Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Orvalho em Chamas
Romance
DEDICATÓRIA
EPÍGRAFE
Dentro
como o vermelho da pele do cajú
a maturação olorenta
do deus em seu tropel
assoando-se
És meu
e o sangue inunda a planura rugosa
Grão a grão moldando a consistência desenhada
em figura de espanto
e melancolia
3
Fernando Absalão Chaúque
De madrugada
os gatos leiloam as suas lágrimas
para as frutíferas pastas
do abandono.
9/11/2020
(Óscar Fanheiro, Inédito)
5
Fernando Absalão Chaúque
Orvalho em Chamas
Conteúdo
DEDICATÓRIA..............................................................................................................................2
EPÍGRAFE......................................................................................................................................3
7
Fernando Absalão Chaúque
NAPWERE – UNHAGO.............................................................................................................131
AGRADECIMENTOS................................................................................................................241
SOBRE O AUTOR......................................................................................................................242
Orvalho em Chamas
9
Fernando Absalão Chaúque
[…]
no útero da minha mãe
eu
sorria de cólera
e ameaçava
Orientes.
Quando saí do ventre: o dia ainda circulava no tutano da terra; antes de nenhum raio se
levantar, mas já se fazia sentir um calor ensurdecedor, infernal, que açoitava as almas dos ateus e
derrubava as entranhas das virgens. O asfalto decompunha-se, ostentava sorrisos tristes.
A terra não respirava, transpirava rios de sangue negro e inundava o esqueleto do
universo. Um vulcão acelerava as placas tectónicas provocando um imprudente terramoto. O
gelo fervia. As plantas, cheias de sede, despiam-se, abocanhavam as pétalas e bebiam do próprio
pólen que, posteriormente as intoxicava a vida.
O sol ainda desbravava as ogivas do mar, porém já conseguia dispersar os teimosos
pássaros que se hasteavam ao céu, queimava-os misteriosamente, transformava-os em cinzas
incolores.
Os gatos desfilavam trajados de biquínis procurando a praia mais próxima para afogar a
avultada combustão que lhes engravidava o corpo. Os galos depenavam-se, não conseguiam
cuspir nenhum cântico matutino para receber o novo dia e a mim, o recém-nascido do dia.
Já nasceu, é um menino, a parteira entupiu os ouvidos dos presentes na maternidade.
Nasci.
Não chorei.
Todos assustaram-se, pensaram que eu estivesse morto. A parteira cortou o cordão
umbilical, escutou-me os batimentos do coração com as costas das mãos; arranhou-me a testa. Só
depois emiti um estrondoso choro. Porém, ela não deixou de comentar que nunca vira um bebé
que nascesse e não chorasse. Aquilo devia ser um sacrilégio. Ou havia em mim uma eterna
maldição.
Minha mãe rodopiava no colo de um beliche, escutava uma fusão melódica de alegria e
dores de parto que os seus timbres corporais produziam, contemplava-me como se tentasse achar
a derradeira chave para descortinar um enigma. Algo mantinha a sua atenção em mim, mas era-
me difícil tarefa descobrir.
Enquanto ela rodopiava, seu coração timbilava, veloz. Seus poros vomitavam fumo. Qual
era a causa daquela efervescência nela? Será que a minha chegada não era de se celebrar?
11
Fernando Absalão Chaúque
13
Fernando Absalão Chaúque
15
Fernando Absalão Chaúque
Que direi?
Em estreia, sou mãe. Sinto um turbilhão indescritível de emoções percorrendo-me os
estreitos labirintos da alma. Não sei se me alegro ou me entristeço. Algo deixa-me na dúvida. Na
verdade, o problema reside em mim: a felicidade não cabe nas rédeas do meu soalho, nunca
conheci a sua fragrância.
Que dizer?
Tristeza.
Meu nome é a nascente disto tudo. A melancolia sempre enegreceu-me a trajectória.
Maldito flagelo!
Que nome é este que carrego? Culpa dos meus pais. Que pensavam eles ao atribuírem-no
a mim? Tristeza, ntla. Alguns pais, como os meus, são leões que, com as suas desajustadas
atitudes devoram os filhos à nascença.
Quero tanto alegrar-me com a chegada do meu rebento inaugural, o primeiro grão que
germinou do meu âmago, porém é-me impossível; em mim, não há nenhuma endógena matéria
favorável a isso.
Fito o meu filho. Ínfima beldade adormecida no berço. Mesmo meio distante de mim
sinto-lhe o ritmo do coração em conexão com o meu. Já sei: somos um só! Não!!!! Assim não dá.
Se não o meu filho carregará a maldição que morra em mim. Ele é apenas ele. Eu unicamente eu
(uma inexistência aos olhos do mundo). Não é melhor assim?
Que nome o darei?
Aliás, que nome o pai escolherá?
Em Ohawa, aldeia onde vivo com o meu esposo, Santos Faztudo e a minha sogra, a
mulher não fareja esse assunto. Alberga o filho, nove meses, mas quando vem ao mundo não
mais a ela pertence. As decisões do pai valem mais, são as derradeiras.
Tomara que ele dê-lhe um belo nome.
Sou submissa ao meu esposo, mas se ele quiser dar-lhe um nome depravado levantar-me-
ei (é isso que a minha mãe devia ter feito). Farei braço metálico com ele. Juro. Espere para ver
você!
17
Fernando Absalão Chaúque
Mulher também já pode decidir. Não é isso que se diz na televisão e na rádio?
Mas eu farei isso? Espera aí! Confrontarei o meu marido? Um monstro? Melhor não.
Sou-lhe totalmente submissa. Fui educada para obedecer os homens. Nada mais. Não o
afrontarei.
Desculpe-me, tenho que abortar este lacrimoso monólogo. Tenho que abortar este
relâmpago de pensamentos, a parteira regressou.
Até já. Com licença.
Orvalho em Chamas
Editor Chefe
Albino Fragoso Francisco Magaia
Caríssimo editor chefe. Saúdo-lhe! Quem lhe escreve é o seu colega Carlos Cardoso. Em
primeiro lugar peço-lhe desculpas por não ter dado notícias logo que aqui cheguei. Não foi um
silêncio propositado. Há dias que queria escrever-lhe, mas, aqui, não há nenhum posto de
correios nem cobertura para telefonia móvel. Todavia, na manhã de hoje chegou um postman
vindo daí da capital; fez as entregas e amanhã regressará. É por via dele que estas palavras
chegarão a si.
Ilustre, não são só facilidades de comunicação que aqui são difíceis. Nesta localidade
falta tudo. Abunda o caos. As condições de vida são demasiado precárias. A miséria flana
furibunda nas laudas deste chão. Sobreviver é o único verbo que os habitantes desta localidade se
esforçam para conjugar; porém, poucos conseguem fazê-lo com perfeição e são imediatamente
tragados pelos vácuos do amargo quotidiano. Apesar de tudo, os habitantes daqui são simpáticos
e sorridentes. Para eles os obstáculos são o melhor tempero da vida.
Caríssimo, desde a adolescência que gosto de embrenhar-me em aventuras. Já conheci
tantos lugares portentosos. Porém, Eyupuro parece-me o mais misterioso de todos. Contudo, o
que agora importa é que estou em posição, pronto a exercer a missão que me foi incumbida
(além disso, aproveitarei a minha estadia aqui para colher mais matéria para enriquecer o meu
projecto literário e as minhas pinturas).
Escrevo-lhe quando já estou prestes a completar vinte dias nesta localidade. Como já
deve ter concluído, não houve nenhum imprevisto no meu percurso rodoviário. Apenas não
esperava que a viagem levasse tanto tempo. Foram quarenta e oito horas de trajecto para alcançar
esta terra. Era quase meio-dia quando desci do machimbombo. Foi ainda no parque que o meu
encanto por este lugar brotou. Logo que desci, vi diante de mim uma alcateia de mulheres com as
19
Fernando Absalão Chaúque
caras pintadas a branco. Mulheres com uma estética singular. Trajavam blusas, lenços de corres
vivas e algumas capulanas amarradas às cinturas e outras enroladas nos braços e nas pernas.
Dançavam. As capulanas abanavam-se acompanhando os movimentos rápidos dos corpos. Por
detrás delas havia uma dezena de homens (com as caras pintadas a preto) munidos de batuques,
svitende e outros instrumentos musicais tradicionais. As mulheres dançavam seguindo o ritmo
dos instrumentos, mexiam as cinturas, enroscavam-nas e moviam as mãos como se fossem luzes
de trovão acariciando o ar. A multidão rodeou-me. Fiquei sem chão. Tentei fugir. Mas não me
ocorreu nenhuma saída possível. Dentre a aglomeração surgiu um homem baixo, escuro e
barbudo como eu, apresentou-se:
"Sou Mbalame Ya Moto, o líder comunitário desta localidade".
Abraçou-me e sussurrou:
"Seja bem-vindo à Eyupuro".
Eu que pensara que ninguém sabia da minha chegada, percebi que todos habitantes daqui
há muito me esperavam, frenéticos. Quem os terá informado? Mais tarde, Mbalame disse-me que
no mês passado, num sonho, vira-me chegar. Sempre fora assim. Os espíritos ancestrais enviam-
lhe mensagens e avisos escritos nas páginas dos sonhos. Nunca falham.
As mulheres ainda bailavam. De repente, os homens dispensam os instrumentos.
Colocam-se de frente das mulheres que já recuam para cuidar das batucadas. Os homens
dispensam as camisas, dançam, têm chocalhos amarrados nos joelhos que com o bater dos pés no
chão produzem um som característico. Eles dançam, dançam, saltam, levitam como pássaros. As
mulheres espancam os batuques com todas harmonias. O corpo dos homens vibra. Dos bolsos
dos calções tiram alfinetes, facas, machadinhos, navalhas e pregos enormes, perfuram-se em
diferentes partes do corpo. Nenhum deles sangra; nenhum deles exibe ferida alguma no corpo.
Para fingir o susto que me descora a alma entro na roda, improviso alguns passos seguindo a voz
dos batuques. Tiro a máquina fotográfica para registar o momento. A multidão bate palmas,
alegre, rodeia-me. A sessão fotográfica durou quase meia hora.
21
Fernando Absalão Chaúque
"Para executar aquela dança eles ficam no mínimo quinze dias sem sexo e sem comer
nenhum tipo de peixe... os motivos e influências das abstinências são segredos que nunca são
revelados... só os dançarinos sabem os porquês."
"Percebo!", não insisti. Quando ela falou de segredos pensei que ela estivesse a
desconfiar que eu carrego um: o de não ser o turista que digo ser.
Por fim, a Khefassi abandonou-me no escritório. Tinha uma emergência por acudir, disse
ela. Mas informou-me que era imperioso que eu esperasse o Mbalame, pois ele é quem gere
directamente todo assunto relacionado ao pacato turismo local. Durante os curtos minutos que
fiquei ali sozinho aguardando a chegado do Mbalame, tirei o meu portable mp3 player da pasta
pus-me a escutar por três vezes seguidas a faixa Blues Boys Tune de B.B. king. Que maravilha de
música! Um verdadeiro masterpiece. Gosto tanto deste som que basta ouvi-lo, mesmo abatido
soergo-me, imediatamente. Acho que se um dia deixar de praticar o jornalismo investigativo irei
concentrar-me na crítica musical, na pintura e nos livros. É neles que existe a força motriz que
alimenta os pulmões da vida: a poesia.
Mbalame desceu de um reluzente Toyota Fortuner. Eis que a minha primeira inquietação
surge. A população de Eyupuro vive em condições mais que precárias, quase sem nada que a
honre, mas o líder comunitário é um rei: tem uma casa e caros luxuosos, seguranças e motoristas.
Que discordância! Talvez seja essa a função da política capitalista: perpetuar o parasitismo;
enriquecer os que estão no topo da pirâmide à custa dos subordinados.
"Peço perdão pela demora, irmão’’. Disse Mbalame quando infiltrou-se no escritório. Foi
neste exacto momento que comecei a prestar atenção arredores: havia uma secretária à qual eu
estava sentado, algumas cadeiras, uma estante com uma dúzia de portefólios.
"Está tudo bem, excelência, não se preocupe..."
"São tantos assuntos à espera de uma só cabeça. Depois de lhe ter saudado lá no parque
tive de ir ao Centro de Acolhimento de Vulneráveis e Carenciados."
"Certo. Tem cá um centro desses, não é?" Perguntei.
"Sim, foi iniciado por uma ONG estrangeira e agora ficou na nossa responsabilidade.
Digo nossa porque é uma coisa pública, mas na verdade está apenas nas minhas mãos."
"Isso é bom. Instituições como esta são importantes no mundo, devolvem a esperança e o
senso de humanidade a várias pessoas"
Orvalho em Chamas
Mbalame Ya Moto guiou-me a um quarto não muito distante da sua luxuosa casa. Fiquei
desalmado ao descobrir que não havia nele porta alguma montada. Apenas uma capulana para
esconder intimidades. Questionei-lhe:
"E assim, a porta...?"
"Não se preocupe... aqui em Eyupuro dispensamos as portas. Mesmo a minha casa não
tem nenhuma porta, não notaste, irmão?’’
"Pensei que somente o escritório é que não tivesse porta. Mas por que não colocam portas
nas casas aqui?"
"São desnecessárias. Portas convocam infortúnios, maus espíritos e ladrões. Não sabes
que o proibido é que aguça implacáveis curiosidades? Assim, sem a porta nada se infiltra aqui.
Nem se quer os mosquitos. Além disso, temos os nossos Zangbetos que controlam tudo.
" Zang.... o quê? " perguntei.
"Zangbeto"
"O que é Zangbeto, excelência?
"Não se preocupe, brevemente irás descobrir."
23
Fernando Absalão Chaúque
Paro por aqui, meu caríssimo editor chefe. Prometo escrever-lhe frequentemente, espero
que este postman venha cá mais vezes. Diga-me, meu caro, como está a capital? Como vai o
trabalho aí no nosso jornal?
Abraços
Orvalho em Chamas
25
Fernando Absalão Chaúque
27
Fernando Absalão Chaúque
Senti uma extremidade redonda invadir-me os lábios. Já sabia perfeitamente o que devia
fazer: chupar. Comecei a chupar, guloso. Quando aprendera eu a chupar? A respirar? E o girassol
onde aprende a beijar o sol? Quem ensina as nuvens a peregrinar na boca do firmamento? Já sei:
há coisas que não se ensinam a ninguém, sendo assim, nunca são aprendidas, nasce-se com elas
já plantadas no sangue.
Chupei até fatigar-me o apetite. Era a minha primeira refeição, se assim se pode dizer ou
considerar.
Dispensei o mamilo. Em seguida, senti o sangue revolutear-se, parecia que um inquieto
rio corria-me nas veias e um orvalho volátil cantarolava na persiana dos meus pulmões.
A esquelética enfermeira regressou, não se aproximou, era notável o obeso nojo que nela
eu revolvia. A parteira era também complexada, mas, tudo fazia para simular simpatias.
Mãe do bebé, há pessoas que vos querem ver lá fora, já é hora de visita, disse a
enfermeira.
Quem são essas pessoas?
Ohhhh…são muitas, mas entre elas está uma vovozinha.
Uma vovozinha de bengala?
Sim, diz que é vovó Marta Tempestade.
Ahh…é a mãe do meu marido.
Dentre segundos, Tempestade já estava no berçário caminhando ao beliche em que eu e a
minha mãe nos encontrávamos. A parteira e a enfermeira entreolharam-se, isolaram-se num
canto, atentíssimas como se esperassem que uma bomba de surpresas explodisse.
Orvalho em Chamas
29
Fernando Absalão Chaúque
~ Voltei. Quero contar como tudo começou até eu chegar aqui na maternidade. Quero
desfiar memórias, mas contarei quase tudo no presente, pois, são episódios carimbados em mim.
A cada batimento do coração continuam a repetir-se, nítidos e frescos na minha memória como
se tudo agora acontecesse. ~
Orvalho em Chamas
31
Fernando Absalão Chaúque
os carnudos lábios. Arranho-lhe o peito, arranco-lhe os pelos como a depenar uma ave sem antes
a ter mergulhado em água quente. Administro-lhe todos golpes que consigo.
Tio… Tio… Tio…, grito.
O homem cansa-se de me beijar. Agora tenho os maxilares livres, afogo os dentes em
qualquer parte corporal do velho. Mas isso nada muda. Apenas aguça-lhe o apetite de continuar a
possuir-me.
Gosto. Assim mesmo. Gosto disso, eu já sabia que eras uma taradinha e tinhas uma
colmeia escondida nesta fenda oleosa.
Está a doer muito, tio!
O velho não se importa com as minhas reclamações.
Os seus avultados quilos enterram-me nesta imóvel cama, sufocam-me. O velho Faztudo
esbraveja de prazer. Cospe palavras não inteligíveis.
Choro. Mas ele continua.
A sua cintura gira como uma esfera num declive. O velho parece ter uma máquina
movendo-lhe a cintura. As minhas pernas tremem. Em cada vaivém que ele me apregoa a dor
triplica-se. O seu erecto músculo dilata-me os lábios pequenos e ferroa-me as tripas.
O velho não se cansa. Porém agora começa a transpirar. O seu suor pousa e escorre em
mim, quente, denso. Ressuscita-me as náuseas.
Está a doer muito, tio!
Faztudo interrompe o vaivém. Tira de dentro de mim o seu pénis. Sinto a minha fenda
sexual aquecida como se nela dançasse uma lareira nutrida a mil amperes. Há um líquido que de
dentro de mim se expele. O que será? Lanço o olhar entre as minhas pernas. Nada vejo. A
escuridão é a única intransponível membrana que nesta palhota se estende. Dói-me o corpo todo.
Mas as dores no diafragma são as mais fortes. Tento erguer-me, mas o velho manda-me de volta
à inconfortável cama. Passeia-me a sua mão pelo peito. Apalpa-me os pequenitos seios. Suga-me
os prematuros mamilos. Ele regozija-se de gosto. Eu sinto os mamilos a doer-me, a racharem-se.
Fica lá bem!, ele ordena.
Volta a penetrar-me, desta vez num modo mais hardcore que antes. As minhas forças
esmiúçam-se como se os meus músculos se esvaziassem. Corvos crocitam, os cães continuam a
rodar em torno da palhota e o velho a girar o seu enorme bastão nas minhas profundezas.
Tu és uma delícia, diz-me ele.
Orvalho em Chamas
33
Fernando Absalão Chaúque
gelo enquanto pega-me a cabeça com as duas mãos. Puxa-me os cabelos, pressiona o seu varão
até atingir-me a faringe, sinto-lhe as veias fortificarem-se até entupirem-me a boca. Respiro com
dificuldades.
De repente o velho grita, um grito doce, grita muito alto que os cães assustam-se, emitem
latidos abrasadores. O seu falo deposita um líquido pegajoso em mim (é imenso, quase enche-me
a boca). Ele tira o seu bastão, sacode-o na minha face enquanto respira fundo como se tivesse
prendido a respiração durante séculos. Sacode a roupa. Veste-se. Apalpa-me as nádegas. Acende
o cachimbo. Fuma. Retira-se da palhota.
***
Levanto-me da cama. Procuro o fósforo. Acendo a lamparina. Com o indicador, tiro o
líquido que Faztudo depositou na minha boca: é pegajoso, esbranquiçado, meio salgado, meio
doce. Enjoa-me.
Das minhas coxas goteja sangue. Estou a sangrar de verdade!
Meu deus!
Faztudo acabou de estuprar-me. Cara sem vergonha. Ele saciou os seus desejos sexuais
em mim, uma menina de treze anos. Já não sou virgem. Já não sou a mesma de antes. Acabei de
perder algo em mim. Choro. Que farei? Quero tanto voltar a Eyupuro para rever a minha família.
Saudades da minha mãe, do meu irmão Pedrito. Não sinto saudades do meu pai porque ele é o
culpado por tudo. Se ele não me tivesse oferecido ao Faztudo não estaria aqui. Teria acendido a
lamparina para revisitar os apontamentos; não para ver este líquido transbordando da minha
boca.
Sinto que já mais voltarei a ser a mesma. Apesar de que já sabia que um dia teria de
perder a virgindade, nunca pensara que a perderia com tamanha selvageria.
Sinto intensas dores fervendo-me o corpo inteiro. Lembro-me das últimas palavras que
ouvi no rito de iniciação:
Vocês já não são crianças.
Disse-nos a rainha. Éramos um grupo de cinquenta meninas com idade não superior a dez
anos.
Já estão preparadas para serem mães e cuidarem de lares. Devem ser fortes para
enfrentar as dores da vida.
Orvalho em Chamas
Agora pergunto-me: será que estou preparada para suportar uma dor como esta? Que
farei? Estou trancada nesta palhota com um cão guarnecendo a saída.
Fecho os olhos e insulto o meu pai. Já disse, ele é culpado por isto. Ele é que me entregou
ao Faztudo quando veio a minha casa exigir o pagamento da sua bicicleta bmx que o meu irmão
Pedrito roubara e já não se lembrava onde a vendera. Não havia como a recuperar. O meu pai
não tinha dinheiro para comprar uma nova. O velho Faztudo disse que aquela bicicleta era o seu
único instrumento de trabalho; com ela sustinha a sua família, por isso, queria-a de volta.
Os dois chegaram a um acordo: o senhor Faztudo levar-me-ia a mim para colmatar a falta
que aquele meio de transporte fazia na sua casa. O meu pai sacrificou-me a mim, em vez de
quem cometera o crime.
Podes levar a menina, é a única forma que tenho de te pagar.
Ainda tentei recusar, mas foi em vão, um gafanhoto nunca mede forças com leões. Antes,
eu nunca imaginara que um dia viraria mercadoria. A minha mãe nada fez. Manteve-se calada.
Viu-me a ser levada por um estranho. Olha só, hoje ele me violentou.
***
Desperto.
É dia seguinte.
Finos fios de luz espreitam-me pela porta. Levanto-me da cama. Meu corpo é uma
colónia de agruras. Perambulo pela palhota, desnorteada. Meu corpo treme. Sinto o fedor do
velho como se ele ainda estivesse em cima de mim. Apetece-me morrer. Sou um pedaço de
inutilidade. Os meus próprios pais transformaram-me em mercadoria. E o Faztudo ontem fez de
mim o seu brinquedo sexual. Que ainda faço neste mundo?
Prefiro morrer!
***
Dentre as minhas coxas ainda jorra sangue. Quero esquecer tudo o que até aqui me
aconteceu, mas é impossível. A lembrança é mais impactante que a realidade imediata.
Rejuvenesce-se a cada piscar de olhos. Quem dera que pudesse restaurar o meu cérebro.
Bloquear as memórias. Apagá-las. Esquecer tudo. Voltar a ser um virgem papiro. Abrir novas
páginas dentro de mim. Assim conseguiria viver com os olhos postos apenas no futuro. Deixaria
35
Fernando Absalão Chaúque
de caminhar atracada ao passado. Rejuvenesceria, límpida como o primeiro orvalho que inunda o
caule de cada novo dia.
Estou farta!
Apago a lamparina com uma lagoa de lágrimas. Sento-me na cama, escuto cantigas de
desespero que a minha mente entoa. Amaldiçoo o velho Faztudo e o meu pai.
Que faço eu aqui em Ohawa enquanto os meus colegas da Escola Primária de Eyupuro
estão aprendendo maravilhas com as quais a minha professora sempre nos brinda? Será que eles
também estão numa encruzilhada igual à minha? Não. Acho que sou a única mal escolhida a
trilhar este turbulento caminho.
Tenho saudades de mim mesmo.
Sinto que já não sou aquela menina do sorriso largo; a que, segundo a minha professora,
era a mais dinâmica da turma, a que nunca atrasava, a única que sonhava em ser jornalista. Ainda
carrego esta aspiração; ela surgiu-me no dia em que lemos e interpretamos um texto sobre Carlos
Cardoso e alguns poemas da autoria deste magnífico jornalista. O meu grande sonho é um dia
conhecê-lo. Mas diga-me, conhecê-lo-ei trancado nesta palhota? Acho que não. Qual é a sua
opinião, caro leitor?
***
A velha Tempestade pede licença. Esforço-me, vou abrir a porta. Ela entra, com uma
bacia cheia de água quente. Deixa a porta aberta, o Martelo vem ali posicionar-se, ladra, duas
vezes seguidas, e mantêm-se inerte, a guarnecer-nos.
A Tempestade nota que estou nua e sangro. Mas não se assusta. Parece que ela já sabe de
tudo que aqui aconteceu. Apanha a minha roupa, coloca-a na extremidade da cama.
Abrir as pernas, ela ordena.
Abro-as.
Ela leva a minha camiseta e mergulha-a na água quente. Tira-a. Coloca-a no meu órgão
sexual. Limpa-me os grandes lábios, depois os pequenos (ambos estão inchados) e por fim o
períneo e as coxas avermelhadas. A sensação é dolorosa.
Aguenta pouco, Tristeza, ela aconselha-me.
Volta a mergulhar a camiseta na bacia. Tira e coloca-a na abertura da minha uretra,
depois na da vagina por alguns segundos. Sinto a quentura da água absorvida pela camiseta
invadir-me as lesões, pouco a pouco.
Orvalho em Chamas
37
Fernando Absalão Chaúque
roubada. Faztudo dissera-lhe que a havia usado para me lobolar em nome de Santos e o meu pai
sabe de tudo.
Abro a boca, mas nada consigo dizer.
Fecho os olhos.
Com a palma da mão esquerda, enxugo-me as lágrimas. A Tempestade retira-se da
palhota. Afogo-me em meus pensamentos. Não sei em quem acreditar. Nos factos que presenciei
em Eyupuro ou na velha Tempestade. Ajude-me, caro leitor. Estou sem chão. O que devo fazer?
***
Os três meses que se seguem são a repetição do que aqui acabou de acontecer. Anoitece e
já sei o que se aproxima. O Faztudo vem à palhota e faz de mim o seu brinquedo sexual. Não
falha, todos os dias vem me violentar. A partir da quinta vez já não sangro. O que sangra é
apenas a minha alma. A velha Tempestade já não vem com a bacia de água quente. Vem apenas
certificar se ainda estou viva. Em seguida, eles levam-me às suas machambas. Lá, trabalho sem
direito a descanso. Penso várias vezes em fugir de volta à Eyupuro, mas é impossível. Sempre
que saio da palhota o velho Faztudo coloca-me uma venda nos olhos e só a tira quando
alcançamos o destino. Aliás, colocou-me a venda no primeiro dia quando o meu pai ofereceu-me
a ele. Por isso, não faço ideia de como poderei voltar a minha casa.
Por enquanto, durmo com o Velho Faztudo, mas é ao Santos que pertenço. Ele é meu
esposo, segundo o que a velha Tempestade me revelou.
***
Depois de três meses a ser violentado pelo Faztudo, eis que numa bela tarde ele morre
(sobre a sua morte adiante contarei). Depois do enterro do velho. Alegro-me. O diabo já se foi.
Ninguém mais me fará mal. É o fim das lágrimas. O renascer do orvalho. Espera aí! É o fim?
Não. Nem tão pouco. O azar é uma cauda difícil de decepar. É o navegante mais ousado do
mundo. É um hóspede que ninguém faz planos para o receber, mas é tão gentil e atento que visita
a todos. Pouca gente dele se escapa. E poucos o conseguem repelir. Por onde passa sempre deixa
moléculas para facilmente germinar quando quiser retornar. Sempre retorna nem que seja em
forma da morte. É o mestre das visitas clandestinas; age como um leão: ataca antes que o alvo se
prepare. Não é o fim. É o inicio de um pior tormento. Azar é sempre acompanhado de tristeza.
O velho morre e o filho substitui-lhe nos ofícios nocturnos. Antes da morte do velho
houve uma vez que os dois me estupraram diante da Tempestade (mas esse é um assunto para
Orvalho em Chamas
um outro capítulo). Ademais, o Santos é mais volumoso e bárbaro que o pai. Violenta-me
inúmeras vezes. Diferente do pai que só uma vez ao dia saciava-lhe o apetite sexual; o Santos
violenta-me até apagarem-se-me os sentidos. O Santos nunca é tomado por preguiças. Violenta-
me todos dias. É uma insaciável máquina de sexo.
***
Algumas horas antes de vir à maternidade, começo a sentir intensas dores de barriga.
Tempestade inspecciona-me as entranhas, revela-me que estou grávida e sentindo dores de parto.
Fico surpreendida. Eu nunca imaginei que estava grávida.
Sem demoras, sou levada até aqui. E dou à luz a este menininho.
Sinto muito, caro leitor, tenho que cortar este relato e descer do beliche para conversar
com a velha Tempestade. Mas quero deixar um segredo: não amo o meu esposo, nunca o amei,
nunca o amarei.
(Quem pode amar um monstro?)
Ele chama-se Santos, mas é o avesso do seu nome. É um humano desumanizado, uma
mordaz aberração, sem amor-próprio se quer para com os outros. Odeio a ele e a todos que
humilham a mulher. Ora, este problema iniciou no início de tudo. Fez-se o homem a partir do pó,
e, em seguida, fez-se a mulher a partir da costela do homem. Será que já não havia mais pó?
Repito: não amo o Santos, nunca o amei, nunca o amarei.
É o pai do meu filho, mas as sequelas, os hematomas dizem-me que ele nunca deixará de
ser um monstro.
39
Fernando Absalão Chaúque
Caro colega
Carlos Cardoso
Saudações! Tomarei por emprestado o teu modus operandi – directo ao assunto. Há dias
que a preocupação vinha sendo um vulcão aceso perturbando-me a lógica do pensamento.
Cheguei a desembocar em pesadelos nos quais via o Vaal Maseru em que embarcaste a pegar
fogo em plena marcha e todos os passageiros a serem mastigados por carnívoras chamas; às
vezes sonhava-te espostejado por leões. Tentei contactar-te pelo celular. Mas, as chamadas
desaguavam no voice mail. Por fim, percebi que a viável alternativa que me restava era reprimir
o desassossego, porque, às vezes, criava-me um bloqueio mental que, claramente, transtornava a
minha rotina laboral.
O remetente, foi a primeira coisa que quis ver quando o postman entregou-me a carta. Ao
abrir o envelope, não queria mais ver o remetente, mas sim a caligrafia. Dancei, entorpecido de
júbilo quando percebi que a carta tinha sido escrita por ti. Lembrei-me do dia em que o director
incumbiu-te a tarefa de rumarres a Eyupuro. Confesso: eu induzi-lhe a te escolher. Fi-lo incitado
pelo teu carácter e engajamento com o jornalismo investigativo.
Carlos, existem na nossa redação e na capital muitos e bons jornalistas, mas, tu, és uma
figura singular, incomparável, um ponto de referência incontornável na nossa sociedade. Não só
pelo afinco e variedade de assuntos que tens investigado, mas também pela criatividade e paixão
pela verdade. Daí que quando o director disse:
"Precisamos de alguém para ir a Eyupuro investigar o que tem acontecido lá."
Não demorei. Retorqui:
"Senhor director, nós não precisamos de ninguém; já temos alguém qualificado para essa
missão."
"E esse alguém és tu, Magaia?"
"Não. Refiro-me ao Colega Carlos.
Orvalho em Chamas
Espero que a minha revelação não te deixe irado. Mas acho que fiz a melhor coisa ao
sugerir que o director escolhesse a ti.
Caro colega, a chegada da tua carta alegrou bastante a todo elenco do nosso jornal.
Estamos todos ansiosos para receber mais notícias em torno da sua missão. Acreditamos que as
suas descobertas impulsionarão o nosso jornal. Tu conheces a situação da nossa Cidade das
Palmeiras. Em tudo há competição. Todo jornal quer sempre ser o primeiro a divulgar qualquer
matéria polémica. Deste modo, muitos tabloides já não se preocupam com a veracidade dos
factos, apenas com as vendas; quando não há nada polémico por publicar a redação reúne-se e
ficciona notícia que possa seduzir qualquer um a comprá-los. Todavia, no nosso jornal, a verdade
é o leme. Fazemos tudo para dar voz a quem não tem onde falar. Quando alguém encontra um
propósito já nada mais importa. Daí que, sem dúvidas, és a figura mais que elegível para essa
missão.
Caríssimo colega, a nossa capital continua a mesma. E nas últimas semanas tem piorado.
Os "leões" aos poucos vão colocando mão em tudo. Querem controlar todos meios sociais, e
deste modo monitorar a informação que chega ao povo. Agora concordo contigo quando dizes
que tudo que George Orwell escreveu na obra 1984 constitui uma realidade. Não restam dúvidas,
aquela obra é o retrato verídico do mundo em que vivemos. Os leões, ou seja, os big brothers
querem controlar tudo como se este país coubesse todo nos seus bolsos (e não cabe?). Fazem de
tudo para incutir na mente de todos que: Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é
força.
Na semana passada as nossas instalações foram invadidas por um grupo da polícia. Os
cops chegaram aqui, colocaram-nos contra a parede e reviraram tudo. Disseram que alguém lhes
informara que escondemos por detrás do jornalismo e que, na verdade, somos traficantes de
drogas. O director concordou com eles:
"Sim, nós vendemos drogas".
"Então, que drogas vocês têm aqui, haxixe, heroina, valium, suruma...?" Um dos agentes
perguntou.
41
Fernando Absalão Chaúque
"Vendemos palavras, informação, verdade e lucidez. Essas são as drogas que temos
aqui."
Os polícias riram-se. Perguntaram por ti. Insistiram. Mas nós não revelamos o teu
verdadeiro paradeiro. Dissemos que estás de viagem a Portugal. Os homens retiraram-se. Apesar
de tudo, continuamos a fazer o nosso trabalho sem medo algum. Enquanto estivermos em vida
nunca deixaremos de dar asas à verdade. Se for para morrermos, morreremos de pé.
Até breve!
Orvalho em Chamas
43
Fernando Absalão Chaúque
Orvalho em Chamas
(George Sand)
45
Fernando Absalão Chaúque
Se morres sem ter deixado um sucessor obrigas os que ficam a nascer a dobrar para
preencher o vácuo que atrás deixaste.
A minha avó ainda revelou ao teimoso jovem que segundo os costumes nos quais
cresceu, todo aquele que não deixa descendentes carrega uma nódoa imprecativa. Quando morre,
antes do enterro, os anciões lavam-lhe o corpo e com carvão desenham-lhe uma cruz nas costas
antes de vestirem-no o derradeiro vestuário.
No tampo do caixão, também esboçam uma enorme cruz a carvão. O caixão não pode
sair da porta frontal da casa, mas sim da porta dos fundos. Se for uma casa só com a porta
frontal, e, se for de alvenaria deve-se improvisar uma saída na parede traseira; se for de caniço, aí
fica tudo facilitado, desembaraça-se o caniço e tira-se o caixão.
Durante a cerimónia fúnebre, é obrigatório que todos familiares derramem lágrimas. Pois:
Quem parte sem deixar filhos é uma perda, um grande desperdício.
Na tumba de quem morre nesta condição não se pode plantar flores. Porque se uma
abelha pousar numa delas e depois for aterrar numa outra em casa de um dos familiares do
falecido, transportará um invencível azar:
Ninguém mais será fértil em toda família.
Marta Tempestade estava felicíssima, pois eu era a prova de que seu filho, Santos
Faztudo não era infértil, e, consequentemente, nenhum azar estava ancorado à sua família. E ela
juntamente com o seu falecido marido rejuvenesceriam. Viveriam para todo o sempre.
Pode se aproximar vovó, aproxima mais um pouco para ver o seu netinho, a ossuda
enfermeira dirigiu-se à Tempestade com um olhar e sorriso sarcásticos.
47
Fernando Absalão Chaúque
49
Fernando Absalão Chaúque
Nunca!
Nunca me pousara na mente que, com esta idade quase nenhuma me acharia numa
maternidade. Nunca imaginara que com treze anos teria um filho: um pedaço de lua para me
sugar os exíguos mamilos.
Nunca!
Percebo agora que o tempo é o maldito vector da vida (e de tudo), e que ninguém escolhe
a vida que quer viver, mas sim, uma determinada vida escolhe em quem morar. A isso, há quem
chama destino. Eu chamo de nada. Para mim, o nada é tudo, tudo que odeio, tudo que perante a
iminente inexistência teima em existir. O tempo é o eterno pesadelo de tudo que existe, porque
diante do seu implacável veredicto nada subsiste. O tempo é Deus. Sem o tempo, todo o tudo é
nenhuma coisa.
(Nunca pensara nisso?).
Por um instante, aos meus olhos, o meu filho é um pedaço de lua que de mim brotou. É a
luz que delimita a minha sombra na alma dos dias. Sou mãe de um indivisível pedaço de lua, o
meu corpo é o espelho da natureza.
Uma mulher é isso: um rio no qual a existência principia. As suas mãos são a matriz da
líquida ortografia dos sonhos. O seu coração é a ignição da inacabável esperança.
O choro do meu filho é o dócil cacarejar da chuva no telhado de um poema, traduz o
alegre idioma das gaivotas que enfeitam o mar; as suas magras lágrimas são uma indirecta forma
de plantar felicidade; são a trilha sonora que os peixes estampam na palma de um lago.
Meu filho é um orvalho. Uma lua orvalhada. Uma maravilha nunca antes por mim
imaginada. Tem a pele coberta de grilos entoando epopeias, tem espigas de lírios estampadas nos
poros, tem um universo de vaga-lumes roçando-lhe o peito com almofadas de luz, tem nas suas
veias o combustível que crava a minha existência na textura de tudo que é eterno. Tomara que o
que agora sinto dure mais que a eternidade.
Que sinto?
(Amor.
Amor.)
Orvalho em Chamas
51
Fernando Absalão Chaúque
enorme falo arrombando as calças. Não terei como negar. A mulher, independentemente das
circunstâncias, nunca pode negar sexo ao seu parceiro, deve sempre arranjar maneira de
satisfaze-lo. Não é isso que se tem propagado por aí?
Nesta sociedade, a mulher não chega a ter o estatuto de humano. É subalternizada. É
maltratada. É escravizada, silenciada. É vista como um animal desprovido de sangue e
sensações. Uma máquina que deve sempre obedecer as ordens dos machos. Ela carrega a culpa
de tudo que é malicioso. Dizem: ela abriu a porta da qual a morte chegou aos humanos ao aceitar
provar da fruta proibida. Ela é quem traz doenças aos lares. Quando o marido é o primeiro a
morrer, todo mundo acusa-a de o ter morto para ficar com os bens. Até quando isso tudo?
Até agora não percebo como tudo aconteceu. Será que o Santos sempre teve consciência
do que me fazia? E a Tempestade, terá logo notado que eu estava grávida e ocultara isso de
mim? Acho que sim. Foi algo que eles coordenaram.
Editor Chefe
Albino Fragoso Francisco Magaia
À noite as almofadas
são mais duras e desconexas
o colchão regorgita
famintas maçarocas
53
Fernando Absalão Chaúque
mordendo-nos o sono
e a crosta dos pensamentos.
Prestes a lê-lo pela quinta vez ouço um sibilo pontiagudo aproximando-se à entrada do
aposento. Largo o livro na cama. Aguço a audição. O silvo engorda-se, perfura-me os tímpanos.
Isso apavora-me até a última molécula do esqueleto. Talvez seja melhor gritar pedindo ajuda ao
Mbalame Ya Moto. Talvez não. Uma forte ventania peregrina lá fora. A capulana abana-se,
líquida.
Alguns versos do Stewart ecoam em mim:
For the first time
I am looking in your eyes
For the first time
I'm seeing who you are
I can't believe how much I see
When you're looking back at me...
Caríssimo, em vez de gritar decidi transpor a capulana para ver o que causava tumultos.
Enchi o peito de ar, como se fosse o homem mais corajoso do mundo. Movi a capulana. Um
acalorado pasmo congelou-me. Quase transformava-me em estátua. Juro, meu caro, nunca vira
algo idêntico àquilo em toda minha vida. Arregalei os olhos: vi três gigantes cones de palhas
(que lembravam cabanas) rodopiavam provocando o sibilo e a ventania que há pouco haviam
interrompido a minha leitura de "Pavilhão 7 Cela 20”.
Levei as mãos à cabeça. O que era aquilo? Palhas ambulantes? Impossível. Deve haver
pessoas dentro delas a se movimentar, pensei. Prestei mais atenção às palhas, notei que debaixo
delas não havia nenhuns pés dialogando com o chão. Cheguei a desconfiar que estivesse a
sonhar, tirei as mãos da cabeça, esmurrei-me algumas vezes em jeito de certificar se, na verdade,
estava acordado. Fechei os olhos (abanei bruscamente a cabeça; senti o sangue correndo nas
veias); reabri-os. As palhas continuavam embebedadas de infindáveis dinâmicas, distanciavam-
se do aposento.
Voltei à cama. Enterei-me nas mantas. Para apaziguar o coração conectei os auriculares
ao portable mp3 player, selecionei a música "knockin' on heaven’s door’’ de Bob Dylan.
Orvalho em Chamas
Infelizmente, antes que a música chegasse ao fim, o player reclamou de carga e desligou-se.
Resgatei o "Silêncio Escancarado" que já despenhara-se da cama. Li a quarta estrofe do poema
"Do Amor Pelas Pedras":
55
Fernando Absalão Chaúque
palavra pronunciada. Cuidar de mim? De onde veio esta mulher? Questionei-me enquanto
admirava seus atributos corporais.
"Não sou patrão, chamo-me Carlos Cardoso."
"Não se preocupe, aqui chamamos patrão a qualquer pessoa como o senhor." Ela disse
estas palavras apontando a costa da mão esquerda com o indicador direito. Percebi que se referia
à cor da pele.
"Não, não... eu sou uma pessoa igual a todo mundo", interferi.
"Você é um branco e em Eyupuro gostamos de chamar todo branco de patrão, é questão
de hábito, patrão."
Depois de ter proferido esta frase subiu à cama. Começou a massagear-me as costas. De
pestanas abaixadas saboreei seus suaves toques na minha pele. As suas mãos pareciam uma
esponja lambuzando-me a epiderme.
"Peço para dormir de barriga, patrão.
"Já disse... Carlos, não patrão."
Levantei a voz enquanto punha-me de costas.
"Está bem, patrão Carlos."
Nada mais disse. Nem que quisesse contestar, não restava brecha alguma, ela já me havia
domado com os seus toques magistosos. Sem querer, fiquei "Patrão Carlos". Ela promoveu-me
de subalterno anónimo a patrão. Sem os devidos e prévios avisos.
Depois de alguns minutos, ouvi alguém aproximar-se. A pessoa não pediu licença,
enfiou-se no aposento. Saltei da cama, surpreso. Distanciei-me da bela mulher. Vi Mbalame
diante de mim. Ele exibiu-me uma cara amarfanhada, fúnebre, sentou-se na armchair situada à
beira da cama. Eu tremia, assustado. Por segundos arrependi-me de ter deixado a mulher tocar
em mim. Aquilo era uma emboscada. Técnica para sujar-me diante do líder, deduzi. Por fim,
Mbalame sorriu, disse:
"Vejo que já estão se dando bem."
Fiquei sem palavra por dizer. Devia redimir-me ou agradecer-lhe pela visita repentina?
"Ela é que começou com tudo", improvisei.
"Sim, excelência, está tudo indo bem", disse a mulher.
Mbalame sorriu.
Orvalho em Chamas
"Não se preocupe, irmão, esta é a Huzina Matessa, será a sua companheira durante os três
meses da sua estadia aqui na nossa localidade."
"Excelência, eu não preciso de companheira, deixei uma esposa lá na capital."
Mbalame voltou a amalfanhar a testa.
"Irmão Carlos, é proibido negar a nossa oferta. Esse é o nosso gesto de hospitalidade.
Quando chega um homem de terras distantes emprestamos-lhe uma companheira. Ademais, a
Huzina vai te ajudar a perceber muita coisa aqui... será o seu dicionário e guia.’’
"É isso, patrão Carlos", ela complementa.
Olhei ao chão, carríssimo. Pensei na minha esposa aí na capital. Imaginei-lhe a saber
disto tudo. Mbalame deslocou-se até a saída do aposento. Imobilizou-se. Virou-se:
"Irmão, negar a Huzina será desperdiçar o teu dinheiro."
Ergui a cabeça.
"Que dinheiro, excelência?"
"No valor que pagou pela estadia já está inclusa a percentagem para os serviços da
Huzina."
Virei-me à Huzina. Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
Mbalame retirou-se.
Voltei à cama. Encarrei a mulher:
"Tenho uma pergunta para ti".
"Qual, patrão Carlos."
"O que são aquelas coisas que vi aqui ontem de noite?"
"Que coisas? Como eram essas tais coisas?"
"Eram cabanas de palha que passeiavam sozinhas pelo pátio."
"Ahaaa..." exclamou ela, e adicionou "são os Zangbetos"
Lembrei que Mbalame falara-me dessas coisas e prometera que brevemente as
conheceria.
"Mas o que é isso de Zangbeto?"
Discretamente, desci da cama, da minha pasta, tirei o gravador. Liguei-o. E ela já
começava a explicar:
57
Fernando Absalão Chaúque
Desliguei o gravador. Devolvi-o à pasta. Huzina olhava-me com olhos de lava. Levantou-
se, perguntou-me se já podia pôr uma bacia de água na casa de banho. Acenei que sim. Antes de
se retirar, ajoelhou-se:
"Patrão, muito obrigado por aceitar que eu lhe faça companhia, estou mesmo a precisar
de algumas moedas e muitos turistas dificilmente me aceitam."
"De nada, Huzina! Eu nem sabia que no dinheiro que paguei estava já incluso o valor
destes serviços."
"Está bem, Patrão."
"Diga-me algo, Huzina!!"
"Sim, Patrão"
"Disseste que muitos turistas te rejeitam?"
"Sim, é verdade."
"Qual é o motivo de te rejeitarem, Huzina"
Orvalho em Chamas
Ela passeou o olhar pelas quatro paredes do aposente. Coçou-se o nariz. Mordeu os
lábios, respondeu:
"Rejeitam-me por que sou uma Napwere.’’
"Napwere?"
Ela levanta-se. Encara-me.
"Albina. Eu sou uma albina, patrão."
Pela primeira vez, observo a mulher do cabelo aos dedos dos pés. Verdade: ela é uma
albina. Que estranho, desde que despertara ainda não havia prestado tanta atenção à cor da sua
pele. Limitara-me a admirá-la.
"Não se preocupe. Eu não me importo com isso. Mas diga algo, antes de eu chegar onde
ficavas, Matessa?"
"Eu estou no centro de acolhimento vim de Ohawa até aqui."
"O que te fez sair de Ohawa até aqui?"
"É uma longa história, patrão, contarei tudo num outro momento."
"Está bem. Tenho um pedido."
"Qual, patrão?"
"Quero que me leve ao centro."
"Está bem, depois do chá, iremos para lá, patrão".
59
Fernando Absalão Chaúque
61
Fernando Absalão Chaúque
Ainda que com uma leve prisão no ventre e intensas dores nos músculos das coxas, a
minha mãe desceu do beliche. A avó tempestade largou a bengala, tentou executar uma dança,
mas, a volumosa idade encapsulada no corpo recusou-lhe o desejo. A velha limitou-se a emitir
um breve nkulungwana.
As duas entrelaçaram os braços, sentaram-se num banco ao pé da cama e embarcaram
numa conversa descomunal.
A Minha mãe deixara-me no beliche, deitado de costas, abanando as flácidas mãozinhas
que, em movimento, lembravam asas de borboletas. Borboletas – esses pedaços de nuvens
perdidos no encéfalo da terra. Falo das borboletas porque foi a primeira coisa que naquela
conversa a avó Tempestade mencionou.
O que as borboletas têm de especial, mãe? Tristeza questionou.
Os borboletas são a nua metáfora da vida. Elas desenvolvem-se em metamorfose… é isso
que vida está sempre ensinando o homem.
Ahaaaaa…
Na mundo tudo acontece em fases.
A velha adicionou que as borboletas são a essência da sua memória ligada ao parto e ao
início da vida humana. Em Ohawa há um campo perto do rio Maithori; este campo fica sempre
repleto de girassóis e as borboletas sobrevoavam-no, dia e noite, beijam o colorido sorriso das
flores. Aquele espaço é sagrado, todos o vêem como o cerne da fecundidade e chamam-no
‘’umbigo do mundo’’ ou ‘’umbigo da terra’’. Em Ohawa acredita-se que nesse lugar moram os
espíritos matriarcas dos quais tudo que existe nasceu. Mas, em outras aldeias, como Eyupuro,
acredita-se que é no umbigo da terra onde Deus vive.
Em cada localidade há o respectivo Umbigo da Terra. Porém, em todas o Umbigo da
Terra só pode ser frequentado por mulheres e crianças.
Toda a mulher de Ohawa, salienta a velha, ao dar à luz deve ficar nesse campo até que o
coto do bebé caia e forme-se o umbigo. Durante a estadia naquele lugar, todas mães devem
apenas comer frutas, lambuzar girassóis, chupar a seiva matinal que jorra dos lírios.
Ninguém deve levar comida para lá?
Orvalho em Chamas
Não filha… nunca! Nada que tenha passado do lume e que tenha sal é ali permitido
Por quê?
Porque vai retardar a cicatrização do umbigo
A parteira e a enfermeira ainda estavam coladas a um canto do compartimento, com
leques nas mãos assoprando-lhes as caras, conversavam em vozes minúsculas como se suas
gargantas estivessem ajoelhadas no caule do silêncio. Gargalhavam a mudez. Às vezes lançavam
olhares a mim, à avó Tempestade e à minha mãe.
Tempestade acrescentou que o umbigo, essa marca de nascença, cicatriz-mãe-da-vida, é a
evidência carnal da simbiose humana, da mais meiga e materna memória esculpida no idioma do
corpo. O umbigo é um ponto no meio da barriga, mas está ligado à mente, ao íntimo e às
emoções. Na verdade, quando cada um olha para o seu umbigo, enxerga ali a luzidia memória de
um vínculo que nos remete a uma outra pessoa. Sentimos nele a saudade de uma conexão carnal,
real e absoluta, capaz de nos nutrir a alma, o corpo e o espírito.
Levar os recém-nascidos ao Umbigo da Terra é forma de apresentá-los aos espíritos
matriarcas e especialmente aos antepassados consanguíneos.
***
Tempestade lembra-se que antigamente, Faztudo não acreditava na existência dos
espíritos matriarcas. Eles haviam se estalado naquele bairro há poucos meses. Depois que a
Tempestade deu à luz ao Santos, Faztudo disse:
Meu filho não vai ficar na merda de nenhum umbigo da terra...
Ele transportou-os na sua bicicleta bmx de volta a casa. Chegados lá, o homem ainda
acrescentou:
Porra pah, não há nenhum espírito matriarca que decide a vida da minha família.
Feneceu o dia.
O bebé não sossegou, chorou até soluçar como se uma guilhotina lhe perfurasse os
pulmões e lhe retirasse a vida. Faztudo, preocupado e temendo que a morte mastigasse o
primogénito, começou a verter lágrimas, rodopiou até doer-lhe as tíbias. Proferiu as mais santas
palavras que conhecia. Tempestade, sentada na cama, várias vezes tentou amamentar o bebé,
este, recebia o mamilo, mas não o chupava, mordia-o, expelia-o e reactivava o choro. Faztudo e
63
Fernando Absalão Chaúque
Tempestade passaram a noite em claro. Alguns vizinhos vieram para ajudar. Tentaram tudo que
podiam, mas o bebé continuou embriagado por um interminável desassossego.
(A parteira e a enfermeira há muito haviam suspendido a silenciosa conversa.
Tempestade percebeu que as duas escutavam-na, clandestinamente. Pausou a narração.)
Então, como que isso terminou?, a minha mãe questionou, curiosa.
A avó Tempestade tossiu três vezes como se reouvesse forças para continuar com a
narração, ou tentasse lembrar ou inventar o fim daquela estória.
Quando a parteira e a enfermeira notaram que haviam sido descobertas pela velha
reactivaram a conversa. Mas, a sua audição mantinha-se sintonizada nas cordas vocais da velha,
como um anzol esfomeado na casa dos peixes.
Meu nora, divinha lá pouco como isso terminou…
Com as dores que estou sentindo sou incapaz de pensar.
Na madrugada do dia seguinte quando os grilos entoavam as últimas elegias, Santos
parou de chorar. Depois ouviu-se um pedido de licença na porta. Tempestade, com o bebé no
colo, abriu-a, mas ninguém estava lá. Chamou o marido para juntos testemunharem o insólito.
Quando os dois já estavam na porta, viram uma enorme nuvem se aproximando. Curiosos,
esbugalharam os olhos. A nuvem desceu. Já perto, eles notaram que aquilo não era uma nuvem
verdadeira, era uma legião de borboletas. Em seguida, ouviram uma voz que ordenava:
Desmancha o bebé, Marta Tempestade.
Ela não se atreveu a recusar. Faztudo encolheu a cauda da renitência que carregava desde
a infância. Quando Tempestade terminou de desmanchar o bebé, as borboletas abraçaram-se
como se atassem as asas, formaram um círculo. A invisível voz ouviu-se de novo:
Coloquem o bebé no meio das borboletas.
O casal seguiu a ordem. Quando o bebé já estava entre as borboletas começou a gargalhar
como se não lhes tivesse privado do sono na noite anterior.
As borboletas elevaram-se com o bebé refastelado no centro. Mais uma vez a voz ouviu-
se:
Marta Tempestade, antes do meio-dia deves ir ao Umbigo da Terra para ficar com o seu
filho.
Orvalho em Chamas
Tempestade não hesitou. Dirigiu-se ao Umbigo da Terra. Ficou lá até o umbigo de Santos
formar-se. A partir deste episódio, Faztudo nunca mais se atreveu a revogar qualquer coisa
relacionada aos espíritos matriarcas ou aos antepassados.
É por isso que sempre que eu pensa na nascimento, os borboletas também me surgem,
Tempestade acrescenta.
Assim… tenho que levar o bebé ao tal umbigo do mundo?
Depois do que contei aqui ainda perguntas isso?!!, a velha questionou, arrostando a
minha mãe com um olhar sombrio.
Sem dúvidas. Era imperioso que ela me levasse ao Umbigo da Terra; ou então o que
acontecera com o meu pai se repetiria ou algo pior aconteceria.
Era exactamente para evitar tragédias que a Tempestade fizera o esforço de vir a
maternidade muito cedo. Ademais, por razões nunca reveladas, era obrigatório que além da
parteira, os avós e o pai fossem os primeiros a ver o recém-nascido.
Eu tenho medo de ir ao umbigo da terra, a minha mãe confessou
Nada de medo, filha… Deus te dará forças.
Deus ou os antepassados?
Os antepassados são guiados por Deus e eles guiam Deus a nós…
Isso é verdade, mãe?
Chega de tantos fala-falas, quero ver o minha neto…
A enfermeira e a parteira assustaram-se, entreolharam-se. A enfermeira cochichou no
ouvido da outra.
Eheeee… é agora que a bomba vai-se arrebentar.
A parteira deixou uma questão a pairar na consciência da colega.
Será que a vovozinha vai gostar de saber que o netinho é um albino?
65
Fernando Absalão Chaúque
67
Fernando Absalão Chaúque
Estou confusa.
A declaração da Tempestade anuvia-me os pensamentos. Já não sei se devo rezar aos
antepassados ou a Deus; apesar de ainda ter esta diminuta idade cresci ouvindo que Estes são
entidades diversas. Distantes.
Deus vive no céu e nas igrejas e os antepassados nas nossas cabanas, árvores ou em
qualquer sítio onde nós decidimos colocá-los. Com os acedentes pode-se negociar, mas Deus não
gosta de ser questionado, com ele não se dialoga, só se recebe ordens, mandamentos. Fui
ensinada que os dois nunca se conjugam. Cada um habita o seu canto. E hoje, a Tempestade diz-
me que os antepassados são guiados por Deus e eles guiam Deus a nós.
Incrível!
Antes do meu pai usar-me como moeda de troca, sempre testemunhava rituais e ofertas
aos antepassados.
Havia um canhoeiro enorme no centro do nosso quintal. Aquela árvore tinha uma
carapaça de tartaruga atada ao caule por uma linha vermelha. Era ali que os nossos antepassados
moravam e onde íamos sempre que quiséssemos com eles dialogar; eu era a responsável pela
limpeza daquele lugar. O meu irmão tinha a obrigação de alimentar os espíritos. Quando
anoitecia, ele colocava ali comida e água. Todas manhãs, quando eu fazia limpeza encontrava as
panelas vazias. Corria e informava o meu pai. Ele respondia:
Isso significa que os nossos antepassados estão contentes, filha.
Em Eyupuro acredita-se que os mortos vivem numa outra dimensão, nas asas do além, a
função deles é proteger os familiares que ainda estão em vida: protegê-los e facilitar-lhes a sorte;
mas para que a ligação com eles não se rompesse, era necessário alimentá-los, visitar as suas
campas e perfilar as suas fotografias dentro de casa. Assim mantinha-se aceso o vínculo. Quem
não o fizesse recebia sucessivas pragas de azar e tormento. Os antepassados são como Deus –
bons, mas também dominam o ofício malicioso. Alguns ancestrais conseguem manter a cortesia
para com os seus familiares, cumprem as suas funções sossegados nas costas do além. Todavia,
alguns fazem esforço para sempre interferir na vida dos familiares.
***
Orvalho em Chamas
Em Eyupuro havia um casal vizinho: o senhor Mafemane e a senhora Laurinda. Com eles
triturávamos a vida. Os vizinhos são também família e os amigos são parentes que a vida nos
oferece, sempre dizia a minha avó.
Durante anos, este casal nunca conseguiu ter filhos, muitos culparam a Laurinda por ser
albina. Dos familiares de Mafemane aumentaram os espezinhos para com ele: Casou-se com uma
albina por que? Acabaram mulheres no mundo?
Enfim, o casal tentou tudo para a Laurinda conceber. Mas, nada. Nada resultou.
Mafemane morreu ainda sonhando ser pai.
(O seu caixão foi retirado pela porta dos fundos. Ele foi enterrado com uma cruz a carvão
nas costas e uma outra no tampo do caixão e não se plantou flores na sua tumba.)
Passados três dias, à noite ouvimos vozes deambulando em espiral na casa de Mafemane.
A minha mãe rematou:
São choros da Laurinda…a dor do luto ainda vive nela.
As vozes continuaram por sucessivas noites.
Um dia, os meus pais decidiram aproximar-se logo que as vozes começaram a se ouvir.
Quando lá chegaram, puseram-se na escuta, atenciosos.
Ela está se temperando com um homem, a minha mãe desvendou o mistério.
Como assim? Já passaram seis meses?, o meu pai questionou, preocupado.
Não. Passava-se menos de um mês que Mafemane esfumara-se da terra e ela já cambiava
gemidos com um outro homem? O meu pai ficou desterrado porque aquilo era violação às
práticas locais. Laurinda devia ter ficado seis meses, de luto, até ser submetida ao kupita-kufa, a
cerimónia de purificação da viúva. Ao se envolver com homens antes da purificação chamava
terríveis doenças para a localidade. Só de pensar nisso, os olhos do meu pai ficaram
avermelhados, um rio de suor regou-lhe o corpo todo.
Os gemidos da Laurinda intensificavam-se.
Vamos espreitar para termos certeza de que é ela, a minha mãe sugeriu.
Urgia que certificassem para que pudessem comunicar às autoridades locais com absoluta
certeza dos factos.
O meu pai foi o primeiro a espreitar através de uma pequena fresta da janela. Viu o que
viu. Ficou encabulado. Sentou-se, encurvou o pescoço como se tivesse visto o ânus do diabo.
69
Fernando Absalão Chaúque
Laurinda plantou um embondeiro no centro da sua casa. Era ali onde ela e os filhos
passavam a conversar com Mafemane e depositavam comida e bebidas para alimentá-lo.
***
Em casa, nós acreditávamos nos antepassados, mas também frequentávamos uma igreja,
foi nela que eu sempre ouvia falar de Deus.
***
Deus é o tempo…
Lembro-me com exacta nitidez da primeira vez que ouvi a voz morna, monótona, ácida,
do pastor Pedro Paulo Pontes ecoando na igreja, rachando a noite, nadando na escuridão,
aniquilando o silêncio, convocando mochos, corvos e águias que de dia cochilavam na única
frondosa e fedorenta figueira de Eyupuru, defecando pedaços de fumo, sonhando com nuvens
epilépticas, dançando ao som de uma gorda melodia, mostrando o ânus aos ascetas esfomeados
que caminham com as tripas alinhadas na órbita das trevas. A voz do pastor convocava também
bojudos gatos pretos que se posicionavam nas extremidades do altar e iluminavam-no todo
somente com o brilho dos seus olhos.
Deus é o tempo…
Esta frase dava início ao culto. Logo que a ouvíamos certificávamos de estar nus,
desenhados no morto lustro, visíveis somente aos olhos cegos da noite. Nus, pois assim o pastor
exigia, e salientava:
Esta é a Church Mbunya, aqui rezamos nus porque só assim se fala melhor com Deus.
Deus criou-nos nus, reconhece-nos nus, o vestuário é uma barreira aos olhos do
Altíssimo. Adicionava que quando alguém morre deve ser enterrado nu, sem caixão para que se
facilite o arrebatamento e a comunicação com o criador. E mais, ali, naquele lugar não íamos só
rezar, íamos também fortificar a amizade com o altíssimo, e só devíamos fazer isso de noite,
quando Deus já está livre dos seus abundantes afazeres. E o pastor dizia toda frase:
Deus é o tempo e o tempo é vida.
Em seguida, todos mochos, corvos e águias saiam da figueira, harmónicos como que
guiados pela mesma máquina espiritual, aterravam no altar, arrogantes, piando, ora grasnando,
gritando, rodeavam o pastor. Um rio de poeira tépida esfumava-se daquele chão batido, e o
sentíamos adentrar-se-nos como gás martelado pela fúria de qualquer coisa sem compaixão. Um
71
Fernando Absalão Chaúque
cheiro a incenso engravidava-nos o olfacto, passeava por ali. Uma badalada nascia de não sei
onde comandando alguns corvos a pousarem nos ombros do pastor. Ele levantava as mãos e
dizia-nos que os mochos são o cérebro de Deus, os corvos o Seu corpo e as águias o Seu olho, ali
tínhamos a tríade sagrada. Eu, o meu irmão Pedrito, e os meus pais abanávamos a nossa nudez e
gritávamos: ‘’amém’’.
Certas vezes, o pastor Pedro Paulo Pontes dizia-nos para ir à igreja de dia. Ele aparecia
impaciente, aéreo, não convocava os mochos, os corvos, as águias nem os gatos. Não nos
obrigava a tirar as roupas. Ia logo ao discurso:
Deus só existe quando pensamos nele…
E acrescentava que o homem é quem criou Deus. O ser humano, na verdade, é o deus de
Deus. Em busca de soluções, o homem inventou Deus, para ser resposta às perguntas sem
resposta. Por isso mesmo, todas as civilizações criaram religiões, diferentes modos de reinventar
Deus e de dar sentido à vida.
Depois, mandava-nos ficar quietos durante meia hora, dizia que era para Deus poder
rezar, suplicar a nós para que nunca o esquecêssemos e no fim de tudo dizia:
Deus só existe quando pensamos nele; quando o esquecemos esvaece-se, resume-se em
nada, deixa de existir…
E nós gritávamos: ‘’AMÉM’’.
***
A verdade é uma: hoje, já sou mãe. Eu, sozinha não poderei suportar o que me virá às
costas. Além do apoio familiar (apesar de os meus pais e o meu irmão Pedrito estarem distantes),
preciso de algo sobrenatural para me fortificar. E já não sei o que é certo. Deus ou os
antepassados? Juro! Estou confusa não sei a quem dirigir as minhas preces. Não sei a quem pedir
que me fortifique nesta nova página que hoje se abre diante de mim. O que sei é que preciso de
algo para proteger a mim e ao meu filho. Tenho que ir ao Umbigo da Terra, mas depois da
declaração da minha sogra Tempestade fico sem saber se o que lá reina são os antepassados e os
espíritos matriarcas ou Deus.
Estou confusa.
Orvalho em Chamas
Editor Chefe
Albino Fragoso Francisco Magaia
73
Fernando Absalão Chaúque
Os seus olhos avermelharam-se, a pele ganhou uma coloração roxa. As veias quase
arrombavam-lhe a pele. Levantei-me, abracei-a. Senti o seu coração e a ofegante respiração
abrandarem. Guiei-a à cama. Os seus olhos reaveram a coloração normal. Em fim, acalmou-se.
‘’É proibida a entrada de estranhos no centro, patrão.’’
‘’Isso é um absurdo! Como é que num centro público há tantas restrições?’’
‘’São as novas regras do Mbalame Ya Moto’’
‘’Novas?’’
Sim. Ela confirmou. Antigamente quando o centro ainda estava nas mãos dos brancos
qualquer um podia visitá-lo. Logo que os estrangeiros deixaram o centro nas mãos do Mbalame
as regras foram alteradas. Ele construiu um murro gigante e colocou guardas por todo o lado.
Quando anoitece há os zangbetos também, a vigiar toda localidade.
‘’Agora, ninguém sai nem entra ali de qualquer maneira, patrão.’’
As revelações da Huzina atiçaram-me as curiosidades. Daí que decidi ir ao centro nem
que tivesse de enfrentar uma legião de antagonistas. Caríssimo, não me quero precipitar a tecer
afirmações categóricas, mas acho que a mudança de regras no centro é um indício de que algo
está errado. Tenho em mente várias hipóteses, mas é prematuro as revelar.
‘’Patrão, não vai, aqueles guardas são impiedosos, ainda te podem balear.’’
‘’Huzina, estou pronto a enfrentar qualquer coisa, vou já ao centro.’’ Ignorei os conselhos
da mulher.
Calcei os sapatos. Terminei de pentear a barba. Vesti a minha balalaica e nela escondi o
gravador e o meu minúsculo caderno de notas. Não levei a máquina fotográfica. Encarei a
Huzina. Ela mexia negativamente a cabeça enquanto lágrimas roçavam-lhe a face. Saí do
aposento, atirei os olhos aonde na noite passada vira Zangbetos. Caminhei até às imediações da
casa do Mbalame Ya Moto. Parei algures a observar a sua megalómana residência.
Depois reactivei a caminhada até sobressair numa enorme rua.
Viro-me. Vejo alguém com todo o corpo coberto de vestuário preto. Apenas os seus olhos
estão expostos. Na cabeça traz um enorme chapéu de palha. É a Huzina Matessa.
‘’Patrão, bate palmas também.’’ diz ela oferecendo-me seu chapéu de palha com abas
longas.
‘’Bater palmas para quem?’’
‘’Patrão, isso não interessa, faça o que digo se ainda quer viver.’’
O carro com as sirenes em chamas vinha a uma altíssima velocidade. O resto da caravana
seguia-o tão colado a ele que todos pareciam um único corpo.
Pouso o chapéu na cabeça.
‘’Bate palmas, prometo que lhe levarei ao centro, patrão.”
(Esta foi uma afirmação tentadora, mas convincente.)
Ainda queria dizer a Huzina que não gostava de ser ameaçado e que se me estivesse a
enganar os seus serviços seriam imediatamente dispensados. Mas não deu tempo. A caravana já
estava perto.
Começo a bater palmas seguindo o ritmo dos outros. Presto atenção à caravana. No meio
dela vejo um Bugatti amarelo. Dos seus vidros fumados alguém derrama avultadas quantias de
dinheiro. A multidão acorre a apanhar as notas enquanto grita felicidades. Eu e Huzina somos os
únicos que se abstêm da azáfama. A caravana vai passando e daqueles vidros continua a marejar
dinheiro. Na multidão, cada um albergava o dinheiro onde quer que fosse possível (bolsos,
cestos, bacias; outros rasgavam a roupa para embrulharem-no), em seguida desapareciam dali.
Meu caro editor, foi a primeira vez que estive diante de um Bugatti. Antes só o vira em
revistas e jornais sobre comércio. Já visitei algumas grandes cidades, mas em todas elas nunca
me cruzara com um carro destes.
Com os olhos segui o automóvel até derreter-se na paisagem.
Virei-me, e a Huzina já se retirara de perto de mim. Desesperei-me. Depois vi-a no fundo
de um estreito caminho acenando-me. Dirigi-me à ela, às pressas.
‘’Quem são aqueles que andam a despejar dinheiro como se fosse areia?’’
‘’É o Peter e os seus comparsas, patrão.’’
Meti a mão direita num dos bolsos da balalaica. Carreguei o ‘’REC’’ no gravador.
‘’Quem é esse Peter?’’
75
Fernando Absalão Chaúque
‘’Quem és tu?’’
Identifiquei-me.
‘’Não fomos notificados que receberíamos alguém com esse nome?’’
Os guardas eram assustadores; trajavam fardamento preto e haviam coberto as caras com
máscaras de caveiras de diferentes cores.
‘’Sou um turista, desconheço as regras desta terra.’’
‘’E o que queres aqui no centro?’’
Respondi que apenas queria visitar o centro e conversar com os acolhidos.
Mais um tiro ao ar.
‘’Vire-se e vá embora. Desapareça daqui!’’, um outro guarda ordenou.
Dou meia volta. Quando já estou prestes a desaparecer. Ouço o portão abrir-se. Uma voz
feminina (não estranha para os meus ouvidos) dirige-se a mim:
‘’É o Carlos Cardoso?’’
Ainda com as mãos ao ar, confirmei com o polegar. Virei-me ao portão. Vi a Dona
Khefassi no meio dos guardas saudando-me com um sorriso. Abaixei as mãos. Aproximei-me a
eles. Os meus pés tremiam de susto.
‘’Dona Khefasse. Peço perdão por…’’
‘’Não se preocupe, eu é que peço perdão pela imprópria recepção dos guardas.’’
Ela deixou-me atravessar o portão.
‘’Quando o excelência falou-me do centro fiquei curioso para conhece-lo, por isso que
decidi vir até aqui, espero não estar a incomodar.’’
‘’Hummm…’’
Enquanto caminhava lado a lado com a esposa do líder comunitário percorria-a com os
olhos. Desta vez, apesar do nervosismo, conseguia notar-lhe características que me haviam
passado despercebidas aquando do nosso primeiro encontro no escritório do seu marido. A sua
altura é média. A sua cara e olhos são exageradamente arredondados. A sua pele tem várias cores
(vermelho, verde, amarelo, rosa, preto e castanho) concluí logo que aplicava químicos para
clarear-se. Ostentava cabelos longos e unhas artificiais (envernizadas a branco). Os lábios
carnudos estavam ensopados de batom vermelho. Estava vestida à executiva, picava o chão com
o salto alto (não parecia uma senhora com quarenta anos).
77
Fernando Absalão Chaúque
Enfiei a mão ao bolso. Peguei o gravador. Salvei a gravação em curso e iniciei uma outra.
Depois de alguns segundos. Eis que as lindas vozes embalam-me os tímpanos destilando os
seguintes versos:
O lume das minhas mãos
É gota bebendo chamas
Minha pele é uma pétala
Remediando lágrimas
79
Fernando Absalão Chaúque
Se há um ponto de sol
derramado no chão,
um gato irá encontrá-lo
e absorvê-lo.
(J.A. Mclntosh)
81
Fernando Absalão Chaúque
83
Fernando Absalão Chaúque
E inquirido:
Alguém está aí…?
Ora, chorei em vão. Ninguém apareceu. Comprovou-se que não havia ali gente alguma
além de mim.
As animalescas vozes aproximavam-se. Espreitei abaixo, vi uma manada de peludos
animais escalando a montanha. Subiam com uma ferocidade de se invejar. Eram alpinistas de
pasmar o próprio espanto.
Segundos depois, vi-me rodeado por um bando de wegies: gatos robustos, com pernas
longas, pelagem comprida e tripla: com uma camada superior brilhante e densa, uma isolante e
uma lanosa por baixo; tinham rostos triangulares, delimitados por grandes jubas – tufos de pelos
entre os dedos dos pés e cauda longa e também peluda; garras extensas e muito fortes –
rodearam-me; gritaram:
Já o encontramos… já encontramos o gajo!
Deu-nos muito trabalho, mas… finalmente!
Eu nada percebia. Havia eu fugido deles até ali? Como fugira? Teria voado?
Chefe, é melhor se aproximar para ver se o gajo dá ou não, um dos gatos sugeriu.
Fiquei mais sobressaltado. Os gatos quebraram a roda, dispuseram-se em meia-lua
encurvaram-se, esboçaram uma vénia. Um leão bojudo surgiu, posicionou-se no meio do arco,
penetrou-me com o olhar, um riacho de saliva transbordou-lhe da boca. Disse:
Este é ideal, meus caros, é de um bebé napwere que vocês precisam.
Na paralela conversa que decorria entre os gatos ouvi que eles me vinham perseguindo já
há muitas horas. Eu fugira sozinho? Não. Estivera sempre com a minha mãe. Percorrêramos uma
longa trajectória fugindo daquele leão e dos seus subalternos. A minha mãe escondera-me no
cume daquela montanha sem saber que aqueles felinos eram habilidosos alpinistas. Ela
desaparecera, talvez fora algures pedir ajuda. Haveria ali gente para nos salvar?
(Talvez.
Talvez.)
Chefe, também usou um bebé albino para se transformar?
Sim, foi um napwere igualzinho a este…
Orvalho em Chamas
Já estava tudo clarificado. Aquele leão, antigamente fora um wegie igualzinho àqueles
que agora o chamavam por chefe. Segundo a sua explicação, ele conseguira se transformar em
leão quando bebera o meu sangue, aliás, sangue de um bebé igualzinho a mim.
Meu caros, vocês devem sugar o sangue dele…
Depois de ter ouvido estas palavras, fiquei ainda mais alarmado. Meu coração quase
explodiu.
O leão ordenou que os gatos me sugassem o sangue.
O primeiro gato aproximou-se a mim. Exibiu-me seus dentes, enfiou-os no meu calcanhar
direito.
Descartei o sono, interrompi o maldito sonho. Abri os olhos.
Vi-me ainda nas mãos da Tempestade. Meu corpo tremia; tremia de susto. Emiti um
afiado choro. A avó entregou-me à minha mãe.
Dá-lhe de mamar… parece está com fome esse minha neto
Deve ser isso, assim que dormiu um pouco acordou com o estômago cheio de fome, a
minha mãe secundou as palavras da velha.
(Comecei a chupar.) Entretanto, o pesadelo é que me activara o choro, não a fome. Aliás,
acho que ainda não aprendera a senti-la.
(Continuei a chupar.)
Enquanto chupava, a avó não parava de me admirar.
Este bebé é igualzinho ao pai. Quando olho o sua cabeça, as suas olhos, as dedos, os
unhas vem-me a cara do Santos. Quando olho o sua penisito lembro-me logo do Faztudo.
A parteira e a enfermeira assustaram-se. Aproximaram-se a nós.
Expeli o mamilo.
Meu neto é muito bonito, não é isso, senhor parteira?
É verdade, Vovó Tempestade.
A enfermeira ainda queria responder, mas desta vez a parteira fora mais rápida.
A enfermeira olhou a parteira, perguntou-lhe:
Posso lhes dizer…
O quê?, a minha mãe perguntou, surpresa. Afinal havia um segredo que só a parteira e a
enfermeira sabiam?
85
Fernando Absalão Chaúque
87
Fernando Absalão Chaúque
89
Fernando Absalão Chaúque
entregou-me à minha mãe que já se soerguera. A velha franziu a cara; começou a esfregar os
olhos com os pulsos, cairam-lhe grossas lágrimas, molharam o soalho.
A enfermeira e a parteira surpreendem-se, arregalam os olhos.
O que se passa, mãe?, Tristeza pergunta a Tempestade.
A velha não responde. Continua a deixar chover idosas lágrimas ao chão do berçário.
Que contradição!
A minha chegada ao mundo não a alegrava mais. É o que já parecia. Ora, chora-se o
nascimento ou a morte? As duas coisas?
Mamã, pára de nos fazer barulho aqui, interferiu a enfermeira.
A Tempestade tira o lenço da cabeça, enxuga-se as lágrimas e volta a amará-lo. Silencia-
se. Em seguida, pega a sua bengala, aponta a enfermeira e a parteira. Ameaça-as:
Vocês duas vão se ver comigo…
Mãe, não faça isso, por favor!
Tristeza, não defender estas duas, elas sabem de tudo.
Esta velha perdeu os miolos ou o quê?, a enfermeira pergunta a colega.
A parteira encolhe os ombros duas vezes em jeito de dizer que não percebia o que se
estava a passar com a minha avó.
Velha? Velha eu?
Sim, és uma velha, a enfermeira respondeu.
Velha é o sua mãe que não te ensinou boas respeitos, é por isso que sempre serás uma
lenhosa, magra, feita só de ossos e poeira.
A enfermeira enervou-se. O seu juízo descarrilou-se, seus olhos avermelharam-se como
se fossem duas paralíticas lagoas de sangue. Ela tirou as luvas e a bata:
Agora vou-te mostrar que sou uma mal-educada mesmo…
Não faças isso, colega!
A parteira puxou a amiga para um dos cantos, convenceu-a a controlar os nervos, a não
quebrar a ética e a deontologia profissionais.
Pode me bater, mas vocês as duas sabem de tudo.
Mãe, o que estás a dizer?
É isso Tristeza, estes duas sabem o que aconteceu aqui.
Que merda estás a falar?, a parteira pergunta a Tempestade.
Orvalho em Chamas
91
Fernando Absalão Chaúque
93
Fernando Absalão Chaúque
fosse um homem nunca teria paciência de criar coisas tão belas como o céu, as borboletas, os
rios, as flores.
Decidi calar-me. Já não tinha mais forças para continuar naquela batalha verbal. Melhor
era beber da sabedoria daquela senhora.
‘’Sabes quais são as criaturas predilectas de Deus, senhor Carlos?’’
‘’Não!’’
‘’Tenta adivinhar!’’
‘’Tavez os pássaros.’’
‘’Por quê?’’
‘’São a única criação que pode cantar melhor que Ele.’’
Khafassi esbugalhou os olhos por segundos.
‘’Hummm! Os pássaros estão na lista, mas não vêm em primeiro lugar. O que ocupa o
primeiro lugar no coração de Deus são os Napweres!’’
Tomei a última porção do café. Cocei-me a barba à espera que ela fundamentasse a
declaração.
‘’Depois de Deus ter criado tantas coisas no mundo é que teve a ideia de criar a nós, as
pessoas. A primeira criação de Deus foi uma mulher napwere, à sua imagem. Sim, os napweres
são a exacta imagem de Deus. Mas com o tempo e circunstâncias climáticas surgiram outras
pigmentações. Deus deixou que isso acontecesse porque a diversidade agradou-lhe. Mas, no
fundo, os napweres são a sua predilecta criação.’’
Khefassi calou-se. Levou a chávena à boca. Sentiu que o chá esfriara. Devolveu-a ao
tampo. Passaram-se mais de cinco minutos de absoluto silêncio. Por fim, repeti uma das minhas
questões anteriores:
"Como sabes disso tudo, dona Khefassi?"
" Já disse, caro Cardoso. Aprendi tudo isto quando fui ao umbigo da terra com o meu
filho Peter. Ouvia Deus a cantar esta canção. Mas as anciãs nunca me deixavam cantá-la nem
decalcar a melodia.’’
‘’Por quê?’’
"Porque o meu filho Peter não é um napwere. Mas as que tinham bebés napweres
cantavam livremente esta canção seguindo a voz de Deus."
95
Fernando Absalão Chaúque
"Ahaaammm! Então é por isso que mesmo no grupo coral só existiam napweres a cantar
esta canção...!?"
"Exactamente. E mais, Orvalho em Chamas é uma elegia exclusiva aos napweres."
‘’Elegia?’’
‘’Sim! Porque eles são caçados e chacinados como animais. Todos os dias!’’
‘’Dona Khefassi, tenho algumas questões viradas ao ponto que acabou de tocar.’’
‘’Qual?’’
‘’A chacina aos albinos ou napweres como voces os têm chamado aqui.’’
‘’Vamos dar uma pausa, senhor Carlos, preciso coordenar algo com a Luísa e a
Madalena. Volto já!’’
Ela levantou-se selvaticamente da cadeira. Abriu a porta com todas brutalidades. E
desapareceu. Ainda ouvi o seu salto alto a picotar o soalho.
Orvalho em Chamas
97
Fernando Absalão Chaúque
~ Já relatei como naquela noite o velho Faztudo me estuprou pela primeira vez. Agora quero
contar o que aconteceu desde a madrugada do mesmo dia antes do maldito velho fazer de mim o
seu brinquedo sexual. Desculpe-me, caro leitor, sei que já devia ter contado isto há muito tempo,
antes de falar do primeiro estupro, mas havia me esquecido. Há muita coisa que agora corre na
minha mente que acaba turvando-me a exacta cronologia dos factos. ~
Orvalho em Chamas
A madrugada desenrola-se.
Estrelas sorriem, saltitam, perdem-se na concha da brisa dourada projectada ao mundo
pelos pulmões de Deus. Um silêncio dissimilado pronuncia-se escoltado pelo perfume do
amanhecer; o sol espreita o mundo com seus olhos de fogo; atravessa a fibra embrionária na qual
o mar e o céu interligam-se. A escuridão chora, vive suas últimas horas, encolhe-se, em breve
terá de recolher-se ao seu predilecto esconderijo; morrerá acompanhada por fantasmas, sombras
e outros seres e almas rapinas.
Ouço uma voz perfurando-me as paredes do sono.
Fora: grilos, galos, pássaros verbalizam suas modestas cantigas, alternadamente, como se
seguissem uma escala sinfónica. Pássaros, galos, grilos, vozes das ondas, marcha das nuvens,
trovoadas, canções da chuva, timbre das folhas verdes obedecendo a pauta que guia o mundo
vegetal fazem da natureza a mais bela das orquestras.
Tristeza…!
O sono ainda por mim clama, implora que continue no seu leito. Mas esta voz é
demasiado musculosa – é a voz do cosmo inteiro – invade-me os tímpanos da alma.
O meu corpo espreguiça-se. As minhas pálpebras pesam como se todo sono existente
dormisse nelas. Meus olhos ardem, vislumbram um espesso negrume que lembra a igreja do
pastor Pedro Paulo Pontes e os corvos que nos seus ombros pousavam durante as orações.
Levanto-me desta cama desconfortável na qual deito-me para descansar, todavia a cama
cansa-me ainda mais. Durmo sã; acordo com o corpo todo cimentado de dores. É uma cama feita
de paus, sacos e capim seco. Uma cama plantada na barriga do chão.
Ao levantar-me não sinto os pés, um estranho formigueiro percorre-me cintura abaixo.
Olhos semicerrados. Mãos tacteando o escuro. Tento dar alguns passos ao encontro da voz,
entretanto, uma agressiva tontura tortura-me.
Imobilizo-me.
O sangue ferve nas veias. A fome aniquila-me. Aqui sou a pessoa que menos come, mas
a que mais trabalha. Todos os dias, Faztudo leva-me às suas machambas. Põe-me a trabalhar
99
Fernando Absalão Chaúque
desde a manhã até o sol minguar. E ele, que faz? Senta-se na sombra mais fresca, enche o
cachimbo com tabaco, fuma. Quando disto se cansa liga o seu rádio e acompanha relatos de
futebol.
A mim proíbe o descanso. Não me quer flagrar de tronco recto. Devo sempre ter a enxada
em movimento, em sucessivas vénias ao chão. Quando me flagra a descansar amarra-me numa
árvore e tortura-me. Grita:
Estás a pagar a minha bicicleta, é isso que combinei com o teu pai. Não ouviste naquele
dia?
(Inferno!)
Eu estou pagando pelos erros do meu irmão. Talvez por ser mulher, um tapete no qual
qualquer um limpa os pés. É notável que no final, eu pagarei com a minha própria vida. Uma
menina de treze anos a trabalhar deste jeito? O que pode ganhar? A morte apenas.
(Inferno!)
Certa vez, quase degolava o velho Faztudo; tirava-lhe a vida. Tinha toda a vontade, mas
faltou-me a coragem. Que aconteceu nessa tal vez? Sei que estás curioso para saber o que levaria
uma miúda da minha idade a virar uma homicida. Voltarei a este ponto.
A voz continua a perturbar-me.
Tristeza, abre essa merda de porta!!!
O cheiro da terra engravida o olfacto, as árvores divorciam-se do sono, as ervas
ressuscitam hipnotizadas pelo sol, o orvalho dança embriagado pelo acorde dos répteis a cortar o
chão sonolento em busca da primeira colónia de raios. Os cães ladram, alegres.
Sim, já vai!, respondo.
Já sinto os pés. O formigueiro desapareceu.
Que aconteceu nessa ocasião? Não é isso que quer saber, caro leitor?
Numa madrugada como esta, Faztudo veio me acordar aqui nesta palhota. (E deve ser ele
que agora está à porta chamando por mim, digo isto com dúvidas, claro; pois tenho um defeito,
quando ainda estou cheia de sono não reconheço as pessoas pelas vozes, é um difícil exercício).
Faztudo acordou-me. Saímos. Percorremos uma longa distância, escoltados pelos seus
raivosos cães até chegarmos a uma das suas machambas. Ele sempre fazia esforço de eu e ele
Orvalho em Chamas
101
Fernando Absalão Chaúque
Depois de degolar o velho fugiria de volta à Eyupuro para reencontrar a minha família.
Prestes a executá-lo, lembrei-me que não fazia ideia alguma de onde me encontrava.
Estava presa em coordenadas que levavam ao norte de nenhum sítio. Se o matasse, depois
divagaria pelos matos até achar o portal da morte.
Faztudo sabe que o meu maior desejo é regressar à minha casa. Por isso, é sempre
cauteloso. Nunca se esquece de vendar-me a vista. Mesmo quando saímos de casa ainda a
escuridão a imperar amara-me um pano preto nos olhos.
Decidi cancelar o golpe, frustrada. Abaixei a catana.
Continuei a desbravar a mata.
(Inferno!)
Abro a porta.
Uma nuvem de fumaça nasce do cachimbo de Faztudo, embacia-me a visão, escancara-
me as narinas. Tusso. Os cães ladram. Uníssonos. O homem está mais nervoso que o seu mais
estimado cão. Uma chapada troveja na minha bochecha, afugente o sono que em mim ainda
abunda. Choro.
Porra pah, era preciso um século para abrir isto?
Orvalho em Chamas
Ajoelho-me, peço perdão. Faztudo continua a praguejar por alguns minutos. Depois
assobia, grita:
Mungoni!!!
Um boi adiposo e com chifres afiadíssimos muge e aproxima-se.
Faztudo assobia mais uma vez. Grita:
Khumane!!!
Um boi menos gordo que o primeiro aparece. Posiciona-se ao lado do outro.
O homem desvia o furioso olhar de mim para os bovinos. Acaricia-lhes as pontas dos
cornos. Pega o cachimbo com a mão esquerda, direcciona-o aos lábios de Mungoni. O boi puxa a
matéria gasosa, aloja-a nos pulmões, depois de minutos, liberta-a e leva o cachimbo à boca do
outro animal que também procede como o primeiro. Fuma. A escuridão ainda persiste, todavia, é
possível acompanhar a trajectória que esta cachoeira de fumo desenha. Khumane devolve o
cachimbo ao Faztudo.
Traga essa canga ai ao lado da palhota, Faztudo ordena-me.
Carrego a canga. Faztudo recebe-a. Posiciona-se em frente aos bois. Assobia mais uma
vez, grita como se desse ordem a um grupo de militares:
Aatençããão…sentidoooo!!!
Mungoni e khumane esticam os pescoços, juntam as patas, ficam em sentido. Esbugalho
os olhos, surpresa: estes bois além de reconhecer os seus nomes entendem a linguagem humana?
Faztudo eleva a canga, abre a primeira portinhola, Mungoni introduz a cabeça, deixando
os chifres atravessarem e o jugo posicionar-se no pescoço; após isso, abre a portinhola do outro
lado, khumane procede como o outro. Já com a canga posicionada nos pescoços dos bovinos,
Faztudo dá o comando:
Descansar!!!.
Conecta uma carroça na canga.
De que estás à espera, Tristeza?
Nada, tio, respondi cheia de medo.
Nada… nada… o quê?, põe a charrua na carroça.
103
Fernando Absalão Chaúque
Volto à palhota. Não consigo elevar a charrua. Além disso, meu estômago é um vácuo, o
chá que tomei na noite anterior evaporou antes do sono me convocar. Onde acharei tanta força
para carregar este instrumento?
Faztudo entra, nervoso, empurra-me, dou-me da cabeça à parede.
Não vês que estamos a demorar!?
Ele carrega a charrua. Coloca-a na carroça. Volta à palhota. Dá-me uma cortante chapada
e incontáveis pontapés. Arrasta-me para fora. Tira uma corda de um dos bolsos, junta as minhas
mãos, amara-as coladas pelos pulsos. Em seguida, amara a corda na carroça. Venda-me os olhos.
Sobe na carroça. Grita:
Atençãããããão… vamos!!
Mungoni e khumane iniciam a marcha. Eu sigo-os caudada na carroça. Atrás de mim,
vem o Martelo escoltando-me com nervos e raiva a guiarem-lhe os instintos.
Nos primeiros dias a venda perturbava-me. Mais tarde, obrigava-me a vasculhar o baú
das lembranças: em Eyupuro eu e Pedrito submersos em infantilidades, entretidos na líquida
inocência. Nas noites de lua cheia, quando tudo é iluminado pelos olhos da natureza, o sono
demorava a embalar-nos. Levantávamos. A mamã vendava-nos os olhos, deixava-nos entretidos
à cabra cega no quintal; só voltávamos ao quarto quando um de nós já cambaleava, sonolento.
Vamos avançando. Caminho, guiada pela corda. Faztudo está refastelado na carroça; e,
talvez contempla o sol a elevar-se. O odor do tabaco é quente como a invisível lareira que no
verão aquece o universo.
Presa no distante mundo que me é imposto pelo pano preto, a única coisa que me salva é
a minha fértil imaginação. Vejo coleópteros surgirem do invisível, incendeiam-se como olhos de
Hefesto sangrando chamas na sua oficina metalúrgica; vejo o tempo a ranger os dentes deitado
na sombra da enorme figueira onde os corvos roncavam antes de Pedro Paulo Pontes convocá-los
às orações nocturnas; a morte a afiar sua musculatura no cimo do silêncio; tubarões fugindo da
água para viver em crateras, tigres arrancando as garras em busca da redenção das presas, peixes
sonhando asas em vez de barbatanas e eu pensando em Eyupuro em vez de tudo que se pode
pensar.
Orvalho em Chamas
Nervoso, Faztudo explica-me que há quatro séculos esfumados, num final de ano, numa
tarde em brasas, ele ainda no pórtico da adolescência, viu um homem magro, baixo, calvo, a
entrar na sua residência. A mãe, olhou-o, desabou em infinitas lágrimas, congelou-se. Faztudo e
os irmãos mais novos acorreram a consolá-la mesmo desconhecendo a razão daquela aflição.
O homem foi directamente ao interior da casa. Nada falou. Apenas exibiu-lhes um longo
sorriso, sentou-se à mesa. Faztudo e os irmãos foram saudá-lo enquanto a mãe mergulhava-se
num demorado banho. Quando ela saiu, adornou-se com a mais nobre roupa que tinha. Os irmãos
do Faztudo admiravam aquele homem que se limitava a falar só com o sorriso.
A cara do homem não era estranha para o Faztudo, lembrava-lhe alguém que um dia vira
algures nas fotografias que a mãe reservava na mala de madeira.
A curiosidade dominava a todos, mas nenhum dos miúdos se atreveu a direccionar além
da saudação àquele homem. A mãe os ensinara a não se aproximar tanto a estranhos. Ora,
naquele instante a única coisa estranha era a intrínseca conexão que sentiam com o suposto
visitante.
Depois de se ter aprumado, a mãe de Faztudo sentou-se à mesa, secou as lágrimas,
revelou aos filhos que aquele homem era com quem os gerara, era o fundador daquele lar. Eles
105
Fernando Absalão Chaúque
não a deixaram terminar a explicação. Levantaram-se e abraçaram o pai, jubilosos. Para eles,
principalmente para Faztudo, iniciava-se o fim das humilhações. Não era raro que nas
brincadeiras com outros miúdos alguém lhe esfregasse o facto de supostamente serem órfãos de
pai.
Há anos que o pai de Faztudo desaparecera. Não despedira a ninguém, recolhera a sua
sombra e esfumara-se. Faztudo ainda não completara cinco anos, a mãe ainda estava grávida
destes dois irmãozinhos gémeos. Durante quase uma década o pai de Faztudo exilara-se nas
minas das terras alheias. Assim, regressara porque a sua missão de aleijar o subsolo em busca de
ouro findara.
Enquanto ele tentava trazer à tona mais detalhes sobre o seu regresso, ouviu-se no quintal
sucessivas buzinas. Os meninos gémeos seguidos por Faztudo foram os primeiros a sair ao
encontro das buzinadelas. A mãe de Faztudo e o seu recém-regressado esposo aproveitaram a
saída dos filhos para trocarem carrinhos labiais e elogiarem-se o quão cada um ficara mais jovem
que antes.
As buzinas nasciam de um Mercedez-benz Sprinter, que no topo do vidro frontal exibia:
‘’siyaya emakhaya’’ ou seja, nós vamos para casa. O ajudante do motorista desceu da cabine; o
motorista chamou-o pelo nome, levantou a mão esquerda, apontou o relógio no pulso com o
indicador direito e gritou ‘’time is money, my friend’’.
O ajudante subiu na bagageira do Sprinter. Começou a descarregar os pertences do pai do
Faztudo. Dentre muita coisa embrulhada em volumosos plásticos e caixas era possível ver um
rádio com duas entradas de cacete, um gerador, dois painéis solares, duas baterias, uma
motosserra, um amplificador e duas colunas. A última coisa a ser descarregada foi a que mais
marcou a vida do Faztudo e por causa da qual vejo-me hoje enterrado neste sofrimento. Já sabe o
que é, caro leitor. Não sabe?
A maldita bicicleta bmx.
A partir desse dia, ela virou a melhor companheira do Faztudo. É por isso que doem-lhe
até os alicerces da alma quando dela se lembra.
Tristeza, sabes o que era aquela bicicleta?
Não, não faço ideia, tio…
Aquela bicicleta era uma das únicas lembranças que guardava do meu pai. E o filho da
puta do seu irmão roubou-ma.
Orvalho em Chamas
Mungoni e khumane mexem-se espantando mosquitos que neles pousam. Faztudo liberta-
os da canga, desconecta a carroça e dela retira a charrua.
Coloca a charrua em posição…é hora de transpirar.
Faztudo guia os bois a uma mata, deixa-os lá a saborear o capim. Estranho. Primeiro, eu
vim caminhando e ele refastelado na carroça. E agora, coloca a charrua nas minhas mãos e deixa
os bois relaxados?
Inferno.
Merda, pega a charrua aí, não ouviste!!, insurge-se ao ver-me distraída, perdida em
tempestuosas cogitações.
Posiciono-me à frente da charrua, mãos esticadas para trás; pego as quatro cordas, duas
em cada mão. Faztudo posiciona-se na outra extremidade do arado:
Tristeza, puxa!
Sigo as ordens.
Durante horas, puxo a charrua e ele pressiona-a ao umbigo do chão de modo a cortar o
capim, rasgar e revolver a terra. Meu corpo continua a tremelicar de fome, mas nada posso fazer
além de me esforçar até onde for possível.
107
Fernando Absalão Chaúque
antepassados são guiados por deus e eles guiam deus a nós’’, e tudo em mim resume-se em uma
palavra: confusão.
Antigamente, sempre que o meu pai enaltecia o porco, o nosso vizinho, Mafemane e a
sua esposa Laurinda insurgiam-se. Para eles, porco era abrigo de demónios. Todos demónios.
Sendo assim ninguém o devia comer.
O casal discutia com o meu pai até desaguarem em fadigas.
Termino de comer.
Faztudo coloca de volta a canga aos pescoços dos bois, conecta a carroça já com a
charrua jazendo no seu dorso. Ele ainda continua com um sorriso na face. Aproveito o momento
para perguntar-lhe:
Por que mima tanto os bois, tio?
Os bois viram-se a mim, mugem em simultâneo. Faztudo liberta uma abaulada
gargalhada. E responde:
Estes bois são tão especiais que tu nem imaginas.
Eu gostaria de saber, Tio Faztudo, implorei.
São mais especiais que aquela bicicleta…
É verdade isso?
Já viste que estes bois percebem a nossa língua e sabem partilhar cigarros?
É isso que tanto me espanta, tio.
Faztudo posiciona-se em frente aos bois. Apaga o cachimbo, coça-se a barba. Pergunta-
me:
Queres mesmo saber…?
Sim, quero!!
Os bois mugem de novo.
Estes bois não são bois, disse ele, deixando-me mais curiosa e canfusa que antes.
O que são?
São pessoas!
Que pessoas, senhor Faztudo?
Não vês?
109
Fernando Absalão Chaúque
Ele vira-se, afronta os bois deixando-me do seu lado esquerdo. Indica o boi mais gordo.
Este boi chama-se Mungoni Faztudo, o meu pai.
Indicou o outro. Disse:
E esta vaca chama-se Khumane Zuwa, a minha mãe.
Nada estou a perceber, senhor
É o que estou dizendo, Tristeza. Esses bois são os meus pais.
Seus Pais?
Sim. Meus pais transformados em bois.
A minha curiosidade triplica-se.
Quando Faztudo narrava o episódio em torno do primeiro dia que viu a bicicleta bmx não
mencionou os nomes dos seus progenitores. Apenas descreveu o que aconteceu. E agora diz-me
que estes bois são os seus pais. Como assim? Considerando a sua proposição; surgia-me uma
indomável questão:
Como é que eles se transformaram em bois?
É uma longa história!
Quando o pai do Faztudo regressou com a bicicleta não podia mais voltar para as terras
alheias e continuar a trabalhar nas minas. Por isso, com o dinheiro da pensão ele e a esposa
decidiram abrir um talho e comercializar carne. Certo dia, eles compraram um boi num jovem
que o havia roubado numa localidade distante. Mataram-no e venderam toda carne. Depois de
uma semana os dois morreram. No dia do enterro, quando se estava quase a depositá-los nas
covas, dos caixões ouviu-se incessantes mugidos. Quando o pastor abriu os ataúdes percebeu-se
que o casal se havia transformado em dois vitelos. Os anciões procuraram um curandeiro para
interpretar o que havia acontecido. Ele revelou que o boi que os pais do Faztudo haviam
comprado tinha sido roubado. E o seu legítimo dono havia colocado um feitiço neles para que
qualquer um além dele que por acaso o matasse se transformasse em boi. Os anciões e o
curandeiro fizeram tudo que podiam, mas não conseguiram reverter o feitiço. A única alternativa
que o Faztudo teve foi criar aqueles bois. Já se passavam muitos anos. Os bois cruzavam-se mas
nunca se reproduziam.
É isso que me faz gostar tanto destes bois… eles são os meus pais. Eu sou um filho de
bois.
Orvalho em Chamas
Regressamos a casa. Faztudo continua estranho. Está com um sorriso na face. Trata-me
sem desdém. Hoje não berra para mim. Deixa-me passear pelo pátio. Diferente doutras vezes que
ao regressarmos do campo de cultivo mandava-me ficar na palhota. A dona Tempestade aquece
água para o meu banho. O Santos oferece-me novas roupas. Depois do banho dão-me um
condigno jantar. Fico feliz. Há muito que ninguém me tratava com carinho.
Anoitece. Vou à palhota. Deito-me na cama. Sem imaginar que pela primeira vez o
Faztudo preparava-se para vir me violentar.
Caro leitor, não voltarei a contar como foi o primeiro estupro. Já narrei isso lá atrás.
Lembro-lhe apenas que, naquele dia, o meu brado era fulminante.
111
Fernando Absalão Chaúque
(Nietzsche)
113
Fernando Absalão Chaúque
115
Fernando Absalão Chaúque
Não quero. Eu aceito-me assim como sou. Acredito-me. Você já viu um branco que quer
ser negro?
A escola é boa, talvez teria te ensinado a controlar esses teus nervos aí, a parteira
interfere.
O meu pai salienta que é por essa razão que desistiu da escola. Porque ela é uma
lavandaria de mentes, lá transforma-se pessoa em animal, ensinam-lhe apenas a seguir ordens,
calado, só porque estão escritas num papel e cobertas por um carimbo qualquer. Na escola, só se
equipa o homem para ter um emprego e continuar cego. A escola é uma forma de colonização.
Não quero isso. Nem para o meu filho.
Sabias que é a escola que criou esta maternidade onde o seu filho nasceu?
Parem de me questionar merdas, quero o meu filho já...!!
Vejo que não há diferença entre você e a sua mãe Tempestade, comentou a enfermeira.
Tristeza, não me faça falar muito ou ainda venho aí e te baptizo com umas boas
chapadas.
No berço, comecei a chorar. O meu pai virou-se aonde eu estava. Fascinado?
Um súbito e sincero sorriso nasceu-lhe.
(Sincero sorriso?
Talvez.
Talvez.)
Fascinado, sim! Já nem parecia o que há pouco tempo estivera aos berros vomitando
ameaças para a minha mãe. Deslocou as mãos da cintura à cabeça, feliz.
É o nosso filho esse que está a chorar?, ele perguntou a minha mãe.
Sim, ela monossilabeou.
Posso ver o meu...
Não. Estamos para observá-lo agora, até amanhã, respondeu a parteira colocando as
luvas.
Era o que a minha mãe pedira à parteira: não deixar o meu pai me ver. Assim, evitava-se
mais um megalómano barulho na maternidade. Ou ainda, uma reacção trágica. Mais agreste que
a da Marta Tempestade.
Deixem-me espreitar um pouco aí no berço.
Infelizmente, não será possível, respondeu a parteira.
Orvalho em Chamas
O meu pai sentou-se no banco, mas manteve o olhar fixo ao berço por longos minutos.
Nada mais falou. Não estava ele já domado? Colonizado pela emoção de ser pai à primeira?
Quando poderão sair daqui?
Amanhã, às 10 horas da manhã pode vir buscar a sua esposa, senhor Santos Faztudo, a
enfermeira respondeu; elevou a mão direita na direcção da porta, sinalizando que o meu pai
devia se retirar. Incrivelmente, o meu pai não mais refutou. Levantou-se. Caminhou em direcção
à entrada. De vagar.
Neste curto trajecto ainda manteve seus olhos presos ao berço até voltar a
se curvar como um arco (prestes a impulsionar uma flecha).
117
Fernando Absalão Chaúque
Meu Companheiro
Carlos Cardoso
Caríssimo colega, escrevo-lhe com as mãos cheias de febre. As letras saem-me trémulas e
ziguezagueadas como se um morcego em alto voo as ditasse aos meus dedos. Mas, acredito que,
tudo que vou aqui gatafunhar será legível aos seus olhos.
Ilustre, a cidade está em chamas. Cada avenida é uma crescente lava devorando tudo em
seu redor como um hipopótamo que se engole inteiro para o seu próprio estômago. Não sei se
estou descrevendo bem o mood em que a cidade hoje se encontra. Deixe-me esquecer as figuras
estilísticas e ir aos detalhes. Não é melhor assim?
Tudo começou quando uma multidão de quase trezentos cidadãos reuniu-se na Avenida
das Palmeiras, na baixa da cidade. Este grupo estava munido de panfletos borrados a letras
garrafais. De imediato, deleguei um colega nosso para ir àquela avenida colher informação; está
claro, normalmente, a notícia nunca vai ao encontro do repórter; lá, o colega apurou que aquela
multidão estava em marcha contestando a violação dos direitos humanos no país. Em particular,
revogava as barbaridades perpetuadas contra albinos e entoava hinos contra qualquer forma de
estigmatização social.
O grupo era composto por membros e representantes da associação de pessoas com
albinismo, várias ONGs, sociedade civil e liga dos direitos humanos. Na dianteira, via-se em
média cinquenta albinos empunhando enormes panfletos que ostentavam as seguintes frases:
"Todos somos pela Eyupuro."
"Juntos contra o tráfico de pessoas com albinismo."
“Albino não é fonte de riqueza."
"Diga não à violência e estigmatização de albinos na localidade de Eyupuro e em todo o
mundo."
"Exigimos a responsabilização dos criminosos."
"Parem de nos sequestrar."
"Somos todos iguais."
Orvalho em Chamas
119
Fernando Absalão Chaúque
Mudando de assunto: recebi as cartas, partilhei todas com o nosso elenco apesar de não
ter respondido a todas. A que refere que estás prestes a descortinar o problema deixou-nos
jubilosos. Avante, ilustre. Não pára! Estamos ansiosos para saber as causas e os mandantes do
tráfico de albinos aí em Eyupuro. Estamos confiantes de que em breve terás o trabalho concluído
e o nosso jornal será o primeiro a publicar uma reportagem concisa em torno desse fenómeno
sangrento.
Confesso, estou com inveja de ti, meu caro, queria ter sido eu a ouvir esse grupo coral a
entoar “Orvalho em Chamas” ou a ouvir a Khefassi explicando o surgimento desta canção e a
falar do tal Umbigo da Terra. Na verdade, acho que esta missão está a ser mais que divertida para
ti.
Abraços
Orvalho em Chamas
121
Fernando Absalão Chaúque
É noite soturna.
Estou perdida numa insolúvel insónia. A minha consciência não me deixa adormecer.
Desde que o velho Faztudo começou a me violentar raramente durmo. Ou melhor, nos últimos
dias, as minhas noites correm abastadas de sono que nunca é dormido; durmo apenas de olhos
arregalados. Às vezes embarco num súbito cochilo, superficial, como os mochos do pastor Pedro
Paulo Pontes suspensos na fedorenta figueira de Eyupuro. Sentada na cama, escuto o meu
coração ribombar à espera do Faztudo entrar e mais uma vez fazer de mim o seu objecto sexual.
Enquanto ele não chega rezo pedindo que a próxima seja a derradeira vez.
Estou farta desta vida!
Sinto-me suja. Apetece-me tomar um longo banho. Mas é um desejo que não poderei
satisfazer. A velha Tempestade só me deixa banhar apenas uma vez por dia. Do jeito que agora
desdenho o meu corpo fá-lo-ia mais de cinco vezes. Se possível transformar-me-ia em peixe para
definitivamente viver debaixo das águas. Porém, tenho de enfrentar esta dura realidade. Sou um
pedaço de lixo. Uma escrava sexual de um homem que em mim devia naturalmente ver a sua
neta.
Sacana do velho!
Da minha mente vão-se apagando os poucos e bons momentos que já vivi. Mas, nunca
me esquecerei dos meus colegas e amigos com quem sempre ia a escola. Nunca me esquecerei
do meu sonho de ser jornalista. Os meus colegas também sentem saudades de mim. Sem dúvidas,
eles já foram várias vezes a minha casa perguntar por mim. O meu pai deve tê-los enxotado logo
que os viu: voltem às vossas casas. Não pisem mais aqui. Acredito que a ninguém ele terá dito
que me entregou ao Faztudo. Se calhar informou a todos que estou algures em casa de familiares.
Enquanto estou em Ohawa, um lugar que antes era uma incógnita para mim. Quero voltar para
Eyupuro, pese embora não sei que direcção tomaria mesmo se Faztudo agora me libertasse.
***
É noite.
123
Fernando Absalão Chaúque
Martelo ladra, talvez para assustar as vagantes sombras nocturnas ou simplesmente para
marcar o seu território ou comunicar-se com outros cães. Distante, ouve-se cânticos de pavões
tentando encantar o coração da noite. Nas redondezas da palhota, o vento assobia serenamente
lambendo os ramos das árvores.
De repente, algo pousa no teto da casota, desloca-se rapidamente, provoca um estranho
ruído. O meu cabelo levanta-se, treme.
Que horror!
Todos os cães apavoram-se. Ladram, arranham as paredes. Tentam escalar a casa para
abocanhar a suposta coisa que dança no telhado. Não tenho como a ver. Não posso sair. Se quer
tentarei. O Martelo ladra mais alto que todos, rodeia a palhota, mas sem demoras volta à porta.
Levanto-me da cama. Contemplo a cobertura como se os meus olhos pudessem ver o que do
outro lado se locomove. Acendo a lamparina. Pelo menos, se essa tal coisa perfurar a cobertura
matar-me-á depois de a ter visto. Ou então, poderá espantar-se diante da luz e desaparecer.
Os cães não cessam a azáfama. A tal coisa posiciona-se no meio da palhota; depois de
alguns minutos grita três vezes consecutivas. Só agora percebo que é um mocho. Deve ser um
enorme mocho para criar tanto ruído na cobertura e gritar tão estrondosamente.
Saia daqui! Desapareça!
Os cães ladram mais tenebrosos que antes.
Estou deveras assustada. Asseguro a lamparina, elevo-a ao teto, sem nenhum
fundamento. O desespero guia-me as acções.
Desapareça daqui!
O mocho volta a gritar três vezes consecutivas.
A paz, por favor! Que os espíritos me livrem de ti.
O mocho pára de gritar. Começa a dançar na cobertura da palhota.
Aliás, que Deus me livre!, rectifico.
Dualizo as minhas preces. Vivo numa eterna confusão. Não sei se venero somente aos
espíritos dos meus antepassados ou a Deus. Não tenho a certeza de qual dos dois é realmente o
escudeiro dos humanos. E, apesar de ter crescido a ouvir que estes são entidades diversas,
distantes, quando estou em apuros, como agora, invoco os dois. O que me ouvir primeiro ajudar-
me-á. Não há nenhum comboio que ande somente num único carril. Não há nenhum carro que se
mova somente com uma roda. Quem sou eu para confiar em apenas uma divindade?
Orvalho em Chamas
125
Fernando Absalão Chaúque
As duas mãos vão subindo, subindo. Parqueiam-se nas minhas coxas, tacteiam-nas em
sucessivas espirais. Sobem até à minha cintura. Primeiro tiram-me a saia, depois a roupinha
interior. Apalpam-me as diminutas nádegas. Apalpam-nas silenciosamente como se testassem a
madureza de uma papaia. Isso arrepia-me o corpo todo. Cria-me um imenso desconforto.
Filho estás a sentir isso?
É a voz do Faztudo que arremessa esta pergunta. Que questão é essa? Talvez o velho
fumou muito que já não consegue distinguir os géneros. Corrijo-o:
Filha, não filho. Sou uma menina, tio, você sabe!
Fecha a boca, Tristeza, não estou a falar consigo, Faztudo ralha.
Segue-se um curto silêncio que é em seguida enforcado por uma outra voz.
Sim, pai. Estou a sentir, até as minhas calças já estão a se encher, parece que tenho uma
cobra a deslizar aqui no meio, acho que o meu cinto vai-se arrebentar, pai.
(Inferno!)
É a voz do Santos.
Misericórdia!
O que é que os dois estão aqui fazendo? Impossível, eu devo estar alucinando.
Não se preocupa, minha filho…
Uma outra voz? Sim!
Que absurdo! Há uma terceira voz aqui. Sabe de quem é? É da Marta Tempestade. Hoje
os três interromperam o sono para virem a minha palhota? O que querem fazer comigo?
Meu deus! Meus espíritos! Ajudem-me!
Uma das mãos ausenta-se, pára de apalpar-me.
Filho, continua sozinho, agora faz o que eu te expliquei ontem, diz Faztudo.
Fazer bem aí, complementa a Tempestade!
O Santos nada diz. Percebo que agora ele é o único que continua a apalpar-me as
nádegas. Choro. Nenhum dos três se importa com isso. Ele espanca-me as nádegas como se me
punisse. Vem-me a imagem da minha mãe batendo-me com chinelo sempre que fazia algo
errado. Santos rasga-me a blusa. A imagem da minha mãe desaparece da minha consciência. A
mente desnorteia-se sempre que estamos em apuros.
Pára! Pára! Não!
Fecha a boca!, ordena o Santos com a sua monstruosa voz.
Orvalho em Chamas
127
Fernando Absalão Chaúque
Levanto-me. Fico em pé diante dos três. Afronto-lhes. Não me reconheço. Nunca fizera
isso antes. A raiva domina-me. Guia-me os neurónios. Repito que preciso voltar a minha casa. E
como não me lembro do caminho exijo que eles me acompanhem de volta.
Tristeza, não queira piorar os coisas, filha, adverte-me a Marta Tempestade.
O Santos enerva-se. Vejo as veias desenharem-se da sua face ao pescoço. O seu falo
movimenta-se seguindo a pulsação do coração. Faztudo começa a transpirar. Devolve a
lamparina à Tempestade. Vem até à cama, pára numa das extremidades. Arregala os olhos ao
filho.
Subitamente, Santos arremessa-me uma chapada que em mim soa como um trovão a
rasgar a atmosfera. Caio na cama. Embriagada de tonturas.
Porra, agora terás o que sempre mereceste, Santos declara.
Eu te avisaste muito bem, grita a Tempestade enquanto aproxima-se para ver tudo de
perto.
Filho, faça daquele maneira que nós te disse, recomenda a Tempestade.
Tudo gira em meu redor. A minha visão está embaciada: os dois homens são sombras
esbranquiçadas.
O Santos sobe-me. Tenta introduzir o seu falo em mim. Insiste. Insiste seguindo as
orientações dos pais. Insiste inúmeras vezes. Mas não consegue.
Faztudo despe-se. Diz ao filho para sair de cima de mim. Ele sobe-me. E sem fazer tanto
esforço sinto o seu músculo adentrar-se-me. Dói-me ser mais uma vez estuprada. Porém, arrisco
e digo que já estou acostumada ao velho. Apesar de que nada é agradável quando feito por
obrigação.
Veja filho, veja como a tua pai está a fazer… tens de fazer assim também.
As tonturas triplicam-se. Nada mais consigo fazer além de manter-me deitado na cama.
Não me restam forças se quer para piscar os olhos. Estou morrendo. Sem demoras, o velho sai de
cima de mim.
É a vez do Santos.
Meu deus! Meus espíritos! Ajudem-me! Salvem-me disto!
O Santos sobe-me mais uma vez. O seu falo ainda se recusa a introduz-se em mim. É
enormíssimo. Mas ele insiste. Sem nenhum pingo de pena. Por fim, meu Deus!, o seu músculo
introduz-se. Que horror! Sinto meus lábios (menores e grandes) rasgarem-se. Choro, enquanto o
Orvalho em Chamas
Santos vai me violentando como se eu fosse uma pedra. Sinto dores que nunca antes sentira. O
meu mundo vai ruindo. Faztudo e Tempestade batem palmas para o filho.
É isso, mesmo, Santos. Marta, o nosso filho já é um homem verdadeiro.
Avança minha filho, mexe assim mesmo. A tua casamento já está abençoada, minha
filho… esse é a tua esposo que a tua pai lobolou para ti.
Sinto muito sangue a jorrar de dentro de mim. Acho que a morte já se aproxima para me
levar. Nada me pode salvar. Nem as minhas duais orações tem poder agora. Nenhuma das
minhas divindades se pronuncia. Devem estar muito ocupadas ou já não querem saber nada de
mim.
Sangro. Sangro. Sangro. Mas o Santos não pára. Está feliz porque hoje é o dia em que ele
transforma-se em homem. Um indivíduo com mais de trinta anos é só hoje que será um
verdadeiro homem? Não. Acho que não. A única coisa que ele será a partir de hoje é um
monstro.
A Tempestade assiste-me a ser massacrada. Que Triste! Ela não percebe que Santos e
Faztudo não estão violentando somente a mim. Agridem a toda humanidade. Estupram a todas as
mulheres do mundo. Não sou a única que agora sangra. Em mim sangram todas as mulheres do
mundo.
O Santos atinge o primeiro orgasmo depois de quase meia hora. Mas não pára. Continua
a me violentar. Quando ele atinge o segundo. Já não existo. Estou com o corpo todo frio.
Desalmada. Sinto que derreto-me e evaporo como um orvalho em chamas.
Terá sido esta a tragédia que aquele mocho viera prenunciar?
129
Fernando Absalão Chaúque
Orvalho em Chamas
NAPWERE – UNHAGO
131
Fernando Absalão Chaúque
133
Fernando Absalão Chaúque
135
Fernando Absalão Chaúque
Os rapazes são levados ao mato? Por quê? Questiona a enfermeira. A minha mãe
continua a explicar.
‘’Sim, os meninos são levados a uma cabana preparada só para o Unhago numa mata.
Eles devem estar distantes das suas casas (no mínimo a um quilometro). Perto desta cabana não é
permitido o contacto com mulheres. Se alguma entrar na área protegida é castigada. O caminho
que vai dar à cabana só pode ser percorrido por homens circuncidados. Se uma criança que não
esteja no grupo das iniciadas for encontrada nesse caminho pode ser circuncidada à força.’’
E o que comem lá? A parteira questiona em jeito de provocação.
‘’Os familiares de cada menino levam a comida para lá. Mas eles não chagam na cabana.
Encontram-se com o Inkaliba, o dito rei, que é o homem responsável pela circuncisão e iniciação
dos meninos; encontram-se com ele num ponto pré-definido onde ao chegar chamam-no com um
sino. Na cabana, os rapazes aprendem regras de convivência e sobrevivência. Aprendem a ser
machos e a desempenharem correctamente os seus papéis sociais. Durante o Unhago, cada
família deve hastear bandeiras em casa indicando o número dos filhos que estão a ser iniciados.
As bandeiras nos telhados e árvores junto às residências servem também para convidar vizinhos
a preparar produtos para a festa de recepção dos iniciados. Ora, durante o ritual há também uma
bandeira no acampamento para simbolizar que os meninos estão bem de saúde.’’
Eu não percebi, aonde são levadas as raparigas? Questionou a enfermeira. A minha
mãe suspira. E depois responde.
‘’Eu disse que as raparigas são fechadas numa casa durante trinta dias com a Inkaga, a
mulher responsável pela iniciação feminina, considerada a rainha por esta ocasião. Nessa casa,
elas aprendem a ser adultas. Recebem instruções de como cuidar do lar, obedecer e satisfazer
sexualmente o marido.’’
E para o tal Unhago como são seleccionadas as raparigas ou os rapazes? A parteira
pergunta.
‘’A condição mínima é ter dez anos de idade e o consentimento dos pais. Ademais, neste
rito as raparigas são ensinadas o que é menstruação, como cuidar de sua própria saúde, como se
comportar na sociedade, como se vestir em ocasiões diferentes. Durante o Unhago a Inkaga deve
sempre procurar saber dos sonhos da rapariga: acredita-se que sonhar com um boi é sinal de
vida, enquanto sonhar com um leopardo ou mocho pode ser sinal de morte ou desgraça
iminente.’’
Orvalho em Chamas
Paro de chupar. A minha mãe interrompe o discurso para devolver o seio ao devido lugar.
Como você sabe disso tudo, Tristeza? A enfermeira pergunta.
137
Fernando Absalão Chaúque
A minha mãe responde que são as práticas da sua terra natal e os velhos sempre contam
aos mais novos como forma de prepará-los para quando chegar-lhes a vez não se assustarem. É
também uma forma de preservar a cultura, boca a boca. Acrescenta que há comunidades que
usam nomes diferentes. Dizem que Unhago é apenas o rito dos rapazes e o rito das raparigas é
chamado de Rondo.
Além de aprender as regras de convívio social e como cuidar do marido, o que mais as
raparigas aprendem?, a parteira pergunta.
Chega, já não posso revelar as outras coisas.
Estamos a pedir, Tristeza...conta mais um pouco.
Não posso. É por isso que eu vos disse, eu já não sou criança... basta passar pelo rito de
iniciação você já é uma pessoa crescida. Não importa a sua idade.
Com que idade você foi submetida à iniciação?, a enfermeira pergunta.
Com 10 anos, mana.
E qual foi o ensinamento inesquecível que tiveste?, Pergunta a parteira.
A minha mãe pensa por instantes e depois responde:
O teu marido é o teu deus, nunca deves desobedecê-lo.
Só isso?
... marido que não te maltrata não te ama. Mulher amada é a que lava porrada.
A enfermeira e a parteira voltam a trocar olhares, arrepiadas.
É por isso que não queres denunciar o Santos?
A minha mãe nada responde. Apenas arregala os olhos.
Você gosta da vida que leva em casa do Santos?
A minha mãe continua mergulhada num profundo silêncio. Fora de si. Cara entristecida.
Já nem parece quem esteve a falar dos ritos com todo entusiasmo. Depois de uns minutos de
meditação ela reagiu.
O que eu quero é voltar a casa dos meus pais...
Mas primeiro deves denunciar o Santos que anda a te violentar... ele tem que ser
condenado por abuso de menores. Não interessa se passaste do Unhago ou Rondo, tu ainda és
uma criança... nem tens 15 anos e já tens um bebé de um senhor de 38 anos!
A parteira acrescenta que se fosse possível o Faztudo seria reavido da morte para pagar
pelos seus crimes.
Orvalho em Chamas
A minha mãe está confusa. Não sabe que caminho tomar. Está angustiada. Na verdade
está cansada do inferno que lhe é proporcionado pela Tempestade e pelo Santos. Mas o mentor
de toda tragédia foi o maldito do velho Faztudo.
***
São altas horas. A claridade já se vai esfumando. O sol começa a gatinhar aos seus
aposentos. O calor esfria-se; o que agora resta é o bafo quente que as paredes transpiram.
Nenhuma voz se ouve lá fora, os visitantes já se foram às suas vidas.
A parteira e a enfermeira despedem-se da minha mãe. Mas não por definitivo. Informam
que vão preparar algo para comer, pois ainda lhes faltam vinte e quatro horas de plantão. A
parteira tira uma esferográfica da bata, rabisca algo num papelinho. Diz que são os números de
celular das duas. A enfermeira aproxima-se para conferir o seu número e entrega o pedaço de
papel à minha mãe. Diz:
Eu sou a Enfermeira Luísa e ela é a parteira Madalena. Se precisares de ajuda quando
voltares para casa é só arranjar maneira de nos ligar. Nós queremos te ajudar a fazer justiça. O
Santos tem que ser condenado.
A minha mãe recebe o papelinho. Conserva-o. Nada diz. A Madalena retira-se. A Luísa
leva-me de volta ao berço. Pega-me com todos cuidados. Sorri para mim como se não sentisse
nojo de um napwere. Enquanto me coloca no berço sinto que ela me insulta. Chama-me pelos
mais nojentos nomes que conhece. Ela retira-se do berçário.
A minha mãe deita-se no beliche, fecha os olhos. E vem-lhe à memória a tarde em que
Faztudo morreu.
139
Fernando Absalão Chaúque
141
Fernando Absalão Chaúque
143
Fernando Absalão Chaúque
Ela tira o lenço da cabeça, expõe o seu cabelo amarelo. Limpa o sangue e depois diz:
"É por causa do verão. Não se assuste!"
"Verão?", arregalo os olhos, surpreso. "O que tem o verão?’’
Ela dobra o lenço até ser um minúsculo rectângulo a esconder a mancha vermelha
arquitectada pelo sangue absorvido. Em seguida, detalha que os albinos são alérgicos à luz forte
do sol. Por falta de pigmento de defesa na pele sofrem mais no tempo de verão e menos no
tempo chuvoso devido à sombra das nuvens e à frescura da chuva. No verão racham-se-lhes a
pele inclusive, os lábios por causa da forte radiação solar. Na verdade, o albino não gosta do sol,
é seu inimigo. Num dia de muito sol o albino não enxerga devidamente, por isso recomenda-se o
uso de óculos escuros.
Meu caro editor, depois disto, eu disse a velha que ia-me embora. Pois terminara o meu
tempinho de visita ao centro, além disso, a Khefassi abandonara-me sem dar nenhuma palpável
explicação.
"Tenho pistas de onde ela foi", disse a velha.
Coço-me a barba, surpreso. E ela diz:
"Ela acompanhou a Luisa e a Madalena ao hospital".
"Estão doentes?", pergunto.
Não. A mulher responde. Nenhuma delas está doente. Antes da saída, a velha ouviu a
Laura no corredor ao celular conversando com alguém sobre uma mulher que estava para dar à
luz na maternidade de Ohawa. Em seguida, a Khefassi saiu do bloco administrativo, as três
embarcaram na ambulância e desapareceram.
"Terão ido ao tal hospital?"
"Não sei, mas acho que sim. Há dias eu ouvi a Khefassi no refeitório a dizer a Luisa e a
Madalena que estava a procura de um bebé."
"Deve ser um bebé desaparecido."
"Talvez. Mas falou de um bebé recém-nascido, um napwerinho."
"Onde fica esse tal hospital", perguntei.
"Muito longe daqui, nem pense em ir para lá. Esqueça essa hipótese."
Orvalho em Chamas
"Eu sou Laurinda Mafemane.", diz ela. E acrescenta que é famosa nesta localidade por
ser a única mulher que engravidou do marido já morto.
‘’Prazer em te conhecer", respondo estendendo-lhe a mão. Ignoro o resto do que ela
disse.
"Por favor, não te esqueças do meu nome quando chegar a hora de redigir o relatório
desta sua missão."
Fiquei congelado. A que missão ela se referia?
"Eu sou apenas um turista curioso... não estou em missão nenhuma."
Ela ri-se de mim. Levanta-se.
"Eu sei que és um jornalista. Já li alguns textos seus em jornais e já te ouvi nas rádios.
Agora, sei que estás aqui para investigar esse caso referente ao tráfico de nós os albinos. Por isso
que te contei tudo que sei."
Quando ela disse isto fiquei aturdido. Se quer para confirmar ou refutar a sua proposição.
Olhei ao chão. E ela continuou.
"Eu tenho problemas de vista, mas consegui ver esse gravador a piscar aí no teu bolso."
Finalmente, ganhei coragem. Afrontei a mulher.
"Se já sabia quem eu sou porque não me desmascarou logo que vim ao banco te saudar?"
"Não queria te assustar. Ora, já te dei todas as pistas. Agora vou ao meu quarto descansar.
Mas olha, nunca revele a ninguém que te contei essas coisas."
Prometi que nunca diria nada a ninguém sobre ela e as bombásticas revelações.
"Agora, vá finalizar a sua missão...’’
Levantei-me do banco. Quando estava prestes a iniciar a marcha a velha disse-me:
"E mais, Mbalame e Khefassi têm uma filha. Não têm só aquele miúdo chamado..."
"Peter?", aludi o nome.
"Peter? Aquele não é Peter... é Pedrito, eu vi-lhe nascer aqui em Eyupuro."
145
Fernando Absalão Chaúque
147
Fernando Absalão Chaúque
Um bojudo silêncio paira lá fora. Desde que aqui cheguei nunca tive sorte de escutar tão
intensa ausência de sonoridades. Claro, no ventre da noite nunca se espera azáfamas. Porém, a
absoluta calmaria que aqui hoje se estende é misteriosa. O que me assusta é o facto de nem ouvir
os cães a latir. Mesmo o Martelo não se pronuncia. O que se passa?
Depois dos dois malvados homens me terem sabotado as entranhas fiquei inconsciente,
inanimada durante uma semana.
Estavam quase para enterrar você, disse Tempestade quando de súbito abri os olhos,
ressuscitada.
Ela foi a única que se manteve esperançosa de que eu reaveria os sentidos. O Santos e o
Faztudo várias vezes foram ao cemitério familiar, abriram covas para me enterrar. Mas quando
regressavam ela mentia-lhes:
Ela já voltou, a coração está a bater.
Os homens desmentiam-na. E ela replicava:
Se quiserem acreditar entrem aqui na palhota.
Os dois infiltravam-se na casota, examinavam-me a temperatura corporal e concluíam:
Morreu esta… o corpo está frio como gelo.
A corpo dela estar fria mas a coração ainda está a bater, replicava a velha.
Em seguida, os homens tentavam escutar-me os batimentos do coração e insurgiam-se:
Mentira, nós não ouvimos nenhum batimento. O corpo dela está todo pálido.
Para livrar-se deles, ela fundamentava que o meu coração pulsava tão silencioso que
somente uma outra mulher conseguiria senti-lo; há coisas do mundo feminino que somente as
mulheres podem entender; assim como em vários assuntos masculinos as mulheres não se
atrevem a opinar. Com este argumento conseguia estourar-lhes os nervos.
Durante a semana em que estive apagada, a velha às vezes flagrava o Santos mergulhado
em lágrimas, mas, ele, imediatamente simulava intermináveis gargalhadas. Ela percebia que o
filho chorava por mim. As lágrimas que o homem derrama por uma mulher são sempre notáveis,
indisfarçáveis, tem uma cor diferente. Ele parecia arrependido por me ter violentado diante dos
149
Fernando Absalão Chaúque
pais. Mas, quem era ele para negar os costumes que os Faztudos vinham cumprindo desde
antiquados instantes antes do tempo?
Às vezes, o Faztudo e o filho planeavam lobolar uma outra menina. Assim que não havia
nenhuma outra bicicleta diziam que desta vez entregariam os dois bois e a carroça. No final,
concluíam que ofereceriam apenas a carroça porque os bois ninguém os aceitaria. Todo mundo
sabia que eram bois-humanos. Claro, não há quem recusaria um animal que entende a linguagem
humana. O cúmulo residia no facto de toda comunidade ter comparecido na cerimónia fúnebre e
ter visto os cadáveres dos pais do Faztudo arrombando os caixões, transformados em bovinos.
Os dois saíam nervosos da palhota. Faztudo dizia:
Já não aguento conviver com um cadáver aqui, amanhã quero enterrar essa aí!
O velho não avisaria aos meus pais nem às estruturas locais. Apenas ele e o Santos
enterrar-me-iam sem caixão nenhum, como um cão inominado.
Quando eles chamavam-me cadáver a Tempestade afrontava-lhes:
Meu nora não está morto, se estivesse morrido já estaria podre, a cheirar mal.
Ela conhecia o por quê do meu corpo ainda não ter apodrecido. Todos os dias, ao lavar-
me perfilava pregos na cama, concretamente na posição em que a minha espinha dorsal pousaria.
Os pregos segundo a velha são retardadores da morte e apodrecimentos; são a azagaia que
abocanha a alma da morte. É por isso que Cristo ressuscitou; os pregos nele inseminados
retaliaram a morte. Fiquei pasma quando a velha disse isso. Estas palavras lembraram-me os
desmiolados evangelhos do pastor Pedro Paulo Pontes lá na Church Mbunya.
Para Santos e o pai, as explicações da velha só fizeram sentido quando depois de uma
semana silenciada abri os olhos. E logo que anoiteceu o velho Faztudo veio violentar-me, sem
nenhum remorso. A Tempestade teve de recomeçar todos os cuidados físicos que me prestara
durante o tempo em que ficara apagada. Nos dias seguintes implorou que nenhum dos dois
inseminasse o falo em mim. Graças a ela que Faztudo não voltou a me violentar até que as
feridas sarassem. Confesso que não percebi de onde viera aquela súbita simpatia da velha para
comigo. Afinal, há sempre um grão de bondade mesmo na mais maldosa pessoa do mundo.
Enfim, voltemos para hoje.
***
Orvalho em Chamas
Ainda espantada pelo mortífero silêncio, desço da cama. Vou à porta. Espreito dentre as
saliências das ripas.Está tudo escuro. As folhas das árvores nem um pouco se mexem, nenhuma
ventania as acaricia. As árvores estão tristes, esfaqueadas pela monotonia.
Martelo, Martelo, Martelo, chamo o cão, mas ele não ladra, se quer os outros cães se
pronunciam. Destranco a porta. Abro-a. Vejo os cães diante da entrada, estatelados. Aproximo-
me a eles, piso-lhes as caudas, mas não reagem. Estão mortos? Parece que sim.
Eis a oportunidade de fugir de volta a Eyupuro, murmuro.
Deixo a porta semiaberta. Volto. Sento-me na cama. Penso. Não será isto uma armadilha
do Faztudo? O que terá acontecido aos cães? Depois decido:
Vou-me embora!
Levanto-me da cama. Dou um passo em direcção à porta, prestes a sair um vulto barra-
me. Derreto-me, assustada. Por longos minutos fico a contemplar aquela estátua nocturna. Só
pode ser o velho Faztudo. Veio violentar-me. Lágrimas temperam-me a face. Os meus joelhos
perdem as potências.
Tristeza!
O que é isso? Esta sombra conhece-me o nome? Que absurdo! Ademais, a sua voz não
lhe evidencia o sexo. Parece masculina e feminina em simultâneo. Estou frita. Acho que é o
Xitukulumukhumba, o monstro que a minha mãe sempre referia nos seus contos; o monstro
bisexual, comedor das noites e que gosta de engolir pessoas que nas altas noites não conseguem
manter-se dentro das casas. A minha mãe sempre dizia que este monstro tem um formato
humano, porém tem tudo às metades (um olho, um dente, uma fossa nasal, uma mão, um pé com
apenas um dedo, um seio, um testículo…). Hoje serei o seu alimento.
Regresso à cama, paralítica, sento-me com a alma em apuros. O monstro entra. Fecha a
porta. Talvez seja um anjo que me veio salvar.
Não se assuste, Tristeza!
Descortino-lhe a voz, é feminina. Não! Impossível! Já ouviu falar de um anjo feminino?
Eu ainda não. O Pastor Pedro Paulo Pontes sempre fazia questão de frisar que os anjos são todos
homens e que na bíblia (que ele sempre trazia fechada debaixo do sovaco) nunca se falava de
‘’anja’’, ele falava assim mesmo, colocando o termo no feminino. E explicava que só tem nome
o que existe. Eis a razão de o substantivo ‘’anjo’’ não aceitar ser modificado ao género contrário.
151
Fernando Absalão Chaúque
A partir deste ponto percebe-se que, de facto, a mulher sempre foi atribuída inospitalidades e
insignificâncias inclusive no livro mais sagrado de todos. Além do mais, um anjo sempre se
veste a branco.
Definitivamente, este vulto não é um anjo.
A mulher senta-se a meu lado.
Está tão escuro aqui, ela exclama depois de ter respirado fundo duas vezes seguidas.
Ah… ah… posso acender a lamparina?, pergunto, embriagada de sustos.
Ela concede. Sem rodeios, acendo-a. Viro-me de volta à cama. A mulher ainda está ali.
Intacta. Agora tenho a certeza que é uma pessoa verdadeira. Se fosse uma dessas criaturas
nocturnas teria desaparecido, fugindo da luz. Estou meio aliviada. Mas o que me deixa intrigada
é o seu vestuário (um vestido preto, um lenço preto, sapatilhas pretas e uma máscara preta que a
cobre toda a face deixando visível apenas os olhos). Quem será esta mulher? O que ela quer de
mim?
Por minutos, nenhuma de nós se pronuncia. Conversamos apenas com os olhos. Agora, o
silêncio não só impera lá fora, aqui dentro também. Observo a mulher, espantada. Os seus olhos
são azuis, a íris reluz ao afrontar-me. Ela deve ser branca! Uma branca em Ohawa? Aqui na
minha palhota? Estou estupefacta! É a minha primeira vez a partilhar o ar com alguém desta
raça. Antes só via retratos nos livros que a minha professora trazia na sala de aula. Um dia ela
me disse que o meu ídolo Carlos Cardoso é um branco também. Ademais, o Pastor Pedro Paulo
Pontes dizia em todos cultos que Deus é branco. Mostrava-nos fotografias de um velho cheio de
barba branca sentado numa enorme e escaldante poltrona. Dizia-nos que era o famoso Deus do
qual se fala na bíblia.
Desvio o olhar para a cobertura da palhota. Quando volto a encarar a mulher noto que os
seus olhos mudaram de cor. Agora são translúcidos. Exibem duas cores, alternadamente: ora são
vermelhos ora tomam a cor-de-rosa. Que susto!
Ela tira as luvas pretas. Entrelaça os seus dedos da mão direita com os meus. Arrepia-me.
Olho para as suas mãos. Ela é branca de verdade!
Não se assuste, Tristeza, ela repete o apelo.
Quem és tu?, pergunto-a.
Sou Huzina, ela responde.
Huzina Matessa?
Orvalho em Chamas
Ela confirma.
Que susto! Será verdade!? Estou aqui a conversar com uma defunta? Desembaraço os
meus dedos dos dela. Afasto-me. Levanto-me. Vou colar-me à parede.
Você morreu há muito tempo, Huzina!, exclamo.
A velha Tempestade contara-me várias vezes sobre a morte desta mulher. O seu marido,
Bokisso, amarrara-a na cama, fritara-a com óleo nas máximas fervuras, depois ateara fogo na
casa e ficara a observá-la a ser bebida pela fervura das chamas. Bokisso, em seguida gritou de
felicidades. Alegou que acabara de eliminar quem lhe infernizava a vida, a esposa. Vociferou
que uma mulher é a coisa mais perigosa que um homem pode ter na sua casa. Por que nos casais
o homem é sempre o primeiro a morrer? É porque a mulher é o veneno que lhe suga a vida aos
bocados, disse ele. Jurou nunca mais se envolver com mulher nenhuma até a morte. Construiu ali
uma outra casa ao lado de onde jaziam as cinzas da outra. Porém, antes de passar-se um mês de
sua tão almejada liberdade, Bokisso foi achado morto na sua cama.
Eu nunca morri, Tristeza, confessa-me ela.
Nessa história sobre a minha morte tudo é verdadeiro menos a minha morte. Sabes, os
homens acham-se mais poderosos e espertos que as mulheres. Mas eles não passam de piores
iludidos. Porque nós somos o animal que mais consegue arquitectar os melhores fingimentos. Foi
por essa razão que consegui matrecar o Bokisso.
Saio da parede, aliviada. Volto para a cama.
Então não estavas amarrada na cama?
Ela volta a entrelaçar os seus dedos aos meus. E explica como tudo aconteceu. Quando
ele começou a regar a casa com petróleo eu libertei-me. Ele continuou a ouvir meus sucessivos
gritos, pensou que estivesse ali a queimar enquanto eu bradava nas traseiras da casa. Quando a
casa já estava prestes a desabar infiltrei-me nas matas. Ainda ouvi-lhe a vangloriar-se por me ter
queimado viva. Eu estava amarrada, sim. Só que aquelas cordas estavam tão podres que não
ofereceram resistência alguma quando esforcei-me para arrebentá-las.
Eu é que apodreci as cordas, Tristeza!
Como assim, tia!! Eu já não estou a perceber nada.
Deixa-me clarificar as coisas.
153
Fernando Absalão Chaúque
O sarilho com o Bokisso começou quando um curandeiro com uma mala de dinheiro veio
a nossa casa. Disse que aquele dinheiro seria todo meu desde que eu o deixasse cortar um dos
meus dedos indicadores. Bokisso escoltado pela ambição compeliu-me a aceitar a proposta.
Porém recusei-a, categórica.
O que têm de especial os seus dedos?, pergunto-a enquanto lanço o olhar às suas mãos.
Não consegues ver?
Digo que não com a cabeça.
Eu sou uma napwere, Tristeza. Ela continua. O tal curandeiro queria o meu dedo para
usá-lo nas suas acções obscuras. O dinheiro que ele tinha para me oferecer era muito; suficiente
para eu e o meu marido esbanjarmos até a morte. Perante a minha revogação o curandeiro foi-se
embora. Triste. O meu marido começou a desdenhar-me. E passava muito tempo a pensar em
como matar-me. Torrar-me para depois vender os meus restos ao mesmo curandeiro que viera
disposto a comprar o meu dedo.
Sabes como eu descobri que Bokisso queria me matar?
Não faço ideia alguma, tia.
Huzina Matessa solta uma minúscula gargalhada. Eu encaro-a nos olhos. Noto que eles
continuam a exibir aquelas corres estranhas. Contudo agora sei o que faz com que seus olhos
brilhem daquele jeito: a falta de melanina. Ela é uma napwere. É verdade. Não é uma branca
como eu pensara à primeira vista.
Bokisso era sonâmbulo. Ela desmancha os factos. Tudo o que ele pensava durante o dia
gritava durante a noite. Levantava da cama e punha-se a discursar desmanchando os seus planos.
Certo dia, ele trouxe à casa uma corda de sisal. Anoiteceu. Ao sonambular revelou todo o seu
plano de amarrar-me na cama e queimar-me. Tentou várias vezes executar o seu plano nos seus
longos sonambulismos. Mas não conseguiu. Quando anoitecia eu escondia a corda, o petróleo e o
fósforo.
Lá fora, ainda reina a silente atmosfera. O sono anda distante de mim. Talvez porque
estou entretida no que a Matesse continua a contar.
Certo dia, fui à cidade, comprei ácido sulfúrico numa loja de baterias. Voltei a casa,
reguei a corda de sisal com o ácido. E o que restou escondi numa mata.
Foi assim que apodreci a corda. Por isso foi fácil livrar-me da cama quando a casa
começou a queimar.
Orvalho em Chamas
Tia, a Tempestade contou-me que depois de te ter queimado Bokisso não levou muito
tempo para morrer, digo em jeito de provocação.
Bokisso não morreu, Tristeza.
Quer dizer que ele ainda está vivo?, pergunto.
Não, menina. Ele não morreu. Eu o fiz morrer. Eu o matei. Percebeste?
Abano a cabeça. Aceitando. E mais uma questão atormenta-me.
Como mataste o teu Marido?
Depois que escapei da morte, embrenhei-me nas matas. Ainda deu tempo de ouvir
Bokisso a vangloriar-se. Vivi nas matas durante duas semanas. Certo dia, ao anoitecer voltei à
casa do Bokisso com o acido sulfúrico que havia escondido algures entre arbustos. Enquanto ele
tomava banho adicionei-o à comida que ele acabara de cozinhar.
Foi assim que matei o Bokisso, ela encerra o relato.
Estou desnorteada. Não sei se a congratulo pelo feito ou digo-lhe que não havia
necessidade de envenenar o marido porque havia conseguido escapar das suas garras. Mas,
pensando bem, se também tivesse oportunidade de matar o Faztudo fá-lo-ia.
Depois de uma longa lucubração pronuncio-me:
Mas como conheces o meu nome, tia?
Huzina afirma que quando matou o marido fugiu até uma localidade chamada Eyupuro.
Lá foi recebida num Centro de Acolhimento de Idosos e Pessoas Carenciadas. Depois de ter
morado lá durante alguns meses ela decidiu voltar a Ohawa. Mas para que todos continuem a
pensar que ela está morta de dia esconde-se nas mais densas matas. Na calada da noite, regressa
à casa que o marido deixou. Faz isso porque tem medo de ser vista. Há sempre alguém na rua a
procura de napweres. Aquelas roupas pretas são um disfarce ideal. Nelas ninguém conseguirá
notar que ela é uma napwere, a não ser que preste profunda atenção na cor dos olhos dela. É
durante as noites que ela ouve o meu nome. Da sua casa ouve-se tudo que acontece aqui na
palhota.
Ouço sempre o Faztudo, o Santos ou a Tempestade a gritar o teu nome. Sei de tudo o que
tens passado, menina!
A tia não sabe de tudo, contraponho.
Sei, Tristeza. Não duvide!
155
Fernando Absalão Chaúque
Eu tenho passado por coisas piores nesta casa. Coisas que a tia nem imagina.
Sei que eles te maltratam, fazem de ti uma escrava sexual!
As revelações da Huzina assustam-me. Primeiro, porque mencionou a minha querida
localidade. Segundo porque ela sabe de tudo que tenho passado nesta casa, e, se calhar ela veio
para me salvar. Mas, não revelo que o meu grande desejo é voltar para Eyupuro. Lágrimas
começam a alagar os meus olhos. Para disfarçar afronto-lhe:
A tia pode saber do meu sofrimento, mas nunca sentirá algo igual na pele...
Ela interrompe-me a fala.
Estás enganada, Tristeza.
Ela abraça-me e em voz baixa revolve a memória.
Tristeza, quando eu tinha quase a sua idade percorria vários quilómetros para chegar à
escola. Eu frequentava o curso nocturno devido à insuficiência de vagas no diurno. Eu
continuava a estudar por renitência às ordens do meu pai que alegava que a escola era inútil.
Certo dia, de regresso a casa, no meio do caminho vejo três homens diante de mim. Criam uma
barreira. Tento embrenhar-me nas matas, fugir, impossível, os homens agarram-me, despem-me,
violentam-me e deixam-me ali à minha sorte. De madrugada, duas mulheres levaram-me ao
hospital. Fiquei lá internada por cinco dias. Quando de lá saí identifiquei os três homens, eram
quase meus vizinhos, morávamos no mesmo quarteirão, abri um processo contra eles. Quando
expus o caso na esquadra, o polícia que me atendeu riu-se de mim até lacrimejar. Disse que a
minha queixa era inútil, pois aqueles homens não me haviam violentado, apenas cumpriram com
o seu dever de educar-me para nunca mais fazer-me às ruas a altas horas.
Felizmente, os três homens foram presos, imediatamente. No dia do julgamento, eles
disseram que me haviam violado para alongar o seu tempo na terra; acreditavam que ao
envolver-se sexualmente com uma napwere ganhariam milénios de vida.
O juiz em vez de desempenhar o seu trabalho, imparcial, à luz da lei, colocou-se a favor
dos três homens. Disse também que o contacto com uma napwere era um carimbo para uma vida
longa. Adicionou que aqueles homens tinham motivos mais que suficientes para me violentar
visto que naquela noite eu trazia roupa muito curta. O que eu esperava que acontecesse? Os três
homens deram-me exactamente o que o meu vestuário dizia que eu estava procurando. O meu
pai nada falou durante o julgamento. Quando chegamos à casa repetiu as palavras do juiz em
Orvalho em Chamas
defesa daqueles três monstros. Depois de duas semanas vimos os três homens a circular na zona
alegres, fora das grades.
E qual foi o fim dos três homens?, pergunto, curiosa.
Matei…
…os três homens, tia?
Sim, matei-os a todos. Mas antes disso um deles tornou-se meu marido sob insistência do
meu pai.
Teu marido? O Bokisso?
Sim, ele fez parte do trio que me violentou; depois maltratou-me durante os anos em que
estivemos casados e ainda queria queimar-me viva. Não me arrependo de lhe ter envenenado.
Merecia.
ORVALHO EM CHAMAS
157
Fernando Absalão Chaúque
olhos dos dois, estive sempre trancada na palhota. (Este é um segredo que apenas conto a si, caro
leitor, por favor, não conte a mais ninguém).
Ora, após o desaparecimento físico do Faztudo, eis que o Santos substituiu-lhe nas
incursões nocturnas, passa a violentar-me. Até que um dia começo a sentir intensas dores de
barriga. Tempestade inspecciona-me as entranhas, revela-me que estou grávida e sentindo dores
de parto. Sem demoras, sou levada até aqui na maternidade. E dou à luz a este menininho.
Que direi?
Em estreia, sou mãe.
159
Fernando Absalão Chaúque
Colega Carlos, não se assuste, mas acho que esta poderá ser a última carta que te escrevo.
Não sei se amanhã estarei aqui (não sei se tu ou outros membros ou colaboradores do nosso
jornal virão o dia que se avizinha). Tudo está um caos. Irmão, digo-te isto porque estamos todos
em perigo. Os abutres da nação devem estar com os canos virados a nós. Não sei se finalizarei
esta carta, pois é provável que uma bala esteja prestes a abocanhar-me. Os esquadrões da morte
são uma realidade no nosso país. Eu nunca acreditei quando me dizias, mas hoje sublinho as suas
palavras tantas vezes forem necessárias.
Escrevo-te com a tinta das lágrimas vertidas por todo o cidadão a favor da liberdade de
expressão e contra este sistema macabro que nos oprime.
Meu caro, o que me deixa alarmado é relacionado ao episódio da marcha que narrei na
última carta. O facto é que, o nosso jornal foi o único órgão de informação da capital (se não do
país inteiro) a noticiar o confronto entre a polícia e a multidão que marchava pacificamente
contra a caça aos albinos e ainda teve um artigo de opinião e um editorial a criticar a contundente
intervenção da polícia.
Publicamos a matéria e pusemos o jornal a circular na manhã do dia 22 de Dezembro. Às
doze horas, o nosso director recebeu uma chamada de um dos graúdos da nação a acusar o nosso
jornal de caluniar a polícia. O director, primeiro pediu perdão por tudo, mas à medida que a
conversa ganhava contornos ácidos, ele teve de afrontar o interlocutor. Disse que o nosso jornal
apenas fez o que é seu dever e missão: comunicar a verdade ao povo. O outro, vendo-se na
encruzilhada disse que o nosso jornal apenas serve para espalhar desinformações; em seguida,
proferiu ameaças, promessas de vingança e enceramento dos nossos estabelecimentos.
Antes das catorze horas, um grupo de desconhecidos recolheu todo o nosso jornal do mercado.
Retirou-o em todas as bancas em que se encontrava disponível. Mais tarde, o mesmo grupo
(suponho eu que foi o mesmo) perpetrou uma emboscada ao nosso repórter e fotógrafo que fez a
Orvalho em Chamas
161
Fernando Absalão Chaúque
Abraços
Do seu companheiro
Albino Fragoso Francisco Magaia
Orvalho em Chamas
163
Fernando Absalão Chaúque
As folhas eram maiores que os troncos das árvores de que descaiam; acariciavam o chão.
Aquelas plantas pareciam um anão com as orelhas mais grandes que o corpo inteiro.
(Uma aberração?)
Eu: labirinteava-me por debaixo daquelas árvores como um verme fugindo de furiosas
labaredas; movia-me como um quadrúpede (joelhos e mãos beijando o chão). Estava exausto. O
que mais ansiava era esfumar-me dali, ficar invisível para que aqueles gatos desistissem de me
perseguir.
Das últimas vezes que os felinos se haviam colocado no meu encalço fora razoável,
menos assustador, porque não carregavam nenhuma arma com a qual me pudessem atingir,
apenas empunhavam as aguçadas garras. Agora, vinham munidos de azagaias, catanas e
machados. Gritavam:
Este napwerinho não nos vai escapar.
Acelerei a locomoção. O meu coração rufava devido ao esforço que eu imprimia na fuga.
Empenhava-me a não deixar rastros. Contornava as gigantescas folhas, zeloso. Enquanto isso,
por detrás de mim as flechas riscavam o ar, sibilavam, perfuravam as folhas, perdiam-se nas
rugosas copas das árvores que inconscientemente eram o meu escudo. Protegiam-me daqueles
raivosos animais.
O medo imperava em mim. O pânico tentava domar-me, mas eu contrastava-o, mantinha-
me resiliente. Naquele instante, eu era o único quadrúpede naquela mata, pois, aqueles gatos
locomoviam-se apenas com as patas anteriores. Com as posteriores manipulavam as suas armas,
ora faziam tilintar as catanas e os machados, ora manejavam as azagaias.
De repente, senti-me sem mais forças para continuar a rastejar. Arranquei uma folha;
tombou sobre mim. Provocou um estrondo que magnetizou o chão.
Ouviram esse ruído? O napwerinho está deste lado…vamos pegar o gajo, um dos felinos
gritou alertando os outros.
165
Fernando Absalão Chaúque
Estendi a folha no chão, deitei-me nela, na horizontal; encolhi os pés até o queixo,
peguei-a pela ponta, rolei várias vezes até que ela me deglutisse por inteiro. Estagnei-me num
tronco. Fechei os olhos, rezando que os gatos não me descobrissem.
Eles aproximavam-se, vigorosos. Alguns passavam por perto de mim; ouvia-lhes o
moroso ronronar e a ofegante respiração. E eu controlava-me para não emitir ruído algum.
Passados alguns minutos, abri o olho esquerdo, vi-os deambulando pertíssimo de mim.
Eram gatos pretos com olhos de cobre oxidado que brilhavam dilacerando a escuridão. Eram
gatos da raça Selkirk Rex, com pelo longo, encaracolado que lembrava o das ovelhas; gatos
longos com um metro de comprimento, gordos que pesariam mais de cinco quilos.
Eu não reconhecia aquela mata. Nunca estivera ali. Nunca vira árvores com folhas tão
enormes. Ademais, eu era um recém-nascido com menos de uma semana de vida. Como
conseguia deslocar e camuflar-me daquele modo. E o meu umbigo já havia sarado. Como tudo
aquilo acontecera? Como eu aparecera naquele lugar?
Boss, acho que perdemos o napwere!
Não me irritem, seus inúteis, procurem o gajo ou então eu como a vocês, o animal que
dizia estas palavras tinha uma voz mais gorda que um hipopótamo, não era um gato, claramente,
era um leão. Adicionou:
Eu só quero o coração, vocês vão sugar todo sangue dele.
A cena se repetia, eles perseguiam-me para beber-me o sangue. Do mesmo modo que um
dia antes um bando de Wegies liderado por um leão também me perseguira.
(Inferno!)
Como eu aparecera àquela mata surreal? A questão não se calava.
E a minha mãe, onde se encontrava para me salvar? Aliás, o meu pai é que era a pessoa
adequada para ali me proteger. Com aquela altura de eucalipto espantaria os gatos; com aquelas
megalómanas mãos que pareciam pás de um escavador o leão fugiria logo que o visse.
167
Fernando Absalão Chaúque
libertá-los. Seria o primeiro animal a provar ao humano que ele não é tão racional quanto se
julga. Seria o primeiro herói do reino dos ditos ‘’animais irracionais’’.
Eu continuava a chorar, rodopiando no chão, sem saber o que fazer. Estava prestes a
perder todo meu sangue, em seguida o coração. Esta seria a consumação da minha inexistência.
Levantei-me. Corri ao encontro do leão. Ele limitou-se a olhar-me como quem dizia que o meu
esforço nada mudaria. Cheguei perto do leão. Encolhi os punhos. Quando já estava prestes a
golpeá-lo, senti uma flecha perfurar-me as costas. Caí. O meu sangue começou a borbotar como
água na cascata.
Eis o sangue, o leão ordenou.
Senti dentes perfurando-me todo corpo. A maioria dos gatos preferiu sugar-me o sangue
directamente das veias. Os outros beberam o que saia de onde a flecha me alvejara.
Todos saciaram-se. Tombaram. E iniciaram-se as convulsões que culminariam com a
transformação.
(Evolução?)
Eu já me sentia frágil.
O que se achegava?
(A morte?)
O leão ajoelhou-se diante de mim. Senti as suas unhas perfurarem-me a caixa torácica.
Vomitei uma nuvem de sangue. Ele retirou-me o coração; vislumbrei um enorme buraco no meu
peito. O meu coração continuava a pulsar nas garras do leão. Nenhuma gota de sangue ainda
pingava de onde a flecha estava cravada. Nenhuma porção ainda restava em mim.
Já estava morto? Não. Ainda que sem coração e sangue continuava vivo, porém
drasticamente debilitado.
Enfim, estava enfraquecido. Pele esbranquiçada como uma sombra pálida.
Segundos depois, senti uma fome de deixar os metais a transpirar. A minha boca estava
seca como a superfície de uma rocha no deserto. Elevei a língua ao céu-da-boca, passeei-a pela
gengiva do maxilar inferior. Correu sem interrupção, de ponta a ponta. Desfilei-a pela gengiva de
cima.
(Que susto!)
Repeti mais uma vez o movimento.
(Inacreditável!)
Orvalho em Chamas
169
Fernando Absalão Chaúque
O Relógio na parede marcava oito horas. O dia perambulava nas suas infâncias. Estava
fresco; não aqueceria tanto como na manhã do dia anterior quando saí do ventre.
Naquele momento, o meu pai talvez se aprontava para vir buscar-nos ao hospital. Ou
estaria discutindo com a Tempestade, que certamente o aconselhava a não vir pelo facto de eu
ser um napwere. Havia mais uma suposição que corria na mente da enfermeira, os dois viriam
juntos para as acusar de terem trocado de bebé. As duas não queriam mais trocar palavras com a
velha. E se o director ouvisse aquela acusação? Em quem acreditaria? E se acreditasse na
Tempestade e levasse o caso às autoridades? Claro que seria a palavra da minha avó contra a
delas, mas sempre restaria uma mácula nas duas. A melhor saída era despachar-nos dali.
A minha mãe aceitou a sugestão. Arrumou os pertences na bolsa. Embrulhou-me com
duas capulanas. Aconchegou-me na valva dos seus braços. Desceu do beliche.
Não perca aquele papelinho. No dia que precisares de nós é só arranjar maneira de nos
contactar, disse a parteira.
Está bem. Muito obrigada por tudo.
Não precisa agradecer…
***
Saímos da maternidade.
Uma ambulância já nos esperava; alojamo-nos nela. O motorista imediatamente colocou
o automóvel em marcha.
No olhar da minha mãe era legível a sarcástica morfologia do medo. Não sabia o que
aconteceria assim que chegássemos a casa. Os episódios que se avizinhavam eram de tamanha
incerteza e melancolia, ela pressentia. O destino nunca sorrira para ela, nem por engano.
Os deuses não têm pena de mim. Será que a minha vida será eternamente um oceano de
bruma? A minha mãe pergunta-se enquanto a ambulância avança e o hospital vai se
transformando em diminuta silhueta.
Apesar de tudo, o facto de ter-me vivo em suas mãos dava-lhe esperanças que algures nas
mãos do futuro estaria a felicidade esperando por nós. Todavia, sabia que a felicidade não é coisa
fácil. Não surge do nada. É necessário passar por momentos de enfado para poder valorizá-la
quando chegar a vez de com ela coabitar.
Às vezes, a minha mãe questionava-se: como serei feliz enquanto o meu nome é Tristeza.
Para ela, este nome era a ignição da maldição que a perseguia. Vontade não a faltava de trocá-lo.
Orvalho em Chamas
Várias vezes pensara em sair gritando que já não se chamava Tristeza. Chamava-se Felicidade,
Alegria, Felizarda, Margarida, Lua ou um outro nome lindo, limpo que qualquer um que o
pronunciasse começaria a levitar, livre do negrume que abunda neste mundo inóspito. Mas, ela
estava condenada a ser Tristeza, eternamente.
O nome é a primeira coisa que nos é oferecida na vida, quando ainda se quer podemos
emitir opinião alguma.
E falando em opinião. Na visão da minha mãe, cada um devia ter a oportunidade de
nomear-se a si próprio, ou ao menos expor a sua ideia acerca do que o irá identificar durante toda
vida e além da morte. Todo mundo devia em primeiro lugar atingir a maturidade, só depois
escolheria um nome.
O nome é uma inquebrável profecia. Olha só, decidiram chamar-me Tristeza, deste modo
a minha vida é o mais puro antónimo da alegria, concluiu a minha mãe enquanto lançava os
olhos para onde vínhamos e nada via além da imensurável distância que nos escoltava.
Logo que saímos do recinto hospitalar o motorista advertiu:
Mãe do bebé, segure firme aí!!
A minha mãe acatou o conselho do motorista, aconchegou-se, aproximou-me ao seu
peito; com as duas mãos assegurou-me como se fosse uma jóia rara, quebradiça, e, em seguida
afogou-se nestas infindáveis lucubrações onomásticas. Esqueceu-se que há muito vinha tentando
fugir de Ohawa. Não seria aquela a melhor oportunidade para fazê-lo? E se tivesse dito ao
motorista que nos devia levar a Eyupuro e argumentasse que a parteira e a enfermeira se haviam
enganado?
***
O motorista largara a estrada alcatroada. Agora a ambulância voava com os pneus
lambendo uma terra avermelhada. No princípio via-se gado e casas nas bermas da estrada. Mas
depois de alguns minutos, o verde da paisagem era a única coisa que se evidenciava. Enquanto
guiava a ambulância, o motorista não parava de mexer o celular. Parecia monitorar algum
assunto importantíssimo: trocava mensagens e às vezes recebia curtas chamadas.
Depois de um longo percurso, abandonou a estrada vermelha, curvou à esquerda
seguindo uma estrada de areia branca, cristalina. Alguns quilómetros depois, ele reduziu a
velocidade, desligou a sirene, ligou o rádio num volume alto. Quando imobilizou a ambulância já
171
Fernando Absalão Chaúque
havia um carro preto sem a placa de matrícula pausado atrás de nós. O motorista da ambulância
desceu com a cara coberta por uma máscara de caveira. Dois homens vestidos a preto também
com máscaras de caveira desceram do carro preto. Um deles era alto com músculos enormes,
trazia uma caveira branca cobrindo-lhe a face. O outro era baixo, barrigudo, a sua máscara exibia
uma caveira preta. Os dois acenaram em saudação ao motorista que de imediato abriu a porta da
cabine em que nos encontrávamos.
O homem musculoso espreitou-nos e em seguida o outro. Por detrás das máscaras, os
olhos daqueles homens eram penumbras fulminantes.
Hoje conseguiu um bom produto!!, disse o homem da caveira branca.
Sim! Assentiu o motorista. E sublinhou, hoje trago um bebé napwere, não é isso que a
boss desde há muito queria?
E a mulherzinha?, perguntou o barrigudo.
Ora, ora, ilustres… sei que a boss queria apenas um napwere, ora… digam a ela que
também a ofereci a mulherzinha.
Certo, aceitou o musculoso.
A minha mãe tremia. Percebera que havia intenções ilícitas entre aqueles homens; era
notável que caíramos numa cilada. Quem armara aquilo tudo? A parteira? A enfermeira? O
motorista? Devia ser um deles ou todos eles coadunando num único propósito. Ora, estava claro
que o motorista da ambulância levara-nos do hospital já sabendo de todo o esquema.
A minha mãe começou a gritar:
Ajuda! Alguém nos ajude!
Os três homens riram-se em simultâneo, entretidos como os gatos do meu sonho.
A minha mãe continuou a gritar.
Os homens espreitaram-nos dentre a palidez dos vidros, felizes.
Qual é a idade do napwerinho?, perguntou o homem da caveira branca.
Nasceu ontem, meus ilustres, venho com ele directamente do berçário.
Ontem? Impossível…olha bem para a boca dele.
A minha mãe reparou-me antes que o motorista o fizesse. Entretanto, todos pasmaram-se.
Isso é estranho, disse o homem da caveira branca.
O homem da máscara preta reparou-me longamente, hipnotizado, disse:
O miúdo já tem dois dentinhos.
Orvalho em Chamas
Sim. O sonho tornara-se real. Eu era um recém-nascido, mas já tinha dois dentinhos que
me nasceram quando o leão retirara o meu coração.
O que vocês querem fazer connosco?, gritou a minha mãe, aterrorizada.
Aqueles gritos eram inúteis. Quem estaria no meio daquela mata para nos ajudar?
Os homens continuaram a conversar, despreocupados, por longos minutos. No final, o
motorista da ambulância questiona:
E o pagamento?
Que pagamento, ilustre?, perguntou o homem da caveira branca.
O meu pagamento pelo serviço.
Os homens de preto trocam olhares enigmáticos. O da caveira preta responde:
Sim, sim, o pagamento… o pagamento, ilustre… a boss disse que desta vez devias ter um
pagamento especial.
O motorista da ambulância alegra-se, saltita.
Aceitas esse pagamento especial?, o homem da máscara branca pergunta.
Aceito, meus caros!
Os dois homens voltam a trocar olhares. O da caveira preta leva a mão direita à cintura,
debaixo do blusão há um coldre castanho do qual o homem tira uma pistola, recarrega-a. A
minha mãe grita mais alto. O homem aponta a pistola ao motorista que surpreso pergunta:
Ilustre, o que é isto?
(A morte?)
O homem puxa o gatilho e a bala perfura a máscara do motorista, aloja-se na testa. A
máscara banha-se de sangue, o homem tomba. Convulsa, seu corpo tenta revogar a morte, mas
ela pronuncia-se mais astuta. Os pássaros chilreiam, abandonam as árvores. Rasgam o céu,
dissolvem-se nas alturas.
Os dois homens gargalham. O da caveira branca diz:
É o pagamento especial que a boss recomendou para ti.
(A morte?)
A minha mãe não pára de gritar. Assegura-me só com a mão esquerda, tenta arrombar a
porta com a mão direita. Não consegue. Está muito fraca para violentar a fechadura. Com o pé
direito chuta os vidros laterais, não os consegue quebrar. Continua a implorar por ajuda, mas a
173
Fernando Absalão Chaúque
sua voz apenas ecoa dentro da ambulância, não tem asas para projectar-se para fora. O volume
do rádio é também um estorvo.
A minha mãe treme. Não sabe o que fazer para nos livrar dos homens. O seu coração
ferve como palha na lareira. Os pulmões perdem a potência. Ela respira com dificuldade, como
se estivesse afogada num rio de poeira. O que se agoura?
(A morte?)
O homem da caveira preta vai ao carro preto, abre uma das portas, leva algo; regressa ao
encontro do companheiro que está despindo o corpo do motorista. O homem da caveira preta
empunha um facão. É o que ia buscar no carro. O gume daquele facão cintila como um pedaço
de lua na língua de um negro nevoeiro, lembra-me as aguçadas garras do leão que no sonho
retirou-me o coração.
Os dois vestem luvas transparentes, despem o corpo do motorista. Agem naturalmente
como se fizessem a normalíssima coisa do universo. O homem da máscara amarela leva o facão,
eleva-o, corta o pescoço do motorista, num só golpe. A cabeça e o corpo já estão divididos, cada
parte jaz no seu extremo, solitária. Os homens estão entretidos. Gritam, alegres.
A minha mãe geme de medo, como se o gume daquele facão a tivesse atravessasse a
alma. Está sem garganta para gritar, nem forças para pensar em como a gente pode sair da
ambulância. Resta-nos esperar que os homens de preto decidam-nos o destino.
O homem da caveira preta volta ao caro preto. Da bagageira tira um coleman vermelho.
Regressa. Apanha a cabeça do motorista, roça-a, dá-lhe um beijinho na testa, e mete-a no
coleman. O comparsa, enquanto assobia, despedaça o motorista com o facão (divide as mãos, os
braços, as pernas e os dedos pelas partes das articulações), mete tudo no coleman.
O homem da caveira amarela tira um bisturi do coleman. Os dois conversam, fazem
demorados cálculos olhando para do finado motorista, com um marcador preto traçam várias
linhas curvas no seu peito. Em seguida rasgam-lhe o peito com o facão, retiram o coração,
embrulham-no num plástico; depositam-no no coleman.
Os homens, voltam ao carro, trocam de luvas. E regressam ao corpo com duas tesouras.
Cortam os órgãos genitais do motorista, embrulham-nos em um plástico branco, conservam tudo
no coleman vermelho.
De repente, o celular do homem da caveira preta toca. O da caveira amarela vem desligar
o rádio da ambulância. Imediatamente, o outro atende o celular:
Orvalho em Chamas
175
Fernando Absalão Chaúque
Regressei ao aposento.
Huzina não estava lá.
As revelações da Laurinda Mafemane ainda trovejavam em mim. Por isso, a primeira
coisa que pensei foi que Huzina fora sequestrada. Mas, em pouco tempo, essa ideia evaporou-se.
Sentei-me na cama. Tirei o gravador do bolso. Pu-lo na carga, era imperioso que ficasse
sempre cheio.
Deitei-me de costas. Queria expulsar de mim o obeso cansaço. Fechei os olhos e lembrei-
me da saborosa massagem da Matessa. Sorri! Voltei a questionar-me sobre o seu paradeiro.
Talvez retornou ao centro, e tenha percorrido um caminho diferente do que me mostrara, pensei.
De repente, senti algo duro, rectangular debaixo dos lençóis, meti a mão, alcancei um caderno
preto. Estava aberto ao meio. Numa das páginas havia uma breve missiva escrita pela Huzina.
Referia que tivera de voltar a sua terra natal - Ohawa - porque preferia correr o risco de ser
sequestrada a qualquer momento que ficar trancada no centro. Nas últimas linhas, desejava-me
continuação de uma boa estadia em Eyupuro, mas aconselhava-me também a abandonar a
localidade logo que fosse possível.
Deixei o caderno na cabeceira. Puxei a almofada e nela afoguei a cabeça. Tencionava
convocar o sono, por mais curto que fosse ajudar-me-ia a fazer um refresh ao cérebro. Nenhum
pingo de sono se disponibilizou a embalar-me. Era difícil adormecer com uma teia de ruidosos
pensamentos a zumbir no meu encéfalo.
Levantei-me. Fui fazer um demorado banho. Quando voltei direcionei-me às panelas. A
Huzina havia feito matapa com arroz. Uma delícia de prato.
Já eram dezanove horas quando lembrei-me do meu fiel companheiro - o portable mp3
player. Tirei-o da tomada, introduzi nele o flash drive, liguei os auriculares. Deixei rolar a
primeira música que se pronunciou: Michael Jackson, Earth Song. Fechei os olhos, deitei-me na
cama. Depois desta, seguiu-se A Entrada dos Deuses em Valhalla de Richard Wagner. Não sei
quais nem quantas tocaram depois destas porque sem demoras desaguei num profundo sono.
Orvalho em Chamas
Ouvi alguém gritar meu nome várias vezes. Com brusquidão, levanto-me da cama. Já não
tenho os auscultadores aos ouvidos. O mp3 player jaz no chão. Concluo que, tudo dissociou-se
de mim durante o sono. Vou à entrada do aposento. Afasto a capulana. Fora, um alpendre de
escuridão domina tudo. Não há estrelas no céu. Há um diminuto frio passeando na obscura
paisagem. Ouço sibilos. Vem-me à mente os Zangbetos. Mas, em vez deles, vejo Mbalame
diante de mim. Dois gatos pretos atravessam o pátio. Ele enxota-os, insulta-os. Estende-me a
mão. Saudamo-nos. Convido-lhe a entrar. Ele recusa-se:
"Irmão, vim convidar-te para..."
"Aonde me quer levar, excelência.", pergunto.
" Vamos à igreja...hoje é sábado."
"Igreja? Já é noite demais para se pisar uma igreja. Não acha, excelência. E hoje é
sábado, sim, não é domingo."
Ele afirmou que a noite só existe na mente dos que não conhecem o Divino. Ela é uma
ilusão. Para quem já entregou sua vida ao Altíssimo há nele um eterno crepúsculo. Além disso,
acrescentou, segundo o seu pastor deve-se rezar de noite quando Deus já está livre dos seus
abundantes afazeres e disposto a nos ouvir com todas atenções; e nunca aos domingos, pois o dia
mais sagrado de todos é sábado.
Não retorqui. Nem quis instigá-lo a dar mais explicações. No fundo, não me faltava
vontade de negar o convite. Dentro de mim, uma voz dizia que ele me queria sequestrar e que era
o responsável pelo misterioso desaparecimento de albinos na localidade. Mas, sendo um turista,
tinha que continuar a fingir simpatias e curiosidades.
"Sem peoblemas, excelência, vamos..."
Voltei ao aposento, o relógio na parede marcava vinte e três horas em ponto. Por cima da
camiseta vesti um blusão, sobrepús a balalaica. Não deu tempo de levar o gravador e o caderno
porque Mbalame já me acusava de estar a demorar. Saí.
"Não precisa vestir tanta roupa assim, irmão."
"Estou com frio, excelência, e parece que está para cair chuva."
"Está bem. Mas o vestuário é dispensável diante de Deus."
"Não percebi, excelência!"
177
Fernando Absalão Chaúque
179
Fernando Absalão Chaúque
"A igreja não pode ser um sítio de luxo. Tem que estar assim, sujo para testar a fé dos
crentes. Quem se distancia do templo por causa do mau cheiro mostra que não tem a fé em dia."
"Excelência, o que é isto? Convidou-me para ouvir estas loucuras.", volto a ralhar.
Mbalame olha-me como quem quer dizer que lhe decepciono diante de Deus.
"Vão a merda vocês todos.", digo.
Ninguém reage. Calam-se como se não tivessem boca nenhuma.
"Estás cheio de demónios, miúdo. ", diz o pastor. "Agora vou-te baptizar para te salvar de
todos eles."
"Exactamente. É por isso que lhe levei até aqui. Vi que estava a sofrer." diz Mbalame.
O pastor fechou os olhos. Começou a balbuciar uma oração numa língua estranha.
"Larguem-me, seus loucos.", vociferei.
As batucadas retornam. O pastor eleva a voz. Vejo mochos, corvos e águias entrarem.
Dirigem-se a ele, pousam na sua cabeça e ombros. A lâmpada desliga-se. Por segundos, a
escuridão é a única coisa que brilha. Muitos gatos surgem no altar. Acendem os olhos, iluminam
tudo.
Pedro interrompe as orações. Manda-me ajoelhar. Os outros também ajoelham-se
incluindo Mbalame. Em coro todos repetem "Seja purificado. Seja lavado."
Pedro Pontes guia as suas mãos ao falo. Mija-me na cara, cabeça, corpo inteiro. Após ele
seguem os outros. Irrigam-me com urina. Vontade de arrancar-lhes os falos com os dentes não
me faltava. No final, Mbalame grita:
"Parabéns, irmão. Já estás limpo."
Eles carregam-me ao altar. Amarram-me numa cadeira. O pastor força-me a engolir duas
bolachinas. Diz que é a minha primeira comunhão. Os gatos iluminam-me com os olhos.
Mantenho-me em silêncio. Cansei de ralhar. Pontes ordena que os outros perfilem-se atrás de
mim. As batucadas não cessam. Todos cantam "Orvalho em Chamas". Começam a fazer dilizas
em torno de mim. No meio de todo turbilhão uma voz feminina corta o ar:
"É ele."
A lâmpada volta a iluminar a igreja. Vejo a Khefassi diante de mim. Aponta-me. Repete:
"É ele que..."
Orvalho em Chamas
"Antes de falar qualquer coisa, sai daqui, vai tirar a roupa. Respeita o nosso Deus. A sua
roupa está a sujar o nosso templo.", o pastor afronta a esposa do líder comunitário.
. Mbalame desce do altar, arrasta a sua esposa para fora. Os dois regressam passado
menos de um minuto. Khefassi já está nua, mas não deixou a bolsa fora da igreja. As batucadas e
o canto são degolados.
"Agora pode falar..." diz o pastor dirigindo-se à Khefassi.
"Ele é que sequestra pessoas aqui na nossa localidade.’’
"Quem?", um dos crentes pergunta, aflito pela resposta.
"Esse vosso Carlos Cardoso não é nenhuma merda de turista é um traficante."
"Khefassi, cala a tua boca, não anda a mentir para o nosso branquelo.", Mbalame remata.
Todos olhos viram-se a mim. Não me pronuncio. A Khefassi deve estar a delirar.
O pastor desce do altar com as mãos à cabeça. Caminha de um lado para o outro. Senta-se no
chão lamacento. Respira fundo. Diz:
"Khefassi, não acusa o turista sem provas. Imagina se os grandes lá da capital souberem
dessa tua brincadeira...".
"Essa mulher está louca, não sabe o que fala", digo.
"Tenho provas, irmãos.", ela responde.
"Quais são?" Perguntão os crentes.
"Se for verdade, eu te juro senhor Carlos, vou-te enforcar diante de todos habitantes de
Eyupuro", ameaça-me o Mbalame.
A igreja transforma-se em centro de discussão e ameaça.
"É tudo invenção dela...", contraponho.
181
Fernando Absalão Chaúque
Ninguém está interessado nas minhas declarações e acusacões. Todos querem saber o que
tem nos aparelhos que a Khefassi tirou da bolsa.
O Mbalame mexe a máquina fotográfica, arregala os olhos:
"É verdade."
"É verdade?", perguntam os restantes.
"Sim, ele tem fotos de muitos que desapareceram daqui."
"Então ele na verdade não é nenhum turista!!, exclama o pastor.
Mbalame passa a máquina a um outro senhor. Este pega a máquina observa as fotos.
Declara:
"É verdade. Nas fotos estou a ver os dois filhos da Laurinda Mafemane que
desapareceram há anos, fotos de Mazoio entre outros que estão desaparecidos há muito tempo."
"Há um mal entendido aqui, deixem-me explicar", intervenho.
O pastor devolve o gravador à Khefassi. Arranca a máquina do senhor que está ao lado de
Mbalame. Observa as fotos.
"Sim, são as fotos deles...."
"Deixem-me explicar, por favor."
Nenhum deles me escutou. Estavam todos cheios de raiva. Algo seco embateu-se na
minha nuca. Virei-me. Vi um dos seguidores do Pedro Pontes com um pau nas mãos. Deu-me
mais uma paulada na nuca. Tudo começou a girar. Vieram todos para cima de mim. Agrediram-
me, coléricos, até o ar esquecer o caminho para os meus pulmões e o meu corpo transformar-se
em pedra.
Orvalho em Chamas
183
Fernando Absalão Chaúque
Por vezes
o destino é como uma pequena
tempestade de areia
que não pára de mudar de direcção.
O abismo era a única luminosidade possível. Nuvens negras corriam nas pálpebras das
alturas. O silêncio berrava congelado nos tímpanos do universo. Além de mim, nenhuma outra
existência ali se pronunciava, assim pensei depois que voltei à consciência.
Parecia que estava sepultado numa caverna há muito apagada da memória. Tudo era
inércia. Nenhum ponteiro se atrevia a sustentar o voo do cosmos.
Que lugar assustador…
Estava deitado de costas. Coberto, talvez pela capulana da minha mãe. A superfície na
qual me apoiava tremelicava, lembrava um terramoto escrevendo intermitentes vibrações nas
linhas do chão.
(Que lugar era aquele?)
Sentia uma imensurável fome. Tentei chorar, mas a minha voz projectava-se somente
para dentro de mim. Sufocava-me o aparelho fonador. Melhor, sufocava-me os sentidos todos.
As lágrimas salgavam-me a alma, desciam dos olhos, penetravam-me pelos canais auditivos.
Mosquitos pousavam em mim. Mas não conseguiam sugar-me o sangue. Quando
tentavam perfurar a pele morriam como se num trago bebessem um mar de veneno.
Dói-me o peito. Um objecto afiado atravessasse-me os pulmões, talvez. Não me consigo
mover. Respiro fundo. Deixo o ar metálico inundar-me os pulmões. Estou impotente. Como um
pássaro com asas e patas amputadas.
O silêncio reinava até que o que presumi ser um bando de corvos começou a gritar numa
voz acesa capaz de ressuscitar os mortos. Gritavam enquanto batiam as asas como se batessem
palmas.
O chão continuava a estremecer num ritmo indescritível. Estranho! Aquilo não era um
chão verdadeiro. Podia ser uma outra coisa, mas, chão, não, não era. Fechei os olhos. Era em vão
mantê-los abertos. Um gato miou.
A escuridão assombrava-me. Porém, de alguma forma lembrava-me a minha primeira
casa: o ventre. Lá navegava o vazio como um orvalho negro em apuros ou pegadas de gaivotas
germinando em terras aquáticas. As minhas cambalhotas eram cantigas de hipnotizar os deuses.
185
Fernando Absalão Chaúque
Durante nove meses sonhei em libertar-me daquelas paredes. Nascer. Queria tanto conhecer o
mundo. Não imaginava o que aqui me esperava. Uma infinidade de melancolias. Nasci. Ainda
não tenho um mês de vida. Contudo, o mundo já me ensinou que as pessoas não são iguais. Há
incontáveis diferenças entre elas em vários aspectos: a cor, o sexo entre outras coisas que ainda
descobrirei. Que inóspita forma de viver! O desdém da enfermeira lá no berçário, o fingido olhar
da parteira, a repulsa da minha avó Tempestade mostraram-me que ser um napwere é carregar
uma eterna maldição dentro de si.
Pensando bem, haverá alguma diferença entre um napwere e outros humanos? Não! Não
existe, acho eu. Todos têm tudo em comum desde a composição corporal até à metafísica. Qual é
o motivo de tanta segregação? Ainda sou um bebezinho, mas atrevo-me a dizer que quem
desdenha, resigna, oprime ou denigre o outro insulta-se a si mesmo e amargamente molda o seu
próprio futuro.
Ora, acho que foi por eu ser um napwere que a minha mãe e eu viemos parar neste lugar
em que o abismo é a única luminosidade possível.
***
De repente, uma lâmpada suspensa no meio do teto expulsou a escuridão, dispersou os
corvos.
O teto era preto. Lembrava-me o fardamento dos dois homens que mataram o motorista
da ambulância. Senti o chão a estremecer. Mais forte que antes.
Alguém tossiu.
Passados alguns instantes, um líquido pegajoso começou a molhar-me a nuca, desceu até
baptizar-me as costas.
Mais uma vez: alguém tossiu.
Percebi que era a minha mãe. E era o seu leite que jorrava dos mamilos e me inundava o
corpo. O chão agora tremelicava mais rápido como se um redemoinho o sacudisse. Atencioso,
descobri que não estava deitado no chão, mas sim no peito da minha mãe. Não ocorria ali
nenhum terramoto, era o coração dela que ribombava.
Mais uma vez, alguém tossiu, aproximou-se (não era a minha mãe que agora tossia, era
uma outra pessoa).
A minha mãe despertou, sobressaltada, o seu coração triplicou a pulsação.
Orvalho em Chamas
Ajuda! Ajuda! Ajuda!, ela gritou enquanto levantava-se e colocava-me ao colo. Desfilou
o olhar arredores. Viu o teto, as paredes e o chão adornados a preto. Voltou a gritar:
Ajuda! Ajuda! Ajuda…
Hey, menina… acalme-se, uma voz rouca apelou.
A minha mãe voltou-se; viu dois homens com cabelo longo, despenteado e barba já há
meses nunca feita, ajoelhou-se, implorou:
Por favor, matem a mim… mas… mas deixem o meu filho.
Os homens trocaram olhares. Um deles aproximou uma cadeira. Gesticulou sugerindo
que a minha mãe ali se sentasse.
Não preciso sentar, podem me matar agora, eu vi o que vocês fizeram com o motorista
da ambulância.
Menina sente-se aí, por favor, o outro homem aconselhou a minha mãe com uma voz
amena.
A minha mãe sentou-se na cadeira e voltou a ralhar:
Já estou pronta, podem me matar…
Não somos assassinos, pah!
E o motorista?
Não sabemos nada desse motorista que estás a referir.
Mentirosos, vocês os dois mataram o motorista.
Acalme-se menina, também fomos sequestrados, estamos no mesmo barco que tu.
Estamos num barco? Aonde vamos?, a minha mãe questiona.
Não. É só uma forma de dizer que estamos na mesma situação, fomos todos enganados,
respondeu o homem da voz rouca.
O cabelo desfasado e a barba amarrotada atribuíam-lhes um ar diabólico.
Depois de alguns minutos, a minha mãe estava calma.
Antes de muito, eu chamo-me Mazoio, disse o homem da voz rouca.
Eu sou Komachu. O outro apresentou-se e questionou: e a menina… quem é?
A minha mãe pôs-se a pensar como se tivesse esquecido o próprio nome. Depois
respondeu:
Sou Alegria; chamo-me Alegria mas também podem me chamar Felicidade.
187
Fernando Absalão Chaúque
Certo, Komachu assentiu (sem imaginar que o verdadeiro nome da minha mãe era o
antónimo das palavras que acabara de proferir; adicionou:
Não somos os homens que te sequestraram; fomos também sequestrados. Estamos aqui
talvez há três meses, não é isso Mazoio?
Sim. Três meses ou mais.
Os homens não tinham como afirmar com precisão. Trancados ali não havia como
controlar os dias. Não sabiam quando era noite e quando era dia. Nunca viam o sol a nascer nem
a se pôr. Na maioria do tempo, a única coisa que faziam era contemplar o abismo que lhes
circundava. Os sequestradores ligavam a lâmpada quando acabavam de meter ali mais um
sequestrado ou vinham retirá-lo.
(Retirá-lo para onde?)
A minha mãe encolheu a testa. Tinha tantas questões, muitas das quais naquele momento
era impossível descobrir uma resposta exacta.
Mas que lugar é este?
Não sabemos. Sabemos apenas que é o nosso cativeiro, Mazoio respondeu.
A minha mãe esbugalha os olhos. Só agora nota as anomalias físicas que estes homens
apresentam. Arrepia-se. Tapa a boca com a palma da mão direita como se abortasse um grito ou
enfocasse um choro. Lágrimas desfilaram na sua face ao perceber que Mazoio tinha os dedos da
mão direita amputados. Komachu não tinha as orelhas. Tinham sido removidas deixando os
orifícios avulsos. A dor triplicou-se quando a minha mãe viu que as feridas nos dois homens
eram recentes e, naturalmente, ainda faltavam eternidades para sararem.
O que…
Mazoio interrompe a fala da minha mãe, já previa a pergunta que borbulharia dos lábios
dela. Os dois homens sentam-se no chão, lado a lado, afrente de nós. Não há nenhuma outra
cadeira por ali. Mazoio desmancha os factos.
‘’Foi há acessivelmente três meses que abri os olhos e me descobri neste tedioso lugar.
Ora, antes disso, eu vivia em Eyupuro.’’
Sinto o coração da minha mãe tentando arrombar-lhe o peito ao ouvir o nome da sua
terra natal. Mas não interfere, deixa o homem continuar com a narração.
‘’Eyupuro é a terra que me viu nascer. Mas deixa-me ir directo ao que aqui nos interessa.
Queres saber como fui amputado os dedos, não é isso?, Alegria, é este o teu nome, pois não?’’
Orvalho em Chamas
Sim!
‘’Foi assim. Há anos que eu frequentava a maior igreja daquela localidade, a Church
Mbunya. Nesse dia, no final do culto nocturno, o pastor Pedro Paulo Pontes chamou-me à
secretaria, disse-me que havia tido uma revelação que resolveria todo o meu sofrimento. Disse
que as minhas orações haviam tido resposta.’’
Mazoio coça-se a barba, respira fundo.
‘’Na visão, ele me vira empregado numa enorme empresa na capital, recebia uma
avultada quantia monetária. Fiquei alagado de alegria. O pastor disse que na manhã seguinte eu
devia ir à igreja com os meus documentos. Antes das sete horas viria um carro dessa tal empresa
para me levar à cidade. Acreditei em tudo que Pedro Paulo Pontes disse. Quem era eu para
duvidar das visões divinas? Não tinha eu a fé em dia? Ademais, há muito que procurava um
emprego.
No dia seguinte, não pensei tanto, acordei, fui à igreja. Ao chegar lá vi um carro preto,
não hesitei, aproximei-me, falei com o motorista, confirmou que era quem me viera buscar.’’
O homem paralisa as falas. Pisca os olhos como se tentasse rever com nitidez ou apagar
da memória o episódio que relata.
‘’Embarquei. O homem pôs o carro em marcha. Durante o percurso, ele repisava o facto
de na cidade haver um emprego luxuoso para mim, secundava as palavras do pastor. Foram
incontáveis horas de percurso que a fome começou a roer-me o estômago. Ele ofereceu-me um
refrigerante. Não recusei. Tomei-o. E o que se seguiu foi uma treva roubando-me a consciência.
Adormeci. Quando despertei já estava aqui, preso.’’
O homem corta a narração, tosse, depois adiciona com os olhos cheios de lágrimas:
Talvez o emprego que o pastor profetizou era este… ficar aqui trancado.
Mazoio tinha uma teia de dúvidas presa na sua mente. Será que o pastor o enganara? Não.
Pontes nunca faria isso. A santidade que nele habita nunca o deixaria enveredar por caminhos
maliciosos. Mazoio preferia acreditar que o motorista é que não fora sério, distorcera todo o
plano.
E o que aconteceu com os seus dedos?
Ah, os dedos, sim ainda ia chegando ai…
189
Fernando Absalão Chaúque
Mazoio levanta-se. Chega pertíssimo da minha mãe, eleva o indicador esquerdo, aponta a
uma porta nos fundos do compartimento em que nos encontramos. Diz:
Tudo aconteceu por detrás daquela porta. Leia o que está ali escrito…
A minha mãe pousa os olhos no topo da porta, lê, mas não percebe a semântica daquelas
palavras.
O que é Mdomo Wa Kizumo?
É ‘’Boca Do Inferno’’, Komachu responde.
Aquela porta é a verdadeira boca infernal, quem a atravessa já mais volta. Quem tem a
sorte de voltar, traz consigo sangrentas memórias, Mazoio salienta.
Vocês passaram por aquela porta ou…?
Sim, já estivemos do outro lado e lá fomos arrancados as partes corporais que nos
faltam.
Mas, quem está atrás da porta? Tristeza questiona.
Estão lá os anjos da maldade…
Mazoio relata que certo dia, depois de ter passado quase uma semana submerso na
escuridão daquele cativeiro despertou e viu a lâmpada propalando intensas luminosidades por
todos os cantos. Em seguida, a ‘’porta infernal’’ abriu-se, um homem vestido a preto e com uma
máscara de caveira entrou. Trazia uma pistola com a qual apontou-lhe na face, puxou o gatilho,
porém em vez de bala, a arma expeliu-lhe um gás inodoro. Mazoio enfraqueceu-se. Tombou.
Não desmaiou nem perdeu o mínimo controlo dos sentidos, apenas ficou sem força alguma. Um
outro homem mascarado entrou pela Mdomo Wa Kizumo empurrando uma maca. Os dois
carregaram-no na maca, levaram-no para a sala do outro lado da porta. Lá, ele viu incontáveis
máquinas que se quer conhecia a função. Viu também muitos aparelhos e instrumentos que antes
só vira em hospitais, especialmente nas salas de cirurgia e bancos de sangue.
Os dois homens amararam-no na maca com cordas e ligaduras. Em seguida uma mulher
vestida a executiva apareceu, apreciou-lhe todo corpo incluindo os órgãos genitais. Depois,
virou-se àqueles dois homens mascarados:
Quais são as requisições de hoje?, perguntou numa voz fina, elegante.
Cinco dedos masculinos e dois litros de sangue e o resto é o pedido de sempre, boss, um
dos homens vestidos a preto respondeu.
Rins?
Orvalho em Chamas
191
Fernando Absalão Chaúque
Menina, deixa Komachu contar como veio aqui parar. Depois eu te digo o que poderá
acontecer com o teu filho.
Komacho está sentado ao lado de Mazoio. Enche os pulmões de ar. Esvazia-os. Repete o
exercício três vezes consecutivas. Depois encara a minha mãe.
O meu sequestro está relacionado a uma mulher.
A tua esposa?
Não.
A tua irmã?
Não. A minha própria mãe.
Hummmmm?
‘’Meus pais e eu éramos uma família muito feliz. Nada nos faltava. Vivíamos na capital e
tínhamos uma vida estável. Eu era o único filho. O meu pai trabalhava nos Caminhos-de-ferro e
eu nos Correios; ainda não me casara, queria primeiro terminar o ensino superior. Cada coisa
tem o seu tempo, filho. A tartaruga vive muitos anos porque odeia azáfamas, sempre salientava o
meu pai.’’
A minha mãe esbugalha os olhos fascinada pela esperteza da tartaruga.
‘’Muitos acreditam que só depois da tempestade é que vem a bonança. Mas para mim,
aconteceu o inverso. Depois do que parecia ser uma eterna ordem surgiu o caos. O meu pai
morreu. Eu e a minha mãe começamos a usufruir da pensão. Um ano depois fiquei
desempregado. Passado algum tempo, a minha mãe conheceu um jovem muito novo, mais novo
que ela, aliás, muito mais novo que eu. A paixão era intensa que não demorou muito que ela o
convidasse a morar connosco. Na verdade, eu não tinha nada contra a felicidade da minha mãe.
Porém, era-me desconfortável conviver com o meu padrasto na casa em que um dia passara
inesquecíveis momentos com o meu pai.’’
Komachu cala-se. Fita a minha mãe como se a desse tempo de triturar a informação.
‘’Sem óbvias razões, a minha mãe começou a tratar-me com desdém. Um dia ela disse-
me que devia interromper a faculdade. Havia necessidade de eliminar algumas despesas porque o
dinheiro da pensão não chegava para tudo. Recusei. A partir desse dia, os sarilhos triplicaram-se.
Semanas mais tarde, o meu padrasto disse que eu devia sair de casa. Recusei. Tive uma
193
Fernando Absalão Chaúque
efervescente discussão com os dois. A minha mãe humilhou-me diante dos vizinhos. Defendeu o
seu maridinho. Insultou-me como se não fosse seu filho legítimo.’’
Komachu cala-se. Soluça. Limpa as lágrimas com as costas dos pulsos. E continua:
‘’Quando anoiteceu, a minha mãe desapareceu. À meia-noite, alguém bateu à porta.
Demorei a atender dando espaço para que o meu padrasto tomasse a dianteira. Mas ele não o fez.
Permaneceu trancado no quarto. Por fim, abri a porta. Vi a minha mãe. É ele, ela disse aos
homens de preto e máscaras de caveira que a escoltavam.’’
Mazoio abana a cabeça em jeito de lamentar o que o companheiro está a contar.
‘’Um dos homens aproximou-se. Tirou a pistola do coldre. Mandou-me levantar as mãos.
Levantei-os. Ele algemou-me. Ordenou que eu me voltasse. Obedeci. Depois, senti duas
pauladas na nuca. Caí, mas não demaiei. Levem o miúdo, a minha mãe e o padrasto gritaram,
alegres. Em seguida o outro homem pediu o número da conta bancária da minha mãe. Ela ditou-
o. Depois de alguns segundos o homem disse que a transacção já tinha sido efectuada com
sucesso. A minha mãe manteve-se em silêncio por poucos segundos. E depois confirmou que já
havia recebido o valor. Senti mais uma paulada na nuca. E, desta vez, desmaiei. E quando
recuperei a consciência achei-me aqui neste cativeiro.’’
Está bem, já chega, irmão, disse Mazoio ao notar que Komachu começava a chorar
descontrolado.
Sem demoraras a minha mãe interfere.
Que triste, Komachu.
Não se preocupe comigo, Alegria, preocupe-se com o seu filho, tão ingénuo para estar
aqui neste inferno.
Mazoio, peço para revelar o segredo, por favor, estou muito curiosa.
Que segredo, menina?
Já se esqueceu? Quero saber o que eles vão fazer com o meu filho?
Ahh! Eles vão matar, despedaçar o seu bebé para poderem vendê-lo em pedaços…
membro por membro, assim poderão ganhar muito dinheiro.
Muitos dias passaram-se até aquela lâmpada voltar a iluminar o cativeiro. Entretanto, no
tal dia, Komachu e Mazoio foram dali retirados e nunca mais voltaram.
195
Fernando Absalão Chaúque
"Maldito!"
O marrulhar das vozes verte uma aguda ressonância aos meus ouvidos. São tantas as
vozes; inúmeras as bocas que fulminam toneladas de insultos.
"Seu cão!"
Os meus tímpanos pegam fogo. Tudo arde dentro de mim (a paisagem que não vejo, os
pássaros distantes arquitetando cânticos fatídicas, as tonturas que me perfuram o cérebro, as
lembranças que me fogem em contramão).
"Seu criminoso de merda!"
O aroma que me atravessa os tuneis nasais é uma incessante fogueira náuseabunda. E eu?
Um inominado perdido neste desesperado instante. Desconheço-me feito pluma a boiar no
estômago de uma lava.
"Olhem para ele!... cara sem vergonha."
Estou seminu. O frio coloniza-me o corpo. Sinto a pele lascar-se como que atravessada
por inúmeras navalhas carnívoras. Onde estou? Não sei! Talvez no ventre de uma floresta de
gelo. Não sei como vim aqui surgir. Devo estar assim seminu diante desta gente que a mim
arremessa palavras cortantes, insípidas.
"O gajo fingia ser turista...
Tenho o corpo todo cheio de dores. A nuca doi-me ao caraças. O resto da cabeça está
prestes a desintegrar-se.
...enquanto é um traficante de pessoas."
As pálpebras estão vergadas pelo peso do mundo, são rochas, obesas, fermentados por
rajadas de pancadas que me foram doadas na Church Mbunya antes de desmaiar.
Estou no meio de dois homens que com os dedos atados aos meus antebraços guiam-me
não sei para onde. Os dois murmuram. Pedem licença dentre a povoação, dispersam-na para que
nós possamos passar.
"Abram caminho!"
Orvalho em Chamas
"Afastem-se!"
Obedeço-lhes os movimentos. Os dois são meus faróis, remos ou bengalas indireitando-
me a caligrafia do andar. A multidão em volta não abranda os escárnios:
"Seu lixo de uma figa."
Há uma venda cerando-me os olhos. Vejo o abismo plangente formando muralhas na íris
e imagino as faces dos que me insultam: são rios de nervos, chamas de desdém e revolta, línguas
das serpentes mais venenosas.
Apesar de ter os dois homens guiando-me cambaleio, os joelhos revogam as ordens do
cérebro, paralisam-se. Os dois homens apertam-me os antebraços, puxam-me com todas as
forças que se escondem nos seus músculos.
"Carlos, atenção, vamos subir escadas agora.", avisa-me o que está a minha esquerda.
"Vamos puxar o gajo, nem precisávamos avisar... ainda queres tratar um assassino com
carinho?", pergunta o homem à minha direita.
"E se tudo for um erro?", retribui o outro.
"Contrariar o lider comunitário dá direito à morte. Esqueceu, irmão? Vejo que já não
queres viver."
Os dois arrastam-me. Subimos cinco degraus. Depois parece que os homens chutaram-me
os joelhos. Caí de joelhos ao chão. A multidão triplicou os gritos.
"Tirem-lhe a venda dos olhos."
"Queremos ver bem a cara desse que anda a sequestrar os nossos irmãos aqui em
Eyupuro."
Um dos homens tirou-me a venda.
Apesar das sobracelhas inchadas, pesadas, esforcei-me; abri os olhos. As primeiras
miúdas luzes de sol picotaram-me a visão. No meio da multidão, vejo alguns guardas do
Mbalame com caras omitidas pelas máscaras de caveiras. Lembro-me do Centro de
Acolhimento, da velha Laurinda Mafemane e da Huzina Matessa. Onde será que as duas estão
agora?, pergunto-me enquanto as vozes continuam a exclamar:
"Afinal é um branco!!"
"Afinal é este aqui!"
"Conheces o gajo."
197
Fernando Absalão Chaúque
O barulho apoquenta-me. Perco forças. Meu estômago é um osso cavando-se com unhas-
de-fome. Doem-me os joelhos de tanto ajoelhar-me nesta superfície dura. Estou num palco. Bem
atrás de mim, no fim deste pódio, vejo dois paus secos equidistantes plantados no chão como se
fossem balizas; descrevo-os com os olhos, de baixo para cima. Vejo que estão iterligados por um
outro pau que os atravessa na horizontal; no meio destes paus há uma corda atada que pende para
o chão exibindo uma argola. Que estranho! Será que esta população toda está para presenciar um
enforcamento? Eu…?
"Sim, vai render, brincou com fogo a pensar o que?"
Os guardas parecem estátuas em redor do palco. A multidão efervece. Alguns tentam
subir ao palco. Mas abrandam logo que os guardas manipulam as AKM's. Mantêm-se no seu
lugar a atirar-me insultos. De repente, mudam de táctica, começam a lançar quaquer coisa a mim
(pedras, sapatos, chinelos).
No fundo, vejo dois carros brancos aproximarem-se. A multidão ao vê-los ajoelha-se. São
dois Fortuners, cabine dupla. No primeiro carro, ao lado do motorista patenteia-se o Mbalame Ya
Moto. Na segunda cabine desce um guarda, vem abrir a porta para o lider comunitário. Depois
abre uma das portas da segunda cabine da qual desce a Khefassi. No segundo Fortuner desce o
Pastor Pedro Paulo Pontes. Apressa-se, vem segredar algo ao Mbalame. Depois caminham até
diante do palco em que estou. Mbalame trajou uma túnica amarela com bordados de girafas e
elefantes na parte frontal; calçou alparcas castanhas. Com a mão esquerda assegura as pontas da
túnica para não arranharem o chão. A Khefassi, desta vez, não está vestida a executiva. Cobriu-
se todo o corpo de capulanas e ainda amarrou um lenço. Não parece a mesma que me recebeu no
centro.
Os três caminham solenemente. A multidão parou de barrulhar; está em absoluto
silêncio, ajoelhada como eu. Mbalame, Pontes e Khefassi sobem ao palco. Posicionam-se atrás
de mim, encaram a multidão. Mbalame saúda o seu povo. Este responde numa só voz e volta a
Orvalho em Chamas
ficar em pé logo que o líder ordena. Agora tudo é silêncio. Ninguém me insulta. Ninguém pode
falar sem o consentimento do expoente máximo. Mbalame começa a discursar. Vai directo ao
assunto. Não quer perder tempo em rodeios.
"Como todos sabem, estamos aqui para conhecer o homem responsável pelo sequestro de
albinos aqui na nossa localidade. Como veem é este aqui chamado Carlos Cardoso. Ele chegou
aqui no mês passado e apresentou-se como turista enquanto é quem vem arquitetando sequestros.
Antes fazia tudo estando lá na capital. Mas veio aqui para poder controlar todo o processo por
perto, acho eu, e, como vosso lider, o que penso é a realidade.’’
O homem discursa enquanto a mão esquerda continua a assegurar as pontas da túnica.
Com a direita gesticula: dedo indicador em riste.
"Segundo as minhas diligências, este homem é traficante de órgãos humanos. Por isso,
não sequestrou apenas a tantos nossos irmãos albinos que há anos estamos procurando. Também
fez desaparecer ao jovem Mazoio que era um dos crentes mais fiéis à nossa tão querida Church
Mbunya e ao nosso benigno Pastor Pedro Paulo Pontes."
A voz do Mbalame ecoava em todos os cantos capaz de perfurar até tímpanos de surdos.
"Então, este é um inimigo do povo!! É ou não é?"
"É...", o povo respondeu.
"E nenhum desgraçado como ele merece perdão. É ou não é?
"É", o povo voltou a concordar.
A ninguém Mbalame dava o privilégio de com ele discordar, era notável. Todos sabiam
que quem o enfrentasse implorava por um enforcamento imediato.
"Agora, vamos ouvir o que o nosso pastor tem a dizer acerca deste assunto e deste
inimigo do povo.
Ergui os olhos ao Mbalame e ele arremessou-me um pontapé no maxilar inferior. Mordi-
me a língua e muito sangue começou a jorrar da minha boca.
"Não me olhe seu imbecil", disse ele.
A multidão gritou de júbilo. Era o que há muito eles queriam: ver-me a sangrar, a pagar
pelos sequestros que vinha cometendo em Eyupuro.
Pontes saiu de trás de mim. Veio parar a meu lado. Trajara um fato preto e anexara uma
cartola na cabeça. Entretanto, estava descalço. Apesar do intenso pânico em que eu estava
199
Fernando Absalão Chaúque
restavam-me forças para reflectir: por que está descalço? Além de defender que se deve rezar nu
será que considera inútil o calçado também?
Ele afronta a multidão que está agora atenta para acompanhar o seu palavreado.
"Meus irmãos, não tenho muito a dizer além de agradecer a sua excelência Mbalame Ya
Moto e a sua esposa por nos terem revelado o rosto de quem há anos faz dos nossos irmãos
mercadoria.’’
O homem pausa o discurso. Tira a cartola da cabeça. Forço as minhas pesadas
sobrancelhas a ebrirem-se mais; observo-lhe em mínimo soslaio (a sua cara é revestida de
estranhezas, que na igreja não as consegui notar; os seus olhos perdidos em órbitas losangulares
emanam um brilho incomum. Tem dentes pontiagudos, afiados, um nariz pequenito, ambos
característicos de felinos).
"Não há perdão algum para quem practica actos macabros como os que o Carlos tem
levado a cabo. Sendo assim, seguiremos com a nossa lei comunitária. É claro que todos a
conhecem. Sim ou não?, Pontes pergunta.
‘’Sim, conhecemos…", o povo responde.
‘’Qual é?’’, Pontes quer saber.
"Olho por olho, dente por dente.", grita a multidão.
‘’Mais uma vez!!’’
"Olho por olho, dente por dente."
"É essa a lei que seguiremos." Ele devolve a cartola à cabeça. "O Carlos matou, logo,
também deve ser morto."
A multidão ferve de alegria: bate palmas, assobia, aponta-me, passa os dedos nos
pescoços, demostrando que vim aqui para ser enforcado. Agora não me restam dúvidas quanto a
isso.
"O nosso lider continuará com o trabalho final", diz o Pastor.
Pontes volta à posição. Mbalame vem parar afrente de mim. Exibe-me as costas. E volta a
dirigir-se ao seu povo. Pergunta:
"Há alguém que queira dizer algo?"
Um silêncio macabro patenteia-se. Ninguém se pronuncia. As árvores bloqueiam a
fotossíntese. Paralisam-se. O sol espreita, triste, lamentando o que se avizinha.
Orvalho em Chamas
Uma mulher levanta a mão. Mbalame ordena que ela suba ao palco. Ela treme de tantos
nervos. Chora. A Khefassi tira o lenço da cabeça. Enchuga-lhe as lágrimas. Depois de alguns
minutos a mulher reave o fôlego e expressa-se apontando-me com desdém.
"Estou de acordo com a decisão tomada pelo nosso líder. Este homem tem que ser morto.
Se possível, eu até podia lhe espetar uma faca directamente no coração porque o meu filho
albino, de quatro anos desapareceu no ano passado. Depois de dois dias, o pai achou o seu
corpinho no mato, sem a cabeça, órgãos sexuais e dedos. Aquilo doeu-nos muito, irmãos. É por
isso que este homem deve ser enforcado. Não merece continuar vivo porque também eliminou
muita gente."
Derramo lágrimas.
A mulher mais uma vez desaba em um estrondoso choro. Os guardas retiram-na do palco.
Acompanham-na de volta à multidão.
"Vamos concluir o nosso trabalho. A sentença já está dada.", diz Mbalame enquanto tira a
túnica. Fica de tronco nu talvez para confirmar que é a altíssima instância da localidade. Um dos
guardas traz uma cadeira. Coloca-a no meio do palco, bem abaixo da corda que está prestes a
apertar-me o pescoço e eliminar-me deste mundo. Arrependo-me de ter aceitado a missão de vir
a Eyupuro para investigar o desaparecimento misterioso de albinos. Olha só, a isca virou-se
contra mim como o caçador que vira gazela. Não me resta saída alguma. Resta-me esperar a
morte que se aproxima de dentes aguçados. Nunca imaginei que morreria numa forca. Choro.
Não pela minha vida, mas pelos meus filhos e esposa que ainda tinha muito amor para com eles
comungar. Quanto a mim, a morte não me assusta. Não há remorso ou rancor algum que me
perturbe o eterno descanço. Morrerei em paz, pois já fiz tudo que o destino me reservara.
201
Fernando Absalão Chaúque
203
Fernando Absalão Chaúque
"Que merda de ventania é esta?’’, Pontes pergunta, talvez a ele mesmo porque ninguém
lhe responde.
Todos estão em pânico.
"Guardas, controlem o maldito do Carlos, não pode escapar da morte". O pastor orienta.
"Está difícil enxergar debaixo desta poeira negra". Responde um dos guardas.
"Merda pah... só pode ser o Carlos que convocou esta tempestade.", diz Mbalame.
"Eu já imaginava, o gajo além de ser traficante é feiticeiro.", a Khefassi salienta.
Dou o último suspiro. O meu coração silencia-se. E é quando a corda arrebenta-se. Caio na
superfície do palco. Sem demoras, volto a respirar apesar da forte ventania e da poeira que
alagou o ar. Foi sorte? Milagre? Alguém arrebentou a corda para me salvar?
A tempestade desaparece. A poeira abaixa-se, as nuvens esbraquiçam-se, volta a
estabelecer-se uma normal manhã. Estatelado no palco, ainda respiro com dificuldades como se
tivesse um ataque de asma.
Os guardas retiram-se do palco. A multidão toda volta à consciência, levanta-se, surpresa,
espanta-se ao ver que já não estou pendurado nas balizas. O mesmo espanto invade o Mbalame e
a companhia toda.
Mbalame, ainda de tronco nu, começa a insultar-me; Pedro Paulo Pontes baptiza-me com
pontapés na barriga.
"Seu branco, traficante, feiticeiro de merda...", gritam os dois.
As minhas mãos ainda estão atadas à altura das nádegas. Por mais que eu queira afrontá-
los não há possibilidade nenhuma. Acabei de regressar da casa da morte e não me restam forças.
Volto a sangrar pela boca. A multidão mantém-se silenciosa. Não regozija. O lider comunitário e
o Pastor cansam-se de golpearem-me. Os dois elevam os olhos, contemplam a multidão, e eis
que diante deles, bem perto do palco, surge a velha Laurinda Mafemane com as mulheres
integrantes do grupo coral do Centro de acolhimento. A velha e as mulheres são escoltadas por
dez Zamgbetos, as palhas ambulantes que lembram coberturas de palhotas. A multidão não
espera ordem nenhuma do líder comunitário. Ajoelha-se em respeito aos Zangbetos, pois, são a
maior autoridade terrestre. Nada é superior a eles, mesmo o Mbalame deve-lhes obediência. Um
vento forte, cortante volta a fazer-se sentir.
Estes Zangbetos lebram-me os que na primeira noite vi a circular ao pé do aposento antes
do Mbalame mandar a Huzina Matessa para cuidar de mim.
Orvalho em Chamas
205
Fernando Absalão Chaúque
Todos erguemo-nos. Mas a mim a Laurinda sinaliza que me mantenha sentado. Adiciona:
"O nosso Zangbeto disse também que passam-se muitos anos que queria dirigir-se a todos
nós os habitantes de Eyupuro, só estava à espera da oportunidade viável. Entretanto, hoje é o dia
ideal."
A multidão ainda está em silêncio. Pelo visto, é raro ter um Zangbeto a dirigir-se ao povo
e circular à luz do dia. Deve haver um assunto pertinente e importante para que isso aconteça.
Sendo assim, é sábio prestar atenção do que vaiar.
Laurinda volta a a encostar o seu ouvido no Zangbeto. Depois de alguns minutos
discursa.
"O nosso Zangbeto diz que o assunto que o levou a vir aqui hoje é o mesmo que preocupa
a nós todos: o misterioso desaparecimento dos nossos irmãos, principalmente os albinos. É
notável que Mbalame trouxe-nos aqui o Cardoso como o responsável. Quanto a isso, o Zangbeto
nada tem a contrariar mas, tem a alertar que o Mbalame transgrediu as regras locais. Julgou e
condenou um suspeito à morte sem o ter submetido ao Mhondzo."
Os outros Zangbetos rodearam o palco, as mulheres do grupo coral do centro
mantiveram-se em pé, acompanhando a tradução da Laurinda.
Polo que eu saiba como jornalista, o Mhondzo é uma bebida tradicional de fábrico
caseiro que é produzida para a identificação de feiticeiros a nível das comunidades. Esta bebida é
exclusivamente consumida em cerimónias tradicionais que são dirigidas por anciãos. A mesma é
dada aos potenciais feiticeiros a nível da comunidade e não só. Por seu turno, o suspeito fica
incosciente e fala todas as verdades da sua vida. Aliás, se ele for o verdadeiro culpado irá
confessar o crime diante de todo o povo.
"Neste sentido, segundo o nosso Zangbeto, o Carlos deve beber o Mhondzo para que se
posso apurar a pura verdade. Pois, é provável que não seja o sequestrador."
O meu pescoço doi muito devido ao tempo que levei estendido na forca. Além disso, a
corda alejara-me o pescoço e deixara uma marca na epiderme.
As declarações da Laurinda em nome do Zangbeto eram determinantes para a minha vida
e futuro de Eyupuro.
Por fim, a Laurinda Petguntou ao povo se teria algo por perguntar aos Zangbetos. Da
multidão, ninguém se pronunciou. Quem levantou a mão foi uma das companheiras da Laurinda.
Perguntou se eu era o único que devia tomar o Mhondzo.
Orvalho em Chamas
207
Fernando Absalão Chaúque
~ Às 6:00 da manhã ~
"Senhor Carlos...".
Uma diminuta voz chamou por mim; nascia do outro lado da capulana que era porta do
aposento, perpassava-a até achar abrigo nos meus tímpanos. Com a mão direita peguei o portable
Mp3 player que inerte na cabeceira e em voz alta reproduzia Redemption Song de Bob Marley,
pisei no "pause".
"Senhor Carlos, bom dia!"
Levantei-me da cama. Estiquei-me como um gato. Alguns ossos estaliram no meu corpo.
Meus olhos ardiam, sinal de que não dormira o suficiente. Na verdade, não se passavam quatro
horas de tempo desde que adormecera. Dormira tarde, claro: primeiro, quando deitava-me na
cama a imagem do Mbalame a sentenciar-me à morte atormentava-me, o meu coração acelerava-
se como uma bomba prestes a explodir. Segundo, quando conseguia adormecer via-me numa
cova profunda e os guardas do centro, munidos de pás enterravam-me vivo sem caixão algum;
num outro instante, via-me a morrer carbonizado, a Khefasse era quem regava-me com petróleo
e em seguida ateava-me fogo; devido a estes pesadelos, o sono distanciava-se de mim. Também
pensava muito na cerimónia do Mhondzo. Assustava-me a ideia de ter que ser posto a delirar. Só
consegui dormir quando coloquei o mp3 player na cabeceira a tocar o álbum In a Silent Way de
Miles Devis para me embalar.
"Bom dia, senhor Cardoso!"
"Quem é?", pergunto.
"Isso não interessa! Trago de volta os seus instrumentos."
A que instrumentos se referia?
A voz era novíssima, masculina.
Afastei a capulana e diante de mim vi um menino dos seus dez anos de idade com o
traseiro encostado no capom de um Bugatti. Por detrás do luxuoso caro vi dois Fortuners pretos,
dez homens mascarados, que por sinal eram guardacostas do miúdo. Ele desgrudou-se do carro.
Orvalho em Chamas
Sorriu ao notar que a minha atenção estava mais voltada ao Bugatti que a eles; estendeu-me a
pequenita mão em saudação. Convidei-lhe a entrar. Sentei-me na extremidade da cama. Ele
sentou-se na armchair em que Mbalame se aconcheguara quando viera oferecer-me a Huzina
Matessa.
Não havia necessidade de o menino apresentar-se, as características físicas e o carro já o
identificavam. Era Peter Ya Moto o único manda chuva da localidade e que todas as quartas
feiras despejava dinheiro nas ruas.
"Trago de volta o seu material de trabalho.", diz o filho do líder comunitário.
Um dos seus guardas entra no aposento, entrega-lhe um plástico e retira-se.
"Certo", digo eu, sem querer colocar-lhe infitas perguntas.
Do plástico, ele tira a máquina fotográfica e o gravador. Entrega-mos.
"Se não me engano, este material estava nas mãos da sua mãe, pois não?"
O menino olha para o chão. Vejo uma nuvem de vergonha assentar-se no seu rosto
redondo como o do pai.
"Na verdade, eu é que vim buscá-lo aqui no seu aposento logo que o meu pai levou-lhe à
Church Mbunya."
Ele permanece cabisbaixo como um cão vadio quando nota que o seu dono descobriu-lhe
as trapaças que arquitecta às escondidas.
Levanto-me, nervoso. Apetece-me espancar o miúdo, mas esforço-me para controlar o
animal feroz que morra em mim e às vezes me domina.
"Fizeste isso a mando de quem?," pergunto.
"Ninguém! Vim aqui vasculhar porque queria saber quem, na verdade, é o senhor. Mas,
ainda naquela noite, todo material caiu nas mãos da Khefassi. Desde já, peço-lhe perdão, senhor
Carlos."
Volto a sentar-me na cauda da cama.
"Sabes que o teu pai condenou-me à morte por enforcamento depois de ter visto essa toda
matéria confidencial lá na igreja do Pedro Paulo Pontes?"
O menino confessa que sim. E volta a implorar que o perdoe.
Ficamos quase dez minutos sem nenhum de nós articular palavra alguma. Cada um
encerrara-se dentro de si, regurgitava silêncios.
209
Fernando Absalão Chaúque
"Eu sei que és formado em jornalismo investigativo segundo o que teu editor chefe
escreveu na carta do dia nove de Dezembro do ano passado. Ora, do mesmo jeito que estás aqui a
investigar o desaparecimento dos albinos, peço que...".
Nao o deixo terminar. Com a cabeça, nego o seu pedido. Já não tenho forças para
embarcar numa outra investigação. Cansei-me desta localidade e das suas loucalidades. O que
quero é ir-me embora, sublinho.
"Por favor, senhor Carlos, ache a minha irmã pagarei qualquer dinheiro que for
necessário."
"Por mais que eu queira ajudar. Nunca negocio com crianças como tu. Além do mais, só
posso aceitar um outro serviço depois de finalizar esta missão sobre os albinos. E como é do seu
conhecimento, ainda não se sabe quem é o verdadeiro sequestrador."
"Eu não sou criança. Fiz vinte e cinco anos no mês passado. Eu sou mais velho que a
minha irmã Tristeza. Ela só tem Treze anos."
"Não tenho tempo para engolir as suas mentiras, miúdo." Levanto-me. "Desaparece do
meu aposento, já.", Ordeno.
O miúdo mantém-se sentado. Mostra-me o seu bilhete de Identidade. Vejo o ano de
nascimento. Faço as contas. Tudo indica que a idade que acaba de me dizer é verdadeira. Porém,
ele tem as características corporais de uma criança de dez anos.
Com o olhar atabalhoado, observo-lhe. Ele começa com as revelações.
Antes da Tristeza ir a Ohawa, todos acreditavam que ela era mais velha que o Peter. A
irmã, durante anos, também acreditava que fosse mais velha. Por isso, tratava-o com imenso
desrespeito. Com o passar do tempo, foi-se notando que o Peter ou Pedrito é o mais velho.
Apenas permanecia minúsculo, com a estatura e feições fisicas de um menino de poucos anos
por causa da doença congénita que tem a qual afecta o desenvolvimento corporal.
‘’Tenho uma doença chamada Nanismo Primordial.’’, ele revela.
Esta doença faz com que o tamanho corporal da pessoa seja menor em todos os estágios
da vida, começando antes do nascimento. O portador exibe um tamanho reduzido e proporcional
de todo o corpo. Os indivíduos, assim diagnosticados, são extremamente pequenos para a sua
idade, mas apresentam uma capacidade psicológica normal e adequada à sua idade cronológica.
211
Fernando Absalão Chaúque
Apesar de toda explicação e sua boa técnica de persuasão neguei o pedido de procurar a
sua irmã.
~ Às 6:30 min ~
Peter retirou-se do aposento. Contudo, antes disso rogara-me pragas e prometera que
torceria para que na cerimónia do Mhondzo, - eu - apesar de ser inocente, algo me fizesse delirar
e dissesse em público que era o verdadeiro sequestrador. Não lhe devolvi palavra alguma. Preferi
depositar a confiança na Laurinda Mafemane. Até então ela me havia demonstrado que era
íntegra. Daí, o Mhondzo que ele fora encarregada de preparar pelos Zangbetos ninguém teria a
chance de adulterá-lo. Sendo assim, tudo que fosse lá dito seria a verdade absoluta. Apesar de ser
um dos suspeitos, estava meio entusiamado. Queria também saber quem era o mandante ou o
verdadeiro sequestrador de albinos nesta localidade.
‘’Quero que saiba que a minha irmã te admira muito. O seu grande sonho é conhecer-lhe,
senhor Carlos.’’, foi a ultima coisa que Peter disse antes de me insultar e sair do aposento.
~ Às 6:45 min ~
Pousado na janela do aposento deixo que a paisagem em volta me embreague a retina.
Não é oportunidade para todos contemplar e respirar purezas como estas. É uma honra! É como
trocar confidências com Deus. Pergunto: quem é Deus? Não será a natureza que nos rodeia o
verdadeiro Deus? Não me respondam! Pois, toda afirmação categórica nasce da dúvida. Duvidar
e questionar é estar a caminho da verdade.
(Voltemos.)
O vento, silencioso, caminha dentre os arbustos, sobe, até beijar a última película das
árvores mais altas. Em contrapartida, na capital, os prédios e a poluição são o que existe em
abundância.
O céu está nublado. Nenhum raio solar consegue atravessar com forte incidência a rugosa
camada que as nuvens enlançadas criaram na barriga celestial. Apesar da presença não notável
do sol os pássaros não se espreguiçam, estampam o linguajar do voo nas coxas das alturas.
Nestes últimos meses do ano, o verão é o verbo que domina o desenrolar dos dias. Por
isso, apesar do céu estar pardo e singelo, o calor húmido atormenta a todos os habitantes deste
planeta.
Orvalho em Chamas
~ Às 7:00 min ~
"Por favor, senhor Carlos, ache a minha irmã." A voz do Peter continua a rodopiar dentro
de mim. Para esquivá-la, levanto-me da cadeira, recolho as cartas, a máquina fotográfica e o
gravador, meto-os numa das minhas pastas. Volto a ligar o rádio. Removo o flash. Faço um
tunning nas ondas da FM. Na primeira estação ouço dois homens numa conversa descontraída.
Gargalham. Deve ser um programa de comédia. Os dois conversam numa língua que é
totalmente desconhecida pelo meu repositório neurológico-lunguistico. A barreira linguística
obriga-me a vasculhar uma outra estação. Na próxima calho com uma das minhas músicas
favoritas: Dear Mama de 2 Pac Shakur. Quando esta finda segue It's a Man's World de James
Brown. Depois destas seguem-se algumas que não as conheço. Mas conseguem encantar o meu
exigente ouvido.
~ Às 10:00 min ~
O meu estômago reclama de fome. Vou à estante, vejo os mantimentos que restaram da
última vez que improvisei algo para comer. Para ser franco: nunca gostei tanto de mexer com
panelas. Faço-o por necessidade. Enfim, preparei metade de um pacote de massa esparguete e
um ovo estrelado. Comi. O rádio continuava sintonizado na mesma estação. Infelizmente, não
consegui comer toda a comida que servira, pois, de repente, lembrei das bofetadas que levei na
Church Mbunya e do cheiro nauseabundo que ali abundava. Retirei-me da mesa. Desliguei o
rádio. Fui deitar-me na cama ainda a implorar (não sei a quem) que o Mhondzo decorresse sem
sobressaltos e eu fosse declarado inocente. O inverso implicaria morte imediata sobre mim.
~ Às 10:20 min ~
213
Fernando Absalão Chaúque
"Estava em Ohawa, Patrão!", Huzina Matessa responde a minha questão. Ela está na
entrada do aposento. Trajou um vestido preto. Na cabeça patenteia-se o seu enorme chapéu de
palha.
"Posso entrar, patrão?, tenho muita coisa para partilhar consigo."
"À vontade, Huzina." Respondo com a voz grávida de curiosidade. Ela não mudou nada.
Continua linda e formosa como da primeira vez que a vi.
Estou em pé mas com a mão direita plantada no tampo da mesa. Ela tira o chapéu da
cabeça e eu a mão do tampo da mesa. Abraçamo-nos longamente, a saudade fala mais alto.
Haverá um outro sentimento entre nós?
Sento-me na cama e ela a meu lado. Encarro-a com olhos ampliados mais que luas
cheias, pressiono-a a revelar as ditas novidades.
"Sei de tudo que lhe aconteceu, e que não é um simples turista, é um jornalista."
"Hummmm!"
"Sei também da sua missão."
"Huzina, vá directo ao assunto, por favor!!.."
Ela levanta-se volta à entrada.
"Podem entrar." A quem convocava? Quero tanto saber, porém sou obrigado a manter-me
calmo. Ela volta a sentar-se na cama.
Uma velha com a pele composta apenas por rugas entra no aposento. Locomove-se como
um camaleão; pica o soalho com uma bengala preta. A velhinha é seguida por um homem
gigante com as mãos e cabeça grandíssimas. A velha senta-se na armchair. O homem mantém-se
em pé, imovel ao lado da mulher com avançadas idades.
"Ela é Tempestade e ele é Santos. Eles são meus vizinhos em Ohawa, patrão. "
Saúdo os dois com apertos de mão.
"Vieram aqui por um triste motivo.", digo intrigado.
"Sim, é uma motivo muita preocupante que nos reuna agoras!", complementa a
Tempestade.
Troco um breve olhare com a Huzina. Admiramos a desregrada fala da idosa.
"Na verdade, estamos à procura da minha esposa, ela desapareceu há duas semanas.", diz
o Santos.
"Nós decidir vir quando Huzina disser que o senhor podes nos judar."
Orvalho em Chamas
Não se passa tanto tempo desde que Peter saiu daqui insultando-me por não ter aceitado o
seu pedido e agora surge mais um pedido para cima de mim. O pior é que ninguém quer perceber
que sou um jornalista não um detective.
Levanto-me, vou a mesa, bebo um copo de água em um sorvo, do mesmo jeito que Peter
Ya Moto fez. Na pasta onde guardei o gravador, tiro o meu caderno de anotações.
"Quem é essa pessoa?", pergunto.
"Chama-se Tristeza.", respondem os três numa uníssona voz.
Anoto.
"Tristeza? De treze anos de idade?"
"Sim, tem treze anos e tem uma bebé albino. Eles desaparecer lá no maternidade de
Ohawa."
Anoto.
Fico de pensamentos turvos. A Laurinda, o Peter e agora a Tempestade e o Santos falam-
me da mesma pessoa, a Tristeza. E porque o nome dela não se cansa de cruzar os meus ouvidos?
Medito nesta questão. Depois explico-lhes que alguém chamado Peter, ou melhor Pedrito Ya
Moto esteve aqui a requisitar o mesmo serviço.
Santos levanta-se, quase atropela o teto do aposento com a cabeça. Parece que uma
mistura de alegria e nostalgia invadiu-lhe. Diz:
"Pedrito?? É o irmão da Tristeza. Onde podemos encontrá-lo?"
"Eu heide vos levar a casa dele. É filho do Mbalame, o líder comunitário."
"Afinal Tristeza é uma filho de gentes que respiras muitas dinheiro!", Tempestade
exclama enquanto levanta-se. "Vamos procurar esses pessoas dele".
"Podem ir ao centro conversar com a senhora Laurinda Mafemane, talvez possa ter algo
para declarar acerca da Tristeza." Digo.
Afinal vocês não conhcem os vossos sogros?, Huzina questiona-lhes.
Tempestade e Santos não respondem. Retiram-se do aposento. A Huzina vem abraçar-
me, mais uma vez.
"Patrão, sei que se sairá bem no Mhondzo." Diz estas palavras e depois sai, segue a
Tempestade e o Santos.
215
Fernando Absalão Chaúque
~ 11:00 ~
Vou ao banheiro.
Antes de lavar-me faço a barba. Corto-a toda. Quero que a minha verdadeira cara fique
estampada na memória de todos que hoje me virão morrer. Não sei porquê, mas uma voz diz-me
que sou o responsável pelo sequestro de albinos nesta localidade, às vezes, a mesma voz garante-
me que sou inocente.
À saída do banheiro, um gato preto cruza o meu caminho. Ameaça-me com seus olhos
multicolores. Não será isso um incurável azar?
Levo quase quinze minutos para vestir-me. É uma decisão difícil escolher o último traje
para encobrir-me o corpo nas últimas horas da minha vida. Por fim, visto calças jeans, uma
camiseta de marca Nike, calço as minhas sapatihas brancas. Aliás, todo que trajei é branco.
Sento-me à mesa, termino a comida que restara no prato enquanto um pombo branco
passeia em ziguezagues na janela do aposento. Entre o gato preto e o pombo branco, qual dos
dois o seu prenúncio cairá hoje sobre a minha cabeça?
Orvalho em Chamas
Apesar de ser o principal suspeito, fui o primeiro a chegar onde o Mhondzo decorreria. O
palco ainda estava como fora deixado no dia anterior. Subi ao seu dorso. Vi a corda que fora
usada no meu não consumado enforcamento. Ela mirou-me envergonhada por não ter
conseguido terminar a missão que lhe fora incubida. Apanhei-a, meti-a no bolso traseiro das
calsas como quem acolhe na sua casa o mais perigoso dos seus inimigos. Sentei-me no palco de
pernas cruzadas como um Buda submerso numa profunda meditação. Senti o ar a revezar-se nos
meus pulmões e o coracão a dialogar com o resto do corpo no seu inesquecível e harmónico
timbre.
Depois de alguns minutos, a populção começou a surgir. Torneou o palco. Desta vez,
ninguém trocava palavra alguma com ninguém. Isso deixou-me deveras preocupado, esperava
que todos viessem mais agressivos que no dia anterior e me espancassem até à morte antes de a
cerimónia decorrer. Entretanto, acontecia o inverso: cada um ao chegar acenava-me em
acolhedoras saudações.
Aos poucos, a multidão foi-se multiplicando até somar milhares de olhos alagados de
curiosidade de conhecer e conhecer o verdadeiro perpetrador de sequestros.
Quando faltava uma dúzia de minutos para o meio-dia, desci do palco. Posicionei-me na
parte frontal do mesmo esperando o clímax daquela reunião.
O céu continuava impetuosamente nublado. Havia chuva em iminência, em pouco tempo
as nuvens abririam as suas comportas. Mas, isso não intimidava a ninguem, por mais que caísse
granizo ou uma tempestade como a do dia anterior se repetisse ninguém dali sairia antes de se
concluir a cerimónia.
Mbalame e Khefassi chegaram albergados no mesmo carro, protegidos por cerca de dez
guardas mascarados. Em seguida, duas albinas e companheiras da Laurinda chegaram
carregando dois bidões amarelos de vinte litros cada um. Depositaram aqueles recepientes diante
de mim. Subiram ao palco e um dos guardas do Mblame entregou-lhes cinco cadeiras pretas.
Elas colocaram os assentos no palco, em fileira. Quando terminaram, chegou a Dona Laurinda
217
Fernando Absalão Chaúque
com algumas mulheres integrantes do grupo coral do Centro, a Huzina Matessa, a Tempestade e
o Santos Faztudo.
A Laurinda trajara um vestido branco, amarara um lenço também da mesma cor. Quando
a vi arrependi-me de ter escolhido roupa branca para a cerimónia. Enfim, não havia tempo
restante para voltar ao aposento e trocar. Até então, ninguém trocara palavra alguma com
ninguém. Quando era imperioso comunicar algo todos limitavam-se a usar contáveis
gesticulações.
A Dona Laurinda foi directamente subir ao palco. Convocou, em seguida, o Mbalame e a
Khefassi. Passeou o olhar pela multidão e depois apontou-me com o polegar direito. Subi ao
palco. Ele indicou-me a cadeira do meio, sentei-me, Mbalame estava à minha esquerda e a
khefassi à direita, uma cadeira manteve-se vazia pois o Pastor Pedro Paulo Pontes ainda não
chegarra.
Os guardas carregaram os bidons para o palco. Uma das mulheres do grupo coral sobe ao
palco e sob a cabeça da Laurinda coloca uma coroa metálica, dourada que reluz como puro ouro,
cinge-lhe o pescoço com um colar feito com pedras transparentes. Após isso, a Laurinda começa
a discursar. Primeiro saúda a todos e faz um breve resumo do que aconteceu no dia anterior;
depois expõe a agenda que será cumprida nos minutos que se avisinham.
Mbalame e Khefassi não eram as mesmas pessoas que nos dias passados tinham sido.
Estavam diferentes. A arrogância, hoje não se manifestava. Mbalame encolhera a cauda de um
modo inacreditável; não era mais aquela pessoa vivíssima que me recebera na praça e dissera que
sonhara com aminha chegada. A Khefassi estava mal vestida, não parecia aquela mulher que um
dia eu vira no centro trajada à executiva castigando o chão com o bico do salto alto. Éramos
todos réus à espera de beber o Mhondzo seguindo as ordens dos Zangbetos. Nada nos
diferenciava. Pontes era o único que se atrevera a não comparecer, apesar de te sido informado
que devia também beber o Mhondzo.
“Caros irmãos, antes de irmos ao ponto principal do nosso encontro de hoje, quero
convidar o grupo coral do centro ao palco para brindar-nos com um número.’’
Colocamo-nos todos em pé. As mulheres integrantes do coral subiram ao palco e
cantaram ‘’Orvalho em Chamas’’. Quando terminaram, eu ainda queria ouvir mais, porém seria
inusitado pedir que a cantassem mais uma vez.
‘’Agora, convoco os nossos altíssimos espíritos locais para avaliar o Mhondzo.’’
Orvalho em Chamas
219
Fernando Absalão Chaúque
de baixo para cima até chegar ao cérebro. Tudo gira. Nada é estável. Fecho os olhos, vejo-me a
afundar num rio de agulhas que se infiltram em mim através da boca dos poros. Deliro, a minha
boca, língua e dentes e cérebro ganham autonomia e vomitam palavras sem o meu
concentimento.
“Eu sou Carlos Cardoso, o jornalista mais famoso deste país. Menti quando disse que era
turista. Sou um jornalista investigativo. O director e editor chefe da empresa em que trabalho é
que me mandaram para Eyupuro. A minha missão é investigar o misterioso desaparecimento dos
albinos. Eu estou aqui para colher matéria que será posterioremente publicada no nosso jornal.
Essa será uma das formas de pressionar o governo a investigar o tráfico de pessoas e orgãos
humanos no nosso país principalmente nesta localidade. Não sou criminoso. Sou contra a
criminalidade. Por isso que escolhi esta carreia de jornalista investigativo para poder investigar
casos que outros jornalistas não tem coragem de os seguir porque quem os perpetra é um dos
seus familiares ou amigo próximo. Eu sou contra isso. A violação de direitos humanos, corupção
e o crime organizado são as coisas que me tiram sono nesta vida. Por isso que estou aqui em
Eyupuro. Logo que descobrir o verdadeiro sequestrador de albinos voltarei à Cidade das
Palmeiras para reportar tudo que tem acontecido aqui…”
Os meus maxilares paralisam-se. Não consigo mais pronunciar palavra alguma. Duas das
companheiras da Laurinda vêm ajudar-me a sentar-me na cadeira. A multidão rompe o siléncio,
bate palmas, grita:
‘’Inocente!’’
‘’Ele é inocente!’’
‘’Não restam dúvidas, é inocente!
‘’O Mhondzo confirma.’’
‘’Sm. O branquelo é inocente…’’
No fundo, surgem lamentações:
‘’Quase morria na forca ontem enquanto é inocente.’’
‘’Sim, já não estaria entre nós… enquanto veio apenas para nos ajudar.’’
Os efeitos do Mhondzo ainda colonizam-me o cérebro. O meu coração pulsa como uma
locomotiva. Huzina sobe ao palco com um copo de água. Bebo-a num trago. As tonturas cessam.
No estômago aumentam-se as fervuras, vomitei todo o Mhondzo que ingerira. Aos poucos volto
Orvalho em Chamas
ao estado normal. A Huzina retira-se do palco, sorrindo. Lembro-me do que ela me disse no
aposento: "Patrão, sei que se sairá bem no Mhondzo."
Também sorrio!
221
Fernando Absalão Chaúque
223
Fernando Absalão Chaúque
entregávamos como pagamento e só ficaria em casa do Faztudo por pouco tempo a ajudar-lhe
nas machambas.’’
‘’Estás a dizer que o Peter foi cúmplice nesse negócio sujo.’’
‘’Sim. Ele já estava cansado de viver com a arrogante irmã que faltava-lhe sempre com
respeito. Dizia-se ser a mais velha que ele, simplemente porque Pedrito tem o corpo
pequenininho por causa do Nanismo de que é portador.’’
Peter faz esforço para se soltar das mãos do Santos. Talvez tenciona refutar as revelações
do pai. Contudo, Santos inibe-lhe o desejo.
‘’A quanto vendeu a sua filha, excelência’’., Laurinda pergunta.
‘’Foram novecentos mil rands. Mais tarde descobri que Faztudo roubara o dinheiro no
carro de um turista sul-africano que em Ohawa lhe pedira indicações para Eyupuro. Nada mais
podia fazer. Já havia fechado o negócio com ele. Confesso diante de todos, aquele valor só deu
para construir e gastar com mulheres. Aliás, eu ia me esquecendo, metade do valor doei ao meu
partido.
‘’Doou ao partido?’’
‘’Sim.’’
‘’Qual deles?’’
‘’Esse que detém todos os poderes no país. Você acha que subi ao cargo de líder
comunitário de qualquer maneira? Não. Injectei dinheiro nos bolsos do mais alto camarada do
partido. Nada é de borla no nosso país. É por isso que niguém me pode fazer nada nesta
localidade, tenho a alta protecção dos donos do país.’’
A multidão encrespa-se de nervos. Cada pessoa começa a discursar sem norte. O que
todos agora querem ver é o Mbalame enforcado. Ontem, Mbalame cricificou-me. Agora as suas
próprias azagaias apontam-lhe o corção prontas a abocanhá-lo.
Laurinda apela o povo a acalmar-se. Apedreja o líder com mais uma questão:
‘’E os carros que Sua Excelência tem, comprou também com os duzentos mil rands.’’
‘’Não. Os carros todos pertencem a Khefassi.’’
‘’Como é que ela os adquiriu?’’
‘’Nunca lhe perguntei. Ela também nunca me disse. Mesmo o Bugatti do Peter ela é que
comprou.’’
Orvalho em Chamas
Uma gota gorda, derrete-se no meu ombro. Espande-se na brancura da minha camisete tal
e qual uma rã nervosa. As nuvens já abriram as entranhas para liberar a chuva. Curiosamente, a
multidão não se alarma com os primeiros pingos. Ainda tem muitas questões a colocar ao
Mbalame antes que o delírio provocado pelo Mhondzo finde.
‘’E as regras do centro de acolhimento… quem as alterou?’’, pergunta uma das albinas
companheiras da Laurinda.
‘’Foi a Khefassi. Ela é que alterou tudo. E depois escondeu-se por detrás de mim. Andou
a propalar que tinha sido eu estabelecer novos regimentos no centro.’’
Levanto a mão. A população olha-me, curiosa.
‘’Sobe ao palco, senhor Carlos!’’, Laurinda ordena.
Obedeço. No palco, coloco ao Mbalame a questão que a todos habitantes de Eyupuro
interessa.’’
‘’Excelência, sabe dizer quem é o sequestrador de albinos aqui em Eyupuro?’’
A populaçao bate palmas. Desço do palco. Mbalame faz uma pequena pausa antes de
responder. Depois palavreia.
‘’Não sei quem é. E eu nada tenho a ver com essa onda de criminalidade.’’
Quando termina de falar, cai. Treme. Enrola-se como trepadeira abraçando caules
lenhosos. Uma das albinas ajudantes da Laurinda sobe ao palco com um copo de água. Da-lhe de
ber. Mbalame vomita todo o Mhondzo que ingerira. Senta-se na cadeira a recuperar as forças e a
bússola do raciocínio.
Santos larga o Peter. O minúsculo homem corre ao palco, abraça o pai. Um clarão
projecta-se no céu em forma de uma teia de luz. A chuva já cai com considerável intensidade. As
gotas vão caindo com mais frequência a cada segundo dissolvido.
‘’Parece que ainda não temos o responsável pelos sequestros. O Carlos provou a sua
inocência. O Mbalame também, porém revelou-nos o seu lado escuro.’’, diz Laurinda.
Dois guardas sobem ao palco. São seguidos por duas mulheres, lindas, asseadas. Todos
estão mascarados. Os quatro posicionam-se no meio do palco. A Laurinda atrapalha-se.
Mbalame e o filho descem do palco. Dirigem-se ao carro em que jaz o corpo da Khefassi.
225
Fernando Absalão Chaúque
Os dois guardas tiram as máscaras. O povo exclama, surpreso. Nunca ninguém vira a cara
verdadeira de nenhum guarda. As mulheres mantêm-se mascaradas.
‘’Parece eu conhecer aqueles mulherzinhas.’’, Tempestade comenta com o Santos.
‘’Também parece que já as vi algures.’’ salienta ele.
Um dos guardas começa a falar sem ter pedido autorização a ninguém.
‘’Nós os quatro temos algo a confessar. Não precisamos do Mhondzo. Apenas queremos
dizer a verdade que está por detrás do problema que vem apoquentando a nossa comunidade há
anos.’’
Ele revela que eles, os dois guardas, há anos que fizem parte do grupo que sequestra
pessoas na localidade. Porém, eles são apenas responsáveis pela captura e execução dos alvos.
‘’Quem é o mandante?’’, Laurinda questiona com as mãos arqueadas na cintura, a sua
coroa despenha-se da cabeça. Ela não a apanha. Está deveras preocupada em ouvir a resposta à
sua pergunta.
O segundo guarda responde:
‘’Nós não sabemos exactamenbte quem é o responsável primário dos sequstros…’’
‘’Parem de enrolar. Digam quem é a pessoa que vos dá ordes.’’ Laurinda grita.
‘’A dona khefassi é quem nos dava ordens de capturar pessoas e executá-las dependendo
das requisições diárias.’’
‘’Requisições?’’, exclamo.
Agucei a audição para reter toda a informação na mente. Não trazia o meu gravador nem
o caderno de notas.
‘’Sim. Requisições. Diariamente recebíamos listas dos orgãos humanos que devíamos
extrair: rins, orgãos sexuais, dedos, olhos, lábios, até mesmo o próprio sangue., responde o
primeiro guarda.
Mbalame sai do carro. Algazarrado, regressa ao palco. Santos volta para perto da mãe.
‘’Estás a dizer que minha esposa é que liderava os sequestros. Tenha respeito pah, ela
está morta. Ainda nem foi enterrada.’’
‘’Apenas estamos dizendo a verdade.’’, Argumenta o primeiro guarda. E adiciona: ‘’por
exemplo, eu é que sequestrei Mazoio. O meu amigo aqui há anos atrás é que sequestrou os seus
filhos, dona Laurinda.’’
Orvalho em Chamas
‘’Sim. É verdade. Diz o outro. Nunca foi nossa vontade sequestrar e matar gente, mas a
dona Khefassi obrigava-nos. Das vezes que tentámos recusar, ela ameaçou-nos de morte. Então,
fazíamos o trabalho temendo que ela mandasse eliminar a nós.’’
‘’Seus mentirosos, a minha querida esposa nunca fez isso. Era íntegra e culta.’’
A algazarra afecta agora a todos. Muitos não querem acreditar nas revelações dos dois
guardas. Laurinda não tem mais forças para continuar a questioná-los. Pensa nos seus
desaparecidos filhos. Senta-se numa ds cdeiras, cabisbaixa.
As duas mulheres tiram as máscaras. Uma delas, imediatamente começa a falar.
A Tempestade vira-se ao filho:
‘’São aqueles dois mulheres da maternidade de Ohawa. O que fazem elas aqui?
‘’Isto está a ficar complicadíssimo.’’, Santos comenta.
‘’Tempestade, conheces aquelas duas?’’, Huzina pergunta.
‘’Sim, aqueles duas é que estavam a atender Tristeza e o minha neto na maternidade…’’
‘’Vamos ouvir o que elas têm a dizer.’’, digo.
‘’Queremos confirmar o que estes dois guardas disseram aqui. É tudo verdade. Eu
chamo-me Luisa sou enfermeira no hospital de Ohawa ela é Madalena é parteira no mesmo
hospital. Viemos da capital. Também fomos usadas pela Khefassi. Ela nos mandava roubar
crianças na maternidade. Às vezes vínhamos trabalhar com ela no Centro. Indicava-no as vítimas
e ao anoitecer vínhamos matá-los. Do centro, nós já sequestramos e matamos mais de vinte
pessoas. Tirávamos os órgãos e …
‘’O que fizeram com os orgãos?’’, questiono.
‘’Nós não sabemos aonde ela levava os orgãos. Apenas executávamos o trabalho sujo.
Ela nunca nos deu dinheiro. E sempre ameaçava-nos. Dizia que se não cumpríssemos as suas
ordens perderíamos o nosso emprego.’’, confessa a Luísa.
‘’Nós trabalhamos com ela há mais de cinco anos, mas só na semana passada soubemos o
seu nome verdadeiro. Entre nós ela sempre apresentou-se como A Boss mas gostava de ser
chamada de A Diaba’’. Diz a Madalena.
Mbalame olha para o filho. Ele surpreende-lhe:
‘’Os quatro estão a dizer a verdade. Não finja que de nada sabe, Pai.’’
‘’Não me irrita, filho.’’, Mbalame riposta.
227
Fernando Absalão Chaúque
229
Fernando Absalão Chaúque
Entrego aos meus companheiros o pedaço de papel trazido pelo gato; depois de o terem
lido, reagem:
‘’Eu vou consigo, patrão, não confio naquele Pastor…’’
‘’É verdade, nós ir contigo, não te deixar se sozinhar...’’
‘’Vamos todos juntos, não conheço o tal pastor mas esta convocatória pode ser uma
emboscada, senhor Carlos.''
Descartamos o bihete; antes de chegarmos a igreja, o papel já terá sido engolido pela
fúria da chuva. Começamos a marchar. Estou na dianteira, mas, de repemte, Huzina coloca-se a
frente de mim:
‘’Patrão ainda pode falhar o caminho…’’
Certamente. Entre nós, ela é quem vive há bastante tempo neste lugar, já deve ter o mapa
de toda localidade inseminado na sua mente. No início, trilhávamos um caminho estreito,
delimitado por eucaliptos e casuarinas gigantes que pareciam trocar acenos com entes celestiais.
Agora estamos numa rua larga. Nela, está tudo coberto de água. Os clarões nascem do céu e
reflectem-se nos olhos dos charcos.
‘’Não podemos andar do meio da rua’’, diz a velha Tempestade.
‘’Por que?’’, questiono.
É no coração da rua que o trovão deposita toda a sua ira; caminhar dali é atiçá-lo os
nervos. Pior porque está tudo alagado, em poucos minutos seriamos electrocutados. O trovão e a
água são ireconciliáveis rivais.
Seguimos a sugestão da velha. Caminhamos agora pela berma da estrada. Passados
poucos minutos, alcançamos uma frondosa mafureira. Huzina paralisa-se.
‘’Vamos descansar um pouquinho…’’
‘’Ainda falta tanto para alcançarmos a tal igreja?’’, Santos pergunta enquanto liberta a
mãe do colo.
‘’Não… apenas mais cinco minutos… e… estaremos lá.’’
Orvalho em Chamas
Um trovão desenha uma espiral no céu, descarrega-se sob um cajuerio que dista a quase
cinco metros da outra berma da estrada. A árvore perde o equilíbrio, descamba para um dos
lados, as raízes ficam expostas, nuas. O susto arrebata-nos, mas sobre o incidente, ninguém entre
nós comenta.
‘’Há duas semanas que tenho tido fortes pesadelos.’’, Santos exclama.
‘’A que se deve isso, mano?” Pergunto.
‘’Saudades da minha esposa Tristeza... e do meu filho apesar de que não fui deixado vê-
los na maternidade.’’
Ultimamente, Santos tem em seus sonhos visto um batalhão de gatos pretos a sugarem o
sangue de um recém-nascido. Em seguida, os tais gatos aumentam de volume, até
transformarem-se em leões que, famintos, perseguem a mãe do bebé. Mas nunca a alcançam,
pois ela transforma-se em corvo e dissipa-se nas infindáveis alturas deixando o filho à mercê da
improvável sorte. O que vem a significar o insistente sonho? Santos não sabe.
(Ninguem sabe!)
‘’Aqueles dois mulheres que foram despejados pedras no palco sabiam onde Tristeza
estar!’’, Tempestade exclama.
‘’Sim! Sabiam, por isso que se assustaram logo que viram o mano Santos…’’, saliento.
Huzina aproxima-se da Tempestade, questiona-lhe:
‘’Mãe Tempestade, o que fará quando encontrar a Tristeza e o seu netinho?’’
A velha lança o olhar ao cajueiro abatido pelo trovão. Mastiga alguns minutos de mudez.
‘’Vou fazer Kenguelekezi e dançar Ngombela para o meu neto. Depois disso, os dois
poderão ir ao Umbigo da Terra.’’
‘’O que é Kenguelekezi?’’, pergunto a velha.
Segundo a sua explicação: Kenguelekezi é um ritual em que a avó paterna apresenta o
seu recemém-chegado neto à primeira lua nova. Este ritual é feito nas primeiras horas da noite
em que a lua nasce cheia. Logo que ela começa a espreitar o mundo, a avó deve levar o neto,
posicionar-se num dos cantos do pátio da casa. De preferência, deve ser no canto onde a luz da
lua apresenta-se com mais insidência. Em seguida, deve elevar o netinho, apontá-lo aos quatro
cantos do mundo enquanto grita: Kenguelekezééeee. Kenguelekezééeee... Findo isto, o neto está
apresentado ao mundo. Pois, já foi visto pela lua, o astro que é o principal olho dos antepassados.
231
Fernando Absalão Chaúque
''Qual é a função dessa coisa de Kenguelekeze’’, Huzina pergunta enquanto passa a mão
direita pela cara, de cima para baixo, a eliminar a água da chuva que tenta obstruir-lhe a visão.
''Serve para espantar os maus espiritos e convocar a total protecção dos benignos
antepassados para reinar na vida do recém-nascido?''
“Ja descansamos o suficiente, temos de avançar”, Santos interfere. Em sguida carrega a
sua mãe de volta ao colo. Huzina reactiva a marcha. Caminhamos expondo-nos ao irrevogável
banho do liquido celestial. Entretanto, a velha explica que Ngombela é uma dança e rito de
recepçao ao filho primogenito; é executada por uma das avós acompanhada por outras senhoras
adultas do bairro. Todas pintam-se as caras de preto. Esculpem orgãos sexuais masculinos com
madiocas. Na execução da dança, estas mulheres dispoem-se em circuferência em redor do
recém-nascido. Dançam ao ritmo de alguns batuques ilustrando movimentos sexuais, deitam-se
no chão, em pares, uma em cima da outra, gritam, gemem como se estivessem em verdadeiro
coito. Metem o bebé debaixo das suas saias. Por fim, escondem-no na mata mais próxima de
casa. A mãe é atribuída a tarefa de procurar o filho até achá-lo.
Em suma:
‘’Ngombela é uma dança erótica, um rito que enaltece a importância da procriação na
terra.’’
Quando Tempestade termina a explanação já estamos diante da Church Mbunya.
No cimo a porta principal da igreja não vejo a cruz. Talvez terá sido removida pela
furiosa tempestade. Aproximamo-nos à face do portão. Ao lado, a figueira está tombada, as suas
raízes estão também espostas como o cajueiro que o vimos ser electrocutado por um trovão.
Santos bate a porta. Pede licença. Mas ninguém responde. Depois de tanto esperar, Huzina pede
ao Santos que empure a porta. Ela está demasiado curiosa. Quer saber o motivo do urgente
chamamento enviado a mim pelo Pastor. Santos não divaga. Posiciona-se no meio da porta.
Quando já está prestes a dar uma cabeçada à porta de modo a arrombá-la, eis que ela abre-se.
Defronte a nós, surge o mesmo gato preto que nos trouxe a carta. Com a cabeça, convoca-nos a
entrar. Seguimo-lo, estupefactos. Que tipo de gato era aquele?
A sala de orações está lotada de escuridão. Lembra-me o dia em que o Mbalame
convocara-me para com eles orar. A única luz existente é emanada pelos olhos do gato que nos
mostra o caminho.
Orvalho em Chamas
Subimos ao altar. O gato leva-nos a um outro quarto por detrás do altar. Chegados lá,
ouvimos muitas pessoas a chorar. Os quatro colamo-nos a uma das paredes, assustados. Por
longos minutos ficamos a escutar as tais pessoas a ulular escondidas na escuiridão. De repente,
uma lâmpada acende-se.
No meio do compartimente que parecia um esctitório vimos Pedro Paulo Pontes com os
pés suspensos na secretária, do outro lado vimos uma cadeira tombada. Com os olhos percorri o
homem de baixo para cima. Nas alturas, o corpo dele balouçava pendido do barrote, língua fora,
olhos maiores que a cara pálida e uma corda igual à que trago no bolso enrolada no pescoço
atada no barrote.
Nenhum de nós teceu palavras. Entretanto, ainda não estava completamente clara a razão
de me ter convocado. Seria só para ver como ficava a sua cara depois de ter encontrado a morte?
Na secretária, dentre os pés do corpo do pastor, via-se uma fracção de urina. Fora-lhe difícil e
doloroso morrer, conclui ao lembrar-me que quase também morrera enforcado.
O gato preto que nos recebeu subiu na secretária, cheirou aquele liquido, mas não o
lambeu, exibiu uma cara de desgodto, os seus pelos levantaram-se. Uma dezena de gatos pretos
subiu também à secretária. Todos choravam em coro como se fossem verdadeiras pessoas. Num
dos cantos da secretária, havia um envelope lacrado. Um dos gatos pegou-o pela boca e
entregou-mo. Na parte do destinatário vinha escrito em letras garafais o meu nome e o da
Laurinda Mafemane.
Vontade de abrir o envelope ali naquela compartimento não me faltava. Mas como no
destinatário havia também o nome da mulher escolhida pelos Zangbetos para liderar a cerimónia
do Mhondzo, os meus companheiros aconselharam-me a ir ao Centro para com ela ler o que
Pontes havia escondidodo naquele envelope.
Saímos daquele compartimento. Deixamos os gatos ainda a chorar. Faltava ali as aves
que sempre pousavam nos eus ombros durante as orações nocturnas.
233
Fernando Absalão Chaúque
18.01.1997
Se alguem esta a ler estas palavras é porque já não sou vivo. E, antes de
muito, estou partindo do mundo dos vivos por vontade própria. Isto é, deixei-me
morrer como uma ilha que cansada de ser terra implora que as águas a
abocanhem, inteira.
Deixem-me exclarecer tudo!
Nunca fui pastor. Sou um feiticeiro. Essas todas andanças em matéria de
conhecedor das divinas palavras foram apenas maneiras de esconder-me para
que ninguém de mim suspeitasse. Eu sou um anjo da maldade. Nasci feitieiro.
Morri feiticeiro. Aliás, já morri e renasci incontáveis vezes. No dia que quiser
voltar à vida voltarei. Sou um espírito ambulante. Que atravessa todas as
fronteiras que existem em todos planetas. Sou deus de mim mesmo. A qualquer
momento encarno-me em qualquer recém-nascido e volto ao mundo com uma
nova forma. Mas desta vez, acho que não regressarei. Não há nada interessante
em ser um vivo. Não voltarei. Cansei-me de prejudicar a vida dos humanos.
Prefiro permanecer invisível até á eternidade findar.
minha falsária igreja? Sabem, vocês são grandes pecadores. Pois, quem ouve as
palavras do seu pastor e acredita nelas antes de se quer avaliá-las peca pior que
quem prega mentiras.
Eu sou um feiticeiro. A única benovelencia que conheço é a de nunca
praticar o bem. A maldade é o altruísmo que pratico com total dedicação e
entrega. Comecei a Church Mbunya apenas para poder apreciar os corpos dos
meus crentes para em seguida mandá-los sequestrar. Os meus cultos eram
manobras para reconhecer as vítimas antes de matá-las.
Repito, eu é que mandei sequestrar a todos que daqui desapareceram. Eis
um dos motivos: sou um canibal. Não como nada além de carne humana ou os
seus derivados. Todos que aqui foram sequestrados desaguaram nas minhas
panelas. Inclusive os filhos da Laurinda Mafemane. Como qualquer espécie
humana. Anteontem a Khefassi trouxe-me do cativeiro o Khomachu e um outro
jovem da capital chamado Mazoio. Este foi a própria mãe que vendeu-lhe a mim.
Depois de a Khefassi e a sua equipa terem retalhado os homens e retirado os
orgãos valiosos para a venda, cozinhei e comi os restos dos dois homens. Foi um
guisado de carne humana muito delícioso. Mas, confesso, a carne de albinos é a
minha preferida. Não há nenhuma outra que a supere. Ademais, nunca bebi água
em nenhuma das vidas que vivi. O meu líquido preferido sempre será o sangue
humano. Mesmo o chá que tomo é sangue humano fervido.
Como ia dizendo, sou o mandante de sequestros aqui. O que significa que
tenho quem segue as minhas ordens para satisfazer os meus desejos. Vou aqui
revelar nome da pessoa com quem desde sempre trabalhei. Ninguém irá
acreditar.
KHEFASSI.
Sim! A esposa do Mbalame. Ela é quem sequestra as pessoas por mim. E
em troca, pago-lhe avultadas quantias de dinheiro. Acho que é com esse
dinheiro que ela compra os carros que tem. E onde eu acho tanto dinheiro? Além
de ser um canibal, sou traficante de orgãos humanos. Repiso: antes de ter os
corpos para comé-los, mando a Khefassi tirar deles os orgãos mais procurados.
235
Fernando Absalão Chaúque
Não sei como ela consegue fazer tudo que a mando. Talvez tem alguém que a
ajuda.
E mais, todos os albinos que desapareceram do Centro de Acolhimento
foram todos comidos por mim. Enterrei os seus ossos na sombra da figueira. A
Khefassi é que facilitou o processo do sequestro de todos eles.
Tenho avultadas quantias de dinheiro em cinco bancos nacionais. Todo o
dinheiro adquirí-o neste negócio de tráfico de humanos, principalmente albinos.
Porém, assim que me vou embora desta vida, os bancos poderão fazer o que
quiserem com ele. Pois, não tenho herdeiro nenhum. Mesmo se tivesse não lhe
deixaria com nenhuma quinhenta, pois – riqueza ilícita é uma eterna maldição.
Adeus Eyupuro
Ps: Peço que enterrem no telhado da minha igreja. Quero sempre usufluir
do magnífico banho solar desta terra.
***
Quando termino de ler a carta todos já estão em pé. Também levanto-me. A Laurinda e a
Tempestade abraçam-se. Choram furtivamente. Depois de instantes, Santos pronuncia-se:
“Vou agora salvar a minha esposa e o meu filho.’’
‘’Vamos todos.’’, Laurinda sublinha.
Saimos do centro em fila. No portão não havia se quer um guarda.
Caminhamos de baixo da chuva muidinha. Os trovões já se haviam calado. As mulheres
iam na dianteira. Eu e Santos íamos na cauda de todas elas. Entre as mulheres fluía uma conversa
237
Fernando Absalão Chaúque
cheia de desmedida euforia: ora riam-se da fatídica morte da família Ya Moto, ora lamentavam a
distorcida conduta do Pontes que durante décadas enganara a milhares de pessoas fingindo ser
sabedor de palavras divinas. Entretanto, todos estávamos felizes porque íamos reaver a Tristeza e
o seu filhinho.
De tanta felicidade, Santos não parava de sorrir, mesmo no ventre daquela escuridão os
seus dentes megalómanos reluziam como inpagáveis chamas.
‘’Mano Santos, qual é o nome do seu filhinho?’’, pergunto-lhe no meio da caminhada.
‘’Ainda não tem nome, senhor Carlos.’’
Oh! Lembrei-me que ela já havia relatado que o filho fora sequestrado ainda na
maternidade. Reformulei a pergunta:
“Pois… queria perguntar que nome dará ao seu filho…?’’
Santos pára. Lança o olhar às cercanias, depois para o firmamento. Abre a boca, algumas
gotículas de chuva caiem-lhe na língua. Saboreia-as.
‘’Vai-se chamar Orvalho.’’
‘’Osvaldo… hummm… é um nome lindo.’’
‘’Orvalho… Orvalho… ele vai-se chamar Orvalho, não Osvaldo, senhor Carlos.’’
‘’Um nome lindíssimo, mano’’
“Vou dar-lhe esse nome porque o orvalho simboliza a esperança, o renascer dos dias.’’
Fechei os olhos. Deixei que no meu íntimo ecoasse a inesquecível melodia da canção
‘’Orvalho em Chamas.’’
Quando abri os olhos, a Laurinda era quem estava perto de mim. Santos ia já distante.
‘’Sabe, dona Laurinda, depois de resgatarmos a Tristeza e o filho, amanhã voltarei à
capital…’’
‘’Fica mais um pouco, ilustre, ainda há muita coisa que precisas saber sobre a nossa
localidade.’’
‘’Foi muito bom estar aqui, porém preciso voltar para apresentar o relatório sobre esta
missão aos meus superiores, quem sabe, depois peço férias e venho cá divertir-me…’’
‘’Exactamente.’’, concorda a velha e adiciona… ‘’Carlos, se eu fosse o senhor escreveria
um livro sobre tudo que viveu aqui.’’
Abri os olhos subitamente como se despertasse de um sonho profundo. Era uma ideia
fabulosa que a velha me propunha. Abanei a cabeça em concordância.
Orvalho em Chamas
239
Fernando Absalão Chaúque
AGRADECIMENTOS
Orvalho em Chamas
SOBRE O AUTOR
241