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DEUS EM DAVOS

Algumas pessoas não acreditam em Deus. Outras acreditam, mas


acham que Deus não faz nada. Não o levam a sério. Levar Deus a
sério, para um cristão, significa antes de mais nada levar a sério a
vivência da Trindade.

Muitos de nós ainda não terminamos de entender a Trindade. Muitos


não entendemos que a Trindade existe para isso mesmo, para não ser
entendida com a razão humana e permanentemente desafiar a razão
para que se supere e ultrapasse seus limites.

A Trindade significa que Deus se exerce na história e que também se


exerce no intelecto humano. O Deus trinitário seria inconcebível sem
sua configuração histórica – o Filho é Deus na história, embora
ultrapasse a história nos dois sentidos: antes (ex Patre natum ante
omnia saecula) e depois (cuius regni non erit finis). Se Deus existisse
apenas fora da história, teríamos um Deus inacessível e indiferente.
Se existisse apenas dentro da história, teríamos um Deus sem o poder
de libertar-nos deste labirinto terreno.

Além disso, Deus fala da história e interpreta a história: qui locutus


est per prophetas. O Deus do Velho Testamento já é uim Deus
histórico e historizante, um Deus que faz história e que vive na
história do seu povo. Mas é um Deus que ainda não se desdobrou no
campo, ainda não cindiu-se de si mesmo para completar-se, ainda
não mergulhou no devir com a incarnação.

Deus se historiza na palavra, no logos. Deus ocorre sobretudo na


palavra “Deus”. Cada vez que a pronunciamos estamos abrindo um
rombo na realidade e invocando a luz incriada que nos desequilibra,
que nos retira do puro pertencer e nos joga em um exílio sobre a
terra.

Na incarnação, Deus deixa de ser apenas “aquele que é” e passa a ser


também aquele que não é. Deus ali se incompleta para se superar a si
mesmo, para atingir “a lua além de Deus, álgida e ignota” de que fala
Fernando Pessoa.

A ação de Deus na história é o que poderíamos chamar de teopolítica.

O antigo escudo da fé diz: “Deus est Pater”, “Deus est Filius”, “Deus
est Spiritus SanctuS”, mas também diz “Pater non est Filius”, etc.

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A Trindade é a grande diferenciação redentora. Deus ali deixa de ser


idêntico a si mesmo (“eu sou aquele que é”) para abrir espaço ao
homem, deixa de ser imóvel e imutável (a Trindade é Deus em
movimento), deixa de ser tautológico para adquirir significado (nesse
grande mistério, o fato de que a palavra tem sentido, aí vivemos a
cada minuto a transcendência, vivemos a majestade e a humildade
divina).

Ultimamente temos deixado Deus fora da história e fora da palavra –


inclusive fora da palavra “Deus”.

Deus precisa ser falado. Deus não se satisfaz em existir, precisa agir,
e isso implica palavra e história.

Além de Deus ser histórico, a história também é divina. A história nos


leva ao desconhecido e nos proporciona permanentemente um novo
desconhecido, para que nunca nos esgotemos. Toda história é a
história da salvação porque nos salva da repetição, do “eterno
retorno”. Deixado a si mesmo o homem se repete e se esvai na
tautologia.

Não por acaso o marxismo, esse grande anti-cristianismo, prega o fim


da história como seu objetivo último. O fim da história é o fim de Deus
no homem, de Deus para o homem.

Alguns cristãos querem uma fé racional. Mas uma fé racional... what’s


the point?

A Trindade não é natural nem racional. Não se encaixa nas nossas


regras de pensamento, não respeita Parmênides (estin ê ouk estin, ou
é ou não é). Justamente por não ser natural nem racional ela nos abre
ao infinito.

O pensamento humano está sempre escorregando da Trintade para o


unitarismo, mas o Cristo está lá, sempre puxando o homem de volta
para sua própria aventura trinitária. (Para os católicos, quem está
sempre lá também é Maria, Mater Dei, gentilmente desafiando a nossa
razão e abrindo as fronteiras do nosso pensamento. Como pode haver
uma mãe de Deus se Deus existiu desde sempre? Pois é, como pode.
Não é essa ideia de nascimento de um Deus de uma mãe mor tal uma
concepção um tanto pagã? Sim, mas não é o cristianismo que é meio

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pagão, o paganismo é que é pré-cristão, o paganismo deságua no


cristianismo.

O cristianismo postou-se como um cristianismo católico, universal,


não somente porque se dirigiu a todos os povos mas também porque
acolheu todas as religiões pagãs, redimindo-as. Jesus não veio
apenas para salvar os homens, veio também para salvar os deuses.

“Deus” é um nome próprio ou um substantivo comum? Os dois. É um


substantivo comum que designa um ser específico, algo contraditório
pelas regras da gramática. “Deus” é um substantivo concreto ou
abstrato? Os dois. “Deus” não se diz como se diz “pedra” mas também
não se diz como se diz “amor”. Deus é um princípio etéreo mas que
existe concretamente em um lugar semântico determinado. Deus não
existe fora da palavra “Deus”, como se fosse uma ideia sobre a qual
algum dia alguém decide: “olha só, vamos chamar isso de ‘Deus’”.

Vivemos num mundo em que não se fala de Deus. Mesmo os cristãos


não falam de Deus, como se já soubessem o que Deus é e não
precisassem investigá-lo. Ora, ser cristão é não saber ao certo o que
Deus é. Crer em um Deus que não se esgota em algo definível, não se
esgota numa unidade, mas que se move e circula no espaço
indelimitável da Trindade. No espaço transmetafísico do tempo e no
espaço humano da história.

Não são propriamente os “valores cristãos” que estão ausentes da


nossa des-civilização pós-moderna globalizada. Os valores estão por
toda parte. O que está ausente é a fé, sem a qual esse valores não
fazem sentido. Usamos muitas vezes a expressão “valores” para
podermos falar de nossa fé sem sermos apedrejados em praça
pública. Não nos sentimos autorizados a falar em público de Deus.
Mas os valores não substituem a Deus.

Se pronunciarmos “Deus” uma única vez estaremos dizendo muito


mais do que se pronunciarmos “valores” um milhão de vezes.
“Valores” são uma posição de recuo de Deus. “Valores” é bem melhor
do que nada, mas “Deus” é infinitamente melhor do que “valores”.
Somente dizendo “Deus” estaremos dizendo tudo o que queremos
quando dizemos “valores” por medo de dizer “Deus” – ou ao menos
apontando na direção de tudo – já que Deus não se esgota em ser
dito mas precisa ser dito para não esgotar-se.

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DEUS EM DAVOS

Pós-modernidade pode definir-se como o mundo onde as pessoas


não conseguem viver a distinção criativa e a tensão energética entre
a palavra e a coisa, nem a distinção homem-mulher, nem a distinção
Deus-homem. A distinção dói, mas somente ela gera e cria. A pós-
modernidade não tolera a dor e por isso tenta eliminar, por exemplo, a
distinção homem-mulher, e desse modo pratica com cada vez mais
frequência o ritual bárbaro e sangrento da “mudança de sexo”. A
diferença radical e intransponível homem-mulher se transpõe e se
transcende no mistério da concepção: no filho. A diferença radical e
intransponível Deus-homem também se transcende no Filho. Somente
quem aceita viver a diferença consegue transcendê-la.

Deus não faz parte dos grandes temas globais a cuja discussão as
pessoas se dedicam em Davos (ou fingem dedicar-se, pois ninguém
ali discute nada). A religião até pode ser – mas Deus não. “Você não
pode falar de Deus em público, muitas pessoas não acreditam em
Deus, guarde para si.” Mas eu não acredito no alarmismo climático,
não acredito nas virtudes da imigracão ilimitada, não acredito no
reducionismo mecanicista, e no entanto as pessoas falam de tudo isso
livremente na minha frente. “Mas Deus é outra coisa.” Sim, Deus é
outra coisa.

Mais do que um lugar e um encontro de personalidades, Davos é um


jogo de linguagem. Davos é uma maneira de combinar palavras de
acordo com certas regras, com o objetivo de reconfirmar o poder de
uma certa estrutura verbal sobre a mente humana. (Não somos hoje
escravos do capitalismo, nem – pelo menos no caso de alguns de nós
– escravos do comunismo, somos escravos de uma estrutura verbal.
Na verdade sim, somos escravos do comunismo, na medida em que o
comunismo é um sistema verbal.) Na estrutura globalista não há um
poder central exercido por um grupo de pessoas ou instituições,
ninguém maneja o sistema globalista – existe simplesmente o sistema,
fechado em si mesmo, e o poder pertence a uma estrutura verbal, a
uma certa mecânica produtora do discurso.

Deus abala essa estrutura. Quem diz “Deus” se recusa a jogar o jogo
“Davos”.

Em Davos, o presidente Bolsonaro disse: “Quero mais que um Brasil


grande, quero um mundo de paz, liberdade e democracia. Tendo como
lema “Deus acima de tudo”, acredito que nossas relações trarão

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infindáveis progressos para todos.”  A palavra “Deus” introduz a Deus


ao quebrar o jogo do discurso. A palavra “Deus” quebra qualquer jogo
de discurso porque é uma palavra que em si mesma quebra a
distinção absoluta “estin ê ouk estin”, nem abstrata nem concreta,
nem nome próprio nem substantivo comum, cujo referente faz parte
do referido e vice-versa, tal qual uma impossível moeda de apenas
uma face, uma fita de Moebius com apenas uma superfície.As
pessoas que jogam o jogo “Davos” não negam frontalmente a Deus,
apenas negam o direito de dizer “Deus”, o que é mais sutil e mais
nocivo.

E essas pessoas vivem sem história. Não negam a história


frontalmente. Fazem troça do “fim da história de Fukuyama”, mas o
praticam, pois rejeitam qualquer vetor de mudança, qualquer corrente
ou manifestação que acenda o processo histórico. Porque vivem num
sistema de discurso.

Trump, Bolsonaro, o nacionalismo vivem na realidade, atuam na


história, e abrem lugar para Deus. A China não abre lugar para Deus.
Por isso Davos aplaude a China e odeia Trump. Trump e Bolsonaro
ameaçam o sistema de dominação verbal, a China não. A China está
jogando o jogo “Davos”, o nacionalismo não.

A nação acende a história e a história acende a Deus, por isso a clara


conexão hoje existente entre Deus e o naionalismo.

A alma humana hoje é o campo de batalha entre Deus e Davos.

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