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A IMAGINAÇÃO

PROFÉTICA
Wâlter Br ueggeman n

15

ep
Temas Bíblicos
CIP-Brasil. Catalogação-na-PublicaçSo
Câmara Brasileira do Livro, SP

Brueggeman, Walter.
B814Í A imaginação profética / W. Brueggeman. — São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983.
(Coleção temas bíblicos)

ISBN 85-05-00039-0

1. Profetas 2. Teologia pastoral I. Título.

17 e 18. CDD-221.15
17. -250
83-0830 18. -253

Índices para catálogo sistemático:

1. Antigo Testamento: Profetas 221.15 (17. e 18.)


2. Ministério eclesiástico: Cristianismo
250 (17.) 253 (18.)
5. Profetas: Antigo Testamento 221.15 (17. e 18.)
W. Brueggeman

A IMAGINAÇÃO
PROFÉTICA

Edições Paulinas
$ 2. ZL///- f

Título original
The Prophetic imagination
© Fortress Press, Philadelphia, 1978

Tradução
José Wilson de Andrade

Revisão
José Joaquim Sobral

Xx CMS

© EDIÇÕES PAULINAS — São Paulo, 1983


ISBN 85-05-00039-0
A minhas irmas no ministério,
as quais me ensinam diariamente
• a força do sofrimento

b
(T
...... . o dom da intuição

* Em falta de outro, este termo traduz o inglês amazement. No con­


texto do livro, significa a contemplação pela qual se atinge uma verdade
de ordem diversa daquela existente e que, por isso, é acompanhada de
grande admiração.

5
PREFÁCIO

Já deve ser tempo de, na Igreja, levantar-se uma


reflexão séria sobre o interesse da profecia como elemen­
to de suma importância no ministério. Com certeza, a
exaltação estudantil dos anos 60 ainda não desapareceu
totalmente, mas se percebe um equilíbrio e uma volta às
conclusões mais fundamentais da fé bíblica.
As discussões que se seguem são uma tentativa de
entender o objetivo dos profetas e de nos libertar de es­
tereótipos vulgares, a saber, considerando-os apenas como
adivinhadores ou contestadores sociais. Defendemos que
eles estavam preocupados com mudanças essenciais na so­
ciedade humana e que compreendiam muito sobre como
aquelas mudanças se efetuariam. Os profetas entendiam
a possibilidade de as mudanças estarem ligadas a extre­
mos emocionais da vida. Percebiam a estranha incoerên­
cia entre as convicções públicas e os anseios particulares.
Sobretudo entendiam a extraordinária força da linguagem
e tinham o poder de falar de modo a despertar a novi­
dade “provocante da palavra”. Defendemos que uma per­
cepção profética da realidade se fundamenta no conceito
de que toda realidade social surge primeiramente através
da palavra. O objetivo de todo poder totalitário é justa­
mente silenciar a novidade da linguagem, e, hoje em dia,
já temos experiências vividas de que, onde a linguagem
é obrigada a silenciar, aí encontramos nossa própria hu­
manidade diminuída.
7
Estas conferências foram proferidas pela primeira
vez para os ministros da Igreja Unida de Cristo e dos
Discípulos de Cristo, no estado de Washington, onde
fui generosamente recebido por Larry Pitman e James
Halfaker. Depois pronunciei-as no Seminário de North
Park, onde encontrei no Decano Glenn Anderson apoio
e encorajamento. Em muitos momentos do desenvolvi­
mento de minha aprendizagem, estas reflexões foram es­
timuladas pelo colega M. Douglas Meeks.
Ofereço o livro como gratidão pelo crescente núme­
ro de irmãs que, com o passar dos anos, foram, finalmen­
te, aceitas e ordenadas para o ministério. No meu caso,
este grupo ilustrado de colegas é chefiado por minha es­
posa, Mary, que desenvolve seu ministério de forma pro­
fética. E incluo aqui um número crescente de mulheres
que foram minhas colegas de estudo no Seminário de
Éden.
Estou plenamente convencido de que este livro é
diferente de outros, em razão da emergente consciência
feminina que vem ao encontro de nosso melhor pensa­
mento teológico. Este encontro está muito mais preocu­
pado com os matizes de nossas percepções do que com
desgastantes cruzadas. Não penso que as mulheres minis­
tras e teólogas tenham sido as primeiras a descobrir a
existência da angústia e ao mesmo tempo da intuição em
nossas vidas, mas elas nos ajudaram a percebê-las como
dimensões importantes da realidade profética. De mui­
tas formas estas minhas irmãs me fizeram ver o que
facilmente eu teria deixado de lado. Por tudo isto me
confesso grato e perplexo.
Walter Brueggemann
Seminário Teológico de Éden
Quaresma de 1978.

8
1
A COMUNIDADE
ALTERNATIVA
DE MOISÉS

Um estudo referente aos profetas de Israel deve le­


var em conta tanto o testemunho do Antigo Testamento
como a situação atual da Igreja. O que entendemos do
Antigo Testamento deve, de alguma forma, estar ligado
com as realidades da Igreja de hoje. Vou, então, intro­
duzir o assunto com uma declaração de como vejo nossa
situação presente e o trabalho que nos espera no minis­
tério. Não vou organizar, mas apenas tentar providenciar
algumas pistas através das quais apresento o assunto.
A Igreja americana atual está tão bem adaptada ao
sistema do consumismo, que tem pouca fé e pouca ação.
Esta adaptação pode ser percebida através da imagem
de vida da mesma Igreja, ao mesmo tempo liberal e con­
servadora. Talvez não seja uma nova situação, mas pa­
rece, especialmente, no momento atual, uma situação ur­
gente e premente. Esta adaptação é verdadeira não só
com relação à instituição da própria Igreja, mas tam­
bém com relação a nós mesmos como pessoas. Nossa
consciência tem sido atraída por falsos campos de visão
e por idolátricos sistemas de linguagem e de retórica.
A causa interior desta adaptação está em nossa lon­
ga perda de identidade, pelo abandono da fé tradicional.
9
Nossa cultura consumista está organizada contra a histó­
ria. Existe uma depreciação do passado e até uma depre­
ciação da esperança como algo ridículo. Isto significa que
tudo deve ser visto numa visão de agora, seja este agora
passageiro ou duradouro. De qualquer forma, uma co­
munidade radicada num passado energizador e unida por
esperanças fundamentais é uma curiosidade e mesmo uma
ameaça nesta nossa cultura. Quando sofremos de amné­
sia, qualquer forma séria de autoridade para a fé é ques­
tionada e passamos a viver vidas não ditadas pela fé e a
praticar ministérios igualmente não autorizados pela mes­
ma fé.
Enquanto a Igreja não recuperar sua tradição de
fé e permitir que esta tradição seja a guia fundamental
da adaptação, a Igreja, repetimos, não terá força para
agir e para crer. Isto não é, de forma alguma, um dese­
jo de volta ao tradicionalismo, mas, pelo contrário, é
uma afirmação de que a Igreja não possui causa mais
premente do que a recuperação de seu passado em toda
sua força e autenticidade. Isto é verdade tanto entre os
progressistas que se julgam bastante inteligentes para se
prenderem à tradição, como entre os conservadores, que
cercaram o passado da fé com tantas proteções que ela
se apresenta com ressaibos de cientificismo e iluminismo.
É papel do ministério profético trazer de volta as
exigências da tradição para um confronto real com a si­
tuação de adaptação. Por outras palavras, o profeta é
chamado a ser o filho da tradição, aquele que assumiu
seriamente sua própria linguagem e campo de percepção.
O profeta é aquele que se sente tão bem na memória do
passado, que os pontos de contato e de incoerência com
a situação da Igreja na cultura podem ser diferenciados e
articulados com a urgência conveniente *. Na seqüência
1 Com certeza, o profeta vive em tensão com a tradição pois, se,
por um lado o profeta é formado pela tradição, por outro lado, quebrar
a tradição para afirmar a nova liberdade de Deus, é uma das característi-

10
pretendo demonstrar que nas Escrituras encontram-se óti­
mos modelos para descrever o ministério profético.
Um estudo sobre os profetas de Israel deve levar
em conta quer a grande clareza trazida pelos eruditos
contemporâneos quer tudo aquilo que a própria tradição
tem para nos dizer. Parece haver uma certa tensão entre
a tradição e os estudos contemporâneos. A isto temos de
estar atentos. A apatia e a tranqüilidade das igrejas no
momento atual apresentam ótima oportunidade para se
estudar os profetas e nos livrarmos de mal-entendidos,
já por demais gastos. Um mal-entendido dos conserva­
dores, evidente em partidários muito importantes, é que
o profeta seja um homem que prevê o futuro, uma pessoa
que prognostica coisas que vão acontecer, muitas vezes
ameaçadoras, e geralmente encontramos uma referência
específica a Jesus. Enquanto ninguém iria negar totalmen­
te aqueles aspectos da prática profética, há uma tendên­
cia a um tipo de reducionismo mecânico, e, por isso,
insustentável. Se, por um lado, os profetas foram ho­
mens que previram o futuro, por outro lado, foram ho­
mens preocupados com o futuro, na medida em que o
mesmo contradiz o presente. Já os progressistas, que
abandonaram e deixaram o medo do futuro para os con­
servadores, tomaram como direção o presente. De modo
que a profecia é, alternativamente, reduzida a uma justa
indignação, e, no círculo das idéias em que nos movemos,
a profecia é compreendida sobretudo como ação social.
Na realidade, esta compreensão progressista da profecia é
um artifício atraente e um disfarce contra qualquer des­
gaste na defesa de qualquer causa. Provavelmente, o
que faríamos de melhor seria deixar o medo do futuro
cas do profeta. Cf. Walther Zimmerli, “Prophetic Proclamation and Rein-
terpretation”, in Tradition and Theology in the Old Testament, Douglas
Knight, Philadelphia, Fortress Press, 1977, pp. 69-100. Joseph Blenkinsopp
em Prophecy and Cannon (South Bend, Ind.: Notre Dame University
Press, 1977), explorou mais amplamente e com autoridade a fundamentação
desta tensão entre o profeta e a tradição.

11
dos conservadores e a crítica ao presente dos progressis­
tas corrigirem-se um ao outro. Creio que nenhuma des­
tas posições entende adequadamente qual seja, na reali­
dade, o ponto principal na questão da profecia israelita.
A hipótese que desejo explorar é a seguinte: A fun­
ção do ministério profético é alimentar, nutrir, fazer sur­
gir uma consciência e uma percepção alternativa à cons­
ciência e à percepção culturais dominantes à nossa volta 2.
Por isto, meu ponto de vista é que o ministério profético
não está ligado, em primeiro lugar, a crises públicas
específicas, mas, sim, em tempo e fora de tempo, à crise
dominante que é duradoura e reconhecível pela prática
de co-optar e domesticar nossa vocação alternativa. Na­
turalmente, pode acontecer que esta crise permanente se
manifeste em qualquer oportunidade, em questões con­
cretas, mas o que nos interessa é afirmar que a perma­
nência de uma crise real se transfere de uma questão
para outra. Este aspecto é muito importante para os pro­
gressistas que passam de uma questão para outra sem
perceber a tendência constante de domesticação da visão
em todas elas.
Por outro lado, a consciência alternativa, ao ser
alimentada, ajuda a crítica que procura desfazer a cons­
ciência dominante. Para isto, ela tenta fazer o mesmo
que a tendência progressista faz, a saber, lutar pela re­
jeição e deslegitimização do presente estado de coisas.
Assim, a consciência alternativa, que está sendo alimen­
tada, energiza as pessoas e as comunidades com a pro­
messa de uma outra forma de tempo e de-situação para
2 Em termos formais, o argumento é apresentado na sociologia de
Peter Berger e Thomas Luckmann em The Social Construction of Reality,
Garden City, N. Y., Doubleday, 1966; Peter Berger em The Sacred Canopy,
Garden City, N. Y., Doubleday, 1967; e Thomas Luckmann em The In-
visible Religion, New York, Macmillan, 1967. Mas nosso interesse dirige-se
para a essência do ministério profético e não para sua compreensão for­
mal. Neste sentido, o assunto foi bem exposto por Douglas Hall em
Lighten Our Darkness, Philadelphia, Westminster Press, 1976.

12
a qual a comunidade de fé deve caminhar. E aqui, ela
procura fazer o mesmo que a tendência conservadora faz,
isto é, viver uma fervorosa antecipação da novidade que
Deus prometeu e que certamente conceberá.
Pensando desta forma, a palavra-chave é alternativa
e todo ministro profético e toda comunidade profética
devem empenhar-se numa luta com esta noção. Mas al­
ternativa para quê? Alternativa de que forma? Alterna­
tiva até onde? Finalmente, haverá uma alternativa que
evite uma possível domesticação? E, mais concretamen­
te, como apresentar e conduzir alternativas numa comu­
nidade de fé, a qual de forma alguma compreende que
há alternativas, ou que não está preparada para abraçá-
-las, no caso de se apresentarem? Aqui está uma prática
do ministério para a qual há pouca preparação, mesmo
entre aqueles que a deveriam ter. De modo que minha
insistência programática é que os atos de um ministro
que há de ser profeta sejam parte de um processo do des­
pertar, da formação e reformação de uma comunidade al­
ternativa. Isto se aplica a qualquer prática do ministério.
E torna-se uma medida de nossa adaptação cultural o
fato de vários atos do ministério (por exemplo, o acon­
selhamento, a administração e mesmo a liturgia) de tal
forma tomarem conta de nossas vidas e funções, que es­
tas passam a não ser vistas como elementos do ministério
profético, de formação e reformação de uma comunidade
alternativa.
Os indicadores funcionais, críticos e dinamizadores
são importantes. Minha colocação é que a cultura domi­
nante, agora e em qualquer tempo, é totalmente despro­
vida de crítica, não tolera uma crítica fundamental e sé­
ria e levará muito tempo para aceitá-la. Por outro lado,
a cultura dominante é uma cultura exausta, incapaz de
ser seriamente dinamizada pelas novas promessas de Deus.
Sabemos, naturalmente, que nenhum de nós gosta de
críticas, mas sabemos também que ninguém aprecia ser
13
levado, pelo simples fato de isto também exigir algo de
nós. A função do ministério profético é manter juntos o
espírito crítico e o espírito ativo, porque um e outro
isolados, não têm correspondido ao melhor dé nossa tra­
dição. Nossa fé tradicional mostra que é justamente a
dialética da crítica e da ação que nos permitem ser pro­
fundamente fiéis a Deus. E chegamos mesmo a sugerir
que optar pela crítica ou pela ação é a tentação do progres-
sismo e do conservadorismo, respectivamente. Os pro­
gressistas são bons para criticar, mas em geral não têm
uma palavra de promessa para apresentar; os conserva­
dores tendem a conjecturar sobre visões alternativas de
futuro, mas a crítica pertinente de um profeta não é, ge­
ralmente, bem recebida. Para aqueles de nós pessoalmen­
te ligados ao ministério, percebemos que ser chamados
onde existe esta dialética é uma experiência terrível. E
qualquer de nós penderá, provavelmente, para um lado
ou para o outro. Como ponto de partida destas consi­
derações, proponho que nossa compreensão sobre a pro­
fecia nasce da promessa divina feita a Moisés, a qual
chega até nós pela tradição. De forma alguma minimizo
as eruditas e importantes contribuições referentes aos an­
tecedentes não israelitas da profecia israelita. Estas con­
tribuições incluem: a) estudos sobre o fenômeno cananeu
do êxtase, ao qual, com certeza, em Samuel 10 e 19
faz-se referência; e, mais recentemente, b) as evidências
trazidas pelos achados de Mari referentes à instituição
da função profética, tanto no culto como na própria
corte3. Estas evidências trazem luz a práticas e assem­
3 Os dados referentes ao êxtase profético foram resumidos por
Johannes Lindblom em 'Prophecy in Ancient Israel, Philadelphia, Muhlen-
berg Press, 1962. Cf. V. Epstein, “Was Saul Also Among the Prophets?”
em Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 81 (1969), pp. 287-
304. É bom não esquecer o trabalho comparativo de Thomas Óverholt,
“The Ghost Dance of 1890 and the Nature of the Prophetic Process”,
em Ethno-History 21 (1974), pp. 27-63. A respeito dos achados em Mari,
no tocante à profecia institucional, consultar F. Ellenmeier, Prophetic
in Mari and Israel, Herzberg, E. Jungfer, 1968; John H. Hayes, “Pro-

14
bléias, pelas quais, sem dúvida, Israel sentiu-se atraído
e das quais ter-se-ia ajudado muito. Mas, a tradição mes­
ma não é ambígua, quando se chega à grandiosa figura
de Moisés, que fornecerá nossas primeiras compreensões.
Quer dizer, a formação de Israel começa dentro de sua
própria experiência e confissão de fé, e não é uma apro­
priação externa de qualquer parte. Esta colocação é fun­
damental para a presente discussão porque, de forma se­
melhante eu defendo que se a Igreja tem de ser fiel, ela
tem de ser formada e ordenada a partir do interior de
sua própria experiência e confissão e não apropriando-se
de elementos externos à sua própria vida. Tenho certeza
de que esta afirmação contraria a orientação erudita
atual. Por exemplo, Ronald Clements, em seu estudo
mais recente, Prophecy and Tradition* (Profecia e Tra­
dição), voltou um pouco atrás em sua posição anterior
de Covenant and Prophecy 5 (Aliança e Profecia). É cor­
rente a repetição de uma perspectiva neo-wellhausiana e
que pode ser uma correção importante à síntese de
Gerhard von Rad. No entanto quero afirmar que estare­
mos em terreno firme, se tomarmos, como ponto de par­
tida, Moisés como profeta, o qual desperta em Israel
uma consciência alternativa.
O ministério de Moisés, como George Mendenhall
e Norman Gottwald demonstraram recentemente, repre­
senta uma ruptura radical com a realidade social do Egi­
to do faraó6. A novidade e a inovação radicais de Moi-
phetism at Mari and Old Testament Parallels”, em Anglican Theological
Review 49 (1967), pp. 397-409; também Herbert Huffmon, “Prophecy
in the Mari Letters”, Biblical Archaeologist 31 (1968), pp. 101-24 e fi­
nalmente seu mais recente sumário “Prophecy in the Ancient Near East”,
em Interpreter’s Dictionary of the Bible, Supplement, Nashville, Abingdon
Press, 1976, pp. 697-700.
4 Ronaíd Clements, em Prophecy and Tradition, Atlanta, John Knox
Press, 1975.
5 Ronald Clements, em “Prophecy and Covenant”, Studies in Biblical
Theology 43, Naperville, 111., Alec R. Allenson, 1965.
6 George Mendenhall, em The Tenth Generation, Baltimore, John
Hopkins University Press, 1963, cap. 7-8; Norman Gottwald, “Domain

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sés e de Israel neste período não podem ser exageradas.
Dentre nós, a maioria, provavelmente, está tão acostu­
mada àquelas narrativas, que se torna insensível à reali­
dade revolucionária e social que surge por causa de Moi­
sés. Torna-se evidente que a emergência de Israel, pela
mão não pode surgir a partir de qualquer realidade an­
terior. É claro que nada semelhante à hipótese quenita
ou ao monoteísmo da 18’ dinastia do Egito nos ajudará.
Enquanto encontramos algumas alusões de que o Deus
de Israel é conhecido como o Deus dos antepassados (cf.
Ex 15,2), no entanto estas alusões são obscuras. De qual­
quer forma, a experiência dominante do Êxodo é decisiva
e não uma memória qualquer, da qual encontramos alu­
sões na tradição. Contudo, todos aqueles antecedentes são
finalmente compreendidos, pois o aparecimento de uma
nova realidade social não tem precedentes. Por outras
palavras, no século 13 a.C., Israel é nada. E esta nova
realidade social orienta-nos para a categoria da revela­
ção 7. Israel só pode ser compreendido em termos de um
novo chamamento de Deus e da afirmação de uma reali­
dade social alternativa.
A profecia nasce exatamente naquele momento em
que emerge uma realidade política social tão radical e tão
inexplicável que sua causa só pode ser teológica. Uma
causa teológica sem uma realidade político-social interessa
somente aos estudiosos profissionais da religião e uma
realidade político-social sem motivação teológica não atrai
nossas atenções aqui. Mas passamos sobre uma e outra e
somos levados a falar e admirarmo-nos da vocação pro­
fética í.
Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-monarchic Israel”,
em Vetas Testamentum, Supplements 28 (1974) e seu livro The tribes
of Yahweh, A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1000 B.C.,
Orbis Books, New York, 1979. Trad. bras. em preparação.
7 Ver a coleção de estudos de Radical Religion 2 (1975) que estão
juntos no livro de Gottwald e que estudam os laços entre as alegações
da sociedade e da revelação.
8 Este aspecto é enfatizado sobretudo por M. Douglas Meeks em

16
(1)0 rompimento radical de Moisés e de Israel
com a realidade faraônica é um rompimento que tem
dois aspectos: por um lado, rompe com o triunfalismo
estático da religião e por outro, com a política de opres­
são e de exploração. Em primeiro lugar, Moisés destrói
o triunfalismo estático da religião, expondo e mostrando
que os deuses nem têm poder nem são deuses. Desta
forma, a legitimidade mítica do mundo social do faraó
fica destruída, pois fica demonstrado que um tal regime
faz apelo a sanções que, de fato, nem se quer existem.
As pretensões míticas do império terminam logo que se
manifesta a religião alternativa de um Deus de liber­
dade 9. Em lugar dos deuses do Egito, criações da cons­
ciência imperial, Moisés fala de Iahweh, o único sobe­
rano que age com total liberdade, que está completa­
mente fora de qualquer realidade social, que não está
preso a qualquer percepção social, mas age por si mes­
mo e com seus próprios objetivos.
Ao mesmo tempo, Moisés desfaz uma política de
opressão e exploração, opondo-lhe uma política de jus­
tiça e de compaixão. A realidade emergente do Êxodo,
agora, não é apenas uma nova religião ou uma nova idéia
religiosa ou um sonho de liberdade, mas a emergência
de uma nova comunidade social na história, uma comu­
nidade que tem um corpo histórico, que teria de formu­
lar leis, padrões de governo e de ordem, normas para
o certo e o errado e sanções de responsabilidade. Os
participantes no Êxodo encontram-se, para própria sur­
presa, envolvidos na formação intencional de uma nova
“The ‘Crucified God’ and the Power of Liberation”, Seminar Papers
on Philosophy of Religion and Theology, American Academy of Religion
(1974), pp. 31-43.
9 O tema da liberdade de Deus é, fundamentalmente, todo o pro­
grama de Barth. Zimmerli em Prophetic Proclamation and Reinterpretation
trouxe nova expressão àquele programa: “A proclamação profética destrói
e transforma a tradição com o fim de anunciar a aproximação do único
que vive” (p. 100). É trabalho dos teólogos da libertação articular as
implicações sociais desta confissão teológica.

17
2 - A imaginação profética
comunidade social para corresponder à visão da liberda­
de de Deus. Esta nova realidade social que é completa-
mente diferente da realidade do Egito durou uns 250
anos em suas formas alternativas.
Não chegaremos a compreender o significado da ima­
ginação profética a não ser que percebamos a ligação en­
tre o triunfalismo de uma religião estática e uma política
de opressão e exploração. Karl Marx percebeu esta liga­
ção muito bem, quando observou que a crítica à religião
— é a última e que antes devem-se criticar as leis, a eco­
nomia e a própria política 10. Os deuses do Egito são os
senhores imutáveis da ordem. Eles exigem penas e legiti­
mam a ordem de uma sociedade, que era, exatamente, a
do Egito. No Egito, como Frankfort já o mostrou, não
havia revoluções nem ofensas à liberdade. Havia, ape­
nas, as acomodações necessárias à ordem política e eco­
nômica e esta era, “naturalmente”, a ordem querida pelo
faraó. De modo que a religião dos deuses estáticos não
era nem podia ser desinteressada, pelo contrário, inevi­
tavelmente servia aos interesses das pessoas encarrega­
das de presidir a ordem e acostumadas a beneficiar-se da
mesma. E o bom funcionamento daquela sociedade era o
melhor testemunho da retidão da religião, justamente
porque os reis prosperavam e as construções continua­
vam sendo levantadas.
E o que é maravilhoso na fé profética é que tanto
a religião como a política imperial puderam ser desfeitas.
Com relação à religião, os deuses foram declarados não-
-deuses. Na política, o opressivo trabalho das olarias foi
mostrado como ineficiente e desnecessário à comunidade
humana. O que Moisés introduziu não foi, exatamente,
um novo Deus livre e uma imagem social de libertação.
10 A afirmação de Marx, extraída de “Crítica à Filosofia do Direito
de Hegel” é a seguinte: “Assim, a crítica ao céu transforma-se em crítica
à terra, a crítica à religião em crítica à lei e finalmente a crítica à teologia
em crítica à política” (New York; W. W. "The Marx-Engels Reader,
in R. C. Tucker. Norton, 1972, p. Í3).

18
Mas seu trabalho levou, diretamente, a um engajamento
com a religião da liberdade de Deus e com uma política
de justiça humana. Referindo-nos a Marx, ainda podemos
aprender que, partindo destas tradições, jamais teremos
uma política de justiça e compaixão a não ser que tenha­
mos uma religião da liberdade de Deus. Somos feitos,
realmente, à imagem de algum Deus. E talvez nenhuma
investigação teológica seja mais importante para nós do
que descobrirmos a imagem daquele a cuja semelhança
fomos feitos. Nossa sociologia deriva-se e provavelmente
é legitimada e reflete nossa teologia. E se nos reunimos
em volta de um deus estático, de um deus da ordem e
que protege apenas os interesses dos que “têm”, pode­
mos ter certeza de que a opressão não estará longe.
Pelo contrário, se é revelado um Deus livre para ir e vir,
livre do regime e até a ele contrário, livre para ouvir
e responder aos clamores dos servos, livre de qualquer
divindade apropriada pelo império e definida pelo mes­
mo, então, este Deus influirá decisivamente sobre a so­
ciologia, porque a liberdade de Deus pairará sobre as ola­
rias e manifestar-se-á como justiça e compaixão.
Tenho a impressão de que, demasiado facilmente
separamos aqueles dois pontos, mas não sem razão. A
tendência progressista tem sido preocupar-se com a po­
lítica da justiça e da compaixão e desinteressar-se aber­
tamente da liberdade de Deus. Na verdade, tem sido di­
fícil para os progressistas pensar na importância da teo­
logia, pois ela toda parecia irrelevante. E pensou-se que
o assunto de Deus podia ser deixado livre para outros,
que se preocupassem com tais questões. Como conse-
qüência, surge um radicalismo social sem fundamentação,
semelhante a uma flor sem nutrição, radicalismo sem
sanções mais profundas do que a coragem humana e as
boas intenções. Por outro lado, tem-se tornado uma ten­
dência comum em outras áreas, preocupar-se intensamen­
te com Deus, mas sem espírito crítico, de tal forma que,
19
I
só se percebe Deus como fonte de bem-estar e da boa
ordem e não se percebe que esta compreensão de Deus
seja, exatamente, também origem de opressão social. De
fato, pode acontecer que os conservadores, negadores da
profecia, não tenham captado a noção de Deus com bas­
tante seriedade, para perceber que nossa concepção de
Deus leva consigo notáveis implicações sociológicas. E
entre os progressistas, que imaginam que o conceito de
Deus é irrelevante para a sociologia, e os conservadores,
que desapercebidamente usam a noção de Deus por ra­
zões sociais, e ainda porque os dois não percebem como
ambos os conceitos se completam, não há escolha. Mas
há margem suficiente para se insistir no fato de que
Moisés, protótipo do profeta, fez avançar a alternativa
nas duas direções: uma religião da liberdade de Deus,
como alternativa para a religião do triunfalismo imperial
e da ordem estática, e ao mesmo tempo uma política de
justiça e de compaixão, como alternativa para a política
imperial de opressão. O ponto em que a imaginação pro­
fética deve se fixar é que não há liberdade de Deus sem
política de justiça e compaixão e nem tampouco existe
uma política de justiça e compaixão sem uma religião da
liberdade de Deus.
O programa de Moisés não é libertar um bando de
escravos como numa fuga do império, apesar de isto ser
bastante importante, especialmente se você estivesse en­
tre os do grupo. Pelo contrário, seu objetivo não é nada
menos do que um assalto à consciência do império, ten­
do em mente desfazer tanto as práticas sociais como as
pretensões míticas do império. Israel se levanta, não pelo
braço de Moisés, ainda que não sem ele, como uma co­
munidade genuinamente alternativa. A tradição profética
sabe que traz em si uma verdadeira alternativa para a
teologia da escravidão de Deus e ao mesmo tempo uma
sociologia da escravidão humana. Esta alternativa confia­
da a nós, que recebemos o chamado, está enraizada não

20
na teoria social ou na justa indignação ou ainda no al­
truísmo, mas na verdadeira alternativa, a saber, Iahweh
existe. Iahweh torna possível e exige uma teologia alter­
nativa ao mesmo tempo que uma sociologia alternativa.
A profecia começa justamente quando se discerne que
ele é, verdadeiramente, a alternativa.
(2) A consciência alternativa que surge através de
Moisés caracteriza-se por um espírito crítico, e dinâmico.
Ampliarei o assunto mais detalhadamente depois, mas
aqui já cabem alguns comentários. A narrativa do Êxodo
tem o objetivo de mostrar a crítica e o desmoronar ra­
dical do império egípcio. Ao iniciar-se (Ex 5,7-10), ve­
mos os egípcios florescentes e em pleno poder.
Eles mandam e desmandam e a ninguém estão su­
jeitos:

... o faraó deu ordem aos inspetores do povo e aos es­


cribas, dizendo: Não deis mais palha ao povo, para
fazer tijolos, como ontem e anteontem. Eles mesmos
que vão e ajuntem para si a palha. Exigireis deles a
mesma quantia de tijolos que faziam ontem e anteontem.
Não abatereis nada porque são preguiçosos. . . Assim
disse o faraó. . .

Notemos como a linguagem está moldada para despertar


ódio e expressar o profundo ressentimento para com to­
do o sistema. Mas a estória ainda continua e, no fim,
estes mesmos senhores, mestres e capatazes, estão ven­
cidos, humilhados e desaparecem da história:

. . .porque os egípcios que hoje vedes, nunca mais os


tornareis a ver (Ex 14,13).
Naquele dia Iahweh salvou Israel das mãos dos egíp­
cios, e Israel viu os egípcios mortos à beira-mar (Ex
14,30).

21
Do começo até o fim, a narrativa mostra demoradamen-
te como as pretensões dos deuses egípcios são anuladas
por este Senhor, que é livre. A narração mostra, com
um delicioso vagar, como a política de opressão é venci­
da pela prática da justiça e da compaixão. Entre o come­
ço e o fim está o momento do desmoronamento, que é
o ciclo das pragas, uma narração que não precisa ser re­
petida diversas vezes, porque ela dá testemunho do que
não pode ser explicado por parte do império. Acontece
da seguinte forma, nas duas primeiras pragas, referentes
ao curso do rio Nilo e às rãs: o poder de Moisés e de
Aarão entra em conflito com a técnica dos egípcios. Com
as duas pragas entrando em cena, nada se modifica e o
poder do Egito ainda não é ameaçado. O império sabe
dizer: “tudo que vocês podem fazer, eu ainda faço me­
lhor”. Então sobrevêm a terceira praga:

Aarão estendeu a mão com a sua vara e feriu o pó da


terra, e houve mosquitos sobre os homens e sobre os
animais. E todo o pó da terra transformou-se em mos­
quitos por todo o país do Egito. Os magos do Egito,
porém, com suas ciências ocultas, fizeram o mesmo pa­
ra produzirem mosquitos, e não conseguiram (Ex 8,
13-14).

O império egípcio não agüentava. As divindades do Egi­


to também nada podiam fazer. Nem tampouco os sábios
do regime. A religião imperial estava morta. A política
de opressão tinha falhado. Constituía a crítica suprema
demonstrar que o poder garantido e suposto pela cul­
tura dominante, simplesmente era uma fraude. Não há
censura nem denúncia. Simplesmente a afirmação de que
as falsas reivindicações de autoridade e poder não cum­
prem suas promessas, porque não o podiam, diante do
Deus livre. É apenas questão de tempo, porque logo mais
eles estarão mortos nas praias do mar.

22
Mas a desaprovação ainda tem outra dimensão. Plas-
nota que a narrativa da libertação começa com
taras 11 12
uma queixa aflita de Israel, em Ex 2,23-25:

Os filhos de Israel, gemendo sob o peso da servidão,


clamaram; e do fundo da servidão o seu clamor subiu
até Deus. E Deus ouviu os seus gemidos; Deus lem­
brou-se da Aliança. . . E Deus viu os filhos de Israel
e Deus conheceu. . .

Mais tarde defenderei que a crítica começa mesmo com


a capacidade de angustiar-se, porque esta é a demons­
tração mais profunda de que as coisas não estão certas.
Somente numa situação de autoritarismo somos pressio­
nados, instados e convidados a aceitar que tudo está
certo, como no gabinete de um diretor, ou no casamento
ou ainda num quarto de hospital. Enquanto o império
pode sustentar a pretensão de que tudo está certo, não
haverá angústia nem crítica séria.
Mas pensemos no que acontece, se o Êxodo é o
primeiro clamor que nos permite conhecer o começo da
história a. No verbo “clamar” (za’aq) há um pouco de
ambiguidade porque, por um lado, existe um clamor de
miséria e de desgraça, acompanhado de certa autocompai­
xão, mas, ao mesmo tempo, há também o sentido oficial
de uma queixa legal. O clamor de luto é lamentoso. Co­
mo Erhard Gerstenberger 13 observou, é característico de
Israel queixar-se, não lamentar-se. Quer dizer, Israel não
11 James Plastaras, The God of the Exodus, Milwaukee, Bruce Pu-
blishing Company, 1966, cap. 3.
12 Sobre o significado do termo “primeiro clamor”, consultar Arthur
Janos, em The Primai Scren, New York, Putnam, 1970. Dorothee Soelle
em Suffering (Philadelphia, Fortress Press, 1975), mostrou como a ex­
pressão da queixa é o começo da libertação.
12 Erhard Gerstenberger, “Der klagende Mensch”, in Hans Walter
Wolff, Probleme biblischer Theologie, Munich, Kaiser Verlag, 1971, pp.
64-72. Examinar a distinção que faz entre queixa e lamento, “Jeremiah’s
Complaints”, Journal of Biblical Literature 82 (1963): 407, n. 55.

23
expressa resignação, mas expressa um sentido ativo de es­
tar sendo injustiçado e com uma expectativa de ser ou­
vido e de ter uma resposta. Desta forma, a história de
Israel começa no dia em que o povo não se dirige mais
aos deuses egípcios, que nem os ouvirão nem poderão
dar resposta. A vida de liberdade e de justiça chegará
no dia em que puserem em confronto a liberdade do
Deus livre com a do regime.
A tristeza de Israel é uma autocompaixão, uma quei­
xa, mas jamais uma resignação. É, pelo contrário, o iní­
cio de uma crítica. Torna-se claro para eles que as coisas
não estão como deveríam estar, que não estão como ti­
nham sido prometidas, nem como devem ser e certamente
serão. Fazer do sofrimento comum uma expressão pública
é um primeiro passo importante da crítica destruidora,
a qual permite o emergir de uma nova realidade teoló­
gica e social. Aquele clamor com que a história começa
será ouvido por Iahweh à medida que a história progride:

Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi


o seu clamor por causa dos seus opressores; pois eu
conheço as suas angústias. Por isso desci, a fim de li­
bertá-lo das mãos dos egípcios (Ex 3,7-8).
Agora, o clamor dos filhos de Israel chegou até mim
e também vejo a opressão com que os egípcios os estão
oprimindo. Vai, pois eu te enviarei... (Ex 3,9-10).

Este clamor é a primeira crítica e ainda volta a apa­


recer no capítulo 8, v. 12. Moisés e Aarão sabem agora
que a intervenção é séria e que devem interceder a
Iahweh, o Deus da liberdade, e não aos falsos deuses
do Egito. No capítulo 5, vv. 8 e 15 ainda encontramos
um pedido ao faraó, um como olhar para a autoridade
pedindo ajuda e alívio: “É por isso que clamam: Possa­
mos ir sacrificar ao nosso Deus... Os escribas dos filhos
de Israel foram então reclamar com o faraó. . .”

24
Pelo meio do ciclo das pragas, Israel já se desligou
do império e não lhe pede mais nada, nada espera do
mesmo, não o reconhece mais em nada, pois já sabe que
ele não guarda as promessas. Já tem certeza de que coisa
alguma lhe pertence, que dele nada pode ser esperado.
Aqui temos o ponto mais alto da crítica, a qual leva ao
desmoronamento do império faraônico.
Por isso, a crítica avança e constrói. O clamor angus­
tiado ensina a afastar-se dos falsos ouvintes e a voltar-se
para aquele único que pode ajudar. A crítica profética,
como foi sugerido por Dorothee Soele 14, consiste na mo­
bilização do povo para sentir sua angústia real e contínua
e em conservá-lo longe dos ouvidores de lamentos que
são ineptos para ouvir e indiferentes para responder. É
certo que a história consiste, primeiramente, de falar e
de ter respostas, de chamar e de ser ouvido. Se isto é
verdade, quer dizer que não poderá haver história no
império, porque os gritos jamais serão ouvidos e as res­
postas jamais serão dadas. E se o papel do profeta é en­
corajar o povo para se engajar na história, então a histó­
ria. significa a recordação de clamores que esperam res­
posta, ensinando-nos a dirigi-los a quem os leva a sério
e a não olhar para as forças inertes e adormecidas, que
jamais souberam responder.
Curiosamente, a crítica do clamor profético inten­
sifica-se na medida em que a narrativa se desenvolve.
Numa passagem do capítulo 11, v. 6, e no 12, v. 30, já
é o império que clama:
14 Soelle, Suffering, p. 73, analisa a passagem dos que estão sem
forças para uma situação de força e acha que o caminho é pela expressão
pública do lamento, da queixa e do protesto. Ao descrever a fraqueza
que sobrevêm ao indivíduo quando lhe falta a palavra, Graham Greene
em The Honorary Cônsul. (New York, Simon and Schuster, 1973, p. 66)
faz as seguintes observações sobre aqueles aos quais falta a palavra:
“Muitos de seus pacientes de classe média estavam acostumados a gastar,
pelo menos, dez minutos para explicar um simples acesso de gripe. Era
sempre no bairro dos pobres que ele encontrava os que sofriam em si­
lêncio, os que não tinham palavras para explicar o grau de seu sofrimento,
a própria situação ou estado”.

UMVERSIDASE CATOUCA 25
Haverá então na terra do Egito um grande clamor co­
mo nunca houve antes, nem haverá jamais (Ex 11,6).
O faraó levantou-se de noite, com todos os seus servos
e todo o Egito, e houve um grande clamor no Egito,
pois não havia casa onde não houvesse um morto (Ex
12,30).

Ambos os clamores são causados pela morte dos pri­


mogênitos, nascidos para governar. E chegamos ao ponto
alto da ironia, porque agora, o auto-suficiente e inaces­
sível regime está reduzido ao estado de um suplicante,
sem auxílio. O clamor de Israel torna-se um brado po­
deroso. O clamor do Egito é um brado arrasado e sem
auxílio. E já é muito tarde. A história começou e a ini­
ciativa foi tomada pelo novo Deus, em favor da nova
comunidade. O império, agora, abandonado, vai lamen­
tar-se pelos dias que deixou passar, sem se preocupar.
Vai lamentar seus deuses, sua política de injustiça, por­
que agora tudo está terminado. A crítica profética alcan­
çou seus objetivos.
(3) À consciência alternativa criada por Moisés
oferece também um modelo de dinamização. Moisés e
esta narrativa criam o sentido de novas realidades nas
quais se pode confiar e com as quais se pode contar no
justo momento em que as velhas realidades nos deixam
sem apoio. O papel do profeta é dar expressão às novas
realidades contra as mais conhecidas, por serem da si­
tuação antiga. A dinamização está mais ligada à espe­
rança. Nosso dinamismo advém, não daquilo que já pos­
suímos, mas do que está prometido ou que nos vai ser
dado. A tendência dos progressistas é insultar e levantar
polêmicas, mas faltando a fé ou com a má fé de tantos,
não se acredita que alguma coisa vá acontecer. O Egito
estava sem forças, justamente porque não acreditava em
nada do que fora prometido ou seria dado. O Egito, co­
mo qualquer império que hoje se julga eterno, acreditava

26
que tudo já tinha sido dado, tudo estava completo e em
sua posse. Se existe algum ponto para o qual somos fa­
cilmente cooptados, é justamente este: não acreditarmos
que possa haver novidades, mas que basta movimentar
as peças para produzir novos padrões de vida.
É o profeta, precisamente, que fala contra esta in­
terpretação dos dados e que pode orientar dinamicamen­
te para um futuro que é genuinamente novo e não deri­
vado de dimensões humanas anteriormente existentes.
Vou sugerir três dimensões energizadoras desta narrativa,
que são importantes para a compreensão da imaginação
profética.
Em primeiro lugar, a força provém da aceitação da
impenetrável escuridão 15. Esta escuridão que é aterradora
em seu poder, aparece aqui na dureza do coração. É o
assunto dominante deste texto estranho. A cada momen­
to afirma-se, não que o coração do faraó é duro, mas
que Iahweh o endureceu. É o modo particular de Iahweh
terminar com o império. ,É a forma estranha de Iahweh
apresentar a possibilidade da liberdade histórica. Encon­
tramos aqui mais do que pode ser entendido, mas o que
houver a mais, começa com a convicção de que Deus
opera por mais de uma via. Os que não têm esperança,
não percebem como a novidade pode vir, como o mal
pode ser superado, ou ainda não compreendem como de
um presente totalitário pode surgir um futuro novo e li­
vre. Esta terrível colocação programática afirma que al­
guma coisa “está em andamento” na escuridão, que o
mesmo senhor da escuridão não desvela. É estranho que
nem o Egito nem Israel compreendiam o avançar da
15 Hall, em Ligbten Our Darkness explora com eficiência o tema da
escuridão, como sendo a arena do sofrimento, da morte e da liberdade.
Assim conclui seu estudo: “Os seguidores da cruz, os que falam da es­
curidão, não encontram luz em absoluto, um puro raio de luz, quer de
Deus quer dos homens. A situação torna-se para eles, como para todos
aqueles que no passado foram assumidos pela lógica da cruz, uma situação
de fé, simplesmente” (p. 225).

27
escuridão! Israel não parece mais confidente do Deus da
liberdade do que o Egito. E quando Israel quer conhecer
demasiado sobre aquela liberdade, logo procede como o
Egito. Contudo, a narrativa mostra que Israel tem con­
fiança firme de que aquela escuridão não provém do
faraó. E isto encoraja porque a comunidade alternativa
ousa afirmar o que vai resultar. Ela percebe o que o
faraó não entende. Ela percebe, justamente porque se
submeteu e tal submissão teve início quando o clamor
foi levantado àquele que é o único, livre. Há uma nova
força, ao descobrir aquele que merece confiança, apesar
da escuridão, e no qual se percebe mais força do que
naquele que, de forma ostensiva, administra os dias.
Em segundo lugar, no capítulo 11, v. 7, encontra­
mos a afirmação admirável de uma realidade que, certa­
mente, ainda traz mais força: “Mas, entre todos os filhos
de Israel, desde os homens até os animais, não se ouvirá
ganir um cão, para que saibais que Iahweh fez uma dis­
tinção entre o Egito e Israel”. Talvez nossas formas
acadêmicas não permitam perceber a força contida nesta
passagem. É terrível pertencer a uma “doutrina de elei­
ção”, mas observemos que esta “eleição” ou predesti­
nação ocorre aqui, não em uma doutrina, mas numa nar­
rativa e numa lembrança não comprovada, a fim de que
a deixemos com toda sua audácia. Não se trata de uma
reflexão teológica, mas de uma notícia para aquele mo­
mento e para aquela comunidade. O Deus que decidirá
não é o deus cômodo do império, tão próspero e bem
alimentado que se torna neutro e desatento. Pelo contrá­
rio, é o Deus vivo para as realidades, o qual não hesita
em tomar uma direção, o qual está sentado no conselho
divino, firme em seu trono e atento a seus interesses
especiais. É a forma de igualar todos os deuses do impé­
rio por não tomarem partido e por serem tolerantes a
ponto de rejeitarem as súplicas favoráveis à mudança das
coisas.

28
Devemos, agora, fazer uma pausa com o fim de ob­
servar o tipo de reflexão teológica que esta primeira
narração profética traz consigo. Não há muito de uma
teologia sistemática. Profeta algum jamais vê as coisas
sob o aspecto de eternidade. É sempre uma teologia par­
cial, sempre dependente do momento, sempre em favor
da comunidade concreta, satisfeito por ver apenas uma
parte daquilo tudo e sobretudo com o risco de contra­
dizer o resto da realidade 16. Os impérios preferem teó­
logos sistemáticos, que vêem tudo, que compreendem um
e outro lado da questão e que consideram as polêmicas
como indignas de Deus e divisoras do bem público. Que
colocação formidável! Assemelha-se a Andrew Young,
que toma o partido dos vencidos e dos marginalizados,
dos sem forças, que ainda não se tornou cínico com o
“discurso duplo” da fala imperial, o qual ousa falar an­
tes das provas e afrontar o pensamento mais sutil. A afir­
mação que passa pelo acampamento é que ele está fir­
me em seus compromissos e que o faraó não vai gostar.
Vista à distância, esta colocação é teologia profunda.
É a boa nova: Deus está conosco. Num império, os deu­
ses não estão com ninguém. São velhas divindades que
não se importam com nada, que num passado já experi­
mentaram tudo e agora dispõem de comitês para estu­
dar todas as questões. Para Moisés e para Israel, a força
vem, não de uma estratégia sociológica ou de intuiçÕes
sobre a dinâmica social, mas da liberdade de Deus. Por
isso, o pedido que faço aos que serão profetas é que não
negligenciemos, de nossa parte, a procura do conheci­
mento de Deus e que saibamos que nosso discernimento
16 Caracteristicamente, os profetas tomam partido por uma teologia
que vem “de baixo” enquanto a consciência régia defende sempre uma
outra que vem “de cima”. Consultar R. M. Brown, “The View from
Below”, A. D. 6 (setembro de 1977) 28-31. Com relação a este assunto,
a Conferência de Detroit sobre “Teologia nas Américas” expressou uma
“Hermeneutic of Suspicion”, uma atitude ligada com a teologia que vem
“de baixo”.

29
de Deus está entre os pontos de ruptura na comunidade
humana.
Em terceiro lugar, o cântico de Moisés é o mais elo­
qüente, o mais libertador e livre de todos os cânticos de
Israel. A última realidade energizadora é uma doxologia,
na qual os cânticos se fixam naquele que unicamente é
livre e no ato de que o cântico é próprio para expressar
a liberdade de Deus que é também a liberdade deles. Em
sua recente tipologia, David Noel Freedman coloca este
cântico no começo do período do javismo militante de
Moisés 17. Através de um estudo dos nomes divinos, ele
observa o uso repetido do nome, do mesmo nome da
liberdade que o Egito não pôde tolerar e que também os
servos desta liberdade não puderam antecipar. A pro­
núncia do nome já indica um lugar onde a comunidade
alternativa pode viver. De modo que os profetas podiam
refletir sobre o nome de Deus, em que ele consiste, o
que ele significa, onde e por quem ele deve ser pronun­
ciado. Há alguma coisa de direto e primitivo sobre o
nome nestes primeiros cânticos de fé e de liberdade. O
Egito acostumou-se a cercar o nome com adjetivos e vá­
rias formas de qualificativos, mas a comunidade de jus­
tiça que pratica a liberdade de Deus, não pode esperar
por isto tudo.
A profecia não pode ficar muito separada da doxo­
logia, porque, ou ela perde o sentido ou torna-se ideolo­
gia. Abraham Heschel viu magnificamente como a doxo­
logia é o último ato humano pleno de liberdade e jus­
tiça 18. A comunidade profética poderia refletir sobre
quais são as pré-condições da doxologia e sobre o que
17 David Noel Freedman, “Pottery, Poetry and Prophecy: An Essay
ou Biblical Poetry”, Journal of Biblical Literature 96 (1977): 5-26; “Divine
Numes and Titles in Early Hebrew Poetry”, in Cross, Werner E. Lemke,
r Putrick I). Miller Jr., Magnalia Dei: The Mighty Acts of God, Garden
C.lly, N. Y., Doubleday, 1976, pp. 55-107.
Abraham Ileschel, Who Is Man? Stanford, Stanford University
( 1965), cap. 6 e passim.

30
acontece, enquanto que as doxologias que ela dirige ao
Único são substituídas pelos jingles da televisão, os quais
nos levam a cantar a ideologia do consumismo para nós
mesmos e para os outros. Num mundo assim, não pode
haver profeta e menos ainda liberdade. Num mundo em
que os jingles substituem a doxologia, Deus não é livre
e o povo não tem noção nem de justiça e menos ainda
de compaixão.
A força da doxologia de Moisés inclui:
a) Um novo nome que redefine toda a percepção
social;
b) A revisão de uma incrível inversão da história,
na qual a realidade imperial é simplesmente
anulada. (É claro que esta não será a história
ensinada na escola da corte).
c) Um pedido de aprovação de liberdade para a
dança, liberdade para os corpos livres, que não
podiam mais ser dominados pelo faraó (15,20).
(Podemos refletir aqui sobre a perda de liber­
dade de nossos corpos e sobre as dimensões ideo­
lógicas da fúria dominante contra a sexualidade
humana).
d) Finalmente, coroando tudo, a afirmação máxi­
ma de uma realidade que o Egito não pôde per­
mitir nem tolerar: “Iahweh reinará sempre e
para sempre” (Ex 15,18). (Devemos lembrar
que estes cânticos são sempre polêmicos e o con-
tratema não escrito, mas pronunciado em voz
baixa, será sempre: “não ao faraó”).

É apenas um poema e poderiamos dizer que cantar um


cântico não modifica a realidade. Mas acho que não o
afirmamos com muita convicção. A recordação de uma
realidade alternativa consiste, pelo menos, em parte,
numa batalha pela linguagem e pela legitimação de uma
nova retórica. A linguagem do império é certamente a

31
linguagem da administração, da produção, das datas e
do mercado. Mas esta linguagem jamais permitirá ou
levará à liberdade, porque nela não há novidade. A do­
xologia é o último desafio à linguagem da realidade
administrada e ela, unicamente, constitui o discurso no
qual é possível e existe a força da fé 19.
Cumpre agora perguntarmos como a linguagem da
doxologia pode ser praticada no império. E afirmamos
que somente onde houver doxologia haverá o emergir da
compaixão, justamente porque a doxologia é um golpe
de morte à ideologia que seria apresentada. Somente on­
de houver doxologia haverá justiça, porque este cântico
transforma o medo em força.
Não vou explorar as segunda e terceira memórias
da permanência de Moisés no Sinai, ainda que isto me­
recesse ser feito: o tema do deserto questiona sobre a
saciedade que imobiliza; o tema do Sinai, fala sobre a
liberdade de Deus diante do vizinho. Tomada em con­
junto, a tradição mosaica afirma três coisas:
1. A vida alternativa é vivida nesta mesma comu­
nidade particular, histórica e que faz história.
2. Esta comunidade levanta a crítica e ao mesmo
tetnpo dinamiza-se através de suas recordações, apresen­
tando também descontinuidades e verdadeiras rupturas
com a realidade imperial.
3. Esta comunidade unida em torno de suas pró­
prias recordações, sabe que está marcada por um Deus
e à disposição do mesmo, o qual não é cooptado nem
dominado pelo império.

19 A respeito da importância do discurso como abertura ou possibili­


dade para a fé, consultar especialmente Rubem Alves, Tomorrow’s Child,
New York, Harper and Row, 1972.

32
2
A CONSCIÊNCIA DO REI
OPONDO-SE
À CONTRACULTURA

Até aqui procuramos sugerir que Moisés estava preo­


cupado sobretudo com a formação de uma comunidade
diferenciada e ao mesmo tempo impregnada de uma con-
iraconsciência. Ao fazer esta reivindicação em favor de
Moisés, evitei cuidadosamente fazer qualquer ligação en­
tre imaginação profética e ação social, e assim o fiz por­
que acredito que Moisés não se engajou em nenhuma
daquelas atividades que nós identificamos como sociais.
Não estava empenhado em uma luta com o fim de trans­
formar o regime, pelo contrário, sua preocupação era
com a consciência que sustentava e tornava aquele regi­
me possível. Não nego que ações específicas de determi­
nado tipo de política, às vezes sejam necessárias, de
acordo com o evangelho. Mas as mesmas ações não es­
tão ligadas essencialmente ao ministério profético, nem
tampouco constituem seu centro, da mesma forma que
uma chamada de hospital ou um culto de adoração não
constituem a essência do ministério. Moisés estava preo­
cupado, também, com a melhoria daquela sociedade, le­
vando o regime a arrepender-se, mas o que queria era
fazer aquele regime desmoronar totalmente, para que

33
3 - A imaginação profética
pudesse surgir uma nova realidade. A imaginação profé­
tica, no que pode derivar-se de Moisés, preocupa-se com
assuntos políticos e sociais, como também com assuntos
lingiiísticos e epistemológicos — e tudo isto talvez signi­
fique apenas empenhar-se em distinções verbais. Mas
acentuo este ponto por duas razões: primeiramente, por­
que o objetivo profético é uma mudança muito mais ra­
dical tio que social e, em segundo lugar, porque as ques­
tões sociais referentes à tradição mosaica são muito mais
profundas do que aquelas às quais geralmente nos refe­
rimos como ação social.
A consciência alternativa de Moisés era altamente
radical em suas implicações, tanto no relativo à religião
como à ordem social e política. Em primeiro lugar, de­
lem ler a noção da liberdade de Deus é fazer mais do
que qualquer outro movimento religioso tenha podido
lazer. Como observa Karl Barth, a questão entre revela­
ção e razão, não se refere a outras ou a falsas religiões
mas, propriamente, “à religião da revelação cristã”. Em
segundo lugar, a noção de justiça e de compaixão huma­
nas, raramente é um fator levado em conta na ordenação
de uma comunidade. Na realidade, muitas comunidades
encontram formas de considerá-la como o último pro­
blema c jamais o primeiro dentro da realidade humana.
Pode ser que as possibilidades emergentes do ministério
de Moisés sejam demasiado radicais para qualquer comu­
nidade histórica, quer em termos de pressuposições teo­
lógicas quer em termos de complementação social.
Por analogia, torna-se claro que a militância e a radi­
cal idade da comunidade cristã primitiva muito cedo ficou
comprometida. Como John Gager 1 demonstrou, se, em
alguma medida, ela não se tivesse orientado para abraçar
a cultura, provavelmente teria desaparecido como uma
seita extravagante. Talvez se possa concluir que a visão
1 John Gager, Kingdom and Community, Englewood Qiffs, N. J.,
Prcntice-Hall, 1975.

34
que emerge de Moisés seja viável somente numa comu­
nidade imaginada, cuja paixão pela fé estivesse aberta­
mente ligada à sobrevivência frente a uma cultura do­
minante e hostil. Quer dizer, uma visão tão radical co­
mo essa seria mais apropriada a um espírito sectário mar­
ginal na comunidade. Situações de risco, como esta, na
realidade, provocam radicalismos. E por outro lado, si­
tuações de aceitação cultural, geram complacências aco­
modadas.
Desta forma, em nossa utilização da intuição socio­
lógica referente às dimensões sociais do conhecimento,
da linguagem e do poder, não devemos deixar de lado
nossa própria sociologia e as formas pelas quais ela orien­
ta tanto nossa fé como nossa erudição2. Talvez a comuni­
dade minoritária de servos e de parteiras podia afirmar a
liberdade de Deus, exatamente porque não havia outra
forma legal de manter-se contra a religião estática e triun­
fal, uma vez que qualquer outro deus não livre já tinha
sido cooptado. Talvez a comunidade minoritária de servos
possa afirmar a política de justiça e compaixão, pelo fato
de não haver outra visão social à qual se apegar para
protestar contra a opressão da situação. Como argumen­
tou George Mendenhall, o objetivo social de um Deus,
realmente transcendente é ter uma corte de apelação con­
tra as mais elevadas cortes e ordens da sociedade domi­
nante 3. Assim, um Deus verdadeiramente livre é essen-
2 R. W. Friedericks, em A Sociology of Sociology (New York, Free
Press, 1970), descreveu com perspicácia os interesses dos sociólogos e a
influência de seus interesses na erudição. A relação merece nota para o
assunto que estamos tentando desenvolver. Por isso o modelo sistema e
conflito usado por Friedericks na sociologia apresenta uma correlação com
as tradições reais e mosaica de Israel.
3 Esta idéia, de certa forma peculiar, foi discutida numa conferência
em Saint Louis em 1976, mas o raciocínio de Mendenhall se orienta
neste mesmo sentido, a saber, que a argumentação teológica não pode se
separar do grau de compreensão da tribo ou da cidade. Cf. Mendenhall,
em “Sociology Organization in Early Israel”, em Frank M. Cross, Werner
Lemke, and Patrick D. Miller Jr., Magnalia Dei: The Mighty Acts of God,
Garden City, N. Y., Doubleday, 1976, pp. 132-151.

35
ciai a um povo marginalizado, se eles querem possuir um
fundamento legítimo contra as ordens opressoras do mo­
mento. Mas segue-se daí que, para aqueles que estão no
poder e se beneficiam da situação do momento, um Deus
realmente livre não é necessário, nem desejável, e, tal­
vez, nem mesmo possível.
Tendo em vista a posição de muitas igrejas na Amé­
rica, estes assuntos podem nos trazer matéria para uma
reflexão séria. Parece-nos provável que o radicalismo do
fenômeno mosaico não pode ser separado da colocação
social dos hapiru. Daí segue-se que a liberdade de Deus
e a política de justiça não estão, entre nós, tão facilmente
juntas, em razão de nossa situação social e de nossos cor­
respondentes interesses religiosos. Sabemos bastante bem
reconhecer que nossa melhor religião jamais é desinteres­
sada. Apenas quero levantar um ponto difícil, isto é, que
a religião mosaica, profética, não é também desinteres­
sada. E, de fato, a tradição do ministério dificilmente
pode ser entendida e praticada sem ligação com os inte­
resses a que o mesmo está servindo.
Tudo isto é uma forma de introduzir um sério pro­
blema na fé e na história de Israel. A revolução, tanto
religiosa como política de Moisés, foi capaz de manter-se
como uma realidade social e viável até o ano 1000 a.C.
Não é um fato, de forma alguma desprezível, quando re­
fletimos nas dificuldades de manter os objetivos de re­
centes revoluções em nossa própria história, por exem­
plo, na americana, na francesa, na russa e na chinesa.
No tempo de Salomão, em 962 (40 anos depois do rei­
nado de Davi, ao mesmo tempo, inteligente e ambíguo)
houve uma mudança radical nos fundamentos da vida e
da fé de Israel. Quanto à mudança, não há dúvida de
que começou e tenha sido encorajada por Davi, contudo
a evidência deste fato é mais clara e menos ambígua com
Salomão4. Todo o programa de Salomão aparece como
4 Consultar George Mendenhall, “The Monarchy”, Interpretation 29

36
tendo sido um empreendimento de autodefesa com o úni­
co objetivo de defender o rei e a dinastia. Consiste na­
quilo que Alberto Soggin chama de um pragrama de sin-
creíismo garantido pelo estado e isto, naturalmente, sig­
nifica o abandono do radicalismo da visão de Moisés. In­
clui:
1) Um harém, o qual, além de servir como facili­
dade para os casamentos políticos, reflete, igualmente,
uma preocupação com a continuidade da fertilidade pes­
soal. (A finalidade de um harém, em termos de seguran­
ça pessoal, pode ser compreendida pelo contraste com a
sorte das parteiras do período mosaico) (Ex 1,15-22).
2) Um sistema de tributação por distritos, no qual
o deslocamento de clãs e de tribos tornava o controle
estatal mais eficiente. (E com efeito, a erradicação deli­
berada da percepção tribal era essencial para o estatismo
de Salomão).
3) Uma burocracia aperfeiçoada, a qual imitando
impérios maiores tinha o fim de institucionalizar a técni­
ca. (E, naturalmente, a técnica é, por si, conservadora
e quase imune a questões de justiça e compaixão).
4) Um exército estável, cujo poderio militar não
dependesse mais da opinião pública e nem dos interesses
autenticamente nacionais.
5) Um deslumbramento com a sabedoria, o qual,
além de ser uma imitação dos grandes regimes, represen­
tava um esforço de racionalização da realidade, isto é,
submetê-la a quadros mais facilmente manipuláveis.
Tudo isto acontecia durante o período de Salomão,
sob a eficiente proteção do templo de Jerusalém, por
certo, o último grau da influência de Canaã em Israel5.
(1975), pp. 155-70; também Frank M. Cross, Canaanite Myth and Hebrew
Epic, Cambridge, Harvard University Press, 1973, pp. 237-41. Ele refere-se
à corte de Davi com a palavra “rústica”, usada geralmente com referência
a Saul.
5 A evidência do fato é resumida por G. Emest Wrigth, Biblical
Archeology, Philadelphia, Westminster Press, 1957, cap. 3.

37
George Mendenhall6 caracterizou muito bem as reali­
zações de Salomão como uma “paganização” de Israel,
quer dizer, uma volta aos projetos políticos e religiosos
da situação imperial anterior a Moisés. Em outras pala­
vras, é a afirmação de que o esforço de Salomão não era
somente o abandono da revolução profética, mas um re­
torno consciente à realidade pré-profética. (Vale a pena
fixar bem a orientação de nosso pensamento. Os mes­
mos progressos que são descritos por Mendenhall como
“paganização”, são aqueles que, num certo contexto, Ger-
hard von Rad7 e outros, entre os quais incluo-me a
mim mesmo, designamos como “iluminismo”. Julgamos
que vale a pena lembrar isto, com o fim de demonstrar
que é possível interpretar os mesmos dados de forma
diferente. Com efeito, minha própria interpretação, na
perspectiva da tradição profética, é muito diferente da­
quela que faço em outras circunstâncias, quero dizer, com
uma perspectiva completamente diferente)8.
A mudança operada por Salomão nos projetos não
pode ser supervalorizada. A Davi, que era um gênio,
acontece algo semelhante, com a diferença de que Davi
procura consegui-lo por ambas as formas. Stefan Heyn
observa que em Davi há uma grandeza que Salomão pô­
de apenas imitar e mesmo assim muito pobremente9.
De qualquer forma, fica bem claro que Salomão tinha
6 Mendenhall, “The Monarchy”, p. 160.
7 Gerhard von Rad, Old Testament Theology, New York, Harper
and Brothers, 1962, 1: 48-56. O fato é levantado como hipótese por von
Rad, inteligentemente discutido por outros estudiosos, e pode ser defendi­
do tanto negativa, como afirmativamente. Cf. James Crenshaw, Studies in
Ancient Israelite Wisdom, New York, KTAV, 1976, pp. 16-20, onde
discute longamente a hipótese da influência que qualificamos de Ilumi-
nista, tanto do ponto de vista positivo como negativo.
8 Ver Walter Brueggemann, em The Man We Trust, Richmond,
John Knox Press, 1972. Acredito que esta interpretação seja essencial­
mente correta, mas que a ênfase esteja na interpretação positiva, devo
dizer que isto se deve à ambientação ou, melhor, ao momento em que o
livro foi escrito, a saber, o clima teológico dos anos 60.
9 Ver a delicadeza da distinção feita por Stefan Heyn em The King
David Report, New York, G. P. Putnam, 1973, p. 237.

38
uma visão social contrária à visão de Moisés. A possi­
bilidade de uma consciência ou de uma comunidade al­
ternativa estava completamente fora de consideração em
Israel, no tempo de Salomão. Principalmente o rei não
tinha esta noção. É provável que aquele espírito crítico
nem sequer podia ser praticado, uma vez que o agente
causador do mesmo desaparecera. E podemos dizer até
que aquelas promessas capazes de dar novas energias são
agora uma posse do rei. Salomão foi capaz de criar uma
tal situação, na qual tudo fora alcançado, na qual não
era mais necessário desejar coisas futuras, uma vez que
tudo já estava presente e centuplicadamente. A tensão
entre um presente criticado e um futuro energizador está
superada. Há apenas um presente não criticado nem
energizador. É claro que a visão mosaica da realidade es­
tá quase desaparecida.
Neste contexto, quero explorar três dimensões das
realizações de Salomão, porque são importantes para nos­
sa tese geral. Estas dimensões resumem a cultura domi­
nante, à qual os profetas geralmente se opõem.
(1) Os empreendimentos de Salomão resultaram
numa incrível riqueza de bem-estar:
A população de Judá e de Israel era grande, tão nume­
rosa como a areia que está na beira do mar; comiam,
bebiam e viviam felizes (lRs 4,20).
Salomão estendeu seu domínio sobre todos os reinos
desde o Eufrates até a terra dos filisteus e até a fron­
teira do Egito. Pagavam-lhe tributo e serviram a Salo­
mão por toda sua vida (lRs 5,1)..
“Salomão recebia diariamente para seu gasto trinta co­
ros de flor de farinha e sessenta de farinha comum, dez
bois cevados, vinte bois de pasto, cem carneiros, além de
veados, gazelas, antílopes, cucos cevados” (lRs 5,2-3).
É claro que Israel, agora é uma nova realidade. Ja­
mais houvera bens de consumo suficientes para afastar
39
a ansiedade causada pela sobrevivência. A contracultura
de Moisés surgiu num mundo de escassez, quer nos refi­
ramos ao pão ázimo comido às pressas (Ex 12,8-11),
quer ao estranho presente do céu, no deserto (Ex 16).
E tudo isso opõe-se àquela consciência de fartura que os
reis sempre tiveram. É difícil conservar a chama de uma
revolução de liberdade e de justiça, quando há abundân­
cia. É o que acontece com Israel, no tempo de Salomão.
O alto padrão de vida afirmado no texto citado é plena­
mente confirmado pela arqueologia do período. Os arte­
fatos, as muralhas e os restos das construções são teste­
munha de uma situação social bem ordenada e segura.
JÉ contudo muito razoável conjecturar se tal afluên­
cia e prosperidade, da qual se tem testemunho, era par­
ticipada democraticamente. O cardápio citado em lRs 4,
representaria apenas os hábitos e oportunidades do sé­
quito real, o qual, provavelmente, seria indiferente às
condições dos demais cidadãos. E, naquele tempo, como
ainda hoje, se alguns comem tão bem, significa que deve
estar faltando comida na mesa de outros. Esta informação
de lRs 4, sugere que a fartura se tornara um objetivo
acessível à sociedade da corte. Aquela aliança tão séria
entre irmãos e irmãs tinha sido substituída pelo consu­
mismo, no qual os próprios irmãos e irmãs são vistos
como objetos de consumo. E esta é a razão por que numa
sociedade de consumo torna-se difícil conservar uma cons­
ciência alternativa.
(2) As realizações de Salomão tornaram-se possí­
veis, em parte, pela política de opressão social. Nesta va­
mos encontrar, com certeza, as bases do regime e ao mes­
mo tempo, a origem da riqueza. Com certeza, a distribui­
ção da mesma riqueza seria hierárquica e não democrá­
tica. É óbvio que alguns viveríam bem à custa do tra­
balho dos outros, pois não devemos esquecer que havia
os que “construíam casas mas não viviam nelas, que plan­
tavam as vinhas, mas não bebiam o vinho dali proceden­

40
te”. O trabalho forçado era a prática comum naquela
política social, na qual, pelo menos até certo ponto, exis­
tiam cidadãos que se beneficiavam de uma economia es­
tatal ou corporativa. Frente a esta situação, não é impor­
tante, nem mesmo ajuda em coisa alguma, querer saber
com precisão se a política de trabalho forçado atingia a
todos os cidadãos, como é sugerido em lRs 5,13-18, ou,
se o povo de Israel estava isento do recrutamento geral
do império, como parece provável em lRs 9,22. De qual­
quer forma, parece claro que a política consistia em mo­
bilizar e exigir o trabalho do povo em razão da corte e
de suas extravagantes necessidades.
Sirva de experiência nosso passado ainda recente,
para vermos como um apetite explorador é capaz de de­
sencadear um movimento tão insaciável que pouco im­
porta a quantidade de bens ou de força ou, ainda, de
segurança a que se tenha chegado. Nada é bastante. A
sublevação de que se fala em 1 Rs 11,28 e a controvérsia
em lRs 12, ao que parece, referente à forma de governo,
ao papel do povo e dos líderes, ambas as passagens mos­
tram a luta com uma nova autoconsciência. Nesta mes­
ma nova consciência, na qual o regime estava fundado
e pela qual fora também criado, é claro que a política de
justiça e de compaixão desaparecera completamente. A
ordem do estado era o trabalho, e questões de justiça e
liberdade, que tinham constituído o grande interesse de
Moisés, estavam agora necessária e sistematicamente su­
bordinadas a outros interesses. Justiça e liberdade foram
simples promessas, e este novo regime não tolera pro­
messas porque está em questão um presente que ordena
a opressão e com isso ameaça as mesmas bases da auto-
suficiência.
(3) São características das realizações de Salomão
uma economia rica e uma política de opressão. Mas, por
si mesmas, não teriam prosperado nem permanecido, a
não ser que tivessem recebido uma aprovação teológica.

41
E aqui, minha sugestão é que o terceiro elemento básico
foi o estabelecimento de uma religião controlada, estática,
na qual Deus e seu templo tornaram-se parte da paisa­
gem da corte, na qual a supremacia de Deus estava ple­
namente subordinada aos projetos do rei. Por este tem­
po, há em Jerusalém uma revisão radical da figura de
Deus. Agora, Deus é plenamente acessível ao rei e este
é o patrão do mesmo Deus, de forma que a liberdade de
Deus desapareceu. É quase impossível agora que o Deus
domiciliado (sic) em Jerusalém seja capaz de pronunciar
qualquer palavra independente ou desgastante da posi­
ção do rei. E aqui precisamos fazer duas observações.
Em primeiro lugar, concordo com os estudiosos do as­
sunto, que acentuam a tensão criada entre as tradições
de Moisés e as da corte. Não acredito que estas tenham
se originado daquelas, pelo contrário, acredito que têm
origem diferente e que levam a visões da realidade tam­
bém diferentes. Em segundo lugar, as razões dos desas­
tres religiosos nos empreendimentos de Salomão acredito
que tenham sido sociológicas e não históricas. Com ou­
tras palavras, Salomão mantinha aquele santuário, não
porque o tivesse herdado dos cananeus ou jebuseus, mas
porque o adotara e o desenvolvera como algo que se
prestava à sua ideologia social. Se o santuário não tivesse
sido herdado dos antigos cananeus, como pode ter acon­
tecido, certamente ele o teria importado tão facilmente
como o fez no referente a tantas outras coisas de que
necessitava para satisfazer seus propósitos.
Na fé bíblica responsável, a liberdade de Deus está
sempre em considerável tensão com a acessibilidade do
mesmo Deus10. Esta tensão era forte em Moisés, porque
ele tendia a acentuar a liberdade de Deus à custa da aces­
sibilidade divina. Salomão, porém, dissolveu completa­
mente aquela tensão por interesse da acessibilidade. De-
10 Consultar Walter Brueggetnann, em “Presence of God, Cultic”,
Interpreter’s Bible Dictionary, Supplement, pp. 630-33.

42
pois disto, desaparece a noção de que Deus é livre e que
ele pode agir de forma diferente e mesmo contra o re­
gime. Depois disto, Deus é total e inquestionavelmente
acessível ao rei e àqueles aos quais o rei garante a pro­
teção. O rompimento daquela tensão é afirmado num
antigo poema cuja citação merece confiança:

Iahweh decidiu habitar a Nuvem escura.


Sim, eu construí para ti uma morada,
uma residência em que habitas para sempre
(lRs 8,12-13).

Agora, Deus está sendo cobrado e o acesso ao mesmo é


controlado pela corte do rei. Um acordo como este tem
dois papéis bem interligados. Por um lado, garante pron­
ta aprovação a qualquer vontade do rei, uma vez que não
pode haver qualquer resistência ou protesto superior.
Por outro lado, o rei possui um tal poder monopolizante,
que nenhum marginalizado pode aproximar-se de Deus,
exceto nos termos do rei. Numa situação destas, nenhum
clamor que perturbe a vontade do rei será ouvido.
A tensão entre a liberdade de Deus e o acesso ao
mesmo é uma questão complicada, sobre a qual toda pes­
soa religiosa e os ministros religiosos, de um modo es­
pecial, deveriam refletir. Com efeito, ter ministros reli­
giosos não é mais que uma forma de facilitar o acesso a
Deus. E é esta a expectativa do povo: “Reverendo, reze
por mim”. É uma ironia incômoda o fato de que aquele
que recebe o pedido seja o mesmo que deve afirmar a li­
berdade de Deus. Com respeito a Salomão, esta intrigante
questão é resolvida de uma forma direta. Pois, o poema
geralmente considerado como proveniente do tempo da
dedicação do santuário, afirma que, de agora em diante,
Deus estará permanentemente residindo em Jerusalém.
Qualquer desgaste da parte desse Deus é inaceitável e
insustentável.
43
Acredito que estes três fatores vão juntos neces­
sariamente e que nenhum deles ocorreria ou resistiria
sem os outros dois. De forma que teríamos a seguinte
triangulação:
Uma economia de afluência Uma política de opressão
(lRs 4,20-23) (lRs 5,13-18; 9,15-22)
Religião da Imanência
(lRs 8,12-13)

Obviamente, uma política de opressão e uma eco­


nomia de afluência dependem uma da outra. Contudo,
meu argumento fundamental é que das duas resulta uma
religião na qual Deus é cativo e na qual desaparece qual­
quer contradição, na qual o rei e sua ideologia estão com­
pletamente à vontade na presença de Deus. Assim, quan­
do aquela tensão referente à liberdade de Deus desapa­
rece, a religião torna-se apenas uma dimensão a mais, ain­
da que importante, na integração da sociedade. Isto não
era novidade e dificilmente se pode elogiar Salomão por
sua consideração para com a religião. Diante dele, os
faraós opressores, naturalmente, jamais duvidavam da
importância da religião, mas é claro que se tratava de
uma religião de conciliação, na qual não havia desgaste,
nem de um lado nem de outro. Ela apresentava um Deus
que estava tão dentro do regime e da consciência domi­
nante que não havia possibilidade de contrariedade ou
de novidade, pois qualquer coisa a isso semelhante seria
logo percebida como perigo ou ameaça.
Este Deus não é corte alguma de apelação em favor
dos marginais contra o rei, porque ele está totalmente
ligado ao rei. E aqui cabe a crítica fundamental de Marx:
Foi a religião, exatamente, que legitimou e tornou pos­
sível a economia e a política que surgiram. E a fé pro­
fética sabe muito bem que se um espírito crítico surgir,
deve começar questionando a não liberdade de Deus, da

44
qual resulta a vontade do rei completamente livre nos
seus mesquinhos interesses.
Salomão foi capaz de contrariar totalmente a contra­
cultura de Moisés.
a) À economia de igualdade ele opôs a economia de
afluência. O contraste é claro e marcante. A experiência
mosaica tinha esta visão: “. . .nem aquele que tinha jun­
tado mais tinha maior quantidade, nem aquele que tinha
colhido menos encontrou menos: cada um tinha apanha­
do o quanto podia comer” (Ex 16,18). No tempo de
Salomão é diferente. Já não existe a idéia de excesso ou
de acúmulo de bens de consumo, pois tudo isto desapa­
rece no momento em que alguém se senta à mesa real de
Jerusalém.
b) À política de justiça ele opôs uma política de
opressão. A visão da experiência mosaica era a seguinte:

Se o teu irmão que vive contigo achar-se em dificuldade


e não tiver com que te pagar, tu o sustentarás como a
um estrangeiro ou hóspede, e ele viverá contigo. Não
tomarás dele nem juros nem usuras, mas terás o temor
do teu Deus, e que o teu irmão viva contigo . . . Na
verdade, eles são meus servos, pois os fiz sair da terra
do Egito e não devem ser vendidos como se vende um
escravo (Lv 25,35-42).

Tudo isto desaparece no tempo de Salomão que se torna


conhecido pelos trabalhos forçados com os quais exalta
seu poder.
c) À religião da liberdade de Deus ele opõe a reli­
gião de acessibilidade a Deus. A experiência de Moisés
possuía uma visão da liberdade de Deus. Moisés insitira
na presença de Deus: “Como se poderá saber que encon­
tramos graça aos teus olhos, eu e o teu povo? Não será
pelo fato de ires conosco? Assim seremos distintos, eu
e o teu povo, de todos os povos da face da terra” (Ex

45
33,16). Iahweh responde em sua liberdade descompro­
metida: “Farei graça a que eu quiser agraciar, e terei
misericórdia de quem eu quiser. . . Não poderás ver a
minha face, porque o homem não pode ver-me e con­
tinuar vivendo” (Ex 33,19-20).
Salomão manejou aquilo que se podia julgar impos­
sível, pois apropriou-se do “novum” mosaico tornando-o
vazio e sem sentido. No séc. X, Jerusalém se apresenta
como se toda aquela revolução e experiência social passa­
da não tivesse acontecido. A longa sequência da história
imperial continuava como se não tivesse sido interrompi­
da pela revelação do Deus libertador. Salomão estabe­
leceu uma continuidade com a mesma realeza egípcia, à
qual Moisés tinha procurado se opor.
Não é necessário dizer que o regime de Salomão
foi capaz de silenciar o espírito crítico. Há duas formas
de impor este silêncio. A primeira é pela proibição au­
toritária apoiada por fortes sanções. O caso de Jeroboão,
narrado em lRs 11,40 sugere a forma de tratar o espí­
rito crítico, sempre com o derramamento de sangue com
o qual começou o prolongado reinado. E é curioso que
se levantou uma forte crítica por parte do profeta
Aías, como vem narrado em lRs 11, e no entanto Salo­
mão não dá atenção. Simplesmente o profeta é ignorado.
É esta a segunda forma de tratar o espírito crítico, isto é,
desenvolver uma imunidade natural tornando-se impene­
trável ao mesmo. O escritor sagrado parece apresentar
uma resposta fria, resistente, de um silêncio deliberada-
mente irônico. O mesmo tipo de resposta está evidente
depois da séria advertência relatada em lRs 9,1-9. A nar­
ração responde imediatamente: “Ao cabo de vinte anos,
durante os quais Salomão construiu os dois edifícios. . .
o Rei Salomão deu a Hiram na região da Galiléia, vinte
cidades”. A consciência do rei estava completamente imo­
bilizada. A crítica não tinha mais terreno para uma alter­
nativa viável e por isso não precisava ser levada a sério
46
Se, naquele tempo, Salomão tivesse a televisão à sua dis­
posição, teria conseguido comprar os mais ásperos críti­
cos e montar com eles um show de celebridades bem-fa-
lantes.
Não temos evidência completa sobre perda de for­
ças do regime. Pois a narração sugere um elevado nível
de energia em todas as formas de desenvolvimento do
Estado, principalmente, na economia e na arquitetura
Mas pode-se, pelo menos, desejar saber sobre a “felici­
dade” da comunidade de Salomão (lRs 4,20; 10,8) que
reflete uma felicidade marcada pela fartura. Pode-se,
pelo menos, pensar que tal felicidade marcada pela fartu­
ra não é igual àquela outra proveniente da liberdade.
Torna-se evidente que a recusa de qualquer palavra trans­
cendente e o desrespeito para com o próximo levam, fa­
talmente, ao desaparecimento de qualquer sentimento. E
ali onde o sentimento desapareceu, desaparecerá também
qualquer forma séria de energia humanizadora 11.
Na medida em que não se coloca em dúvida a
data do Eclesiastes, pode-se supor que a tradição estava
intuitivamente certa ao atribuir aqueles ensinamentos a
Salomão 12. Acredito que o cansaço, a fartura, o fastio, a
vaidade expressas naquela parte, referem-se ao tempo de
Salomão. Na medida em que o Eclesiastes reflete uma
11 Jürgen Moltmann, The Experiment Hope, Philadelphia, Fortress
Press, 1975, cap. 6 e, mais extensamente, em The Crucified God, New
York, Harper and Row, 1974, onde mostra mais claramente que o de­
saparecimento do sofrimento não é apenas resultado de fatores psicológi­
cos, mas de fatores que denotam opressão social.
12 Hans W. Hertzberg em Komentar zum A. T. 17, Gutersloh Gerd
Mohn, 1963, p. 230, entende que há uma ligação direta com o relato do
Gênesis: “Das Buch Qoh ist geschreiben mit Gen. 1-4 vor den Augen
seines Verfassers; die Lebensanschauung Qoh’s ist in der Schõpfungsge-
schichte gebildet”. Hertzberg convictamente levanta a hipótese de que o
relato seja um reflexo do Gênesis 1-4, incluindo o material J, provavelmen­
te parte do relato salomônico. O contraste da relação, pelo menos indireta,
entre esta parte e a situação salomônica, é enfatizado pela análise de James
G. Williams em “What Does It Profit a Man?”, em James L. Grenshw,
Studies in Ancient Israelite Wisdom, New Yok: KTAV, 1976, pp. 375-89.
Williams, pessoalmente, não está interessado em defender a hipótese, mas
as circunstâncias por ele apresentadas, são sugestivas.

47
situação de alienação, fala também de uma situação se­
melhante à de Salomão. Salomão decidiu opor-se ao mun­
do do povo livre de Moisés e conseguiu-o muito bem.
Trocou uma visão da liberdade por outra de segurança.
Expulsou os povos vizinhos com o objetivo de transfor­
mar os restantes em escravos. Substituiu convênios pelo
consumismo e todas as promessas ficaram reduzidas a
comunidades comerciais. E todo este comércio diminuiu,
provavelmente, a força verdadeira.
Parece um julgamento duro sobre uma realidade
cultural, a qual pode, por outro lado, fazer reivindica­
ções positivas. Mas não estamos interessados num es­
tudo da consciência do rei, em si mesma. Estamos con­
siderando o significado da alternativa profética, uma al­
ternativa para um mundo social sem crítica e sem ener­
gia, Ao mesmo tempo devemos, pelo menos, dar aten­
ção à contribuição teológica deste período, com o fim
de estarmos atentos para o que aí se encontra, de modo
que não exageremos a perspectiva profética.
Vamos procurar fixar duas grandes contribuições
teológicas deste período, ambas importantes para a fé
bíblica como para a tradição cristã. Primeiramente, há
pouca dúvida de que a fê na criação seja plena e formal­
mente articulada pelo “establishment” de Jerusalém 13.
Vista pelo lado negativo, a fé na criação é propaganda
do rei, ousando alegar que o complexo rei-templo-cidade
do rei é garantia quer da ordem social quer da ordem
cósmica e que este centro da realeza protege as pessoas
e o povo dos perigos da anarquia. Vista pelo lado po­
sitivo, a fé na criação fala a um povo que deixou de
preocupar-se com problemas de sobrevivência e que se
prepara para pensar mais livremente em outro tipo de
questões importantes, como proporção, simetria e coe­
rência. Desta forma, é precisamente a fé na criação que
13 Cf. Bernhard Anderson, Creation versus Cbaos, New York: Asso-
ciation Press, 1967.

48
afasta a Bíblia de um discernimento paroquial das ques­
tões humanas. Contudo, do ponto de vista dos profetas,
estamos de sobreaviso. Com efeito, a fé na criação ten­
dia a dar prioridade a questões de ordem mais que às
de justiça. Inclinava-se a valorizar desordenadamente a
harmonia e procurava silenciar as desgastantes preocu­
pações dos que nada tinham. Pretendia deixar de lado as
durezas históricas dos irmãos e das irmãs e fixar a aten­
ção nas amplas questões sobre as quais o rei teria des­
taque. A partir deste ponto, a alternativa profética sabe
que a fé na criação leva consigo certos custos e que estes
são pagos pelo povo marginalizado, que não aparece na
ordem que preserva os interesses do rei.
Naturalmente não imaginamos que a fé na criação
tenha aparecido no século X em Israel, pois há, certa­
mente, evidências anteriores. Mas parece provável que
no século X, a fé na criação, pela primeira vez, recebeu
sua afirmação programática em Israel. E como a comu­
nidade mosaica tinha tentado e conseguido operar uma
profunda descontinuidade com a consciência imperial,
agora a iniciativa teológica exigia uma volta àquelas
mesmas percepções e preocupações imperiais.
Em segundo lugar, este período obviamente já de­
lineia a emergência do messianismo, que é a apresenta­
ção do rei Davi não apenas como fato histórico impor­
tante, mas também como agente necessário dos propósi­
tos de Deus. Positivamente o rei Davi é visto como um
advogado dos marginalizados e por isso, potencialmente
é interpretado como um agente da visão mosaica-14. Ne­
gativamente e mais realisticamente, à medida que aumen­
ta o significado e o poder do rei e que os propósitos de
14 A relação entre estas duas linhas da tradição e estas duas formas de
perceber a realidade é assunto fundamental nos atuais estudos sobre o
Antigo Testamento. Enquanto a tradição defende a continuidade, a linha
da erudição refletida neste trabalho, não apenas faz distinção entre as
duas, mas vê entre as mesmas séria contradição. Esta colocação dá ênfase
à figura de Josias, no qual, ainda que por breve tempo, as duas tendências
estariam juntas.

49
4 - A imaginação profética
Deus assumem um papel duradouro, a visão primeira
transforma-se no bem-estar e na exaltação do rei em si
mesmo, desfazendo-se o papel de advogado dos margina­
lizados. O sentido da realeza podia ter tomado uma ou­
tra direção, mas na prática, o rei tornou-se, não um pro­
tetor dos desprotegidos, mas um agente de exploração
pelo poder. Por isso a consciência profética torna-se sen­
sível a qualquer agente histórico que assume uma dimen­
são duradoura ou mesmo ontológica.
Tanto a fé em Jerusalém como o messianismo têm
o mérito de terem trazido contribuições positivas para a
vida e a fé de Israel. Ambas podiam ter feito progredir
a visão e as promessas de Moisés. A fé em Jerusalém
poderia ter fundamentado uma visão da ordem social e
cósmica. O messianismo podia ter-se tornado um defen­
sor confiante e poderoso dos desprotegidos. Na reali­
dade, ambos possuíam tendências reacionárias intrínsecas,
que funcionaram no sentido de exaltar o “status quo” e
de resistir às desgastantes questões da aliança. Desta for­
ma o século X, época da monarquia de Israel, não só
econômica e politicamente, mas até teologicamente, to­
mou uma direção contrária à revolução pela liberdade de
Deus e pela política de justiça e de liberdade.
É provável que eu tenha esquematizado em demasia
o assunto, mas acredito que esta esquematização está evi­
dente no mesmo texto. A emergência da realeza poderia
ter tomado uma outra direção e a tradição apresenta uma
esperança cheia de fé na realeza, ainda que tardia, com
Josias. Mas não continuou assim, o que vem trazer um
problema maior para a fé bíblica. A realeza não teve
consideração pela visão de Moisés. O dom da liberdade
foi superado pelo desejo de ordem. O programa humano
de justiça foi utilizado com o fim de atingir a segurança.
O Deus de liberdade e de justiça foi cooptado para um
perene agora. E em lugar da paixão temos agora apenas
a saciedade.

50
Acredito que a possibilidade de fazer nascer a pai­
xão é um programa profético em primeiro lugar, e que
é isto exatamente que a consciência do rei procura elimi­
nar. Não precisamos rever a literatura referente à paixão,
mas basta nos referirmos a Soelle, Moltmann, Weisel e
especificamente Heschell15. A paixão, como energia e
prontidão para preocupar-se, sofrer, morrer e sentir, é o
inimigo da realidade imperial. A economia imperial é
orientada para conservar o povo satisfeito de tal forma
que de nada sinta falta. A política tem o objetivo de aba­
far o clamor dos deserdados. A religião torna-se uma espé­
cie de ópio, para que ninguém perceba a miséria presente
ao coração de Deus. O faraó, rei passivo de um universo
fechado, sem revolução, sern mudança, sem história, sem
promessa ou esperança, é o modelo de rei para um mun­
do que jamais apresenta mudanças, através das gerações.
O mesmo universo parado, fechado é o que todo rei de­
seja, mesmo Salomão em todo seu esplendor.
Este tipo de consciência do rei não requer muita
interpretação para ser percebida como uma caracteriza­
ção de nossa própria situação cultural. Julgo não precisar
insistir demasiado sobre estes assuntos, pois um estudo
cuidadoso destes textos, sem dúvida, oferecerá indica­
ções sobre nossa própria situação. Por isso, apresento
este modelo com o objetivo de que ele possa nos ajudar
a compreender nossa situação mais proveitosamente.
Quando há uma economia de afluência, nos senti?
mos tão bem que não vemos o sofrimento e até somos
capazes de fazer festas em torno do mesmo sofrimento.
Quando há uma política de opressão, o clamor dos
marginalizados não é ouvido e suas vozes são desprezadas
como se fosse vozeria de loucos ou de traidores.
Quando há uma religião de imanência e de acessi­
bilidade, na qual Deus está tão presente a nós, seu calor,
15 Consultar Dorothee Soelle, em Suffering, Philadelphia, Fortress
Press, 1975; Moltmann, em The Experiment Hope; E. Weisel em várias

51
sua ausência ou seu afastamento não são percebidos e o
problema é reduzido à psicologia.
Provavelmente vocês estão como eu, tão emaranha­
dos nesta realidade que outra forma de existir parece até
impensável. A história dominante daquele período, se­
melhante à história dominante de nosso próprio tempo,
consiste em pastas, carros de luxo, em conferências para
a imprensa, em quotas de participação e novos sistemas
de armas. Não há lugar para dançar ou para que sejam
permitidos gemidos.
Raras vezes nos lembramos de que na Bíblia as in­
formações são muito reduzidas e de que a visão de al­
guns fanáticos afirma que o retrato apresentado da rea­
leza histórica não tem valor porque não faz justiça nem
a Deus nem aos irmãos e irmãs.
No mundo imperial do faraó e de Salomão, a alter­
nativa profética é um mau discurso e que será silenciado
pela força ou ignorado pelo conforto. Mas somos um
povo temeroso, porque julgamos que o mau discurso nas­
ce do próprio caráter de Deus, um Deus que não é re­
flexo nem do faraó nem de Salomão. É um Deus que tem
o seu próprio nome, que não pode ser pronunciado por
ninguém, a não ser por ele mesmo. Não reflete nin­
guém, pois é ele mesmo uma pessoa e refere tudo a si
mesmo. É um Deus não credenciado no império, desco­
nhecido, mas cortês, mal acolhido no templo. E sua his­
tória começa com a atenção que dá ao clamor dos mar­
ginalizados. Ele, diferente dos regentes reais, é aquele
cuja pessoa é apresentada como paixão e ternura, poder
de preocupar-se, capacidade de se enternecer, de sofrer e
de se alegrar. Os profetas posteriores a Moisés sabem
que estas qualidades não serão superadas pelos mecanis­
mos ou pela imunidade real, porque ele é realmente
Deus. E os reis devem experimentar isto.
obras; e Abraham Heschel, The Prophets, New York, Harper and Row,
1962.

52
Assim, este é o modelo que eu sugiro para a ima­
ginação profética 16. Uma consciência de rei comprometi­
da com uma plenitude realizável. Uma consciência pro­
fética alternativa devotada ao pathos e à paixão da alian­
ça. A consciência do rei com seu programa de saciedade
realizável, redefiniu nossas noções de humanidade e fez
isso com todos nós. Criou uma consciência subjetiva preo­
cupada somente com a auto-satisfação. Negou a legitimi­
dade de uma tradição que exige que dela nos lembremos.
Negou a legitimidade de uma autoridade que espera de
nós uma resposta e da comunidade que nos chama a
preocupar-nos com a mesma. De tal forma entronizou o
presente que um futuro prometido mas longínquo, ainda
que certo, é impensável.
O programa do rei de plenitude realizável
a) é alimentado por uma mentalidade administrati­
va, a qual julga que não há mistérios para honrar, há
apenas problemas para serem resolvidos. Isto em Salo­
mão é evidente, pois não foi um tempo de grande lide­
rança, de heróicas batalhas, de ousadas iniciativas. Foi
um tempo dominado pela mentalidade administrativa da
contabilidade de custo;
b) é legitimado por um “otimismo da religião ofi­
cial” 17, que pensa, naturalmente, que Deus não tem ou­
tra preocupação a não ser manter nossos padrões de vida,
com um lugar garantido em seu palácio;
c) requer anulação do vizinho como um doador
de vida em nossa história; imagina que podemos viver
à margem da história, como homens e mulheres auto-su­
ficientes.
Seria estreiteza de espírito pensar que da novidade
de Moisés, somente a palavra profética é posta em ação
contra esta realidade constrangedora.
16 Já me utilizei deste esquema de uma forma bem concreta em
“A Biblical Perspective on Hunger”, Christian Century 94 (1977), pp.
1136-41.
17 A frase é de Douglas Hall, em Lighten Our Darkness, Philadelphia,
Westminster Press, 1976, cap. 3.

53
3
A CRÍTICA
DOS PROFETAS
E O ASSUMIR DO PATHOS

Consideramos como um paradigma da imaginação


profética a formação de uma consciência que seja uma
verdadeira alternativa diante da consciência do rei. Con­
tudo, temos pela frente um problema (e com certeza,
um problema atual): Como seria esta consciência alter­
nativa? Vou tentar apenas alguns passos modestos, levan­
do em consideração algumas formas pelas quais os pro­
fetas de Israel orientaram seu trabalho. Claro que, por
trás desta consideração explícita, necessariamente estare­
mos perguntando o que poderiamos fazer, em nossa si­
tuação.
Somos também filhos da consciência do rei. Todos
nós, de uma forma ou de outra, estamos compromissados
com ela. Por isso, a primeira questão é a seguinte: Como
podemos ter liberdade suficiente para imaginar e articu­
lar uma novidade histórica verdadeira em nossa situação?
Não perguntamos, e os profetas de Israel jamais o per­
guntaram, se esta liberdade é realista, politicamente prá­
tica ou economicamente viável. Iniciar desta forma, é
conceder tudo à consciência do rei, mesmo antes do co­
meço. O que devemos perguntar não é se o problema é
verdadeiro ou prático ou viável, mas somente isto: é ima­
54
ginável? Devemos perguntar se nossa consciência e nossa
imaginação foram assaltadas e cooptadas pela consciên­
cia do rei, pelo fato de termos sido roubados da coragem
e da capacidade de ter um pensamento alternativo.
Quando nos afastamos de nossos modelos mais co­
nhecidos e nos aproximamos da realidade concreta dos
profetas, devemos fazer uma parada para nos perguntar­
mos o que é um profeta e o que é que o mesmo faz.
Tenho uma suspeita de que nosso conceito pessoal de
como seriam os profetas é, muitas vezes, demasiado sé­
rio, realístico e mesmo austero. Mas, como observa Da-
vid Noel Freendman, o que caracteriza o modo de ser de
um profeta em Israel, é a poesia e a lírica. O profeta liga-
-se a uma fantasia futura. O profeta não se pergun­
ta se sua visão pode ser efetivada, porque esta questão
não tem importância, enquanto a visão não for imagina­
da. A imaginação deve vir antes da realização. Nossa
cultura é capaz de realizar quase tudo, mas não imagina
quase nada. A consciência do rei que torna possível rea­
lizar tudo ou quase tudo é a mesma que reprime a ima­
ginação porque esta é um perigo. É por isso que todo o
regime totalitário tem medo do artista’. A vocação do
profeta é conservar viva a função da imaginação, conser­
var-se, relembrando e propondo futuras alternativas a
cada um daqueles aos quais o rei quer persuadir de que
uma única forma de vida é possível.
Na realidade, a imaginação poética é a única manei­
ra de desafiar e pôr a realidade dominante em conflito.
A realidade dominante é necessariamente prosaica, mas
criar um pensamento poético e lírico requer muito mais
1 Rubem Alves, em Tomorrow's Child, New York, Harper and Row,
1972, já o afirmara eloquentemente. A prática da imaginação criativa
é uma atividade subversiva não pelo fato de entregar-se a atos concretos
de provocação (o que pode acontecer), mas porque vê o presente como
provisório e recusa-se a considerá-lo como absoluto. A prática histórica
da imaginação criativa afirma a possibilidade de um futuro que não seja
continuidade do presente. E o objetivo de qualquer regime totalitário é
querer forçar o futuro a ser uma continuação inconteste do presente.

55
do que a habilidade de fazer rimas. Não estou preocupa­
do com os aspectos formais da poesia, mas com as ques­
tões substantivas dos aspectos alternativos que o prosaís-
mo dominante, à nossa volta, não inventa nem permite
inventar. Esta atividade exige que no centro de nossas
pessoas e de nossas comunidades não tenhamos assumi­
do plenamente a apatia consumidora desposada pela cons­
ciência do rei. Tudo isto requer que não tenhamos aban­
donado completamente as promessas feitas por Deus a
nós, pois ele é suficientemente livre para as cumprir.
Não estou me referindo à impetuosa poesia dos pas­
tores locais, a qual se torna um assalto à comunidade. O
que quero dizer é que as mesmas realidades existem em
cada família, em cada lar e em cada comunidade. Nossa
suficiência total não nos oferece nem espírito, nem ener­
gia, nem coragem para pensarmos livremente sobre ou­
tras alternativas de futuro. Quando falamos em “profé­
tico”, não precisamos pensar grandemente sobre funções
públicas. A função profética deve ser executada em qual­
quer lugar onde haja homens e mulheres que se entrega­
ram ao prosaico futuro oferecido pelo rei. Por isso per­
guntamos, se estamos dispostos a realizar aquele traba­
lho de imaginação alternativa e construtiva; se queremos
conseguir mais do que a maior parte do grupo menos en­
gajado e preparado apenas para ser “religioso”, pergun­
tamos: por onde começamos?
Aqui está minha proposta:
A consciência do rei traz ao povo um torpor, espe­
cialmente um torpor referente à realidade da morte. É fun­
ção do ministério e da imaginação profética levar o povo
a ligar-se à experiência do sofrimento e da morte.
Ao tratar das realizações de Salomão, falei do des­
tino da consciência do rei como de “torpor”, apesar de
não ter empregado a palavra. A instituição salomônica
trouxe consigo a perda da paixão, a qual perda é inabili­
dade de preocupar-se, de sofrer. Basta comparar a tris­
56
teza, a angústia e a alegria de Davi (2Sm l,19-27;3,33-
34;12,15-23;18,33;19,4;23,13-17) com a narração uni-
dimensional de Salomão para verificar que alguma coisa
decisiva aconteceu na passagem de pai para filho. Aqui,
falar em torpor significa indiferença, apatia, não-envol-
vimento, negação de entusiasmo, ausência de pathos, ao
passo que na reflexão que encontramos no Eclesiastes, a
mesma experiência é apresentada como vaidade.

Todos os rios correm para o mar e, contudo, o mar


não transborda: embora chegados ao fim de seu per­
curso, os rios voltam a correr. Toda a palavra é enfa­
donha e ninguém é capaz de explicá-la. A vista não se
sacia de ver, nem o ouvido se farta de ouvir.
O que foi, será,
o que sucedeu, sucederá:
nada há de novo debaixo do sol! (Ecl 1,1-9) 2.

No pensamento de R. D. Laing3, devemos pôr em


prática o comportamento que nos é mais apropriado, por­
que já não somos mais capazes de experimentar nossa
própria experiência. Pois é claro que o regime está inte­
ressado não na experiência das pessoas, mas em seu com­
portamento, que pode ser controlado. Mais francamente,
a consciência do rei está entregue ao torpor sobre a morte.
2 Como já foi indicado no cap. 2, esta referência ao Eclesiastes não
significa, de forma alguma, questionar o período helenístico convencional,
mas é apenas uma observação de que o cinismo daquele período tem
ligação com o cinismo da corte de Salomão. Socialmente, os dois períodos
se opõem em Israel, mas em termos de humanismo os dois parecem
chegar à mesma triste situação.
3 R. D. Laing, em The Eolitics of Experience, New York, Pantheon
Books, 1967, cap. 1. Sua afirmação categórica é a seguinte: “Se nossa
experiência for esquecida, nosso comportamento tornar-se-á destrutivo”
(p. 12). O contraste entre experiência e comportamento ilustra a re­
cente colocação de Martin Marty em seu livro: A Natioti of Behavers,
Chicago, Chicago University Press, 1976. O argumento deste capítulo
é que os profetas de Israel tratam exatamente deste assunto, a saber, a
separação entre experiência e comportamento; que o Israel real de então
só era capaz de comportamento.

57
É inadmissível para o rei imaginar ou experienciar o fim
de suas organizações históricas favoritas, uma vez que
estas se identificaram plenamente com sua pessoa. Na
realidade, elas são sua pessoa tanto quanto ele é uma
pessoa ou tem uma personalidade. E por isso suas organi­
zações históricas são envolvidas pela qualidade da dura­
bilidade ou até da eternidade. Os reis costumam atribuir
a noção de “eterno” a todo fato histórico a que presi­
dem. Por isso, entre nós, não pensamos que nossas ins­
tituições públicas possam entrar em colapso e somos le­
vados à decepção e nos decepcionamos com nossas aliena.-
ções. E somos induzidos a pôr em prática a mentalidade
do rei, em nossos casamentos, em nossas resoluções mais
sérias, em nossos corpos, em nossa idade e saúde, em
nossas forças e compromissos.
Não há lugar, na esfera pública, para olhar o fra­
casso de frente. Ultimamente somos incapazes de enfren­
tar a idéia de nossa própria morte. Todas estas negações
a respeito do fim das coisas são normais na comunidade
do rei, porque custa muito enfrentá-las e abraçá-las. A
conclusão, lógica seria que, nós não somos os donos das
coisas, que as coisas não ficarão eternamente como estão
agora, e, finalmente, que as coisas todas não terão a efi­
ciência esperada. Mas é função dos reis deixar em tudo
que realizam a palavra “eterno”. E o grande problema
é que se espera dos funcionários religiosos o uso da
mesma palavra, aplicada às coisas, para que se tornem le­
gitimadas teologicamente. Mas “eterno” é sempre a pa­
lavra do faraó e é contra esta mesma palavra que Iahweh
e Moisés puseram em marcha seu processo de libertação.
Certa vez, na estação de rádio de Saint Louis, uma
senhora encarregada da limpeza, entrou pelo estúdio, du­
rante um programa, oferecendo conselhos sobre proble­
mas matrimoniais. De uma forma improvisada, ela sim­
plesmente forneceu conselhos, segundo sua maneira de
trabalhar. E aconteceu que seus conselhos se tornaram

58
bons e mais inteligentes do que aqueles que eram ofere­
cidos oficialmente e, como resultado, ela foi convidada
a fazer parte do corpo regular de programação. A senho-
rita Blue tornou-se um destaque e as palavras com que
ela sempre começava e terminava eram: “Tudo está bem”.
Às vezes, dependendo do humor do anunciante, ela era
convidada a repeti-las diversas vezes, talvez, apenas para
causar riso, provavelmente um pouco de ridículo, sim,
mesmo um pouco de ridículo pessoal, mas também para
praticar a religião da decepção. Partindo da comunidade
do bairro de onde ela fala, podia ser que aquele “tudo
está bem” soasse como uma afirmação confiante, que
torna uma pessoa capaz de lutar. Mas quando a mesma
frase é pronunciada pelos meios de comunicação, torna-se
a afirmação de um “status quo” que serve mais para ne­
gar e para entorpecer. É como se um rei dissesse “para
sempre” com o fim de conservar a atenção dos súditos
voltada para as coisas que ele julga importantes.
As palavras da senhorita Blue, agora cooptada, não
são diferentes da escarnecedora palavra de Jeremias, re­
ferindo-se ao templo, atônito e decepcionado: “Este é
o templo de Iahweh, Templo de Iahweh, Templo de
Iahweh!” (Jr 7,4). Nem são muito diferentes das de
Toots Shor, o mais famoso dono de bares, que morreu
de câncer. Em seus últimos dias, quando a morte já era
iminente, dizia: “Não quero saber do que possuo”. É um
belo resumo da atitude da consciência do rei: não que­
rendo saber. Se não soubermos, talvez nada aconteça
e talvez possamos pretender um pouco mais, ainda. Quan­
do tenho de negar sobre mim mesmo, então posso per­
mitir-me negar também sobre meu vizinho e não preciso
saber o que ele tem ou não tem. Posso imaginar tanto o
vizinho como a mim mesmo fora da existência histórica,
e “para sempre” torna-se, não mais uma afirmação, mas
uma negação.

59
Robert Lifton4 estudou as atitudes referentes à
morte em nossa cultura, começando com as respostas da­
das a respeito dos acontecimentos de Hiroshima e Naga-
saki. Foi mais além e considerou as respostas mais gerais
sobre o viver num mundo, onde a morte é tão visível,
tão diária, tão abrangente e dominante e ao mesmo tem­
po, tão despercebida. Lifton concluiu que não temos
forma adequada de nos relacionarmos mesmo potencial­
mente, com a realidade da morte, e assim, relacionamos
-nos com ela mediante um torpor que é negação. Além
do mais, diz Lifton, por trás deste nosso proceder ate­
morizado, há uma falta de símbolos que sejam profun­
dos e fortes o bastante para igualar-se ao terror da reali­
dade. O que acontece quando os símbolos são inadequa­
dos e as coisas não podem ser trazidas à expressão pú­
blica, é que a experiência não é vivenciada. É claro que
a noção de uma falta de símbolos sobre a realidade da
morte é pertinente ao nosso tema. A consciência do rei,
à qual faltam símbolos para a experiência total é a mes­
ma consciência que antes anulou os símbolos apresenta­
dos. Aqueles símbolos liberariam a experiência e a tor­
nariam salvadora, dando expressão, exatamente, àquelas
dimensões da realidade que o rei temia e não podia domi­
nar. É uma tendência comum aos reis anular todos os
símbolos que falam daquilo que está para além de sua
jurisdição. E é por isso que o poder do rei, de destruir
símbolos, reduzindo-os, torna necessária a negação sub-
seqüente da experiência simbolizada.
4 Robert J. Lifton e Eric Olson, em Living and Dying, New York,
Praeger, 1974, trataram do fracasso dos símbolos da morte e da destruti-
vidade da mesma falta, quando falha uma simbolização adequada. Por
isso, falam de “entorpecimento psíquico” e de “vazios de símbolos” (p.
137). Chegam à conclusão de que “o tempo em que vivemos é de um
grande entorpecimento e dessensibilização” causados pelas tecnologias de
morte. Cf. Lifton, Survivors of Hiroshima, New York, Random House,
1967, p. 474, “Technology Leads to Disconnected Death”; e History and
Human Survival, New York, Random House, 1961, p. 175, onde Lifton
fala da morte sem símbolos como do “rompimento do sentido de re-

60
Podemos observar que ativistas religiosos, muitas
vezes, com tal negação, tornam-se fácil e involuntaria­
mente conspiradores. Tornamo-nos homens e mulheres
bem humorados porque, quem entre nós, não deseja
apressar e facilitar as coisas, com o fim de garantir-se e
de proteger-se contra o medo?

Cada um ajuda o seu companheiro,


e diz ao seu irmão: “Coragem!”
O artífice dá coragem ao ourives,
aquele que alisa com o martelo,
ao que bate na bigorna,
dizendo a respeito da solda: “Ela está boa”;
ele firma-a com pregos para que não se abale
(Is 41,6-7).

Num quarto de hospital queremos que tudo seja anima­


dor e num casamento que se desfaz apresentamos votos
de que tudo termine bem. Levamos a enganosa promessa
de continuidade a tudo e não é uma promessa, mas sim­
plesmente uma negação daquilo que a história apresenta
e daquilo que estamos, a cada momento, experimentando.
Na tradição cristã, depois de ter sido cooptada pelo rei,
somos tentados a legitimar a negação, oferecendo bens
não marcados pelo sinal da cruz e um bem-estar futuro
sem a angústia presente. Este tipo de religião serve mui­
to bem ao rei, porque conserva nele a idéia de que ainda
é rei. Imagina que pode dirigir tudo e que seu pequeno
castelo de areia é “eterno”.
A função da imaginação profética é acabar de uma
vez com o torpor, penetrar a autodecepção, de tal forma
que o Deus das coisas finitas seja proclamado o Senhor.
Observem que a sugestão que faço referente ao profeta
lação”. O profeta colocando-se contra o rei, objetiva desenvolver uma sim-
bolização adequada e, por isso, insiste na ligação com a realidade.

61
numa situação realmente de torpor é elementar e muito
modesta. Tem três partes:

a) Oferecer símbolos que sejam adequados ao hor­


ror e à grandeza da experiência que evoca torpor e leva
à negação. O profeta deve encontrar uma forma pela
qual se proteja. O que não quer dizer que os símbolos
devam ser inventados, porque isto seria muito pouco.
Antes, significa que o profeta tem de reativar, procuran­
do em nosso passado histórico, símbolos que sempre fo­
ram veículos de honestidade redentora, como por exem­
plo: “Ide a Silo e vede o que eu fiz!” (cf. Jr 7,12) ou,
finalmente, olhai outra vez para o faraó5. Os símbolos
do Êxodo, acima de tudo, têm a finalidade de mostrar
aos futuros faraós que o Êxodo é um fim catastrófico de
tudo que parecia eterno.

b) Trazer à expressão pública aqueles mesmos ter­


rores e medos que tinham sido negados há tempo e su­
primidos tão profundamente, que nem sabíamos mais de
sua existência. A expressão pública do medo e do terror,
naturalmente, não exige uma linguagem analítica nem de
censura, mas uma linguagem metafísica, de tal forma que
o sentido possa ser atingido em muitos aspectos e por
diferentes pessoas. De modo que o profeta deve falar por
evocação, com o fim de trazer à comunidade o temor e a
pena com que as pessoas tão ardentemente desejam par­
5 Símbolos eficientes são os que surgem da história da comunidade.
Não estamos nos referindo aos mitos universais, mas a uma simbolização
apropriada a uma história determinada. No caso de Israel podemos fazer
referência às Lembranças da infidelidade que fundamentam a profecia de
Jeremias. Conferir a estimulante colocação de Peter Ackroyd, “Continuity
and Discontinuity: Rehabilitation and Authentication”, em Douglas Knight
Tradition and Theology in the Old Testament, Philadelphia, Fortress
Press, 1977, pp. 215-34. Há um perigo nos símbolos que oferecem con­
tinuidade, pelo fato de diminuírem a realidade da descontinuidade, contudo
Ackroyd afirma de Israel o que Lifton vê em termos de nossa própria
cultura.

62
ticipar e dos mesmos se apropriar e no entanto não o
podem fazer. É evidente que muita palavra caricatural­
mente profética serve mais para encorajar a repressão da
mesma do que para levá-la a cabo. Esta palavra não
requer nem rejeições desgastantes nem certezas sentimen­
tais, mas uma articulação honesta de como ela é perce­
bida quando olhada desde a perspectiva do amor de Deus.

c) Usar metáforas e ao mesmo tempo palavras con­


cretas sobre a morte que paira sobre nós e internamente
nos vai corroendo, não com ódio nem com expressões
comuns, mas com a sinceridade nascida da angústia e do
amor6. A imagem da morte entre nós, não é a da morte,
depois de uma vida longa e bem vivida, mas a da morte
introduzida no paraíso, segundo o Gênesis 2-3, que é
certamente um cântico salomônico sobre o desejo de todo
conhecimento e vida entregue à nossa administração de
reis7. Esta morte manifesta-se pela alienação, pela perda
do patrimônio, pela procura de novas satisfações que
jamais são plenas, e assim vamos sendo levados ao fim
do consumismo, que vem a ser consumirmos um ao outro.
O profeta não censura nem repreende, simplesmente,
torna pública a expressão do temor dos fins últimos, o
colapso de nossa própria loucura, as barreiras e a quanti­
6 A angústia e o sofrimento, que dão força a este discurso, não
podem ser em termos de mitos muito abrangentes, mas devem surgir da
experiência da comunidade. Assim, o estudo da expressão da metáfora
e das parábolas leva Israel a viver sua própria experiência, como observa
Laing. A respeito da concretude da linguagem, consultar Sallie TeSelle
em Speaking in Parables, Philadelphia, Fortress Press, 1975, e Dominic
Crossan, The Dark Interval, Niles, íll., Argus Communications, 1975.
É tarefa do profeta comunicar energia às metáforas resultantes da ex­
periência histórica.
7 Para um julgamento deste texto, completamente diferente, consultar
George Mendenhall, “The Shady Side of Wisdom: The Date and Purpose
of Genesis 3”, em H. N. Bream, R. D. Heim, C. A. Moore A Light
Unto My Path, Philadelphia, Temple University Press, 1974, pp. 319-34.
A data do exílio proposta por Mendenhall comparada com a data conven­
cional atribuída ao tempo de Salomão, sugere importantes paralelos entre
os dois períodos.

63
dade de dispositivos que nos prendem uns à custa dos
outros e a terrível prática de afastar da mesa um irmão
ou uma irmã famintos. É função do profeta convidar o
rei a experimentar o que ele tem de experimentar, aquilo
de que ele mais necessita e teme experimentar, principal­
mente que o fim da fantasia real está muito próximo.
O fim da fantasia real permitirá ao verdadeiro rei uma
rápida visão daquilo que não é fantasia, mas não pode­
mos ver o verdadeiro rei enquanto a fantasia nos aparece
como uma ilusão frágil, perecedora e decepcionante. Exa­
tamente no ano da morte do famigerado rei é que o pro­
feta e seus seguidores vêem o verdadeiro rei elevado ao
trono e nas alturas (Is 6,1).
Acredito que a linguagem mais apropriada para o
profeta penetrar o torpor e a negação do rei é a da an­
gústia, a retórica que unifica a comunidade num lamento
por uma morte que não querem admitir, pois é a morte
deles mesmos.
Fico cada vez mais impressionado com o poder do
profeta de usar a linguagem do lamento e a criação sim­
bólica de uma cena de morte, com o objetivo de trazer
à realidade aquilo que o rei deve ver e não o quer. Por
isso acredito que aquela tristeza e aquele lamento, aquele
clamor apaixonado, é a última forma de crítica para anun­
ciar o fim certo de toda organização régia8.
s A indiferença e o otimismo oficial têm objetivos ideológicos. Pelo
contrário, a dor e a lamentação pregadas e praticadas pelos profetas
são o início da destruição da realidade do rei. A expressão do sofri­
mento é o começo do contrapoder. Consultar G. Müller-Fahrenholz,
“Overcoming Apathy”, The Ecumenical Review 27 (1975), 48-56. Ele
acompanha o estudo de A. Mitscherlich, observando a inabilidade dos
alemães em serem sensibilizados pela catástrofe nazista. A observação
coincide com a conclusão de Lifton. A argumentação de Müller-Fahrenholz
coincide com o ponto de vista que exponho aqui, a saber, que sem dor
não haverá superação da indiferença hem aceitação de novas tarefas. A res­
peito do sofrimento como pré-requisito para o protesto, consultar J. L.
Crenshaw, “The Human Dilemma and Literature of Dissent”, em Tradi-
tional Theology, pp. 235-37.

64
Neste contexto, quero lembrar Jeremias, como o ti­
po mais claro da imaginação e do ministério profético.
É um paradigma para aqueles que se dirigem à inércia
e à atitude negativa do povo que não quer saber o que
eles ou seus vizinhos têm de saber. Jeremias é freqüen-
temente mal entendido, como se fosse um porta-voz do
dia do juízo ou um pobre homem cheio de ódio, sentado
em algum lugar, chorando. No entanto, sua tristeza pú­
blica e pessoal tinha outra razão e servia a outra finali­
dade. Jeremias personifica a consciência alternativa de
Moisés em face da negação do rei9. Ele se aflige com a
tristeza de Judá porque sabe o que o rei não quer co­
nhecer. É claro que Jeremias não escarneceu Judá, cheio
de ódio, pelo contrário, expressou aquilo que estava ati­
vamente presente na comunidade, quer reconhecessem ou
não. Expressava aquilo que a comunidade negava com o
fim de continuar a autodecepção de uma saciedade com­
pleta. Afirmava que toda saciedade era um aproximar-se
rápido da própria morte. Jeremias conheceu muito antes
dos outros que o fim estava se aproximando e que Deus
já tinha suportado demasiado uma riqueza indiferente à
pobreza, uma opressão cínica, uma religião presunçosa.
Ele sabia que a liberdade de Deus tinha sido tão farta­
mente violada (como no Gênesis 2-3) que o castigo es­
tava às portas e não deixaria de chegar. Os profetas não
pedem muito nem esperam muito. Em sua tristeza, Jere­
mias pediu apenas que a corte real enfrentasse a ver­
dadeira experiência, já tão perto do fim. Tanto o profeta
como o rei sabiam que experimentar a realidade era, de
fato, deixar de ser rei.
9 Cf. William Holliday, “The Background of Jeremiah’s Self-Un-
derstanding: Moses, Samuel and Psalm 22”, Journal of Biblical Literature
83 (1964) 153-64. Menos diretamente consultar Sheldon Blank, “The
Prophet as Paradigm”, em James L. Crenshaw and John T. Willis Essays
in Old Testament Etkics, New York, KTAV, 1974, pp. 111-30. Sobre
o sofrimento como entendido pela tradição a respeito de Jeremias, ver
Peter Weter, “Leiden and Leidenerfahung im Buch Jeremia”, Zeitschrift
für Theologie und Kirche 74 (1977), 123-50.

65
5 - A imaginação profética
Observemos dois níveis na angústia de Jeremias.
O primeiro consistia na mágoa sentida, pois o fim de seu
povo estava iminente. Era uma mágoa verdadeira, por­
que ele tinha se preocupado com seu povo e sabia que
Deus também se preocupava com o mesmo povo. A se­
gunda dimensão de sua mágoa, mais intensa ainda, é por­
que ninguém ouvia nem queria ver aquilo que era tão
claro para ele. Desta forma sua angústia se tornava mais
profunda e mais dolorida, porque ele tinha de enfrentar
regularmente a consciência do rei, a qual repetia: “Paz,
paz”, quando só aparentemente havia paz. Não julgo es­
tar exagerando aqui. Penso que quase toda situação do
ministério inclui um comportamento de decepção e um
terrível medo de deixar nosso propósito sem continuida­
de, ainda que não se trate mais que de um caso de tirania
num casamento ou da supervisão de algo que odeio e ao
qual tenho aversão. Não aceitamos nada que nos impeça
de consumirmo-nos!
A angústia de Jeremias não é autocompaixão. Ob­
servando o que ele observava entre seu povo. Esta angús­
tia somente podia ser a resposta. Jeremias via o que to­
dos precisavam ver. Bastava que olhassem para ver, mas
não olhavam, negavam e tornavam-se ineptos para ver.
A gente que seguia o rei, durante tanto tempo, tinha vi­
vido num mundo protetor e fingido, e agora seu tempo
perceptual estava distorcido, e com o mais apurado olhar
não percebia o que havia para ser percebido. Isaías já o
tinha antecipado:

Embota o coração deste povo,


torna pesados os seus ouvidos, tapa-lhe
os olhos,
para que não veja com os olhos,
e não ouça com os ouvidos
e não suceda que o seu coração venha

66

i
a compreender,
que ele se converta e consiga a cura (Is 6,10).

Ele não precisava afligir-se pelo fato de não que­


rerem voltar atrás e serem curados. No entanto, Jeremias
apresenta seu poema, triste pelo que está acontecendo e
mais triste ainda por causa de toda aquela negação.
Minha impressão é de que qualquer um poderia
abrir o poema de Jeremias e encontraria em qualquer
parte seu ministério dominado pela angústia. Ao anali­
sar suas palavras, é importante lembrar que ele viveu
muito próximo do desastre. Sua paixão é, como Abraham
Heschel observa, a paixão do Deus que sabe que o tempo
chegou (Jr 8,7) 10. Deus sabe e o profeta também o sabe
que chegou o fim do tempo. O rei ignora, jamais saberá
que tempo é, justamente porque o que ele deseja é afu­
gentar o passar do tempo e viver num “agora” eterno e
ininterrupto. Deus tem tempo para seu povo e quer que
c aproveitem seriamente 11. A igreja, por palavras e pelo
relógio de suas torres, anuncia o tempo e que devemos
viver no tempo de Deus. Mas o rei faria como no cassino
de Las Vegas, onde não há relógio nem tempo, nem co­
meço nem fim, não há tempo para falar nem para res­
ponder, mas apenas um “agora” permanente, sem mu­
dança.
Consideremos os modos pelos quais Jeremias pene­
tra o torpor da consciência do rei, expressando a tristeza
que tanto se deseja negar. A mágoa é por causa da morte
de Judá, o mesmo Judá que os reis pressumiam que vi­
vería para sempre:
10 Sobre a paixão do Senhor pré-anunciada por Jeremias, consultar
Abraham Heschel, The Prophets, New York, Harper and Row, 1962, cap. 6.
11 Cf. Karl Barth, Church Dogmatics, 1/2, Edinburgh, T. & T.
Clark, 1956, n. 14. Grande parte de sua argumentação refere-se à liber­
dade de Deus e à inclinação do rei para negar a passagem do tempo, no
desejo de um “eterno agora”. Pelo contrário, a fé bíblica vive os mo­
mentos de Deus, nos quais há tempo de recolhimento e tempo de ex­
pectativa.

67
Minhas entranhas! Minhas entranhas!
Devo-me contorcer!
Paredes do meu coração!
Meu coração se perturba em mim!
Não posso calar-me,
pois eu mesmo ouvi o som da trombeta
o grito de guerra.
Anuncia-se desastre sobre desastre:
pois toda a terra foi devastada,
de repente foram devastadas
as minhas tendas
em um instante os meus abrigos (Jr 4,19-20).

Sua mágoa é expressa como um acontecimento pú­


blico, visível: a invasão e destruição de seu povo. Ele
descreveu com notável vivacidade o desenvolver-se do
desastre, passo a passo, como se estivesse se aproxi­
mando do seu próprio quarto de dormir. E mais, este
acontecimento público é acompanhado por dores inter­
nas, nas quais seu coração estremece e se agita de temor
e em suas vísceras ele sente cólicas de medo. No trecho
que citamos, ele joga com a imagem cósmica do fim da
criação:
Eu olhei a terra: eis que era vazia e disforme;
os céus: mas sua luz não existia.
Olhei as montanhas: eis que elas tremiam
e todas as colinas se abalavam.
Olhei e eis que não havia mais homens;
e todos os pássaros do céu tinham fugido.
Olhei e eis que o Carmelo era um deserto
e todas as suas cidades tinham sido destruídas
diante de Iahweh,
diante do ardor de sua ira (Jr 4,23-26).
Mas a poesia tem mais conteúdo do que o fim da
criação. Vamos recordar o que atrás eu sugeri, a saber,

68
que a criação da ordem social foi um trabalho garantido
pelo rei. O rei é encarregado de ordenar e preservar a
ordem social e por isso, voltar ao caos é anunciar, impli­
citamente, o fracasso do reinado e seu fim. Não há mais
criação porque não há mais rei. Aquilo que justificava o
reinado acabou-se. De qualquer forma, os seguidores do
rei, agora, enfrentam um futuro no qual não aparecem
mais.
No poema dos capítulos 8 a 10, Jeremias apresenta
uma grande quantidade de metáforas que têm por fim
acabar com o torpor. Em primeiro lugar, apresenta uma
imagem sobre uma interpretação da situação totalmente
errada. Há tempo para o luto e tempo para a dança, tem­
po para chorar e tempo para rir (Ecl 3,4) e no entanto
Judá não sabe que tempo é agora:

Até a cegonha no céu


conhece o seu tempo;
a pomba, a andorinha e o grou
observam o tempo de sua migração.
Mas o meu povo não conhece
o direito de Iahweh! (Jr 8,7; cf. 4,22).

Agora é tempo de chorar. Chegou o tempo da mor­


te e eles pensam que este tempo não chegará. Depois de
um cenário de guerra, com as cargas da cavalaria, o pro­
feta torna-se pensativo:

Não há bálsamo em Galaad?


Não há lá um médico?
Por que não progride
a cura da filha de meu povo?
Quem fará de minha cabeça um manancial de água,
e de meus olhos fonte de lágrimas,
para que eu chore dia e noite
os mortos da filha de meu povo!

69
Quem me dará no deserto
um refúgio de viajantes,
para que eu possa deixar o meu povo
e ir para longe deles! (Jr 8,22-9,1).

Em sua introdução referente ao bálsamo, o profeta


propõe uma pergunta. Não faz uma afirmação como nas
canções espirituais negras, mas deixa a pergunta sem res­
posta. A segunda pergunta é feita com um pathos mais
profundo: “Porventura, não existe um médico?” 12 Não
recebendo resposta, ele aprofunda mais ainda a sua ex­
pressão de dor. A resposta não é dada porque se o fosse,
seria numa forma própria do Israel real. Agora não é
mais tempo para respostas, mas para perguntas que des­
prezam respostas, porque a função do rei, de responder,
não funciona mais. Respostas daquela fonte supõem or­
dem e simetria. E tudo isto desapareceu.
O profeta fala de sua angústia por causa da falta
de decisão. Não pode lamentar o bastante. Seus olhos pre­
cisariam verter mais lágrimas do que seria possível. O
tempo é insuficiente, mesmo o dia e a noite, para chorar
esta morte, entre todas as outras, “a morte da filha de
meu povo”. Em primeiro lugar, ninguém responde. De­
pois, as lágrimas são inadequadas. E em terceiro lugar,
o desejo de fuga: “Quem me dera um lugar no deser­
to. . . eles todos são traiçoeiros, vão de mal a pior, por­
que não me conhecem, diz o Senhor”. Este lamento, esta
mágoa, esta dor de morte vem de Iahweh. Eles não o
conhecem. Não sabem como avaliar a vontade realmente
livre daquele que causará o fim das coisas. Ele não se
ajusta a nenhuma de suas categorias e eles não podem
“manobrá-lo”. Por isso continuam tratando-o como qual­
12 A respeito do uso que Jeremias faz desta metáfora, consultar a
posição de James Muilenburg, “The Terminology of Adversity in Jere­
miah”, em H. T. Frarik and W. L. Reed Translating and Understanding
the Old Testament, New York, Abingdon Press, 1970, pp. 42-63.

70
quer outro, e isto, claro, em nada alivia a situação, pois
ele é o Deus dos fins e ninguém pode evitá-lo.
Jeremias pode sentir empatia para com os servido­
res do rei. Aspira pela paz tanto quanto eles. Deseja
que tudo siga normal, mas a morte já mudou tudo. “Es­
peramos a paz: nada de bom! O tempo da cura: eis o
terror!” (Jr 8,15). Ele que é o mais eloqüente dos pro­
fetas não encontra palavras para expressar publicamente
sua mágoa: “Sem remédio a dor me invade, o meu co­
ração está doente” (Jr 8,18). Chegou a perder a capaci­
dade de pensar com clareza e de tomar decisões fiéis.
E não se trata de encenação para impressionar o público.
Toda a sua vida, de agora em diante, é exigida para ex­
pressar a dor pela morte de Judá. É aquela dor que
Iahweh queria participar com seu povo, mas eles não
podem e, por isso, Jeremias sozinho tem de responder
por seu povo todo.
Em seu longo e eloqüente discurso sobre os reis,
no capítulo 22, o profeta os repreende, castiga, elogia e
até os lisongeia. Depois de tudo, se volta para o trágico
jovem rei Jeconias. O rapaz é inocente, mas deve pagar
pela dinastia e deve suportar em seu corpo o castigo de
toda a família. Ele agora é Judá, Judá exilado e Jeremias
atribui-lhe o papel de partilhar toda a dor de Judá.
No versículo 28, Jeremias começou a lamentar-se
por aquele que é inocente e que é esquecido, sem recla­
mação alguma a fazer: “É porventura um vaso sem valor,
quebrado, esse homem, esse Jeconias, ou um utensílio
que ninguém quer?” Depois levanta o mais pungente la­
mento de toda a Bíblia. A terra toda pára a fim de sentir
a tragédia: “Terra! Terra! Terra!” E está terminada a
dinastia: “Inscrevei esse homem sem filhos, alguém que
não teve sucesso nos seus dias. Porque ninguém de sua
taça conseguirá sentar-se no trono de Davi. . .” As lágri­
mas do coração de Jeremias não falam mais. Perdeu o
poder de exultar ou de regozijar-se. Ele queria muito que
71
este rei pudesse resgatar Judá real, mas agora é muito
tarde.
O profeta reconhece que sua dor pela morte de Is­
rael é inadequada, e por isso pede que a dor seja pública:
“Sobre as montanhas eu elevo gemidos e pranto; sobre
as pastagens da estepe um canto de lamentação” (9,9).
E aqui ele repete a expectativa de Amós, a saber, o que
está para acontecer deve ser levado ao conhecimento
público:
Em todas as praças haverá lamentação
e em todas as ruas dirão: “Ai! Ai!”
Convocarão o camponês para o luto
e para a lamentação aqueles que sabem
gemer (Am 5,16).

Amós não somente chamou pela angústia, mas fê-lo


por causa da devastação de Israel:

Caiu e não se levantará mais,


a virgem de Israel:
ela foi atirada ao chão
não há quem a levante! (Am 5,2).

Jeremias usa a imagem de uma pessoa que está à


morte, caracteriza-a ainda mais radicalmente, porque ago­
ra a moribunda já não é uma virgem, mas uma vagabun­
da, uma prostituta bem vestida, mas sem destino:

“E tu, devastada, que vais fazer?


Por mais que te vistas de púrpura,
por mais que te enfeites
com adornos de ouro,
por mais que alargues os teus olhos
com pintura,
em vão te aformosearás!
Os teus amantes te desprezam,

72
atentam, apenas, contra a tua vida.
Sim, ouço um grito como o de uma parturiente,
aflição como a da que dá a luz pela primeira vez;
é o grito da filha de Sião, que geme,
e que estende as mãos:
‘Ai de mim, que desfaleço
diante dos assassinos!’ ” (Jr 4,30-31).

É como se fora uma mulher em dores, não para o nas­


cimento do filho, apenas para levá-la à morte. Sobrevem
uma respiração ofegante e depois o silêncio. Judá aca-
bou-se.
O profeta, em primeiro lugar, afirma sua própria
dor, depois “sai a público”-e convida as carpideiras. E
com uma notável força descreve a mãe de Israel, a que­
rida Raquel, lamentando-se:

Em Ramá se ouve uma voz, uma lamentação, um choro


amargo; Raquel chora seus filhos,
ela não quer ser consolada por seus filhos,
porque eles já não existem (Jr 31,15) 13.

Nem Jeremias, nem seus contemporâneos estão em


condições de sentir toda esta angústia. Somente quem deu
à luz angustiadamente e agora, com mais angústia ainda,
enfrenta a morte, poderia sentir tudo. Não há mais con­
forto. Ninguém é confortado porque não existe mais nin­
guém. A chegada do fim não esperado é comparada ao
nascimento do inimaginável milagre do começar a ser.
Foi dito: Eles não existem mais. Nem exilados nem pu­
nidos. Nada. E para o nada, não existe nem consolação
nem explicação. Esta poesia está entre as mais corajosas
13 Consultar a primorosa interpretação de Phyllis Trible, “The Gift
of a Poem: A. Rhetorical Study of Jeremiah 31,15-22”, em Andover Newton
Quaterly 17 (1977), 271-80, e seu próximo livro pela Fortress Press,
God and the Rhetoric Sexuality.

73
do antigo Israel, justamente porque a situação requeria
ousadia. Imaginemos a impossível volta da sempre lem­
brada mãe Raquel, chorando seus queridos filhos. Claro
que só poderia haver dor, porque:

Incurável é a tua ferida,


e a tua chaga não tem remédio.
Não há ninguém para defender
a tua causa;
para uma úlcera há remédios,
mas para ti não existe cura (Jr 30,12-13).

Só pode haver morte. E a imaginação é forçada ao


extremo:

Será Efraim para mim um filho,


tão querido,
uma criança de tal forma preferida,
que cada vez que falo nele
quero ainda lembrar-me dele? (Jr 31,20).

Iahweh mesmo está sentido e não pode deixar de estar.


A linguagem permite que as palavras de Jeremias trans­
cendam a pessoa do profeta. A dor não desaparecerá,
será como algo próprio do caráter de Jeremias, porque
é a dor do próprio Deus, pela morte de seu filho. E é
claro que Deus não sentiria aquela morte se houvesse
uma forma de evitá-la. Não há afirmação nem anúncio
de esperança, há apenas um anseio, misto de esperança,
que é admitida, mas pára de repente, ou por ter conhe­
cido muito ou por ter prevenido muito. Jeremias chegou,
onde seus contemporâneos jamais chegariam, para ex­
pressar o sofrimento de Deus. Antes dele, apenas Oséias
tentou chegar àquela expressão. Iahweh não é mais um
inimigo que deve punir ou destruir, mas é apenas o pai
sem ajuda que deve ficar ao lado da morte, como Maria

74
no Calvário, como Davi ao lado de Absalão: “Meu filho,
meu filho!” e nada mais pode fazer a não ser chorar14.
A força que impeliu para a morte foi tão violenta que
nada, nem o rei, nem o templo, nem mesmo Iahweh,
podem agora impedir o acontecimento. Posteriormente
será oferecida misericórdia, mas não antes da morte.
Quando muito encontramos aqui um desejo misterioso
por parte de Iahweh, de que a história não siga seu
curso implacável.
A poesia usa agora a linguagem da dor como é ca­
racterístico da poesia elegíaca. Há um sentido de abando­
no sem conforto, com um desejo de misericórdia, mas
somente um desejo. Israel deve sofrer e não será tão cedo
que outra palavra que não seja sofrimento será ouvida.
Jeremias falou para um povo com olhos bem aber­
tos, e no entanto, olhavam e não viam. Estavam tão im­
plantados ao seu mundo de fantasias, que se tornaram
estúpidos e não foram capazes de discernir coisa alguma.
E, por isso, o torpor não foi vencido e continuou em seu
mundo de fantasias: “Eles cuidam da ferida do meu po­
vo superficialmente, dizendo: Paz! Paz! quando não há
paz” (Jr 6,14;8,11). Imaginavam que sua estupidez a
respeito da Aliança seria sabedoria régia (Jr 8,8) e con­
tinuaram seus caminhos régios, mas ilusórios. Os profe­
tas pensaram que o jugo seria temporário, mas afinal de
contas, não tão sério ou decisivo (cap. 27-28). Os reis
imaginavam que não ouvir uma palavra de Iahweh ou
queimar um rolo de pergaminho tornaria “inoperante” a
soberania de Iahweh (Jr 36,23-24). Os reis fariam tudo,
menos angustiar-se, porque este é o último ponto da crí­
tica e o anúncio decisivo da destruição.
Não precisamos forçar a linguagem de Jeremias com
o fim de torná-la concreta ou mais específica. O profeta
está empenhado numa luta pela linguagem, num esforço
14 Elei Weisel, em Ani M.aamin, New York, Random House, 1974,
faz uma descrição do Senhor, muito dolorida.

75
por criar um tipo de conhecimento diferente, do qual
possa emergir um outro tipo de comunidade. Ele não
estava se referindo a problemas comportamentais. Nem
sequer estava insistindo no arrependimento. Sua única
esperança é que a dor de Deus pudesse penetrar aquele
torpor histórico. Ele é envolvido não pelo pânico ou
pelo terror mas por uma angústia que cresce tanto com
o sofrimento, como por causa do mesmo.
Afinal, o que quer este profeta? Por que toda esta
angústia? Certamente ele não é como aquele pastor “pro-
vocador de lágrimas” e para o qual, um choro bem pre­
parado era sinal de um belo funeral. Nem seremos fre­
quentadores profissionais de funerais, para os quais as
lágrimas vêm automaticamente a cada versículo do “Ro­
chedo dos Tempos”. Sabemos, por nossas próprias má­
goas, feridas e solidão, que as lágrimas quebram barreiras
como nenhuma outra força o conseguiría. As lágrimas são
uma forma de solidariedade no sofrimento, quando não
se encontra nenhuma outra forma de ajuda. E quando
alguém recorre claramente ao próprio torpor, à raiva, ao
desgaste e à indignação, torna, então, a ferida mais pro­
funda, aumenta o torpor e leva as pessoas a comporta­
mentos que não são enraizados na experiência.
Esta forma de negação e não aceitação do torpor só
é superada pelo assumir da negatividade 15, pela pública
aceitação de que estamos cheios de medo e envergonha­
dos do futuro que escolhemos. O sofrimento e o arre­
pendimento não aceitos apenas imobilizam. No tempo de
Jeremias, o sofrimento e o arrependimento não-aceitos
impediram qualquer novo movimento, quer da parte de
Deus para Judá, quer de Judá para Deus. A promessa
não foi cumprida e não houve possibilidade de novidade
até que o torpor foi vencido. Jeremias pensava que a
15 Douglas Hall, em Ligbten Our Darkness, Philadelphia, Westminster
Press, 1976, esp. cap. 2, fez referência ao tema da negatividade, tanto no
que se refere à teologia da cruz como à nossa situação social.

76
crítica devia ser enfrentada e aceita porque depois viria a
libertação da doença incurável, da aliança quebrada, de
uma energia falida. Esta tradição da fé bíblica sabe que
a angústia é a porta da existência histórica, que assumir
o fim permite novos começos. Naturalmente os reis pen­
sam que a porta da angústia não deve ser aberta porque
destrói os reis fraudulentos. Os reis sabem intuitiva­
mente, que a decepção, os falsos clamores de prosperi­
dade, a opressão, a situação religiosa, tudo entrará em
colapso quando o ar da Aliança os atingir. O enigma e
ao mesmo tempo, a intuição da fé bíblica é o conhecimen­
to de que somente a mágoa leva à alegria, somente a an­
gústia leva à vida e finalmente que a aceitação dos fins
é que permite novos começos.
Jeremias situa-se a meio caminho na história da dor
de Israel. Antes dele, Amós condenara todos aqueles que
dominados pela ilusão, tinham sido incapazes e não ti­
nham tido disposição para o arrependimento (Am 6,6).
Depois de Jeremias vem Jesus de Nazaré, que entende a
angústia como a última crítica que tem de ser dirigida
contra Jerusalém (Mt 23,27; Lc 19,4). Jeremias está a
meio caminho e fala da mágoa de Deus, da qual Israel
tem de participar. Sem esta participação de Israel, não
haverá modificação.
Jesus compreendeu Jeremias. O Eclesiastes afirma
simplesmente que há tempo para chorar e tempo para rir,
mas Jesus observa apenas que aqueles que estão tristes
serão confortados (Mt 5,4). Somente aqueles que acei­
taram a realidade da morte receberão uma vida nova.
Está implícito em sua afirmação que aqueles que não
chorarem, não serão confortados, e aqueles que não en­
frentarem o fim não receberão o começo. A comunidade
alternativa sabe perfeitamente que não é necessário en­
tregar-se à ilusão. Ela pode estar solidária com a morte
e são estes os únicos que têm esperança. Jeremias, fiel a

77
IB

Moisés, sabia o que um povo cego jamais saberá, que so­


mente os aflitos podem atravessar suas próprias experiên­
cias e continuar existindo.
Sempre achei curioso que quando me pediam para
citar a Escritura, alguém sempre dissesse “e Jesus cho­
rou”. Mas agora compreendo. Jesus sabia o que nós, ce­
gos, devemos sempre aprender de novo, a) que o chorar
deve ser autêntico, porque o fim é verdadeiro; b) que o
chorar permite a novidade. As lágrimas permitem a vin­
da do reino. O chorar é uma crítica radical, um temor de
queda, porque significa o fim de todo machismo. Chorar
é algo que raramente os reis fazem, sem perder seus tro­
nos. E a perda dos tronos é o que é lembrado exatamente
na crítica radical.

«II!
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78
4
ENERGIZAÇÃO PROFÉTICA
E O EMERGIR
DA INTUIÇÃO

O ministério de Jeremias, como já o consideramos,


foi um modelo voltado totalmente para a crítica radical.
E a crítica mais radical do profeta está na angústia re­
ferente à morte. A comunidade alternativa representada
em Jeremias conheceu, com certeza, como era mortal tu­
do o que os reis chamavam vida. Claro que há outros
aspectos importantes no ministério de Jeremias. Por exem­
plo, Thomas Raittdemonstrou convincentemente que
Jeremias é o mais ousado e o mais inventivo de todos os
profetas da esperança. Neste modo de ver, há diversas
questões críticas, mas Raitt seguindo John Bright12, atri­
bui a Jeremias uma posição muito importante na poesia
da esperança. Faço referência a isto com o fim de não
diminuir a riqueza da tradição sobre Jeremias.
De qualquer forma, meu pensamento é que a co­
munidade profética alternativa está preocupada tanto com
o levantamento do espírito crítico como com a energi-
1 Thomas M. Raitt, A Theology of Exile, Philadelphia, Fortress Press,
1977.
2 John Bright, Jeremiah, Anchor Bible 21, Garden Gty, N. Y.,
Doubleday, 1965.

79
I
zação. Por um lado, quero mostrar como a consciência
dominante (a qual denominei até aqui “régia”) chegará
a um fim, e não tem por que reclamar de nós. Por outro
lado, a função da comunidade profética alternativa é pre­
parar uma outra consciência, que possa trazer força à
comunidade no empreender novas formas de fé e de vi­
talidade. Uma vez que já refletimos sobre a primeira des­
tas funções na história de Jeremias, apresento agora a se­
gunda função da profecia, a saber, despertar e comunicar
energias ou simplesmente, energizar. Meu ponto de vista
é o seguinte: A consciência régia desperta no povo um
desespero, diante da nova vida. É papel da imaginação
e do ministério profético levar o povo a engajar-se com a
promessa da novidade que já está em andamento em nos­
sa história com Deus.
Pessoas insensíveis não percebem ou não temem a
morte. Por outro lado, pessoas em desespero, não an-
tevêem nem percebem novidades.

(1) Como ponto de partida, pode-se afirmar que


a consciência do rei se posiciona contra a esperança.
As pessoas que não conseguem participar da prosperida­
de, apresentam uma forma de desespero, porque, para
elas há pouca ou nenhuma perspectiva de mudança. Não
há dúvida de que em Israel, a partir das realizações de
Salomão, a prosperidade do rei se limitou, cada vez mais,
para um número maior de cidadãos. Este é o ponto cen­
tral na polêmica de Amós. E naquele tempo, como em
nossos dias, o sistema dominante, com certeza e natural­
mente, trazia desespero para os marginalizados.
É também importante observar como aqueles que
participam do poder e da prosperidade são igualmente
vítimas do desespero ou, como atualmente costumamos
dizer, experimentam um sentimento de importância. A
consciência do rei significa superação da história e, con-
seqüentemente, o futuro perde sua força e importância.

80
A ordem atual ou, por outras palavras, o regime presen­
te apresenta-se como sendo a situação perfeita e final.
Isto quer dizer que não haverá uma situação futura que
conteste a presente ou que a prometa de outra forma.
De modo que as rotineiras exigências da ordem atual se
transformam em desespero. Esta forma traiçoeira de es-
catologia exige que as pessoas vivam sem esperança. O
presente torna-se infinito em seus projetos, não tem com­
promissos com exigência de lealdade e não se acomoda
a suas próprias formas de ser. Segundo um recente co­
mercial de cerveja, você é todo-poderoso “quando crê
naquilo que você está fazendo”. Donde se conclui que
uma única “forma é a certa”. Penso que o regime salo-
mônico criou uma situação semelhante à de desespero.
Inevitavelmente tinha de prender-se ao presente desespe­
rada e obstinadamente, porque se o presente desapare­
cesse não haveria nada mais. O futuro já fora anulado.
No meu pensar, não é artificial imaginar que as palavras
do Eclesiastes 1,9-10 nas quais encontramos uma grande
falta de esperança, se refira à consciência do rei.

“O que foi, será,


o que sucedeu, sucederá:
Nada há de novo debaixo do sol!
Mesmo que se afirmasse: “olha, isto é novo”, eis que
já sucedeu em outros tempos muito antes de nós”
(Ecl 1,9-10).
Não há nada de novo, em parte, porque, na rea­
lidade, naquela situação parecia que nada estava aconte­
cendo e, em parte também, porque o regime dispunha
e decretava como deviam ser as coisas. A necessidade de
anular o futuro leva a uma situação na qual não existe
esperança.
(2) Falando com mais precisão, no fim do ano
587, exatamente como Jeremias tinha antecipado, o tér­
81
6 - A imaginação profética
mino daquele momento presente criou uma situação na
qual a consciência de rei se encontrou sem apoio. Os
mesmos reis que não suportavam a idéia de que o fim
poderia chegar, também não imaginavam que pudesse
haver um novo começo. Todos aqueles que tinham lu­
tado tanto por negar o futuro e fazer desaparecer a es­
perança, não podiam, de um momento para outro, per­
mitir o surgir de uma nova perspectiva. Para o rei tor-
na-se inadmissível um começo realmente novo. Os reis
estavam acostumados a novos ajustamentos, a novas con­
figurações das mesmas peças, mas a vontade de adminis­
trar e controlar significa que não pode haver intromis­
sões, que são vistas como indesejáveis. Não são vistas
como possíveis e menos ainda percebidas quando acon­
tecem. E por isso a mesma consciência do rei que não
pensava num desenlace e se preparava para um estado de
insensibilidade é a mesma que não pode admitir novida­
des e, assim, também se prepara para um insuportável
desespero e uma dura passagem pelas coisas, como agora
existem. A partir de agora, começos e términos estão
diante dos reis como possíveis e aceitáveis, porque uns
e outros anunciam uma superioridade misteriosa que os
reis não podem acolher.
Esta situação de desespero se reflete, provavelmen­
te, no Salmo 137. Por isso afirmo que o desespero do
começo do exílio não é algo novo no próprio exílio. Pelo
contrário, é o resultado de uma existência sem esperança,
sem perspectiva de futuro, que Israel suportou por um
longo tempo. Com certeza, as imprecações do Salmo 137,
7-9 indicam uma confiança muito modesta, mas é óbvio
que ainda não encontramos no referido Salmo uma arro­
jada esperança de restauração. No máximo, ali encontra­
mos um austero suportar, uma determinação de lembrar-
-se eternamente e um suspiro de alívio da hostilidade.
Aqui não encontramos nenhuma palavra referente a um
início de transformação da história. Na poesia das La­
82
mentações, como observa Norman Gottwald3, encontra­
mos insinuações de esperança, mas não devemos esque­
cer a grande precaução da conclusão do capítulo 5,
20-21:

Converte-nos a ti, Iahweh, e nos converteremos.


Renova nossos dias de outrora.
Ou será que nos rejeitaste totalmente,
irritado, sem medida, contra nós? (Lm 5,21-22).

O autor parece arriscar um pedido, mas com pouca


convicção. As duas últimas perguntas, de tom retórico,
esperam pela pior.
Uma vez que é característico do rei querer adminis­
trar tudo, podemos predizer a inabilidade do mesmo rei
para imaginar e menos ainda suportar qualquer nova in­
tromissão. O mesmo acontece em nossas próprias vidas,
nas quais, a partir das dimensões que nós mesmos da­
mos às coisas, formulamos conclusões que, para nós, são
as únicas existentes. Pensar noutras, vindas de fora, é o
mesmo que violentar nossa própria razão. Não somos ca­
pazes de acreditar mais na bondade de Deus do que no
seu julgamento.
Vamos relembrar que nossas reflexões limitam-se a
certos quadros vivenciais, que nossas modestas expecta­
tivas são limitadas pelo grau de desenvolvimento de nos­
sa razão, de nossa linguagem, de nosso conhecimento, fi­
nalmente. Não temos áreas livres nas quais possa se ar­
ticular uma plenitude séria de esperança. O que seria
mais necessário, é, muitas vezes, justamente o mais ina­
ceitável — uma formulação que defina de novo a situa­
ção e que abra caminho para novos dons. Sem uma área
livre, na qual formulemos os dons que transcendem nossa
3 Norman Gottwald, Studies in the Book of Lamentations, Studies in
Biblical Theology 14, Chicago, Alec R. Allenson, 1954.

83
racionalidade convencional, estaremos fadados ao deses­
pero. Sentimos muito bem que nas circunstâncias pre­
sentes não há lugar para criar verdadeiras mudanças. E
em breve, a verdadeira vida nova transforma-se numa
construção incompleta, num trabalho de má vontade,
numa fé sem audácia para pedir muito.
Penso que semelhante estado de coisas é evidente
não somente no exílio de Judá, mas é também caracterís­
tica de muitas situações do ministério. Quando tentamos
determinar os sintomas do mal do nosso tempo, dos ca­
samentos e das ocupações de muitíssima gente, percebe­
mos que fomos criados longe da esperança, pelo fato de a
mesma esperança ser muito acanhada em nós. Esta espe­
rança é uma inimiga da consciência do rei, com a qual
muitos de nós garantimos uma forma de vida. O proble­
ma enfrentado pelo ministério é, se há alguma coisa
para ser dita, feita ou praticada, diante da ideologia da
plenitude da esperança.

(3) A função da imaginação e do ministério pro­


fético, principalmente como a consideramos em Judá no
século VI a.C., é acabar com o desespero e penetrar as
cúpulas descontentes que parecem não ter fim nem orien­
tação. Numa tal situação de desespero, o profeta não po­
de fazer muito e sugiro um trabalho modesto e básico.
Inclui três atividades:

a) Apresentar símbolos aptos a contradizer a si­


tuação de desespero em que qualquer novidade é impen­
sável. O profeta trabalha somente com palavras, pala­
vras ditas, postas em prática, com o fim de contradizer
a suposta realidade da comunidade. O profeta tem de
providenciar meios para que a esperança se torne possí­
vel outra vez a um grupo de reis, que já se desesperam
com sua própria realeza. Depois de certo tempo, os reis
tornam-se incapazes de entender a linguagem da espe­
84
rança, a qual requer um simbolismo muito inteligente.
A esperança não deve ser expressa demasiado abertamen­
te, no tempo presente, porque uma esperança que se
pode tocar ou manipular é provável que não contenha o
prometido apelo por um novo futuro. Esperança mani­
festada apenas no momento presente, sem dúvida será
cooptada pelos administradores do mesmo momento pre­
sente.
Que difícil missão deve ser tentar e conseguir ex­
pressar um futuro que a ninguém seria imaginável. É
claro que não se pode fazer isto inventando novos sím­
bolos, pois isto seria uma fé naquilo que se quer que
seja verdade. Pelo contrário, significa voltar para o mais
profundo da memória da comunidade e pôr em jogo aque­
les mesmos símbolos que foram sempre a contradição da
consciência dominante. Por conseguinte, os símbolos da
esperança não podem ser gerais e universais, mas devem
ser aqueles que foram conhecidos na história concreta
desta comunidade 4. E quando o profeta, juntamente com
a comunidade se voltam para aqueles antigos símbolos,
percebemos que a esperança não é uma suposição tardia
ou arranjada para aliviar a crise, mas é, aliás, uma di­
mensão fundamental do passado desta comunidade. O
passado desta comunidade tem início com a promessa
feita por Deus, na escuridão do caos, à estéril Sara e aos
oprimidos escravos dos egípcios. A promessa de Deus é,
em primeiro lugar, sobre um futuro alternativo.
Na apresentação dos símbolos, o profeta tem duas
funções, das quais a primeira é abalar a memória do povo
4 Bernhard Anderson estudou duas dimensões totalmente diferentes
da tradição à qual se faz referência, mas em cada caso há referência a
uma tradição específica de Israel. Consultar “Exodus Typology in Second
Isaiah”, em B. Anderson and W. Harrelson (orgs.), Israel’s Prophetic
Heritage, New York, Harper and Brothers, 1962, pp. 177-95; “Exodus
and Covenant in Second Isaiah and Prophetic Tradition”, em The Mighty
Acts of God, (orgs.), Frank M. Gross, Werner Lamke, and Patrick D.
Miller, Jr. Garden City, N. Y., Doubleday, 1976, pp. 339-60.

85
e prepará-lo para o uso dos instrumentos da esperança.
A segunda é reconhecer a força única das palavras, da
linguagem e do discurso, das próprias expressões para
modelar e definir a realidade. O profeta é aquele que,
usando unicamente estes instrumentos da esperança, lan­
ça a contradição contra o suposto mundo dos reis, mos­
trando que aquele mundo não corresponde aos fatos,
que nos ensinaram uma mentira, na qual acreditamos
porque houve quem, com sua atividade e sobretudo com
a imprensa, nos dissessse que aquela era a verdadeira
forma de ser. E por isso a apresentação dos símbolos
é um trabalho que não se ajusta a um clérigo tímido, que
simplesmente faz parte do grupo, mas é um trabalho
apropriado para pessoas que conhecem algo diferente e
estão preparadas, na sua angústia e intuição, para ver
que o mundo fechado da realidade administrada é falso.
A imaginação profética sabe muito bem que o mundo
verdadeiro é unicamente aquele que tem sua origem e
sua dinâmica no discurso-promessa de Deus e que este
é verdadeiro mesmo num mundo do qual os reis tenta­
ram banir todos os discursos, menos os próprios.

b) O papel da imaginação e do ministério profé­


tico é trazer ao público a expressão daquelas esperanças
e aspirações que há tanto tempo foram negadas e tão
fortemente suprimidas, que nem mais sabemos que elas
existiram um dia5. Por um lado, falar sobre a esperança
é demasiado absurdo e embaraçoso, porque ela desapa­
rece diante das exigências que nos disseram serem fatos.
Ter esperança é recusar-se a aceitar uma visão da reali­
dade como a maioria a tem, e, aliás, com verdadeiro
5 O ministério profético deve ver, mais claramente do que temos
conseguido ultimamente, a ligação total entre o discurso e a esperança!
O discurso é que toma possível a esperança e quando a consciência da
tecnologia do rei faz parar o discurso, fecha também as portas à esperança.
Paulo percebeu-o claramente na argumentação de Rm 10,14 e ss., com
certeza, embasada na recordação do Segundo Isaías.

86
risco político e existencial. Por outro lado, a esperança
é subversiva, porque põe limites às orgulhosas pretensões
do presente6, ousando proclamar que o presente com o
qual todos nos comprometemos, é questionável. E por
isso a comunidade no exílio não tinha os instrumentos
da esperança, pois a linguagem da esperança e o ethos
da intuição foram confiscados por serem um estorvo.
É errado pensar a respeito da expressão pública
da esperança como de uma forma de subverter o deses­
pero dominante no rei. Não estou me referindo ao oti­
mismo, ao desenvolvimento ou mesmo aos avanços pro­
gressivos, mas às promessas feitas por alguém que está
longe de nós, acima e diferente de nós e, apesar de tudo
promessas feitas a nosso favor. O discurso sobre a espe­
rança não pode ser explicativo nem de uma lógica cien­
tífica, mas deve ser lírico no sentido de que atinge a
pessoa sem esperança, em aspectos diferentes. Mais do
que isso, o discurso da esperança deve ser, primeiramen­
te, teológico, e isto significa que deve ser feito na lin­
guagem da aliança entre um Deus pessoal e a comuni­
dade. A promessa pertence a um mundo que fala con­
fiantemente e ouve com fidelidade. A promessa não será
reduzida à linguagem “fria” da filosofia ou do discurso
individual da psicologia. Numa palavra, será sobre Deus
e nós, sobre sua fidelidade, a qual proíbe nossa infideli­
dade. Aqueles que desejam exercer o ministério profé­
tico precisam abraçar esta absurda prática e esta ativi­
dade subversiva.
O impulso de tornar pública a expressão da espe­
rança está fundamentado numa convicção sobre as pes­
soas que têm fé. Fundamenta-se na capacidade de evocar
e expressar a esperança existente em nós (ver lPd 3,15 )•
Ela está dentro de nós e entre nós porque Deus determi­
6 A respeito da força subversiva da esperança como meio de des­
truição, consultar John Swomley, Liberation Ethics, New York, Mac-
millan, 1972.

87
nou que fôssemos o povo da esperança. Está em nós,
pelo fato de sermos a imagem do Deus das promessas.
É marcada em nós no sacramento do batismo. É repre­
sentada pela eucaristia — “até sua vinda”. Está na es­
trutura mesma de todos os credos que terminam profes­
sando a fé nas promessas de Deus. A esperança é a de­
cisão, à qual Deus convida Israel, uma decisão contra
o desespero, contra um destino permanente de caos (Is
45,18), de opressão, de esterilidade e de exílio.
A esperança é a expressão profética principal, não
em razão da dinâmica geral da história ou em razão dos
sinais dos tempos, mas porque o profeta fala para um
povo, que de bom ou mau grado, é o povo de Deus.
Este povo deve ter esperança porque é o povo de Deus,
convidado para a peregrinação de Deus. E da mesma for­
ma que Israel é convidado a afligir-se com a aflição de
Deus por causa da infidelidade final, igualmente Israel
é convidado agora a esperar nas promessas de Deus.
Este ato de esperança é a confissão de que não somos
filhos da consciência do rei.
Temos de admitir que a esperança profética pode
facilmente orientar-se para a distorção. Pode tornar-se
tão grandiosa que perca a dimensão da realidade; pode
tornar-se tão vulgar que não cause impacto à realidade;
pode tornar-se “pão e circo” e assim não fará mais que
ajudar e encorajar o desespero geral. Mas o profeta tem
outro objetivo ao dar expressão pública à esperança, a
saber, fazer o povo voltar ao único ponto de referência,
à soberana fidelidade de Deus. Somente esta volta per­
mite uma rejeição ao mundo fechado da definição do rei.
Só haverá esperança se se realizar uma mudança, de um
mundo controlado para um mundo de fidelidade à pa­
lavra falada e ouvida. Este novo enfoque coloca Israel
numa situação diferente, modifica o exílio, o qual, a par­
tir de agora, não é mais um eterno destino, mas um lugar
onde a esperança pode nascer na forma mais admirável.

88
Não existe norma objetiva que possa impedir um profe­
ta da esperança de se tornar demasiado imponente ou
vulgar ou ainda simplesmente, um orador em favor de
pão e circo. É provável que a única medida da fidelidade
seja o fato de a esperança vir sempre depois da angústia
e que o orador desta expressão pública deva conhecer
e participar da angústia que permite o aparecer da es­
perança. Uma esperança manifestada sem conhecimento e
sem participação na angústia é, provavelmente, uma fal­
sa esperança que não atinje o desespero. Thomas Raitt
provou que justamente aqueles que conhecem a morte
mais dolorosamente são os que podem falar da esperan­
ça com mais vigor.

c) O profeta deve falar sobre a esperança em me­


táforas, mas sobre a real novidade que advirá para re­
definir nossa situaçáo deve falar concretamente. O pro­
feta deve falar não somente sobre o abandono praticado
por Israel para com seu Deus, mas, especificamente, deve
falar sobre a Babilônia. Falar sobre a novidade, no exílio,
que nasce não de uma piedade feliz ou de um ódio para
com a Babilônia, mas do zelo permanente de Iahweh
para com seu povo. Este zelo tão estranho ao mundo de
nossos sentidos inclui a rejeição e o exílio do povo e
até o exílio do próprio Iahweh. É um zelo que acom­
panha o povo, fazendo da angústia e do futuro do povo
futuro e angústia do próprio Iahweh. A esperança da
qual se deve falar é uma esperança radicada na certeza
de que Deus não abandona, mesmo quando apareça evi­
dência deste abandono. A esperança está radicada no
poder de Deus servir-se até da insensatez de Israel. O
passado desta comunidade, no que se refere à esperança,
gira em torno de acontecimentos esperançosos, como no
caso de Caim, que apesar de ser assassino do próprio
irmão, no entanto aparece marcado com sinais de pro­
teção; como no caos da corte real que termina com os

89
louvores de Israel; ou ainda, em José rejeitado por seus
irmãos e que, no entanto, ao vê-los, consola-os afirman-
do-lhes que em tudo Deus faz o bem. No caso de Sa­
lomão, que nasce do amor vulgar de um casal real, e,
depois de tudo, encontramos palavras que contradizem
as amarguras do exílio.

(4) A linguagem esperançosa da profecia que atin­


ge o desespero do rei é a linguagem da intuição. É uma
linguagem que impele o povo para novas percepções e
para um novo júbilo, exatamente quando tinha abando­
nado quase tudo e nada mais havia de que se alegrar.
O discurso da intuição é contra o desespero, da mesma
forma que o discurso da angústia é contra o torpor. Acre­
dito que, bem compreendida, não existe linguagem mais
subversiva ou profética do que a prática da doxologia,
que coloca a realidade de Deus bem no centro do cenário,
do qual julgávamos que ele fugira. Podemos estar certos
de que o discurso da intuição é a maior força energizado-
ra de Israel e os profetas de Deus são chamados a pôr
em prática este mesmo discurso energizador.
O Segundo Isaías apresentou-se como um modelo
adequado de profeta da esperança para reis em desespero.
Este grande poeta do exílio compreendeu que o discurso
ordenado e que reflete a mentalidade passiva de seus
contemporâneos não valia a pena. Provavelmente acom­
panhou e conheceu o pathos das Lamentações e do des­
gosto de Jó 7. Contudo, ele supera este desgosto e este
7 A riqueza da linguagem do Segundo Isaías sugere que o poeta não
somente viveu, mas conheceu e utilizou a literatura de seu tempo. As
ligações entre Jó e o Segundo Isaías, no referente à teologia da criação,
foram observadas por Robert Pfeiffer, em “Dual Origin of Hebrew Mo-
notheism”, Journal of Biblical Literature 46 (1927): 193-206. A possibili­
dade de que o Segundo Isaías seja uma resposta ao estado de humilhação
revelado nas Lamentações merece pesquisa. Observe-se que a poesia do
Segundo Isaías começa com as palavras: “Consolai, consolai o meu po­
vo... ” que são, provavelmente, uma resposta àquelas outras das Lamen­
tações: “ .. .não há quem a console... ”

90
pathos para chegar aos discursos da esperança e da do­
xologia.
Admito que Thomas Raitt tenha deixado bem claro
que o segundo Isaías tem como precursores indispensá­
veis Jeremias e Ezequiel. Porém, mais do que estes e do
que qualquer outro, o Segundo Isaías é que anuncia a
Israel, no exílio, a verdadeira novidade. Seu anúncio, an­
tes de tudo, depende da audácia de sua personalidade e
de sua poesia. Deve ter sido uma personalidade notável,
capaz de dizer coisas que contradiziam toda a percepção
de seu povo. Em segundo lugar, seu discurso prende-se
à realidade de que seu tempo era realmente um tempo
de novidade, durante o qual as verdades antigas estavam
se desmoronando. A Babilônia estava se acabando, a Pér­
sia estava surgindo e o poeta conheceu exatamente o
momento histórico. Em terceiro lugar, seu discurso de­
pende da realidade e da confissão da radical liberdade de
Deus, liberdade não apenas nos conceitos e nas expecta­
tivas de seu povo, mas nas ações passadas do próprio
Deus. Como bem observa Reinhold Niebuhr, Deus tem
coragem de mudar8. Sua liberdade não é qualquer acon­
tecimento piedoso ou espiritual, mas é uma liberdade pú­
blica e visível. Ao falar do perdão, Raitt diz: “Jeremias
e Ezequiel começaram anunciando uma transformação
revolucionária na vontade e no plano de Deus, com re­
ferência à história de seu povo (...) um novo ‘jogo’
ou um novo regime começou (...) Deus está agindo
agora sob novos planos”9. Por isso, estas são as primei­
ras palavras do Segundo Isaías aos exilados, palavras de
perdão:
8 A citação é parcial e chistosa e refere-se à biografia de Reinhold
Niebuhr em June Bingham, Courage to Change, New York: Scribner’s,
1961. Esta mesma frase é não somente aplicável ao Senhor de Israel,
mas é também uma importante afirmação profética contra a imutabilidade
de Deus, defendida pela consciência real, a qual aspira a uma perene es­
tabilidade.
9 Raitt, A Theology of Exile, pp. 188-89.

91
Consolai, consolai o meu povo,
diz o vosso Deus,
falai ao coração de Jerusalém e dizei-lhe
em alta voz
que sua servidão está cumprida,
que sua iniqüidade está expiada,
que ela recebeu da mão de Iahweh
paga dobrada
por todos os seus pecados (Is 40,1-2).

Os desconsolados são consolados. Não é uma pala­


vra vazia ou uma idéia geral sobre um Deus bondoso.
A palavra do profeta é concreta e exata. É a resposta a
Raquel, que, em Jeremias, recusa ser consolada (31,15).
Claramente ele diz o contrário do que encontramos nas
Lamentações, nas quais afirmava que “não há quem a
console” (Lm 1,2.16.17.21). Não é fácil encontrar con­
solo no exílio, mas nesta introdução o poeta nega-o com­
pletamente. O Deus da liberdade está acabando com esta
situação e agora, há uma anistia que era até impensável
antes do discurso, que levou Israel á conhecer o que des­
conhecia antes. A esperança nasce do discurso, antes do
qual Israel não tinha esperança. Não somos, porventura,
todos assim? antes de recebermos a palavra, desconhece­
mos qualquer futuro, qualquer possibilidade de novida­
de. Enquanto não ouvimos a palavra vivemos no deses­
pero. E o exílio é, antes de tudo, o lugar onde a palavra
foi silenciada e o discurso de Deus banido. Contudo o
poeta fala da esperança exatamente no exílio.
A esperança anunciada não é apenas um belo senti­
mento ou um estado espiritual interior, mas é radical­
mente fundamentada no conhecimento da situação terre­
na de Israel. O poeta se utiliza de um anúncio verda-
deiramente político, duas vezes. Em primeiro lugar, man­
da os guardas anunciarem a nova realidade:

92
Sobe a um alto monte,
mensageira de alegres novas a Sião;
Eleva a tua voz com vigor,
mensageira de alegres novas a Jerusalém;
eleva-a, não temas; dize às cidades
de Judá;
“Eis aqui o vosso Deus!”
Eis aqui o Senhor Iahweh: ele vem
com poder (Is 40,9-10).

Observemos que o poeta poderia ter temido pro­


nunciar palavras tão subversivas, mas não temeu. Ele está
ali para fazer o anúncio da transformação do exílio.
A nova realidade é que aquele, que parecia ter sido posto
de lado como impotente e inútil, agora reclama seu tro­
no. E ele faz isto justamente no exílio, bem diante dos
olhos e ouvidos dos babilônios. O poeta leva Israel a
um festival de entronização, exatamente como Jeremias
o levara a um funeral. Enquanto este último cenário dei­
xou Israel numa tristeza de prostração, o Segundo Isaías
coloca Israel numa alegria cheia de vida. Enquanto Je­
remias procura penetrar no mundo do torpor, o Segundo
Isaías tratou do desespero. Ambos falaram da tradição
libertadora de Moisés contra a mentalidade régia que não
permitia ao povo nem tristeza nem esperança.
Vamos fixar a metáfora da entronização. Não a aban­
donemos nem a reduzamos demasiado concretamente. O
poeta não está mudando a política externa, mas fazendo
apelos à imaginação de Israel. Afirma uma novidade tão
antiga que Israel já a esquecera, mas ainda está lá no
fundo da memória. O cântico exaltante de Moisés termi­
nava com uma entronização: “Iahweh reinará para sem­
pre e para sempre” (Ex 15,18). É como se o Segundo
Isaías procurasse trazer Israel de volta à doxologia de
Moisés, mas não é apenas a recordação de uma lembran­
ça. É uma tomada do poder que arrasta consigo a ne­

93
gação de legitimidade daqueles que defendem e determi­
nam a realidade. Os outros defensores do poder e da rea­
lidade, nesta passagem, estão como os antigos egípcios,
mortos nas praias do mar. Este ato público do discurso
poético restabelece o destino de Israel. Um exílio com o
soberano coroado é muito diferente de um exílio sem rei,
pois significa que a dura situação pode ser resolvida.
E que Deus é este, que agora reclama o poder! É
tão terrivelmente másculo como um lutador com as man­
gas arregaçadas para a luta e, ao mesmo tempo, maternal
e terno como quem carrega nos braços um cordeirinho.
Para os exilados ele é tudo isto. Haverá o conforto de
grande força, dando ênfase ao forte e haverá conforto na
nutrição, dando ênfase ao com. Agora Israel se encontra
numa situação nova, na qual é possível cantar outra vez.
Alguma vez já estivestes numa situação, na qual, por
causa da raiva, da depressão, da preocupação ou da exaus­
tão, não fostes capaz de cantar? Experimentastes, por­
ventura, uma situação semelhante? Numa situação dessas
seria necessário dirigir-se à causa da mudança das coisas,
seria necessário chamá-la pelo nome, nela pôr a atenção,
reconhecê-la e dela apoderar-se. O profeta torna possível
entoar cânticos, e o império reconhece que aqueles que
ousam entoar seus cânticos não aceitaram a definição do
rei referente à existência. Se o não cantar é um indicador
de exílio, então estamos nele, porque somos um povo
que raramente canta. O profeta desperta a esperança de
voltarmos a cantar. A fórmula da segunda entronização
é ainda mais familiar:

Quão graciosos, sobre os montes,


são os pés do mensageiro,
do que anuncia a paz,
do que proclama boas novas e anuncia
a salvação,
do que diz a Sião: “O teu Deus reina” (Is 52,7).

94
Aquele mesmo que parece ter deixado de proteger, as­
sume agora a proteção. Aquele que em Jeremias parecia
amargurado e derrotado, é o mesmo que agora vai inver­
ter a história. E o poeta sabe muito bem que a inversão
real do poder só advem através do sofrimento (Is 49,
14-15). O júbilo pertence àqueles que passaram pelo
abandono e pelo sofrimento. É uma curiosa caminhada
para o reinado, mas é como acontece na história de Israel.
O que o Segundo Isaías realiza é dar a Israel for­
ças para uma fé nova. Mas é preciso observar a forma
radical, ousada e mesmo revolucionária que esta força
apresenta. Aqui não há truques psicológicos nem mo­
mentos de meditação fáceis, porque os problemas não
são privados, pessoais, espirituais ou internos. A única
força séria, energizadora, pedida ou oferecida é o conhe­
cimento de Deus em toda sua liberdade, o desfazer das
estruturas exaustas e o destronar das forças cansadas.
(Jesus, em seu discurso sobre o cansaço e o alívio da
mudança de jugo [Mt 11,28-30] é fiel ao Segundo
Isaías). O lamento é pela perda do verdadeiro reinado,
enquanto a doxologia é a aceitação do verdadeiro rei e
a rejeição dos impostores.
Como é dito freqüentemente, sugiro que estas duas
formas de entronização de Isaías em 40,9-11 e em 52,7
são as fontes de onde nasce o resto da poesia. O restan­
te é uma exegese do reinado há pouco afirmado. A fun­
ção do poeta é levar os exilados a uma decisão sobre a
soberania, porque eles não querem escolher. Pessoas de­
primidas não querem agir, pessoas desesperadas pensam
que nada vale a pena. Mas o primeiro passo para sair do
exílio e do desespero é a aceitação de um soberano fiel
e a partir daqui o impulso para a decisão.
Em primeiro lugar, ele põe em contraste os dois ti­
pos de deuses numa forma arrogante. A descrição do
primeiro tipo nos desagrada:

95
Bel caiu por terra, Nebo ficou prostrado,
os seus ídolos estão entregues aos animais
selvagens e às bestas de carga,
esta carga que leváveis é um fardo para
a besta cansada (Is 46,1).

Devem ser transportados e tornam-se peso morto


para um exilado. Ponhamos isto em contraste com o Deus
que, em sua liberdade, não necessita de ninguém para
carregá-lo.
“Ouvi-me, vós da casa de Jacó,
tudo que resta da casa de Israel,
vós a quem carreguei desde o seio materno,
a quem levei desde o berço.
Até a vossa velhice continuo o mesmo,
até vos cobrirdes de cãs continuo
a carregar-vos:
eu vos criei e eu vos conduzirei,
eu vos carregarei e vos salvarei (Is 46,3-4;
cf. 43,22-24).
Se o que falta é força, é melhor procurar um Deus
que é livre, apto e que assume a responsabilidade por
sua divindade. Encontramos uma grande ironia na ima­
gem de um exilado cansado, desesperado, e sendo a se­
melhança de um deus, que tem de ser carregado porque
também está fatigado. Mas os fiéis do outro Deus, estão
cheios de energia, são fortes e capazes de levar uma vida
fiel. O contraste que estou descrevendo não é novo e
já foi muitas vezes observado, mas não quero esquecer
a dimensão sociopolítica do poema, cuja adequação à
consciência do rei e cuja definição da realidade torna o
povo exausto e sem esperança. Nada significa declamar
um poema tão radical, a não ser que tenhamos clareza so­
bre a luta por uma definição da realidade que sempre
está junto às realidades do poder.
96
O contraste e o ridículo dos deuses da Babilônia é
posto mais em foco pela passagem em que madame Babi­
lônia é ridicularizada. Que tipo de mulher é a Dama Ba­
bilônia? Uma senhora importante acompanhada de sua
corte? Uma mulher velha e tirânica? Uma senhora com
uma mansão e conservando esta mansão à altura? Nada
disto, porque a história de Israel com Iahweh significa
agora o fim desta história imperial:

Desce e assenta-te no pó,


virgem, filha de Babilônia,
senta-te em terra — já não tens trono —,
filha dos caldeus, .•
porque nunca mais te chamarão meiga
e delicada.
Toma da mó e mói a farinha;
despe o teu véu,
ergue a cauda da tua veste e descobre
as tuas pernas,
atravessa os rios.
Apareça a tua nudez
seja vista a tua vergonha (Is 47,1-3).

O poeta se empenha numa espécie de guerrilha que


é sempre necessária em favor do povo oprimido. Em pri­
meiro lugar, o inimigo deve ser ridicularizado e atingido,
para que assim ele seja desobedecido e visto como al­
guém que não tem direito de reclamar fidelidade nem é
capaz de cumprir com as promessas feitas. Os palácios
não possuem vida verdadeira, a ninguém causam temor,
neles ninguém deposita confiança e numa única palavra,
não merecem ser honrados.
Depois que os deuses da Babilônia foram escarne­
cidos, depois que a cultura babilônica foi ridicularizada
e depois que o rei destronado foi re-entronizado, depois
de tudo isto, a história sofreu uma inversão. Um funeral
97
7 - A imaginação profética
transforma-se em festival, a tristeza em canto de louvor e
o desespero em surpresa. Pode não passar de um sim­
ples ato de culto, mas não nos esqueçamos de que o culto
conservado junto com a experiência histórica pode dar
muita energia a um povo. Por exemplo, observemos as
igrejas negras e os movimentos pelos direitos civis ou a
resistência pela liberdade na América Latina. O culto
pode tornar-se uma plataforma que prepara a inversão
que as autoridades julgam impossível. É a inversão na
qual a austera classe média, entre nós, não acredita e ao
mesmo tempo, é a inversão que surpreende os que não
têm forças. Estas inversões não são fáceis, têm sempre
um alto custo e jamais se apresentam com nitidez e cla­
reza. Mas não devemos subestimar o poder do poeta. As
inversões podem começar com uma mudança de lingua­
gem, com a redefinição de um campo perceptual, ou com
uma alteração na consciência. De modo que sua poesia
fala sobre a inversão ainda no exílio e as imagens trans­
formam-se. Três delas são de particular importância:
a) Quando o novo rei toma as rédeas do governo,
é ocasião de cantar um novo cântico (Is 42,10). Costu­
ma ser tempo de novas canções sempre que um novo
rei começa a reinar e a partir daí não se convidam mais
os peritos em lamentações, que têm a arte de chorar
quando querem. Terminou o funeral e agora é tempo de
festa. É tempo para as crianças cantarem novos cânticos
e perceberem que as situações são diferentes. As antigas
canções eram cantadas em presença dos que zombavam
de nós (SI 137,3) e eram para nós humilhação, porque
falavam de um passado que falhara. Mas a canção nova
fala de uma realidade social nova, da mesma forma que
por trás de todo ato de liberdade, existe uma canção li­
vre. A força nasce do cântico que proclama Iahweh em
seu trono e Babilônia no túmulo. Abraham Heschel ob­
servou que somente o povo da aliança pode cantar. E o

98
tempo deste cântico novo surge quando a aliança torna-
-se o início de outra forma de realidade.
b) Uma segunda imagem é a do parto de quem era
estéril. A esterilidade é, entre nós, um tema oportuno,
e mais do que a televisão, a qual é terra não cultivada.
Nossa sociedade está cheia de eunucos de ambos os se­
xos, cuja masculinidade e feminilidade são assimiladas
pela mesma sociedade. Não há esperança, não há futuro
e por isso não há filhos. Não há força suficiente para dar
à luz ou para procriar, e quem quer gerar mais filhos
para a Babilônia? Nossa história começa sempre com as
estéreis, como Sara (Gn 11,30), como Rebeca (Gn 25,
21), como Raquel (Gn 29,31), e como Isabel (Lc 1,7).
Dentre estas, quer vivas quer mortas, (Hb 11,12), sem­
pre surge o dom admirável. A impossibilidade de dar à
luz é uma coisa curiosa, e sabemos através de toda nossa
ciência que as razões, as mais das vezes, são históricas,
simbólicas e interpessoais. Muitas vezes são as notícias,
— boas notícias, a doxologia, que dão forças para efetuar
e levar um novo futuro à luz.
Uma tal inversão oferece ao poeta oportunidade de
falar a Israel de um novo futuro:
Entoa alegre canto, ó estéril,
que não deste à luz;
ergue gritos de alegria, exulta
tu que não sentiste as dores de parto,
porque mais numerosos são os filhos
da Abandonada
do que os filhos de uma esposa, diz Iahweh (Is 54,1).
As mais antigas promessas estão vivas de novo e
Babilônia não pode mais fazê-las parar. Sempre que os
problemas são postos de tal forma que seja a palavra de
Deus contra Babilônia, não há contestação. Babilônia
não pode fazer parar o poder de Deus. Ele será fiel em
suas promessas, mesmo à estéril Sara.

99
c) Há uma terceira imagem, a da alimentação. Se
comerdes o páo de Babilônia por muito tempo, sereis
destruídos. Houve alguns que apreciaram o pão de Babi­
lônia e tornaram-se babilônios, mas os israelitas que se
sentiam exilados não se acomodaram àquele alimento im­
perial. É por isso que o poeta, em sua colocação sobre
o pão alternativo, desfaz da arte babilônica de fabricar
o pão:

Ah! todos vós que tendes sede, vinde à água.


Vós, os que não tendes dinheiro, vinde,
comprai e comei; comprai sem dinheiro,
e sem pagar, vinho e leite.
Por que gastais dinheiro com aquilo
que não é pão,
e o produto do vosso trabalho com aquilo
que não pode satisfazer? (Is 55,1-2).

Quando ele acaba de falar sobre o pão, numa hábil


mudança, faz referência à melhor promessa feita a Israel
(a Davi), à glória de Iahweh (às custas de Marduc), e
ao seu retorno:

Escutai-me e vinde a mim,


cuvi-me e haveis de viver.
Farei convosco uma aliança eterna,
assegurando-vos as graças prometidas a Davi (Is 55,3).

É claro que hoje não tem sentido falar em novos


cânticos, muitos nascimentos, em pão novo. Tudo são
metáforas que parecem não atingir a realidade das armas
e arsenais de hoje. Isto é um fato, mas também devemos
observar que devem ter parecido palavras sem sentido,
quando foram ouvidas pela primeira vez na Babilônia im­
perial e instruída. As armas e os grandes reis não se ren­
dem pronta e imediatamente. O profeta pretende povoar

100
a imaginação de seu povo, e isto transforma o desespero
em energia.
O Segundo Isaías oferece a seu povo um presente
extraordinário. Devolve-lhes a fé, mediante a rearticula-
ção da antiga estória. Dá-lhes a capacidade lingüística de
enfrentar o desespero antes de serem envolvidos pelo
mesmo. Fora da consciência dominante, ele constrói uma
plataforma, sobre a qual é possível uma nova humani­
dade. Um cínico poderia dizer que, realmente, nada mu­
dou. E, na verdade, nada mudou se se considera mudan­
ça apenas a queda dos impérios e que esta deva acontecer
rapidamente. Mas os profetas não são mágicos. Seu sa­
ber e seus anúncios são feitos apenas com palavras que
despertam para alternativas e velhos instrumentos não
funcionam bem em situações críticas. Isto acontecerá so­
mente com o reconhecimento de que a vida não nos foi
dada totalmente e que há alguém que reservou para si
próprio sua liberdade soberana, independente de nós, e
a nosso favor. Ele mantém sua atividade independente
de nós e da Babilônia. A divindade de Deus mostra-se
como libertação dos exilados e, por isso, Gerhard von
Rad estabelece como o mais importante de todos os tex­
tos, dos quais não deveriamos falar antes de nos deci­
dirmos a crer, o seguinte:
Não fiqueis a lembrar coisas passadas,
não vos preocupeis com acontecimentos antigos.
Eis que vou fazer uma coisa nova,
ela já vem despontando: não a percebeis? (Is 43,18-19).
Os que ainda não experimentaram conforto, difi­
cilmente podem crer que tal coisa seja possível. Mas é
claro que não haverá alegria pessoal nem justiça pública,
nem arrependimento conjunto, nem humanidade fami­
liar, enquanto houver novidade que não possamos criar.
Há ainda um segundo texto grandioso, que julgo
muito relacionado com o cansaço entre nós, cansaço de

101
não termos nos decidido ou de termos tomado o caminho
da Babilônia. Primeiramente sobre o Senhor:

Ele não se cansa nem se fatiga,


a sua inteligência é insondável.
É ele que dá forças ao cansado
que prodigaliza vigor ao enfraquecido (Is 40,28-29).

Depois a promessa a todos nós exilados:

Mesmo os jovens se cansam e se fatigam;


até os moços vivem a tropeçar,
mas os que põem a sua esperança em Iahweh
renovam as suas forças,
formam asas como as águias,
correm e não se fatigam,
caminham e não se cansam (Is 40,30-31).

O poeta nos coloca a nós mesmos em contraste,


quando confiadamente esperamos e quando sem esperar
no Senhor, avançamos. Aqueles que com suas próprias
mãos tomam a iniciativa, quer num ateísmo orgulhoso
quer num ateísmo desesperado, não percebem sentido
nas palavras, que parecem fingidas e sem força. O con­
trário acontece aos que esperam, a saber, força renovada,
subidas, corridas, caminhadas. Tudo isto acontece quan­
do se espera 10. Tudo isto está no receber e não no tomar,
no herdar e não no apoderar-se, no glorificar e não no
confiscar. Tudo finalmente consiste em estarmos convic­
tos de que a iniciativa não partiu de nós e por isso esta­
10 É claro que, uma tal espera, não é passividade. Ler as sugestões
de Dorothee Soelle em Revolutionary Patience, Maryknoll, N. Y., Orbis
Books, 1977, e o pensamento mais antigo de Christopher Blumhardt ex­
presso na frase: “Warten und Eilen! (Vigiando e Esperando!) Com re­
ferência à dialética do agir e do esperar, contida nesta palavra de Blum­
hardt, ver Karl Barth, Action in Waiting, Refton N. Y., Plough Publishing
House, 1969.

102
mos mais seguros. Claro que isto é mais que uma crítica
a Babilônia. É também uma crítica aos que querem reco­
nhecer como próprio todo o esforço feito e é também
uma admoestação aos que se estabelecem no exílio como
se fora seu próprio lar.
A novidade provinda de Deus é a única fonte séria
de energia. E esta energia, pela qual o povo aspira é exa­
tamente aquela consciência real, que nem Salomão nem
Nabucodonosor pôde dar. O profeta ou a profetisa não
devem subestimar a urgência de seu chamado, certos de
que não há outras fontes de novidade. Tenho certeza de
que isto pode parecer um aproximar-se perigosamente
da passividade, como o faz frequentemente a confiança
e que se pode parecer estar à margem de uma graça sem
valor, como acontece geralmente. Mas é um risco que
deve ser corrido porque os exilados devem aprender que
a esperança não nasce em nós, mas que é dada a nós.
E sempre que nos é dada, ficamos surpreendidos.
Jeremias e o Segundo Isaías juntos, ambos poetas
do pathos e da intuição falam de lamentações e de doxo-
logias. Não podemos separar um do outro. Jeremias in­
terpretado sozinho deposita a fé na morte, onde Deus
não pode estar. O Segundo Isaías também leva-nos a
imaginar que há conforto sem lágrimas e sem choro. Mas
é claro que somente aqueles que se angustiam cantarão
novos cânticos. Sem sofrimento o novo cântico será, pro­
vavelmente, estridente e apenas mais uma fanfarronada
do rei.

103
5
CRÍTICA E PATHOS
EM JESUS
DE NAZARÉ

A consciência dominante deve ser criticada radical­


mente da mesma forma que o grupo dominante deve ser
desfeito. O objetivo de uma comunidade alternativa, que
apresenta uma consciência também alternativa, é justa­
mente aquela crítica radical e aquele desfazer final do
domínio. Ao refletir sobre a ação de Jeremias, procurei
demonstrar que a cultura régia de seu tempo estava en­
torpecida e, por isso, inapta para enfrentar a possibili­
dade de qualquer mudança histórica e drástica, e que
a única forma de penetrar naquela consciência, entorpe­
cida pela negação, era a apresentação pública da angústia.
E Jeremias em sua poesia angustiada procura levar Israel
a perceber o fim de um mundo social que o orgulho ré­
gio, por todos os meios, lutava por perpetuar. Se quere­
mos compreender a crítica dos profetas, devemos com­
preender também que sua expressão característica é a
angústia e não a cólera. O essencial daquela expressão é
ajudar as pessoas a refletirem sobre sua própria angústia,
que elas não podem negar. Pensar assim sobre a crítica
dos profetas, nos leva à idéia de que eles estavam per-
feitamente cientes de como a mudança se efetuaria e de
que foram extremamente sensíveis às formas mais apro­
priadas da abertura e da resistência.
104
Queremos expor, neste capítulo, como a crítica do
ministério profético se relaciona com Jesus de Nazaré.
Está claro que Jesus não pode ser visto apenas como um
profeta, pois o termo, como qualquer outro, não corres­
ponde à realidade histórica de Jesus. No entanto, entre
outras funções, é claro que Jesus agiu também como
profeta. Tanto com seus ensinamentos, como com sua
própria presença, Jesus de Nazaré apresentou uma crítica
que era um ultimato à consciência dominante. De fato,
ele destruiu a cultura dominante e reduziu a nada suas
exigências. A forma como realizou aquela crítica extre­
ma foi solidarizando-se com os marginais e assumindo a
vulnerabilidade da mesma solidariedade. E esta só é vá­
lida quando marcada pela falta de ajuda conhecida e
experimentada pelos mesmos marginais. Por isso quero
repensar as diversas dimensões daquela crítica extrema.
(1) O nascimento de Jesus em si já representa uma
crítica decisiva à consciência dominante. Sua solidarie­
dade com os pobres, narrada por Lucas e a apresentação
feita por Mateus do conflito desgastante das autoridades,
ambas mostram o emergir de uma nova consciência. Não
é necessário esforço para harmonizar as duas narrativas
que seguem direções diferentes, por motivos diferentes,
para chegarem também a afirmações diferentes. Apesar
de tudo, as duas narrativas se complementam perfeita-
mente para destruir, pela crítica, e comunicar energia
pela intuição.
A destruição a que fizemos referência se encontra,
na versão de Mateus, no capítulo 2,16-23. O episódio
justapõe a fúria destruidora do pseudo-rei (v. 16) e a
angústia da tradição profética (v. 17). A raiva de Hero­
des é apresentada como o último suspiro do estado an­
tigo e como uma desesperada tentativa de nele se firmar.
Como no Israel antigo, os reis se caracterizam pela
não-aceitação do fim do velho estado e, em seu torpor,
por empreender alguns esforços pela perpetuação do que,

105
na realidade, já chegou ao fim. Por isso, Herodes pren­
de-se à sua própria decepção e à sua própria recusa, usan­
do seus melhores talentos, mas tudo é inútil, pois ele
mesmo não pode deter o fim. Em contraste com isso,
encontramos a compaixão de Raquel, em Jeremias. A fú­
ria do rei chega a um fim com dor e lamentação. É fun­
ção da tradição profética afligir-se com o fim, o mesmo
fim que o rei não pode enfrentar, não pode deter e pelo
qual não pode se angustiar.
No capítulo 1 de Mateus, os versículos 16-17 re­
ferentes ao rei e ao profeta são introdutórios, ao passo
que os versículos 18-23 fazem a ação avançar. E o con­
traste é flagrante, o rei está morto e o anjo anuncia o
futuro da criança. É claro que Herodes foi vencido. Não
é realmente rei. Jesus é o rei verdadeiro (2,11) e como
tal, apresenta-se como uma negação total do que não era
rei. O choro de Raquel é causado pelo extermínio ao
qual Herodes parecia querer levar o povo, mas finalmen­
te, quem é exterminado é o próprio Herodes. De fato,
a tristeza de Raquel refere-se tanto ao ultimato da crítica
como à novidade que está para surgir desta mesma crí­
tica. O fato de Jesus apresentar-se como a alternativa
está assinalado no versículo 23 !. É um nazareno, o que
significa, com certeza, que é um marginal, e no entanto,
o único fiel. Geograficamente é marginal (v. 22), pois
estão separados desde o final da realeza e, também, reli­
giosamente é marginal (cf. Nm 6,1-21), pois permane­
cerá sempre como uma realidade contraditória e que des­
truirá finalmente a situação dominante.
1 O mesmo contraste e a mesma alternativa entre o rei poderoso e o
novo pretendente encontramos na forma atual em Jr 34,35. As duas nar­
rações são, certamente, justapostas intencionalmente. Em Jr 34 (não dife­
rente de Herodes) os espertos senhores do mundo fazem um jogo mortal
com o próprio mundo e a liberdade e, no fim, são sentenciados à morte
porque o projetado jogo não pode ter sucesso. Em contraste, no capítulo
35, os recabitas que nada têm e nada exigem, exceto a decisão de obe­
decer, terminam sendo abençoados. A origem nazarena de Jesus e o modo
de vida dos recabitas sugere um paralelo que não parece meramente casual.

106
De forma semelhante, a descrição de Lucas da re­
velação aos pastores, verdadeiros representantes dos mar­
ginais, traz uma notícia da substituição do antigo regime.
É por isso que eles se enchem de admiração e medo (Lc
2,17-20). A intromissão representada pelo nascimento
de Jesus causa uma inversão radical:

. .. dispersou os homens de coração orgulhoso.


Depôs poderosos de seus tronos,
e a humildes exaltou.
Cumulou de bens a famintos,
e despediu ricos de mãos vazias (Lc 1,51-53)2.

O nascimento de Jesus anuncia um fim severo da


realidade criada por Herodes e que parecia destinada a
eternizar-se. Faz surgir uma situação histórica nova para
os marginalizados, situação que ninguém pôde antecipar.
Enquanto a versão de Lucas celebra o emergir da novi­
dade, a de Mateus traz angústia para o centro da narrati­
va. A novidade chega trazendo dor, pena e lágrimas, cau­
sadas pelo extermínio, ordenado desesperadamente pelo
rei com o fim de salvar-se a si mesmo. Lágrimas pelas
vítimas daquele fim, porque o rei não morrerá sozinho.
Levará consigo aqueles que, para ele, são ameaça. De
modo que o começo de Jesus traz um fim violento, pois
tudo que chega a um fim tem de pagar um tributo.

(2) Herodes raciocinou corretamente. Com efeito,


a vinda de Jesus significou o fim de uma situação. Há
dois textos comumente citados como programas da pre­
gação de Jesus. Em Mc 1,15 encontramos o anúncio da
2 Consultar a perspicaz colocação de Paul Minear, a respeito do su­
mário de Lucas, em To Heal and to Reveal, New York, Seabury Press,
1976, pp. 63-77. O Magnificat é visto como um dos textos de Lucas que
apresentam uma teologia da necessidade do impossível. Outros textos
que sugerem a mesma idéia, segundo Minear, são: 4,18-19;6,20-22;7,22 e
14,21.

107
chegada do reino. É claro que está implícito neste anún­
cio um outro que lhe é correlato, a saber, que os reinos
terrenos têm seu fim e são substituídos. Em Lc 4,18-19,
ele anuncia que uma nova idade estava começando e,
ao mesmo tempo, este anúncio faz uma severa crítica
a todas as forças e agentes da ordem atual3. Sua mensa­
gem era para os pobres e não para aqueles que os conser­
vavam na pobreza e se beneficiavam da mesma. Dirige-
-se aos cativos (e lembremos: aos escravos presos), e
não aos que desejavam que aquela situação continuasse
imutável. Lembrou os oprimidos, e estes jamais existi­
ríam se não existissem opressores.
Implícitos em sua pregação estavam estes dois anún­
cios fundamentais. O ministério de Jesus é, ao mesmo
tempo, uma crítica que conduz a uma demolição radical.
E como é comum, os protetores e aproveitadores da esta­
bilidade atual são acentuadamente sensíveis a qualquer
mudança que possa questionar ou desafiar a ordem pre­
sente. Muito cedo, Jesus é visto exatamente como um
claro e atual perigo àquela ordem, e aqui está o problema
da novidade promissora do Evangelho. Jamais promete
sem ameaçar, jamais começa sem o término de alguma
coisa e finalmente, jamais oferece prêmios sem fixar al­
tos custos. A crítica radical de Jesus pode ser resumida
em alguns fatos mais significativos:

a) Sua prontidão para perdoar pecados (Mc 2,1-


11), a qual provocou admiração (v. 12), pareceu blas­
fêmia, o que quer dizer, uma verdadeira ameaça às san­
ções religiosas do tempo. Ameaça era o fato de Jesus
assumir o papel de Deus (v. 7) e assim pretender de­
3 Consultar o Autor e a obra citada na nota anterior, pp. 63-65,
sobre o tema da inversão de situações, representada por este texto tão
característico de Lucas. A esperança que transparece no texto, lembra o
espírito, “o céu”, isto é, tudo aquilo que a ordem social deste tempo
não pode controlar.

108
mais. Não esqueçamos que em tudo isto estava uma
crítica radical à sociedade. Hannah Arendt4 observou
que o perdoar pecados foi a atividade mais perigosa de
Jesus, porque se uma sociedade não possui um disposi­
tivo para perdoar, seus membros estarão destinados a vi­
ver sempre sob o peso das conseqüências de qualquer
violação. Por isso a recusa de perdoar o pecado (ou o
domínio do dispositivo do perdão) significa um poder
social muito grande. Se a pretensão de Jesus parece ter
sido impressionante, sob o ponto de vista religioso, a
ameaça às formas aceites do controle social foi ainda
maior.
b) O poder de Jesus de curar e a facilidade com
que o executou no sábado (Mc 3,1-6) preparou a cons­
piração que o mataria (v. 6). A violação está relacio­
nada não com a cura, mas com o sábado. No capítulo
2,23-28, ele já levantara o problema e aparece clara­
mente que para Jesus a guarda do sábado tinha se tor­
nado uma forma de escravidão. Não é necessário dizer
que a objeção parte justamente daqueles que controla­
vam o sábado e dele se beneficiavam. De forma que o
sábado se tornara um sinal sagrado da situação social e
questionar exatamente aquele dia perturbava toda a si­
tuação. Aquele dia que unia toda a ordem social, agora
era motivo de liberdade e liberdade que rejeitava o que
fora estabelecido5.
4 Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, University of Chi­
cago Press, 1959, pp. 236-43: “Quem descobriu a função do perdão no
domínio dos negócios humanos foi Jesus de Nazaré” (p. 238). “Sua in­
sistência sobre o ‘poder de perdoar’ causa mais impacto no povo do que os
próprios milagres” (p. 239, n. 76).
5 A respeito do Sabá como sinal da liberdade da era messiânica,
consultar Jürgen Moltmann, The Church in the Power of the Spirit,
New York, Harper and Row, 1977, pp. 261-78. Moltmann cita Fromm:
“A morte está suspensa, e é a vida que regula o dia de Sábado”. Cf.
Hans Walter Wolff, Anthropology of the Old Testament, Philadelphia,
Fortress Press, 1974, pp. 135-42, sobre as implicações sociais fundamentais
do dia.

109
c) Jesus estava disposto a comer em casa daqueles
que eram rejeitados (2,15-17), e isto foi visto como
uma ameaça séria à moral da sociedade. Aqueles re­
jeitados eram justamente um resultado da organização
legal, determinando o que era admissível e não admis­
sível, puro e impuro, certo e errado. Passar sobre estes
limites do certo e do errado significava que na distri­
buição do perdão, o errado ter ia o mesmo direito que
o certo. Por conseguinte, quaisquer distinções significa­
tivas eram destruídas.
d) Finalmente, as palavras de Jesus sobre o templo
(Mc 11,15-19; Jo 2,18-22) foram um anúncio verdadei­
ramente sinistro, pois falou abertamente de sua destrui­
ção. E ao fazê-lo, expressou o desejo dos inimigos da igre­
ja e do estado. Mais ainda, em sua fala sobre o templo,
fez citações conhecidas de todos e extraídas da pregação
de Jeremias a respeito do mesmo assunto (Jr 7,11),
mobilizando, portanto, uma recordação dolorosa da crí­
tica destruidora e, aliás, repetindo-a simplesmente. Ao
criticar o templo, Jesus atingiu o centro da doutrina da
predestinação, a qual pode ser esboçada na tradição de
Sião, num passado longínquo como o de Isaías. Ela as­
sume a garantia da existência histórica daquele povo reu­
nido em volta deste santuário específico. Desta forma,
Jesus relembra a tradição crítica de Jeremias, opondo-se
à promessa de realeza expressa em Isaías 6.
Estes fatos e, ao mesmo tempo, outras violações de
Jesus às convenções sociais formaram uma crítica incô­
moda a respeito da “retidão da lei”. Naquele tempo, a
lei tinha se transformado num instrumento com que os
6 Há pouca dúvida de que, no sermão de Jeremias sobre o templo
(Jr 7), o próprio Jeremias tenha tido de atacar uma sofisticada teologia
do templo encorajada, em parte, por Isaías. A crítica feita às alegações
relacionadas com Jerusalém significavam, inevitavelmente, um conflito com
a consciência do rei. A respeito da régia dimensão da tradição de Jerusa­
lém, consultar J. J. M. Roberts, “The Davidic Origin of the Zion Tra-
dition”, Journal of Biblical Literature 92 (1973): 329-44.

110
dirigentes da sociedade civil, e mais ainda da religiosa
controlavam eficientemente não só a moralidade mas tam­
bém os valores econômico-políticos que acompanham a
moralidade. Esta crítica de Jesus à “lei” não deve ser re­
jeitada como uma ofensa ao “legalismo” em um sentido
moralista, como se encontra, às vezes, numa interpreta­
ção paulina reducionista. Pelo contrário, a crítica de Je­
sus se dirige aos valores fundamentalmente sociais de
sua sociedade. Na prática, Jesus percebeu, como Marx
explicaria mais tarde, que a lei pode ser uma convenção
social com o fim de proteger a distribuição em vigor do
poder econômico e político 7. Jesus, conforme a tradição
de Jeremias, teve a coragem de articular o fim de uma
consciência que não só não cumpria o que prometia,
mas negava até a benevolência que pretendia oferecer.
Como sempre, é difícil determinar se, de fato, Jesus
causou a destruição do templo ou se apenas expressou,
de algum modo, o que estava para acontecer. Mas Jesus,
como os outros profetas, geralmente é apresentado como
se o fato de ele ter falado sobre a destruição correspon­
desse ou se igualasse à mesma. Claro que numa tal con­
cepção, assim seria a realidade.
De passagem, podemos observar que, tanto na des­
crição do episódio dos vendilhões do templo como na
narrativa do nascimento, em Mateus, encontramos refe­
rências à tradição de Jeremias. Além disso, na versão de
Mateus sobre o fato de Jesus ter feito uma refeição em
casa de pessoa vista como pecadora (Mt 2,10-13), como
também quando relata o que Jesus realizou num sábado
(Mt 12,5-6), o profeta Oséias (6,6) é relembrado. E is­
to é importante porque a referência traz à memória o
profeta que mais angustiadamente falou sobre a des­
truição.
7 A respeito da lei e das convenções sociais relacionadas com a fé
bíblica, consultar a crítica de José Miranda, Marx and the Bible, Ma-
ryknoll, N. Y., Orbis Books, 1974, esp. cap. 4.

111
3) A solidariedade de Jesus com os marginais le­
va-o à compaixão. A compaixão constitui uma forma de
crítica radical, pois ela mostra que aquilo que magoa deve
ser levado a sério, não deve ser visto como uma condi­
ção normal e natural mas como anormal e não aceitável
para a humanidade. No tempo de Jesus, como no antigo
império do faraó, a compaixão era uma virtude desco­
nhecida e não permitida pelo contexto daquilo que era
considerado “legal”. Jamais os impérios foram consti­
tuídos ou mantidos em bases da compaixão. As normas
da lei, ou, noutras palavras, os controles sociais, não se
acomodam às pessoas, pelo contrário, as pessoas têm de
se acomodar àquelas normas. Doutra forma, essas nor­
mas entrariam em colapso e com elas toda a organização
do poder. De modo que a compaixão de Jesus é com­
preendida não apenas como uma reação emocional pes­
soal, mas como uma crítica pública com a qual ele, por
conta própria, ousa agir contra todo torpor do seu con­
texto social. Os impérios mantêm-se pelo torpor. Os im­
périos, em seu militarismo, supõem um torpor a respeito
dos custos humanos da guerra. As economias totalitárias
também supõem uma cegueira referente ao custo em ter­
mos de pobreza e exploração. Governo e sociedade de
dominação vão muito longe com o fim de fazer com que
tal torpor permaneça intacto. Jesus, com sua compaixão,
penetra o torpor e dá o primeiro passo para tornar vi­
sível a anormalidade daquilo que se tornara coisa comum.
Por isso, a compaixão que poderia ser vista simplesmen­
te como uma generosa boa vontade é, de fato, uma ver­
dadeira crítica ao sistema, às forças e às ideologias que
produzem a ferida. Jesus penetra na ferida e a assume
em si mesmo.
A palavra característica usada para significar com­
paixão é splagchnoisomai, e significa deixar as próprias
entranhas serem tomadas pelo sentimento ou situação do

112
outro*. E Jesus, na verdade, incorpora em si mesmo a
ferida que o marginal experimenta, assumindo-a em sua
própria pessoa, em sua história pessoal. A ferida de que
falamos provém do fato de serem declarados não-per-
tencentes ao que é tido como normal, e Jesus liga-se com
eles justamente em situações consideradas anormais. Mais
concretamente, sua crítica, como uma ferida assumida, é
expressa nos doentes (Mt 14,14): “Assim que desem­
barcou, viu uma grande multidão e, tomado de com­
paixão, curou os seus doentes”. Aos famintos:

Assim que ele desembarcou, viu uma grande multidão


e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam
como ovelhas sem pastor, e começou a ensinar-lhes
muitas coisas (Mc 6,34).
Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias
que está comigo e não tem o que comer (Mc 8,2).

Para com alguém que chorava um morto:

Ao se aproximar da porta da cidade, coincidiu que le­


vavam a enterrar um morto, filho único de mãe viúva;
e grande multidão da cidade estava com ela. O Senhor,
ao vê-la, ficou comovido. . . (Lc 7,12-13).

De uma forma mais geral, a compaixão de Jesus é


para com toda a classe de pessoas humanas que se en­
contram perturbadas e sem ajuda:

Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinando


nas sinagogas e pregando o evangelho do reino, en­
quanto curava toda a sorte de doenças e enfermidades.
Ao ver a multidão, teve compaixão dela, porque estava

8 José Porfício Miranda, O Ser e o Messias, Edições Paulinas, S.


Paulo, 1982, pp. 135-140, onde, referindo-se à compaixão, argumenta de
forma semelhante, apesar de estar se referindo a um termo grego diferente.

113
8 - A imaginação profética
cansada e abatida como ovelhas sem pastor (Mt
9,35-36).

Observemos como a colocação de Marcos sobre a


alimentação da multidão é usada também por Mateus
que a transforma numa declaração mais geral, usando-a
tanto como transição narrativa como inserindo as pró­
prias palavras “cansada” e “abatida”. Estas palavras são
polêmicas, porque as pessoas não ficam cansadas e abati­
das por si mesmas, mas em razão de outras coisas. E fa­
lar assim, sugere que outras pessoas provocam aquele
abatimento. Por isso, a versão de Mateus é muito mais
crítica e mais direta. Além disso, as palavras de Mateus
são seguidas de uma severa advertência; “A colheita é
grande, mas poucos os operários! Pedi, pois, ao Senhor
da colheita que envie operários para a sua colheita” (Mt
9,37-38). A imagem da colheita é claramente um jul­
gamento de destruição. Justapor a colheita e os abatidos
e cansados é chamar a atenção sobre a ordem presente e
seus controladores.
Outra vez encontramos o apelo à tradição profética.
O interiorizar do sentimento para com os marginalizados
vem da tradição, da angústia de Oséias e de Jeremias.
Em Oséias, o fato está claro, especificamente em 11,8-9:
“Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entra­
nhas se comovem” (11,8-9). No referente a Jeremias,
já apresentei evidências da mesma interiorização. Os dois
profetas e Jesus, depois deles, exprimem e assumem toda
a mágoa, todo o sofrimento humano, a dor que a cultura
régia dominante procurou, tão intensamente, reprimir,
negar e encobrir.
É instrutivo para nós observar que nos ensinamen­
tos de Jesus, a palavra que vimos discutindo encontra-se
nas duas parábolas mais conhecidas. Primeiramente, na
narração do bom samaritano, é este que tem compaixão

114
( Lc 10,33)9. Em segundo lugar, na estória do filho pró­
digo, é o pai que se compadece (Lc 15,20). Está claro,
nestas duas parábolas, a pessoa-chave de cada uma delas
personifica a consciência alternativa, a qual é uma crítica
à consciência dominante. Tanto o samaritano como o
pai do pródigo são uma composição de Jesus contra a
cultura dominante e por isso são uma ameaça séria à
mesma. O samaritano com seu modo de agir está conde­
nando a forma dominante de desprezar o marginalizado.
Os que vão passando, naturalmente portadores da tra­
dição dominante, são inativos, indiferentes, e por isso,
nada vêem. O samaritano apresenta um comportamento
diferente e substitui o antigo sistema, no qual o margi­
nalizado simplesmente não ,tinha vez. A substituição da
indiferença pela compaixão, por outras palavras, o fim
de uma indiferença cínica e o começo da observação de
uma dor, são sinais de uma revolução social. De forma
semelhante, o pai que prontamente abraça o filho, que
não foi recebido, está condenando a “retidão da lei” pela
qual a sociedade é regida e pela qual os rejeitados sociais
são menosprezados para sempre. Assim as duas estórias,
quando consideradas como crítica destruidora e radical,
apresentam ambas a interiorização da pena e a trans­
formação externa. A capacidade de sentir-se atingido com
a mágoa das pessoas marginalizadas significa um fim im­
posto aos sistemas sociais que tinham anulado o sofri­
mento do próximo com uma indiferença profunda e no­
tável.
Na Igreja primitiva, Jesus é relembrado e apresen­
tado como a personificação fiel de uma consciência alter­
nativa. Com sua compaixão, ele assume a dor dos rejeita­
dos pela cultura dominante e, como uma dor personi­
ficada, ele tem autoridade para mostrar com sua própria
9 Em várias discussões sobre a parábola do Bom Samaritano é evi­
dente tanto o valor como a falha na estruturação da crítica, cf. Semeia 2
(1974).

115
morte o fim da cultura dominante. Fica bem claro, que,
se há uma coisa que a cultura dominante não pode to­
lerar ou cooptar, é a compaixão, a capacidade de solida­
rizar-se com as vítimas da ordem presente. A ordem pre­
sente e natural das coisas pode orientar a caridade e os
bons desejos, mas a solidariedade não resiste à dor e à
tristeza. Por isso as estruturas de poder e de competição
ficam estáticas diante daquele que assumiu os gemidos
dos feridos.
A dor de Jesus anuncia o fim do mundo social
dominante. A consciência imperial vive por sua facili­
dade de silenciar os gemidos de dor e passar adiante
como se fossem coisa normal, como se ninguém estivesse
sofrendo e se não houvesse manifestação desse sofrimen­
to. Se os gemidos tornam-se audíveis, se são ouvidos nas
ruas, nos mercados e nas cortes, então a consciência do
dominador está posta em perigo. É por isso que os ge­
midos do povo no Egito (Ex 2,23-25;3,7) anunciaram a
grande novidade social. De maneira semelhante, Jesus
tinha o poder de expressar aquela mesma tristeza que
tinha sido emudecida e por isso a novidade apareceu e
apareceu exatamente quando a tristeza pôde ser expres­
sa 10. O sofrimento tornando-se audível e visível produ­
ziu a esperança, pois a expressão da dor é a porta da no­
vidade. Concluindo, a história de Jesus é a história de
sua participação na dor e de sua expressão através de
suas palavras e gestos.
A crítica de Jesus, como incorporação da angústia,
está evidente em dois outros lugares, onde sua dor é in­
confundível. Provavelmente devem ser considerados jun-
Ifl Esta posição pertence, naturalmente, ao núcleo da fé profética e
da teologia da libertação. Um pouco diferente, mas expressando a mesma
realidade, encontramos em Paul Elmem, “Death of an Elfking”, Christian
Century 94 (1977): 10-57, ao comentar a morte de Robert Lowell: “.. .se­
gredo conhecido pelos poetas e pelos rouxinóis, a saber, que a dor pode
ser controlada quando sua expressão perfeita é encontrada”. Este segredo
é totalmente negado aos administradores do império.

116
tos. Em primeiro lugar, na narração da morte de Lázaro,
Jesus é apresentado como aquele que tem poder de curar
e de trazer à vida aqueles que estejam mortos. É a ênfase
principal da narração, mas esta passagem de João em 11,
44, está envolvida por duas outras. Primeiro, o poder de
Jesus está evidente no contexto de sua dor:
Quando Jesus a viu chorar e também os judeus que a
acompanhavam, comoveu-se interiormente ,e ficou con­
turbado. E disse: “Onde o colocastes?” Responderam-
-lhe: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou (Jo 11,33-35).
Não é o Senhor majestático, imutável; pelo contrá­
rio, é aquele que sente a paixão, que participa da an­
gústia do irmão ou da irmã. O fato de Jesus chorar, de
comover-se interiormente e se perturbar forma um no­
tável contraste com a cultura dominante. Os que preten­
dem manter firme o controle social não têm esta força, e
menos ainda a apresentam assim. Mas nesta cena, Jesus
não está interessado no controle social, mas em destruir
o poder da morte e o faz, entregando-se à pena e à dor
naquela situação, a mesma pena e dor que a sociedade
dominante devia rejeitar.
Façamos uma digressão para comentar uma outra
história sobre um outro Lázaro, relatada por Lucas em
16,19-31. Lázaro nos é apresentado como contraste total
do homem rico. Entre outras coisas, o contraste enfatiza
a indiferença do rico para com o sofrimento de Lázaro:
Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e
linho fino, e cada dia se banqueteava com requinte.
Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto
de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do
rico (...) e até os cães iam lamber-lhe as úlceras (Lc
16,19-21).
Claro que o contraste abrange diversos níveis. Mas,
entre outras coisas, a narração sugere que o homem rico

117
está obcecado por causa de suas riquezas e que sua si­
tuação social não tem futuro. Além daquilo, nada mais
haverá para ele. Contrastando com ele, o pobre Lázaro,
livre das riquezas e da situação social, está coberto de
dor e sofrimento, e Jesus diz que ele é o que possui o
futuro. O contraste, no contexto de nossa discussão, re­
fere-se, por um lado àquele que está obcecado e cujo fu­
turo é um pouco mais do presente, e por outro lado, ao
que está sofrendo e no entanto recebe promessas do Pai.
Na narração de João sobre a ressurreição de Lázaro,
notamos a profunda compaixão de Jesus participando
da dor dos outros. Notamos também sua ação poderosa
de restituir a vida, uma ação que parece comandada pela
capacidade de participar do sofrimento alheio. O outro
fator que devemos observar, é que o poder de inverter as
coisas desperta a hostilidade aguda e imediata dos deten­
tores da ordem antiga: “Que faremos? Este homem rea­
liza muitos milagres (...) Os chefes dos sacerdotes e
os fariseus, porém, já tinham ordenado que quem sou­
besse onde Jesus estava, o indicasse, para que o prendes­
sem” (Jo 11,47-57). Jesus apresenta sinais, promete
alternativas e sugere novidades. Suas promessas repre­
sentam uma ameaça muito bem percebida pela ordem
antiga. Jesus traz novidade para a situação, mas apenas
no que se refere ao sofrimento. O caminho da mudança
não é aprendido através da psicologia, mas, como o de­
monstra a narração integralmente, pela aceitação da an­
gústia e do sofrimento. A ordem antiga, que não aceita a
novidade, continua impedindo-a, pela negação do sofri­
mento. Onde o sofrimento e a morte da ordem antiga
não é enfrentado, nem assumido e expresso, a ordem
antiga se prolonga um pouco mais, apesar de estar morta.
A outra situação que provocou as lágrimas de Jesus
e que deve ser relacionada com o sentimento e o poder
de Jesus é a visão sobre Jerusalém: “E, como estivesse
perto, viu a cidade e chorou sobre ela, dizendo: ‘Ah! se

118
neste dia também tu conhecesses a mensagem de paz!
Agora, porém, isso está escondido a teus olhos’ ” (Lc
19,41-42). Aqui ele chora sobre Jerusalém, a cidade
querida de Deus e local de todo um futuro. Suas lágri­
mas sobre Jerusalém como sobre Lázaro são a partici­
pação numa angústia de morte. A diferença está no fato
de que todos sabiam que Lázaro estava morto e Jesus
ressuscitou-o para a vida. A tristeza fora pela morte de
Lázaro, ao passo que, com referência a Jerusalém, todos
sabiam e viam que estava de pé e, no entanto, ele chorou
pela morte da cidade. A tristeza por causa da cidade tem
algo de irônico, porque Jerusalém é a principal respon­
sável pela cegueira e é a primeira a negar tal tristeza.
Com efeito, os senhores de Jerusalém querem, de modo
especial, evitar a dor do acontecimento e sobretudo não
querem reconhecer a chegada do fim. A mágoa de Jesus
como a de Jeremias (e notemos que Lucas em 19,3 faz
eco a Jr 6,6) é porque este centro de tantas promessas
está agora no fim e arrasado. E é por isso que as palavras
de Jesus são palavras de destruição. Na descrição corres­
pondente de Mateus, a expressão da tristeza sobre Jeru­
salém é precedida de uma série de exclamações de angús­
tia (Mt 23,13-33), que tem a mesma finalidade de anun­
ciar a dor pela morte 11. A compaixão de Jesus tem dois
aspectos. Por um lado, é um ataque frontal à cultura do­
minante. Ele se aflige pela morte do velho mundo e da
antiga cidade, mesmo quando muitos ainda não sabiam

11 Toma-se claro que as exclamações oraculares, usadas pelos pro­


fetas e também por Jesus, devem ser compreendidas não como uma se­
vera rejeição, mas como uma chamada para o pranto, pela morte. Cf.
W. Eugene March, “Prophecy”, em John H. Hayes (org.), Old Testament
Form Criticism, San Antonio, Trinity University Press, 1974, pp. 164-65,
onde se encontra referência à obra de Clifford, Gerstenberger, Wanke e
de Williams, Esta compreensão nos indica um discernimento completa­
mente novo do objetivo dos profetas. Ao mesmo tempo, nos apresenta a
dor como o contexto mais apropriado daqueles discursos e os sérios mal-en­
tendidos a respeito dos profetas, em muitos círculos, nos quais aquelas
exclamações são entendidas como ameaças ou ódio.

119
que ela estava morta. Sua crítica não é ditada pelo ódio,
mas pelo sentimento de amor, porque ninguém mais do
que ele ama aquela cidade. No entretanto, ele percebia
muito bem o conflito mortal entre sua própria missão e
a cultura dominante em Jerusalém; de há muito ele sabia
que acabaria morrendo nas mãos de Jerusalém.
A compaixão de Jesus não é apenas crítica do que é
mortal, pois sua crítica e sua solidariedade apresentam
evidências do poder de transformar. De modo que, o
assumir a morte de que morria seu povo resulta na res­
surreição de Lázaro, na cura dos doentes, na alimentação
das multidões famintas, no cuidado para com um homem
ferido, na recepção do filho pródigo e, finalmente, em
boas novas para os que estavam perturbados e sem ajuda.
Portanto, a crítica de Jesus apresenta e oferece a possi­
bilidade de um começo de alternativa.
(4) A crucifixão de Jesus é a crítica decisiva feita
por ele à consciência régia. E não deve ser considerada
à maneira liberal, como o sacrifício de um homem nobre,
nem facilmente deveriamos explicar o fato por uma teo­
ria de culto ou de expiação sacerdotal. Pelo contrário,
deveriamos ver na crucifixão de Jesus o último ato da crí­
tica profética pelo qual Jesus anuncia o fim de um mundo
de morte (o mesmo anúncio que já encontramos em Jere­
mias) e assume a morte em sua própria pessoa. Por isso
é que dizemos que a crítica final consiste em Deus mes­
mo assumir a morte que seu povo merecia 12. A crítica
consiste, não em opor-se mas em unir-se. E esta crítica
final não significa uma indignação triunfante, mas uma
paixão e compaixão que completam e irresistivelmente
destroem o mundo da competência e da competição. O
12 A cruz é, portanto, um anúncio de que Deus abandonou toda a
teologia do triunfo e da glória. Examinar os argumentos de Douglas Hall
em Libhten Our Darkness, Philadelphia, Westminster Press, 1976, e de
Jürgen Moltmann em The Crucified God, New York, Harper and Row,
1974, esp. pp. 145-53. Encontramos na cruz a expressão plena da insis­
tência dos profetas contra a consciência do rei.

120
contraste é completo e total pois este homem apaixonado
está colocado no centro da Jerusalém obcecada. E unica­
mente a paixão pode sensibilizar aquela cegueira.
a) Nos “prenúncios da paixão” em Marcos, já per­
cebemos que a crucifixão representa a crítica radical de
Jesus:

E começou a ensinar-lhes que era necessário que o


Filho do Homem sofresse muito e fosse rejeitado pelos
anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas, e fosse morto
e, depois de três dias, ressuscitasse (Mc 8,31).
O Filho do Homem será entregue às mãos dos homens
e eles o matarão e, morto, depois de três dias, ressus­
citará (Mc 9,31).
Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho
do Homem será entregue aos chefes dos sacerdotes e
aos escribas; eles o condenarão à morte e o entregarão
aos pagãos, zombarão dele e cuspirão nele, o açoitarão
e o matarão, e três dias depois ressuscitará (Mc 10,
33-34).

Não há crítica mais radical do que a contida nestas


afirmações, pois anunciam que o poder de Deus assume
a forma da morte e que a felicidade e a vitória aparece­
rão através da morte. De modo que as palavras de Jesus
destroem as teorias dominantes sobre o poder, afirman­
do que tais aparências de poder, na realidade, não são
poder. Assim, os anúncios da paixão de Jesus são a ne­
gação formal de toda espécie de poder que se autopro-
clama e sobre este tipo de poder se apoiava a consciência
régia. Exatamente aquela expressão “era necessário que
o Filho do Homem sofresse” é muito forte para ser
tolerada pelo mundo, pois a locução “Filho do Homem”
tem como predicativos paixão e morte. É verdade que na
história de Moisés não encontramos algo semelhante.
Jamais Moisés fala ou age desta forma. No entanto,

121
9 - A imaginação profética
vamos fazer uma pausa para procurar importantes con-
tinuidades entre os dois. Moisés também destruiu o im­
pério e declarou que aquilo não era poder (lembremos
Ex 8,18), desrespeitando as exigências da situação im­
perial e confiando plenamente no Senhor da justiça e da
liberdade. De forma semelhante, a autoridade dominante
é destruída pela invocação de um Deus ao qual, publi­
camente, não se dava crédito.
A reação dos discípulos deixa bem claro que as pa­
lavras de Jesus, referentes à paixão, tenham constituído a
crítica final à consciência régia. Em primeiro lugar, em
Mc 8,32-33, Pedro, como parte da comunidade, rejeita
as palavras de Jesus como sendo demasiado radicais e é
logo repreendido asperamente. Em segundo lugar (9,
32), os mesmos discípulos não as compreendem, ficam
atemorizados e questionam. Finalmente (10,35-37), eles
reagem indicando que não entendiam nada, em razão da
ingênua discussão surgida entre eles sobre o poder e au­
toridade deles mesmos. A crítica de Jesus é muito forte,
não apenas com relação às autoridades imperiais, mas
com relação a seus próprios seguidores. Nenhum de nós
estaria preparado para uma crítica tão severa.
b) As palavras de Jesus na cruz, como foram pre­
servadas nas diversas tradições, são a expressão de uma
consciência alternativa. O apelo inicial de perdão para
seus inimigos é um ato de crítica (Lc 23,34), pois de­
nuncia a loucura da cultura dominante. Ele apresenta um
apelo favorável à temporária insanidade mental de me­
tade daquele mundo que o condenara. A esta altura, fa­
çamos referência à perspicaz interpretação de Paulo
Lehman ”, segundo a qual, no julgamento de Jesus dian­
te de Pilatos, na realidade, o réu é Pila tos e não Jesus.
O grito de Jesus no alto da cruz, pode ser considerado
13 Paul Lehmann, The Transfiguration of Politics, New York, Harper
and Row, 1975, pp. 48-70.

122
como uma decisão (por parte do Juiz) de que o acusado
(a situação antiga) não deve ser condenado porque é
insano.
Em segundo lugar, seu grito de desespero (Mc 15,
34) é um anúncio de abandono. Todas as conhecidas
formas de comunicação perderam o sentido e surge ago­
ra uma perigosa situação de fé. E Jesus experimenta o
resultado da crítica. As certezas antigas, a consciência do
significado das coisas, tudo desapareceu 14.
Em terceiro lugar, a crítica final termina em sub­
missão (Lc 23,46), a última coisa possível num mundo
de autoridade e de controle. E neste mesmo mundo de
controle, Jesus apresenta uma nova forma de fidelidade,
que subverte completamente as formas dominantes.
Finalmente, sua promessa de paraíso (Lc 23,43),
são palavras que negam a legitimidade daquele mundo
que o matava. E ele se pronuncia a partir de um sistema
de valores diferentes. Aquele mesmo que foi chamado de
criminoso é bem-vindo no paraíso. Os condenados são
bem-vindos. A nova maneira de Jesus agir e de falar
anuncia que agora entra em vigor uma forma diferente
de julgar as coisas. É a confirmação final de que a lei
antiga está anulada e não tem mais sentido.
Poderiamos não dar muita atenção a estas palavras
na cruz, se isoladas, porque cada uma tem seu desenvol­
vimento complexo na história da tradição, a qual, indu­
bitavelmente, é partú da história da liturgia. No entre­
tanto, tomadas em conjunto, elas formam uma declara­
ção que refuta completamente as pretensões dos que es­
tão no poder. Estas declarações (uma afirmação de insa­
nidade mental, um grito de abandono, um gemido de
submissão e a declaração de uma nova forma de pre­
14 O argumento do cap. 3 de Lifton nos complementa aqui. O colapso
total está relacionado não com os artigos da lei visível, imperial, mas
é a ruína do próprio sistema de símbolos. A -separação de um sistema
de símbolos nos deixa abandonados e é o ponto mais severo desta crítica.

123
miar) são a refutação de um mundo que agora chegou
ao fim. A ordem antiga pode ser caracterizada como
loucura mascarada de autoridade, como falsa segurança
aparentando bem-estar, tentativa desesperada de man­
dar sem se submeter, terrível sistema de prêmios e cas­
tigos. Por isso, cada palavra de Jesus é uma contestação
que põe em dúvida toda a ordem antiga. A narração da
paixão de Jesus vem oferecer confirmação à crítica pro­
fética. Toda ela sugere, de uma forma sempre renovada,
a penitência da Quaresma.
c) Esta tradição teológica de vida em forma de
morte e de força em forma de sofrimento é algo mais
do que a cultura dominante podia receber ou aceitar.
Esta visão alternativa é muito clara na teologia da cruz,
tanto na narração de Marcos como no pensamento de
Paulo. Poderiamos citar diversos textos, mas queremos
relembrar apenas um antigo hino utilizado por Paulo:

Ele tinha a condição divina,


e não considerou o ser igual a Deus
como algo a que se apegar ciosamente.
Mas esvaziou-se a si mesmo,
e assumiu a condição de servo,
tomando a semelhança humana.
E, achado em figura de homem,
humilhou-se e foi obediente até a morte,
e morte de cruz!
Por isso Deus o sobreexaltou grandemente
e o agraciou com o Nome
que é sobre todo o nome,
de modo que, ao nome de Jesus,
se dobre todo joelho dos seres celestes,
dos terrestres e dos que vivem sob a terra,
e, para glória de Deus, o Pai,
toda a língua confesse:
Jesus é o Senhor (F1 2,6-12).

124
Esta tradição de crítica total refere-se à auto-anu-
lação de Jesus, ao domínio pela perda de domínio, à
plenitude de vida que advem pela auto-anulação. Esta
auto-anulação não pode ser comparada com a autonega-
ção a que se chega pela meditação. Trata-se de uma idéia
política, isto é, de uma vontade que realmente quer en­
tregar o poder. É aquilo mesmo que os reis não podem
fazer e por isso continuam reis. Por isso.a autocom-
preensão do rei é totalmente refutada. Aquele que vo­
luntariamente se anulou, que entregou o poder por obe­
diência, este é o único verdadeiramente poderoso, aque­
le que pode transmitir humanidade, justamente onde mais
tem autoridade de fazê-lo.
(5) A crucifixão, portanto, não é um acontecimen­
to estranho na história da fé, apesar de ser o fato deci­
sivo. Antes, é a expressão completa da destruição pratica­
da e relatada na tradição profética, desde o confronto de
Moisés com o faraó. Como na história de Moisés, de mo­
do semelhante, a pregação e a morte de Jesus contrariam
a política de opressão com uma política de justiça e com­
paixão. Como no caso de Moisés, semelhantemente a
pregação e a morte de Jesus se opunham à economia de
afluência e se orientavam para uma economia de parti­
cipação humana. Como no caso de Moisés, também a
pregação e a morte de Jesus contradiziam a religião do
Deus preso com a liberdade de Deus em dar vida a
quem ele queria, mesmo que fosse frente à morte.
A cruz é o derradeiro símbolo da crítica profética,
porque significa o fim daquela lei que trazia a morte a
todos. A crucifixão unifica a estranha liberdade de Deus,
sua justiça e seu poder. Esta liberdade (leiamos religião
da liberdade de Deus), esta justiça (leiamos economia
de participação) e este poder (leiamos política de justi­
ça), tornam a era antiga impotente e levam-na à morte.
Sem a cruz, provavelmente a imaginação profética seria
uma voz tão estridente e destrutiva como aquela mesma
125
que ela criticava. A cruz é a certeza de que a eficiente crí­
tica profética é feita não por alguém de fora, mas por
um que abraçou o sofrimento, que passou pela morte e
que sabe quanto padece quem é criticado.
A crítica profética objetiva criar uma consciência
alternativa com seu discurso e seu campo de percepção.
Esta consciência alternativa, se não for superficial e ex­
terior, está relacionada com a cruz. Douglas Hall mos­
trou como devemos pensar a este respeito, sugerindo que
a crítica criativa deve ser eticamente pertinente e esta­
belecida em nossa própria aceitação da negatividade 15.
Este tipo de crítica profética não oferece alternativas
superficiais, não afeta certezas nem propõe uma política
social salvadora. Pois sabe muito bem que somente aque­
les que choram podem ser confortados e, por isso, em
primeiro lugar procura saber como lamentar séria e sin-
ceramente um mundo que está morrendo. Jesus com­
preendeu e assumiu a angústia que Jeremias sentiu tão
dolorosamente.

15 A respeito da aceitação da negação, ler em Hall, Ligbten Our Dar-


kness, cap. 2 e passim.

126
6
A ENERGIZAÇÃO
E A INSTITUIÇÃO
EM JESUS DE NAZARÉ

A formação de uma comunidade alternativa possuí­


da por uma consciência também alternativa é tão impor­
tante, que o grupo dominante torna-se objeto de crítica
e pode, finalmente, ser destruído. No entanto, mais do
que destruir, a proposta da comunidade alternativa é
preparar a realização do novo começo humano. O pri­
meiro trabalho de Moisés foi organizar um novo em­
basamento humano através da religião da liberdade de
Deus, da política de justiça e de compaixão.
Quando refletimos sobre o trabalho do Segundo
Isaías, vimos, primeiro que aquela comunidade de exi­
lados estava desalentada e desesperada, justamente por­
que não sabia ou não acreditava na possibilidade de um
novo começo. Depois vimos que a única forma de su­
perar aquele desespero foi a apresentação pública da
esperança. Da mesma forma que a comunidade anterior
ao exílio estava totalmente envolvida pelo esmorecimen-
to, assim também a comunidade do exílio estava ator­
mentada pelo desespero. E assim como o profeta anterior
ao exílio (Jeremias) conseguiu vencer aquele esmoreci-
mento pela apresentação do sofrimento de todos, assim

127
também o profeta do exílio (o Segundo Isaías) conse­
guiu superar aquele desespero pela pregação a todos da
esperança. Se Jeremias apresentou o sofrimento como
ponto mais alto de sua crítica, o Segundo Isaías levou
Israel a sentir um novo começo histórico pela ação de
Deus com sua liberdade gratuita e soberana. Se quere­
mos compreender a energia comunicada pelos profetas,
devemos compreender também que sua palavra caracte­
rística é a esperança e não o otimismo *. A finalidade
desta palavra é permitir que a comunidade se entregue
a um entusiasmo não frustrado pelo desespero da mesma
comunidade, para a qual tudo já tinha desmoronado.
Na tradição profética, quando falamos da manifes­
tação final de força, temos de nos voltar para Jesus de
Nazaré. Já vimos que, com suas ações e palavras e espe­
cialmente com sua crucifixão, ele se lançou à destruição
da consciência régia e levou seus seguidores a enfrentar
o sofrimento daquela destruição. Em oposição a isto, na
realidade, o centro de trabalho de Jesus, não foi a des­
truição, mas a inauguração de algo novo. Suas idéias e
ações opunham-se a todos os dados visíveis, à dúvida e
à resistência dos mesmos para os quais ele tinha vindo.
Este último ato de coragem deu às pessoas uma perspec­
tiva de futuro, quando perceberam que aquele presente
horrível era ao mesmo tempo um fim e a única forma
possível de existência. Esta perspectiva nova, na qual nin­
guém acreditava, nascera de um entusiasmo vacilante,
pois se percebia que não derivava, mas extrapolava e
estava muito além da compreensão (F1 4,7) e do poder
humanos. E esta deve ser a função de todo aquele que se
propõe a ser profeta, apresentar a novidade como não
sendo derivada, mas como se fosse uma extrapolação da
1 Sobre a diferença entre esperança e processo ou otimismo, consultar
Douglas Hall em Lighten Our Darkness, Philadelphia, Westminster Press,
1976, cap. 1 e 3; Jürgen Moltmann em Theology of Hope, New York,
Harper and Row, 1967, cap. 2.

123
lógica humana. Esta deve ser a reivindicação de todo
aquele que quer ser profeta, afirmar que a novidade é
possível somente porque Deus é Deus e fiel a suas pro­
messas. Por isso, o propósito deste capítulo é simples­
mente demonstrar que Jesus de Nazaré é a plenitude e a
quinta essência da tradição profética. Ele expôs publi­
camente a novidade.proposta por Deus. A resposta a este
trabalho e à pessoa de Jesus foi o entusiasmo, pois é
admirável que na história não encontremos nada que o
tenha ultrapassado. Comunicou uma força que foi única,
para transmitir aquela novidade.
(1) O nascimento de Jesus é apresentado, especial­
mente por Lucas como um impulso decisivo para a nova
realidade social. A Igreja primitiva deve ter lutado para
encontrar a forma de transmitir a história de Jesus. O
começo tinha de ser certo, porque ali havia algo tão novo
que dificilmente podia ser expresso e esta expressão de­
via corresponder à realidade da novidade. O nascimento
é apresentado pelo cântico dos anjos contra os governan­
tes do momento. Estes governantes tinham decretado um
censo acompanhado por todas as formas de controle, mas
um censo em si não transmite força ou novidade2. Nin­
guém contava nem podia contar com a força e novidade
vindas de Deus. A ação severa e firme do censo foi
interrompida, no entanto, pelo inesperado cântico dos
anjos, os quais entoaram um cântico novo a um novo rei.
Não havia forma alguma de introduzir esta narrativa a
2 Em Israel, o censo é visto como uma forma do aparato real arre­
gimentar o povo contra a liberdade e a justiça. É o que é lembrado em
2Sm 24. Provavelmente por isso mesmo, o autor das Crônicas (lCr 21)
atribui este ato político a Satanás. E, de fato, há algo de satânico
nesta forma de exercer o domínio. Frank M. Cross, em Canaanite Myth
and Hebrew Epic, Cambridge, Harvard University Press, 1973, pp. 227-40,
relaciona o censo com o desenvolvimento da ideologia régia. Assim, não
é difícil compreender porque, mais tarde, o censo político será visto como
diabólico. E daí também a compreensão de que os interesses sócioeconô-
micos sejam diabólicos.

129
não ser pondo a canção nos lábios dos anjos, que eram
os servos do trono de Deus. A própria lírica da lingua­
gem dá idéia de um conhecimento da insensível vulgari­
dade do rei. Começa com um cântico que se opõe a um
decreto. Toda a história antiga é feita por decretos, mas
a nova se introduz de outra forma. O nascimento de um
novo rei determina nos céus e na terra um novo começo,
mas de forma muito diferente. A versão de Lucas está
de acordo com a do Segundo Isaías, a saber, uma fórmula
de entronização e um novo cântico para um novo rei.
O nascimento do novo rei, do qual Roma não soube
com antecipação e ao qual Herodes não pôde impedir,
é o começo de uma nova história, que leva em si o fim
de toda a história régia antiga. É notável que o nasci­
mento deste novo rei seja marcado pelo perdão de anti­
gas dívidas, uma anistia de antigos crimes e pelo começo
de um novo movimento de liberdade (cf. Lc 4,18-19).
O começo lírico foi recebido somente por aqueles
que eram dignos de recebê-lo, os pastores, que eram
justamente os representantes da marginalização social.
Não encontramos sinal algum de que aquele cântico te­
nha sido ouvido pelos diretores do censo. Eles continua­
ram. Continuaram contando, na suposição de que todos
os números vêm em seqüência e que portanto chegam a
uma soma final. Este começo não está entre aqueles que
controlavam o sistema antigo, pelo contrário emerge en­
tre as vítimas do mesmo. Começa com uma mulher es­
téril (Isabel), com uma virgem pura e cheia de fé (Ma­
ria ), com um homem idoso e mudo (Zacarias), numa
palavra, com os rejeitados da sociedade (os pastores).
É uma passagem onde surge a intuição, porque todas as
pessoas citadas, são pessoas que conheceram a intensi­
dade do sofrimento. Assim, a intuição surge entre eles e
não no meio daqueles que ainda não tinham experimen­
tado a morte da idade antiga.
A novidade anunciada e vista não se ajusta às con­

130
dições sociais antigas porque são estas justamente que
agora estão sendo destruídas. E por isso não é fácil clas­
sificar o acontecimento como costumam fazer os reis.
Não será imobilizado pela racionalidade do rei, antigo ou
contemporâneo. Pelo contrário, há um preocupar-se, um
admirar-se e um intuir. Os pastores despertam para a
glorificação e o louvor de Deus (Lc 2,20), Maria fica
cuidadosamente meditando sobre aqueles acontecimen­
tos (v. 19) e os outros ficam maravilhados com as pa­
lavras dos pastores (v. 18). O louvor, o meditar e o
maravilhar-se correspondem ao fato, porque não era es­
perado nem podia ser compreendido nos esquemas con­
vencionais. Há pois aqui uma crítica porque implicita­
mente, os senhores da ordem antiga estão destruídos.
Claramente eles já não governam mais e o impulso agora
é em direção ao futuro. Começou uma ordem nova e no­
va sobretudo para os que até ali tinham sido vítimas.
Todos que gemeram sob o jugo dos antigos reis, agora
são os convidados.
O mesmo poder dinamizador do nascimento de Je­
sus encontra-se nos poemas e nos cânticos que Lucas nos
apresenta a respeito do mesmo nascimento. Os cânticos
referem-se a promessas que foram guardadas mesmo quan­
do tudo parecia ter fracassado. É isto que distingue muito
bem a força do Evangelho. Promessas aparentemente fra­
cassadas são cumpridas justamente quando pensávamos
que já tivessem sido abandonadas. O cântico de Maria
(1,46-55) é justamente a respeito da inimaginável mu­
dança do homem quando tudo parecia impossível (v.
37). O cântico com que Zacarias começa a falar, é um
cântico de novas possibilidades tardias, mas não demasia­
do: possibilidades de salvação, de perdão, de misericór­
dia, de luz e paz. O sistema antigo nada oferecera, a não
ser escravidão, culpa, condenação, escuridão e hostili­
dade e ninguém podia perceber a possibilidade de mu­
dança. O nascimento de Jesus não será explicado mas
131
será cantado e o cântico chegará aos ouvidos reais. O cân­
tico desprenderá uma energia que o rei não poderá pro­
duzir e menos ainda impedir. A transformação será in­
confundível. Línguas que há tempo estavam mudas, sem
esperança, puderam falar outra vez3. A novidade ope­
rada por Jesus não serã explicada, porque explicá-la se­
ria colocá-la entre as antigas classificações do rei. E de
qualquer forma, a esperança dinamizadora vem sobretu­
do para aqueles que não foram preparados para explicar
ou compreender tudo. A esperança vem para aqueles
que se decidem pela intuição daquelas coisas que eles
não podem nem explicar nem compreender.
(2) O ministério de Jesus é, naturalmente, a força
que orienta os inícios radicais, exatamente quando nada
parecia possível. Tudo depende do ministério e a narra­
ção se refere ao ministério. O nascimento é apenas uma
esperança, mas o ministério se empenha seriamente em
levar as possibilidades de esperança ao mundo do deses­
pero. Jesus se apresenta e desperta confiança como aque­
le que, unicamente, era diferente. Suas palavras e ações
ferem,, mas aqueles que se prepararam e o receberam,
que não se incomodaram com as graças que ele concedia
e nem com a redefinição da realidade, todos esses não se
sentiram ofendidos. A ofensa não era contra eles, mas
contra a antiga ordem, cujo desaparecimento de há muito
tempo eles tinham percebido e afirmado.
O que as pessoas notaram é que a vida se modi­
ficara estranha e inexplicavelmente. A modificação não
acontecia por si, porque os meios de que Jesus se servia,
eram uma violação da ordem como os resultados obtidos
eram uma violação da racionalidade. Tanto os meios co­
mo os fins foram interpretados como escândalos. A es­
tranha novidade sobreveio de uma forma que nem espe­

3 Sobre a restituição da linguagem como primeiro ato da esperança,


cf. Dorothee Soelle, Suftering, Philadelphia, Fortress Press, 1975.

132
rou pela sanção do rei nem aconteceu como acontecem
as coisas da área administrativa.
Lucas, de modo especial, soube que os fatos reali­
zados por Jesus tiveram lugar entre as vítimas margina­
lizadas da sociedade. Marcos foi mais sensível ao fato
de que a dureza do coração faz o trabalho de Jesus parar
e que, onde não existia fé, ele não operava (Mc 6,5-6).
Era possível resistir à nova força, mas havia muitos que
estavam livres para abraçá-la e não necessitavam de re­
sistir à mesma,. Todo o movimento despertado por Jesus
é sintetizado numa admirável simplicidade:
Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os le­
prosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos res­
suscitam e aos pobres é anunciado o evangelho (Lc
7,22).
A seguir a resposta dos que valorizaram a ordem
antiga e opuseram resistência ao novo:
O chefe dos sacerdotes e os escribas procuravam fa-
zê-lo perecer bem como os chefes do povo (Lc 19,47).
Ao se retirarem, os fariseus com os herodianos imedia­
tamente conspiraram contra ele sobre como o matariam
(Mc 3,6).
E os escribas que haviam descido de Jerusalém diziam:
“Beelzebu está nele”, e também: “É pelo príncipe dos
demônios que ele expulsa os demônios” (Mc 3,22).

A conspiração formou-se rapidamente, pois alguns


de forma alguma aceitavam o prestígio de Jesus. E os
outros? Aqueles para os quais o evangelho foi escrito,
estavam cientes da formidável novidade:

Todos então se admiraram, perguntando uns aos ou­


tros: “Que é isto? Um novo ensinamento com autori­
dade!” (Mc 1,27).

13?
Então ficaram com muito medo e diziam uns aos ou­
tros: “Quem é este a quem até o vento e o mar obe­
decem?” (Mc 4,41).
E numerosos ouvintes ficavam maravilhados, dizendo:
“De onde lhe vem tudo isto? E que sabedoria é esta
que lhe foi dada? E como se fazem tais milagres por
suas mãos?” (Mc 6,2).

Sobretudo estavam admirados, pois não podiam en­


tender nem esclarecer o que viam:

A admiração apoderou-se de todos e glorificavam a


Deus. Ficaram cheios de medo e diziam: “Hoje vimos
coisas estranhas!” (Lc 5,26).
E todos se maravilhavam com a grandeza de Deus
(Lc 9,43).
Os discípulos, ouvindo a voz, muito assustados, caíram
com o rosto no chão (Mt 17,6).
Ao ouvirem isto, ficaram maravilhados e, deixando-o,
foram-se embora (Mt 22,22).

E ficavam atônitos:

Aconteceu que ao terminar Jesus estas palavras, as mul­


tidões ficaram extasiadas com o seu ensino, porque as
ensinava com autoridade e não como seus escribas (Mt
7,28-29).
Ao ouvir isto, as multidões ficaram extasiadas com o
seu ensino (Mt 22,33).
E subiu para junto deles no barco. E o vento amainou.
Eles, porém, no seu íntimo estavam cheios de espanto
(Mc 6,51).
Maravilharam-se sobremaneira, dizendo: “Ele tem fei­
to tudo bem; faz tanto os surdos ouvirem como os
mudos falarem” (Mc 7,37).

134
Que resumo curioso, este! Acostumamo-nos à ativi­
dade de Jesus entre os cegos, os aleijados, os surdos,
apesar de esta atividade não ser conforme com nosso
mundo orgulhoso. Sobretudo, vivemos num meio no
qual os cegos não recebem a visão, os aleijados não ca­
minham, nem os surdos ouvem. Não vivemos naquele
tempo e as histórias de Jesus se tornaram tão antigas e
naturais para nós, que perderam o encanto. Contudo,
junto com estas coisas comuns (comuns para Jesus) há
a lepra e ó na cura do leproso que Jesus contradiz as
normas da sociedade, no referente à pureza e impureza
legais. E ao provocar a reflexão sobre a pureza e im­
pureza legais, Jesus estava questionando todas as distin­
ções morais, nas quais a. sociedade estava embasada.
Uma vez contestadas as distinções morais, todas as san­
ções para atenuar as injustiças econômicas e políticas per­
dem o sentido. A relação é mais surpreendente, porque
juntamente com estas curas “convencionais”, encontra­
mos a maior e mais inconcebível energia de qualquer
pessoa humana viva. Nem Lucas, nem a Igreja primitiva,
nem nós mesmos entendemos o que isto significa. Em
nada ajudará raciocinar, defender, explicar ou calcular,
porque ficamos sempre no reino do lirismo. No entanto,
somos convidados a louvar, porque somente o louvor
pode falar adequadamente sobre a novidade que se en­
contra em Jesus. O estranho fato de a vida surgir da
morte, deveria ter sido a última palavra, mas a síntese
de tudo está na realidade diária, porque o último ato é
a reabilitação econômica4. Os pobres têm suas dívidas
canceladas e suas propriedades restauradas. O último ato
messiânico é o fim do confisco do rei. Este último e
4 Ao comentar as bem-aventuranças, José Miranda em Marx and the
Bible, Maryknoll, N. Y., Orbis Books, 1974, p. 217, faz esta observação
sobre a dimensão socioeconômica das mesmas: “Fico sem saber se há mais
fé e esperança em crer no ‘Deus que faz viver os mortos’ (Rm 4,17) ou,
como Lucas, crer no Deus que ‘cumulou de bens a famintos e despediu
ricos de mãos vazias’ ”! (Lc 1,53).

135
perigoso ato político é mais radical do que o fato de a
vida surgir da morte. Por todos os aspectos imaginários,
Jesus está restaurando as vítimas da consciência régia.
Se os administradores da pureza e da impureza, os ins­
petores das infrações legais e os senhores da morte têm
suas sentenças anuladas, então eles não estão mais no
poder. Claro que esta doxologia contém uma crítica que
se encontra em Mc 7,23. As ações de Jesus são um es­
cândalo, porque invadem a propriedade privada, ofen­
dem a razão e a ordem pública estabelecida.
Mas a narrativa passa tão rapidamente quanto pos­
sível da crítica para o vigor. Não pretende demorar-se
com aqueles que não enfrentam a novidade e não se
preocupam muito com o que é antigo e está acabado.
Ela volta-se para o futuro. É um futuro orientado para
onde ninguém jamais pensou, um dinamismo que segue a
tradição de Moisés e do Segundo Isaías, ainda que mais
radical em sua concretude histórica:

Os chefes dos sacerdotes e os escribas ouviram isso,


e procuravam como fazê-lo perecer, pois toda a multi­
dão andava extasiada com seu ensino (Mc 11,18).
O fariseu, vendo isto, ficou admirado de que ele não
fizesse primeiro as abluções antes do almoço (Lc 11,38).

Estas citações supõem uma variedade muito grande


de acusações que não precisamos especificar. Vão da ad­
miração à surpresa, ao terror, à indignação. As curas
realizadas por Jesus, em geral despertam a intuição numa
forma de celebração, porque davam vida quando tudo
parecia sem ajuda. Ao mesmo tempo, seus ensinamentos
despertam perplexidade, incluindo um tom de nega tivi-
dade, de resistência e indignação, porque Jesus contesta
as convenções de seus contemporâneos. Por um lado,
há surpresa, porque surge um futuro para pessoas para
as quais não havia mais futuro. Por outro lado, há res­

136
sentimento pelo que ele diz e faz. De qualquer forma,
seu ministério desperta um entusiasmo e um dinamismo
que tinham desaparecido num passado desamparado. Tan­
to os seguidores como os inimigos de Jesus experimen­
tavam sentimentos semelhantes. Aproximava-se uma si­
tuação nova, não planejada, a qual levava a pensar num
futuro totalmente diferente daquele que a dominação
régia pretendia.

(3) Naturalmente, os ensinamentos de Jesus não


podem ser separados das ações de seu ministério. Seus
ensinamentos faziam despontar uma energia radical, por­
que anunciavam como certo e seguro tudo aquilo que
tinha sido negado por uma conspiração bem preparada.
Em algumas coisas, seus ensinamentos eram mais radi­
cais do que suas ações, pois conduziam a ásperas discus­
sões e a transformações radicais, que eram o objetivo de
suas ações. Uma coisa era comer com pessoas conside­
radas renegadas, mas era muito mais radical anunciar
que a diferença entre concidadãos e estranhos era nula e
vazia de sentido. Uma coisa era curar, perdoar, mas
outra muito diferente era anunciar que as condições que
tornavam um criminoso doente eram irrelevantes. Claro
que a pregação não pode ser separada das ações, porque
são as ações que tornam a pregação real e concreta. A
pregação, como as ações, é fragmentária, abre caminho e
convida. Projeta um futuro que fora esquecido e indica
possibilidades, que já eram consideradas improváveis. Nes­
te sentido, é interessante fixar nossa atenção nas bem-
-aventuranças, pois formam uma série de exclamações
apropriadas, de modo particular, na forma em que Lucas
as apresenta (6,20-26) 5. Segundo nosso pensamento, a

5 Sobre as promessas das bem-aventuranças consultar Jürgen Moltmann


em The Church in the Power of the Spirit, New York, Harper and Row,
1977, pp. 80-81. O autor citado conclui que “quem vive as bem-aven­
turanças” deve viver voltado para o futuro.

137
10 - A imaginação profética
justaposição daqueles prenúncios de infortúnio e ao mes­
mo tempo de promessas de bênçãos é adequada. Os pre­
núncios de infelicidade constituem a crítica mais radical,
pois são prenúncios e antecipações de morte. As exclama­
ções citadas por Lucas e pronunciadas contra os ricos (v.
24), os saciados (v. 25), os que riem (v. 25), os que
gozam da aprovação social de todos (v. 26) significam
que a sentença de morte está pendente sobre aqueles
que vivem saciados e confortavelmente nesta vida, sem
tomar consciência ou abrir o espírito para um novo fu­
turo que advirá. Em nítido contraste, as bênçãos são
palavras de uma energia nova, pois prometem um bem-
-estar futuro aos desesperados. No mundo efêmero da
riqueza, da saciedade, do riso estulto, os que vivem na
pobreza, na fome e na tristeza são abandonados. São
impessoais e condenados a não ter história. Não possuem
existência pública e por isso o bem-estar público não os
atinge. Contudo, as bem-aventuranças abrem novas pos­
sibilidades. Por isso, a palavra de Jesus, como a de toda
a tradição profética, parte do infortúnio para a bem-aven-
turança, da crítica para a força no agir. A comunidade
alternativa a ser formada de pobres, de famintos e de
aflitos é convidada a desprender-se do modelo de vida in­
feliz e deixar-se atrair por outro tipo de vida, a abraçar o
mundo das bem-aventuranças.
A esperança que Jesus anuncia é séria e difícil.
Apresenta um contraste violento com a esperança fácil e
livre de sofrimento do modelo da consciência da corte.
A esperança é fácil e mesmo fútil para aqueles que vivem
entre as riquezas, na saciedade, no riso, mas é difícil
para aqueles aos quais as riquezas foram negadas, aos
quais a saciedade foi impedida e aos que não têm motivo
para o riso. A singularidade desta dinâmica dos profetas
está no fato de ela ser dirigida justamente aos conside­
rados como não-pessoas e portanto, condenados a não
terem história. O que oferecemos aqui não é uma refle­
138
xão moral geral, mas concreta; a um grupo específico,
com uma justificação direta de uma forma alternativa de
vida. Por isso é que, segundo Lucas, a pregação de Jesus
é feita “erguendo, então, os olhos para seus discípulos”
(Lc 6,20). Os discípulos são exatamente os primeiros
que se desprendem da antiga ordem, já criticada pela
falta de dinamismo. Seus discípulos são aqueles que re­
negaram riquezas, evitaram a saciedade, não viram sen­
tido no riso fácil, são aqueles que foram capazes de des­
prender-se do modelo de vida das maldições que levam
à morte, que puseram fim ao deslumbramento pela or­
dem antiga e que agora acreditam nas palavras de Jesus,
que, para eles abrem perspectivas futuras, que jamais se­
riam oferecidas pela consciência da corte.
Estas três afirmações das bem-aventuranças consti­
tuem uma relação mais longa de Mateus e expressam
com clareza a repetição da mesma crítica e com a mesma
energia. A ameaça de morte é feita àqueles que têm
riquezas, as quais são reflexo do mundò do faraó e de
Salomão, o que quer dizer que se utilizam dos bens de
seus irmãos e irmãs. Esta forma de exploração e de con-
fiscação conduz à morte. É uma crítica profética já anti­
ga, mas sempre correspondida por notáveis acontecimen­
tos. O futuro prometido por Deus é daqueles que, não
apenas resistiram às práticas da exploração, mas foram
vítimas das mesmas. Não pertencerá aos que viveram na
saciedade, mas aos que dela foram violentamente priva­
dos. Pertencerá aos que experimentaram o sofrimento.
Será negado aos que foram cínicos, duros, se auto-iludi-
ram a ponto de alegrarem-se com a situação presente e
são incapazes de sentir angústia pela ruína para a qual
se dirige a comunidade da corte.
O ensinamento de Jesus nestas palavras duras cons­
titui dois pontos centrais da tradição profética. O pri­
meiro é que a palavra é dirigida e recebida por umn
comunidade minoritária, formada por um grupo marginu-

139
lizado. A crítica profética dirige-se à comunidade domi­
nante, mas não será ouvida (Is 6,9-10). A palavra pro­
fética de coragem jamais é dirigida à comunidade domi­
nante, mas apenas àqueles aos quais não se reconhece
a falsa coragem e a força da consciência régia. O segundo,
que é uma palavra profética de promessa, refere-se a uma
volta radical, o rompimento com a velha racionalidade,
uma verdadeira descontinuidade entre o que foi e o que
será. Por isso, a doutrina de Jesus supunha um contraste
entre aquilo a que nós nos apegamos e o futuro pelo
qual aspiramos. O ministério de Jesus, como o do Se­
gundo Isaías, acontece no limite entre o que, por um
lado, prende e, por outro, liberta. Se apenas aquilo que
prende for positivo, então as palavras serão somente crí­
ticas, mas se houver libertação, então será provável que
as palavras transmitam força. As obras maravilhosas de
Jesus — como dar alimento à multidão, curar doentes,
expulsar demônios, perdoar pecados — foram realiza­
das não em favor dos que estavam presos à ordem antiga,
mas daqueles que ansiavam pela libertação, porque a lei
antiga os iludira ou os oprimira.
As bem-aventuranças foram proferidas habilidosa-
mente, com a finalidade de chamar a atenção para os
contrastes. As maldições descrevem a consciência régia e
numa situação em que há, sobretudo, a força do medo.
Mas aqueles que romperam com aquela consciência, aque­
les cujas vidas se orientaram contra aqueles valores e que
sabem que a comunidade régia é incapaz de cumprir o
que promete, são esses que preparam um novo futuro.
Para estes, uma palavra de Deus sem restrições. A força
desta palavra de bênção vem do fato de Deus possuir
futuros alternativos, de ele ser livre para concedê-los e
de os mesmos não serem, nem derivados e menos de­
terminados pelo presente. Assim, o ensinamento de Jesus
é fiel ao trabalho de Moisés que fez nascer uma comu­
nidade cuja origem não estava em nenhuma outra. O en­

140
sinamento de Jesus reflete a alegria do Segundo Isaías
que despertou uma comunidade, que não se originava da
realidade babilônica. Como o Segundo Isaías, Jesus pode
organizar um futuro que é completamente diferente de
um presente insuportável. Mas voltemos a lembrar que o
referido futuro é energizador somente para aqueles para
os quais o presente já se tornou insuportável. Para estas
pessoas e para uma comunidade assim constituída, o so­
frimento torna-se uma promessa, a reprovação uma ener­
gia e a condenação uma forma de esperança. Os que
acreditam no futuro preparado por Deus são capazes de
entoar cânticos, de dançar, de realizar curas e de perdoar
pecados. Todas estas ações, a cegueira não as pode im­
pedir e são o prêmio dos fiéis àquele futuro.
As pessoas que recebem a graça de Jesus experi-
mentam-na como força. Até ali eles tinham levado vidas
irrelevantes, pois sabiam que os reivindicadores do título
de rei, ou não tinham autoridade para isso ou eram in­
capazes de comunicá-la a qualquer um. Pelo contrário,
a sensível solidariedade de Jesus com os pobres, os con­
siderados inúteis e os sofredores, era vista como uma
autenticidade e uma força que jamais tinham visto. Viam-
-no ser radicalmente desinteressado e por isso profunda­
mente favorável a nós. Era esta exatamente a lição que
Moisés dava a Israel sobre Iahweh. Completamente di­
ferente do faraó e de seus deuses, Iahweh era desinteres­
sado e por isso sua interferência tem força e autoridade.
A autoridade de Jesus, o poder de estranhamente trans­
formar as situações, provinha exatamente de sua pobreza,
da fome, e de seu pesar pelo sofriménto de seu povo.
Sua pobreza podia tornar muitos ricos (2Cor 8,9). Sua
fome tinha poder de satisfazer outros. Sua capacidade de
sentir os sofrimentos dos outros tinha a força de levar
alegria e plenitude a outros. Em sua pessoa, a qual, aos
olhos dos falsos reis, não era uma pessoa, ele possuía
o poder de dar um futuro a seus seguidores.

141
(4) Esta forma de pensar sobre a força soberana
de sua compaixão gratuita, nos leva diretamente à res­
surreição de Jesus, que é o último fato dinâmico do novo
futuro. A violência da sexta-feira preparara o desespero
do sábado (Lc 24,21) e não havia razão para esperar
um domingo depois daquela sexta-feira. Não há explica­
ção para a ressurreição, se tomarmos como ponto de re­
ferência a realidade existente anteriormente. A ressurrei­
ção só pode ser aceita, afirmada e celebrada como um
ato novo de Deus, a quem unicamente se pode atribuir o
poder de criar novas perspectivas para seu povo e deixá-
-lo maravilhado, apesar do desespero anterior.
Por isso, minha preocupação é mostrar que a res­
surreição é digna de fé e ao mesmo tempo só pode ser
compreendida de acordo com o poder surpreendente e
característico das promessas dos profetas. A ressurreição
de Jesus não pode ser vista, à maneira dos bons liberais,
como um desenvolvimento espiritual da Igreja. Nem tam­
pouco deve ser apresentada como uma extravagância da
história de Deus ou como um ato isolado de seu poder.
Pelo contrário, é o último ato profético e dinamizador
com o qual se inicia uma nova história. Uma nova his­
tória aberta a todos mas, de modo particular, recebida
pelas vítimas marginalizadas na antiga lei. O Senhor to-
do-poderoso da Igreja não é uma figura divina no céu
mas é o cordeiro sacrificado, que se afastou da vontade
régia e por isso foi castigado.
Sem diminuir a singularidade histórica da ressurrei­
ção, podemos afirmar que ela apresenta aspectos antigos
de um futuro alternativo contido nas palavras proféticas.
A ressurreição de Jesus tornou possível um futuro aos
deserdados. E a comunidade alternativa de Moisés rece­
beu de Deus um novo futuro, o qual trouxe liberdade
aos servos fiéis à palavra do mesmo Deus. Esta palavra
destruiu um futuro (o do faraó), mas criou outro (o de
Israel), fez a comunidade empenhar-se tanto numa críti­

142
ca radical como num esforço de energia extrema. A res­
surreição de Jesus tornou possível um futuro, como o
fizera o Segundo Isaías anunciando a novidade. Aqueles
que em Babilônia não constituíam um povo, nem tinham
história, recebiam uma volta à pátria, como os pobres,
os famintos e os aflitos que aparecem na história de Jesus.
A ressurreição é um fato genuinamente histórico,
no qual, aquele que é morto triunfa. Mais ainda, esse
fato genuinamente histórico tem dimensões históricas im­
portantes, como é reconhecido, especialmente, em Ma­
teus. De um lado, aparece como ameaça ao regime (Mt
28,11-15), ao mesmo tempo que, de outro lado, Jesus
ressuscitado anuncia sua nova autoridade régia. Agora
ele é o rei que destrona aquele que antes era rei. Sua
ressurreição é o fim dos que não tinham história, como
era ensinado pela escola do rei. Uma história nova co­
meça para os que estavam fora da história. E esta histó­
ria traz às pessoas novas identidades (Mt 28,19), nova
ética (v. 20) e começa exatamente à beira do mar, como
outrora, entre escravizadores mortos, começou a nova
história do novo povo (Ex 14,30).

143
7
UMA OBSERVAÇÃO
SOBRE A PRÁTICA
DO MINISTÉRIO

Em primeiro lugar, quero sintetizar o assunto. Algo


novo aconteceu na história, narrada no Êxodo e devido
à atividade de Moisés. Por um lado, Moisés pretendia
destruir a opressão no império do faraó e por outro,
queria formar uma nova comunidade centrada na reli­
gião da liberdade de Deus e na política de justiça e com­
paixão. O começo da destruição, vamos encontrá-lo nas
queixas e lamentações do povo, ao passo que a energi­
zação começa nas doxologias da nova comunidade.
A atividade de Moisés é demasiado radical para
Israel, contudo e talvez, por isso mesmo, logo aparece
uma tentativa de conter a nova história do poder. A an­
tiga história do faraó vamos encontrá-la continuada na
monarquia de Israel. Esta monarquia, interessada na pró­
pria segurança, torna-se eficiente no processo de silen­
ciar a crítica e de negar a energização, ainda que os reis
jamais tenham podido acabar com os profetas. Os pro­
fetas de Israel continuam a atividade radical de Moisés
enfrentando a própria realeza. De um lado, Jeremias põe
em prática a crítica radical contra a consciência da corte.
Para realizá-lo, planeja um funeral e fala publicamente
144
da angústia pela morte de Israel. Procede assim com o
fim de atingir a cega negação do grupo do rei, o qual
pretendia que tudo continuaria para a frente como tinha
vindo até ali. Por outro lado, o Segundo Isaías põe em
prática a energização radical contra a consciência do rei
e o faz falando de uma entronização e trazendo a intuição
do renascimento de Israel para a expressão pública. Seu
objetivo é provocar o desespero da comunidade régia, a
qual esperava que as exigências de Moisés fossem para
sempre silenciadas.
Jesus de Nazaré, um profeta e mais que um profeta,
como o provamos, pôs em prática, na forma mais radical,
os principais elementos da pregação e da imaginação pro­
fética. De um lado, ele praticou a crítica do mundo mor­
tal a sua volta. A destruição realizou-se plenamente em
sua crucifixão, na qual ele assumiu aquilo mesmo que
fora destruído. Por outro lado, Jesus põe em prática
toda a força do novo futuro, oferecido por Deus. Este
dinamismo se consuma plenamente na ressurreição, na
qual assume o novo futuro ofertado por Deus.
Em segundo lugar, esta nota refere-se à prática do
ministério. Sem ela, toda discussão perderia seu sentido
concreto, próprio das discussões sobre a profecia. Sem
excetuar certos ministérios em lugares especiais, pode-se
pensar que a prática do ministério é algo que pertence
aos que estão em lugares convencionais da vida paroquial
e a outras formas derivadas do mesmo modelo. Defen­
demos com convicção que o ministério profético pode e
deve ser praticado naqueles lugares, apesar de muitas
oposições se levantarem contra o mesmo. Em primeiro
lugar, o ministério é praticado pela luta diária das coisas,
e ninguém deve ignorar isto. Talvez as pressões diárias
possam ser diminuídas mas não ignoradas. Em segundo
lugar, o ministério existe, muitas vezes, em congrega­
ções burguesas, e talvez completamente obstinadas e nas

145
quais não há abertura nem tolerância para o ministério
profético.
Muitas outras coisas ainda poderíam ser ditas além
das que já tentei dizer no presente trabalho. Procurei
deixar claro que o ministério profético não consiste em
ações espetaculares de cruzadas sociais ou em medidas de
indignação desgastante. Pelo contrário, o ministério pro­
fético consiste em apresentar uma percepção alternativa
da realidade e em levar as pessoas a ver a própria histó­
ria à luz da liberdade de Deus e de sua vontade de jus­
tiça. Os problemas da liberdade de Deus e de sua von­
tade de justiça não são sempre, necessariamente, expres­
sos como grandes problemas do momento. Contudo, eles
são percebidos sempre e quando as pessoas procuram vi­
ver juntas e preocupar-se com o próprio futuro e a pró­
pria identidade. Sendo assim, deste nosso estudo, sur­
gem as seguintes conclusões:
1) O papel do ministério profético é despertar uma
comunidade alternativa, que conhece alternativas dife­
rentes para diferentes situações.
2) A prática do ministério profético não é algo de
especial feito duas vezes por semana. Pelo contrário, ela
deve ser realizada em e com todos os atos dô ministério
— tanto no aconselhamento como na pregação, na litur­
gia como na educação. Refere-se a uma posição e atitude
ou a uma interpretação do mundo, da morte, da palavra
de vida que pode levar luz em cada situação.
3) O ministério profético procura atingir o torpor
com o fim de perceber este corpo de morte ao qual esta­
mos presos. É claro que, às vezes, o torpor desperta-nos
para a raiva e o ódio, mas é mais provável que o faça
quando atingido pela angústia e pelo pranto. A morte,
que é a nossa condição, não exige indignação, mas sim
angústia e sofrimento. A participação pública do sofri­
mento é uma forma de mergulharmos na realidade e
deixarmos a morte continuar.

146
4) O ministério profético tenta aprofundar o deses­
pero, de modo que se comece a acreditar e a querer abra­
çar o novo futuro. Há um desejo de viver num mundo
que se tornou enfadonho. E sabemos que o único ato
que nos comunica vida é uma palavra, um gesto, um
ato de fé em nosso futuro e sua afirmação desinteressada.
Numa sociedade que tem grandiosas iniciativas,
atualização contínua e inúmeras outras coisas, perdeu-se
a capacidade de lamentar a morte do velho mundo. Igual­
mente, estruturada na autogratificação, a capacidade de
receber com cânticos de agradecimento o novo mundo
que nos é oferecido, quase não existe. Contudo, angústia
e louvor a Deus são formas da crítica e da força dos pro­
fetas, que devem ser mais procuradas, sobretudo, em
nosso tempo.
Em terceiro lugar, enquanto faço estas reflexões
sobre o ministério, e especialmente sobre meu próprio
ministério, tenho certeza de que os verdadeiros obstá­
culos não estão na minha compreensão ou na receptivi­
dade das pessoas. Sei que eles advêm de minha própria
insegurança a respeito desta percepção. Sou um burguês
e um empedernido como qualquer outro ao qual eu pos­
sa levar o ministério. E, como muitos outros, não tenho
certeza total de que a estrada do rei não seja, de fato,
a melhor e nem de que o séquito do rei não seja o que
governa os realmente honestos. Eu, como muitos outros,
sinto-me inseguro a respeito da comunidade alternativa,
inclusive, a dos pobres, dos famintos, dos que sofrem,
repito, sinto-me inseguro se elas são mesmo a onda do
futuro de Deus. Mas, “como ao povo, assim acontecerá
aos sacerdotes” (Os 4,9). A verdade é que a situação no
ministério é muito semelhante entre muitos de nós e que
fora do ministério não há ninguém sem angústia. E esta
reflexão nos traz clareza mostrando que teremos de pra­
ticar o ministério, apesar de nossos egos conflituados.
Profeta algum, nem o próprio Jesus (cf. Mc 14,36),
147
trouxe uma mensagem que não fosse de conflito. Este
realismo o encontramos no fim das bem-aventuranças
(Lc 6,22-23). Ele nos relembra mais uma vez que esta
fé radical não é uma realização nossa, pois se o fora,
nós a quereriamos e nem a realizaríamos. Mas, ela é um
dom e temos que esperá-la com receptividade, temos de
vigiar e orar.
Talvez nossa própria situação fale do que estamos
sugerindo. Por causa de nossa pequena capacidade de
sentir a morte em nossas vidas e de nos entusiasmarmos
com o novo futuro, por causa disso é provável que pro­
gridamos e regridamos. Não somos melhores a esse res­
peito do que os filhos da comunidade do rei e por isso
mesmo devemos nos empenhar num esforço de nos tor­
narmos aqueles que somos chamados a ser. Chego a pen­
sar que não há melhor síntese do ministério profético
do que a palavra de Jesus: “Bem-aventurados vós, que
agora chorais, porque haveis de rir” (Lc 6,21) ou esta
outra: “Bem-aventurados os aflitos porque serão conso­
lados” (Mt 5,5).
A preocupação de Jesus é o prêmio de seu reino e
ele o prometia aos que eram convidados. Mas ao mesmo
tempo, era muito claro ao afirmar a necessidade de sofrer
no mundo presente *. Jesus tem uma visão das coisas,
podemos dizer, totalmente dialética. Ele não é como os
conservadores para os quais há apenas um mundo — o
presente — mas também não é como os idealistas que
anseiam pelo futuro sem se preocupar com o presente.
Há muito que ser feito no presente. O trabalho angustia­
do tem de ser realizado no presente para que alcancemos
o futuro. Temos de nos lamentar por aqueles que descon-
1 Este é o argumento de George A. Benson em Then Joy Breaks
Tkrough, New York, Seabury Press, 1972, a nível de vida pessoal. Assim
ele começa seu último capítulo: “A ressurreição de Cristo é a transfor­
mação do tempo e o modelo da alegria cristã” (p. 123). O livro todo é
sobre o sentido da cruz na vida de cada dia.

148
nhecem a transitoriedade de sua situação. Temos de nos
lamentar com aqueles que conhecem a dor e o sofrimento
e, no entanto, não possuem força ou liberdade para os
transformarem em discurso. É um discurso difícil pois
exige o trabalho angustiado como condição para o prê­
mio. Deve anunciar que aqueles que não se preocuparam
bastante com o sofrimento não receberão o prêmio.
O pranto é exigido de outra forma também. Não
é uma exigência formal e externa, mas realmente é a úni­
ca porta e a única entrada para o prêmio. Neste contex­
to, não é apenas uma afirmação nítida, mas é o sumário
de toda a teologia da cruz. Esta forma de desprendi­
mento angustiado leva a uma aspiração fecunda e a acei­
tação convicta da transitoriedade do presente leva-nos à
novidade do futuro. Em nossas vidas pessoais chegamos
quase a este conhecimento, quando experimentamos um
pouco do processo do sofrimento 2. Mas ainda nos falta
aprender a aplicá-lo à realidade da sociedade. E final­
mente, temos de aprendê-lo de Deus, que, de formas a
nós desconhecidas, sofre e espera até o cumprimento
final de suas promessas para então regozijar-se plena­
mente.

2 A pesquisa de Elizabeth Kübler-Ross em On Death and Dying,


New York, Macmillan, 1969, não só me ajudou grandemente, mas da
mesma tomei algo de empréstimo. Consultar minha discussão sobre o pa­
radigma que ela apresenta da fé de Israel em “The Formfulness of Grief”,
Interpretation 31 (1977), 263-75.

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ÍNDICE

7 Prefácio
9 1 — A comunidade alternativa de Moisés
33 2 — A consciência do rei opondo-se à
contracultura
54 3 — A crítica dos profetas e o assumir do pathos
79 4 — Energização profética e o emergir da intuição
104 5 — Crítica e pathos em Jesus de Nazaré
127 6 — A energização e a intuição em
Jesus de Nazaré
144 7 — Uma observação sobre a prática
do ministério

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