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O SOLDADO E A SAÚDE NO BRASIL: UMA

REFLEXÃO SOBRE AS GESTÕES MILITARES


NO MINISTÉRIO DA SAÚDE DURANTE AS
EPIDEMIAS DE MENINGITE (1971-1974) E
NA PANDEMIA DA COVID-19
Rodolfo Barbosa

Introdução

Na História Contemporânea, o papel das forças armadas na


composição e manutenção dos estados democráticos tem sido
frequentemente discutido dentro das sociedades. O fato de ser
delegado às Forças Armadas o direito do uso da força, se neces-
sário, na execução de suas tarefas visando à manutenção da or-
dem vigente, exige dessa instituição autoconhecimento elevado
no tocante ao seu papel na sociedade para não extrapolar suas
competências e planos de ação.
No entanto, em alguns momentos históricos, principalmen-
te quando uma nação enfrenta enfraquecimento ou vacância
em um ou mais de seus poderes constituídos, tem sido comum
intervenções de natureza militar, conforme ocorreu por muito
tempo na América Latina durante a Guerra Fria e mais especi-
ficamente, no Brasil. Nosso país, ao longo de sua história repu-
blicana, foi marcado por agitações sociais que culminaram em
eventos com forte envolvimento de militares. Tal fato repetiu-
-se historicamente por meio de golpes de estado ou tentativas
de insurreições, da Proclamação da República, com Marechal
Deodoro (1889), passando por Floriano Peixoto (1891), pelo
Tenentismo (1920-1930), chegando em Getúlio Vargas (1930;
1937) e culminando no Golpe Militar de 1964.

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Situações como essa, principalmente as que descambaram


para a formação de um estado de exceção autoritário, até hoje
convidam militares e sociedade civil a relembrarem o papel fun-
damental das forças armadas na garantia das instituições re-
publicanas. Deve-se refletir, sobretudo, a respeito das conse-
quências para a sociedade como um todo, quando tal papel é
mal interpretado ou mal executado em função de uma eventual
vacância ou enfraquecimento de poder. Para tanto, a relação
civil-militar deve ser debatida sempre que necessário. Iniciativa
primordial para se evitar “tropeços históricos” que resultam em
riscos à sociedade, muitas vezes sem nem mesmo a devida retra-
tação ou mea-culpa por parte dos responsáveis.
Assim sendo, ao se propor a reflexão a respeito das atuações
históricas das forças armadas na gestão do Ministério da Saúde,
especificamente, em dois períodos históricos nevrálgicos para
a população brasileira (Epidemia de Meningite, entre 1971 e
1974 e a atual pandemia de Covid-19), o presente texto preten-
de analisar as ações dos gestores militares no âmbito da saúde
da população em ambas as situações. Dessa forma, pretende-se
traçar uma comparação entre os modi operandi das Forças Ar-
madas nesses dois momentos históricos.
A referida análise das posturas dos militares brasileiros nas
tomadas de decisão de ambas as gestões realizar-se-á à luz das
propostas teóricas do cientista político liberal Samuel Phillips
Huntington, autor de “O Soldado e o Estado – Teoria e política
das relações entre civis e militares”. Dessa forma, se pretende
entender melhor as consequências de eventuais intervenções de
militares, com suas práticas e sistemas de crenças estruturantes
próprios, em áreas institucionais nas quais eles não foram pre-
parados para atuar.

Conhecendo a mentalidade militar

As boas relações entre civis e militares são, inegavelmente,


parte fundamental da política de segurança de um Estado demo-

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crático e de seus valores socioeconômicos e culturais. Nações que


conseguem manter equilíbrio estável na relação civil-militar são
melhores sucedidos na busca por segurança institucional. Por ou-
tro lado, países que não atingem esse objetivo desperdiçam recur-
sos desnecessariamente e criam riscos às suas sociedades civis.
Para que se compreenda as ações que norteiam a gestão
militar de uma forma geral, é necessário conhecer a fundo a
mentalidade militar, pois se trata de um conceito que carece de
um entendimento preciso para que dessa forma, se torne um
instrumento útil para se realizar uma análise. Tal mentalidade
fundamenta-se historicamente nos princípios da lealdade e da
obediência e, por vezes, senão sempre, dá margem ao questio-
namento da sociedade civil quanto aos limites dessa fidelidade e
quanto ao real beneficiado por tal rigor servil.
De acordo com Samuel P. Huntington, as forças milita-
res podem ser vistas como compostas por dois imperativos: o
primeiro diz respeito à necessidade do Estado de se assegurar
contra ameaças externas; já o segundo é referente ao valor da
força militar dentro da perspectiva ideológica que seja a predo-
minante na sociedade naquele momento. A essência das forças
armadas transita sempre na mistura desses dois imperativos e,
nunca, na preferência de um ou outro.
Os estudos de Huntington, em essência, apontam os oficiais
como o grupo cujas tomadas de decisões e ordens são as de
maior influência no âmbito da Gestão Militar. Caberia a eles,
dessa forma, por serem parte de um plantel de pessoas capaci-
tadas, com diversas formações acadêmicas e profissionais, um
maior senso de responsabilidade para com a sociedade em geral,
transcendendo o simples papel de gerenciar a violência. Por esse
prisma, Huntington difere o guerreiro moderno do clássico,
principalmente no que concerne o oficialato, pelo fato do guer-
reiro moderno dominar um campo de conhecimento específico,
ser um profissional (médico, engenheiro, clero) além da capaci-
tação bélica. No entanto, o Alto Oficialato das Forças Armadas
também possui um senso corporativo fechado e, tais caracterís-

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ticas eventualmente problematizam as relações entre civis e mili-


tares. Para Huntington, o militar tem como expertise principal a
“gerência da violência” e, para se alcançar melhor esse objetivo,
foi necessário o aumento de saber em todas as áreas para atingir
o seu próprio benefício e da sua instituição (Huntington, 1996).
No entanto, em qual proporção a sociedade civil é beneficiada
com a aquisição dessas capacitações ainda é algo incerto.
No Brasil, foram observadas em alguns momentos essas es-
pecializações técnicas e científicas dos militares promovendo uma
evolução nos serviços das forças armadas destinados a assistir
áreas remotas ou carentes do país, melhorando as condições da
população abrindo estradas, erguendo pontes, levando eletricida-
de, contribuindo para a unificação nacional e garantia das suas
fronteiras. No entanto, tais esforços ainda são pouco aproveitados
pelos governos federais e pouco divulgados quanto às suas execu-
ções. Concomitantemente, no âmbito militar, testemunhou-se ao
longo dos anos, a criação de uma rede de assistência médica para
seus membros e dependentes, composta de postos de saúde, poli-
clínicas, hospitais e hospitais de campanha. Embora eventualmen-
te acionada para prestar serviço de saúde e socorro emergencial à
população civil, o serviço de saúde das Forças Armadas representa
uma ampla rede nacional de “hospitais públicos” destinados a um
segmento específico da sociedade: a “família militar”.

O “espírito de corpo” militar

Para Huntington (1996), os militares são céticos por natu-


reza, considerando o conflito e a disputa de poder entre grupos
um padrão humano imutável. São forjados a enxergar a realida-
de onde o uso da violência é algo enraizado na natureza biológi-
ca e psicológica da espécie humana. Aliado a isso, os militares,
sobretudo o Alto Oficialato, que toma as decisões mais deter-
minantes para as Forças, tem sua rotina de trabalho afastada da
sociedade civil, tanto física como socialmente, alinhavado por
uma linha moral que o separa do civil, que é simbolizada pela

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sua farda e por sua insígnia de graduação. Nas academias mili-


tares, adquirem a noção de que são um dos “pilares da socieda-
de” e isso pode provocar uma noção de exclusividade.
É conhecido que alguns grupos podem inspirar em seus mem-
bros uma sensação de unidade orgânica, de identificação restrita
a uma referida associação de pessoas, que os difeririam daque-
les que não compartilham daquele conhecimento ou conjunto de
experiências vividas em conjunto. Assim também, a ética militar
sofre uma influência corporativa por natureza, chamada de “Es-
pírito de Corpo” pelas Forças Armadas no Brasil. Seu modus ope-
randi para garantir a segurança do Estado consiste em trabalhar
em conjunto, seguindo uma hierarquia rígida, amparando, pro-
tegendo e assistindo seus membros. Samuel P. Huntington ainda
aponta que o corporativismo do oficialato é específico e restrito,
separando-os claramente como uma casta especial na sociedade.
Somando tal “Espírito de Corpo” ao conhecido corporativismo
da profissão médica e seus Conselhos Federais e Regionais, os ris-
cos à nossa frágil sociedade democrática pós-moderna tornam-se
evidentes. Sobretudo baseando-se na observância das ocasiões
históricas quando os militares estiveram à frente da gestão do
Ministério da Saúde e de agências reguladoras no país. O pesqui-
sador norte-americano também alerta em seu estudo político que
o nível da autoridade do Alto Oficialato das Forças armadas na
estrutura governamental pode variar perigosamente dependendo
da força institucional do governo em vigência. Um período de
gestão política civil equivocada pode afetar a relação do oficialato
com os representantes institucionais. Assim, o risco da sociedade
ter uma Força Armada disciplinada e fiel depende de como a ins-
tituição se enxerga em relação ao governo que ela deve assegurar.
Se em um determinado governo as Forças Armadas tendem a se
enxergar como superior a todo o resto da estrutura do Estado;
ou se enxerga como algo “a parte”, independente das institui-
ções democráticas, o risco de ruptura institucional é maior para
a sociedade. Já quando sua hierarquia é submetida a um órgão
de Estado e um único Comandante, aparentemente a situação é

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mais estável para a manutenção do Estado Democrático de Direi-


to, uma vez que o governo vigente não flerte com o autoritarismo.
A estrutura hierárquica e disciplinar punitiva das Forças Arma-
das proporciona situações administrativas que, uma vez à luz do
Regimento Disciplinar, não há espaço para questionamentos ou
ponderações às ordens diretas dadas pelos superiores aos seus
subordinados. Mesmo admitindo que, em uma situação real de
guerra ou guerrilha, tal atitude de comando seguido de obediên-
cia imediata e irrestrita seja a mais adequada para manobras com-
bativas, a sociedade civil do Estado Democrático de Direito não
admite espaço para tal postura no trato com os demais Poderes
Republicanos, com a imprensa e com a opinião pública. Afinal, os
pilares do militarismo, que são a disciplina e a hierarquia (Exér-
cito Brasileiro, 2002) puderam ser eventualmente observados, ao
longo da História, sendo usados como justificativa para práticas
omissas e autoritárias em relação à sociedade civil. Sociedade
essa que é a causa principal da existência de tal instituição.
Para se atingir o equilíbrio na relação civil-militar, o Estado
precisa ser considerado elemento dirigente ativo da sociedade e
responsável por gerenciar e distribuir os seus recursos. Um con-
trole objetivo desses riscos de conflitos seria priorizar o profis-
sionalismo da Força Militar com relação à sua atividade fim que é
garantir a segurança institucional do Estado e a segurança física
da população. Dessa forma se reduziria drástica e concomitante-
mente sua atuação nas discussões e práticas políticas do Estado,
alinhavada com o compromisso constante da classe castrense em
respeitar as estruturas democráticas do referido Estado (Hun-
tington, 1996). Contudo, a classe militar com seu “espírito de
corpo”, principalmente quando agrega em sua formação, a car-
reira médica, vem se revelando um grupo capaz de influenciar
até mesmo nas Agências Reguladoras e nos Conselhos Federais e
Regionais de Medicina, entre outras carreiras de Saúde em favor
de políticas consonantes com os interesses de governos autori-
tários ao invés do Estado de Direito. Esse uso questionável da
“lealdade” e do “patriotismo” ocorreu com grande evidência em

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dois momentos históricos do Brasil: nas epidemias de meningite


entre 1971 e 1974 e a atual pandemia de Covid-19.

O obscurantismo militar nas epidemias de meningite


(1971-1974)

No auge da repressão do Regime Militar, instituído em


1964, o Governo Federal implementou mudanças estruturais
nas competências do Ministério da Saúde. O Regime Militar
reformulou a Política Nacional de Saúde e, com ela, a prestação
de assistência médica ambulatorial, a implementação de ações
dessa de prevenção à saúde e o controle sanitário. Além disso, o
desenvolvimento de pesquisas científicas na área da saúde tam-
bém foi encampado ficando sob controle restrito dos militares.
Tais alterações transformaram o Ministério da Saúde no órgão
máximo de gestão da área, que foi reorganizado administrati-
vamente e se tornou responsável pela condução das políticas
públicas de saúde no país, sob administração militar.
Ainda em 1970, o governo militar criou a Divisão Nacional
de Epidemiologia e Estatística da Saúde (DNEES), no Departa-
mento de Profilaxia e Controle de Doenças. Tais instituições de-
veriam ser a fonte governamental de monitoramento da popula-
ção quanto às principais doenças epidêmicas e endêmicas. Logo
após, foi instituída a Fundação Oswaldo Cruz, congregando
inicialmente o então Instituto Oswaldo Cruz com a Fundação
de Recursos Humanos para a Saúde, futura Escola Nacional
de Saúde Pública (ENSP) e o Instituto Fernandes Figueira. O
referido período político revelou a forma sui generis adotada na
reestruturação e aparelhamento governamental dos institutos de
pesquisa e gerenciamento de dados. Tal fenômeno veio a deixar
evidente o cenário de fragilidade da sociedade brasileira na épo-
ca, desinformada, vulnerável, sem representatividade popular,
prestes a ser acometida por uma epidemia até então “desconhe-
cida” e sem ações de combate efetivas estabelecidas.

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Em meio a esse cenário de insegurança, surge no ano de


1971 os primeiros casos de Meningite C, vindo a persistir no
país, tendo seu ápice em 1974, ainda sob o regime militar. Tal
período foi considerado o mais autoritário quanto à repressão
dos direitos civis e liberdade de ação da imprensa. Por ocasião do
surgimento da meningite, ainda em 1971, as autoridades haviam
sido informadas por médicos pesquisadores que havia uma epi-
demia da doença a caminho. Naquela época, grandes epidemias
de meningite já haviam sido observadas e registradas em outros
países. Contudo, os governantes militares brasileiros adotaram
uma postura negacionista, ignorando a sua existência, pois nada
poderia ofuscar o sucesso do “milagre econômico”, tão propa-
lado na época. Nada poderia alterar a rotina produtiva do país.
A partir da análise de jornais da época, pode-se perceber
como a doença, no seu início, quase não foi divulgada, tendo um
posterior salto no número de publicações e uma grande exposi-
ção pelos meios de comunicação a partir do seu agravamento até
o ano de 1974. No início da epidemia, os meios de comunicação
foram colocados sob censura com relação ao avanço da doença,
considerando tal medida como uma questão de segurança nacio-
nal e patriotismo. Nesse ponto, é curioso se observar que, mais
uma vez na história, o patriotismo é um conceito frequentemente
recorrido por governos autoritários, no intuito de segregar como
“antipatriotas” ou “inimigos da nação”, aqueles que divergem
em pensamento do poder vigente (Schneider, 2015).
Tal disrupção no processo de divulgação das informações
para a população influenciou negativamente na imagem inter-
nacional do país. Afinal, a doença bem como sua escalada, eram
resultados de fenômenos sociais presentes na realidade social
brasileira e que não interessava serem expostos. Lamentavel-
mente, por medo ou conivência, não houve transparência por
parte da maioria da imprensa nacional durante o regime militar,
fenômeno consonante com a maioria dos regimes autoritários
vigentes na América Latina naquela época.

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Dessa forma, a meningite se espalhou, inicialmente na cidade


de São Paulo, avançando para regiões adjacentes e, depois para
o restante do Brasil, pelo interior. Em vários jornais de época
pesquisados, vê-se o quão evidente eram as relações da mídia
com o governo, apoiando de forma incondicional, colaborando
com os agentes públicos. Tal postura se tornou hegemônica
entre os meios de mídia desde 13 de dezembro de 1968,
quando o decreto do Ato Institucional n° 5 foi instituído pelo
então presidente da república General Costa e Silva. Durante
essa época, o Brasil enfrentou os extremos da repressão. O
Congresso Nacional foi posto em recesso, parlamentares foram
cassados, e os poderes federativos autônomos dos estados e
municípios foram desconsiderados. Além disso, os direitos
políticos de todos os cidadãos foram suspensos e a garantia de
qualquer habeas corpus revogada. O Regime Militar apoiava-se
na doutrina da “segurança nacional”, segundo a qual os milita-
res deveriam defender a nação de supostas ameaças internas.
As Forças Armadas e policiais, durante o regime militar, se
viram no direito de reprimir violentamente os seus opositores
políticos, lançando mão, mais uma vez, do Estado de Exceção
e do conceito de excludente de ilicitude em suas práticas co-
tidianas. A imprensa, passou a sofrer ainda mais com rígidos
mecanismos de repressão e censura do governo, cujo intuito era
suprimir matérias sobre a política interna.
Em 1971, o termo “epidemia” nem era mencionado à popu-
lação por meio das autoridades entrevistadas pela mídia da época.
Porém, ao chegar o inevitável momento em que a doença atingiu
a população mais abastada financeiramente, a pressão por infor-
mação cresceu. As reportagens intensificaram-se à medida que a
doença e, consequentemente, as mortes se aproximavam da classe
média e da elite. Ou seja, enquanto a doença atingia os pobres,
era estrategicamente aceitável mascarar os eventos que ocorriam.
A meningite poderia até mesmo, acreditam alguns, ter sido
considerada uma forma de erradicação da pobreza por parte de
segmentos do governo, conforme sugere a sua deliberada ne-

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gligência. Contudo, a questão ganhou mais espaço na mídia na


medida em que a doença atingiu parte da população com maior
poder de influência sobre as autoridades. Aliado a isso, a nega-
ção da doença não pôde perdurar além do ano de 1974, quando
a partir de maio daquele ano, surge a variante Meningococcus
A, cuja periculosidade é muito maior do que da variante C, já
circulante desde abril de 1971.
Com os fatos inegavelmente acontecendo às portas de
toda a sociedade, as autoridades tiveram que, enfim, admitir
com três anos de atraso que havia uma epidemia de meningite
no Brasil, não reconhecida oficialmente até aquele momento.
Enfim, quando o país já registrava 67 mil casos, com 40 mil
localizados somente em São Paulo, o então presidente Ernesto
Geisel criou a Comissão Nacional de Controle da Meningite,
responsável pela primeira estratégia de combate e aquisições
de vacinas contra a doença.
Tais eventos, além de revelar o despreparo logístico e estra-
tégico do Ministério da Saúde sob o regime militar, revelou a
falta de capacitação de seus funcionários até então e, sobretu-
do a dificuldade que o regime militar teve em lidar com a de-
vida transparência, questões de interesse nacional nevrálgicas
como a que tratamos acima.
Dessa forma, por meio da postura autoritária, centrali-
zadora e nada transparente ao lidar com as informações, o
Ministério da Saúde sob o regime militar foi responsável pelo
crescimento da epidemia de meningite que se iniciou em 1971
e registrou seu ápice em 1974, com direito a uma variante do
vírus. Nesses três anos de sofrimento, a sociedade brasileira
teve que lidar com dezenas de milhares de casos da doença
e sofreu significantes perdas socioeconômicas até o controle
efetivo da epidemia e a inclusão de sua vacina no calendário
oficial de imunização nacional. Fato que, enfim, possibilitou o
controle da Meningite no país.

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Sociedade de risco, pânico moral e pós-verdade

Embora a história humana seja percebida pela maioria das


pessoas como uma caminhada linear, constante e sempre em
frente, a sua trajetória é composta de movimentos cíclicos,
onde ela está sujeita a avanços ou retrocessos culturais, tecno-
lógicos e até mesmo morais.
Na época da Revolução Industrial, por exemplo, iniciou-se
uma fase de desencantamento com relação à religião e à nobre-
za. Os privilégios de monarcas, nobres e religiosos, assim como
os arquétipos e alegorias religiosas passaram por um tipo de
resignificação em função da mudança de percepção humana.
Contudo, o que se observou no Brasil, a partir de certo mo-
mento do século XXI, foi o descrédito e negação de todo um
entendimento tecno-científico, oriundo da sociedade industrial
clássica citada acima que vem se desenvolvendo por meio mé-
todos de pesquisa e estudo. A realidade atual, influenciada por
correntes reacionárias e de visão socioeconômica neo-liberal, as-
sume a forma de sociedade que gerencia os modos de produção
dentro desse modelo, produzindo riquezas junto com inequidades
e estabelecendo relações socioeconômicas e políticas predatórias.
No entanto essa sociedade também representa uma ameaça a ela
mesma, produzindo riscos graves para seus grupos componentes,
em várias esferas para sua própria existência. A esse modelo de
sociedade damos o nome de Sociedade de Risco (Beck, 2011).
O Brasil atravessa tal momento permeado pelo crescente
descrédito de boa parte da população em relação ao conheci-
mento técnico-científico, questionado frequentemente apesar
de, ao longo da história, ter apresentando melhores resultados
no combate às epidemias e endemias. O negacionismo cientí-
fico e o fanatismo político e religioso mantidos por alguns seg-
mentos formadores de opinião, vêm se mostrando eficientes
como manobra de controle político de “currais eleitorais”, por
meio do estímulo de preconceitos, polarização política e acir-

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ramento de ressentimentos históricos, por meio do chamado


“Pânico Moral” (Cohen, 1972).
Presente em vários momentos da história como na perse-
guição dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), na supressão das “Ameaças Comunistas” do Es-
tado Novo (1937) e do Regime Militar no Brasil (1964-1979),
nas denúncias de fantasiosas políticas de erotização das crian-
ças nas eleições presidenciais do Brasil, em 2018, o “Pânico
Moral” provoca divisões em um grupo social por meio da elei-
ção de um ou mais grupos rotulados de “Inimigos Morais”.
Tais inimigos são responsabilizados por algum tipo de culpa,
depositando neles algum preconceito. Dessa forma, a socieda-
de se torna mais facilmente dividida e manipulável pelo terror,
pela intolerância (política, cultural, ideológica) ou pelo res-
sentimento histórico entre grupos. Tais “ameaças invisíveis”
são inventadas e fomentadas para se justificar a supressão dos
direitos civis ou no mínimo a sua precarização, deturpando
as subjetividades das pessoas, em detrimento do diferente, do
oposto. No Brasil, como no mundo, houve uma sucessão de
factoides irresponsavelmente fomentados por notícias falsas
em redes sociais, aliado ao descredenciamento institucional da
imprensa profissional e acompanhado da cooptação de alguns
meios de comunicação e instituições federais.
Ulrich Beck (2011) no seu livro A Sociedade de Risco men-
ciona que o prefixo “pós” normalmente tenta nos dar uma ideia
de releitura, de algo novo, ulterior, revisto a partir de algo pré-
-existente. Os termos acompanhados do referido prefixo pare-
cem ganhar uma sobrevida conceitual, a partir de uma releitura
contemporânea. Contudo, atravessamos hoje a era da “pós-
-modernidade” e, o que muito se percebe é o uso do referido
prefixo em vários movimentos no sentido de subverter o que
antes existia. Daí, surge em cena no mundo globalizado a “Era
da Pós-Verdade”, prometendo entre outras coisas uma “Nova
Política” anti-globalista, com suas narrativas próprias baseadas
em revisionismos históricos, teorias conspiratórias e negacio-

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nismo científico. Essa clara contribuição dos movimentos mais


radicais e reacionários da Europa e EUA representa a susten-
tação de uma postura antidemocrática e autoritária claramente
nociva ao Estado de Direito, que garante o exercício, antes de
mais nada, da convivência e entendimento transparente com o
diverso, com o contraditório. Democracia, afinal, é trabalhar
com as divergências e não, eliminá-las.

O poder público brasileiro e a Covid-19: o dilema


saúde x economia

Eleito em 2018, o Presidente Jair Messias Bolsonaro sempre


teve um expressivo apoio de uma parte da população que re-
presenta uma mentalidade marcada pelo revisionismo histórico,
negacionismo científico, teorias de conspiração e fanatismo fo-
mentado por lideranças religiosas envolvidas em planos de po-
der na política nacional.
Enquanto o Brasil se fragmentou socialmente em disputas
ideológicas, a pandemia de Covid-19 que se alastrou pelo plane-
ta a partir de dezembro de 2019, nos colocando como testemu-
nhas de como a história pode se repetir em seus erros caso um
país não aprenda com o seu passado. Desde o início, o Governo
Bolsonaro investiu pouca atenção na pandemia, apesar do mun-
do inteiro já vir alertando sobre o perigo da Covid-19. Já se ou-
via falar do risco de expansão da Covid-19 pelo mundo quando
ela foi trazida ao Brasil pelas classes A e B, que faziam uso de
viagens internacionais para Ásia e Europa, frequentemente de
avião, para pontos turísticos de alta concentração de pessoas
oriundas do mundo todo. Porém, no “país do carnaval”, nada
disso foi tratado com a devida seriedade antes do referido even-
to passar. O negacionismo e o descredenciamento da imprensa
mundial, contumazes nos governos de extrema-direita do sécu-
lo XXI, contribuíam para a construção de uma realidade de es-
tagnação no país. O ano de 2020 começa cercado de incertezas

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o mundo, porém, com a proximidade do carnaval, o governo


brasileiro ignorou as recomendações atinentes ao fechamento
de fronteiras e cancelamentos de voos de países estrangeiros.
Afinal, o cancelamento de um evento que mobiliza milhões de
reais para o setor hoteleiro, para agências de viagens e vários
setores de prestações de serviços em todo país e no mundo,
foi considerado extremamente temerário para a economia aos
olhos do governo. Em consequência, a partir de 3 de fevereiro
de 2020, em função da escalada da doença, o Brasil se viu na
obrigação de declarar a Covid-19 um caso de Emergência de
Saúde Pública de Importância Nacional.
Diante da situação emergencial, a aquisição de materiais e in-
sumos para atendimento aos pacientes com Covid-19, teve nor-
mas específicas para realização de suas licitações e para sua even-
tual dispensa. Mesmo assim, a ausência de uma campanha incisiva
do Ministério da Saúde nos meios de comunicação e divergências
com a presidência da república no tocante à postura de enfrenta-
mento da Covid-19, facilitaram a ocorrência de aglomerações por
todo o país durante os dias de carnaval. O evento contribuiu de
forma silenciosa para a disseminação inicial do vírus e para que as
transmissões se tornassem locais e não mais exclusivamente im-
portadas, de pessoas vindas de fora. O novo coronavírus ganhava
então, o chão do território nacional (Lopes, 2020).
Em fevereiro de 2020, os impasses entre o presidente Bol-
sonaro e seu ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, que
insistia em obedecer às orientações da Organização Mundial da
Saúde (OMS), começam a se tornar cada vez mais notórios.
O intervencionismo por parte da ala mais radical do Ministério
exerceu forte pressão, junto com o Ministério da Economia para
boicotar medidas previstas pelas Organizações Internacionais de
Saúde, depreciando o potencial letal da pandemia, até mesmo
por meio de desinformação e do compartilhamento de notícias
falsas (Fake News). Em meio às rusgas governamentais, no dia
12 de março, o Brasil tem notificada a sua primeira morte por
Covid-19. O então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta

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História da saúde pública: grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI

pedia mais rigor nas medidas não farmacológicas, como o uso de


máscaras, a higiene pessoal, distanciamento social e isolamento
domiciliar, nesse mesmo mês, movido por questões comerciais,
enquanto o governo federal começava uma campanha de incen-
tivo ao consumo da hidroxicloroquina, um antimalárico, como
tratamento “alternativo” para o combate precoce à Covid-19.
Fármaco que passou a ser largamente produzido e seu uso in-
centivado pelas Forças Armadas no território nacional, apesar da
ausência de comprovação científica e, posteriormente da com-
provação de sua ineficácia (Bertoni, 2020). O próprio minis-
tro Mandetta classificou esse fármaco como uma “saída política
para a pandemia”, visando encorajar as pessoas a não aderirem
medidas não-farmacológicas de prevenção (isolamento, distan-
ciamento social) que impossibilitem a população de trabalhar.
Entre o negacionismo científico da presidência e as orien-
tações do ministro da saúde, norteado pela OMS, o Supremo
Tribunal Federal (STF) reconhece a autonomia e liberdade dos
estados e municípios para tomarem suas decisões quanto ao en-
frentamento da Covid-19. Contudo, os governadores e prefeitos
que resolveram adotar medidas consonantes com a ciência fo-
ram considerados opositores do governo e, até mesmo, antipa-
triotas (recurso populista que ainda acha peso na população).
Contudo, o STF, em consonância com a Constituição Federal
de 1988 e com o fato de sermos uma república federativa, vem
garantindo aos estados e municípios a autonomia nas tomadas
de decisão quanto ao enfrentamento da pandemia (STF, 2020).
No dia 16 de abril de 2020, o ministro Mandetta foi demiti-
do, assumindo Nelson Teich. No dia 19 do mesmo mês, Dia do
Exército, o presidente comparece a uma manifestação em favor
a movimentos antidemocráticos, em frente ao Quartel-General
da Força Armada Terrestre, legitimando um movimento incons-
titucional. A partir de então, o Brasil veio presenciando a esca-
lada crítica de infectados e de mortos, sem a aparente vontade
política do governo em agir de forma empática com seu povo.
Prova documental disso foi a já histórica reunião ministerial do

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Flávio Moutinho (org.)

dia 22 de abril de 2020. O que foi visto ali nas gravações que
foram divulgadas, tratava-se de um acinte a qualquer institucio-
nalidade. O povo, apático e temeroso, pode ver e ouvir inúmeras
agressões aos servidores públicos, defesa da prisão dos minis-
tros do STF e declarações de que o governo deveria aproveitar
o “momento de tranquilidade” no tocante à cobertura de im-
prensa que estava focada na Covid-19, para então os ministérios
poderem ir “passando a boiada e mudando todo o regramento”
que fosse interessante ao mesmo a aos interesses econômicos de
pecuaristas, madeireiros e garimpeiros. Se já não fosse suficien-
temente imoral um ministro de estado considerar a Covid-19
um “momento de tranquilidade”, a reunião seguiu e nada foi
discutido no tocante aos mortos ou à dor de suas famílias, ou
sequer foram propostas medidas para tentar reduzir o avanço
da pandemia, que já contabilizava 2.906 mortos naquela data.
Tudo isso, ocorrendo em meio a uma sucessão de trocas de
ministro da saúde, onde o médico Luiz Henrique Mandetta, após
várias discordâncias com o governo federal, já havia sido subs-
tituído pelo também médico Nelson Teich, que ficou no cargo
entre 17 de abril e 15 de maio de 2020, saindo por motivos seme-
lhantes ao seu antecessor. A partir desse momento, o Ministro da
Saúde passa em caráter provisório, para as mãos do general da
ativa, Eduardo Pazuello, sob o argumento de ser especialista em
logística. Infelizmente, erros primários de envios de cilindros para
diferentes Estados da União, aliado ao trágico evento das mortes
em Manaus por falta de oxigênio, semanas após o ministério da
saúde ter estado lá, divulgando o chamado “Tratamento Preco-
ce”, à falta de vacinas e insumos em tempo hábil, à tentativa de
se confiscar vacinas obtidas por governos estaduais, entre outras
medidas, mostraram o despreparo logístico do general intendente
que assumiu a pasta da saúde do país (Sinpro, 2020). Tal fato
culminou na instauração de uma Comissão Parlamentar de In-
quérito (CPI) para se investigar as irregularidades do Ministério
da Saúde na gestão da pandemia e o que se investigou apontou
os indícios de uma série de interesses econômicos escusos, per-

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História da saúde pública: grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI

júrios, representações fraudulentas, empresas e redes hospitala-


res comprometidas com falsos relatórios médicos, promessas de
propinas em negociação de vacinas e insumos e toda a sorte de
possíveis improbidades e crimes, amplamente divulgados pelas
mídias entre abril e outubro de 2021.
Não bastasse essa situação instável, sucessivos pedidos de
impeachment foram arquivados no Congresso Nacional, apesar
do presidente da República ter acumulado várias denúncias de
possíveis crimes, baseado no Código Penal brasileiro. Tais acu-
sações seriam expor perigo para a vida ou saúde de outrem;
subtrair, ocultar ou inutilizar material de salvamento; causar epi-
demia, mediante propagação de germes patogênicos; empregar
irregularmente as verbas públicas e, até mesmo o crime de pre-
varicação. Também vale citar a ausência de propostas de ações
logísticas para facilitar a distribuição de imunizantes pelo país e
a contribuição ativa para que o vírus se espalhasse. Suas práticas
contínuas tais como a aglomeração, o desprezo ao uso e incentivo
ao desuso de máscaras, a propagação de Fake News a respeito de
vacinas, entre outras, representam de acordo com o artigo 267,
que o presidente da república poderia até mesmo ser considera-
do um agente ativo da pandemia no país. Afinal, a pandemia de
Covid-19 no Brasil representou um confronto de duas estratégias
políticas para a sua gestão. A primeira aposta na proteção do in-
divíduo e das comunidades, na defesa ao direto à vida, direito à
saúde, direito a uma morte digna, propondo a recuperação da
economia com alternativas para o cuidado mútuo entre todos e
proteção dos vulneráveis. Já a outra alternativa é a adoção da ló-
gica neoliberal centrada na ideia de assumir os próprios riscos e
expor as populações à morte, ditando quem deve morrer e quem
é digno de viver, principalmente no tocante aos mais idosos, os
mais vulneráveis e excluídos economicamente, que representam
um peso, inclusive previdenciário. Na Idade Média, o soberano
tinha o poder de determinar quem merecia viver. A esse poder,
chamava-se “biopoder” (Foucault, 2008). Porém, o regime vi-
gente no Brasil é o de produção da morte, de gerenciamento de

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Flávio Moutinho (org.)

perdas, o qual a pós-modernidade chama de “Necropolítica”. Um


regime comumente ligado a Estados de Exceção, que oprime a
vida em função da morte como ferramenta de poder, presente em
vários momentos históricos como no Holocausto dos judeus rea-
lizado na Alemanha da Segunda Guerra Mundial (hash-sho’āh)
ou no Apartheid sul africano, entre outros (Mbembe, 2018).

Reflexão

Por meio de análise de artigos e livros tratando as gestões


militares na Saúde do Brasil e suas características, percebe-se que
tanto no regime militar dos chamados “Anos de Chumbo” como
na ocasião do governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, um
ex-militar entusiasta da ditadura cujos ministérios estão inflados
de militares acumulando cargos, o obscurantismo e a inabilida-
de de se comunicar com os setores civis da sociedade foram as
características mais marcantes em ambos os modi operandi. Ao
invés de atender propósitos populistas e interesses financeiros
de uma oligarquia econômica, a adoção de um plano objetivo
para a superação de problemas de saúde de tamanha gravidade
teria contribuído para um aumento de popularidade de ambos
os governos junto do povo. Mediante uma construção midiática
poderosa (o que nunca foi problema para ambos os regimes),
facilmente se construiria uma narrativa em torno da reconstrução
da identidade de uma nação, centralizada no regime vigente, for-
talecendo seu governante que “teria erradicado o mal da nação”.
O Estado teria salvo sua população, garantido seu futuro político.
Bastasse os epidemiologistas e demais pesquisadores da saúde
terem sido ouvidos e muitos óbitos teriam sido evitados. Mas, a
exemplo da gestão militar que lidou com pandemia da Covid-19,
essa escolha não pareceu a mais óbvia para o Ministério da Saúde
sob a gestão militar, na ocasião das epidemias de meningite entre
1971 e 1974. Assim também preferiu o governo Bolsonaro adotar
um discurso negacionista, anti-vacina, anti-ciência, visando ain-
da garantir um curral eleitoral expressivo.

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História da saúde pública: grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI

Ao contrário do que muitos idealistas previam, a pandemia


de Covid-19 não foi uma oportunidade aproveitada pela huma-
nidade para evoluir, superar egoísmos e ressentimentos histó-
ricos, muito menos se solidarizar com os mais vulneráveis. A
Covid-19 trouxe à tona, preconceitos e pânico moral, onde a
sociedade cada vez mais mergulhou em um mar de desinfor-
mação, negacionismo histórico, polarização política e intolerân-
cia com relação ao próximo. Diante de tal cenário de falta de
transparência e autoritarismo, se faz necessário lembrar e com-
parar os referidos desempenhos militares junto ao Ministério da
Saúde, para que nunca se perca a ideia preconizada o filósofo
austro-britânico Sir Karl Raimund Popper (1974), em seu livro
A Sociedade Aberta e seus Inimigos. O autor citado desenvolveu
o conceito do “Paradoxo da Tolerância”, que defende a ideia de
que, no ambiente social, a tolerância ilimitada leva ao desapare-
cimento da tolerância. Por mais contraditório que possa parecer,
Popper defende que as ideias que inspiram intolerâncias devem
ser rechassadas, uma vez que abram mão dos princípios básicos
de racionalidade, adotando a violência psicológica, moral, verbal
ou física. A exemplo do processo político brasileiro, é percebido
que se uma nação concede tolerância ilimitada mesmo aos into-
lerantes, a sociedade cria para si o risco de sofrer um golpe da in-
tolerância, podendo resultar no cerceamento de liberdades civis
e a destruição dos tolerantes. Por consequência, seria o fim da
tolerância como valor imperativo, uma vez que a sociedade esteja
despreparada para se defender (Popper, 1974). Ela deve se dar
o direito de suprimir quaisquer ideias que sejam fundamentadas
na intolerância e na violência. Assim, em nome da tolerância, a
sociedade democrática tem o direito de não tolerar o intolerante,
colocando-o à margem da lei e sujeito à criminalização. Esse
compromisso institucional deve ser alvo de constante vigilância
por parte da sociedade civil, pois eventualmente na história de
evolução, os retrocessos conservadores podem trazer ondas de
autoritarismo novamente e, para isso a sociedade democrática,
por mais liberal que seja, deve ser intolerante. O Brasil é teste-

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Flávio Moutinho (org.)

munha histórica recente dos riscos anticivillizatórios que regimes


autoritários ou disruptores institucionais podem gerar em uma
sociedade democrática de direito.
Como já foi dito, a história humana não é uma caminha-
da linear, mas sim permeada por movimentos cíclicos, estan-
do sujeita a avanços e retrocessos diversos. É preciso estar
atento ao advento dos dias pós-modernos, da atual Socieda-
de de Risco que nosso momento histórico apresenta, pois ela
também representa uma ameaça a ela mesma, na medida que
produz riscos à própria existência das pessoas que a compõem,
em um sistema neoliberal, gerador de exploração em função
de lucros e inequidades sociais por natureza (Beck, 2011).
Muitas armadilhas são deflagradas ao longo da história para que
a ética humana se desvie dos valores de justiça e bem comum e,
um dos momentos mais comuns de isso acontecer são nos even-
tos trágicos da existência humana. As epidemias e as estratégias
de defesa adotadas para seu combate sempre foram um elemen-
to fomentador de embates sociais no Brasil. Desde a Revolta da
Vacina (1904) até os dias atuais de pandemia de Covid-19, é
perceptível, ainda, correntes sociais divergirem quanto ao modo
de adotar medidas preventivas para o enfrentamento dessas cri-
ses de saúde. Teses nem sempre defendidas sob o norteamento
da medicina, mas sim, sob qualquer outro princípio moral que
não seja científico. Em função de tais reacionarismos e revisio-
nismos históricos que eventualmente ameaçam o caminhar civi-
lizatório, o historiador Marc L. B. Bloch concluiu que a História
mal compreendida, caso não estejamos alertas, pode gerar des-
crédito ao que ele classifica como “história melhor entendida”.
Bloch dizia além. O historiador francês chegou a prever que, se
um dia chegássemos a tal ponto de subversão e negacionismo
histórico e cultural, seria o resultado de um violento processo
de ruptura com o que ele chamou de “as nossas mais constantes
tradições intelectuais.” (Bloch, 2002).
Durante a pandemia de Covid-19 no Brasil foi mais uma
vez observado que os interesses econômicos de uma classe do-

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História da saúde pública: grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI

minante podem tornar a atitude óbvia em “relativa”, a opinião


abjeta em “controversa” e questões insofismáveis em “polêmi-
cas”. Por isso é preciso atenção aos nossos pilares civilizatórios
para que a sociedade civil não permita novamente equívocos em
relação ao nosso ordenamento republicano e democrático.

Referências

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combater coronavírus é sancionada. Senado Notícias, Brasília – DF,
2020. Disponível em: https://bit.ly/3uEn7Vg. Acesso em: 23 jan. 2021.
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Flávio Moutinho (org.)

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