos estruturados para verificar o modo de
organização do discurso (INDURSKY, 1997, p.22-23).

A língua como dado funciona de modo a fechar o cerco do sentido


(a interpretação não pode ser qualquer uma nem toda), de um sentido
marcado por certas condições de produção; assim, a língua é indício,
primeiro e sempre passo de nossa metodologia discursiva. Vale aqui
anotar que as palavras não estão congeladas em estado de dicionário,
mas sempre em jogo tenso e deslocante; sobre isso, Orlandi (1988, p.54)
anota que: “a relação entre as marcas e o que elas significam é (...)

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indireta. No domínio discursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao


modo positivista, como na linguística”. Segundo Marx (1988), toda
ciência seria supérflua se as formas de manifestação, as marcas, os
indícios e a essência das coisas coincidissem imediatamente. É, pois,
nessa instância que o método discursivo (ORLANDI, 1991) se pauta,
ou seja, nos movimentos que culminam em marcas, indícios. Essa tensa
contradição da impossibilidade de coincidência e de relação direta entre
as coisas do mundo e suas representações é o lugar teórico-
metodológico da Análise do Discurso. Num movimento de interpelação
ideológica, o sujeito é fisgado pela ilusão de que pode haver uma
relação direta e efetiva entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de
tal maneira que torna evidente que o que foi dito só podia ser dito com
aquelas palavras e não com outras. Esse processo cria o almejado efeito
de clareza, completude e evidência tamponando as brechas do fal(h)ar,
que se dá de uma maneira possível, apagando outras e, assim, deixando
de dizer de outros modos tantos. Tal movimento é definido por Pêcheux
como esquecimento nº 2

(...) “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “seleciona” no


interior da formação discursiva que o domina, no sistema de
enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em
relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não
um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia
formulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX,
1988, p.173).

As pistas da língua podem passar imperceptíveis à primeira vista,


por isso mesmo cabe-nos olhar e retornar a olhar para elas com
insistência, anotando como os efeitos são produzidos, de que forma
se repetem, cristalizam-se e se rompem sentidos em uma dada
posição-sujeito, e se há repetições ou deslocamentos em curso, e

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como a língua funciona, como vale e como faz jogo disso tudo.
Segundo Lagazzi (1988, p.61):

A partir das marcas lingüísticas que se sobressaem, configurando


as pistas para a análise, é que começarão a delinear o caminho
que levará o analista ao processo discursivo, possibilitando-lhe
explicar o funcionamento do discurso (LAGAZZI, 1988, p.61).

Nessa perspectiva, o processo metodológico da AD, indiciário no


exercício, está às voltas com

essa relação tensa, isto é, de contradição na constituição do


sujeito (...) A partir da consideração social dos interlocutores,
podemos dizer que os conhecimentos podem ser ‘comuns’ mas
não são ‘iguais’. Há desigualdade na distribuição de
conhecimentos, não há partilha. Essa desigualdade é jogada na
interlocução (ORLANDI, 1984, p.13).

Desse modo, ao estudar o discurso, é necessário pensar a contradição


e o sujeito, mantendo os ouvidos sempre colados na língua-concha,
tratando-a não como unidade revestida de informação, como superfície
precisa a ser decodificada, como transparência e completude, mas
considerando que ela funda uma superfície furada e opaca, a qual
chamamos texto, “o todo em que se organizam os recortes” (op. cit.,
p.14). A autora (op. cit, p.14) define que “recorte é um fragmento da
situação discursiva”, “recorte é naco, pedaço, fragmento. Não é
segmento mensurável na linearidade” (op. cit., p.16).

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Com o gesto de recortar, o analista visa analisar o funcionamento


discursivo do texto, buscando compreender o estabelecimento de
relações significativas entre os elementos significantes da língua-
concha. Como a teoria discursiva considera a incompletude e a
opacidade constitutivas da linguagem, não se tem a ilusão de abarcar ou
produzir uma análise de todo o texto, esgotando-o por completo, mas
tomando recortes dele e estabelecendo aí “um começo, um lugar na
incompletude” (op. cit., p.17). Tais recortes representam o
envolvimento do analista que se posiciona diante dos dados,
escolhendo-os (e sendo escolhido por eles...), já implicado pelo seu
objeto, muitas vezes efeito dele, haja visto que “a defesa da análise do
discurso como prática interpretativa não se dá sem que se coloque como
condição indispensável a explicitação do lugar de onde o analista fala”
(TEIXEIRA, 2005, p.196-197).

Ao analisar os discursos, explicita Orlandi (2002, p.77-78), concebe-


se um lugar para a descrição das sistematicidades linguísticas, isto é,
busca-se descrever o modo como o linguístico aparece no discurso.
Além disso, o que analisamos é o estado de um processo discursivo. Há,
assim, a passagem da superfície linguística (o material de linguagem
bruto, o texto) para o objeto discursivo, em que se faz funcionar o
esquecimento número 2 (da instância da enunciação). Nesse momento,
desfaz-se a ilusão de que “aquilo que foi dito só poderia sê-lo daquela
maneira. Desnaturaliza-se a relação palavra-coisa”. Aponta-se, dessa
forma, para um funcionamento da língua-concha, no qual a abertura
para o múltiplo se instaura, o não-dito se faz presente, o confronto entre
diferentes formações discursivas, constitutivamente frequentadas pelo
seu outro, intervém, fazendo as palavras ecoarem sentidos no grande
mar do discurso. A partir do objeto discursivo, o analista vai relacionar
as distintas formações discursivas em confronto – que como ondas
fazem os sentidos se moverem e circularem nas margens, nas marés,
nas areias, nas ressacas da linguagem – com a formação ideológica que
rege essas relações: “Aí é que ele atinge a constituição dos processos

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discursivos responsáveis pelos efeitos de sentidos produzidos naquele


material simbólico, de cuja formulação o analista partiu” (ORLANDI,
2002, p.78). Ainda nos dizeres de Orlandi (2002, p.68):

Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o


real da língua e o da história, entre o acaso e a necessidade, o
jogo e a regra, produzindo gestos de interpretação. De seu lado,
o analista encontra, no texto, as pistas dos gestos de
interpretação, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho de
análise, pelo dispositivo que constrói, considerando os processos
discursivos, ele pode explicitar o modo de constituição dos
sujeitos e de produção dos sentidos. Passa da superfície
linguística (corpus bruto, textos) para o objeto discursivo e deste
para o processo discursivo. Isso resulta, para o analista, com seu
dispositivo, em mostrar o trabalho da ideologia. Em outras
palavras, é trabalhando essas etapas de análise que ele observa os
efeitos da língua na ideologia e materialização desta na língua.
Ou, o que, do ponto de vista do analista, é o mesmo: é assim que
ele aprende a historicidade do texto.

O importante é esgotar, tanto quanto possível o recorte, verificando


como “entre os vários sentidos, um (ou mais) se tornou dominante”
(ORLANDI, 1984, p.23). Do texto ao recorte, da polissemia a um
sentido possível, da sequência discursiva ao processo discursivo
sustentado pelas condições de produção, da (e na) língua-concha ao mar
do discurso: nosso trabalho insistente e cheio de dobras e frestas, nossa
peleja por estar (e teimar em continuar) nas margens, no sem-categoria
que nos lança a navegar com uma cartografia que é construída a cada
passo dado (e também a cada aborto de passo). Com um mapa tal como
coloca Deleuze-Guatarri:

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(...) o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões,


desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a
montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo,
um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa
parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma
ação política (...) (DELEUZE-GUATTARI, 1995, p.21).

O que nos cabe escutar de novo (e com a polissemia dessa expressão,


novamente e de novidade) na metodologia discursiva e nos nossos
exercícios de análise(s), é a (nossa) condição da língua-concha, ou seja,
escutar os espaços porosos, vazados, abertos que constituem uma
ausência que é casco e borda, que emblematiza oco e palavra em torno.
E só o fazemos na língua que nos falta, aquela da concha muito vazia e
tão cheia de ar.

O novo, nessa perspectiva, não é exclusividade do foco nem


precisa ter lugar em um segmento de linguagem. É intervalar. É
o resultado de uma situação discursiva, margem de enunciados
efetivamente realizados, essa margem, este intervalo, não é um
vazio, é o espaço ocupado pelo social. Efeito de sentido.
Multiplicidade (ORLANDI, 1984, p.13).

A lida com algo sempre escapante que está dentro, e também fora, e
se manifesta como puro intervalo entre mar e areia, onda e pedra; que
pode receber preenchimentos imprevisíveis de terra e ar permanecendo
vazia; que sempre nos remete a margens de mar, marés, ondas,

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movimentos de ondulações e ressacas em cascalhos, areias e pedras;


que no seu de-dentro reserva espaço consagrado ao vazio, e por isso se
faz busca e pôde ser cuspida do oceano, ressecar até a última gota, virar
canção na voz de Buarque e mote para este texto. Margens que se
estiram no dizer do sujeito – na tentativa, sempre vã – de preencher,
(re)emendar, coser com os objetos de pesquisa e com as metodologias
inventadas, algo que lhe falta, o ausente da (sua) concha. O furo que
gesta e que coloca palavras e métodos em discurso, no concurso do
faltoso que todo oceânico encerra, no que de falha é duração de
continuidade, em nossa condição, também de concha.

Notas

1 Docente com dedicação exclusiva da Universidade de São Paulo. Coordenadora do


Grupo de Pesquisa “Discurso e memória: movimentos do sujeito” (CNPQ) e do “E-
L@DIS, Laboratório Discursivo - sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos”
(FAPESP).
** Pós-Doutoranda na Universidade de São Paulo.
*** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão da Universidade de São Paulo.

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TFOUNI, L. V. (1992) “O dado como indício e a contextualização do(a)
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Palavras-chave: língua-concha; Análise de Discurso; metodologia

Keywords: shell-language; Discourse Analysis; methodology

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014


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PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E
FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD

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