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Orvalho em Chamas

Orvalho em Chamas

Romance

Fernando Absalão Chaúque


Fernando Absalão Chaúque

DEDICATÓRIA

A todos albinos e aos que já sofreram

qualquer tipo de humilhação, discriminação ou subalternização.


Orvalho em Chamas

EPÍGRAFE

Ela chegou do útero


Sou a figueira disse o húmus
o incêndio das paredes da casa

Dentro
como o vermelho da pele do cajú
a maturação olorenta
do deus em seu tropel
assoando-se

Quando o distúrbio dos ritmos


incendeia as ancas dos rios
e um brilho liquido verte dos
olhos
Ela sobe do útero e bate na Aorta

És meu
e o sangue inunda a planura rugosa
Grão a grão moldando a consistência desenhada
em figura de espanto
e melancolia

(Luís Carlos Patraquim, O deus Restante)

3
Fernando Absalão Chaúque

Agora, por cada segundo


que existo com meus eus
existem igualmente
as mais tristezas – que vivo
neste mundo inóspito
que me confina
de ceder às mais dilectas
a seiva do meu pobre galho!

(Matos Matosse, A Sombra dos Sonhos)


Orvalho em Chamas

De madrugada
os gatos leiloam as suas lágrimas
para as frutíferas pastas
do abandono.

9/11/2020
(Óscar Fanheiro, Inédito)

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Fernando Absalão Chaúque
Orvalho em Chamas

Conteúdo
DEDICATÓRIA..............................................................................................................................2

EPÍGRAFE......................................................................................................................................3

NAPWERE – ELEGIA AO DIA EM QUE NASCI.......................................................................9

TRISTEZA – UM NOME SEM LUZ...........................................................................................15

Eyupuro, 22 de novembro de 1996................................................................................................19

NAPWERE – GATOS QUE BEBEM SANGUE (1)....................................................................25

TRISTEZA – UM BRADO FULMINANTE................................................................................29

Cidade das Palmeiras, 9 de dezembro de 1996..............................................................................40

NAPWERE – A VELHA QUE REJUVENESCE.........................................................................43

TRISTEZA – UM PEDAÇO DE LUA OU UMA MANCHA NEGRA?.....................................48

Eyupuro, 13 de dezembro de 1996................................................................................................53

NAPWERE – UMBIGO DA TERRA...........................................................................................60

TRISTEZA – GATOS ILUMINANDO O ALTAR......................................................................66

Eyupuro, 15 de dezembro de 1996................................................................................................73

NAPWERE – GATOS QUE BEBEM SANGUE (2)....................................................................80

TRISTEZA – TEMPESTADE DE VOZES..................................................................................87

Eyupuro, 16 de dezembro de 1996................................................................................................93

TRISTEZA – ANTES DO BRADO FULMINANTE...................................................................97

NAPWERE – CURVADO COMO UM ARCO..........................................................................112

Cidade das Palmeiras, 20 de dezembro de 1996..........................................................................118

7
Fernando Absalão Chaúque

TRISTEZA – AVE DA DESGRAÇA.........................................................................................121

NAPWERE – UNHAGO.............................................................................................................131

Eyupuro, 27 de Dezembro de 1996.............................................................................................140

TRISTEZA – UMA NAPWERE E UM ORVALHO EM CHAMAS........................................147

Cidade das Palmeiras, 29 de Dezembro de 1996.........................................................................160

NAPWERE – GATOS QUE BEBEM SANGUE (3)..................................................................163

Eyupuro, 15 de Janeiro de 1997..................................................................................................176

NAPWERE – A BOCA DO INFERNO......................................................................................183

Eyupuro, 16 de janeiro de 1997...................................................................................................195

Eyupuro, 17 de janeiro de 1997...................................................................................................202

Eyupuro, 18 de janeiro de 1997...................................................................................................207

Eyupuro, 20 de janeiro de 1997...................................................................................................216

Eyupuro, 22 de janeiro de 1997...................................................................................................229

AGRADECIMENTOS................................................................................................................241

SOBRE O AUTOR......................................................................................................................242
Orvalho em Chamas

NAPWERE – ELEGIA AO DIA EM QUE NASCI

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Fernando Absalão Chaúque

[…]
no útero da minha mãe
eu
sorria de cólera
e ameaçava
Orientes.

(LEE-LI YANG in Meu mar de Tochas Líquidas


poemas dedicados a Duarte Galvão)
Orvalho em Chamas

Quando saí do ventre: o dia ainda circulava no tutano da terra; antes de nenhum raio se
levantar, mas já se fazia sentir um calor ensurdecedor, infernal, que açoitava as almas dos ateus e
derrubava as entranhas das virgens. O asfalto decompunha-se, ostentava sorrisos tristes.
A terra não respirava, transpirava rios de sangue negro e inundava o esqueleto do
universo. Um vulcão acelerava as placas tectónicas provocando um imprudente terramoto. O
gelo fervia. As plantas, cheias de sede, despiam-se, abocanhavam as pétalas e bebiam do próprio
pólen que, posteriormente as intoxicava a vida.
O sol ainda desbravava as ogivas do mar, porém já conseguia dispersar os teimosos
pássaros que se hasteavam ao céu, queimava-os misteriosamente, transformava-os em cinzas
incolores.
Os gatos desfilavam trajados de biquínis procurando a praia mais próxima para afogar a
avultada combustão que lhes engravidava o corpo. Os galos depenavam-se, não conseguiam
cuspir nenhum cântico matutino para receber o novo dia e a mim, o recém-nascido do dia.
Já nasceu, é um menino, a parteira entupiu os ouvidos dos presentes na maternidade.
Nasci.
Não chorei.
Todos assustaram-se, pensaram que eu estivesse morto. A parteira cortou o cordão
umbilical, escutou-me os batimentos do coração com as costas das mãos; arranhou-me a testa. Só
depois emiti um estrondoso choro. Porém, ela não deixou de comentar que nunca vira um bebé
que nascesse e não chorasse. Aquilo devia ser um sacrilégio. Ou havia em mim uma eterna
maldição.
Minha mãe rodopiava no colo de um beliche, escutava uma fusão melódica de alegria e
dores de parto que os seus timbres corporais produziam, contemplava-me como se tentasse achar
a derradeira chave para descortinar um enigma. Algo mantinha a sua atenção em mim, mas era-
me difícil tarefa descobrir.
Enquanto ela rodopiava, seu coração timbilava, veloz. Seus poros vomitavam fumo. Qual
era a causa daquela efervescência nela? Será que a minha chegada não era de se celebrar?

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Fernando Absalão Chaúque

Talvez a emoção, o calor e as dores de parto dominavam-na.


(Talvez.
Talvez.)
Minha mãe continuava a rodopiar, seu coração a timbilar e o calor furioso a imperar em
todos cantos.
Diga lá, depois de ter perdido um pedaço do seu corpo, como te sentes, mana Tristeza?,
a parteira dirigiu-se à minha mãe.
Sinto-me mais completa que antes. Uma mulher só é completa quando se casa e é muito
mais completa com filhos…
Que palavras lindas, mana Tristeza!
É isso, os nossos maridos são pedaços do nosso corpo e os filhos são pedaços das nossas
almas.
Ouvi as palavras da minha mãe, fiquei encabulado, chorei mais e mais. Era recém-
nascido, dominava apenas essa linguagem, o choro, claro.
Comecei a sentir saudades donde ficara durante meses. Deixei desfilar mais um choro
pontiagudo. Lembrei-me: no ventre elaborava discursos que o meu corpo propagava em
dissimuladas cambalhotas. Demolia silhuetas. Na placenta do escuro que me iluminava erguia
paredes pintadas a cor do musgo. Navegava em sopas de letras. Entoava cantigas desprovidas de
melodias. Seleccionava orvalhos na simetria crepuscular, fumava-os quando o sotaque do
barulho mundano me invadia a alma. No ventre aprendi a compilar vocábulos que giravam no
leito do meu peito feito hélices metamórficas regando-me o sonho de mais cedo possível vir ao
mundo.
Em pouco tempo, naquele edifício fervia um turbilhão de indivíduos querendo me ver.
Aquela multidão parecia um ventre imenso parindo colónias de barulho. No ceio, evidenciava-se
uma velha, mais velha que a idade que morava no seu corpo, caminhava ao ritmo de uma
bengala, pisava o chão como se pisasse o coração de uma alma quebradiça, abriu a boca, limpou
o cano dos seus lábios, puxou o gatilho linguístico na sua mente, disparou:
Nós querer entrar ver nossa neto, queremos lhe presentar aos espíritos… está a ouvir
você senhor fermeira?
Uma minúscula enfermeira que jazia no estômago duma esfomeada bata branca
respondeu-lhe:
Orvalho em Chamas

Ainda não podem ver o bebé, aguardem!


Nós não querer saber disso, nossos espíritos estar cansados de esperar, a velha
devolveu.
Haja respeito aqui. Por favor, sentem-se nesses bancos!
Não viemos para sentar, viemos para ver.
Cansaram-se de esperar em pé. Finalmente, sentaram-se, mas a curiosidade colonizava-
lhes a estética das faces. A ansiedade roubava-lhes o sossego, fazia com que seus olhos
piscassem como vaga-lumes desbravando abismos.
Dois minutos saciados de silêncio murcharam. A diminuta enfermeira fechou a porta
principal da maternidade, virou-se, caminhou, porta adentro, entrou no berçário, perguntou à
parteira, cochichando:
Colega, esse tal bebé está bem?
Amiga, está bem, só que é um daqueles…
Aqueles quais?
…daquela cor estranha…
…fala sério?? A mãe já o viu bem??
Sim, mas parece que ainda não se apercebeu que o filho é um napwere.
O quê?
O filho é um albin…
Não fale esse nome. Arrepia-me só ouvi-lo, mas deixa-me espreitá-lo um pouquinho.
Depois, as duas separaram-se. A enfermeira zarpou-se da maternidade, apavorada como
se em mim tivesse visto a boca da morte.
A parteira continuou a espiar-me no berço. Arrostava-me com caretas imundas. Em
seguida, usou as luvas, carregou-me com desdém, como quem é obrigado a pegar um pedaço de
sujidade.
(Afinal eu era desprezível? Um nada? Talvez não por ser franzino, mas pelo que eu sou.
Eu não sabia o que era, mas já percebia que era o que não devia ser, algo reprovável, sem
préstimo algum aos olhos do mundo).
Ela colocou-me na balança. Do bolso direito da bata, tirou uma ficha amarela; do
esquerdo tirou um termómetro, meteu-o no meu sovaco. Fez as leituras; primeiro, na balança,

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Fernando Absalão Chaúque

depois no termómetro. Olhou o relógio na parede. Escrevinhou na ficha. Devolveu-me ao berço.


Saiu. Foi-se.
Intensifiquei o choro.
Triste.
Mais triste.
A enfermeira dissera que eu era um albino. Que vem a ser isto? Questionei-me. Não
percebia este termo. Nada sabia sobre ser albino, mas já imaginava que era o que eu não devia
ser.
Orvalho em Chamas

TRISTEZA – UM NOME SEM LUZ

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Fernando Absalão Chaúque

Uma pessoa com um nome ruim já está meio enforcada.


(Provérbio Africano)
Orvalho em Chamas

Que direi?
Em estreia, sou mãe. Sinto um turbilhão indescritível de emoções percorrendo-me os
estreitos labirintos da alma. Não sei se me alegro ou me entristeço. Algo deixa-me na dúvida. Na
verdade, o problema reside em mim: a felicidade não cabe nas rédeas do meu soalho, nunca
conheci a sua fragrância.
Que dizer?
Tristeza.
Meu nome é a nascente disto tudo. A melancolia sempre enegreceu-me a trajectória.
Maldito flagelo!
Que nome é este que carrego? Culpa dos meus pais. Que pensavam eles ao atribuírem-no
a mim? Tristeza, ntla. Alguns pais, como os meus, são leões que, com as suas desajustadas
atitudes devoram os filhos à nascença.
Quero tanto alegrar-me com a chegada do meu rebento inaugural, o primeiro grão que
germinou do meu âmago, porém é-me impossível; em mim, não há nenhuma endógena matéria
favorável a isso.
Fito o meu filho. Ínfima beldade adormecida no berço. Mesmo meio distante de mim
sinto-lhe o ritmo do coração em conexão com o meu. Já sei: somos um só! Não!!!! Assim não dá.
Se não o meu filho carregará a maldição que morra em mim. Ele é apenas ele. Eu unicamente eu
(uma inexistência aos olhos do mundo). Não é melhor assim?
Que nome o darei?
Aliás, que nome o pai escolherá?
Em Ohawa, aldeia onde vivo com o meu esposo, Santos Faztudo e a minha sogra, a
mulher não fareja esse assunto. Alberga o filho, nove meses, mas quando vem ao mundo não
mais a ela pertence. As decisões do pai valem mais, são as derradeiras.
Tomara que ele dê-lhe um belo nome.
Sou submissa ao meu esposo, mas se ele quiser dar-lhe um nome depravado levantar-me-
ei (é isso que a minha mãe devia ter feito). Farei braço metálico com ele. Juro. Espere para ver
você!

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Fernando Absalão Chaúque

Mulher também já pode decidir. Não é isso que se diz na televisão e na rádio?
Mas eu farei isso? Espera aí! Confrontarei o meu marido? Um monstro? Melhor não.
Sou-lhe totalmente submissa. Fui educada para obedecer os homens. Nada mais. Não o
afrontarei.
Desculpe-me, tenho que abortar este lacrimoso monólogo. Tenho que abortar este
relâmpago de pensamentos, a parteira regressou.
Até já. Com licença.
Orvalho em Chamas

Eyupuro, 22 de novembro de 1996

Editor Chefe
Albino Fragoso Francisco Magaia

Caríssimo editor chefe. Saúdo-lhe! Quem lhe escreve é o seu colega Carlos Cardoso. Em
primeiro lugar peço-lhe desculpas por não ter dado notícias logo que aqui cheguei. Não foi um
silêncio propositado. Há dias que queria escrever-lhe, mas, aqui, não há nenhum posto de
correios nem cobertura para telefonia móvel. Todavia, na manhã de hoje chegou um postman
vindo daí da capital; fez as entregas e amanhã regressará. É por via dele que estas palavras
chegarão a si.
Ilustre, não são só facilidades de comunicação que aqui são difíceis. Nesta localidade
falta tudo. Abunda o caos. As condições de vida são demasiado precárias. A miséria flana
furibunda nas laudas deste chão. Sobreviver é o único verbo que os habitantes desta localidade se
esforçam para conjugar; porém, poucos conseguem fazê-lo com perfeição e são imediatamente
tragados pelos vácuos do amargo quotidiano. Apesar de tudo, os habitantes daqui são simpáticos
e sorridentes. Para eles os obstáculos são o melhor tempero da vida.
Caríssimo, desde a adolescência que gosto de embrenhar-me em aventuras. Já conheci
tantos lugares portentosos. Porém, Eyupuro parece-me o mais misterioso de todos. Contudo, o
que agora importa é que estou em posição, pronto a exercer a missão que me foi incumbida
(além disso, aproveitarei a minha estadia aqui para colher mais matéria para enriquecer o meu
projecto literário e as minhas pinturas).

Escrevo-lhe quando já estou prestes a completar vinte dias nesta localidade. Como já
deve ter concluído, não houve nenhum imprevisto no meu percurso rodoviário. Apenas não
esperava que a viagem levasse tanto tempo. Foram quarenta e oito horas de trajecto para alcançar
esta terra. Era quase meio-dia quando desci do machimbombo. Foi ainda no parque que o meu
encanto por este lugar brotou. Logo que desci, vi diante de mim uma alcateia de mulheres com as

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Fernando Absalão Chaúque

caras pintadas a branco. Mulheres com uma estética singular. Trajavam blusas, lenços de corres
vivas e algumas capulanas amarradas às cinturas e outras enroladas nos braços e nas pernas.
Dançavam. As capulanas abanavam-se acompanhando os movimentos rápidos dos corpos. Por
detrás delas havia uma dezena de homens (com as caras pintadas a preto) munidos de batuques,
svitende e outros instrumentos musicais tradicionais. As mulheres dançavam seguindo o ritmo
dos instrumentos, mexiam as cinturas, enroscavam-nas e moviam as mãos como se fossem luzes
de trovão acariciando o ar. A multidão rodeou-me. Fiquei sem chão. Tentei fugir. Mas não me
ocorreu nenhuma saída possível. Dentre a aglomeração surgiu um homem baixo, escuro e
barbudo como eu, apresentou-se:
"Sou Mbalame Ya Moto, o líder comunitário desta localidade".
Abraçou-me e sussurrou:
"Seja bem-vindo à Eyupuro".
Eu que pensara que ninguém sabia da minha chegada, percebi que todos habitantes daqui
há muito me esperavam, frenéticos. Quem os terá informado? Mais tarde, Mbalame disse-me que
no mês passado, num sonho, vira-me chegar. Sempre fora assim. Os espíritos ancestrais enviam-
lhe mensagens e avisos escritos nas páginas dos sonhos. Nunca falham.
As mulheres ainda bailavam. De repente, os homens dispensam os instrumentos.
Colocam-se de frente das mulheres que já recuam para cuidar das batucadas. Os homens
dispensam as camisas, dançam, têm chocalhos amarrados nos joelhos que com o bater dos pés no
chão produzem um som característico. Eles dançam, dançam, saltam, levitam como pássaros. As
mulheres espancam os batuques com todas harmonias. O corpo dos homens vibra. Dos bolsos
dos calções tiram alfinetes, facas, machadinhos, navalhas e pregos enormes, perfuram-se em
diferentes partes do corpo. Nenhum deles sangra; nenhum deles exibe ferida alguma no corpo.
Para fingir o susto que me descora a alma entro na roda, improviso alguns passos seguindo a voz
dos batuques. Tiro a máquina fotográfica para registar o momento. A multidão bate palmas,
alegre, rodeia-me. A sessão fotográfica durou quase meia hora.

A dança findou. A multidão gritou:


"Seja bem-vindo a nossa terra".
Esbocei incontáveis vénias. Em seguida, os seguranças de Mbalame Ya Moto carregaram
as minhas pastas e guiaram-me a uma casa luxuosa, na qual fui recebido pela Dona Khefassi, a
Orvalho em Chamas

esposa do Mbalame. Levou-me ao escritório do líder comunitário. Enquanto esperávamos que


ele regressasse pusemo-nos a desfiar breves fios locutórios.
"Gostei muito da dança", disse eu em forma de mendigar a simpatia da mulher. Às vezes,
a melhor maneira de arrancar condescendência de alguém é elogiando-lhe ou apenas falando
bem de algo a ele pertencente. Tem que acariciar para que possa ser acariciado – eis o eterno
truque dos gatos.
"Que bom! Mas aquilo foi uma pequenita demonstração."
"Não me diga, Dona Khefassi."
"É verdade! Há todos tipos de talentos aqui. Espere que terás lindas surpresas.’’
"Tomara!, mas que dança é aquela?", questionei.
A mulher gargalhou.
"Quer dizer que nunca tinha visto uma dança daquelas?"
"Não. Nunca vira presencialmente." Apenas via fotografias em alguns jornais lá na
capital".
"Opah, que pena! Aquilo foi uma junção de duas danças: Tufo e Maulide".
Fiquei alguns segundos em silêncio a estampar estes dois nomes na memória. Pensei em
abrir a pasta, tirar o gravador ou o meu caderno de anotações. Mas não era viável. Ela não estaria
à vontade ao notar que a sua voz era bebida pelo minúsculo aparelho ou pela minha caligrafia.
Além disso, eu tenho que me manter camuflado. Ninguém deve saber que sou um jornalista e
vim para investigar o alarmante desaparecimento de albinos nesta localidade, não é isso que
combinamos, meu caríssimo editor chefe?
"Tufo e Maulide, pois não?" Devolvi.
Ela assentiu com a cabeça.
"Mas como eles conseguem fazer aquelas coisas de andarem a se esfaquear e não morrer
nem sangrar um pouquinho?’’
"Vejo que és muito curioso, senhor Carlos Cardoso. É esse o seu nome, não é?"
Concordei com um aceno e rematei que a questão não era taxativamente uma curiosidade,
tratava-se do carácter de todos turistas, andam sempre com perguntas a transbordar-lhes pelas
bocas.

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Fernando Absalão Chaúque

"Para executar aquela dança eles ficam no mínimo quinze dias sem sexo e sem comer
nenhum tipo de peixe... os motivos e influências das abstinências são segredos que nunca são
revelados... só os dançarinos sabem os porquês."
"Percebo!", não insisti. Quando ela falou de segredos pensei que ela estivesse a
desconfiar que eu carrego um: o de não ser o turista que digo ser.
Por fim, a Khefassi abandonou-me no escritório. Tinha uma emergência por acudir, disse
ela. Mas informou-me que era imperioso que eu esperasse o Mbalame, pois ele é quem gere
directamente todo assunto relacionado ao pacato turismo local. Durante os curtos minutos que
fiquei ali sozinho aguardando a chegado do Mbalame, tirei o meu portable mp3 player da pasta
pus-me a escutar por três vezes seguidas a faixa Blues Boys Tune de B.B. king. Que maravilha de
música! Um verdadeiro masterpiece. Gosto tanto deste som que basta ouvi-lo, mesmo abatido
soergo-me, imediatamente. Acho que se um dia deixar de praticar o jornalismo investigativo irei
concentrar-me na crítica musical, na pintura e nos livros. É neles que existe a força motriz que
alimenta os pulmões da vida: a poesia.

Mbalame desceu de um reluzente Toyota Fortuner. Eis que a minha primeira inquietação
surge. A população de Eyupuro vive em condições mais que precárias, quase sem nada que a
honre, mas o líder comunitário é um rei: tem uma casa e caros luxuosos, seguranças e motoristas.
Que discordância! Talvez seja essa a função da política capitalista: perpetuar o parasitismo;
enriquecer os que estão no topo da pirâmide à custa dos subordinados.
"Peço perdão pela demora, irmão’’. Disse Mbalame quando infiltrou-se no escritório. Foi
neste exacto momento que comecei a prestar atenção arredores: havia uma secretária à qual eu
estava sentado, algumas cadeiras, uma estante com uma dúzia de portefólios.
"Está tudo bem, excelência, não se preocupe..."
"São tantos assuntos à espera de uma só cabeça. Depois de lhe ter saudado lá no parque
tive de ir ao Centro de Acolhimento de Vulneráveis e Carenciados."
"Certo. Tem cá um centro desses, não é?" Perguntei.
"Sim, foi iniciado por uma ONG estrangeira e agora ficou na nossa responsabilidade.
Digo nossa porque é uma coisa pública, mas na verdade está apenas nas minhas mãos."
"Isso é bom. Instituições como esta são importantes no mundo, devolvem a esperança e o
senso de humanidade a várias pessoas"
Orvalho em Chamas

Ele concordou baptizando suas palavras com gestos assertivos.


"E então, que te traz a Eyupuro, Cardoso?"
"Turismo... turismo, excelência.’’
"Turismo? Foi exactamente isso que sonhei. Mas nós cá não temos instâncias tão
turísticas como as que talvez gostes de visitar"
"Sei disso, e nunca gostei desses sítios luxuosos são ao mesmo tempo lixuosos. Gosto é
de conhecer novas caras. As pessoas são os melhores lugares que podemos visitar no mundo".
Mbalame concordou, mas com um ar de me estar a desconfiar. Levou um dos portefólios.
Tirou um papel ao qual chamou "ficha de cadastro". Rabiscou nele o meu nome completo.
Perguntou-me a idade e depois o tempo que planeava passar naquele lugar.
"Três meses", respondi.
‘’Três meses??’’ Exclamou ele.
"Sim, três."
"Muito bem! Foi exactamente isso que os espíritos me revelaram no sonho."

Mbalame Ya Moto guiou-me a um quarto não muito distante da sua luxuosa casa. Fiquei
desalmado ao descobrir que não havia nele porta alguma montada. Apenas uma capulana para
esconder intimidades. Questionei-lhe:
"E assim, a porta...?"
"Não se preocupe... aqui em Eyupuro dispensamos as portas. Mesmo a minha casa não
tem nenhuma porta, não notaste, irmão?’’
"Pensei que somente o escritório é que não tivesse porta. Mas por que não colocam portas
nas casas aqui?"
"São desnecessárias. Portas convocam infortúnios, maus espíritos e ladrões. Não sabes
que o proibido é que aguça implacáveis curiosidades? Assim, sem a porta nada se infiltra aqui.
Nem se quer os mosquitos. Além disso, temos os nossos Zangbetos que controlam tudo.
" Zang.... o quê? " perguntei.
"Zangbeto"
"O que é Zangbeto, excelência?
"Não se preocupe, brevemente irás descobrir."

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Fernando Absalão Chaúque

Era quase quatro da tarde. Despedi-me do líder comunitário. Agradeci-lhe a calorosa


recepção. Carreguei as minhas pastas, entrei no aposento para descansar.

Paro por aqui, meu caríssimo editor chefe. Prometo escrever-lhe frequentemente, espero
que este postman venha cá mais vezes. Diga-me, meu caro, como está a capital? Como vai o
trabalho aí no nosso jornal?

Abraços
Orvalho em Chamas

NAPWERE – GATOS QUE BEBEM SANGUE (1)

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Fernando Absalão Chaúque

Um gato assanhado torna-se num leão.


(Provérbio Italiano)
Orvalho em Chamas

O calor irava-se mais. Fervia-me o corpo como que querendo esfumar-me.


Eu chorava. Lacrimejava como nuvem parindo granizos.
Transpirava. Alagava os lençóis.
Se tivesse sabido que o mundo é uma sombra em combustão teria adiado a minha vinda,
entretanto, eu estava ansioso para cá vir, e não tive nenhuma alternativa. Quando o momento se
fez evidente, senti a minha primitiva casa agitar-se; vibrações em círculo e ligeiras contracções
musculares magnetizavam-na; as paredes liquefaziam-se. Uma substância viscosa escoria ao
exterior prenunciando a minha tão aproximada chegada. Minha mãe pranteava. Algumas vozes
compeliam-na:
Empurra! Empurra! Empurra! Força. Faz mais força.
De repente, uma força indescritível expeliu-me. E, zás, eis-me hoje aqui.

Abortei o choro, cansado.


Ninguém me dava atenção. As tripas começavam a grunhir dentro de mim. As pálpebras
pesavam-me. Adormeci. Sonhei: legiões de gatos magros, pretos, circundavam-me no berço. De
pé, moviam-se apenas com as patas de trás. Com as patas de frente, alguns empunhavam taças
vazias, outros, traziam agulhas enormes, furavam-me os calcanhares, drenavam-me o sangue,
enchiam as taças. Gritavam:
Vamos beber sangue de um bebé napwere.
Bebiam-no e evoluíam, cresciam instantaneamente até se transformarem em obesos leões.
(Aquela transformação era causada pelo meu sangue?)
Enquanto estes gatos transformados em leões ainda aguçavam os dentes e garras para me
retalhar, a voz da parteira decepou-me o sono e o sonho:
Mana Tristeza, receba o seu filho.
Despertei, assombrado. Despertei e achei-me na concha de uma capulana. A parteira (a
olhar-me com desapreço) entregou-me à minha mãe.
Posso dar de mamar ao meu bebezinho?, Tristeza perguntou.
Não há problema!

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Fernando Absalão Chaúque

Senti uma extremidade redonda invadir-me os lábios. Já sabia perfeitamente o que devia
fazer: chupar. Comecei a chupar, guloso. Quando aprendera eu a chupar? A respirar? E o girassol
onde aprende a beijar o sol? Quem ensina as nuvens a peregrinar na boca do firmamento? Já sei:
há coisas que não se ensinam a ninguém, sendo assim, nunca são aprendidas, nasce-se com elas
já plantadas no sangue.
Chupei até fatigar-me o apetite. Era a minha primeira refeição, se assim se pode dizer ou
considerar.
Dispensei o mamilo. Em seguida, senti o sangue revolutear-se, parecia que um inquieto
rio corria-me nas veias e um orvalho volátil cantarolava na persiana dos meus pulmões.
A esquelética enfermeira regressou, não se aproximou, era notável o obeso nojo que nela
eu revolvia. A parteira era também complexada, mas, tudo fazia para simular simpatias.
Mãe do bebé, há pessoas que vos querem ver lá fora, já é hora de visita, disse a
enfermeira.
Quem são essas pessoas?
Ohhhh…são muitas, mas entre elas está uma vovozinha.
Uma vovozinha de bengala?
Sim, diz que é vovó Marta Tempestade.
Ahh…é a mãe do meu marido.
Dentre segundos, Tempestade já estava no berçário caminhando ao beliche em que eu e a
minha mãe nos encontrávamos. A parteira e a enfermeira entreolharam-se, isolaram-se num
canto, atentíssimas como se esperassem que uma bomba de surpresas explodisse.
Orvalho em Chamas

TRISTEZA – UM BRADO FULMINANTE

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Fernando Absalão Chaúque

~ Voltei. Quero contar como tudo começou até eu chegar aqui na maternidade. Quero
desfiar memórias, mas contarei quase tudo no presente, pois, são episódios carimbados em mim.
A cada batimento do coração continuam a repetir-se, nítidos e frescos na minha memória como
se tudo agora acontecesse. ~
Orvalho em Chamas

O meu brado é fulminante. Veloz. Capaz de silenciar tudo. Reverbera. Rasga a


monotonia das pedras. Faz-se verbo e peregrina nos pântanos do pensamento.
Por favor… pára!, imploro.
O homem não me ouve. Ninguém me ouve.
Os cães ladram. Rodeiam a palhota. Ouço a voz do cão mais voraz, o Martelo. Está
plantado nos calcanhares da porta. É ali que ele sempre esteve. A sua oblonga língua é nascente
de um rio de saliva, os seus dentes são espadas que despedaçam os carris nos quais o tempo e a
eternidade nadam. Continuo a bradar. Quem dera que estes cães percebessem o que aqui dentro
da casota se consuma. Talvez derrubariam as paredes e viriam tirar o velho Faztudo de cima de
mim. Viriam despedaçá-lo, arrancar-lhe o falo e as devidas bolas de aço.
Maldito seja o velho!
Não faz isso, tio.
Velho? Não! A força com a qual me domina é juvenil.
Continuo a tentar livrar-me dele. Impossível. Ele não pára. Continua a me violentar, a
gemer como uma hiena esfomeada. Mas não está faminto, sacia-se quando devora-me com o seu
cobiçoso e irracional músculo central.
Minha melancia, ele sussurra.
Agora sou sua presa. Nas minhas coxas verdes ele atroa o seu rugoso mastro. Alimenta
seu selvagem apetite. Pedófilo de uma figa!
Está a doer, tio!!
Ele pisa-me com as gorduras. A sua barriga é um espectro de camadas oleosas. Debaixo
deste velho homem sou uma invisibilidade. Os paus da cama arranham-me as costas,
abocanham-me a espinha. Faztudo beija-me. Suga-me com os seus lábios carnudos, desfigurados
e continua a gemer. Inspira. Expira directamente nas minhas narinas. O cheiro de tabaco enjoa-
me. Tento sem sucesso esquivar-lhe. Ele rugita nas minhas orelhas. Às vezes mordisca-me os
lóbulos. Desliza-me a sua língua no pescoço. Isso parece dar-lhe prazer. Sinto o seu corpo vibrar.
Mas a mim isso incomoda. O que eu quero é que ele me largue, saia de cima de mim. Mordo-lhe

31
Fernando Absalão Chaúque

os carnudos lábios. Arranho-lhe o peito, arranco-lhe os pelos como a depenar uma ave sem antes
a ter mergulhado em água quente. Administro-lhe todos golpes que consigo.
Tio… Tio… Tio…, grito.
O homem cansa-se de me beijar. Agora tenho os maxilares livres, afogo os dentes em
qualquer parte corporal do velho. Mas isso nada muda. Apenas aguça-lhe o apetite de continuar a
possuir-me.
Gosto. Assim mesmo. Gosto disso, eu já sabia que eras uma taradinha e tinhas uma
colmeia escondida nesta fenda oleosa.
Está a doer muito, tio!
O velho não se importa com as minhas reclamações.
Os seus avultados quilos enterram-me nesta imóvel cama, sufocam-me. O velho Faztudo
esbraveja de prazer. Cospe palavras não inteligíveis.
Choro. Mas ele continua.
A sua cintura gira como uma esfera num declive. O velho parece ter uma máquina
movendo-lhe a cintura. As minhas pernas tremem. Em cada vaivém que ele me apregoa a dor
triplica-se. O seu erecto músculo dilata-me os lábios pequenos e ferroa-me as tripas.
O velho não se cansa. Porém agora começa a transpirar. O seu suor pousa e escorre em
mim, quente, denso. Ressuscita-me as náuseas.
Está a doer muito, tio!
Faztudo interrompe o vaivém. Tira de dentro de mim o seu pénis. Sinto a minha fenda
sexual aquecida como se nela dançasse uma lareira nutrida a mil amperes. Há um líquido que de
dentro de mim se expele. O que será? Lanço o olhar entre as minhas pernas. Nada vejo. A
escuridão é a única intransponível membrana que nesta palhota se estende. Dói-me o corpo todo.
Mas as dores no diafragma são as mais fortes. Tento erguer-me, mas o velho manda-me de volta
à inconfortável cama. Passeia-me a sua mão pelo peito. Apalpa-me os pequenitos seios. Suga-me
os prematuros mamilos. Ele regozija-se de gosto. Eu sinto os mamilos a doer-me, a racharem-se.
Fica lá bem!, ele ordena.
Volta a penetrar-me, desta vez num modo mais hardcore que antes. As minhas forças
esmiúçam-se como se os meus músculos se esvaziassem. Corvos crocitam, os cães continuam a
rodar em torno da palhota e o velho a girar o seu enorme bastão nas minhas profundezas.
Tu és uma delícia, diz-me ele.
Orvalho em Chamas

Puxa-me os cabelos. Retira o falo. Mete-me os dedos. Dilata-me os pequenos e os


grandes lábios. Um. Dois. Três dedos. Até toda sua mão engolir-se para dentro de mim como
uma pedra na barriga do mar. Dói-me. Dói-me tudo. O corpo. A alma em chamas. Dói-me o meu
mundo a desabar. Os sonhos a se perderem, desencontrados de mim. Continuo a uivar ainda que
com a voz embaçada de tonturas.
Estou a… tio, pára tio!
Faztudo tira a sua mão da minha vulva. Preparo-me para voltar a sentir o seu falo a
arrombar-me. Mas ele demora-se a tomar o próximo passo. Isso faz-me pensar que o terror
terminou. Porém, o terrorista ainda está aqui. Sinto o fedor das suas idades e barbaridades
entupir-me as narinas. Que nojo! Acho que vou vomitar. Algo corre-me no estômago, veloz,
eleva-se, percorre-me o esófago, eleva-se, veloz, eleva-se em direcção à boca. Deixo tudo vir.
Tenciono vomitar na cara do velho. Talvez assim poderá me largar. Abro a boca para lançar tudo
à cara dele, mas, no fim, só consigo libertar um rio de ar, arroto como se acabasse de ingerir
toneladas de alimentos. Mas, estou faminta. Raramente tenho tido uma boa refeição nesta casa.
Vivo de fome desde que o meu pai me entregou ao Faztudo. Às vezes a Dona Tempestade vem a
esta palhota atirar-me uma chávena de chá.
Finalmente, o velho sai de cima de mim. Posiciona-se na lateral da cama. Não o vejo. A
escuridão ainda impera aqui. Apenas sinto os movimentos da sua sombra incolor.
Levanta, Tristeza!
Um líquido continua a gotejar das minhas entranhas. Dói-me o corpo todo. As costelas
dilatam-se. O coração ribomba, agressivo, quer escapulir-se do peito.
Levanto-me. O velho desliza a sua escamosa mão pelo meu pescoço, dirige-a à minha
nuca, puxa-me pelos cabelos. Guia-me a sentar-se na extremidade da cama com os pés apoiados
ao chão.
Acho que estou a sangrar, tio!
Abre a boca, Tristeza!!
Não faço perguntas, se quer me recuso. Abro-a, sem imaginar o que se segue. O velho
enfia o seu nojento falo na minha boca. Começa a movimentá-lo. Administra-me acelerados e
incontáveis vaivéns. Ele bradeja (talvez de tanto prazer). Insulta-me. Diz-me palavras que nunca
as escreveria aqui. O corpo do velho vibra como que a ser electrocutado por uma tempestade de

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Fernando Absalão Chaúque

gelo enquanto pega-me a cabeça com as duas mãos. Puxa-me os cabelos, pressiona o seu varão
até atingir-me a faringe, sinto-lhe as veias fortificarem-se até entupirem-me a boca. Respiro com
dificuldades.
De repente o velho grita, um grito doce, grita muito alto que os cães assustam-se, emitem
latidos abrasadores. O seu falo deposita um líquido pegajoso em mim (é imenso, quase enche-me
a boca). Ele tira o seu bastão, sacode-o na minha face enquanto respira fundo como se tivesse
prendido a respiração durante séculos. Sacode a roupa. Veste-se. Apalpa-me as nádegas. Acende
o cachimbo. Fuma. Retira-se da palhota.
***
Levanto-me da cama. Procuro o fósforo. Acendo a lamparina. Com o indicador, tiro o
líquido que Faztudo depositou na minha boca: é pegajoso, esbranquiçado, meio salgado, meio
doce. Enjoa-me.
Das minhas coxas goteja sangue. Estou a sangrar de verdade!
Meu deus!
Faztudo acabou de estuprar-me. Cara sem vergonha. Ele saciou os seus desejos sexuais
em mim, uma menina de treze anos. Já não sou virgem. Já não sou a mesma de antes. Acabei de
perder algo em mim. Choro. Que farei? Quero tanto voltar a Eyupuro para rever a minha família.
Saudades da minha mãe, do meu irmão Pedrito. Não sinto saudades do meu pai porque ele é o
culpado por tudo. Se ele não me tivesse oferecido ao Faztudo não estaria aqui. Teria acendido a
lamparina para revisitar os apontamentos; não para ver este líquido transbordando da minha
boca.
Sinto que já mais voltarei a ser a mesma. Apesar de que já sabia que um dia teria de
perder a virgindade, nunca pensara que a perderia com tamanha selvageria.
Sinto intensas dores fervendo-me o corpo inteiro. Lembro-me das últimas palavras que
ouvi no rito de iniciação:
Vocês já não são crianças.
Disse-nos a rainha. Éramos um grupo de cinquenta meninas com idade não superior a dez
anos.
Já estão preparadas para serem mães e cuidarem de lares. Devem ser fortes para
enfrentar as dores da vida.
Orvalho em Chamas

Agora pergunto-me: será que estou preparada para suportar uma dor como esta? Que
farei? Estou trancada nesta palhota com um cão guarnecendo a saída.
Fecho os olhos e insulto o meu pai. Já disse, ele é culpado por isto. Ele é que me entregou
ao Faztudo quando veio a minha casa exigir o pagamento da sua bicicleta bmx que o meu irmão
Pedrito roubara e já não se lembrava onde a vendera. Não havia como a recuperar. O meu pai
não tinha dinheiro para comprar uma nova. O velho Faztudo disse que aquela bicicleta era o seu
único instrumento de trabalho; com ela sustinha a sua família, por isso, queria-a de volta.
Os dois chegaram a um acordo: o senhor Faztudo levar-me-ia a mim para colmatar a falta
que aquele meio de transporte fazia na sua casa. O meu pai sacrificou-me a mim, em vez de
quem cometera o crime.
Podes levar a menina, é a única forma que tenho de te pagar.
Ainda tentei recusar, mas foi em vão, um gafanhoto nunca mede forças com leões. Antes,
eu nunca imaginara que um dia viraria mercadoria. A minha mãe nada fez. Manteve-se calada.
Viu-me a ser levada por um estranho. Olha só, hoje ele me violentou.
***
Desperto.
É dia seguinte.
Finos fios de luz espreitam-me pela porta. Levanto-me da cama. Meu corpo é uma
colónia de agruras. Perambulo pela palhota, desnorteada. Meu corpo treme. Sinto o fedor do
velho como se ele ainda estivesse em cima de mim. Apetece-me morrer. Sou um pedaço de
inutilidade. Os meus próprios pais transformaram-me em mercadoria. E o Faztudo ontem fez de
mim o seu brinquedo sexual. Que ainda faço neste mundo?
Prefiro morrer!
***
Dentre as minhas coxas ainda jorra sangue. Quero esquecer tudo o que até aqui me
aconteceu, mas é impossível. A lembrança é mais impactante que a realidade imediata.
Rejuvenesce-se a cada piscar de olhos. Quem dera que pudesse restaurar o meu cérebro.
Bloquear as memórias. Apagá-las. Esquecer tudo. Voltar a ser um virgem papiro. Abrir novas
páginas dentro de mim. Assim conseguiria viver com os olhos postos apenas no futuro. Deixaria

35
Fernando Absalão Chaúque

de caminhar atracada ao passado. Rejuvenesceria, límpida como o primeiro orvalho que inunda o
caule de cada novo dia.
Estou farta!
Apago a lamparina com uma lagoa de lágrimas. Sento-me na cama, escuto cantigas de
desespero que a minha mente entoa. Amaldiçoo o velho Faztudo e o meu pai.
Que faço eu aqui em Ohawa enquanto os meus colegas da Escola Primária de Eyupuro
estão aprendendo maravilhas com as quais a minha professora sempre nos brinda? Será que eles
também estão numa encruzilhada igual à minha? Não. Acho que sou a única mal escolhida a
trilhar este turbulento caminho.
Tenho saudades de mim mesmo.
Sinto que já não sou aquela menina do sorriso largo; a que, segundo a minha professora,
era a mais dinâmica da turma, a que nunca atrasava, a única que sonhava em ser jornalista. Ainda
carrego esta aspiração; ela surgiu-me no dia em que lemos e interpretamos um texto sobre Carlos
Cardoso e alguns poemas da autoria deste magnífico jornalista. O meu grande sonho é um dia
conhecê-lo. Mas diga-me, conhecê-lo-ei trancado nesta palhota? Acho que não. Qual é a sua
opinião, caro leitor?
***
A velha Tempestade pede licença. Esforço-me, vou abrir a porta. Ela entra, com uma
bacia cheia de água quente. Deixa a porta aberta, o Martelo vem ali posicionar-se, ladra, duas
vezes seguidas, e mantêm-se inerte, a guarnecer-nos.
A Tempestade nota que estou nua e sangro. Mas não se assusta. Parece que ela já sabe de
tudo que aqui aconteceu. Apanha a minha roupa, coloca-a na extremidade da cama.
Abrir as pernas, ela ordena.
Abro-as.
Ela leva a minha camiseta e mergulha-a na água quente. Tira-a. Coloca-a no meu órgão
sexual. Limpa-me os grandes lábios, depois os pequenos (ambos estão inchados) e por fim o
períneo e as coxas avermelhadas. A sensação é dolorosa.
Aguenta pouco, Tristeza, ela aconselha-me.
Volta a mergulhar a camiseta na bacia. Tira e coloca-a na abertura da minha uretra,
depois na da vagina por alguns segundos. Sinto a quentura da água absorvida pela camiseta
invadir-me as lesões, pouco a pouco.
Orvalho em Chamas

É para parar as sangrações, diz ela.


Enquanto isso, tento achar a razão do velho Faztudo me ter violentado. Não a encontro.
A Tempestade retira a camiseta dentre o ângulo das minhas pernas, mergulha-a de volta à
água. A água avermelha-se de tanto sangue absorvido de mim.
Não chora Tristeza, o primeira vez é sempre assim!
Tomo coragem. Pergunto a velha as razões do Faztudo me ter violentado. Ela sorri.
Senta-se na cama. Encaro-a com os olhos alagados de lágrimas.
Ele está te preparar.
A me preparar?, devolvo.
Sim, ele está abrir caminhos para o tua esposo.
Mas eu não tenho esposo, tia.
Ela sorri.
Não conheces o tua esposo?
Nunca tive esposo.
O Santos é o tua esposo.
Santos? O teu filho?
Sim!
Arregalo os olhos, surpresa.
Ela explica que estou nesta casa como sua nora. Reitera que sou esposa do Santos. Volto
a perguntar-lhe a razão de o Faztudo me ter violentado na noite passada. Ela afirma que
estávamos a cumprir uma das tradições da família Faztudo.
A esposa do primogénito deve ser desvirginada pelo sogro. Ele deve ser o primeiro a
saboreá-la.
Por quê?, pergunto.
Isso é preparar o esposa do filho, abrir caminho para ele e bençoar a casamento para
que tudo corra bem e sejam felizes para sempre.
Digo-lhe que o meu pai me entregou ao Faztudo como pagamento da bicicleta que o
Pedrito roubou e que depois de cinco anos voltarei a Eyupuro. Ninguém me disse que aquilo era
celebração de matrimónio. Ela gargalha. Depois, revela que nunca soube que a bicicleta fora

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Fernando Absalão Chaúque

roubada. Faztudo dissera-lhe que a havia usado para me lobolar em nome de Santos e o meu pai
sabe de tudo.
Abro a boca, mas nada consigo dizer.
Fecho os olhos.
Com a palma da mão esquerda, enxugo-me as lágrimas. A Tempestade retira-se da
palhota. Afogo-me em meus pensamentos. Não sei em quem acreditar. Nos factos que presenciei
em Eyupuro ou na velha Tempestade. Ajude-me, caro leitor. Estou sem chão. O que devo fazer?
***
Os três meses que se seguem são a repetição do que aqui acabou de acontecer. Anoitece e
já sei o que se aproxima. O Faztudo vem à palhota e faz de mim o seu brinquedo sexual. Não
falha, todos os dias vem me violentar. A partir da quinta vez já não sangro. O que sangra é
apenas a minha alma. A velha Tempestade já não vem com a bacia de água quente. Vem apenas
certificar se ainda estou viva. Em seguida, eles levam-me às suas machambas. Lá, trabalho sem
direito a descanso. Penso várias vezes em fugir de volta à Eyupuro, mas é impossível. Sempre
que saio da palhota o velho Faztudo coloca-me uma venda nos olhos e só a tira quando
alcançamos o destino. Aliás, colocou-me a venda no primeiro dia quando o meu pai ofereceu-me
a ele. Por isso, não faço ideia de como poderei voltar a minha casa.
Por enquanto, durmo com o Velho Faztudo, mas é ao Santos que pertenço. Ele é meu
esposo, segundo o que a velha Tempestade me revelou.
***
Depois de três meses a ser violentado pelo Faztudo, eis que numa bela tarde ele morre
(sobre a sua morte adiante contarei). Depois do enterro do velho. Alegro-me. O diabo já se foi.
Ninguém mais me fará mal. É o fim das lágrimas. O renascer do orvalho. Espera aí! É o fim?
Não. Nem tão pouco. O azar é uma cauda difícil de decepar. É o navegante mais ousado do
mundo. É um hóspede que ninguém faz planos para o receber, mas é tão gentil e atento que visita
a todos. Pouca gente dele se escapa. E poucos o conseguem repelir. Por onde passa sempre deixa
moléculas para facilmente germinar quando quiser retornar. Sempre retorna nem que seja em
forma da morte. É o mestre das visitas clandestinas; age como um leão: ataca antes que o alvo se
prepare. Não é o fim. É o inicio de um pior tormento. Azar é sempre acompanhado de tristeza.
O velho morre e o filho substitui-lhe nos ofícios nocturnos. Antes da morte do velho
houve uma vez que os dois me estupraram diante da Tempestade (mas esse é um assunto para
Orvalho em Chamas

um outro capítulo). Ademais, o Santos é mais volumoso e bárbaro que o pai. Violenta-me
inúmeras vezes. Diferente do pai que só uma vez ao dia saciava-lhe o apetite sexual; o Santos
violenta-me até apagarem-se-me os sentidos. O Santos nunca é tomado por preguiças. Violenta-
me todos dias. É uma insaciável máquina de sexo.
***
Algumas horas antes de vir à maternidade, começo a sentir intensas dores de barriga.
Tempestade inspecciona-me as entranhas, revela-me que estou grávida e sentindo dores de parto.
Fico surpreendida. Eu nunca imaginei que estava grávida.
Sem demoras, sou levada até aqui. E dou à luz a este menininho.
Sinto muito, caro leitor, tenho que cortar este relato e descer do beliche para conversar
com a velha Tempestade. Mas quero deixar um segredo: não amo o meu esposo, nunca o amei,
nunca o amarei.
(Quem pode amar um monstro?)
Ele chama-se Santos, mas é o avesso do seu nome. É um humano desumanizado, uma
mordaz aberração, sem amor-próprio se quer para com os outros. Odeio a ele e a todos que
humilham a mulher. Ora, este problema iniciou no início de tudo. Fez-se o homem a partir do pó,
e, em seguida, fez-se a mulher a partir da costela do homem. Será que já não havia mais pó?
Repito: não amo o Santos, nunca o amei, nunca o amarei.
É o pai do meu filho, mas as sequelas, os hematomas dizem-me que ele nunca deixará de
ser um monstro.

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Fernando Absalão Chaúque

Cidade das Palmeiras, 9 de dezembro de 1996

Caro colega
Carlos Cardoso

Saudações! Tomarei por emprestado o teu modus operandi – directo ao assunto. Há dias
que a preocupação vinha sendo um vulcão aceso perturbando-me a lógica do pensamento.
Cheguei a desembocar em pesadelos nos quais via o Vaal Maseru em que embarcaste a pegar
fogo em plena marcha e todos os passageiros a serem mastigados por carnívoras chamas; às
vezes sonhava-te espostejado por leões. Tentei contactar-te pelo celular. Mas, as chamadas
desaguavam no voice mail. Por fim, percebi que a viável alternativa que me restava era reprimir
o desassossego, porque, às vezes, criava-me um bloqueio mental que, claramente, transtornava a
minha rotina laboral.
O remetente, foi a primeira coisa que quis ver quando o postman entregou-me a carta. Ao
abrir o envelope, não queria mais ver o remetente, mas sim a caligrafia. Dancei, entorpecido de
júbilo quando percebi que a carta tinha sido escrita por ti. Lembrei-me do dia em que o director
incumbiu-te a tarefa de rumarres a Eyupuro. Confesso: eu induzi-lhe a te escolher. Fi-lo incitado
pelo teu carácter e engajamento com o jornalismo investigativo.
Carlos, existem na nossa redação e na capital muitos e bons jornalistas, mas, tu, és uma
figura singular, incomparável, um ponto de referência incontornável na nossa sociedade. Não só
pelo afinco e variedade de assuntos que tens investigado, mas também pela criatividade e paixão
pela verdade. Daí que quando o director disse:
"Precisamos de alguém para ir a Eyupuro investigar o que tem acontecido lá."
Não demorei. Retorqui:
"Senhor director, nós não precisamos de ninguém; já temos alguém qualificado para essa
missão."
"E esse alguém és tu, Magaia?"
"Não. Refiro-me ao Colega Carlos.
Orvalho em Chamas

Em seguida, ele convocou-te ao gabinete.

Espero que a minha revelação não te deixe irado. Mas acho que fiz a melhor coisa ao
sugerir que o director escolhesse a ti.
Caro colega, a chegada da tua carta alegrou bastante a todo elenco do nosso jornal.
Estamos todos ansiosos para receber mais notícias em torno da sua missão. Acreditamos que as
suas descobertas impulsionarão o nosso jornal. Tu conheces a situação da nossa Cidade das
Palmeiras. Em tudo há competição. Todo jornal quer sempre ser o primeiro a divulgar qualquer
matéria polémica. Deste modo, muitos tabloides já não se preocupam com a veracidade dos
factos, apenas com as vendas; quando não há nada polémico por publicar a redação reúne-se e
ficciona notícia que possa seduzir qualquer um a comprá-los. Todavia, no nosso jornal, a verdade
é o leme. Fazemos tudo para dar voz a quem não tem onde falar. Quando alguém encontra um
propósito já nada mais importa. Daí que, sem dúvidas, és a figura mais que elegível para essa
missão.
Caríssimo colega, a nossa capital continua a mesma. E nas últimas semanas tem piorado.
Os "leões" aos poucos vão colocando mão em tudo. Querem controlar todos meios sociais, e
deste modo monitorar a informação que chega ao povo. Agora concordo contigo quando dizes
que tudo que George Orwell escreveu na obra 1984 constitui uma realidade. Não restam dúvidas,
aquela obra é o retrato verídico do mundo em que vivemos. Os leões, ou seja, os big brothers
querem controlar tudo como se este país coubesse todo nos seus bolsos (e não cabe?). Fazem de
tudo para incutir na mente de todos que: Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é
força.
Na semana passada as nossas instalações foram invadidas por um grupo da polícia. Os
cops chegaram aqui, colocaram-nos contra a parede e reviraram tudo. Disseram que alguém lhes
informara que escondemos por detrás do jornalismo e que, na verdade, somos traficantes de
drogas. O director concordou com eles:
"Sim, nós vendemos drogas".
"Então, que drogas vocês têm aqui, haxixe, heroina, valium, suruma...?" Um dos agentes
perguntou.

41
Fernando Absalão Chaúque

"Vendemos palavras, informação, verdade e lucidez. Essas são as drogas que temos
aqui."
Os polícias riram-se. Perguntaram por ti. Insistiram. Mas nós não revelamos o teu
verdadeiro paradeiro. Dissemos que estás de viagem a Portugal. Os homens retiraram-se. Apesar
de tudo, continuamos a fazer o nosso trabalho sem medo algum. Enquanto estivermos em vida
nunca deixaremos de dar asas à verdade. Se for para morrermos, morreremos de pé.

Para terminar, o director mandou-me desejar-te um bom trabalho em nome de toda


equipa. Estamos ansiosos para ter mais notícias sobre a sua estadia aí nessa localidade. Veja que
todos já queremos saber o que é essa coisa de Zangbeto que o Mbalame Ya Moto mencionou. E
mais, o que tem causado o desaparecimento e assassinato massiço de albinos aí nessa localidade?
Não se esqueça disso, meu caro, é sua missão descortinar esse mistério.

Até breve!
Orvalho em Chamas

NAPWERE – A VELHA QUE REJUVENESCE

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Fernando Absalão Chaúque
Orvalho em Chamas

Cada um tem a idade do seu coração,

da sua experiência, da sua fé.

(George Sand)

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Fernando Absalão Chaúque

A felicidade estendia-se nua na face da avó Tempestade como se fosse um pássaro de


seda nadando na córnea do mar. Um sorriso alargado e um entusiasmo singelo alisavam-lhe as
rugas.
Sentada no banco, antes de ser convocada a entrar, estivera desfiando conversas com
outros que também esperavam pela hora de visita.
Estou juvenescer eu, disse ao jovem com o qual partilhava o assento.
Madala, não nos viaja você.
A velha virou-se, afrontou o jovem:
Não se iluda com minha corpo, de velha tenho nada.
Você é uma velha… só te falta o dia de bater as botas.
Eu não morrer agora, enquanto viva mais jovem fico.
Isso é mentira, sua velha maluca.
A velha Tempestade explicou que o nascimento dos filhos reduz-nos as idades pela
metade. A chegada dos netos reduz-nos as idades em um quarto. Cada descendente renova-nos as
idades. A melhor forma de eternizar-se no mundo é tendo filhos. Eles são o fértil orvalho que dá
continuidade aos pais no asfalto do infinito. Eternizam-lhes no pulmão do cosmos. Engana-se
quem pensa que os filhos são uma sentença de morte aos pais. Talvez seja infeliz comparar o
homem com uma bananeira que o seu ciclo de vida termina quando dá frutos.
A velha também sublinhou que um viajante que por onde passa não deixa lembranças é
inútil; em prática, nunca viajou. Esteve sempre num único ponto. Não há cobra nem lagarto que
se desloque sem deixar vestígios. Mesmo os pássaros quando acariciam a púbis da abóbada
plantam memórias na retina de quem as contempla.
Para a velha Tempestade, esta parábola aplica-se também ao humano. Ele está de
passagem na terra. É um viajante. De que vale morrer sem ter deixado rebentos? Quem te irá
suceder? Além disso, nascer é como podar uma árvore. Podámo-la para que rejuvenesça. Decidir
não ter se quer um filho é negar uma das recomendações que deus deu aos homens: multiplicai-
vos; enchei a terra.
Orvalho em Chamas

Se morres sem ter deixado um sucessor obrigas os que ficam a nascer a dobrar para
preencher o vácuo que atrás deixaste.
A minha avó ainda revelou ao teimoso jovem que segundo os costumes nos quais
cresceu, todo aquele que não deixa descendentes carrega uma nódoa imprecativa. Quando morre,
antes do enterro, os anciões lavam-lhe o corpo e com carvão desenham-lhe uma cruz nas costas
antes de vestirem-no o derradeiro vestuário.
No tampo do caixão, também esboçam uma enorme cruz a carvão. O caixão não pode
sair da porta frontal da casa, mas sim da porta dos fundos. Se for uma casa só com a porta
frontal, e, se for de alvenaria deve-se improvisar uma saída na parede traseira; se for de caniço, aí
fica tudo facilitado, desembaraça-se o caniço e tira-se o caixão.
Durante a cerimónia fúnebre, é obrigatório que todos familiares derramem lágrimas. Pois:
Quem parte sem deixar filhos é uma perda, um grande desperdício.
Na tumba de quem morre nesta condição não se pode plantar flores. Porque se uma
abelha pousar numa delas e depois for aterrar numa outra em casa de um dos familiares do
falecido, transportará um invencível azar:
Ninguém mais será fértil em toda família.

Marta Tempestade estava felicíssima, pois eu era a prova de que seu filho, Santos
Faztudo não era infértil, e, consequentemente, nenhum azar estava ancorado à sua família. E ela
juntamente com o seu falecido marido rejuvenesceriam. Viveriam para todo o sempre.

Pode se aproximar vovó, aproxima mais um pouco para ver o seu netinho, a ossuda
enfermeira dirigiu-se à Tempestade com um olhar e sorriso sarcásticos.

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Fernando Absalão Chaúque

TRISTEZA – UM PEDAÇO DE LUA OU UMA MANCHA NEGRA?


Orvalho em Chamas

Tudo é incerto neste mundo hediondo,


mas não o amor de uma mãe.
(James Joyce)

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Fernando Absalão Chaúque

Nunca!
Nunca me pousara na mente que, com esta idade quase nenhuma me acharia numa
maternidade. Nunca imaginara que com treze anos teria um filho: um pedaço de lua para me
sugar os exíguos mamilos.
Nunca!
Percebo agora que o tempo é o maldito vector da vida (e de tudo), e que ninguém escolhe
a vida que quer viver, mas sim, uma determinada vida escolhe em quem morar. A isso, há quem
chama destino. Eu chamo de nada. Para mim, o nada é tudo, tudo que odeio, tudo que perante a
iminente inexistência teima em existir. O tempo é o eterno pesadelo de tudo que existe, porque
diante do seu implacável veredicto nada subsiste. O tempo é Deus. Sem o tempo, todo o tudo é
nenhuma coisa.
(Nunca pensara nisso?).
Por um instante, aos meus olhos, o meu filho é um pedaço de lua que de mim brotou. É a
luz que delimita a minha sombra na alma dos dias. Sou mãe de um indivisível pedaço de lua, o
meu corpo é o espelho da natureza.
Uma mulher é isso: um rio no qual a existência principia. As suas mãos são a matriz da
líquida ortografia dos sonhos. O seu coração é a ignição da inacabável esperança.
O choro do meu filho é o dócil cacarejar da chuva no telhado de um poema, traduz o
alegre idioma das gaivotas que enfeitam o mar; as suas magras lágrimas são uma indirecta forma
de plantar felicidade; são a trilha sonora que os peixes estampam na palma de um lago.
Meu filho é um orvalho. Uma lua orvalhada. Uma maravilha nunca antes por mim
imaginada. Tem a pele coberta de grilos entoando epopeias, tem espigas de lírios estampadas nos
poros, tem um universo de vaga-lumes roçando-lhe o peito com almofadas de luz, tem nas suas
veias o combustível que crava a minha existência na textura de tudo que é eterno. Tomara que o
que agora sinto dure mais que a eternidade.
Que sinto?
(Amor.
Amor.)
Orvalho em Chamas

Nunca sentira nada tão intenso quanto isto.


Meu filho chegou quando tudo em mim desabava. É uma pluma que me veio absorver as
lágrimas. Uma ovelha mansa com a alma banhada de pétalas. Uma relíquia que me veio ensinar a
saborear o mais elevado de todos sentimentos. Estou disposto a aprender tudo sobre este
cristalino afecto. É evidente que sobre ele nada sei. Mas já ouvi que, o amor é a força mais
potente do universo, é a capacidade de ver além de tudo que é tangível, é a lâmina que atravessa
os infortúnios, é a capacidade de viver em virtude dos outros e viver nos outros em virtude de si
próprio.
(Nunca pensara nisso?).
Ora, num outro instante, aos meus olhos, tudo muda, o meu filho é um insulto, o
contrário de tudo que é belo. Uma mancha negra. Uma cova no meu caminho. Ele carrega essa
maldição desde quando perambulava no meu ventre. O Santos e o Faztudo sujaram-no. Aliás,
sujaram-me a mim e consequentemente ao meu filho e a tudo que de mim surgirá. Será um filho
que é resultado de intensivos estupros uma bênção? Não. Nunca será uma bênção, acho eu. No
mínimo será uma irreparável infâmia, o contrário de tudo que é belo. Estou errada? Diga-me,
caro leitor, não tenha medo.
Na verdade, o desejo de ser mãe nunca me havia invadido. Eu ainda estava presa na
inocência (ainda estou?). Durante as longas noites de violência nunca pensei na concepção. O
meu desejo era sumir. Sentia nojo. Nojo do Faztudo. Nojo do Santos. Nojo do meu pai que sem
remorso me entregou a um estranho. Nojo de todo o mundo e de mim mesmo. Nojo deste destino
que em mim se albergou. Que mal fiz para merecer isto tudo? Ser usada como mercadoria e
ainda virar um objecto sexual. Ninguém merece!
Até o momento em que a velha Tempestade disse que as dores que eu sentia eram as de
parto eu nunca pensara em gravidez. Era-me algo improvável. Ainda era ingénua (ainda sou?).
Ainda não vira a primeira menstruação. Fiquei grávida na primeira brecha que o meu corpo deu.
Estou ansiosa para ver a que virá a ser minha primeira menstruação. Talvez a verei daqui há um
mês. Mas isso só será possível se o Santos não me engravidar na primeiríssima chance possível,
muito antes do óvulo descer das minhas coxas em forma de sangue.
Tenho a certeza que logo que eu voltar a casa ele me violentará; logo que eu chegar, não
me dará tempo de descansar, sarar as feridas e reaver as forças. Logo que chegar, verei o seu

51
Fernando Absalão Chaúque

enorme falo arrombando as calças. Não terei como negar. A mulher, independentemente das
circunstâncias, nunca pode negar sexo ao seu parceiro, deve sempre arranjar maneira de
satisfaze-lo. Não é isso que se tem propagado por aí?
Nesta sociedade, a mulher não chega a ter o estatuto de humano. É subalternizada. É
maltratada. É escravizada, silenciada. É vista como um animal desprovido de sangue e
sensações. Uma máquina que deve sempre obedecer as ordens dos machos. Ela carrega a culpa
de tudo que é malicioso. Dizem: ela abriu a porta da qual a morte chegou aos humanos ao aceitar
provar da fruta proibida. Ela é quem traz doenças aos lares. Quando o marido é o primeiro a
morrer, todo mundo acusa-a de o ter morto para ficar com os bens. Até quando isso tudo?

Até agora não percebo como tudo aconteceu. Será que o Santos sempre teve consciência
do que me fazia? E a Tempestade, terá logo notado que eu estava grávida e ocultara isso de
mim? Acho que sim. Foi algo que eles coordenaram.

A minha vida é um inferno. Vivo o mais puro dos infernos.


Mas qual é a causa desta desgraça em mim? Será que com esta minúscula idade já
acumulei pecados suficientes para ser castigada desta maneira?
Alguém disse que o inferno nunca é póstumo. Cada um vive o seu inferno ainda na terra.
Todos somos punidos ainda aqui. Porém, agora, atrevo-me a discordar. Todo mundo peca, mas a
mulher é quem paga pelos erros de todos. Vive todos infernos dos outros.
Tenho nojo de mim. Nojo de ser mulher neste mundo imundo. Sinto um peso incalculável
nos meus ombros.
Quero sumir daqui.
Orvalho em Chamas

Eyupuro, 13 de dezembro de 1996

Editor Chefe
Albino Fragoso Francisco Magaia

Juro que nunca vira algo idêntico, caríssimo!


Era noite madura; minha primeira em Eyupuro. Deitado de costas, meus olhos davam
lambidelas ópticas nas ondas das chapas, meus ouvidos guarneciam o exterior pescando
possíveis movimentos estranhos nas imediacões do aposento. Havia um parco zunido de
mosquitos remoinhando na face externa da copulana presa na entrada. Alguns insectos pousavam
nela. Mas não conseguiam transpassá-la adentro. Cumpria-se assim a palavra do Mbalame Ya
Moto: as portas são dispensaveis aqui. Aquilo deixou-me arroubado. Como é que um simples
pano funcionava melhor que uma porta verdadeira?
Apesar de já estar convencido que nenhum infortúnio me aconteceria, o sono continuava
a expelir-me das suas asas. Dormir é deixar o corpo dialogar com o lugar em que estamos. O
meu corpo ainda não aprendera a língua desta localidade. Por isso, era impossível que eu
embarcasse num deleitoso sono. Por mais que adormecesse, seria um sono drasticamente
descontínuo.
Era sexta-feira. Noite madura e grávida de serenidades. Diferente das sextas-feiras daí da
capital que são completamente ricas de afobação.
Diante da implacável insónia liguei o mp3 player. Pus-me a escutar For the first time de
Rod Stewart. Quando a música findou, desliguei o aparelho. Apartei-me da cama. Da minha
pasta tirei o livro "Silêncio Escancarado" de Rui Nogar. Em pé, abri-o aleatoriamente, embati-me
com o poema intitulado "Pavilhão 7 Cela 20”. Li-o quatro vezes seguidas:

À noite as almofadas
são mais duras e desconexas
o colchão regorgita
famintas maçarocas

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Fernando Absalão Chaúque

mordendo-nos o sono
e a crosta dos pensamentos.

Prestes a lê-lo pela quinta vez ouço um sibilo pontiagudo aproximando-se à entrada do
aposento. Largo o livro na cama. Aguço a audição. O silvo engorda-se, perfura-me os tímpanos.
Isso apavora-me até a última molécula do esqueleto. Talvez seja melhor gritar pedindo ajuda ao
Mbalame Ya Moto. Talvez não. Uma forte ventania peregrina lá fora. A capulana abana-se,
líquida.
Alguns versos do Stewart ecoam em mim:
For the first time
I am looking in your eyes
For the first time
I'm seeing who you are
I can't believe how much I see
When you're looking back at me...

Caríssimo, em vez de gritar decidi transpor a capulana para ver o que causava tumultos.
Enchi o peito de ar, como se fosse o homem mais corajoso do mundo. Movi a capulana. Um
acalorado pasmo congelou-me. Quase transformava-me em estátua. Juro, meu caro, nunca vira
algo idêntico àquilo em toda minha vida. Arregalei os olhos: vi três gigantes cones de palhas
(que lembravam cabanas) rodopiavam provocando o sibilo e a ventania que há pouco haviam
interrompido a minha leitura de "Pavilhão 7 Cela 20”.
Levei as mãos à cabeça. O que era aquilo? Palhas ambulantes? Impossível. Deve haver
pessoas dentro delas a se movimentar, pensei. Prestei mais atenção às palhas, notei que debaixo
delas não havia nenhuns pés dialogando com o chão. Cheguei a desconfiar que estivesse a
sonhar, tirei as mãos da cabeça, esmurrei-me algumas vezes em jeito de certificar se, na verdade,
estava acordado. Fechei os olhos (abanei bruscamente a cabeça; senti o sangue correndo nas
veias); reabri-os. As palhas continuavam embebedadas de infindáveis dinâmicas, distanciavam-
se do aposento.
Voltei à cama. Enterei-me nas mantas. Para apaziguar o coração conectei os auriculares
ao portable mp3 player, selecionei a música "knockin' on heaven’s door’’ de Bob Dylan.
Orvalho em Chamas

Infelizmente, antes que a música chegasse ao fim, o player reclamou de carga e desligou-se.
Resgatei o "Silêncio Escancarado" que já despenhara-se da cama. Li a quarta estrofe do poema
"Do Amor Pelas Pedras":

"se fores capaz de amar essa pedra


ama-a
acarinha o seu silêncio
responde ao seu mutismo
iletrado irreflexo
ama essa pedra
mesmo que te chamem louco
e que se riam na cara que hasteaste
no mastro da tua irreverência"

Não me lembro de ter feito uma outra coisa naquela noite.


Nem de ter lido outros poemas ou estrofes deste livro.
Se quer me lembro de como adormeci.

"Patrão, patrão, patrão..."


Foi a primeira coisa que ouvi na manhã so dia seguinte. Era uma deliciosa voz, daquelas
capazes de domar o mais raivoso leão. Fingi ainda estar encapsulado no sono só para poder ouvir
mais vezes aquela voz que me deixava a nadar nas nuvens.
"Patrão, acorda...Patrão"
Abri os olhos, levantei-me da cama com as mais tempestuosas bruscalidades como se
acabasse de ressurgir de um pesadelo.
"Calma... patrão, não se assuste, estou aqui para cuidar de ti."
Aquela voz era tão elegante quanto a dona: uma mulher de cabelos longos, amarelos,
olhos de luz, pele lisa como a testa do sol e lábios carnudos que me sugavam a alma em cada

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Fernando Absalão Chaúque

palavra pronunciada. Cuidar de mim? De onde veio esta mulher? Questionei-me enquanto
admirava seus atributos corporais.
"Não sou patrão, chamo-me Carlos Cardoso."
"Não se preocupe, aqui chamamos patrão a qualquer pessoa como o senhor." Ela disse
estas palavras apontando a costa da mão esquerda com o indicador direito. Percebi que se referia
à cor da pele.
"Não, não... eu sou uma pessoa igual a todo mundo", interferi.
"Você é um branco e em Eyupuro gostamos de chamar todo branco de patrão, é questão
de hábito, patrão."
Depois de ter proferido esta frase subiu à cama. Começou a massagear-me as costas. De
pestanas abaixadas saboreei seus suaves toques na minha pele. As suas mãos pareciam uma
esponja lambuzando-me a epiderme.
"Peço para dormir de barriga, patrão.
"Já disse... Carlos, não patrão."
Levantei a voz enquanto punha-me de costas.
"Está bem, patrão Carlos."
Nada mais disse. Nem que quisesse contestar, não restava brecha alguma, ela já me havia
domado com os seus toques magistosos. Sem querer, fiquei "Patrão Carlos". Ela promoveu-me
de subalterno anónimo a patrão. Sem os devidos e prévios avisos.
Depois de alguns minutos, ouvi alguém aproximar-se. A pessoa não pediu licença,
enfiou-se no aposento. Saltei da cama, surpreso. Distanciei-me da bela mulher. Vi Mbalame
diante de mim. Ele exibiu-me uma cara amarfanhada, fúnebre, sentou-se na armchair situada à
beira da cama. Eu tremia, assustado. Por segundos arrependi-me de ter deixado a mulher tocar
em mim. Aquilo era uma emboscada. Técnica para sujar-me diante do líder, deduzi. Por fim,
Mbalame sorriu, disse:
"Vejo que já estão se dando bem."
Fiquei sem palavra por dizer. Devia redimir-me ou agradecer-lhe pela visita repentina?
"Ela é que começou com tudo", improvisei.
"Sim, excelência, está tudo indo bem", disse a mulher.
Mbalame sorriu.
Orvalho em Chamas

"Não se preocupe, irmão, esta é a Huzina Matessa, será a sua companheira durante os três
meses da sua estadia aqui na nossa localidade."
"Excelência, eu não preciso de companheira, deixei uma esposa lá na capital."
Mbalame voltou a amalfanhar a testa.
"Irmão Carlos, é proibido negar a nossa oferta. Esse é o nosso gesto de hospitalidade.
Quando chega um homem de terras distantes emprestamos-lhe uma companheira. Ademais, a
Huzina vai te ajudar a perceber muita coisa aqui... será o seu dicionário e guia.’’
"É isso, patrão Carlos", ela complementa.
Olhei ao chão, carríssimo. Pensei na minha esposa aí na capital. Imaginei-lhe a saber
disto tudo. Mbalame deslocou-se até a saída do aposento. Imobilizou-se. Virou-se:
"Irmão, negar a Huzina será desperdiçar o teu dinheiro."
Ergui a cabeça.
"Que dinheiro, excelência?"
"No valor que pagou pela estadia já está inclusa a percentagem para os serviços da
Huzina."
Virei-me à Huzina. Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
Mbalame retirou-se.
Voltei à cama. Encarrei a mulher:
"Tenho uma pergunta para ti".
"Qual, patrão Carlos."
"O que são aquelas coisas que vi aqui ontem de noite?"
"Que coisas? Como eram essas tais coisas?"
"Eram cabanas de palha que passeiavam sozinhas pelo pátio."
"Ahaaa..." exclamou ela, e adicionou "são os Zangbetos"
Lembrei que Mbalame falara-me dessas coisas e prometera que brevemente as
conheceria.
"Mas o que é isso de Zangbeto?"
Discretamente, desci da cama, da minha pasta, tirei o gravador. Liguei-o. E ela já
começava a explicar:

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Fernando Absalão Chaúque

"Patrão, os Zangbetos são os tradicionais guardiões da noite aqui em Eyupuro. São


também conhecidos como ‘’espíritos da noite". Eles são uma força policial tradicional que
patrulha as ruas, as casas... etc."
"Policia? Aquelas palhas... Huzina... explica bem isso!!"
O gravador ia captando a voz da mulher. E exibia 1 min e 27 s.
"Sim, Patrão, aqui em Eyupuro não temos a polícia convencional. Os Zangbetos são a
nossa polícia, de noite circulam pela localidade para detectar ladrões e bruxas, aliás, todo tipo de
malfeitor."
Ampliei os olhos.
"Sim, patrão, saiba que aquilo não é uma simples palha, é uma palha em transe, na qual
alojou-se um espírito capaz de descortinar as verdadeiras ações e intenções de qualquer pessoa."
"Huzina, mas como é possível uma palha movimentar-se?
"Calma, patrão. Eu já disse, na palha há um espírito em movimento. Os Zangbetos são a
invocação do poder que habitou a terra muito antes do aparecimento do homem e que ainda são
uma fonte de sabedoria e continuidade infindáveis. Por isso, sabem de tudo sobre qualquer
pessoa."
"Certo, já está claro."

Desliguei o gravador. Devolvi-o à pasta. Huzina olhava-me com olhos de lava. Levantou-
se, perguntou-me se já podia pôr uma bacia de água na casa de banho. Acenei que sim. Antes de
se retirar, ajoelhou-se:
"Patrão, muito obrigado por aceitar que eu lhe faça companhia, estou mesmo a precisar
de algumas moedas e muitos turistas dificilmente me aceitam."
"De nada, Huzina! Eu nem sabia que no dinheiro que paguei estava já incluso o valor
destes serviços."
"Está bem, Patrão."
"Diga-me algo, Huzina!!"
"Sim, Patrão"
"Disseste que muitos turistas te rejeitam?"
"Sim, é verdade."
"Qual é o motivo de te rejeitarem, Huzina"
Orvalho em Chamas

Ela passeou o olhar pelas quatro paredes do aposente. Coçou-se o nariz. Mordeu os
lábios, respondeu:
"Rejeitam-me por que sou uma Napwere.’’
"Napwere?"
Ela levanta-se. Encara-me.
"Albina. Eu sou uma albina, patrão."
Pela primeira vez, observo a mulher do cabelo aos dedos dos pés. Verdade: ela é uma
albina. Que estranho, desde que despertara ainda não havia prestado tanta atenção à cor da sua
pele. Limitara-me a admirá-la.
"Não se preocupe. Eu não me importo com isso. Mas diga algo, antes de eu chegar onde
ficavas, Matessa?"
"Eu estou no centro de acolhimento vim de Ohawa até aqui."
"O que te fez sair de Ohawa até aqui?"
"É uma longa história, patrão, contarei tudo num outro momento."
"Está bem. Tenho um pedido."
"Qual, patrão?"
"Quero que me leve ao centro."
"Está bem, depois do chá, iremos para lá, patrão".

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Fernando Absalão Chaúque

NAPWERE – UMBIGO DA TERRA


Orvalho em Chamas

Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.


William Shakespeare

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Fernando Absalão Chaúque

Ainda que com uma leve prisão no ventre e intensas dores nos músculos das coxas, a
minha mãe desceu do beliche. A avó tempestade largou a bengala, tentou executar uma dança,
mas, a volumosa idade encapsulada no corpo recusou-lhe o desejo. A velha limitou-se a emitir
um breve nkulungwana.
As duas entrelaçaram os braços, sentaram-se num banco ao pé da cama e embarcaram
numa conversa descomunal.
A Minha mãe deixara-me no beliche, deitado de costas, abanando as flácidas mãozinhas
que, em movimento, lembravam asas de borboletas. Borboletas – esses pedaços de nuvens
perdidos no encéfalo da terra. Falo das borboletas porque foi a primeira coisa que naquela
conversa a avó Tempestade mencionou.
O que as borboletas têm de especial, mãe? Tristeza questionou.
Os borboletas são a nua metáfora da vida. Elas desenvolvem-se em metamorfose… é isso
que vida está sempre ensinando o homem.
Ahaaaaa…
Na mundo tudo acontece em fases.
A velha adicionou que as borboletas são a essência da sua memória ligada ao parto e ao
início da vida humana. Em Ohawa há um campo perto do rio Maithori; este campo fica sempre
repleto de girassóis e as borboletas sobrevoavam-no, dia e noite, beijam o colorido sorriso das
flores. Aquele espaço é sagrado, todos o vêem como o cerne da fecundidade e chamam-no
‘’umbigo do mundo’’ ou ‘’umbigo da terra’’. Em Ohawa acredita-se que nesse lugar moram os
espíritos matriarcas dos quais tudo que existe nasceu. Mas, em outras aldeias, como Eyupuro,
acredita-se que é no umbigo da terra onde Deus vive.
Em cada localidade há o respectivo Umbigo da Terra. Porém, em todas o Umbigo da
Terra só pode ser frequentado por mulheres e crianças.
Toda a mulher de Ohawa, salienta a velha, ao dar à luz deve ficar nesse campo até que o
coto do bebé caia e forme-se o umbigo. Durante a estadia naquele lugar, todas mães devem
apenas comer frutas, lambuzar girassóis, chupar a seiva matinal que jorra dos lírios.
Ninguém deve levar comida para lá?
Orvalho em Chamas

Não filha… nunca! Nada que tenha passado do lume e que tenha sal é ali permitido
Por quê?
Porque vai retardar a cicatrização do umbigo
A parteira e a enfermeira ainda estavam coladas a um canto do compartimento, com
leques nas mãos assoprando-lhes as caras, conversavam em vozes minúsculas como se suas
gargantas estivessem ajoelhadas no caule do silêncio. Gargalhavam a mudez. Às vezes lançavam
olhares a mim, à avó Tempestade e à minha mãe.
Tempestade acrescentou que o umbigo, essa marca de nascença, cicatriz-mãe-da-vida, é a
evidência carnal da simbiose humana, da mais meiga e materna memória esculpida no idioma do
corpo. O umbigo é um ponto no meio da barriga, mas está ligado à mente, ao íntimo e às
emoções. Na verdade, quando cada um olha para o seu umbigo, enxerga ali a luzidia memória de
um vínculo que nos remete a uma outra pessoa. Sentimos nele a saudade de uma conexão carnal,
real e absoluta, capaz de nos nutrir a alma, o corpo e o espírito.
Levar os recém-nascidos ao Umbigo da Terra é forma de apresentá-los aos espíritos
matriarcas e especialmente aos antepassados consanguíneos.
***
Tempestade lembra-se que antigamente, Faztudo não acreditava na existência dos
espíritos matriarcas. Eles haviam se estalado naquele bairro há poucos meses. Depois que a
Tempestade deu à luz ao Santos, Faztudo disse:
Meu filho não vai ficar na merda de nenhum umbigo da terra...
Ele transportou-os na sua bicicleta bmx de volta a casa. Chegados lá, o homem ainda
acrescentou:
Porra pah, não há nenhum espírito matriarca que decide a vida da minha família.

Feneceu o dia.
O bebé não sossegou, chorou até soluçar como se uma guilhotina lhe perfurasse os
pulmões e lhe retirasse a vida. Faztudo, preocupado e temendo que a morte mastigasse o
primogénito, começou a verter lágrimas, rodopiou até doer-lhe as tíbias. Proferiu as mais santas
palavras que conhecia. Tempestade, sentada na cama, várias vezes tentou amamentar o bebé,
este, recebia o mamilo, mas não o chupava, mordia-o, expelia-o e reactivava o choro. Faztudo e

63
Fernando Absalão Chaúque

Tempestade passaram a noite em claro. Alguns vizinhos vieram para ajudar. Tentaram tudo que
podiam, mas o bebé continuou embriagado por um interminável desassossego.
(A parteira e a enfermeira há muito haviam suspendido a silenciosa conversa.
Tempestade percebeu que as duas escutavam-na, clandestinamente. Pausou a narração.)
Então, como que isso terminou?, a minha mãe questionou, curiosa.
A avó Tempestade tossiu três vezes como se reouvesse forças para continuar com a
narração, ou tentasse lembrar ou inventar o fim daquela estória.
Quando a parteira e a enfermeira notaram que haviam sido descobertas pela velha
reactivaram a conversa. Mas, a sua audição mantinha-se sintonizada nas cordas vocais da velha,
como um anzol esfomeado na casa dos peixes.
Meu nora, divinha lá pouco como isso terminou…
Com as dores que estou sentindo sou incapaz de pensar.
Na madrugada do dia seguinte quando os grilos entoavam as últimas elegias, Santos
parou de chorar. Depois ouviu-se um pedido de licença na porta. Tempestade, com o bebé no
colo, abriu-a, mas ninguém estava lá. Chamou o marido para juntos testemunharem o insólito.
Quando os dois já estavam na porta, viram uma enorme nuvem se aproximando. Curiosos,
esbugalharam os olhos. A nuvem desceu. Já perto, eles notaram que aquilo não era uma nuvem
verdadeira, era uma legião de borboletas. Em seguida, ouviram uma voz que ordenava:
Desmancha o bebé, Marta Tempestade.
Ela não se atreveu a recusar. Faztudo encolheu a cauda da renitência que carregava desde
a infância. Quando Tempestade terminou de desmanchar o bebé, as borboletas abraçaram-se
como se atassem as asas, formaram um círculo. A invisível voz ouviu-se de novo:
Coloquem o bebé no meio das borboletas.
O casal seguiu a ordem. Quando o bebé já estava entre as borboletas começou a gargalhar
como se não lhes tivesse privado do sono na noite anterior.
As borboletas elevaram-se com o bebé refastelado no centro. Mais uma vez a voz ouviu-
se:
Marta Tempestade, antes do meio-dia deves ir ao Umbigo da Terra para ficar com o seu
filho.
Orvalho em Chamas

Tempestade não hesitou. Dirigiu-se ao Umbigo da Terra. Ficou lá até o umbigo de Santos
formar-se. A partir deste episódio, Faztudo nunca mais se atreveu a revogar qualquer coisa
relacionada aos espíritos matriarcas ou aos antepassados.
É por isso que sempre que eu pensa na nascimento, os borboletas também me surgem,
Tempestade acrescenta.
Assim… tenho que levar o bebé ao tal umbigo do mundo?
Depois do que contei aqui ainda perguntas isso?!!, a velha questionou, arrostando a
minha mãe com um olhar sombrio.
Sem dúvidas. Era imperioso que ela me levasse ao Umbigo da Terra; ou então o que
acontecera com o meu pai se repetiria ou algo pior aconteceria.
Era exactamente para evitar tragédias que a Tempestade fizera o esforço de vir a
maternidade muito cedo. Ademais, por razões nunca reveladas, era obrigatório que além da
parteira, os avós e o pai fossem os primeiros a ver o recém-nascido.
Eu tenho medo de ir ao umbigo da terra, a minha mãe confessou
Nada de medo, filha… Deus te dará forças.
Deus ou os antepassados?
Os antepassados são guiados por Deus e eles guiam Deus a nós…
Isso é verdade, mãe?
Chega de tantos fala-falas, quero ver o minha neto…
A enfermeira e a parteira assustaram-se, entreolharam-se. A enfermeira cochichou no
ouvido da outra.
Eheeee… é agora que a bomba vai-se arrebentar.
A parteira deixou uma questão a pairar na consciência da colega.
Será que a vovozinha vai gostar de saber que o netinho é um albino?

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Fernando Absalão Chaúque

TRISTEZA – GATOS ILUMINANDO O ALTAR


Orvalho em Chamas

A alma de Deus pode aparecer dentro dos olhos de um gato.


(Provérbio Celta)

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Fernando Absalão Chaúque

Estou confusa.
A declaração da Tempestade anuvia-me os pensamentos. Já não sei se devo rezar aos
antepassados ou a Deus; apesar de ainda ter esta diminuta idade cresci ouvindo que Estes são
entidades diversas. Distantes.
Deus vive no céu e nas igrejas e os antepassados nas nossas cabanas, árvores ou em
qualquer sítio onde nós decidimos colocá-los. Com os acedentes pode-se negociar, mas Deus não
gosta de ser questionado, com ele não se dialoga, só se recebe ordens, mandamentos. Fui
ensinada que os dois nunca se conjugam. Cada um habita o seu canto. E hoje, a Tempestade diz-
me que os antepassados são guiados por Deus e eles guiam Deus a nós.
Incrível!
Antes do meu pai usar-me como moeda de troca, sempre testemunhava rituais e ofertas
aos antepassados.
Havia um canhoeiro enorme no centro do nosso quintal. Aquela árvore tinha uma
carapaça de tartaruga atada ao caule por uma linha vermelha. Era ali que os nossos antepassados
moravam e onde íamos sempre que quiséssemos com eles dialogar; eu era a responsável pela
limpeza daquele lugar. O meu irmão tinha a obrigação de alimentar os espíritos. Quando
anoitecia, ele colocava ali comida e água. Todas manhãs, quando eu fazia limpeza encontrava as
panelas vazias. Corria e informava o meu pai. Ele respondia:
Isso significa que os nossos antepassados estão contentes, filha.
Em Eyupuro acredita-se que os mortos vivem numa outra dimensão, nas asas do além, a
função deles é proteger os familiares que ainda estão em vida: protegê-los e facilitar-lhes a sorte;
mas para que a ligação com eles não se rompesse, era necessário alimentá-los, visitar as suas
campas e perfilar as suas fotografias dentro de casa. Assim mantinha-se aceso o vínculo. Quem
não o fizesse recebia sucessivas pragas de azar e tormento. Os antepassados são como Deus –
bons, mas também dominam o ofício malicioso. Alguns ancestrais conseguem manter a cortesia
para com os seus familiares, cumprem as suas funções sossegados nas costas do além. Todavia,
alguns fazem esforço para sempre interferir na vida dos familiares.
***
Orvalho em Chamas

Em Eyupuro havia um casal vizinho: o senhor Mafemane e a senhora Laurinda. Com eles
triturávamos a vida. Os vizinhos são também família e os amigos são parentes que a vida nos
oferece, sempre dizia a minha avó.
Durante anos, este casal nunca conseguiu ter filhos, muitos culparam a Laurinda por ser
albina. Dos familiares de Mafemane aumentaram os espezinhos para com ele: Casou-se com uma
albina por que? Acabaram mulheres no mundo?
Enfim, o casal tentou tudo para a Laurinda conceber. Mas, nada. Nada resultou.
Mafemane morreu ainda sonhando ser pai.
(O seu caixão foi retirado pela porta dos fundos. Ele foi enterrado com uma cruz a carvão
nas costas e uma outra no tampo do caixão e não se plantou flores na sua tumba.)
Passados três dias, à noite ouvimos vozes deambulando em espiral na casa de Mafemane.
A minha mãe rematou:
São choros da Laurinda…a dor do luto ainda vive nela.
As vozes continuaram por sucessivas noites.
Um dia, os meus pais decidiram aproximar-se logo que as vozes começaram a se ouvir.
Quando lá chegaram, puseram-se na escuta, atenciosos.
Ela está se temperando com um homem, a minha mãe desvendou o mistério.
Como assim? Já passaram seis meses?, o meu pai questionou, preocupado.
Não. Passava-se menos de um mês que Mafemane esfumara-se da terra e ela já cambiava
gemidos com um outro homem? O meu pai ficou desterrado porque aquilo era violação às
práticas locais. Laurinda devia ter ficado seis meses, de luto, até ser submetida ao kupita-kufa, a
cerimónia de purificação da viúva. Ao se envolver com homens antes da purificação chamava
terríveis doenças para a localidade. Só de pensar nisso, os olhos do meu pai ficaram
avermelhados, um rio de suor regou-lhe o corpo todo.
Os gemidos da Laurinda intensificavam-se.
Vamos espreitar para termos certeza de que é ela, a minha mãe sugeriu.
Urgia que certificassem para que pudessem comunicar às autoridades locais com absoluta
certeza dos factos.
O meu pai foi o primeiro a espreitar através de uma pequena fresta da janela. Viu o que
viu. Ficou encabulado. Sentou-se, encurvou o pescoço como se tivesse visto o ânus do diabo.

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Fernando Absalão Chaúque

O que viste, marido?


Veja pessoalmente…
A minha mãe espreitou. Ficou do mesmo jeito que o meu pai.
Laurinda está a se temperar com Mafemane.
Sim!
A vizinha estava em coito com o seu falecido marido.
No dia seguinte a Laurinda confirmou que quando anoitecia o marido surgia no seu
quarto, em carne e osso. Primeiro pedia-lhe comida, bebida e depois exigia-lhe o sexo. A vizinha
pediu aos meus pais que não contassem nada a ninguém.
Mafemane só está a cumprir com o seu inacabado trabalho.
Depois de alguns meses a senhora Laurinda ficou grávida. Muitos não quiseram acreditar
que aquilo era uma verdadeira gravidez. Depois de viver muitos anos com o marido só concebia
após o seu desaparecimento físico?
Nove meses passaram. Ela deu parto a um menino com todas as características de
Mafemane. O mesmo repetiu-se até que ela tivesse quatro filhos que eram esculpidos durante as
visitas póstumas do marido; eram meninos que aos olhos de quem conhecera Mafemane
confirmava, sem hesitar, que eram puros descendentes do morto, apesar de todos terem nascido
albinos.
Devido a isto, tiveram de refazer o funeral de Mafemane para tirar-lhe a imprecação que
carregava por ter morrido sem filhos. Era injusto deixá-lo daquele jeito, pois, na verdade ele já
tinha filhos, ainda que tivessem vindo postumamente.
As autoridades locais foram cavar a tumba e levaram o esquife de volta à casa de
Mafemane. Iniciaram tudo do início, como se aquela cerimónia fúnebre fosse normal; como se
Mafamane tivesse morrido no dia anterior.
(Retiraram o corpo do caixão. Apagaram as cruzes que as haviam desenhado a carvão nas
costas de Mafemane e no tampo do ataúde. Desta vez, o caixão não foi tirado pela porta dos
fundos, saiu pela frontal, com os filhos exibindo sorrisos. Nesta cerimónia ninguém derramou
lágrimas, Mafemane deixara de ser um desperdício. Era motivo de orgulho e felicidade. Desta
vez foi enterrado condignamente e com direito a flores na tumba.)
Depois desta cerimónia, Mafemane parou de revisitar a esposa. Pois, já havia conseguido
realizar o seu sonho. Passou a trabalhar somente como antepassado.
Orvalho em Chamas

Laurinda plantou um embondeiro no centro da sua casa. Era ali onde ela e os filhos
passavam a conversar com Mafemane e depositavam comida e bebidas para alimentá-lo.
***
Em casa, nós acreditávamos nos antepassados, mas também frequentávamos uma igreja,
foi nela que eu sempre ouvia falar de Deus.
***
Deus é o tempo…
Lembro-me com exacta nitidez da primeira vez que ouvi a voz morna, monótona, ácida,
do pastor Pedro Paulo Pontes ecoando na igreja, rachando a noite, nadando na escuridão,
aniquilando o silêncio, convocando mochos, corvos e águias que de dia cochilavam na única
frondosa e fedorenta figueira de Eyupuru, defecando pedaços de fumo, sonhando com nuvens
epilépticas, dançando ao som de uma gorda melodia, mostrando o ânus aos ascetas esfomeados
que caminham com as tripas alinhadas na órbita das trevas. A voz do pastor convocava também
bojudos gatos pretos que se posicionavam nas extremidades do altar e iluminavam-no todo
somente com o brilho dos seus olhos.
Deus é o tempo…
Esta frase dava início ao culto. Logo que a ouvíamos certificávamos de estar nus,
desenhados no morto lustro, visíveis somente aos olhos cegos da noite. Nus, pois assim o pastor
exigia, e salientava:
Esta é a Church Mbunya, aqui rezamos nus porque só assim se fala melhor com Deus.
Deus criou-nos nus, reconhece-nos nus, o vestuário é uma barreira aos olhos do
Altíssimo. Adicionava que quando alguém morre deve ser enterrado nu, sem caixão para que se
facilite o arrebatamento e a comunicação com o criador. E mais, ali, naquele lugar não íamos só
rezar, íamos também fortificar a amizade com o altíssimo, e só devíamos fazer isso de noite,
quando Deus já está livre dos seus abundantes afazeres. E o pastor dizia toda frase:
Deus é o tempo e o tempo é vida.
Em seguida, todos mochos, corvos e águias saiam da figueira, harmónicos como que
guiados pela mesma máquina espiritual, aterravam no altar, arrogantes, piando, ora grasnando,
gritando, rodeavam o pastor. Um rio de poeira tépida esfumava-se daquele chão batido, e o
sentíamos adentrar-se-nos como gás martelado pela fúria de qualquer coisa sem compaixão. Um

71
Fernando Absalão Chaúque

cheiro a incenso engravidava-nos o olfacto, passeava por ali. Uma badalada nascia de não sei
onde comandando alguns corvos a pousarem nos ombros do pastor. Ele levantava as mãos e
dizia-nos que os mochos são o cérebro de Deus, os corvos o Seu corpo e as águias o Seu olho, ali
tínhamos a tríade sagrada. Eu, o meu irmão Pedrito, e os meus pais abanávamos a nossa nudez e
gritávamos: ‘’amém’’.
Certas vezes, o pastor Pedro Paulo Pontes dizia-nos para ir à igreja de dia. Ele aparecia
impaciente, aéreo, não convocava os mochos, os corvos, as águias nem os gatos. Não nos
obrigava a tirar as roupas. Ia logo ao discurso:
Deus só existe quando pensamos nele…
E acrescentava que o homem é quem criou Deus. O ser humano, na verdade, é o deus de
Deus. Em busca de soluções, o homem inventou Deus, para ser resposta às perguntas sem
resposta. Por isso mesmo, todas as civilizações criaram religiões, diferentes modos de reinventar
Deus e de dar sentido à vida.
Depois, mandava-nos ficar quietos durante meia hora, dizia que era para Deus poder
rezar, suplicar a nós para que nunca o esquecêssemos e no fim de tudo dizia:
Deus só existe quando pensamos nele; quando o esquecemos esvaece-se, resume-se em
nada, deixa de existir…
E nós gritávamos: ‘’AMÉM’’.
***
A verdade é uma: hoje, já sou mãe. Eu, sozinha não poderei suportar o que me virá às
costas. Além do apoio familiar (apesar de os meus pais e o meu irmão Pedrito estarem distantes),
preciso de algo sobrenatural para me fortificar. E já não sei o que é certo. Deus ou os
antepassados? Juro! Estou confusa não sei a quem dirigir as minhas preces. Não sei a quem pedir
que me fortifique nesta nova página que hoje se abre diante de mim. O que sei é que preciso de
algo para proteger a mim e ao meu filho. Tenho que ir ao Umbigo da Terra, mas depois da
declaração da minha sogra Tempestade fico sem saber se o que lá reina são os antepassados e os
espíritos matriarcas ou Deus.
Estou confusa.
Orvalho em Chamas

Eyupuro, 15 de dezembro de 1996

Editor Chefe
Albino Fragoso Francisco Magaia

Caríssimo, escrevo-lhe do Centro de Acolhimento de Vulneráveis e Carenciados; que


dista a menos de um quilómetro da residência do líder comunitário. O dia já se vai
transformando em pedaços de nuvens vermelhas. São quase cinco da tarde. Escrevo-lhe
sossegado numa gélida sombra; estou de olhos postos ao gigante murro que é fronteira entre o
centro e o mundo afora.
Estou aqui há poucas horas, mas já me pronuncio grávido de novidades. Aviso-lhe,
caríssimo, o que tenho a relatar não caberá em apenas uma carta. E mais: acho que já estou a
trilhar o caminho certo da investigação; é neste centro que descortinarei este problema que abala
a nação e tira sono a todos os habitantes do país. Espero que a minha intuição esteja certa.
A princípio, Huzina prometera que me traria aqui. Mas quando terminava de pentear o
cabelo e a barba ela me surpreendeu:
‘’Patrão, acho melhor não irmos ao centro.’’
Deixei o pente estirar-se ao chão. Sentei-me na cama com as duas mãos parqueadas na
cara.
‘’Huzina, o que se passa?’’
‘’Sinto muito, Patrão, eu não posso andar a me expor muito pelas ruas.’’
‘’Por quê?
‘’Tenho medo de ser sequestrada e morta por aí nesses matos. Agora há uma caça
estranha a nós os albinos. É por isso que eu ficava lá no centro.’’
‘’Está bem. Irei sozinho, não te preocupes’’, decidi.
Huzina desatou a rodopiar no aposento como uma fêmea inundada de dores de parto.
Com a palma da mão direita golpeava-se a testa, tão stressada como um fervoroso
redemoinho.
‘’Não vai, patrão.’’

73
Fernando Absalão Chaúque

Os seus olhos avermelharam-se, a pele ganhou uma coloração roxa. As veias quase
arrombavam-lhe a pele. Levantei-me, abracei-a. Senti o seu coração e a ofegante respiração
abrandarem. Guiei-a à cama. Os seus olhos reaveram a coloração normal. Em fim, acalmou-se.
‘’É proibida a entrada de estranhos no centro, patrão.’’
‘’Isso é um absurdo! Como é que num centro público há tantas restrições?’’
‘’São as novas regras do Mbalame Ya Moto’’
‘’Novas?’’
Sim. Ela confirmou. Antigamente quando o centro ainda estava nas mãos dos brancos
qualquer um podia visitá-lo. Logo que os estrangeiros deixaram o centro nas mãos do Mbalame
as regras foram alteradas. Ele construiu um murro gigante e colocou guardas por todo o lado.
Quando anoitece há os zangbetos também, a vigiar toda localidade.
‘’Agora, ninguém sai nem entra ali de qualquer maneira, patrão.’’
As revelações da Huzina atiçaram-me as curiosidades. Daí que decidi ir ao centro nem
que tivesse de enfrentar uma legião de antagonistas. Caríssimo, não me quero precipitar a tecer
afirmações categóricas, mas acho que a mudança de regras no centro é um indício de que algo
está errado. Tenho em mente várias hipóteses, mas é prematuro as revelar.
‘’Patrão, não vai, aqueles guardas são impiedosos, ainda te podem balear.’’
‘’Huzina, estou pronto a enfrentar qualquer coisa, vou já ao centro.’’ Ignorei os conselhos
da mulher.
Calcei os sapatos. Terminei de pentear a barba. Vesti a minha balalaica e nela escondi o
gravador e o meu minúsculo caderno de notas. Não levei a máquina fotográfica. Encarei a
Huzina. Ela mexia negativamente a cabeça enquanto lágrimas roçavam-lhe a face. Saí do
aposento, atirei os olhos aonde na noite passada vira Zangbetos. Caminhei até às imediações da
casa do Mbalame Ya Moto. Parei algures a observar a sua megalómana residência.
Depois reactivei a caminhada até sobressair numa enorme rua.

Subitamente, ouço sirenes germinando algures afrente de mim. Abandono a rua.


Posiciono-me na berma. Arredores, surgem riachos de gente que de imediato perfila-se nas
bermas. As sirenes aproximam-se; nascem de um carro da polícia que está na dianteira de uma
caravana. A multidão começa a bater palmas.
Uma mão apalpa-me o ombro direito.
Orvalho em Chamas

Viro-me. Vejo alguém com todo o corpo coberto de vestuário preto. Apenas os seus olhos
estão expostos. Na cabeça traz um enorme chapéu de palha. É a Huzina Matessa.
‘’Patrão, bate palmas também.’’ diz ela oferecendo-me seu chapéu de palha com abas
longas.
‘’Bater palmas para quem?’’
‘’Patrão, isso não interessa, faça o que digo se ainda quer viver.’’
O carro com as sirenes em chamas vinha a uma altíssima velocidade. O resto da caravana
seguia-o tão colado a ele que todos pareciam um único corpo.
Pouso o chapéu na cabeça.
‘’Bate palmas, prometo que lhe levarei ao centro, patrão.”
(Esta foi uma afirmação tentadora, mas convincente.)
Ainda queria dizer a Huzina que não gostava de ser ameaçado e que se me estivesse a
enganar os seus serviços seriam imediatamente dispensados. Mas não deu tempo. A caravana já
estava perto.
Começo a bater palmas seguindo o ritmo dos outros. Presto atenção à caravana. No meio
dela vejo um Bugatti amarelo. Dos seus vidros fumados alguém derrama avultadas quantias de
dinheiro. A multidão acorre a apanhar as notas enquanto grita felicidades. Eu e Huzina somos os
únicos que se abstêm da azáfama. A caravana vai passando e daqueles vidros continua a marejar
dinheiro. Na multidão, cada um albergava o dinheiro onde quer que fosse possível (bolsos,
cestos, bacias; outros rasgavam a roupa para embrulharem-no), em seguida desapareciam dali.
Meu caro editor, foi a primeira vez que estive diante de um Bugatti. Antes só o vira em
revistas e jornais sobre comércio. Já visitei algumas grandes cidades, mas em todas elas nunca
me cruzara com um carro destes.
Com os olhos segui o automóvel até derreter-se na paisagem.
Virei-me, e a Huzina já se retirara de perto de mim. Desesperei-me. Depois vi-a no fundo
de um estreito caminho acenando-me. Dirigi-me à ela, às pressas.
‘’Quem são aqueles que andam a despejar dinheiro como se fosse areia?’’
‘’É o Peter e os seus comparsas, patrão.’’
Meti a mão direita num dos bolsos da balalaica. Carreguei o ‘’REC’’ no gravador.
‘’Quem é esse Peter?’’

75
Fernando Absalão Chaúque

‘’Não grita, patrão, aqui em Eyupuro tudo têm ouvidos e bocas.’’


‘’Certo. Quem é esse tal de Peter?’’, abaixei a voz.
‘’É Peter Ya Moto, o filho do líder comunitário, o único miúdo manda-chuva desta
localidade.’’
‘’Aquele dinheiro é verdadeiro?’’
‘’Sim, Patrão. Todas as quartas o Peter passa desta rua e despeja dinheiro.’’
‘’E você não apanhou nem uma nota…?’’
‘’Não. Nesta localidade não há lugar para gastar tanto dinheiro. Além do mais, não gosto
de dinheiro que desconheço a proveniência. Prefiro manter-me com as moedinhas que ganho
cuidando de turistas.’’
Os mistérios acrescem-se em meu redor. Será que tudo isto está relacionado com o que
vim aqui investigar?
Talvez, responde a voz que mora em mim.
‘’Qual é a idade desse Peter?’’
‘’10 anos, patrão. É o único filho do Mbalame.’’
‘’Hummm! Será por isso que ele o mima tanto até dar-lhe uma escolta tão longa assim?’’
‘’Também não sei, patrão.’’
Havia tantas perguntas sem resposta ecoando em mim. Mas decidi não arrola-las todas
com a Huzina. Não confio nela, mas revogar a sua companhia teria sido uma ofensa ao Mbalame
e isso podia sair-me caro.
Decidi trocar de assunto:
‘’Huzina, vamos juntos ao centro?’’
Ela respondeu-me com um seco ‘’não’’.
‘’Então, como prossigo até lá?’’
Huzina detalhou-me as direcções. Devolvi-lhe o chapéu. E rumei sozinho até aqui.

Do lado exterior, este estabelecimento não parece um centro de acolhimento. O murro


lembra a cadeia de máxima segurança daí da capital. Depois de o ter visto pensei várias vezes se
prosseguia ou voltava ao aposento. Decidi seguir. Os guardas apontaram-me com as AKMs
quando me viram aproximar-se. Pus as mãos ao ar. Continuei a caminhar até quando um deles
deu um tiro ao ar e mandou-me parar.
Orvalho em Chamas

‘’Quem és tu?’’
Identifiquei-me.
‘’Não fomos notificados que receberíamos alguém com esse nome?’’
Os guardas eram assustadores; trajavam fardamento preto e haviam coberto as caras com
máscaras de caveiras de diferentes cores.
‘’Sou um turista, desconheço as regras desta terra.’’
‘’E o que queres aqui no centro?’’
Respondi que apenas queria visitar o centro e conversar com os acolhidos.
Mais um tiro ao ar.
‘’Vire-se e vá embora. Desapareça daqui!’’, um outro guarda ordenou.
Dou meia volta. Quando já estou prestes a desaparecer. Ouço o portão abrir-se. Uma voz
feminina (não estranha para os meus ouvidos) dirige-se a mim:
‘’É o Carlos Cardoso?’’
Ainda com as mãos ao ar, confirmei com o polegar. Virei-me ao portão. Vi a Dona
Khefassi no meio dos guardas saudando-me com um sorriso. Abaixei as mãos. Aproximei-me a
eles. Os meus pés tremiam de susto.
‘’Dona Khefasse. Peço perdão por…’’
‘’Não se preocupe, eu é que peço perdão pela imprópria recepção dos guardas.’’
Ela deixou-me atravessar o portão.
‘’Quando o excelência falou-me do centro fiquei curioso para conhece-lo, por isso que
decidi vir até aqui, espero não estar a incomodar.’’
‘’Hummm…’’
Enquanto caminhava lado a lado com a esposa do líder comunitário percorria-a com os
olhos. Desta vez, apesar do nervosismo, conseguia notar-lhe características que me haviam
passado despercebidas aquando do nosso primeiro encontro no escritório do seu marido. A sua
altura é média. A sua cara e olhos são exageradamente arredondados. A sua pele tem várias cores
(vermelho, verde, amarelo, rosa, preto e castanho) concluí logo que aplicava químicos para
clarear-se. Ostentava cabelos longos e unhas artificiais (envernizadas a branco). Os lábios
carnudos estavam ensopados de batom vermelho. Estava vestida à executiva, picava o chão com
o salto alto (não parecia uma senhora com quarenta anos).

77
Fernando Absalão Chaúque

O portão estrondeou. Os guardas trancavam-na.


No fundo dos meus ouvidos dançavam em corro lindas vozes em coro. De onde nasciam?
Do centro?
A Khefasse dispensou um dos guardas que nos seguia de AKM empunhada. Levou-me a
caminhar por todo o centro. Mostrou-me seis pavilhões de camaratas com dez quartos cada um.
No meio dos pavilhões há um enorme refeitório interligado com o bloco administrativo.
Enquanto passeávamos pelo centro e a Khefasse dizia-me os nomes das divisões, o corro de
lindas femininas não parava de ribombar nos meus tímpanos. Depois de quase quinze minutos a
circular pelo centro disse-lhe que tinha algumas questões a colocá-la.
‘’Antes das questões, quero mostrar-lhe algo, senhor Cardoso.’’
‘’Que será…?’’
‘’Siga-me, por favor!’’
Ela guiou-me por uma passarela entre o verde gramado. Enquanto caminhávamos, o
corro soava mais alto nos meus tímpanos. Aproximava-se ou eu aproximava-me a ele? Por fim,
imobilizamo-nos diante de uma porta enorme que dava acesso ao que Khefassi chamou de Sala
Polivalente. Ela abriu a porta e disse:
‘’Apresento-lhe o grupo coral do nosso centro.’’
Era dali que surgia o delicioso corro que me invadira os tímpanos desde que atravessara o
portão. O coral estava agora em silêncio, mas por sinal preparava-se para entoar mais uma
canção.
‘’Uau… que maravilha!’’
‘’ Fique a se deliciar por alguns números, depois encontras-me no bloco administrativo.’’
Ela retirou-se. Sentei-me numa das cadeiras. Observei os integrantes do coral. Eram
todos albinos (10 mulheres e três homens; uma das mulheres era cadeirante – estava diante do
grupo – era a maestrina).
Ela virou-se a mim. Disse:
‘’Seja bem-vindo, isto é apenas um ensaio, agora iremos entoar uma canção intitulada
‘’Orvalho em Chamas’’’’.
‘’Não se preocupem comigo. Façam o vosso trabalho.’’, disse eu.
A maestrina virou-se ao colectivo.
Orvalho em Chamas

Enfiei a mão ao bolso. Peguei o gravador. Salvei a gravação em curso e iniciei uma outra.
Depois de alguns segundos. Eis que as lindas vozes embalam-me os tímpanos destilando os
seguintes versos:
O lume das minhas mãos
É gota bebendo chamas
Minha pele é uma pétala
Remediando lágrimas

Sou casa da nuvem


A primeira língua da madrugada
Bebo do rio sem margem
E renasço antes da alvorada

Sou a ignição da esperança


O ventre d’todas raças
Na boca do sol aquático
Sou um orvalho em chamas.

79
Fernando Absalão Chaúque

NAPWERE – GATOS QUE BEBEM SANGUE (2)


Orvalho em Chamas

Se há um ponto de sol
derramado no chão,
um gato irá encontrá-lo
e absorvê-lo.

(J.A. Mclntosh)

81
Fernando Absalão Chaúque

A avó Tempestade levantou-se do banco, virou-se à parteira. Questionou:


…posso ver o minha netinho?
Era esperara muito por mim. Demorei a chegar, mas mais vale tarde que nunca, assim
reza o velho ditado, pois não?
A parteira abriu a boca como se arejasse a resposta antes de cuspi-la; porém, a
enfermeira, apesar de a pergunta não ter sido direccionada a ela respondeu abruptamente:
Sim… Tristeza, pode levar o bebé…
A parteira fechou a boca, a intrometida já respondera.
A Tempestade sentou-se.
A minha mãe caminhou cautelosa nos passos para não agravar as dores. Veio ao beliche.
Embrulhou-me com uma capulana deixando apenas a minha cara espreitando o mundo.
Aconchegou-me no abdómen dos seus braços. Virou-se. Sorriu. Voltou ao banco. A Tempestade
recebeu-me. Deu-me um beijinho na bochecha, pôs-se a observar-me com todas atenções.
A minha mãe continuava a olhar-me como se me quisesse engolir com aqueles gulosos
olhos.
(Observava-me e sorria,
Sorria,
Sorria sem parar.)
Eu era o início de algo que naquele momento ela não conseguiria descrever. Não sabia se
era o início da bonança ou a raiz do desastre. Estava claro que eu era a razão daquele cintilar nos
seus olhos. Mas, a felicidade, por natureza, nunca gostara de morar nela. Nunca. Por isso, quando
um sentimento de euforia a visitava, assustava-se. Para ela, curtíssimos momentos de felicidade
atraiam volumosas tristezas; contudo, agora ela sorria, sorria sem parar.
A velha Tempestade destapou-me as mãos, examinou-me os dedos, estudou-me os traços
nas palmas e os contornos das unhas. Desembrulhou-me os pés, inspeccionou-me os dedos, as
unhas. Analisou-me os traços na cara, os lábios, a cor dos olhos e os contornos da cabeça. Por
fim, desarrolhou-me o sexo, observou-o. Depois proferiu:
É uma menino mesmo…, gargalhou.
Orvalho em Chamas

E isso te deixa feliz?, a parteira perguntou.


Muito… isso mostra que minha filho Santos sabe certar, é forte, certa bem nas pontarias.
(Todos riram-se.)
Em Ohawa, sempre se esperava que o primeiro rebento fosse masculino. Isso provava a
superioridade do homem. Certificava-lhe a interminável virilidade. Não é por acaso que Deus
criou primeiro o homem. Homem que é homem deve dominar a sua esposa em todos ângulos. O
primeiro descendente, obrigatoriamente tinha que ser um macho. Se o contrário acontecesse,
dizia-se que o homem fora subjugado pela esposa. Fora neutralizado, absorvido. Tinha os genes
fracos.
Ademais, sempre se esperava que o primeiro descendente fosse homem porque
rapidamente disseminaria o apelido do pai; perpetuá-lo-ia. Sempre que a primeira sorte fosse do
sexo feminino todos punham-se a murmurar, cheios de vontade de esmurrar o estreante pai.
O meu pai não teria de enfrentar essas conotações desdenhosas. Seria aplaudido.
Galardoado com infindáveis elogios.
***
(Adormeci.)
Surgi num outro mundo onde tudo era gelo. Vi-me no cume de montanhas e florestas de
gelo. A paisagem que diante de mim se pronunciava era uma verídica enxurrada de água
solidificada. O frio gelava-me as funduras da alma. Estava num diferente lugar, longe da
abrasadora temperatura do berçário. Estaria já no tal Umbigo da Terra? Onde está a minha mãe, a
parteira, a avó e a enfermeira? Fiz-me estas perguntas repetidas vezes. Resposta nenhuma tive.
Por fim, deduzi que não havia ali gente alguma além de mim.
Estava nu, deitado, barriga e queixo abraçadas ao gelo. Doía-me o umbigo e aterrorizava-
me a ideia de estar sozinho naquele incógnito lugar. Comecei a chorar. A minha tímida
respiração reverberava nos tímpanos de toda aquela infinidade florestal.
Ouvi sons animalescos aproximarem-se. Apeteceu-me correr, embrenhar-me naquelas
árvores de gelo. Mas isso era-me impossível. Ainda não era dotado de tais capacidades corporais.
Exacerbei o choro na esperança de chamar a atenção de alguém. Se já tivesse a fala apurada, em
vez de chorar teria gritado:
Ajudaaaaaaaaa…!!

83
Fernando Absalão Chaúque

E inquirido:
Alguém está aí…?
Ora, chorei em vão. Ninguém apareceu. Comprovou-se que não havia ali gente alguma
além de mim.
As animalescas vozes aproximavam-se. Espreitei abaixo, vi uma manada de peludos
animais escalando a montanha. Subiam com uma ferocidade de se invejar. Eram alpinistas de
pasmar o próprio espanto.
Segundos depois, vi-me rodeado por um bando de wegies: gatos robustos, com pernas
longas, pelagem comprida e tripla: com uma camada superior brilhante e densa, uma isolante e
uma lanosa por baixo; tinham rostos triangulares, delimitados por grandes jubas – tufos de pelos
entre os dedos dos pés e cauda longa e também peluda; garras extensas e muito fortes –
rodearam-me; gritaram:
Já o encontramos… já encontramos o gajo!
Deu-nos muito trabalho, mas… finalmente!
Eu nada percebia. Havia eu fugido deles até ali? Como fugira? Teria voado?
Chefe, é melhor se aproximar para ver se o gajo dá ou não, um dos gatos sugeriu.
Fiquei mais sobressaltado. Os gatos quebraram a roda, dispuseram-se em meia-lua
encurvaram-se, esboçaram uma vénia. Um leão bojudo surgiu, posicionou-se no meio do arco,
penetrou-me com o olhar, um riacho de saliva transbordou-lhe da boca. Disse:
Este é ideal, meus caros, é de um bebé napwere que vocês precisam.
Na paralela conversa que decorria entre os gatos ouvi que eles me vinham perseguindo já
há muitas horas. Eu fugira sozinho? Não. Estivera sempre com a minha mãe. Percorrêramos uma
longa trajectória fugindo daquele leão e dos seus subalternos. A minha mãe escondera-me no
cume daquela montanha sem saber que aqueles felinos eram habilidosos alpinistas. Ela
desaparecera, talvez fora algures pedir ajuda. Haveria ali gente para nos salvar?
(Talvez.
Talvez.)
Chefe, também usou um bebé albino para se transformar?
Sim, foi um napwere igualzinho a este…
Orvalho em Chamas

Já estava tudo clarificado. Aquele leão, antigamente fora um wegie igualzinho àqueles
que agora o chamavam por chefe. Segundo a sua explicação, ele conseguira se transformar em
leão quando bebera o meu sangue, aliás, sangue de um bebé igualzinho a mim.
Meu caros, vocês devem sugar o sangue dele…
Depois de ter ouvido estas palavras, fiquei ainda mais alarmado. Meu coração quase
explodiu.
O leão ordenou que os gatos me sugassem o sangue.
O primeiro gato aproximou-se a mim. Exibiu-me seus dentes, enfiou-os no meu calcanhar
direito.
Descartei o sono, interrompi o maldito sonho. Abri os olhos.
Vi-me ainda nas mãos da Tempestade. Meu corpo tremia; tremia de susto. Emiti um
afiado choro. A avó entregou-me à minha mãe.
Dá-lhe de mamar… parece está com fome esse minha neto
Deve ser isso, assim que dormiu um pouco acordou com o estômago cheio de fome, a
minha mãe secundou as palavras da velha.
(Comecei a chupar.) Entretanto, o pesadelo é que me activara o choro, não a fome. Aliás,
acho que ainda não aprendera a senti-la.
(Continuei a chupar.)
Enquanto chupava, a avó não parava de me admirar.
Este bebé é igualzinho ao pai. Quando olho o sua cabeça, as suas olhos, as dedos, os
unhas vem-me a cara do Santos. Quando olho o sua penisito lembro-me logo do Faztudo.
A parteira e a enfermeira assustaram-se. Aproximaram-se a nós.
Expeli o mamilo.
Meu neto é muito bonito, não é isso, senhor parteira?
É verdade, Vovó Tempestade.
A enfermeira ainda queria responder, mas desta vez a parteira fora mais rápida.
A enfermeira olhou a parteira, perguntou-lhe:
Posso lhes dizer…
O quê?, a minha mãe perguntou, surpresa. Afinal havia um segredo que só a parteira e a
enfermeira sabiam?

85
Fernando Absalão Chaúque

Qual é o problema?, a Tempestade exaltou-se, ansiosa.


Não há problema nenhum..., a parteira respondeu com a voz trémula.
Não é problema…mas há uma coisa que vocês precisam saber sobre esta criança.
A minha mãe e a Tempestade levantaram-se do banco. Com os corações quase a cair-lhes
pelas bocas.
Digam lá então…!! A velha já estava impaciente.
A parteira e a enfermeira entreolharam-se. A parteira tomou coragem e revelou-lhes o
facto:
Este menino não é claro como vocês dizem. Olhem bem para a pele dele, para os olhos…
O que têm?, Tristeza questionou.
Mesmo você Tempestade que é mais velha, não consegue ver que esta criança é…
É o quê?
É um…
Um o quê??
É um… napwere…
O quê??...
Orvalho em Chamas

TRISTEZA – TEMPESTADE DE VOZES

87
Fernando Absalão Chaúque

É mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo.


Albert Einstein
Orvalho em Chamas

Não, minha netinho não ser uma napwere…


Vovó Tempestade, nós só estamos a dizer a verdade, frisou a parteira.
Uma verdade mentirosa, é o que vocês estão dizer.
A parteira e a enfermeira olharam-se reciprocamente como se estivessem arrependidas de
terem desenterrado o mistério. Mas era um dos deveres que sobre elas pendia: revelar o que for
necessário aos utentes da maternidade.
A parteira encarou a minha avó:
Vovó, não adianta negar, este bebé é um napwere e nunca vai mudar.
Vocês duas só põe bata branca em vão... são mentirosos.
A enfermeira soltou uma minúscula gargalhada. Virou-se para a colega, cochichou-lhe
algo, bem nas tripas do ouvido.
A minha mãe, logo que ouviu a revelação, colocou ambos os cotovelos sobre os joelhos,
cabisbaixa como se tivesse um pedregulho no limbo do pescoço, enlaçou os dedos das mãos na
nuca e ficou trocando olhares com o chão.
Tempestade, você é uma...
…Burra?? Burra eu? Tenha cuidados minha filho eu já vi coisas que você nunca irás
ver, então me respeita.
A parteira, com a voz meio trémula afrontou a velha:
Pode ter visto tudo, mas nunca viu um napwere, nem conhece!
Eu conheço napwere não é assim como meu neto...
A paciência da parteira definhara-se. Ela aproxima-se, arranca-me da Tempestade, retira-
me da capulana e torna a devolver-me à velha. Deixa a capulana tombada no chão.
Está aí o seu neto, olha bem para ele vai perceber que é um napwere e pára de nos
encher as cabeças aqui... sua velha sem respeito…
A Tempestade desta vez não respondeu, apanhou a capulana, embrulhou-me enquanto
inspeccionava-me os olhos, o cabelo e comparava a clareza da minha pele com a dela. Depois

89
Fernando Absalão Chaúque

entregou-me à minha mãe que já se soerguera. A velha franziu a cara; começou a esfregar os
olhos com os pulsos, cairam-lhe grossas lágrimas, molharam o soalho.
A enfermeira e a parteira surpreendem-se, arregalam os olhos.
O que se passa, mãe?, Tristeza pergunta a Tempestade.
A velha não responde. Continua a deixar chover idosas lágrimas ao chão do berçário.
Que contradição!
A minha chegada ao mundo não a alegrava mais. É o que já parecia. Ora, chora-se o
nascimento ou a morte? As duas coisas?
Mamã, pára de nos fazer barulho aqui, interferiu a enfermeira.
A Tempestade tira o lenço da cabeça, enxuga-se as lágrimas e volta a amará-lo. Silencia-
se. Em seguida, pega a sua bengala, aponta a enfermeira e a parteira. Ameaça-as:
Vocês duas vão se ver comigo…
Mãe, não faça isso, por favor!
Tristeza, não defender estas duas, elas sabem de tudo.
Esta velha perdeu os miolos ou o quê?, a enfermeira pergunta a colega.
A parteira encolhe os ombros duas vezes em jeito de dizer que não percebia o que se
estava a passar com a minha avó.
Velha? Velha eu?
Sim, és uma velha, a enfermeira respondeu.
Velha é o sua mãe que não te ensinou boas respeitos, é por isso que sempre serás uma
lenhosa, magra, feita só de ossos e poeira.
A enfermeira enervou-se. O seu juízo descarrilou-se, seus olhos avermelharam-se como
se fossem duas paralíticas lagoas de sangue. Ela tirou as luvas e a bata:
Agora vou-te mostrar que sou uma mal-educada mesmo…
Não faças isso, colega!
A parteira puxou a amiga para um dos cantos, convenceu-a a controlar os nervos, a não
quebrar a ética e a deontologia profissionais.
Pode me bater, mas vocês as duas sabem de tudo.
Mãe, o que estás a dizer?
É isso Tristeza, estes duas sabem o que aconteceu aqui.
Que merda estás a falar?, a parteira pergunta a Tempestade.
Orvalho em Chamas

Vocês trocaram bebé…


Não nos chateia você, a enfermeira redarguiu de imediato.
A velha fundamentou que era impossível que eu fosse um albino, porque nenhum dos
meus progenitores tinha a minha cor. Além disso, na sua família nem na dos Faztudo havia um
dia existido um napwere. Portanto, eu não era o bebé certo, algo estranho acontecera, e a
primeira coisa que a ocorreu é que a parteira e a enfermeira haviam trocado de bebé logo que a
minha mãe dera à luz.
Este é o seu neto… nós não trocamos nada, disse a parteira.
Há pouco tempo dizias que este bebé era parecido com o tal Santos e te lembrava o teu
marido e agora, como nos acusas disso?, perguntou a enfermeira.
…falhei, minhas olhos se enganam muito. Mas já disse… este bebé nem é parecida com
ninguém nas minhas famílias. Vocês trocaram de bebé, sim!
A parteira não deixou a Tempestade terminar a frase:
Mana Tristeza, não é este o bebé que viste sair de ti?
A minha mãe observou-me como que pela primeira vez. Depois encarou a Tempestade,
com um olhar de mil gumes. Uma bola de lágrima desceu-lhe do olho esquerdo até invadir-lhe o
lábio superior. Uma outra lágrima desceu do olho direito, caiu-me na testa. Ela voltou a olhar-me
como se quisesse algo confessar-me. Por fim, respondeu:
Sim, é este o meu querido filho?
Tempestade levantou-se, banhada de raiva.
Querido filho?
Sim, é este o filho que…
Tristeza, não brinca com seriedades, chamas a isso de filho?
Mãe, é…
A tempestade apontou-me com o indicador esquerdo:
Isto é um insulto não é filho.
A parteira interferiu:
Afinal um napwere não é uma pessoa?
Não. Um napwere é um napwere. Uma pessoa é uma pessoa. São coisas muito
diferentes…

91
Fernando Absalão Chaúque

As lágrimas começaram a escorrer torrencialmente da face da minha mãe.


Mas é o seu neto, o filho do Santos. É um Faztudo este…
Não me chateia você, este não é o filho do Santos, é teu filho, você sozinha.
Ali no berçário, o clima tornara-se inóspito. Ora, parecia que o calor triplicara-se.
O relógio na parede já corria ao meio-dia.
Ah, sim! A intensidade do calor triplicara-se. A parteira e a enfermeira transpiravam
instigadas pela discussão ateada pela minha avó que agora sentara-se na ponta do banco, distante
da minha mãe, aliás distante de mim (antes de perceber que eu era um albino ficava colada a nós,
e agora adiante tudo viria a correr no inverso da normalidade).
A minha mãe continuava a olhar-me como se me quisesse engolir com aqueles gulosos
olhos, mas agora eu percebia o significado daquele gesto. Era a única forma de dizer que por
mim enfrentaria qualquer obstáculo que viesse.
(Talvez!)
A parteira levou-me de volta ao berçário. Pegou-me com todo carrinho como se não
detestasse napweres; ao menos ela conseguia fingir. Na verdade, ela preferia viver fingindo,
suportando tudo que acontecia naquela maternidade só para não ter que viver desempregada.
A minha mãe voltou ao beliche.
Então você Tristeza já sabia que nasceu uma coisa assim?
Sim, mãe, eu vi que era um napwere logo que a cabecinha espreitou!
Não é uma coisa, é um filho, uma pessoa como você, a parteira interferiu.
Não fala comigo você, sua fadaputa!!! E você Tristeza, este não é nenhum Faztudo, você
sabe de quem era a gravidez… nunca foi do meu filho…
O teu tempo de visita já terminou, a parteira sentenciou.
Sem dó, a enfermeira, ainda sem ter recolocado a bata arrastou a velha para fora do
berçário. E dirigiu-se à multidão que estava diante da porta, disse:
O marido da Tristeza… onde está?
Uma voz grossa pronunciou-se dentre aquela multidão:
Estou aqui mesmo…
Qual é o seu nome?
Santos Faztudo.
Certo, siga-me, por favor!
Orvalho em Chamas

Eyupuro, 16 de dezembro de 1996

Querido Editor Chefe


Albino Fragoso Francisco Magaia

"Orvalho em Chamas é a canção mais antiga do mundo", disse Khefassi e sossegou-se na


cadeira. Dedilhou o tampo da mesa como se fosse um piano. Alguém bateu à porta. Ela
respondeu. Duas mulheres entraram. Uma vestia um avental vermelho, a outra um azul. Li os
seus nomes nos crachás que exibiam à altura das mamas: eram Luísa e Madalena,
respectivamente; serventes no bloco administrativo do centro. Serviram-nos o café. Retiraram-se
depois de nos terem desejado um bom apetite.
‘’A canção mais antiga?’’, retorqui.
‘’Aliás, é a primeira canção no mundo, antes mesmo da criação do homem.’’, corrigiu a
Khefassi.
"Ainda não percebi."
Khefassi levou a sua chávena à boca. Sugou o líquido de olhos fechados como se o sabor
do café a pesasse as sobrancelhas. Eu limitei-me a observá-la. Sabia que o meu café em poucos
ninutos esfriaria, mas só depois de ela ter sarado as minhas dúvidas é que o poderia saborear.
"Aquela canção é a mãe de todas e de tudo que habita o mundo."
"Será? ", encarei a mulher.
"Não duvide, senhor Carlos."
"Acho que precisarei de mais explicação para acreditar nisso."
Esta canção foi composta por Deus. Ela explica. No primeiro dia, quando Ele
manufacturava o mundo; logo nas primeiras horas de labuta sentiu-se domado pelo cansaço, não
tinha mais forças para continuar com o ofício. Para poder fazê-lo começou a cantar. Orvalho em
Chamas surgiu como embalo e catalisador da criação divina.
‘’E como sabe disso tudo, Dona Khefassi?"
‘’Não te esqueças que sou esposa do líder comunitário. E além disso, sou uma mulher."

93
Fernando Absalão Chaúque

"O ser mulher tem ligação com esta canção? "


Sim. Ela respondeu. Em Eyupuro assim como em outras localidades como Ohawa, as
mulheres quando dão à luz são imediatamente levadas a um Umbigo da Terra. E só regressam à
casa quando o umbigo do descendente sara. Lá até hoje ainda se pode ouvir a voz de Deus, dia e
noite a cantar esta canção.
Encarei a mulher, olho no olho. Acho que naquele momento ela conseguia perceber a
imensidão da incredibilidade que me dominava. Mais uma vez, levou a chávena aos lábios. E eu
costurei mais uma questão:
"Interessante. E porque ele ainda canta esta canção enquanto agora está a descansar?"
"Ele agora canta para esquecer a cruelidade do mundo. Canta porque anda triste pela
barbaridade perpetuada às suas predilectas criaturas."
"É verdade. Há muita maldade no mundo."
Pela primeira vez, elevei a chávena, saboreiei o café enquanto o delicioso cheiro invadia-
me o olfacto, espalhava-se por todo meu corpo. Mais uma questão apoquentou-me:
"Deus chora?"
"Sim, todos os dias. E quando chora além dos limites as Suas lágrimas inundam o céu e
transforman-se em chuva. Lá no Umbigo da Terra ouve-se tudo. Muitas vezes, quando Deus pára
de cantar começa a chorar."
Pousei a chávena no pires.
"É mentira isso. O meu pai ensinou-me que homem nunca chora."
Khefassi gargalhou. Quase engasgou-se nas suas desmedidas risadas.
"Meu amigo, Deus é uma mulher."
‘’Mulher?’’
‘’Sim!’’
"Mas quando criou o mundo era um macho.", devolvi.
"Deus nunca foi um homem. Desde sempre, Deus é uma mulher."
Neguei categoricamente as suas proposições. Disse-lhe que tudo que estava ali a dizer era
profanação, blasfémia. Meu caro editor, perante isto, ela respondeu-me que as minhas afirmações
só faziam sentido aí na capital. Aqui em Eyupuro eu não tenho que duvidar de nada que os
nativos me dizem. Pois, as verdades e crenças variam de acordo com o espaço. Ademais, se Deus
Orvalho em Chamas

fosse um homem nunca teria paciência de criar coisas tão belas como o céu, as borboletas, os
rios, as flores.
Decidi calar-me. Já não tinha mais forças para continuar naquela batalha verbal. Melhor
era beber da sabedoria daquela senhora.
‘’Sabes quais são as criaturas predilectas de Deus, senhor Carlos?’’
‘’Não!’’
‘’Tenta adivinhar!’’
‘’Tavez os pássaros.’’
‘’Por quê?’’
‘’São a única criação que pode cantar melhor que Ele.’’
Khafassi esbugalhou os olhos por segundos.
‘’Hummm! Os pássaros estão na lista, mas não vêm em primeiro lugar. O que ocupa o
primeiro lugar no coração de Deus são os Napweres!’’
Tomei a última porção do café. Cocei-me a barba à espera que ela fundamentasse a
declaração.
‘’Depois de Deus ter criado tantas coisas no mundo é que teve a ideia de criar a nós, as
pessoas. A primeira criação de Deus foi uma mulher napwere, à sua imagem. Sim, os napweres
são a exacta imagem de Deus. Mas com o tempo e circunstâncias climáticas surgiram outras
pigmentações. Deus deixou que isso acontecesse porque a diversidade agradou-lhe. Mas, no
fundo, os napweres são a sua predilecta criação.’’
Khefassi calou-se. Levou a chávena à boca. Sentiu que o chá esfriara. Devolveu-a ao
tampo. Passaram-se mais de cinco minutos de absoluto silêncio. Por fim, repeti uma das minhas
questões anteriores:
"Como sabes disso tudo, dona Khefassi?"
" Já disse, caro Cardoso. Aprendi tudo isto quando fui ao umbigo da terra com o meu
filho Peter. Ouvia Deus a cantar esta canção. Mas as anciãs nunca me deixavam cantá-la nem
decalcar a melodia.’’
‘’Por quê?’’
"Porque o meu filho Peter não é um napwere. Mas as que tinham bebés napweres
cantavam livremente esta canção seguindo a voz de Deus."

95
Fernando Absalão Chaúque

"Ahaaammm! Então é por isso que mesmo no grupo coral só existiam napweres a cantar
esta canção...!?"
"Exactamente. E mais, Orvalho em Chamas é uma elegia exclusiva aos napweres."
‘’Elegia?’’
‘’Sim! Porque eles são caçados e chacinados como animais. Todos os dias!’’
‘’Dona Khefassi, tenho algumas questões viradas ao ponto que acabou de tocar.’’
‘’Qual?’’
‘’A chacina aos albinos ou napweres como voces os têm chamado aqui.’’
‘’Vamos dar uma pausa, senhor Carlos, preciso coordenar algo com a Luísa e a
Madalena. Volto já!’’
Ela levantou-se selvaticamente da cadeira. Abriu a porta com todas brutalidades. E
desapareceu. Ainda ouvi o seu salto alto a picotar o soalho.
Orvalho em Chamas

TRISTEZA – ANTES DO BRADO FULMINANTE

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Fernando Absalão Chaúque

~ Já relatei como naquela noite o velho Faztudo me estuprou pela primeira vez. Agora quero
contar o que aconteceu desde a madrugada do mesmo dia antes do maldito velho fazer de mim o
seu brinquedo sexual. Desculpe-me, caro leitor, sei que já devia ter contado isto há muito tempo,
antes de falar do primeiro estupro, mas havia me esquecido. Há muita coisa que agora corre na
minha mente que acaba turvando-me a exacta cronologia dos factos. ~
Orvalho em Chamas

A madrugada desenrola-se.
Estrelas sorriem, saltitam, perdem-se na concha da brisa dourada projectada ao mundo
pelos pulmões de Deus. Um silêncio dissimilado pronuncia-se escoltado pelo perfume do
amanhecer; o sol espreita o mundo com seus olhos de fogo; atravessa a fibra embrionária na qual
o mar e o céu interligam-se. A escuridão chora, vive suas últimas horas, encolhe-se, em breve
terá de recolher-se ao seu predilecto esconderijo; morrerá acompanhada por fantasmas, sombras
e outros seres e almas rapinas.
Ouço uma voz perfurando-me as paredes do sono.
Fora: grilos, galos, pássaros verbalizam suas modestas cantigas, alternadamente, como se
seguissem uma escala sinfónica. Pássaros, galos, grilos, vozes das ondas, marcha das nuvens,
trovoadas, canções da chuva, timbre das folhas verdes obedecendo a pauta que guia o mundo
vegetal fazem da natureza a mais bela das orquestras.
Tristeza…!
O sono ainda por mim clama, implora que continue no seu leito. Mas esta voz é
demasiado musculosa – é a voz do cosmo inteiro – invade-me os tímpanos da alma.
O meu corpo espreguiça-se. As minhas pálpebras pesam como se todo sono existente
dormisse nelas. Meus olhos ardem, vislumbram um espesso negrume que lembra a igreja do
pastor Pedro Paulo Pontes e os corvos que nos seus ombros pousavam durante as orações.
Levanto-me desta cama desconfortável na qual deito-me para descansar, todavia a cama
cansa-me ainda mais. Durmo sã; acordo com o corpo todo cimentado de dores. É uma cama feita
de paus, sacos e capim seco. Uma cama plantada na barriga do chão.
Ao levantar-me não sinto os pés, um estranho formigueiro percorre-me cintura abaixo.
Olhos semicerrados. Mãos tacteando o escuro. Tento dar alguns passos ao encontro da voz,
entretanto, uma agressiva tontura tortura-me.
Imobilizo-me.
O sangue ferve nas veias. A fome aniquila-me. Aqui sou a pessoa que menos come, mas
a que mais trabalha. Todos os dias, Faztudo leva-me às suas machambas. Põe-me a trabalhar

99
Fernando Absalão Chaúque

desde a manhã até o sol minguar. E ele, que faz? Senta-se na sombra mais fresca, enche o
cachimbo com tabaco, fuma. Quando disto se cansa liga o seu rádio e acompanha relatos de
futebol.
A mim proíbe o descanso. Não me quer flagrar de tronco recto. Devo sempre ter a enxada
em movimento, em sucessivas vénias ao chão. Quando me flagra a descansar amarra-me numa
árvore e tortura-me. Grita:
Estás a pagar a minha bicicleta, é isso que combinei com o teu pai. Não ouviste naquele
dia?
(Inferno!)
Eu estou pagando pelos erros do meu irmão. Talvez por ser mulher, um tapete no qual
qualquer um limpa os pés. É notável que no final, eu pagarei com a minha própria vida. Uma
menina de treze anos a trabalhar deste jeito? O que pode ganhar? A morte apenas.
(Inferno!)

Certa vez, quase degolava o velho Faztudo; tirava-lhe a vida. Tinha toda a vontade, mas
faltou-me a coragem. Que aconteceu nessa tal vez? Sei que estás curioso para saber o que levaria
uma miúda da minha idade a virar uma homicida. Voltarei a este ponto.
A voz continua a perturbar-me.
Tristeza, abre essa merda de porta!!!
O cheiro da terra engravida o olfacto, as árvores divorciam-se do sono, as ervas
ressuscitam hipnotizadas pelo sol, o orvalho dança embriagado pelo acorde dos répteis a cortar o
chão sonolento em busca da primeira colónia de raios. Os cães ladram, alegres.
Sim, já vai!, respondo.
Já sinto os pés. O formigueiro desapareceu.

Que aconteceu nessa ocasião? Não é isso que quer saber, caro leitor?
Numa madrugada como esta, Faztudo veio me acordar aqui nesta palhota. (E deve ser ele
que agora está à porta chamando por mim, digo isto com dúvidas, claro; pois tenho um defeito,
quando ainda estou cheia de sono não reconheço as pessoas pelas vozes, é um difícil exercício).
Faztudo acordou-me. Saímos. Percorremos uma longa distância, escoltados pelos seus
raivosos cães até chegarmos a uma das suas machambas. Ele sempre fazia esforço de eu e ele
Orvalho em Chamas

chegarmos lá primeiro, mais tarde, Tempestade e Santos encontravam-nos. Quando estes


chegavam, Faztudo mostrava-lhes uma parte de onde eu havia trabalhado e dizia que ele já
labutara muito e chegara a sua hora de descansar. Sentava-se numa sombra, escutava os relatos
de futebol.
Nesse dia, Faztudo mostrou-me uma mata densa, com árvores frondosas e plantas
trepadeiras que formavam uma parede vegetal intransponível; deu-me duas catanas, uma enxada
e dois machados. Disse:
Até meio-dia quero ver isto tudo limpo.
Nada respondi. Já disse, para mim não havia espaço para opinar, reclamar, pior para
contrariar. Além disso, um escravo nunca reclama. É o único ser com a maior capacidade de ver
seus direitos pilhados e manter-se calado. Eu calava-me, mas por dentro fervia. Carregava os
piores sentimentos e desejos para com o Faztudo.
Comecei a trabalhar.
Com as minhas calejadas mãozinhas, obriguei machados e catanas a perfurar aquelas
árvores. Aos poucos, ia destruindo a mata; invadia o habitat de várias espécies. Vi pássaros
abandonando seus ninhos, cobras de todas as cores saindo do útero da terra, apontando-me com
suas nocivas línguas. Vi macacos mostrando-me o cu e o dedo do meio enquanto refugiavam-se
noutras matas. Muitos animais eram perseguidos e mortos pelos cães do Faztudo. Curiosamente,
os macacos apedrejaram o primeiro cão que se atreveu a persegui-los até uivar convocando a
morte.
O xirico do Faztudo continuava a cuspir os relatos; ele roncava encostado ao caule de
uma árvore; boquiaberto. O seu pescoço estava avulso. Contemplei-o, minuciosamente. Foi daí
que pousou-me na mente a ideia de degolá-lo. Era a única oportunidade que tinha para livrar-me
daquele insípido jugo.
Levei a catana com o gume mais afiado. Aproximei-me ao homem, silenciosa como uma
leoa com uma presa na mira. Ele continuava afundado no sono. Devia estar submerso no oásis do
mais delicioso sonho do mundo; sonhava que se derretia na fenda de uma esbelta mulher, acho
eu. É este o sonho que nenhum macho quer que termine. Estou a mentir?
Apontei o gume da catana ao pescoço do Faztudo, ampliei o ângulo. Assim, o corte seria
totalmente fatal, mais rápido que a própria morte.

101
Fernando Absalão Chaúque

Depois de degolar o velho fugiria de volta à Eyupuro para reencontrar a minha família.
Prestes a executá-lo, lembrei-me que não fazia ideia alguma de onde me encontrava.
Estava presa em coordenadas que levavam ao norte de nenhum sítio. Se o matasse, depois
divagaria pelos matos até achar o portal da morte.
Faztudo sabe que o meu maior desejo é regressar à minha casa. Por isso, é sempre
cauteloso. Nunca se esquece de vendar-me a vista. Mesmo quando saímos de casa ainda a
escuridão a imperar amara-me um pano preto nos olhos.
Decidi cancelar o golpe, frustrada. Abaixei a catana.
Continuei a desbravar a mata.
(Inferno!)

Abre essa merda de porta pah...


A palhota é uma lua com paredes de paus e pedrinhas conjugados com adobe, o telhado é
capim. O chão é um profundo lago de areal. Além da cama que só me cansa o corpo há aqui um
pote de água e uma charrua. Só isso e nada mais. Não há cobertor algum. Nas noites frias,
trémula, enrolo-me para dentro de mim.
A porta da palhota tranca por dentro; há dois pregos curvados nas laterais nos quais
encaixa-se um pau que a assegura. No primeiro dia pensei que isso facilitaria a minha fuga. Teria
apenas de destrancar a porta e desaparecer. Na noite seguinte, abri a porta, mas quando já estava
prestes a me escapulir, vi o Martelo, o mais impetuoso cão do Faztudo, bloqueou-me a
passagem, salivando, exibindo-me seus enormes dentes. Abortei a tentativa. Voltei à palhota.
A partir daquela noite, Martelo parece ter algo que o liga a mim, controla-me como se
fosse olho de algum deus derramando sobre mim a sua omnipresença.

Abro a porta.
Uma nuvem de fumaça nasce do cachimbo de Faztudo, embacia-me a visão, escancara-
me as narinas. Tusso. Os cães ladram. Uníssonos. O homem está mais nervoso que o seu mais
estimado cão. Uma chapada troveja na minha bochecha, afugente o sono que em mim ainda
abunda. Choro.
Porra pah, era preciso um século para abrir isto?
Orvalho em Chamas

Ajoelho-me, peço perdão. Faztudo continua a praguejar por alguns minutos. Depois
assobia, grita:
Mungoni!!!
Um boi adiposo e com chifres afiadíssimos muge e aproxima-se.
Faztudo assobia mais uma vez. Grita:
Khumane!!!
Um boi menos gordo que o primeiro aparece. Posiciona-se ao lado do outro.
O homem desvia o furioso olhar de mim para os bovinos. Acaricia-lhes as pontas dos
cornos. Pega o cachimbo com a mão esquerda, direcciona-o aos lábios de Mungoni. O boi puxa a
matéria gasosa, aloja-a nos pulmões, depois de minutos, liberta-a e leva o cachimbo à boca do
outro animal que também procede como o primeiro. Fuma. A escuridão ainda persiste, todavia, é
possível acompanhar a trajectória que esta cachoeira de fumo desenha. Khumane devolve o
cachimbo ao Faztudo.
Traga essa canga ai ao lado da palhota, Faztudo ordena-me.
Carrego a canga. Faztudo recebe-a. Posiciona-se em frente aos bois. Assobia mais uma
vez, grita como se desse ordem a um grupo de militares:
Aatençããão…sentidoooo!!!
Mungoni e khumane esticam os pescoços, juntam as patas, ficam em sentido. Esbugalho
os olhos, surpresa: estes bois além de reconhecer os seus nomes entendem a linguagem humana?
Faztudo eleva a canga, abre a primeira portinhola, Mungoni introduz a cabeça, deixando
os chifres atravessarem e o jugo posicionar-se no pescoço; após isso, abre a portinhola do outro
lado, khumane procede como o outro. Já com a canga posicionada nos pescoços dos bovinos,
Faztudo dá o comando:
Descansar!!!.
Conecta uma carroça na canga.
De que estás à espera, Tristeza?
Nada, tio, respondi cheia de medo.
Nada… nada… o quê?, põe a charrua na carroça.

103
Fernando Absalão Chaúque

Volto à palhota. Não consigo elevar a charrua. Além disso, meu estômago é um vácuo, o
chá que tomei na noite anterior evaporou antes do sono me convocar. Onde acharei tanta força
para carregar este instrumento?
Faztudo entra, nervoso, empurra-me, dou-me da cabeça à parede.
Não vês que estamos a demorar!?
Ele carrega a charrua. Coloca-a na carroça. Volta à palhota. Dá-me uma cortante chapada
e incontáveis pontapés. Arrasta-me para fora. Tira uma corda de um dos bolsos, junta as minhas
mãos, amara-as coladas pelos pulsos. Em seguida, amara a corda na carroça. Venda-me os olhos.
Sobe na carroça. Grita:
Atençãããããão… vamos!!
Mungoni e khumane iniciam a marcha. Eu sigo-os caudada na carroça. Atrás de mim,
vem o Martelo escoltando-me com nervos e raiva a guiarem-lhe os instintos.
Nos primeiros dias a venda perturbava-me. Mais tarde, obrigava-me a vasculhar o baú
das lembranças: em Eyupuro eu e Pedrito submersos em infantilidades, entretidos na líquida
inocência. Nas noites de lua cheia, quando tudo é iluminado pelos olhos da natureza, o sono
demorava a embalar-nos. Levantávamos. A mamã vendava-nos os olhos, deixava-nos entretidos
à cabra cega no quintal; só voltávamos ao quarto quando um de nós já cambaleava, sonolento.

Vamos avançando. Caminho, guiada pela corda. Faztudo está refastelado na carroça; e,
talvez contempla o sol a elevar-se. O odor do tabaco é quente como a invisível lareira que no
verão aquece o universo.
Presa no distante mundo que me é imposto pelo pano preto, a única coisa que me salva é
a minha fértil imaginação. Vejo coleópteros surgirem do invisível, incendeiam-se como olhos de
Hefesto sangrando chamas na sua oficina metalúrgica; vejo o tempo a ranger os dentes deitado
na sombra da enorme figueira onde os corvos roncavam antes de Pedro Paulo Pontes convocá-los
às orações nocturnas; a morte a afiar sua musculatura no cimo do silêncio; tubarões fugindo da
água para viver em crateras, tigres arrancando as garras em busca da redenção das presas, peixes
sonhando asas em vez de barbatanas e eu pensando em Eyupuro em vez de tudo que se pode
pensar.
Orvalho em Chamas

Mungoni e khumane ainda marcham tenebrosos, os movimentos da corda impelem-me a


alargar o passo. De repente, Faztudo grita:
Alto!!, allllllto!!
Os bois param. Ele desce da carroça. Desmancha a corda, alivia-me os pulsos, retira-me a
venda dos olhos. Reconheço a paisagem. Estamos na face do campo no qual há meses eu pensara
em degolá-lo. Assustei-me logo que aquele episódio me revisitou.
Estás com medo?, Faztudo questiona.
Nao, tio…
Já…?
Ah…ah…
Porque estás a tremer assim?
É…é por causa de fome e cansaço.
Isso é nada comparado com a dor que sinto pela bicicleta que o teu irmão me roubou.

Nervoso, Faztudo explica-me que há quatro séculos esfumados, num final de ano, numa
tarde em brasas, ele ainda no pórtico da adolescência, viu um homem magro, baixo, calvo, a
entrar na sua residência. A mãe, olhou-o, desabou em infinitas lágrimas, congelou-se. Faztudo e
os irmãos mais novos acorreram a consolá-la mesmo desconhecendo a razão daquela aflição.
O homem foi directamente ao interior da casa. Nada falou. Apenas exibiu-lhes um longo
sorriso, sentou-se à mesa. Faztudo e os irmãos foram saudá-lo enquanto a mãe mergulhava-se
num demorado banho. Quando ela saiu, adornou-se com a mais nobre roupa que tinha. Os irmãos
do Faztudo admiravam aquele homem que se limitava a falar só com o sorriso.
A cara do homem não era estranha para o Faztudo, lembrava-lhe alguém que um dia vira
algures nas fotografias que a mãe reservava na mala de madeira.
A curiosidade dominava a todos, mas nenhum dos miúdos se atreveu a direccionar além
da saudação àquele homem. A mãe os ensinara a não se aproximar tanto a estranhos. Ora,
naquele instante a única coisa estranha era a intrínseca conexão que sentiam com o suposto
visitante.
Depois de se ter aprumado, a mãe de Faztudo sentou-se à mesa, secou as lágrimas,
revelou aos filhos que aquele homem era com quem os gerara, era o fundador daquele lar. Eles

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Fernando Absalão Chaúque

não a deixaram terminar a explicação. Levantaram-se e abraçaram o pai, jubilosos. Para eles,
principalmente para Faztudo, iniciava-se o fim das humilhações. Não era raro que nas
brincadeiras com outros miúdos alguém lhe esfregasse o facto de supostamente serem órfãos de
pai.
Há anos que o pai de Faztudo desaparecera. Não despedira a ninguém, recolhera a sua
sombra e esfumara-se. Faztudo ainda não completara cinco anos, a mãe ainda estava grávida
destes dois irmãozinhos gémeos. Durante quase uma década o pai de Faztudo exilara-se nas
minas das terras alheias. Assim, regressara porque a sua missão de aleijar o subsolo em busca de
ouro findara.
Enquanto ele tentava trazer à tona mais detalhes sobre o seu regresso, ouviu-se no quintal
sucessivas buzinas. Os meninos gémeos seguidos por Faztudo foram os primeiros a sair ao
encontro das buzinadelas. A mãe de Faztudo e o seu recém-regressado esposo aproveitaram a
saída dos filhos para trocarem carrinhos labiais e elogiarem-se o quão cada um ficara mais jovem
que antes.
As buzinas nasciam de um Mercedez-benz Sprinter, que no topo do vidro frontal exibia:
‘’siyaya emakhaya’’ ou seja, nós vamos para casa. O ajudante do motorista desceu da cabine; o
motorista chamou-o pelo nome, levantou a mão esquerda, apontou o relógio no pulso com o
indicador direito e gritou ‘’time is money, my friend’’.
O ajudante subiu na bagageira do Sprinter. Começou a descarregar os pertences do pai do
Faztudo. Dentre muita coisa embrulhada em volumosos plásticos e caixas era possível ver um
rádio com duas entradas de cacete, um gerador, dois painéis solares, duas baterias, uma
motosserra, um amplificador e duas colunas. A última coisa a ser descarregada foi a que mais
marcou a vida do Faztudo e por causa da qual vejo-me hoje enterrado neste sofrimento. Já sabe o
que é, caro leitor. Não sabe?
A maldita bicicleta bmx.
A partir desse dia, ela virou a melhor companheira do Faztudo. É por isso que doem-lhe
até os alicerces da alma quando dela se lembra.
Tristeza, sabes o que era aquela bicicleta?
Não, não faço ideia, tio…
Aquela bicicleta era uma das únicas lembranças que guardava do meu pai. E o filho da
puta do seu irmão roubou-ma.
Orvalho em Chamas

O sol já desfizera toda cortina da madrugada.


Em silêncio, escuto aves entoando epopeias no meu peito; apesar das adversidades, que
seria a vida sem isto tudo? – um vácuo na superfície sólida do mundo –, escuto-as, pois só assim
conseguirei escutar-me a mim. É tudo um sonho, e eu, todas noites sonho a mesma coisa –
Eyupuro, minha terra natal.

A vida é-me injusta.


Sempre que penso nisto saio de mim, ajoelho-me no jardim dos meus primeiros
conscientes anos de vida. Vejo que sou nada do que um dia sonhei; hoje apenas sonho o dia em
que reaverei a liberdade de voltar a sonhar.

Mungoni e khumane mexem-se espantando mosquitos que neles pousam. Faztudo liberta-
os da canga, desconecta a carroça e dela retira a charrua.
Coloca a charrua em posição…é hora de transpirar.
Faztudo guia os bois a uma mata, deixa-os lá a saborear o capim. Estranho. Primeiro, eu
vim caminhando e ele refastelado na carroça. E agora, coloca a charrua nas minhas mãos e deixa
os bois relaxados?
Inferno.
Merda, pega a charrua aí, não ouviste!!, insurge-se ao ver-me distraída, perdida em
tempestuosas cogitações.
Posiciono-me à frente da charrua, mãos esticadas para trás; pego as quatro cordas, duas
em cada mão. Faztudo posiciona-se na outra extremidade do arado:
Tristeza, puxa!
Sigo as ordens.
Durante horas, puxo a charrua e ele pressiona-a ao umbigo do chão de modo a cortar o
capim, rasgar e revolver a terra. Meu corpo continua a tremelicar de fome, mas nada posso fazer
além de me esforçar até onde for possível.

107
Fernando Absalão Chaúque

É injustificável que eu puxe a charrua enquanto os bois zanzam pelas matas.

Terminamos de lavrar o campo.


Na face de Faztudo um sorriso brota. Assusto-me. Desde que o conheci nunca antes o
vira sorrir. Desgruda-se de mim, vai até a carroça, de um saquito tira uma tigelinha. Entrega-ma.
É o teu lanche.
Inacreditável! Ele sempre me proibiu de ingerir algo além do chá. O que se está a passar
com ele? Decidiu mudar? Estranho! É como se visse o diabo a abandonar a maldade. Um animal
carnívoro ignorando carne. Do mesmo saquito, tira um pão, atira-o ao martelo que já abana a
cauda, grato. Em seguida, tira uma avultada quantidade de tabaco, enche o cachimbo. Senta-se
na charrua, à minha frente, começa a fumar. Quanto mais fuma mais alarga-se o seu sorriso.
Abro a tigelinha.
Que coincidência! É a minha favorita comida: fígado de porco com arroz. É o que a
minha mãe, todos domingos, a mando do meu pai cozinhava.
Anoitecia. Jantávamos e só depois íamos ao culto na igreja do pastor Pedro Paulo Pontes.
O meu pai dizia que aquela refeição era sagrada. O fígado de porco era para nos purificar
o corpo para que a força de Deus viesse nos habitar sem expulsar os nossos antepassados.
Adicionava que aquele fígado criaria uma indissolúvel amálgama dentro de nós para que essas
duas entidades espirituais nunca entrassem em choque. Era imperioso que fosse fígado de porco
porque este é o único animal que resiste ao veneno de qualquer serpente; deste modo, as
gorduras presentes nele são uma indestrutível muralha.
A minha mãe seguia a ordem do meu pai, mas a nós dizia que o pai mentia-nos. A única
justificativa para a exigência daquela refeição aos domingos era simplesmente para alimentar a
sua obsessão pela carne de porco. Deus e os antepassados nunca se misturam, são duas entidades
diversas. Onde uma reina a outra se distancia, era o que ela, por sua vez, salientava.
Eu e Pedrito nos sentíamos como um comboio com duas locomotivas, uma em cada
extremidade e as duas puxando para direcções opostas. Preferíamos acreditar nas palavras da
mamãe, ela parecia mais concisa no seu pensar em relação ao meu pai; talvez porque não
consumia fumos. O meu pai abusava do tabaco e às vezes do álcool ao ponto de ele mesmo não
conseguir distinguir o seu estado de lucidez da embriaguez. Ao lembrar-me desta contradição
entre os meus pais, volto também a pensar na frase de velha Marta Tempestade ‘’os
Orvalho em Chamas

antepassados são guiados por deus e eles guiam deus a nós’’, e tudo em mim resume-se em uma
palavra: confusão.
Antigamente, sempre que o meu pai enaltecia o porco, o nosso vizinho, Mafemane e a
sua esposa Laurinda insurgiam-se. Para eles, porco era abrigo de demónios. Todos demónios.
Sendo assim ninguém o devia comer.
O casal discutia com o meu pai até desaguarem em fadigas.

Termino de comer.
Faztudo coloca de volta a canga aos pescoços dos bois, conecta a carroça já com a
charrua jazendo no seu dorso. Ele ainda continua com um sorriso na face. Aproveito o momento
para perguntar-lhe:
Por que mima tanto os bois, tio?
Os bois viram-se a mim, mugem em simultâneo. Faztudo liberta uma abaulada
gargalhada. E responde:
Estes bois são tão especiais que tu nem imaginas.
Eu gostaria de saber, Tio Faztudo, implorei.
São mais especiais que aquela bicicleta…
É verdade isso?
Já viste que estes bois percebem a nossa língua e sabem partilhar cigarros?
É isso que tanto me espanta, tio.
Faztudo posiciona-se em frente aos bois. Apaga o cachimbo, coça-se a barba. Pergunta-
me:
Queres mesmo saber…?
Sim, quero!!
Os bois mugem de novo.
Estes bois não são bois, disse ele, deixando-me mais curiosa e canfusa que antes.
O que são?
São pessoas!
Que pessoas, senhor Faztudo?
Não vês?

109
Fernando Absalão Chaúque

Ele vira-se, afronta os bois deixando-me do seu lado esquerdo. Indica o boi mais gordo.
Este boi chama-se Mungoni Faztudo, o meu pai.
Indicou o outro. Disse:
E esta vaca chama-se Khumane Zuwa, a minha mãe.
Nada estou a perceber, senhor
É o que estou dizendo, Tristeza. Esses bois são os meus pais.
Seus Pais?
Sim. Meus pais transformados em bois.
A minha curiosidade triplica-se.
Quando Faztudo narrava o episódio em torno do primeiro dia que viu a bicicleta bmx não
mencionou os nomes dos seus progenitores. Apenas descreveu o que aconteceu. E agora diz-me
que estes bois são os seus pais. Como assim? Considerando a sua proposição; surgia-me uma
indomável questão:
Como é que eles se transformaram em bois?
É uma longa história!
Quando o pai do Faztudo regressou com a bicicleta não podia mais voltar para as terras
alheias e continuar a trabalhar nas minas. Por isso, com o dinheiro da pensão ele e a esposa
decidiram abrir um talho e comercializar carne. Certo dia, eles compraram um boi num jovem
que o havia roubado numa localidade distante. Mataram-no e venderam toda carne. Depois de
uma semana os dois morreram. No dia do enterro, quando se estava quase a depositá-los nas
covas, dos caixões ouviu-se incessantes mugidos. Quando o pastor abriu os ataúdes percebeu-se
que o casal se havia transformado em dois vitelos. Os anciões procuraram um curandeiro para
interpretar o que havia acontecido. Ele revelou que o boi que os pais do Faztudo haviam
comprado tinha sido roubado. E o seu legítimo dono havia colocado um feitiço neles para que
qualquer um além dele que por acaso o matasse se transformasse em boi. Os anciões e o
curandeiro fizeram tudo que podiam, mas não conseguiram reverter o feitiço. A única alternativa
que o Faztudo teve foi criar aqueles bois. Já se passavam muitos anos. Os bois cruzavam-se mas
nunca se reproduziam.
É isso que me faz gostar tanto destes bois… eles são os meus pais. Eu sou um filho de
bois.
Orvalho em Chamas

Regressamos a casa. Faztudo continua estranho. Está com um sorriso na face. Trata-me
sem desdém. Hoje não berra para mim. Deixa-me passear pelo pátio. Diferente doutras vezes que
ao regressarmos do campo de cultivo mandava-me ficar na palhota. A dona Tempestade aquece
água para o meu banho. O Santos oferece-me novas roupas. Depois do banho dão-me um
condigno jantar. Fico feliz. Há muito que ninguém me tratava com carinho.
Anoitece. Vou à palhota. Deito-me na cama. Sem imaginar que pela primeira vez o
Faztudo preparava-se para vir me violentar.
Caro leitor, não voltarei a contar como foi o primeiro estupro. Já narrei isso lá atrás.
Lembro-lhe apenas que, naquele dia, o meu brado era fulminante.

111
Fernando Absalão Chaúque

NAPWERE – CURVADO COMO UM ARCO


Orvalho em Chamas

Se não se tem um bom pai,

é melhor arranjar um.

(Nietzsche)

113
Fernando Absalão Chaúque

O meu pai seguiu a enfermeira depois que ela fechou a porta.


Ele é muito alto que ela não lhe alcança a cintura; tão alto que teve de se curvar como um
arco (prestes a impulsionar uma flecha) para poder trespassar a entrada. As suas mãos são
enormes pás em movimento. O nariz arrebitado. As orelhas pequeninas afogadas nas incríveis
assimetrias do exótico semblante.
Ele trajara largas calças de linho e uma camisa cinzenta, esbranquiçada; calçara sandálias
de fabrico caseiro, das quais o seu calcanhar transbordava.
O meu pai é lindo, pensei logo que o vislumbrei de esguelha. Aliás, todo progenitor é
sempre um anjo aos olhos dos filhos (vice versa), ainda que carregue terrificantes anomalias.
Eu amava-o. Aprendera a amá-lo antes de espreitar o mundo.
Quando a minha mãe ouviu a porta fechar-se apavorou-se. Senti seu coração aforçurar-se.
O seu cabelo e os fios cutâneos levantaram-se perfurando o vestuário e o lenço.
Estranho! Não devia ela alegrar-se ao saber que o seu marido viera vê-la?
Há minutos, enquanto a enfermeira escorraçava a minha avó, a minha mãe segredou algo
à parteira e implorou que ela não deixasse o meu pai entrar para nos ver. Porém, não houve
tempo suficiente, pois enquanto ela tentava explicar os motivos do seu pedido, a enfermeira já
entrava com ele seguindo-a como uma sombra em chamas.
A enfermeira guiou o meu pai ao banco em que a avó Tempestade estivera sentada; e
disse:
Vocês são um casal mil maravilhas!
O meu pai exibiu um sorriso tragicamente falso (incrível: a sua feiura avivava-se quando
exibia aqueles dentes adamastorianos.) A minha mãe fingiu não ter ouvido o comentário da
enfermeira, manteve-se imóvel no beliche.
Por que dizem isso?, o meu pai perguntou, com sua voz de leão.
Porque poucos homens vêem visitar as esposas aqui.
É porque muitos são machistas, a parteira comentou. E adicionou, pensam que
maternidade só pode ser pisada por mulheres...
Eu não vim visitar, vim buscar o meu filho para casa.
A parteira respondeu que eu e a minha mãe ainda não podíamos sair dali.
Orvalho em Chamas

Estão a negar? O parto já está. O que falta?


Ainda precisamos observar os dois, dar um acompanhamento e conselhos básicos à sua
esposa.
O meu pai levantou-se, colocou as duas mãos na cintura formando dois "Vs" horizontais,
entreolhados. Respirou fundo. Tirou um pano do bolso da camisa, limpou-se a cara. Pôs-se a
pensar por um curto tempo.
Tristeza, organize as suas coisas e vamos embora.
Ah...ah...
É uma ordem!
A minha mãe começara a tecer a resposta, mas lembrou-se que estivera fingindo
profundas sonolências.
Senhor, controla-se...ou sai daqui já...!
Só saio daqui com o meu filho, os anciãos estão à espera lá em casa…
Afinal daqui não vou para o tal umbigo da terra?, depois de uma longa elucubração a
minha mãe questionou-lhe com a voz encapada de medo.
O meu pai refutou. Colérico. Explicou que era necessário que eu passasse por uma
cerimónia de apresentação aos espíritos da família. Depois ele me atribuiria um nome. Em
seguida a Tempestade tinha que me brindar com o Ngombela e fazer-me o Kenguelekeze só
depois é que poderia ir ao umbigo da terra. Adicionou que a minha mãe não precisava dos
conselhos do hospital, pois aprenderia tudo lá no Umbigo da Terra. Ademais, para ele os
ensinamentos hospitalares distorciam a cultura e a tradição, impulsionavam principalmente as
mulheres a desrespeitarem os maridos.
O senhor estudou até que classe?, perguntou a parteira.
O meu pai já parecia ter uma lava governando-lhe a casa dos nervos. Respira fundo e
depois responde que deixou muito cedo a escola. E a partir daí, a sua escola é o mundo, a
natureza. Interessa-lhe saber a língua, os sinais e as regras do universo para poder viver porque
ela é o melhor professor e a melhor página a ser lida. Para o meu pai a escola é inútil, é apenas
um sítio onde se vai aprender as regras dos brancos. A falar a língua deles. A pensar, a vestir, a
rezar, em suma, a viver como eles.
E você não quer ser como um branco?, a enfermeira pergunta-lhe, sarcástica.

115
Fernando Absalão Chaúque

Não quero. Eu aceito-me assim como sou. Acredito-me. Você já viu um branco que quer
ser negro?
A escola é boa, talvez teria te ensinado a controlar esses teus nervos aí, a parteira
interfere.
O meu pai salienta que é por essa razão que desistiu da escola. Porque ela é uma
lavandaria de mentes, lá transforma-se pessoa em animal, ensinam-lhe apenas a seguir ordens,
calado, só porque estão escritas num papel e cobertas por um carimbo qualquer. Na escola, só se
equipa o homem para ter um emprego e continuar cego. A escola é uma forma de colonização.
Não quero isso. Nem para o meu filho.
Sabias que é a escola que criou esta maternidade onde o seu filho nasceu?
Parem de me questionar merdas, quero o meu filho já...!!
Vejo que não há diferença entre você e a sua mãe Tempestade, comentou a enfermeira.
Tristeza, não me faça falar muito ou ainda venho aí e te baptizo com umas boas
chapadas.
No berço, comecei a chorar. O meu pai virou-se aonde eu estava. Fascinado?
Um súbito e sincero sorriso nasceu-lhe.
(Sincero sorriso?
Talvez.
Talvez.)
Fascinado, sim! Já nem parecia o que há pouco tempo estivera aos berros vomitando
ameaças para a minha mãe. Deslocou as mãos da cintura à cabeça, feliz.
É o nosso filho esse que está a chorar?, ele perguntou a minha mãe.
Sim, ela monossilabeou.
Posso ver o meu...
Não. Estamos para observá-lo agora, até amanhã, respondeu a parteira colocando as
luvas.
Era o que a minha mãe pedira à parteira: não deixar o meu pai me ver. Assim, evitava-se
mais um megalómano barulho na maternidade. Ou ainda, uma reacção trágica. Mais agreste que
a da Marta Tempestade.
Deixem-me espreitar um pouco aí no berço.
Infelizmente, não será possível, respondeu a parteira.
Orvalho em Chamas

O meu pai sentou-se no banco, mas manteve o olhar fixo ao berço por longos minutos.
Nada mais falou. Não estava ele já domado? Colonizado pela emoção de ser pai à primeira?
Quando poderão sair daqui?
Amanhã, às 10 horas da manhã pode vir buscar a sua esposa, senhor Santos Faztudo, a
enfermeira respondeu; elevou a mão direita na direcção da porta, sinalizando que o meu pai
devia se retirar. Incrivelmente, o meu pai não mais refutou. Levantou-se. Caminhou em direcção
à entrada. De vagar.
Neste curto trajecto ainda manteve seus olhos presos ao berço até voltar a
se curvar como um arco (prestes a impulsionar uma flecha).

117
Fernando Absalão Chaúque

Cidade das Palmeiras, 20 de dezembro de 1996

Meu Companheiro
Carlos Cardoso

Caríssimo colega, escrevo-lhe com as mãos cheias de febre. As letras saem-me trémulas e
ziguezagueadas como se um morcego em alto voo as ditasse aos meus dedos. Mas, acredito que,
tudo que vou aqui gatafunhar será legível aos seus olhos.
Ilustre, a cidade está em chamas. Cada avenida é uma crescente lava devorando tudo em
seu redor como um hipopótamo que se engole inteiro para o seu próprio estômago. Não sei se
estou descrevendo bem o mood em que a cidade hoje se encontra. Deixe-me esquecer as figuras
estilísticas e ir aos detalhes. Não é melhor assim?
Tudo começou quando uma multidão de quase trezentos cidadãos reuniu-se na Avenida
das Palmeiras, na baixa da cidade. Este grupo estava munido de panfletos borrados a letras
garrafais. De imediato, deleguei um colega nosso para ir àquela avenida colher informação; está
claro, normalmente, a notícia nunca vai ao encontro do repórter; lá, o colega apurou que aquela
multidão estava em marcha contestando a violação dos direitos humanos no país. Em particular,
revogava as barbaridades perpetuadas contra albinos e entoava hinos contra qualquer forma de
estigmatização social.
O grupo era composto por membros e representantes da associação de pessoas com
albinismo, várias ONGs, sociedade civil e liga dos direitos humanos. Na dianteira, via-se em
média cinquenta albinos empunhando enormes panfletos que ostentavam as seguintes frases:
"Todos somos pela Eyupuro."
"Juntos contra o tráfico de pessoas com albinismo."
“Albino não é fonte de riqueza."
"Diga não à violência e estigmatização de albinos na localidade de Eyupuro e em todo o
mundo."
"Exigimos a responsabilização dos criminosos."
"Parem de nos sequestrar."
"Somos todos iguais."
Orvalho em Chamas

"Ninguém escolhe nascer albino."


A multidão partiu da Avenida das Palmeiras e tencionava desaguar na rua que vai dar ao
Ministério da Justiça. Mas tudo estragou-se nos últimos quinhentos metros do percurso. Meu
caro Carlos, o que devia ter terminado da forma mais pacífica possível transformou-se em um
baile de violência, sangue e tempestade entre a polícia e a multidão. Antes do início da marcha,
ainda na baixa da cidade, um grupo de polícias veio exigir o documento que autorizava aquela
manifestação. A presidente da associação das pessoas com albinismo apresentou-o, devidamente
carrimbado e assinado pelo presidente do municipio. Mas mesmo assim a polícia inventou tantas
complicações, depois desapareceu alegando que ia ao município confirmar a autenticidade
daquele documento.
Mais tarde, quando os manifestantes dobravam a esquina da Avenida das Palmeiras para
sobressair na rua Martin Luther king jr. e posteriormente trilhar a rua do Ministério eis que três
carros da polícia bloqueiam a passagem; sem nenhum pronunciamento, a polícia começa a lançar
gás lacrimogéneo e a disparar à queimaropa balas de boracha à multidão alegando que o
documento apresentado pela presidente da associação das pessoas com albinismo era falso.
O tumulto piorou porque a acção da polícia inquietou a quase todos que por perto dali se
encontravam, e, de imediato, decidiram juntar-se ao grupo que marchava e afrontar a polícia.
Muitas pessoas sairam das residências arredores com fósforos, petróleo, botijas de gás,
incendiaram os caros da polícia e muitos pneus no meio das ruas. A raiva alastrou-se por todas as
avenidas da cidade até chegar às redondezas das nossas instalações. Enquanto rabisco estas
palavras, assustadoras explosões crescem lá fora, as sirenes infestam a audição, os bombeiros
lutam contra as chamas.
Meu caro, tudo isto demonstra que a liberdade de expressão ainda é uma utopia
inalcansável no nosso país. Apesar de todos os órgãos de informação noticiarem a existencia da
perseguição dos albinos no nosso país, e, em grande escala aí em Eyupuro há quem não está
interessado em resolver ou, no mínimo, investigar este acto macabro. Por isso, fizeram-se todos
os possíveis malabarismos para interromper a marcha. Esta é mais uma prova de que somos
dirigidos por um bando de impostores, larápios, ignorantes preocupados em apenas encher os
seus estômagos.

119
Fernando Absalão Chaúque

Mudando de assunto: recebi as cartas, partilhei todas com o nosso elenco apesar de não
ter respondido a todas. A que refere que estás prestes a descortinar o problema deixou-nos
jubilosos. Avante, ilustre. Não pára! Estamos ansiosos para saber as causas e os mandantes do
tráfico de albinos aí em Eyupuro. Estamos confiantes de que em breve terás o trabalho concluído
e o nosso jornal será o primeiro a publicar uma reportagem concisa em torno desse fenómeno
sangrento.
Confesso, estou com inveja de ti, meu caro, queria ter sido eu a ouvir esse grupo coral a
entoar “Orvalho em Chamas” ou a ouvir a Khefassi explicando o surgimento desta canção e a
falar do tal Umbigo da Terra. Na verdade, acho que esta missão está a ser mais que divertida para
ti.

Desejo-te continuação de uma boa investigação.

Abraços
Orvalho em Chamas

TRISTEZA – AVE DA DESGRAÇA

121
Fernando Absalão Chaúque

~ Lembro-me de ter contado que Faztudo morreu depois de me ter violentado


diariamente durante três meses. Mais uma vez peço a sua compreensão, caro leitor, quero aqui
narrar um evento que aconteceu duas semanas antes da morte do velho. ~
Orvalho em Chamas

É noite soturna.
Estou perdida numa insolúvel insónia. A minha consciência não me deixa adormecer.
Desde que o velho Faztudo começou a me violentar raramente durmo. Ou melhor, nos últimos
dias, as minhas noites correm abastadas de sono que nunca é dormido; durmo apenas de olhos
arregalados. Às vezes embarco num súbito cochilo, superficial, como os mochos do pastor Pedro
Paulo Pontes suspensos na fedorenta figueira de Eyupuro. Sentada na cama, escuto o meu
coração ribombar à espera do Faztudo entrar e mais uma vez fazer de mim o seu objecto sexual.
Enquanto ele não chega rezo pedindo que a próxima seja a derradeira vez.
Estou farta desta vida!
Sinto-me suja. Apetece-me tomar um longo banho. Mas é um desejo que não poderei
satisfazer. A velha Tempestade só me deixa banhar apenas uma vez por dia. Do jeito que agora
desdenho o meu corpo fá-lo-ia mais de cinco vezes. Se possível transformar-me-ia em peixe para
definitivamente viver debaixo das águas. Porém, tenho de enfrentar esta dura realidade. Sou um
pedaço de lixo. Uma escrava sexual de um homem que em mim devia naturalmente ver a sua
neta.
Sacana do velho!
Da minha mente vão-se apagando os poucos e bons momentos que já vivi. Mas, nunca
me esquecerei dos meus colegas e amigos com quem sempre ia a escola. Nunca me esquecerei
do meu sonho de ser jornalista. Os meus colegas também sentem saudades de mim. Sem dúvidas,
eles já foram várias vezes a minha casa perguntar por mim. O meu pai deve tê-los enxotado logo
que os viu: voltem às vossas casas. Não pisem mais aqui. Acredito que a ninguém ele terá dito
que me entregou ao Faztudo. Se calhar informou a todos que estou algures em casa de familiares.
Enquanto estou em Ohawa, um lugar que antes era uma incógnita para mim. Quero voltar para
Eyupuro, pese embora não sei que direcção tomaria mesmo se Faztudo agora me libertasse.
***
É noite.

123
Fernando Absalão Chaúque

Martelo ladra, talvez para assustar as vagantes sombras nocturnas ou simplesmente para
marcar o seu território ou comunicar-se com outros cães. Distante, ouve-se cânticos de pavões
tentando encantar o coração da noite. Nas redondezas da palhota, o vento assobia serenamente
lambendo os ramos das árvores.
De repente, algo pousa no teto da casota, desloca-se rapidamente, provoca um estranho
ruído. O meu cabelo levanta-se, treme.
Que horror!
Todos os cães apavoram-se. Ladram, arranham as paredes. Tentam escalar a casa para
abocanhar a suposta coisa que dança no telhado. Não tenho como a ver. Não posso sair. Se quer
tentarei. O Martelo ladra mais alto que todos, rodeia a palhota, mas sem demoras volta à porta.
Levanto-me da cama. Contemplo a cobertura como se os meus olhos pudessem ver o que do
outro lado se locomove. Acendo a lamparina. Pelo menos, se essa tal coisa perfurar a cobertura
matar-me-á depois de a ter visto. Ou então, poderá espantar-se diante da luz e desaparecer.
Os cães não cessam a azáfama. A tal coisa posiciona-se no meio da palhota; depois de
alguns minutos grita três vezes consecutivas. Só agora percebo que é um mocho. Deve ser um
enorme mocho para criar tanto ruído na cobertura e gritar tão estrondosamente.
Saia daqui! Desapareça!
Os cães ladram mais tenebrosos que antes.
Estou deveras assustada. Asseguro a lamparina, elevo-a ao teto, sem nenhum
fundamento. O desespero guia-me as acções.
Desapareça daqui!
O mocho volta a gritar três vezes consecutivas.
A paz, por favor! Que os espíritos me livrem de ti.
O mocho pára de gritar. Começa a dançar na cobertura da palhota.
Aliás, que Deus me livre!, rectifico.
Dualizo as minhas preces. Vivo numa eterna confusão. Não sei se venero somente aos
espíritos dos meus antepassados ou a Deus. Não tenho a certeza de qual dos dois é realmente o
escudeiro dos humanos. E, apesar de ter crescido a ouvir que estes são entidades diversas,
distantes, quando estou em apuros, como agora, invoco os dois. O que me ouvir primeiro ajudar-
me-á. Não há nenhum comboio que ande somente num único carril. Não há nenhum carro que se
mova somente com uma roda. Quem sou eu para confiar em apenas uma divindade?
Orvalho em Chamas

O animal pára de dançar. Ouço-lhe a encetar o voo.


Sua desgraçada!
É isso que a minha mãe me ensinou.
O mocho é uma ave da desgraça, Tristeza.
Ela dizia sempre isso quando voltávamos do culto na igreja do pastor Pedro Paulo Pontes.
Aquilo é uma ave da desgraça, não é o cérebro de Deus.
Assim, a minha mãe contrariava o que o pastor da nossa tão querida Church Mbunya
sempre dizia. E fundamentava que assim a chamava por várias razões. Primeiro, ela dorme
durante o dia e só se desloca quando a noite cai. Segundo, ela é prenunciadora do mau augúrio,
da morte. Por fim, explicava que na casa onde o mocho pousa, grita e dança no telhado a
desgraça e a morte não tardam a chegar.
Se esta ave fosse benigna sairia de dia também, encerava ela a explicação.
Espero que a minha mãe tenha estado sempre errada. Não sei se suportaria pior desgraça
que esta que vivo nesta vida.
Os cães sossegam-se. Largo a lamparina no seu devido lugar. O petróleo já se vai
esgotando. Mas tenho medo de apagá-la, ainda estou aterrorizada. Deito-me na cama. Respiro
fundo. Concentro-me na minha respiração e escuto atenciosamente o caminhar do meu coração.
Esqueço o mundo. Por fim, adormecendo.
***
Desperto.
É madrugada do dia seguinte.
Sinto que algo percorre-me os dedos dos pés, acaricia-me, suavemente. Aguço a atenção.
Será que estou a sonhar? Não. É uma mão rugosa que me acaricia. Merda! O Faztudo não me
veio violentar ontem à noite, pensei que me tivesse esquecido, ou tivesse decidido nunca mais
fazer de mim o seu objecto sexual. Mas, não. Ele estava apenas a mudar de horário. Ei-lo aqui
em plena madrugada.
A mão continua a ler-me os contornos do corpo; convoca o companheiro. Já são duas
mãos a acariciar-me. Sobem até os joelhos, descrevem ambos os pés num tactear paulatino. A
mão que me bebe a pele da perna esquerda é mais cortante que a outra. Ou seja, tem mais calos.
Nada digo. Preparo as emoções. Já sei o que está para acontecer.

125
Fernando Absalão Chaúque

As duas mãos vão subindo, subindo. Parqueiam-se nas minhas coxas, tacteiam-nas em
sucessivas espirais. Sobem até à minha cintura. Primeiro tiram-me a saia, depois a roupinha
interior. Apalpam-me as diminutas nádegas. Apalpam-nas silenciosamente como se testassem a
madureza de uma papaia. Isso arrepia-me o corpo todo. Cria-me um imenso desconforto.
Filho estás a sentir isso?
É a voz do Faztudo que arremessa esta pergunta. Que questão é essa? Talvez o velho
fumou muito que já não consegue distinguir os géneros. Corrijo-o:
Filha, não filho. Sou uma menina, tio, você sabe!
Fecha a boca, Tristeza, não estou a falar consigo, Faztudo ralha.
Segue-se um curto silêncio que é em seguida enforcado por uma outra voz.
Sim, pai. Estou a sentir, até as minhas calças já estão a se encher, parece que tenho uma
cobra a deslizar aqui no meio, acho que o meu cinto vai-se arrebentar, pai.
(Inferno!)
É a voz do Santos.
Misericórdia!
O que é que os dois estão aqui fazendo? Impossível, eu devo estar alucinando.
Não se preocupa, minha filho…
Uma outra voz? Sim!
Que absurdo! Há uma terceira voz aqui. Sabe de quem é? É da Marta Tempestade. Hoje
os três interromperam o sono para virem a minha palhota? O que querem fazer comigo?
Meu deus! Meus espíritos! Ajudem-me!
Uma das mãos ausenta-se, pára de apalpar-me.
Filho, continua sozinho, agora faz o que eu te expliquei ontem, diz Faztudo.
Fazer bem aí, complementa a Tempestade!
O Santos nada diz. Percebo que agora ele é o único que continua a apalpar-me as
nádegas. Choro. Nenhum dos três se importa com isso. Ele espanca-me as nádegas como se me
punisse. Vem-me a imagem da minha mãe batendo-me com chinelo sempre que fazia algo
errado. Santos rasga-me a blusa. A imagem da minha mãe desaparece da minha consciência. A
mente desnorteia-se sempre que estamos em apuros.
Pára! Pára! Não!
Fecha a boca!, ordena o Santos com a sua monstruosa voz.
Orvalho em Chamas

Não faz isso comigo, grito.


Você é minha esposa, Tristeza. Posso fazer o que eu consigo quiser.
Ele dá-me duas chapadas. Calo-me. Sinto um zumbido percorrendo-me a audição.
Ninguém suportaria as chapadas do Santos. Ele tem mãos enormes, calejadas, assustadoras.
Isso, minha filho! Diz a Tempestade.
A Tempestade acende a lamparina. O Santos desce da cama. Despe-se. Depois regressa.
Põe-se em cima de mim. Grito mais alto que nunca. Insulto-o. Ele agride-me mais. Os seus olhos
e boca enormes parecem que se preparam para me deglutir. Continuo irrequieta. Movimento-me
continuamente para que ele não consiga lograr os seus intentos. Continuo a gritar. Na tentativa
de ele cobrir-me a boca acaba tapando-me toda a cabeça. Mordo-lhe a palma da mão. O homem
ulula de dor. Volta a bater-me. O zumbido engorda-se. Mas prefiro que Santos me torture mais
vezes que aceitar que ele introduza o seu grandioso falo dentro de mim. Prefiro morrer, em vez
de ter este enorme apêndice rasgando-me as entranhas. De facto, Santos é um monstro. Juro! É
alto e bojudo que diante dele pareço uma anã. O seu falo é tão grande que pela grossura triplica o
meu braço. Mais uma vez, Santos desce da cama. Raivoso.
Meu deus! Meus espíritos! Ajudem-me! Salvem-me disto, por favor!, imploro, de dentro
de mim para os ouvidos das minhas tão confiadas divindades. Espero que pelo menos uma delas
me ouça.
O velho Faztudo arranca a lamparina das mãos da Tempestade.
Tristeza, pára com essa indisciplina. Tens de aceitar a sua marido. Vocês devem fazer
sexo diante de nós para que a vossa casamento seja abençoada pelos antepassados da família
Faztudo, diz a Marta Tempestade.
Eu nunca irei aceitar. Não foi isso que se combinou com o meu pai. Estou cansada, todos
dias o Tio Faztudo me violenta. E hoje já estão a me entregar ao vosso filho? Eu quero voltar
para minha casa!
Tristeza, você não irá a nenhum sítio. Eu te lobolei com a minha bicicleta e aqui nesta
casa tu deves obedecer as nossas ordens e os nossos costumes, proclama o velho Faztudo.
Olho para o Santos. De cima para baixo. Concentro os meus olhos no seu falo.
Meu deus! Meus espíritos! Ajudem-me! Salvem-me disto!

127
Fernando Absalão Chaúque

Levanto-me. Fico em pé diante dos três. Afronto-lhes. Não me reconheço. Nunca fizera
isso antes. A raiva domina-me. Guia-me os neurónios. Repito que preciso voltar a minha casa. E
como não me lembro do caminho exijo que eles me acompanhem de volta.
Tristeza, não queira piorar os coisas, filha, adverte-me a Marta Tempestade.
O Santos enerva-se. Vejo as veias desenharem-se da sua face ao pescoço. O seu falo
movimenta-se seguindo a pulsação do coração. Faztudo começa a transpirar. Devolve a
lamparina à Tempestade. Vem até à cama, pára numa das extremidades. Arregala os olhos ao
filho.
Subitamente, Santos arremessa-me uma chapada que em mim soa como um trovão a
rasgar a atmosfera. Caio na cama. Embriagada de tonturas.
Porra, agora terás o que sempre mereceste, Santos declara.
Eu te avisaste muito bem, grita a Tempestade enquanto aproxima-se para ver tudo de
perto.
Filho, faça daquele maneira que nós te disse, recomenda a Tempestade.
Tudo gira em meu redor. A minha visão está embaciada: os dois homens são sombras
esbranquiçadas.
O Santos sobe-me. Tenta introduzir o seu falo em mim. Insiste. Insiste seguindo as
orientações dos pais. Insiste inúmeras vezes. Mas não consegue.
Faztudo despe-se. Diz ao filho para sair de cima de mim. Ele sobe-me. E sem fazer tanto
esforço sinto o seu músculo adentrar-se-me. Dói-me ser mais uma vez estuprada. Porém, arrisco
e digo que já estou acostumada ao velho. Apesar de que nada é agradável quando feito por
obrigação.
Veja filho, veja como a tua pai está a fazer… tens de fazer assim também.
As tonturas triplicam-se. Nada mais consigo fazer além de manter-me deitado na cama.
Não me restam forças se quer para piscar os olhos. Estou morrendo. Sem demoras, o velho sai de
cima de mim.
É a vez do Santos.
Meu deus! Meus espíritos! Ajudem-me! Salvem-me disto!
O Santos sobe-me mais uma vez. O seu falo ainda se recusa a introduz-se em mim. É
enormíssimo. Mas ele insiste. Sem nenhum pingo de pena. Por fim, meu Deus!, o seu músculo
introduz-se. Que horror! Sinto meus lábios (menores e grandes) rasgarem-se. Choro, enquanto o
Orvalho em Chamas

Santos vai me violentando como se eu fosse uma pedra. Sinto dores que nunca antes sentira. O
meu mundo vai ruindo. Faztudo e Tempestade batem palmas para o filho.
É isso, mesmo, Santos. Marta, o nosso filho já é um homem verdadeiro.
Avança minha filho, mexe assim mesmo. A tua casamento já está abençoada, minha
filho… esse é a tua esposo que a tua pai lobolou para ti.
Sinto muito sangue a jorrar de dentro de mim. Acho que a morte já se aproxima para me
levar. Nada me pode salvar. Nem as minhas duais orações tem poder agora. Nenhuma das
minhas divindades se pronuncia. Devem estar muito ocupadas ou já não querem saber nada de
mim.
Sangro. Sangro. Sangro. Mas o Santos não pára. Está feliz porque hoje é o dia em que ele
transforma-se em homem. Um indivíduo com mais de trinta anos é só hoje que será um
verdadeiro homem? Não. Acho que não. A única coisa que ele será a partir de hoje é um
monstro.
A Tempestade assiste-me a ser massacrada. Que Triste! Ela não percebe que Santos e
Faztudo não estão violentando somente a mim. Agridem a toda humanidade. Estupram a todas as
mulheres do mundo. Não sou a única que agora sangra. Em mim sangram todas as mulheres do
mundo.
O Santos atinge o primeiro orgasmo depois de quase meia hora. Mas não pára. Continua
a me violentar. Quando ele atinge o segundo. Já não existo. Estou com o corpo todo frio.
Desalmada. Sinto que derreto-me e evaporo como um orvalho em chamas.
Terá sido esta a tragédia que aquele mocho viera prenunciar?

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Fernando Absalão Chaúque
Orvalho em Chamas

NAPWERE – UNHAGO

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Fernando Absalão Chaúque

O passado é uma inexistência.

Igual ao presente, semelhante ao futuro.

Prevalece na eternidade apenas o tempo.

(Bee Yoni O Dragão, Eterna Paz)


Orvalho em Chamas

Tristeza, como consegues viver com eles?, perguntou a parteira.


Assim mesmo, mana!
A enfermeira vestiu a bata. Intrometeu-se:
Não há pior maldição que conviver com dois diabos no mesmo tecto.
A parteira consentiu levantando o polegar. E sugeriu:
Devias voltar à casa dos teus pais...
A minha mãe disse que não se lembrava do caminho de volta. Explicou-lhes como viera a
Ohawa. As duas eriçaram-se, surpresas. Era inacreditável que um pai tivera tão ridícula atitude
para com a própria filha. A minha mãe pediu-lhes que a ajudassem a descobrir o caminho de
volta a Eyupuro. As duas disseram que só conheciam as cercanias do hospital. Desde que
chegaram da capital nunca se atreveram a sair para conhecer outros ares.
***
Eu ainda chorava.
A parteira tirou-me do berço. Entregou-me à minha mãe. Senti o cheiro do leite
aproximar-se.
Definhei o choro. Um mamilo invadiu-me os lábios. Comecei a chupar.
A parteira levou a ficha amarela que estava no meu berço, leu-a, duas vezes como se não
tivesse sido ela a preenchê-la.
13 anos...essa é a tua idade real?
A minha mãe disse que sim.
A enfermeira, pousada no banco, comoveu-se. Uma criança-mãe? Quem não se
enterneceria diante daquele facto? Pior depois de ter visto a estatura física e o perfil psicológico
do meu pai.
E o teu marido?
Tem 38 anos...
Meu Deus!!, as duas gritaram numa homogénea voz.
Tristeza, você aceitou deitar-se com um homem com o triplo da sua idade?

133
Fernando Absalão Chaúque

Eu nunca aceitei, senhora parteira...


Aceitou sim, e o resultado está aqui. A parteira disse estas palavras apontando-me a mim.
Ele me estuprou...e continua a fazê-lo...
Todos dias?
Sim, mesmo ontem, de madrugada antes de vir aqui na maternidade, ele me violentou...
Quando foi a primeira vez? E…ainda eras virgem? Perguntou a enfermeira.
Ele começou a me violentar no ano passado...
Quando tinhas 12 anos?
Sim!
E já não eras virgem com 12 anitos?
A minha mãe confirma com meia nuvem de vergonha na face.
O que te aconteceu antes?
Fez-se um silêncio fantasmagórico no berçário. Por longos minutos só se ouvia vozes que
germinavam fora e entravam pelas frestas das semiabertas janelas, o chilrear de pássaros
pousados no teto do edifício, o linguajar das chapas a dilatarem-se devido ao raivoso calor.
A minha mãe hesitava em revelar tudo o que lhe acontecera. Era-lhe difícil. E seria para
qualquer uma da sua idade. Era como reabrir uma ferida no peito com as próprias mãos. Porém, a
parteira e a enfermeira estavam decididas a saber de tudo.
Estou a perguntar… ah…quando perdeu a virgindade?
Quando me estupraram pela primeira vez...
Quem foi o maldito?
Foi o pai do Santos, o velho Faztudo.
Tristeza, tu deves denunciar isso tudo. Sugeriu a parteira.
A minha mãe ficou a pensar por instantes.
Denunciar o velho Faztudo?
Sim!
Ele já morreu...
Então denuncia o Santos, disse a enfermeira.
Não posso, mana. Tenho medo.
O que ele fez é um crime, tu deves denunciar, Tristeza. A enfermeira reiterou.
Se eu denunciar, o que vai acontecer?
Orvalho em Chamas

Ele será preso. Ficará na cadeia por muito tempo.


Não, o meu marido não pode ir para cadeia...
Ele é um criminoso deve ser denunciado...
A minha mãe disse que não podia denunciar o meu pai. Começou a defender-lhe: ‘’Pode
ser um criminoso mas é meu marido. Se ele for encarcerado quem ficará a nos dar de comer em
casa? Quem vai cuidar do nosso filho? Vocês as duas?’’
A parteira e a enfermeira perceberam que os seus conselhos transformavam-se em veneno
que lhes entrava goela abaixo sufocando-lhes a vida. E a minha mãe? Comportava-se como um
cabrito esfomeado que recusa-se a sair do curral ao pasto.
A parteira não abrandou. Replicou:
Tudo o que eles te fizeram é crime.
É verdade, Santos tem que ser preso porque violou e engravidou uma criança...
O corpo da minha mãe vibrou, todo, como se ela tivesse sido electrocutada:
Criança? Quem é criança aqui?
Você Tristeza... é uma criança, respondeu a enfermeira.
Eu não sou criança porque já passei do Unhago.
O que é isso? A enfermeira perguntou.
Estão a ver, vocês é que são crianças porque não passaram do Unhago.
O que é isso de Unhago? A parteira também questionou.
As duas aproximam-se ao beliche para beber do remédio das suas dúvidas.
‘’Unhago é um rito de iniciação praticado na minha localidade, lá em Eyupuro. ‘’
A minha mãe começa a explicar. ‘’Neste rito, meninos e meninas são preparados a
transitar do mundo infantil e assexuado para serem agregados à sociedade como pessoas
adultas.’’
A parteira tendo ouvido a parte referente ao sexo, interrompeu a explicação da minha
mãe. Questionou-lhe:
Todos são colocados no mesmo lugar?
‘’Não! São separados. Os rapazes são levados a um acampamento numa mata durante
quarenta e cinco dias. As raparigas são fechadas numa casa durante trinta dias.’’

135
Fernando Absalão Chaúque

Os rapazes são levados ao mato? Por quê? Questiona a enfermeira. A minha mãe
continua a explicar.
‘’Sim, os meninos são levados a uma cabana preparada só para o Unhago numa mata.
Eles devem estar distantes das suas casas (no mínimo a um quilometro). Perto desta cabana não é
permitido o contacto com mulheres. Se alguma entrar na área protegida é castigada. O caminho
que vai dar à cabana só pode ser percorrido por homens circuncidados. Se uma criança que não
esteja no grupo das iniciadas for encontrada nesse caminho pode ser circuncidada à força.’’
E o que comem lá? A parteira questiona em jeito de provocação.
‘’Os familiares de cada menino levam a comida para lá. Mas eles não chagam na cabana.
Encontram-se com o Inkaliba, o dito rei, que é o homem responsável pela circuncisão e iniciação
dos meninos; encontram-se com ele num ponto pré-definido onde ao chegar chamam-no com um
sino. Na cabana, os rapazes aprendem regras de convivência e sobrevivência. Aprendem a ser
machos e a desempenharem correctamente os seus papéis sociais. Durante o Unhago, cada
família deve hastear bandeiras em casa indicando o número dos filhos que estão a ser iniciados.
As bandeiras nos telhados e árvores junto às residências servem também para convidar vizinhos
a preparar produtos para a festa de recepção dos iniciados. Ora, durante o ritual há também uma
bandeira no acampamento para simbolizar que os meninos estão bem de saúde.’’
Eu não percebi, aonde são levadas as raparigas? Questionou a enfermeira. A minha
mãe suspira. E depois responde.
‘’Eu disse que as raparigas são fechadas numa casa durante trinta dias com a Inkaga, a
mulher responsável pela iniciação feminina, considerada a rainha por esta ocasião. Nessa casa,
elas aprendem a ser adultas. Recebem instruções de como cuidar do lar, obedecer e satisfazer
sexualmente o marido.’’
E para o tal Unhago como são seleccionadas as raparigas ou os rapazes? A parteira
pergunta.
‘’A condição mínima é ter dez anos de idade e o consentimento dos pais. Ademais, neste
rito as raparigas são ensinadas o que é menstruação, como cuidar de sua própria saúde, como se
comportar na sociedade, como se vestir em ocasiões diferentes. Durante o Unhago a Inkaga deve
sempre procurar saber dos sonhos da rapariga: acredita-se que sonhar com um boi é sinal de
vida, enquanto sonhar com um leopardo ou mocho pode ser sinal de morte ou desgraça
iminente.’’
Orvalho em Chamas

Então… o que se faz para os rapazes sairem da mata? Pergunta a enfermeira,


boquiaberta.
A minha mãe continua a explicar.
‘’Faltando duas semanas para os meninos saírem da mata, são levados para visitar os
familiares. O Inkaliba e os companheiros (que são sempre alguns anciões) fazem roupas com
folhas de bananeira para cobrir os rapazes. Deste modo os seus familiares não os poderão
reconhecer com facilidade. E devem tirar no mínimo cinquenta meticais para ver o filho. Se não
tiram são proibidos de vê-lo. Depois desta visita, tendo já passado duas semanas, chega o
momento de destruir-se a cabana e todos regressam à sociedade.’’
Faz-se um magro silêncio.
‘’A saída da mata é seguida por uma noite de cukuiwe (cânticos de agradecimento pela
saída do esconderijo) e depois é a vez de eles fazerem o primeiro banho e vestir as roupas novas
compradas pelos familiares.’’
Primeiro banho? Tristeza, explica bem isso. A parteira Interfere. Incrédula.
‘’Sim, durante os quarenta e cinco dias do Unhago os meninos não tomam banho lá nas
matas porque pode atrapalhar a cicatrização da ferida da circuncisão.’’
Isso é ridículo, comenta a enfermeira.
A minha mãe contínua com a exposição.
‘’Depois do banho, os meninos devem fazer uma caminhada (ainda sem a família, só com
os Inkalibas, pois podem decorrer simultâneos acampamentos) – e várias pessoas vêm entregar-
lhes o pequeno-almoço. Só depois desta marcha são recebidos pelos familiares com cânticos de
alegria e boas vindas aos novos homens da sociedade.’’
As duas mulheres trocam olhares e tornam a contemplar a minha mãe.
‘’Porém, cada pai deve dar uma quantia de trezentos a quinhentos meticais ao Inkaliba ou
à Inkaga. Depois realiza-se uma grande festa que conta com uma secção de ofertórios aos
iniciados e aos acompanhantes. Por fim, os iniciados realizam uma marcha conjunta enquanto
gritam "imarile Chenene" que significa "tudo decorreu bem".’’

Paro de chupar. A minha mãe interrompe o discurso para devolver o seio ao devido lugar.
Como você sabe disso tudo, Tristeza? A enfermeira pergunta.

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Fernando Absalão Chaúque

A minha mãe responde que são as práticas da sua terra natal e os velhos sempre contam
aos mais novos como forma de prepará-los para quando chegar-lhes a vez não se assustarem. É
também uma forma de preservar a cultura, boca a boca. Acrescenta que há comunidades que
usam nomes diferentes. Dizem que Unhago é apenas o rito dos rapazes e o rito das raparigas é
chamado de Rondo.
Além de aprender as regras de convívio social e como cuidar do marido, o que mais as
raparigas aprendem?, a parteira pergunta.
Chega, já não posso revelar as outras coisas.
Estamos a pedir, Tristeza...conta mais um pouco.
Não posso. É por isso que eu vos disse, eu já não sou criança... basta passar pelo rito de
iniciação você já é uma pessoa crescida. Não importa a sua idade.
Com que idade você foi submetida à iniciação?, a enfermeira pergunta.
Com 10 anos, mana.
E qual foi o ensinamento inesquecível que tiveste?, Pergunta a parteira.
A minha mãe pensa por instantes e depois responde:
O teu marido é o teu deus, nunca deves desobedecê-lo.
Só isso?
... marido que não te maltrata não te ama. Mulher amada é a que lava porrada.
A enfermeira e a parteira voltam a trocar olhares, arrepiadas.
É por isso que não queres denunciar o Santos?
A minha mãe nada responde. Apenas arregala os olhos.
Você gosta da vida que leva em casa do Santos?
A minha mãe continua mergulhada num profundo silêncio. Fora de si. Cara entristecida.
Já nem parece quem esteve a falar dos ritos com todo entusiasmo. Depois de uns minutos de
meditação ela reagiu.
O que eu quero é voltar a casa dos meus pais...
Mas primeiro deves denunciar o Santos que anda a te violentar... ele tem que ser
condenado por abuso de menores. Não interessa se passaste do Unhago ou Rondo, tu ainda és
uma criança... nem tens 15 anos e já tens um bebé de um senhor de 38 anos!
A parteira acrescenta que se fosse possível o Faztudo seria reavido da morte para pagar
pelos seus crimes.
Orvalho em Chamas

A minha mãe está confusa. Não sabe que caminho tomar. Está angustiada. Na verdade
está cansada do inferno que lhe é proporcionado pela Tempestade e pelo Santos. Mas o mentor
de toda tragédia foi o maldito do velho Faztudo.
***
São altas horas. A claridade já se vai esfumando. O sol começa a gatinhar aos seus
aposentos. O calor esfria-se; o que agora resta é o bafo quente que as paredes transpiram.
Nenhuma voz se ouve lá fora, os visitantes já se foram às suas vidas.
A parteira e a enfermeira despedem-se da minha mãe. Mas não por definitivo. Informam
que vão preparar algo para comer, pois ainda lhes faltam vinte e quatro horas de plantão. A
parteira tira uma esferográfica da bata, rabisca algo num papelinho. Diz que são os números de
celular das duas. A enfermeira aproxima-se para conferir o seu número e entrega o pedaço de
papel à minha mãe. Diz:
Eu sou a Enfermeira Luísa e ela é a parteira Madalena. Se precisares de ajuda quando
voltares para casa é só arranjar maneira de nos ligar. Nós queremos te ajudar a fazer justiça. O
Santos tem que ser condenado.
A minha mãe recebe o papelinho. Conserva-o. Nada diz. A Madalena retira-se. A Luísa
leva-me de volta ao berço. Pega-me com todos cuidados. Sorri para mim como se não sentisse
nojo de um napwere. Enquanto me coloca no berço sinto que ela me insulta. Chama-me pelos
mais nojentos nomes que conhece. Ela retira-se do berçário.
A minha mãe deita-se no beliche, fecha os olhos. E vem-lhe à memória a tarde em que
Faztudo morreu.

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Fernando Absalão Chaúque

Eyupuro, 27 de Dezembro de 1996

Meu Editor Chefe


Albino Fragoso Francisco Magaia

Enquanto esperava a Khefassi regressar perguntava-me: por que há perseguição aos


albinos nesta localidade?, o que os criminosos vêm ou querem neles?, quem serão os praticantes
ou mandantes desta barbaridade?... Rabisquei estas perguntas no meu caderno; fi-lo de modo a
estampá-las na mente para que nenhuma me escapasse quando estivesse a conversar com a
Khefassi. Quando as relia lembrei-me das frequentes palavras de um docente meu nos tempos da
faculdade. Dizia: "roteiro: é a estrutura que vai nortear o jornalista ou o entrevistador durante a
entrevista. Para criá-la é necessário investigar e conhecer o máximo de informações sobre o
assunto e a fonte. Com esses dados é possível criar algumas perguntas bases para colocar ao
entrevistado. Apesar de ser um guia, aconselha-se a não ficar preso ao roteiro, pois podem surgir
questões relacionadas a fala da fonte que podem ser respondidas durante a entrevista."
Lembrei-me também do meu supervisor no estágio. Sempre dizia: "antes de entrevistar,
o jornalista precisa programar suas perguntas baseadas em início, meio e fim. Assim, é possível
definir os temas que serão abordados, e a duração da conversa." E adicionava: "é importante que
as perguntas não sejam longas, para garantir que o entrevistado compreenda o que está a ser
questionado."
Tirei o gravador do bolso da balalaica para verificar a carga. 60%, isto é, ainda tinha
carga suficiente para gravar a conversa com a mulher do líder comunitário.

Uma hora depois.


A Khefassi ainda não regressara. O cansaço já entoava epopeias no meu corpo. Levantei-
me. Fui a janela. Dali o sol afrontava-me cálido e nervoso. Depois de poucos segundos,
transpirava ao ponto de alagar todo o vestuário como se ressurgisse das entranhas de um rio.
Orvalho em Chamas

Duas horas depois.


Decidi ir-me embora. Cansara-me de esperar. Além disso, a fome mastigava-me o
estômago. Saí daquele compartimento. No corredor cruzo-me com uma das mulheres integrantes
do grupo coral. Está sentada (a escutar o peso dos longos anos de vida nos músculos) num dos
bancos colados ao primeiro pavilhão das camaratas femininas. Dirijo-me a ela. Sento-me a seu
lado. Ela olha-me cheia de susto, desconfiada. Saúdo-a. Ela pisca os olhos várias vezes. Coloca a
mão direita por cima das sobrancelhas, faz uma aba. Aproxima-se a mim. Observa-me
directamente na face com seus olhos luminosos, azul-acastanhados. Depois pronuncia-se:
"Quem é?"
"Sou… Carlos... Carlos Cardoso", gaguejo.
Ela levanta-se, atónita.
"Tchau! Não gosto de conversar com estranhos."
"Mãe, eu entrei aqui no centro com a Dona Khefassi... só queria dizer-te que gostei de
Orvalho em Chamas. É uma bela canção. O grupo todo está de parabéns."
Vi um tímido sorriso colorir a sua face. Ela voltou a sentar-se. Pediu perdão. Explicou
que havia se esquecido que estava no centro. É um velho hábito incutido nela pelos saudosos
pais: nunca conversar com estranhos. Perguntei-lhe os motivos desse ensinamento. Ela disse que
isso deve-se ao facto de ser uma albina. Sempre viveu alarmada. Com medo de ser sequestrada e
morta a qualquer momento. Na infância e juventude sempre sofria bullying na escola. Daí que
tinha poucos amigos e até agora nunca se sente à vontade diante de estranhos.
"Eu não te farei nenhum mal... além do mais estamos no centro e estamos protegidos.",
digo.
Ela aproxima-se e cochicha no meu ouvido esquerdo.
"Não é verdade, mesmo aqui muita gente já desapareceu."
"É verdade isso?", questionei-lhe. "Desaparecer enquanto há guardas vigiando tudo?".
Ela disse que sim. Falando com muitas pausas (como se palavras fossem pedregulhos a
sonambular na sua língua) revelou-me que quando os brancos construíram o centro há quinze
anos ela foi uma das primeiras a receber o convite para ficar ali. Depois vieram tantas outras
pessoas, todas com falta de melanina. Contudo, desde que os brancos deixaram o centro na
responsabilidade do Mbalame muita gente dali desapareceu.

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Fernando Absalão Chaúque

"Desaparecem do mesmo jeito que os meus filhos desapareceram há anos lá em casa.",


afirma.
Meu caro, a velhinha começava a falar o que era do meu interesse e tocava directamente
no ponto que me levou da capital até Eyupuro. Meti a mão no bolso e liguei o ‘’REC’’ no
gravador.
"Os seus filhos eram albinos também?"
"Sim, eu e o meu marido só tivemos filhos albinos."
"Como é que os seus filhos sumiram de casa?" Era uma pergunta parva, so me apercebi
depois de a ter colocado.
"Dormimos. Quando despertamos no dia seguinte eles lá já não se encontravam. Até hoje
nunca voltamos a vê-los. É o mesmo que tem acontecido aqui no centro. Simplesmente as
pessoas desaparecem… a noite... não sei para onde vão..."
"Mas acha que esses desaparecimentos são normais?"
"Não. Ou eles fogem daqui ou alguém vem levá-las na calada da noite. Ou melhor,
sequestrá-las."
Ela levanta-se do banco. Reorganiza a capulana. E continua:
"Sabes, muitos sonham em ficar aqui no centro pensando que este sítio é seguro... mas
nós que aqui estamos vivemos atormentados."
"E porque não abandonam este sítio?"
Ela senta-se.
"A partir do momento em que assinas papéis para ser aqui acolhido, estás proibido de
voltar a pensar em abandonar o centro."
Há uma grande mágoa transbordando no olhar da velha; uma mancha negra, uma nódoa
indelével.
"Acha que ocorrem sequestros aqui no centro?", pergunto.
A velha limitou-se a dizer que tudo era possível em Eyupuro. O que a fazia pensar assim,
sublinhou ela, era o facto de nunca se ter notícias das pessoas que do centro desaparecem. Se
quer retornam. A Khefassi e o Mbalame nem se preocupam em procurá-las. E quando os
familiares vêm para visitá-las nunca mais são deixados entrar. Os guardas dizem que as novas
regras do centro não permitem a entrada de estranhos. Para ela é incompreensível que, de
Orvalho em Chamas

repente, sem fundamento algum, só os familiares dos desaparecidos se transformem em


estranhos.
Ficamos em silêncio por alguns bocados. Porém, a velha balbuciava algo para ela mesma.
Seria a idade a pesar-lhe ou os traumas da vida a apoquentarem-na?
A princípio ela dissera que não conversava com estranhos. Mas, de repente, abriu-se a
mim e revelava-me seus segredos e mistérios do centro. Seria aquilo um pedido de ajuda ou
apenas um melancólico desabafo?
"Tenho uma curiosidade, mãe!", aniquilei o silêncio.
"Qual?"
Pus-me a pensar se colocava-lhe a questão ou não. Hesitei por alguns segundos pensando
que talvez a minha questão a ofenderia. Por fim, disparei:
"O que os sequestradores vêm ou querem nos albinos?"
"Não sei com exactidão. Mas quando os meus filhos desapareceram ouvi rumores de que
nós os albinos somos fonte de riqueza. Dizem que todo nosso corpo, todos os nossos membros
são remédio e dão muito dinheiro quando vendidos."
Não sei de que modo; mas, meu caro, as palavras da velha trouxeram à minha mente
algumas questões (que, curiosamente, já as mencionei nas cartas anteriores): como é que o Peter
Ya Moto, menino de dez anos, conseguira o Bugatti e tanto dinheiro para todas as quartas feiras
despejar nas ruas de Eyupuro? Qual era a origem da megalómana riqueza dos Ya Moto?;
entretanto, estas são questões que apenas o tempo se encarregará de respondê-las.
"Então, essa perseguição toda aos albinos é por causa de dinheiro?", perguntei a velha.
"É isso que acabei de dizer, filho. Nós somos perseguidos porque somos tidos como
valiosa mercadoria para alimentar o mercado do comércio dos órgãos humanos..."
"Hummmmmmm!", exclamo, de boca trancada.
"Exactamente!! Nós somos alvos de ataques devido à crença de que albinos têm poderes
especiais podendo gerar riqueza, sorte e ainda serem usados por bruxos em seus rituais
obscuros."
Quando estava prestes a colocar-lhe mais uma questão, vi uma gotícula de sangue
pingando do seu lábio de baixo. Levantei o indicador. Exclamei:
"Está a sangrar, mãe!"

143
Fernando Absalão Chaúque

Ela tira o lenço da cabeça, expõe o seu cabelo amarelo. Limpa o sangue e depois diz:
"É por causa do verão. Não se assuste!"
"Verão?", arregalo os olhos, surpreso. "O que tem o verão?’’
Ela dobra o lenço até ser um minúsculo rectângulo a esconder a mancha vermelha
arquitectada pelo sangue absorvido. Em seguida, detalha que os albinos são alérgicos à luz forte
do sol. Por falta de pigmento de defesa na pele sofrem mais no tempo de verão e menos no
tempo chuvoso devido à sombra das nuvens e à frescura da chuva. No verão racham-se-lhes a
pele inclusive, os lábios por causa da forte radiação solar. Na verdade, o albino não gosta do sol,
é seu inimigo. Num dia de muito sol o albino não enxerga devidamente, por isso recomenda-se o
uso de óculos escuros.

Meu caro editor, depois disto, eu disse a velha que ia-me embora. Pois terminara o meu
tempinho de visita ao centro, além disso, a Khefassi abandonara-me sem dar nenhuma palpável
explicação.
"Tenho pistas de onde ela foi", disse a velha.
Coço-me a barba, surpreso. E ela diz:
"Ela acompanhou a Luisa e a Madalena ao hospital".
"Estão doentes?", pergunto.
Não. A mulher responde. Nenhuma delas está doente. Antes da saída, a velha ouviu a
Laura no corredor ao celular conversando com alguém sobre uma mulher que estava para dar à
luz na maternidade de Ohawa. Em seguida, a Khefassi saiu do bloco administrativo, as três
embarcaram na ambulância e desapareceram.
"Terão ido ao tal hospital?"
"Não sei, mas acho que sim. Há dias eu ouvi a Khefassi no refeitório a dizer a Luisa e a
Madalena que estava a procura de um bebé."
"Deve ser um bebé desaparecido."
"Talvez. Mas falou de um bebé recém-nascido, um napwerinho."
"Onde fica esse tal hospital", perguntei.
"Muito longe daqui, nem pense em ir para lá. Esqueça essa hipótese."
Orvalho em Chamas

Ilustre, pus-me a pensar durante minutos. Todas as revelações da velha turvavam-me a


mente. Mas, em contrapartida, faziam-me precipitadamente apontar o dedo a pessoas que talvez
não sabem nada das barbaridades que aqui têm sido dirigidas a albinos. Algo assegura-me que
estou certo. Entretanto, uma outra voz contradiz-me.

"Eu sou Laurinda Mafemane.", diz ela. E acrescenta que é famosa nesta localidade por
ser a única mulher que engravidou do marido já morto.
‘’Prazer em te conhecer", respondo estendendo-lhe a mão. Ignoro o resto do que ela
disse.
"Por favor, não te esqueças do meu nome quando chegar a hora de redigir o relatório
desta sua missão."
Fiquei congelado. A que missão ela se referia?
"Eu sou apenas um turista curioso... não estou em missão nenhuma."
Ela ri-se de mim. Levanta-se.
"Eu sei que és um jornalista. Já li alguns textos seus em jornais e já te ouvi nas rádios.
Agora, sei que estás aqui para investigar esse caso referente ao tráfico de nós os albinos. Por isso
que te contei tudo que sei."
Quando ela disse isto fiquei aturdido. Se quer para confirmar ou refutar a sua proposição.
Olhei ao chão. E ela continuou.
"Eu tenho problemas de vista, mas consegui ver esse gravador a piscar aí no teu bolso."
Finalmente, ganhei coragem. Afrontei a mulher.
"Se já sabia quem eu sou porque não me desmascarou logo que vim ao banco te saudar?"
"Não queria te assustar. Ora, já te dei todas as pistas. Agora vou ao meu quarto descansar.
Mas olha, nunca revele a ninguém que te contei essas coisas."
Prometi que nunca diria nada a ninguém sobre ela e as bombásticas revelações.
"Agora, vá finalizar a sua missão...’’
Levantei-me do banco. Quando estava prestes a iniciar a marcha a velha disse-me:
"E mais, Mbalame e Khefassi têm uma filha. Não têm só aquele miúdo chamado..."
"Peter?", aludi o nome.
"Peter? Aquele não é Peter... é Pedrito, eu vi-lhe nascer aqui em Eyupuro."

145
Fernando Absalão Chaúque

"E essa tal filha?"


"Chama-se Tristeza ou algo assim parecido."
"E onde ela está?", questiono.
"Desapareceu de Eyupuro no início do ano passado."
É uma albina?
"Não, não. É uma menina escura como o Mbalame."
A velha levantou-se. Demo-nos um longo abraço. E depois, cada um tomou o seu rumo:
ela foi ao primeiro pavilhão das camaratas femininas e eu dirigi-me ao portão.
Voltei ao aposento. Não encontrei a Huzina Matessa.
Orvalho em Chamas

TRISTEZA – UMA NAPWERE E UM ORVALHO EM CHAMAS

147
Fernando Absalão Chaúque

Triste é viver num lugar

Onde dormir não difere de morrer.

(Mia Couto, O Outro Pé da Sereia)


Orvalho em Chamas

Um bojudo silêncio paira lá fora. Desde que aqui cheguei nunca tive sorte de escutar tão
intensa ausência de sonoridades. Claro, no ventre da noite nunca se espera azáfamas. Porém, a
absoluta calmaria que aqui hoje se estende é misteriosa. O que me assusta é o facto de nem ouvir
os cães a latir. Mesmo o Martelo não se pronuncia. O que se passa?
Depois dos dois malvados homens me terem sabotado as entranhas fiquei inconsciente,
inanimada durante uma semana.
Estavam quase para enterrar você, disse Tempestade quando de súbito abri os olhos,
ressuscitada.
Ela foi a única que se manteve esperançosa de que eu reaveria os sentidos. O Santos e o
Faztudo várias vezes foram ao cemitério familiar, abriram covas para me enterrar. Mas quando
regressavam ela mentia-lhes:
Ela já voltou, a coração está a bater.
Os homens desmentiam-na. E ela replicava:
Se quiserem acreditar entrem aqui na palhota.
Os dois infiltravam-se na casota, examinavam-me a temperatura corporal e concluíam:
Morreu esta… o corpo está frio como gelo.
A corpo dela estar fria mas a coração ainda está a bater, replicava a velha.
Em seguida, os homens tentavam escutar-me os batimentos do coração e insurgiam-se:
Mentira, nós não ouvimos nenhum batimento. O corpo dela está todo pálido.
Para livrar-se deles, ela fundamentava que o meu coração pulsava tão silencioso que
somente uma outra mulher conseguiria senti-lo; há coisas do mundo feminino que somente as
mulheres podem entender; assim como em vários assuntos masculinos as mulheres não se
atrevem a opinar. Com este argumento conseguia estourar-lhes os nervos.
Durante a semana em que estive apagada, a velha às vezes flagrava o Santos mergulhado
em lágrimas, mas, ele, imediatamente simulava intermináveis gargalhadas. Ela percebia que o
filho chorava por mim. As lágrimas que o homem derrama por uma mulher são sempre notáveis,
indisfarçáveis, tem uma cor diferente. Ele parecia arrependido por me ter violentado diante dos

149
Fernando Absalão Chaúque

pais. Mas, quem era ele para negar os costumes que os Faztudos vinham cumprindo desde
antiquados instantes antes do tempo?
Às vezes, o Faztudo e o filho planeavam lobolar uma outra menina. Assim que não havia
nenhuma outra bicicleta diziam que desta vez entregariam os dois bois e a carroça. No final,
concluíam que ofereceriam apenas a carroça porque os bois ninguém os aceitaria. Todo mundo
sabia que eram bois-humanos. Claro, não há quem recusaria um animal que entende a linguagem
humana. O cúmulo residia no facto de toda comunidade ter comparecido na cerimónia fúnebre e
ter visto os cadáveres dos pais do Faztudo arrombando os caixões, transformados em bovinos.
Os dois saíam nervosos da palhota. Faztudo dizia:
Já não aguento conviver com um cadáver aqui, amanhã quero enterrar essa aí!
O velho não avisaria aos meus pais nem às estruturas locais. Apenas ele e o Santos
enterrar-me-iam sem caixão nenhum, como um cão inominado.
Quando eles chamavam-me cadáver a Tempestade afrontava-lhes:
Meu nora não está morto, se estivesse morrido já estaria podre, a cheirar mal.
Ela conhecia o por quê do meu corpo ainda não ter apodrecido. Todos os dias, ao lavar-
me perfilava pregos na cama, concretamente na posição em que a minha espinha dorsal pousaria.
Os pregos segundo a velha são retardadores da morte e apodrecimentos; são a azagaia que
abocanha a alma da morte. É por isso que Cristo ressuscitou; os pregos nele inseminados
retaliaram a morte. Fiquei pasma quando a velha disse isso. Estas palavras lembraram-me os
desmiolados evangelhos do pastor Pedro Paulo Pontes lá na Church Mbunya.
Para Santos e o pai, as explicações da velha só fizeram sentido quando depois de uma
semana silenciada abri os olhos. E logo que anoiteceu o velho Faztudo veio violentar-me, sem
nenhum remorso. A Tempestade teve de recomeçar todos os cuidados físicos que me prestara
durante o tempo em que ficara apagada. Nos dias seguintes implorou que nenhum dos dois
inseminasse o falo em mim. Graças a ela que Faztudo não voltou a me violentar até que as
feridas sarassem. Confesso que não percebi de onde viera aquela súbita simpatia da velha para
comigo. Afinal, há sempre um grão de bondade mesmo na mais maldosa pessoa do mundo.
Enfim, voltemos para hoje.
***
Orvalho em Chamas

Ainda espantada pelo mortífero silêncio, desço da cama. Vou à porta. Espreito dentre as
saliências das ripas.Está tudo escuro. As folhas das árvores nem um pouco se mexem, nenhuma
ventania as acaricia. As árvores estão tristes, esfaqueadas pela monotonia.
Martelo, Martelo, Martelo, chamo o cão, mas ele não ladra, se quer os outros cães se
pronunciam. Destranco a porta. Abro-a. Vejo os cães diante da entrada, estatelados. Aproximo-
me a eles, piso-lhes as caudas, mas não reagem. Estão mortos? Parece que sim.
Eis a oportunidade de fugir de volta a Eyupuro, murmuro.
Deixo a porta semiaberta. Volto. Sento-me na cama. Penso. Não será isto uma armadilha
do Faztudo? O que terá acontecido aos cães? Depois decido:
Vou-me embora!
Levanto-me da cama. Dou um passo em direcção à porta, prestes a sair um vulto barra-
me. Derreto-me, assustada. Por longos minutos fico a contemplar aquela estátua nocturna. Só
pode ser o velho Faztudo. Veio violentar-me. Lágrimas temperam-me a face. Os meus joelhos
perdem as potências.
Tristeza!
O que é isso? Esta sombra conhece-me o nome? Que absurdo! Ademais, a sua voz não
lhe evidencia o sexo. Parece masculina e feminina em simultâneo. Estou frita. Acho que é o
Xitukulumukhumba, o monstro que a minha mãe sempre referia nos seus contos; o monstro
bisexual, comedor das noites e que gosta de engolir pessoas que nas altas noites não conseguem
manter-se dentro das casas. A minha mãe sempre dizia que este monstro tem um formato
humano, porém tem tudo às metades (um olho, um dente, uma fossa nasal, uma mão, um pé com
apenas um dedo, um seio, um testículo…). Hoje serei o seu alimento.
Regresso à cama, paralítica, sento-me com a alma em apuros. O monstro entra. Fecha a
porta. Talvez seja um anjo que me veio salvar.
Não se assuste, Tristeza!
Descortino-lhe a voz, é feminina. Não! Impossível! Já ouviu falar de um anjo feminino?
Eu ainda não. O Pastor Pedro Paulo Pontes sempre fazia questão de frisar que os anjos são todos
homens e que na bíblia (que ele sempre trazia fechada debaixo do sovaco) nunca se falava de
‘’anja’’, ele falava assim mesmo, colocando o termo no feminino. E explicava que só tem nome
o que existe. Eis a razão de o substantivo ‘’anjo’’ não aceitar ser modificado ao género contrário.

151
Fernando Absalão Chaúque

A partir deste ponto percebe-se que, de facto, a mulher sempre foi atribuída inospitalidades e
insignificâncias inclusive no livro mais sagrado de todos. Além do mais, um anjo sempre se
veste a branco.
Definitivamente, este vulto não é um anjo.
A mulher senta-se a meu lado.
Está tão escuro aqui, ela exclama depois de ter respirado fundo duas vezes seguidas.
Ah… ah… posso acender a lamparina?, pergunto, embriagada de sustos.
Ela concede. Sem rodeios, acendo-a. Viro-me de volta à cama. A mulher ainda está ali.
Intacta. Agora tenho a certeza que é uma pessoa verdadeira. Se fosse uma dessas criaturas
nocturnas teria desaparecido, fugindo da luz. Estou meio aliviada. Mas o que me deixa intrigada
é o seu vestuário (um vestido preto, um lenço preto, sapatilhas pretas e uma máscara preta que a
cobre toda a face deixando visível apenas os olhos). Quem será esta mulher? O que ela quer de
mim?
Por minutos, nenhuma de nós se pronuncia. Conversamos apenas com os olhos. Agora, o
silêncio não só impera lá fora, aqui dentro também. Observo a mulher, espantada. Os seus olhos
são azuis, a íris reluz ao afrontar-me. Ela deve ser branca! Uma branca em Ohawa? Aqui na
minha palhota? Estou estupefacta! É a minha primeira vez a partilhar o ar com alguém desta
raça. Antes só via retratos nos livros que a minha professora trazia na sala de aula. Um dia ela
me disse que o meu ídolo Carlos Cardoso é um branco também. Ademais, o Pastor Pedro Paulo
Pontes dizia em todos cultos que Deus é branco. Mostrava-nos fotografias de um velho cheio de
barba branca sentado numa enorme e escaldante poltrona. Dizia-nos que era o famoso Deus do
qual se fala na bíblia.
Desvio o olhar para a cobertura da palhota. Quando volto a encarar a mulher noto que os
seus olhos mudaram de cor. Agora são translúcidos. Exibem duas cores, alternadamente: ora são
vermelhos ora tomam a cor-de-rosa. Que susto!
Ela tira as luvas pretas. Entrelaça os seus dedos da mão direita com os meus. Arrepia-me.
Olho para as suas mãos. Ela é branca de verdade!
Não se assuste, Tristeza, ela repete o apelo.
Quem és tu?, pergunto-a.
Sou Huzina, ela responde.
Huzina Matessa?
Orvalho em Chamas

Ela confirma.
Que susto! Será verdade!? Estou aqui a conversar com uma defunta? Desembaraço os
meus dedos dos dela. Afasto-me. Levanto-me. Vou colar-me à parede.
Você morreu há muito tempo, Huzina!, exclamo.
A velha Tempestade contara-me várias vezes sobre a morte desta mulher. O seu marido,
Bokisso, amarrara-a na cama, fritara-a com óleo nas máximas fervuras, depois ateara fogo na
casa e ficara a observá-la a ser bebida pela fervura das chamas. Bokisso, em seguida gritou de
felicidades. Alegou que acabara de eliminar quem lhe infernizava a vida, a esposa. Vociferou
que uma mulher é a coisa mais perigosa que um homem pode ter na sua casa. Por que nos casais
o homem é sempre o primeiro a morrer? É porque a mulher é o veneno que lhe suga a vida aos
bocados, disse ele. Jurou nunca mais se envolver com mulher nenhuma até a morte. Construiu ali
uma outra casa ao lado de onde jaziam as cinzas da outra. Porém, antes de passar-se um mês de
sua tão almejada liberdade, Bokisso foi achado morto na sua cama.
Eu nunca morri, Tristeza, confessa-me ela.
Nessa história sobre a minha morte tudo é verdadeiro menos a minha morte. Sabes, os
homens acham-se mais poderosos e espertos que as mulheres. Mas eles não passam de piores
iludidos. Porque nós somos o animal que mais consegue arquitectar os melhores fingimentos. Foi
por essa razão que consegui matrecar o Bokisso.
Saio da parede, aliviada. Volto para a cama.
Então não estavas amarrada na cama?
Ela volta a entrelaçar os seus dedos aos meus. E explica como tudo aconteceu. Quando
ele começou a regar a casa com petróleo eu libertei-me. Ele continuou a ouvir meus sucessivos
gritos, pensou que estivesse ali a queimar enquanto eu bradava nas traseiras da casa. Quando a
casa já estava prestes a desabar infiltrei-me nas matas. Ainda ouvi-lhe a vangloriar-se por me ter
queimado viva. Eu estava amarrada, sim. Só que aquelas cordas estavam tão podres que não
ofereceram resistência alguma quando esforcei-me para arrebentá-las.
Eu é que apodreci as cordas, Tristeza!
Como assim, tia!! Eu já não estou a perceber nada.
Deixa-me clarificar as coisas.

153
Fernando Absalão Chaúque

O sarilho com o Bokisso começou quando um curandeiro com uma mala de dinheiro veio
a nossa casa. Disse que aquele dinheiro seria todo meu desde que eu o deixasse cortar um dos
meus dedos indicadores. Bokisso escoltado pela ambição compeliu-me a aceitar a proposta.
Porém recusei-a, categórica.
O que têm de especial os seus dedos?, pergunto-a enquanto lanço o olhar às suas mãos.
Não consegues ver?
Digo que não com a cabeça.
Eu sou uma napwere, Tristeza. Ela continua. O tal curandeiro queria o meu dedo para
usá-lo nas suas acções obscuras. O dinheiro que ele tinha para me oferecer era muito; suficiente
para eu e o meu marido esbanjarmos até a morte. Perante a minha revogação o curandeiro foi-se
embora. Triste. O meu marido começou a desdenhar-me. E passava muito tempo a pensar em
como matar-me. Torrar-me para depois vender os meus restos ao mesmo curandeiro que viera
disposto a comprar o meu dedo.
Sabes como eu descobri que Bokisso queria me matar?
Não faço ideia alguma, tia.
Huzina Matessa solta uma minúscula gargalhada. Eu encaro-a nos olhos. Noto que eles
continuam a exibir aquelas corres estranhas. Contudo agora sei o que faz com que seus olhos
brilhem daquele jeito: a falta de melanina. Ela é uma napwere. É verdade. Não é uma branca
como eu pensara à primeira vista.
Bokisso era sonâmbulo. Ela desmancha os factos. Tudo o que ele pensava durante o dia
gritava durante a noite. Levantava da cama e punha-se a discursar desmanchando os seus planos.
Certo dia, ele trouxe à casa uma corda de sisal. Anoiteceu. Ao sonambular revelou todo o seu
plano de amarrar-me na cama e queimar-me. Tentou várias vezes executar o seu plano nos seus
longos sonambulismos. Mas não conseguiu. Quando anoitecia eu escondia a corda, o petróleo e o
fósforo.
Lá fora, ainda reina a silente atmosfera. O sono anda distante de mim. Talvez porque
estou entretida no que a Matesse continua a contar.
Certo dia, fui à cidade, comprei ácido sulfúrico numa loja de baterias. Voltei a casa,
reguei a corda de sisal com o ácido. E o que restou escondi numa mata.
Foi assim que apodreci a corda. Por isso foi fácil livrar-me da cama quando a casa
começou a queimar.
Orvalho em Chamas

Tia, a Tempestade contou-me que depois de te ter queimado Bokisso não levou muito
tempo para morrer, digo em jeito de provocação.
Bokisso não morreu, Tristeza.
Quer dizer que ele ainda está vivo?, pergunto.
Não, menina. Ele não morreu. Eu o fiz morrer. Eu o matei. Percebeste?
Abano a cabeça. Aceitando. E mais uma questão atormenta-me.
Como mataste o teu Marido?
Depois que escapei da morte, embrenhei-me nas matas. Ainda deu tempo de ouvir
Bokisso a vangloriar-se. Vivi nas matas durante duas semanas. Certo dia, ao anoitecer voltei à
casa do Bokisso com o acido sulfúrico que havia escondido algures entre arbustos. Enquanto ele
tomava banho adicionei-o à comida que ele acabara de cozinhar.
Foi assim que matei o Bokisso, ela encerra o relato.
Estou desnorteada. Não sei se a congratulo pelo feito ou digo-lhe que não havia
necessidade de envenenar o marido porque havia conseguido escapar das suas garras. Mas,
pensando bem, se também tivesse oportunidade de matar o Faztudo fá-lo-ia.
Depois de uma longa lucubração pronuncio-me:
Mas como conheces o meu nome, tia?
Huzina afirma que quando matou o marido fugiu até uma localidade chamada Eyupuro.
Lá foi recebida num Centro de Acolhimento de Idosos e Pessoas Carenciadas. Depois de ter
morado lá durante alguns meses ela decidiu voltar a Ohawa. Mas para que todos continuem a
pensar que ela está morta de dia esconde-se nas mais densas matas. Na calada da noite, regressa
à casa que o marido deixou. Faz isso porque tem medo de ser vista. Há sempre alguém na rua a
procura de napweres. Aquelas roupas pretas são um disfarce ideal. Nelas ninguém conseguirá
notar que ela é uma napwere, a não ser que preste profunda atenção na cor dos olhos dela. É
durante as noites que ela ouve o meu nome. Da sua casa ouve-se tudo que acontece aqui na
palhota.
Ouço sempre o Faztudo, o Santos ou a Tempestade a gritar o teu nome. Sei de tudo o que
tens passado, menina!
A tia não sabe de tudo, contraponho.
Sei, Tristeza. Não duvide!

155
Fernando Absalão Chaúque

Eu tenho passado por coisas piores nesta casa. Coisas que a tia nem imagina.
Sei que eles te maltratam, fazem de ti uma escrava sexual!
As revelações da Huzina assustam-me. Primeiro, porque mencionou a minha querida
localidade. Segundo porque ela sabe de tudo que tenho passado nesta casa, e, se calhar ela veio
para me salvar. Mas, não revelo que o meu grande desejo é voltar para Eyupuro. Lágrimas
começam a alagar os meus olhos. Para disfarçar afronto-lhe:
A tia pode saber do meu sofrimento, mas nunca sentirá algo igual na pele...
Ela interrompe-me a fala.
Estás enganada, Tristeza.
Ela abraça-me e em voz baixa revolve a memória.
Tristeza, quando eu tinha quase a sua idade percorria vários quilómetros para chegar à
escola. Eu frequentava o curso nocturno devido à insuficiência de vagas no diurno. Eu
continuava a estudar por renitência às ordens do meu pai que alegava que a escola era inútil.
Certo dia, de regresso a casa, no meio do caminho vejo três homens diante de mim. Criam uma
barreira. Tento embrenhar-me nas matas, fugir, impossível, os homens agarram-me, despem-me,
violentam-me e deixam-me ali à minha sorte. De madrugada, duas mulheres levaram-me ao
hospital. Fiquei lá internada por cinco dias. Quando de lá saí identifiquei os três homens, eram
quase meus vizinhos, morávamos no mesmo quarteirão, abri um processo contra eles. Quando
expus o caso na esquadra, o polícia que me atendeu riu-se de mim até lacrimejar. Disse que a
minha queixa era inútil, pois aqueles homens não me haviam violentado, apenas cumpriram com
o seu dever de educar-me para nunca mais fazer-me às ruas a altas horas.
Felizmente, os três homens foram presos, imediatamente. No dia do julgamento, eles
disseram que me haviam violado para alongar o seu tempo na terra; acreditavam que ao
envolver-se sexualmente com uma napwere ganhariam milénios de vida.
O juiz em vez de desempenhar o seu trabalho, imparcial, à luz da lei, colocou-se a favor
dos três homens. Disse também que o contacto com uma napwere era um carimbo para uma vida
longa. Adicionou que aqueles homens tinham motivos mais que suficientes para me violentar
visto que naquela noite eu trazia roupa muito curta. O que eu esperava que acontecesse? Os três
homens deram-me exactamente o que o meu vestuário dizia que eu estava procurando. O meu
pai nada falou durante o julgamento. Quando chegamos à casa repetiu as palavras do juiz em
Orvalho em Chamas

defesa daqueles três monstros. Depois de duas semanas vimos os três homens a circular na zona
alegres, fora das grades.
E qual foi o fim dos três homens?, pergunto, curiosa.
Matei…
…os três homens, tia?
Sim, matei-os a todos. Mas antes disso um deles tornou-se meu marido sob insistência do
meu pai.
Teu marido? O Bokisso?
Sim, ele fez parte do trio que me violentou; depois maltratou-me durante os anos em que
estivemos casados e ainda queria queimar-me viva. Não me arrependo de lhe ter envenenado.
Merecia.

Huzina Matessa levanta-se da cama.Tira a máscara. Exibe-me um sorriso lindo que


parece de quem nunca teve de enfrentar tantas barreiras de dor. Tira o lenço. Vejo o seu longo
cabelo, amarelo. Sanam-se todas as minhas teimosas dúvidas, é a Matessa em carne e osso
apresenta exactamente as características que a Tempestade sempre referia; é uma pura napwere.
Ela diz que põe aquela roupa preta não só para se camuflar, mas também para homenagear a
todas as mulheres que são maltratadas, violentadas no mundo.
Volta já, vou buscar algo para ti, Tristeza.
Tenha cuidado com os cães, tia.
Não se preocupe, eu os domei antes de entrar aqui. Só despertarão quando eu já tiver ido
embora, ela diz estas palavras enquanto dirige-se à porta. Um papel amarrotado cai das suas
vestes. Ela sai. Apanho o papel. Aliso-o com os dedos. Leio o que nele está escrito:

ORVALHO EM CHAMAS

O lume das minhas mãos


É gota bebendo chamas
Minha pele é uma pétala
Remediando lágrimas

157
Fernando Absalão Chaúque

Sou casa da nuvem


A primeira língua da madrugada
Bebo do rio sem margem
E renasço antes da alvorada

Sou a ignição da esperança


O ventre d’todas raças
Na boca do sol aquático
Sou um orvalho em chamas.
***
Depois de alguns minutos, ela regressa com um recipiente de duzentos mililitros na mão
direita. Entrega-mo. Questiono-lhe:
Que é isto, tia Huzina?
É o Ácido Sulfúrico, menina, é o que restou quando envenenei o Bokisso.
É para eu…, ela manda-me calar.
A escolha é sua, Tristeza, eu só sei que esse ácido pode ser útil para ti. Vou-me embora,
Tristeza, não conte a ninguém que me viu aqui.
E este papel?, elevo a papel a ela.
Ela recebe-o.
É uma canção.
Peço-lhe que me ensine as melodias. Ela responde que já precisa ir-se embora.
Quando estiveres triste ou cheia de medo, leia essa canção. Vai-te reconfortar.
***
Na manhã do dia seguinte, Faztudo veio à palhota. Acordou-me. Deu-me a tarefa de
preparar-lhe o chá. Tempestade e Santos haviam saído com os bois e os cães à machamba. O
velho ficara. Segundo o que a esposa mais tarde relatou, sentia todo o corpo a doer-lhe. Preparei-
lhe o chá. Depois disto, ele guiou-me de volta à palhota. Trancou-me. Quando Tempestade e
Santos regressaram encontraram o velho estatelado na sua cama, morto. Os dois, até hoje pensam
que foi uma morte natural. Não imaginam que eu é que introduzi ácido sulfúrico na sua chávena.
Ninguém desconfia de mim. Ademais, não há nenhuma pista possível que me aponte. Pois, aos
Orvalho em Chamas

olhos dos dois, estive sempre trancada na palhota. (Este é um segredo que apenas conto a si, caro
leitor, por favor, não conte a mais ninguém).
Ora, após o desaparecimento físico do Faztudo, eis que o Santos substituiu-lhe nas
incursões nocturnas, passa a violentar-me. Até que um dia começo a sentir intensas dores de
barriga. Tempestade inspecciona-me as entranhas, revela-me que estou grávida e sentindo dores
de parto. Sem demoras, sou levada até aqui na maternidade. E dou à luz a este menininho.
Que direi?
Em estreia, sou mãe.

159
Fernando Absalão Chaúque

Cidade das Palmeiras, 29 de Dezembro de 1996


Caro Companheiro
Carlos Cardoso

Colega Carlos, não se assuste, mas acho que esta poderá ser a última carta que te escrevo.
Não sei se amanhã estarei aqui (não sei se tu ou outros membros ou colaboradores do nosso
jornal virão o dia que se avizinha). Tudo está um caos. Irmão, digo-te isto porque estamos todos
em perigo. Os abutres da nação devem estar com os canos virados a nós. Não sei se finalizarei
esta carta, pois é provável que uma bala esteja prestes a abocanhar-me. Os esquadrões da morte
são uma realidade no nosso país. Eu nunca acreditei quando me dizias, mas hoje sublinho as suas
palavras tantas vezes forem necessárias.
Escrevo-te com a tinta das lágrimas vertidas por todo o cidadão a favor da liberdade de
expressão e contra este sistema macabro que nos oprime.
Meu caro, o que me deixa alarmado é relacionado ao episódio da marcha que narrei na
última carta. O facto é que, o nosso jornal foi o único órgão de informação da capital (se não do
país inteiro) a noticiar o confronto entre a polícia e a multidão que marchava pacificamente
contra a caça aos albinos e ainda teve um artigo de opinião e um editorial a criticar a contundente
intervenção da polícia.
Publicamos a matéria e pusemos o jornal a circular na manhã do dia 22 de Dezembro. Às
doze horas, o nosso director recebeu uma chamada de um dos graúdos da nação a acusar o nosso
jornal de caluniar a polícia. O director, primeiro pediu perdão por tudo, mas à medida que a
conversa ganhava contornos ácidos, ele teve de afrontar o interlocutor. Disse que o nosso jornal
apenas fez o que é seu dever e missão: comunicar a verdade ao povo. O outro, vendo-se na
encruzilhada disse que o nosso jornal apenas serve para espalhar desinformações; em seguida,
proferiu ameaças, promessas de vingança e enceramento dos nossos estabelecimentos.
Antes das catorze horas, um grupo de desconhecidos recolheu todo o nosso jornal do mercado.
Retirou-o em todas as bancas em que se encontrava disponível. Mais tarde, o mesmo grupo
(suponho eu que foi o mesmo) perpetrou uma emboscada ao nosso repórter e fotógrafo que fez a
Orvalho em Chamas

cobertura da marcha. Encontraram-no no mercado do peixe. Os desconhecidos arrancaram-lhe


todo o material de trabalho inclusive o colete. Espancaram-no até sangrar pelas narinas. Diante
das vendedeiras disseram a ele que aquilo era uma simples chamada de atenção. Da próxima vez
fá-lo-iam passar para o outro lado da vida.
Nessa tarde, interrompemos todo o trabalho para levar o colega ao hospital e ficamos lá
de vigia. Felizmente, o colega foi liberado pelos médicos às vinte horas. O nosso director veio
levarmos de seu carro particular, pois seria demasiado arriscado rumarmos em um automóvel
pertencente à nossa empresa. Saímos do hospital. O director disse que queria passar do nosso
estabelecimento para levar algo que esquecera no seu escritório. Chegados lá, fomos recebidos
por imensas labaredas consumindo tudo. No chão ainda era possível ver recipientes de
combustível que foram ali usados. Ligamos imediatamente para os bombeiros, mas infelizmente
só chegaram depois de o fogo ter consumido tudo (equipamento informático, material de
escritório, arquivos e vários móveis).
Meu companheiro, a nossa redação está inutilizado.
Quando saímos dali recebemos mensagens ameaçadoras nos celulares. Porém, nada nos
abalou. Todos combinamos que no dia seguinte iríamos à nossa redacção trabalhar excepto o
colega que fora espancado no mercado de peixe.
No dia 23 de dezembro fomos trabalhar. Cada um trouxe o seu laptop, levantamos um
valor na nossa conta, compramos duas tendas, cabos eléctricos e um outro novo material básico
para podermos continuar com o trabalho. No nosso pátio, estendemos as tendas e pusemo-nos a
trabalhar. Acessamos ao nosso correio electrónico e baixamos o mesmo jornal que eles
recolheram nas ruas. Mandamos à topografia para uma reimpressão. Até ao meio dia o jornal
estava a circular em todas ruas da cidade. Em menos de cinco horas esgotaram os exemplares.
Irmão, como deve ter concluído: esta foi a primeira vez que vendemos todos os exemplares em
poucas horas. Como diz o adágio popular: há males que vêm para nos beneficiar.
Além disso, logo que esticamos as tendas e começamos a trabalhar, directores de vários
jornais e representantes da sociedade civil vieram oferecer-nos computadores, impressoras,
resmas entre outro material.

161
Fernando Absalão Chaúque

Assim, continuaremos a trabalhar ao ar livre até que consigamos reactivar a nossa


redacção. Espero que tenhas feito back up dos seus documentos e projectos porque o seu
computador, meu caro, transformou-se em cinzas.
Companheiro, as ameaças e a vandalização que sofremos são tentativas de apagar a
liberdade e a força da palavra. Os ditos camaradas não gostam de quem prima pela lucidez.
Querem perpetuar a opressão. Mas não podemos deixar que eles nos silenciem.
Confesso, escrevo-te cheio de medo. Infelizmente, é esse o objectivo dos abutres: deixar-
nos amedrontados para que não tenhamos força alguma de nos rebelar. Fiódor Dostoiévski
escreveu "Se está com medo dos lobos, não entre na floresta!". Nós já estamos embrenhados na
mais densa das florestas, por isso os lobos transformam-se em insectos diante da nossa bravura.
Aliás, já ouvi que "o povo não deve temer seu governo. O governo é que deve ter medo de seu
povo." Então, avancemos!
No inicio desta carta referi que poderá ser a última que te escrevo. Volto a reiterar o
mesmo. Mas não pare de me mandar as suas se quer de levar a missão ao fim. Apenas
recomendo que nas próximas cartas não escrevas o endereço, o meu nome, se quer o mencione
nas entrelinhas por vocativos ou outras expressões que aludam a mim ou a qualquer um de nós
(apenas narre os acontecimentos que tens presenciado aí). Todo o cuidado é pouco. Os abutres
podem estar a tentar controlar os nossos passos. Aliás, não mande mais as cartas pelo postman. É
mais viável ir ao parque de Eyupuro e entregá-las aos motoristas. Não aceite escrever o endereço
em qualquer coisa, peça-lhes que o memorizem. Temos de ser prudentes agora. Lembra que
numa das cartas escrevi que a polícia veio aos nossos escritórios perguntar por ti? Então, estamos
todos em perigo.
Enfim, continuação de um bom trabalho aí desse lado!

Abraços
Do seu companheiro
Albino Fragoso Francisco Magaia
Orvalho em Chamas

NAPWERE – GATOS QUE BEBEM SANGUE (3)

163
Fernando Absalão Chaúque

Numa selva de pequenos arbustos um gato é um leão.


(Provérbio Italiano)
Orvalho em Chamas

As folhas eram maiores que os troncos das árvores de que descaiam; acariciavam o chão.
Aquelas plantas pareciam um anão com as orelhas mais grandes que o corpo inteiro.
(Uma aberração?)
Eu: labirinteava-me por debaixo daquelas árvores como um verme fugindo de furiosas
labaredas; movia-me como um quadrúpede (joelhos e mãos beijando o chão). Estava exausto. O
que mais ansiava era esfumar-me dali, ficar invisível para que aqueles gatos desistissem de me
perseguir.
Das últimas vezes que os felinos se haviam colocado no meu encalço fora razoável,
menos assustador, porque não carregavam nenhuma arma com a qual me pudessem atingir,
apenas empunhavam as aguçadas garras. Agora, vinham munidos de azagaias, catanas e
machados. Gritavam:
Este napwerinho não nos vai escapar.
Acelerei a locomoção. O meu coração rufava devido ao esforço que eu imprimia na fuga.
Empenhava-me a não deixar rastros. Contornava as gigantescas folhas, zeloso. Enquanto isso,
por detrás de mim as flechas riscavam o ar, sibilavam, perfuravam as folhas, perdiam-se nas
rugosas copas das árvores que inconscientemente eram o meu escudo. Protegiam-me daqueles
raivosos animais.
O medo imperava em mim. O pânico tentava domar-me, mas eu contrastava-o, mantinha-
me resiliente. Naquele instante, eu era o único quadrúpede naquela mata, pois, aqueles gatos
locomoviam-se apenas com as patas anteriores. Com as posteriores manipulavam as suas armas,
ora faziam tilintar as catanas e os machados, ora manejavam as azagaias.
De repente, senti-me sem mais forças para continuar a rastejar. Arranquei uma folha;
tombou sobre mim. Provocou um estrondo que magnetizou o chão.
Ouviram esse ruído? O napwerinho está deste lado…vamos pegar o gajo, um dos felinos
gritou alertando os outros.

165
Fernando Absalão Chaúque

Estendi a folha no chão, deitei-me nela, na horizontal; encolhi os pés até o queixo,
peguei-a pela ponta, rolei várias vezes até que ela me deglutisse por inteiro. Estagnei-me num
tronco. Fechei os olhos, rezando que os gatos não me descobrissem.
Eles aproximavam-se, vigorosos. Alguns passavam por perto de mim; ouvia-lhes o
moroso ronronar e a ofegante respiração. E eu controlava-me para não emitir ruído algum.
Passados alguns minutos, abri o olho esquerdo, vi-os deambulando pertíssimo de mim.
Eram gatos pretos com olhos de cobre oxidado que brilhavam dilacerando a escuridão. Eram
gatos da raça Selkirk Rex, com pelo longo, encaracolado que lembrava o das ovelhas; gatos
longos com um metro de comprimento, gordos que pesariam mais de cinco quilos.
Eu não reconhecia aquela mata. Nunca estivera ali. Nunca vira árvores com folhas tão
enormes. Ademais, eu era um recém-nascido com menos de uma semana de vida. Como
conseguia deslocar e camuflar-me daquele modo. E o meu umbigo já havia sarado. Como tudo
aquilo acontecera? Como eu aparecera naquele lugar?
Boss, acho que perdemos o napwere!
Não me irritem, seus inúteis, procurem o gajo ou então eu como a vocês, o animal que
dizia estas palavras tinha uma voz mais gorda que um hipopótamo, não era um gato, claramente,
era um leão. Adicionou:
Eu só quero o coração, vocês vão sugar todo sangue dele.
A cena se repetia, eles perseguiam-me para beber-me o sangue. Do mesmo modo que um
dia antes um bando de Wegies liderado por um leão também me perseguira.
(Inferno!)
Como eu aparecera àquela mata surreal? A questão não se calava.
E a minha mãe, onde se encontrava para me salvar? Aliás, o meu pai é que era a pessoa
adequada para ali me proteger. Com aquela altura de eucalipto espantaria os gatos; com aquelas
megalómanas mãos que pareciam pás de um escavador o leão fugiria logo que o visse.

Os gatos não se cansam, caçam-me. O chefe já proferira a ordem: achar-me ou a morte


cairia sobre eles, impiedosa.
Vi um gato muito próximo a mim. Cerei os olhos. O felino farejava com toda força.
Senti-o cheirando-me a ponta do cabelo. Sem dúvidas, eu já tinha sido descoberto.
Por favor, não diga nada aos outros, implorei.
Orvalho em Chamas

Não ouviste? Se não te encontrarmos ele nos vai comer.


Vamos combinar uma coisa, senhor gato.
Enquanto tentava avançar com a minha proposta o gato gritou:
Já encontrei o napwerinho…está aqui.
Sem demoras, o leão aproximou-se derrubando as folhas.
Deixem-me cuidar dele pessoalmente, disse ele.
Os gatos fizeram uma roda em torno de mim. Da última vez que eu fora perseguido por
Wegies fora assim mesmo. Todos alegraram-se só de ver-me.
O leão desembrulhou-me. Despiu-me. Colocou-me no meio do círculo. Eu chorava,
desesperado. Eles gargalhavam, dançavam. O leão ordenou que todos se calassem.
Meus caros, vocês devem sugar o sangue dele, já sabem, pois não?
Mas tem certeza que isto vai resultar?, o gato que rejeitara o pedido de não me entregar
aos outros cortou-lhe a palavra.
Estás a duvidar de mim ou o quê?, retorquiu o leão.
O chefe aproxima-se do gato, eleva-o com as patinhas de frente, abre a sua sórdida boca,
engole-o. E questiona os outros:
Alguém de vós tem mais questões?
Nenhum dos gatos se pronuncia.
Em seguida, o leão orientou os gatos a se disporem em coluna. E salientou:
Eu era um gato, mas logo que bebi sangue de um napwere transformei-me em leão. Já
vos contei isso.
Adicionou que agora já não precisava do meu sangue, os gatos podiam sugá-lo, todo. Ele
queria o meu coração. Acreditava que ao come-lo se transformaria em um ser humano. Era o seu
grande sonho, deixar de ser um animal. Transformar-se em pessoa para poder gritar a toda
humanidade que nenhum animal é irracional. Irracional é o homem que os maltrata. Destrói os
seus habitats. Caça-os. Mata-os. Cozinha-os. Come-os. Ou coloca-lhes em gaiolas. Tranca-lhes
em jardins zoológicos. Bate-os. Escraviza-os. Coloca-lhes a desempenhar tarefas árduas.
Explora-os. E ele mantém-se preguiçoso. Refastelado.
Na óptica do leão, toda maldade para com os animais tinha que findar. Ao se transformar
em pessoa, criaria uma organização que defenderia os direitos de todos animais. Ele queria

167
Fernando Absalão Chaúque

libertá-los. Seria o primeiro animal a provar ao humano que ele não é tão racional quanto se
julga. Seria o primeiro herói do reino dos ditos ‘’animais irracionais’’.
Eu continuava a chorar, rodopiando no chão, sem saber o que fazer. Estava prestes a
perder todo meu sangue, em seguida o coração. Esta seria a consumação da minha inexistência.
Levantei-me. Corri ao encontro do leão. Ele limitou-se a olhar-me como quem dizia que o meu
esforço nada mudaria. Cheguei perto do leão. Encolhi os punhos. Quando já estava prestes a
golpeá-lo, senti uma flecha perfurar-me as costas. Caí. O meu sangue começou a borbotar como
água na cascata.
Eis o sangue, o leão ordenou.
Senti dentes perfurando-me todo corpo. A maioria dos gatos preferiu sugar-me o sangue
directamente das veias. Os outros beberam o que saia de onde a flecha me alvejara.
Todos saciaram-se. Tombaram. E iniciaram-se as convulsões que culminariam com a
transformação.
(Evolução?)
Eu já me sentia frágil.
O que se achegava?
(A morte?)
O leão ajoelhou-se diante de mim. Senti as suas unhas perfurarem-me a caixa torácica.
Vomitei uma nuvem de sangue. Ele retirou-me o coração; vislumbrei um enorme buraco no meu
peito. O meu coração continuava a pulsar nas garras do leão. Nenhuma gota de sangue ainda
pingava de onde a flecha estava cravada. Nenhuma porção ainda restava em mim.
Já estava morto? Não. Ainda que sem coração e sangue continuava vivo, porém
drasticamente debilitado.
Enfim, estava enfraquecido. Pele esbranquiçada como uma sombra pálida.
Segundos depois, senti uma fome de deixar os metais a transpirar. A minha boca estava
seca como a superfície de uma rocha no deserto. Elevei a língua ao céu-da-boca, passeei-a pela
gengiva do maxilar inferior. Correu sem interrupção, de ponta a ponta. Desfilei-a pela gengiva de
cima.
(Que susto!)
Repeti mais uma vez o movimento.
(Inacreditável!)
Orvalho em Chamas

Algo interrompia o curso da língua no meio da minha gengiva superior.


Repeti várias vezes o movimento começando da extremidade contrária da boca.
Mesma coisa.
Algo interrompia o curso da língua no meio da minha gengiva superior.
Comecei a apalpar a tal coisa com a língua. Percebi que não era só uma. Eram duas.
Inacreditável: eram dois dentes incisivos centrais, já germinados, dúcteis.
Impossível: eu ainda não tinha a idade correspondente. Um mês de vida, mas já tinha dois
dentinhos. O que havia acontecido comigo?
Olhei arredores. Os gatos continuavam com as nojentas convulsões. O leão ensaiava a
melhor posição para engolir o meu coração.
Abri os olhos, descobri que era mais um pesadelo perturbando-me o sono.
***
O bebé vomitou, disse a parteira.
A minha mãe limpou-me os beiços, agradeceu a atenção da parteira. E pôs-se a estranhar
o facto de ter vomitado enquanto dormia.
Sim, eu ia dizendo que…, a enfermeira Luísa retoma o discurso, não iremos esperar a sua
família chegar, e completa, a ambulância te levará de volta a casa.
A minha mãe nada diz.
Queremos evitar problemas e discussões aqui na maternidade.
As duas já previam que o meu pai viria nervoso para me ver e confirmar o que a velha
tempestade possivelmente lhe revelara.
Mas eu não conheço o caminho de volta, a minha mãe enfatiza.
E acrescenta que a vinda até ali fora a primeira vez que saíra da casa do Santos sem a
venda nos olhos. Durante a trajectória não conseguira memorizar o caminho por causa das
incessantes dores de parto.
Não te preocupes, o motorista da ambulância conhece todos estes bairros, é nativo
daqui. E mais, não há quem nunca ouviu falar desse tal velho Faztudo. Mesmo nós que viemos
da cidade já ouvimos tanta coisa sobre ele. Sabemos também que ele é filho de bois, ou seja os
pais dele se transformaram em bois no dia do enterro.

169
Fernando Absalão Chaúque

O Relógio na parede marcava oito horas. O dia perambulava nas suas infâncias. Estava
fresco; não aqueceria tanto como na manhã do dia anterior quando saí do ventre.
Naquele momento, o meu pai talvez se aprontava para vir buscar-nos ao hospital. Ou
estaria discutindo com a Tempestade, que certamente o aconselhava a não vir pelo facto de eu
ser um napwere. Havia mais uma suposição que corria na mente da enfermeira, os dois viriam
juntos para as acusar de terem trocado de bebé. As duas não queriam mais trocar palavras com a
velha. E se o director ouvisse aquela acusação? Em quem acreditaria? E se acreditasse na
Tempestade e levasse o caso às autoridades? Claro que seria a palavra da minha avó contra a
delas, mas sempre restaria uma mácula nas duas. A melhor saída era despachar-nos dali.
A minha mãe aceitou a sugestão. Arrumou os pertences na bolsa. Embrulhou-me com
duas capulanas. Aconchegou-me na valva dos seus braços. Desceu do beliche.
Não perca aquele papelinho. No dia que precisares de nós é só arranjar maneira de nos
contactar, disse a parteira.
Está bem. Muito obrigada por tudo.
Não precisa agradecer…
***
Saímos da maternidade.
Uma ambulância já nos esperava; alojamo-nos nela. O motorista imediatamente colocou
o automóvel em marcha.
No olhar da minha mãe era legível a sarcástica morfologia do medo. Não sabia o que
aconteceria assim que chegássemos a casa. Os episódios que se avizinhavam eram de tamanha
incerteza e melancolia, ela pressentia. O destino nunca sorrira para ela, nem por engano.
Os deuses não têm pena de mim. Será que a minha vida será eternamente um oceano de
bruma? A minha mãe pergunta-se enquanto a ambulância avança e o hospital vai se
transformando em diminuta silhueta.
Apesar de tudo, o facto de ter-me vivo em suas mãos dava-lhe esperanças que algures nas
mãos do futuro estaria a felicidade esperando por nós. Todavia, sabia que a felicidade não é coisa
fácil. Não surge do nada. É necessário passar por momentos de enfado para poder valorizá-la
quando chegar a vez de com ela coabitar.
Às vezes, a minha mãe questionava-se: como serei feliz enquanto o meu nome é Tristeza.
Para ela, este nome era a ignição da maldição que a perseguia. Vontade não a faltava de trocá-lo.
Orvalho em Chamas

Várias vezes pensara em sair gritando que já não se chamava Tristeza. Chamava-se Felicidade,
Alegria, Felizarda, Margarida, Lua ou um outro nome lindo, limpo que qualquer um que o
pronunciasse começaria a levitar, livre do negrume que abunda neste mundo inóspito. Mas, ela
estava condenada a ser Tristeza, eternamente.
O nome é a primeira coisa que nos é oferecida na vida, quando ainda se quer podemos
emitir opinião alguma.
E falando em opinião. Na visão da minha mãe, cada um devia ter a oportunidade de
nomear-se a si próprio, ou ao menos expor a sua ideia acerca do que o irá identificar durante toda
vida e além da morte. Todo mundo devia em primeiro lugar atingir a maturidade, só depois
escolheria um nome.
O nome é uma inquebrável profecia. Olha só, decidiram chamar-me Tristeza, deste modo
a minha vida é o mais puro antónimo da alegria, concluiu a minha mãe enquanto lançava os
olhos para onde vínhamos e nada via além da imensurável distância que nos escoltava.
Logo que saímos do recinto hospitalar o motorista advertiu:
Mãe do bebé, segure firme aí!!
A minha mãe acatou o conselho do motorista, aconchegou-se, aproximou-me ao seu
peito; com as duas mãos assegurou-me como se fosse uma jóia rara, quebradiça, e, em seguida
afogou-se nestas infindáveis lucubrações onomásticas. Esqueceu-se que há muito vinha tentando
fugir de Ohawa. Não seria aquela a melhor oportunidade para fazê-lo? E se tivesse dito ao
motorista que nos devia levar a Eyupuro e argumentasse que a parteira e a enfermeira se haviam
enganado?
***
O motorista largara a estrada alcatroada. Agora a ambulância voava com os pneus
lambendo uma terra avermelhada. No princípio via-se gado e casas nas bermas da estrada. Mas
depois de alguns minutos, o verde da paisagem era a única coisa que se evidenciava. Enquanto
guiava a ambulância, o motorista não parava de mexer o celular. Parecia monitorar algum
assunto importantíssimo: trocava mensagens e às vezes recebia curtas chamadas.
Depois de um longo percurso, abandonou a estrada vermelha, curvou à esquerda
seguindo uma estrada de areia branca, cristalina. Alguns quilómetros depois, ele reduziu a
velocidade, desligou a sirene, ligou o rádio num volume alto. Quando imobilizou a ambulância já

171
Fernando Absalão Chaúque

havia um carro preto sem a placa de matrícula pausado atrás de nós. O motorista da ambulância
desceu com a cara coberta por uma máscara de caveira. Dois homens vestidos a preto também
com máscaras de caveira desceram do carro preto. Um deles era alto com músculos enormes,
trazia uma caveira branca cobrindo-lhe a face. O outro era baixo, barrigudo, a sua máscara exibia
uma caveira preta. Os dois acenaram em saudação ao motorista que de imediato abriu a porta da
cabine em que nos encontrávamos.
O homem musculoso espreitou-nos e em seguida o outro. Por detrás das máscaras, os
olhos daqueles homens eram penumbras fulminantes.
Hoje conseguiu um bom produto!!, disse o homem da caveira branca.
Sim! Assentiu o motorista. E sublinhou, hoje trago um bebé napwere, não é isso que a
boss desde há muito queria?
E a mulherzinha?, perguntou o barrigudo.
Ora, ora, ilustres… sei que a boss queria apenas um napwere, ora… digam a ela que
também a ofereci a mulherzinha.
Certo, aceitou o musculoso.
A minha mãe tremia. Percebera que havia intenções ilícitas entre aqueles homens; era
notável que caíramos numa cilada. Quem armara aquilo tudo? A parteira? A enfermeira? O
motorista? Devia ser um deles ou todos eles coadunando num único propósito. Ora, estava claro
que o motorista da ambulância levara-nos do hospital já sabendo de todo o esquema.
A minha mãe começou a gritar:
Ajuda! Alguém nos ajude!
Os três homens riram-se em simultâneo, entretidos como os gatos do meu sonho.
A minha mãe continuou a gritar.
Os homens espreitaram-nos dentre a palidez dos vidros, felizes.
Qual é a idade do napwerinho?, perguntou o homem da caveira branca.
Nasceu ontem, meus ilustres, venho com ele directamente do berçário.
Ontem? Impossível…olha bem para a boca dele.
A minha mãe reparou-me antes que o motorista o fizesse. Entretanto, todos pasmaram-se.
Isso é estranho, disse o homem da caveira branca.
O homem da máscara preta reparou-me longamente, hipnotizado, disse:
O miúdo já tem dois dentinhos.
Orvalho em Chamas

Sim. O sonho tornara-se real. Eu era um recém-nascido, mas já tinha dois dentinhos que
me nasceram quando o leão retirara o meu coração.
O que vocês querem fazer connosco?, gritou a minha mãe, aterrorizada.
Aqueles gritos eram inúteis. Quem estaria no meio daquela mata para nos ajudar?
Os homens continuaram a conversar, despreocupados, por longos minutos. No final, o
motorista da ambulância questiona:
E o pagamento?
Que pagamento, ilustre?, perguntou o homem da caveira branca.
O meu pagamento pelo serviço.
Os homens de preto trocam olhares enigmáticos. O da caveira preta responde:
Sim, sim, o pagamento… o pagamento, ilustre… a boss disse que desta vez devias ter um
pagamento especial.
O motorista da ambulância alegra-se, saltita.
Aceitas esse pagamento especial?, o homem da máscara branca pergunta.
Aceito, meus caros!
Os dois homens voltam a trocar olhares. O da caveira preta leva a mão direita à cintura,
debaixo do blusão há um coldre castanho do qual o homem tira uma pistola, recarrega-a. A
minha mãe grita mais alto. O homem aponta a pistola ao motorista que surpreso pergunta:
Ilustre, o que é isto?
(A morte?)
O homem puxa o gatilho e a bala perfura a máscara do motorista, aloja-se na testa. A
máscara banha-se de sangue, o homem tomba. Convulsa, seu corpo tenta revogar a morte, mas
ela pronuncia-se mais astuta. Os pássaros chilreiam, abandonam as árvores. Rasgam o céu,
dissolvem-se nas alturas.
Os dois homens gargalham. O da caveira branca diz:
É o pagamento especial que a boss recomendou para ti.
(A morte?)
A minha mãe não pára de gritar. Assegura-me só com a mão esquerda, tenta arrombar a
porta com a mão direita. Não consegue. Está muito fraca para violentar a fechadura. Com o pé
direito chuta os vidros laterais, não os consegue quebrar. Continua a implorar por ajuda, mas a

173
Fernando Absalão Chaúque

sua voz apenas ecoa dentro da ambulância, não tem asas para projectar-se para fora. O volume
do rádio é também um estorvo.
A minha mãe treme. Não sabe o que fazer para nos livrar dos homens. O seu coração
ferve como palha na lareira. Os pulmões perdem a potência. Ela respira com dificuldade, como
se estivesse afogada num rio de poeira. O que se agoura?
(A morte?)
O homem da caveira preta vai ao carro preto, abre uma das portas, leva algo; regressa ao
encontro do companheiro que está despindo o corpo do motorista. O homem da caveira preta
empunha um facão. É o que ia buscar no carro. O gume daquele facão cintila como um pedaço
de lua na língua de um negro nevoeiro, lembra-me as aguçadas garras do leão que no sonho
retirou-me o coração.
Os dois vestem luvas transparentes, despem o corpo do motorista. Agem naturalmente
como se fizessem a normalíssima coisa do universo. O homem da máscara amarela leva o facão,
eleva-o, corta o pescoço do motorista, num só golpe. A cabeça e o corpo já estão divididos, cada
parte jaz no seu extremo, solitária. Os homens estão entretidos. Gritam, alegres.
A minha mãe geme de medo, como se o gume daquele facão a tivesse atravessasse a
alma. Está sem garganta para gritar, nem forças para pensar em como a gente pode sair da
ambulância. Resta-nos esperar que os homens de preto decidam-nos o destino.
O homem da caveira preta volta ao caro preto. Da bagageira tira um coleman vermelho.
Regressa. Apanha a cabeça do motorista, roça-a, dá-lhe um beijinho na testa, e mete-a no
coleman. O comparsa, enquanto assobia, despedaça o motorista com o facão (divide as mãos, os
braços, as pernas e os dedos pelas partes das articulações), mete tudo no coleman.
O homem da caveira amarela tira um bisturi do coleman. Os dois conversam, fazem
demorados cálculos olhando para do finado motorista, com um marcador preto traçam várias
linhas curvas no seu peito. Em seguida rasgam-lhe o peito com o facão, retiram o coração,
embrulham-no num plástico; depositam-no no coleman.
Os homens, voltam ao carro, trocam de luvas. E regressam ao corpo com duas tesouras.
Cortam os órgãos genitais do motorista, embrulham-nos em um plástico branco, conservam tudo
no coleman vermelho.
De repente, o celular do homem da caveira preta toca. O da caveira amarela vem desligar
o rádio da ambulância. Imediatamente, o outro atende o celular:
Orvalho em Chamas

Alô, boss!... Sim, já está feito.


Interrompe a fala, vira-se a nós, olha-nos fixamente:
Estão aqui, boss!... Está bem... Faremos isso, boss! Até já!
Devolve o celular ao bolso. Transmite a informação ao colega. Os dois regam os restos
do motorista com combustível, ateiam fogo. Esperam até tudo ser consumido pelas chamas.
O homem da caveira preta vem abrir a porta, a minha mãe implora:
Deixem-nos em paz, por favor!
O homem nada disse. A minha mãe continuou:
Matem a mim…deixem o meu filho.
O homem manteve-se silenciado.
Veio o da caveira branca, meteu a mão num dos bolsos, tirou um minúsculo recipiente
transparente com um conteúdo azul, pulverizou dentro da ambulância. Fechou a porta. A minha
mãe cobriu-me a cara com a capulana. Aquele gás fez-nos adormecer. Quando despertamos já
não estávamos na ambulância, nem no hospital, nem no Umbigo da Terra se quer em casa do
meu pai. Estávamos num outro lugar onde nunca estivéramos antes. O que fazíamos nós naquele
lugar? Esperávamos a morte? E que lugar era aquele?

175
Fernando Absalão Chaúque

Eyupuro, 15 de Janeiro de 1997

Regressei ao aposento.
Huzina não estava lá.
As revelações da Laurinda Mafemane ainda trovejavam em mim. Por isso, a primeira
coisa que pensei foi que Huzina fora sequestrada. Mas, em pouco tempo, essa ideia evaporou-se.
Sentei-me na cama. Tirei o gravador do bolso. Pu-lo na carga, era imperioso que ficasse
sempre cheio.
Deitei-me de costas. Queria expulsar de mim o obeso cansaço. Fechei os olhos e lembrei-
me da saborosa massagem da Matessa. Sorri! Voltei a questionar-me sobre o seu paradeiro.
Talvez retornou ao centro, e tenha percorrido um caminho diferente do que me mostrara, pensei.
De repente, senti algo duro, rectangular debaixo dos lençóis, meti a mão, alcancei um caderno
preto. Estava aberto ao meio. Numa das páginas havia uma breve missiva escrita pela Huzina.
Referia que tivera de voltar a sua terra natal - Ohawa - porque preferia correr o risco de ser
sequestrada a qualquer momento que ficar trancada no centro. Nas últimas linhas, desejava-me
continuação de uma boa estadia em Eyupuro, mas aconselhava-me também a abandonar a
localidade logo que fosse possível.
Deixei o caderno na cabeceira. Puxei a almofada e nela afoguei a cabeça. Tencionava
convocar o sono, por mais curto que fosse ajudar-me-ia a fazer um refresh ao cérebro. Nenhum
pingo de sono se disponibilizou a embalar-me. Era difícil adormecer com uma teia de ruidosos
pensamentos a zumbir no meu encéfalo.
Levantei-me. Fui fazer um demorado banho. Quando voltei direcionei-me às panelas. A
Huzina havia feito matapa com arroz. Uma delícia de prato.
Já eram dezanove horas quando lembrei-me do meu fiel companheiro - o portable mp3
player. Tirei-o da tomada, introduzi nele o flash drive, liguei os auriculares. Deixei rolar a
primeira música que se pronunciou: Michael Jackson, Earth Song. Fechei os olhos, deitei-me na
cama. Depois desta, seguiu-se A Entrada dos Deuses em Valhalla de Richard Wagner. Não sei
quais nem quantas tocaram depois destas porque sem demoras desaguei num profundo sono.
Orvalho em Chamas

Ouvi alguém gritar meu nome várias vezes. Com brusquidão, levanto-me da cama. Já não
tenho os auscultadores aos ouvidos. O mp3 player jaz no chão. Concluo que, tudo dissociou-se
de mim durante o sono. Vou à entrada do aposento. Afasto a capulana. Fora, um alpendre de
escuridão domina tudo. Não há estrelas no céu. Há um diminuto frio passeando na obscura
paisagem. Ouço sibilos. Vem-me à mente os Zangbetos. Mas, em vez deles, vejo Mbalame
diante de mim. Dois gatos pretos atravessam o pátio. Ele enxota-os, insulta-os. Estende-me a
mão. Saudamo-nos. Convido-lhe a entrar. Ele recusa-se:
"Irmão, vim convidar-te para..."
"Aonde me quer levar, excelência.", pergunto.
" Vamos à igreja...hoje é sábado."
"Igreja? Já é noite demais para se pisar uma igreja. Não acha, excelência. E hoje é
sábado, sim, não é domingo."
Ele afirmou que a noite só existe na mente dos que não conhecem o Divino. Ela é uma
ilusão. Para quem já entregou sua vida ao Altíssimo há nele um eterno crepúsculo. Além disso,
acrescentou, segundo o seu pastor deve-se rezar de noite quando Deus já está livre dos seus
abundantes afazeres e disposto a nos ouvir com todas atenções; e nunca aos domingos, pois o dia
mais sagrado de todos é sábado.
Não retorqui. Nem quis instigá-lo a dar mais explicações. No fundo, não me faltava
vontade de negar o convite. Dentro de mim, uma voz dizia que ele me queria sequestrar e que era
o responsável pelo misterioso desaparecimento de albinos na localidade. Mas, sendo um turista,
tinha que continuar a fingir simpatias e curiosidades.
"Sem peoblemas, excelência, vamos..."
Voltei ao aposento, o relógio na parede marcava vinte e três horas em ponto. Por cima da
camiseta vesti um blusão, sobrepús a balalaica. Não deu tempo de levar o gravador e o caderno
porque Mbalame já me acusava de estar a demorar. Saí.
"Não precisa vestir tanta roupa assim, irmão."
"Estou com frio, excelência, e parece que está para cair chuva."
"Está bem. Mas o vestuário é dispensável diante de Deus."
"Não percebi, excelência!"

177
Fernando Absalão Chaúque

"Não se preocupe, perceberá tudo quando estivermos na igreja."


Calei-me. Caminhamos todos em silêncio até que depois de dez minutos paramos diante
de um edifício no qual havia uma enorme cruz na parede frontal; debaixo dela estava plasmado
em letras enormes "CHURCH MBUNYA". Enquanto ainda relia e tentava perceber o significado
daquelas palavras eis que Mbalame Ya Moto despe-se. Fica totalmente nu. Contemplo-lhe
enquanto dirige-se a uma frondosa e fedorenta figueira. Estende a sua roupa junto de tanta outra
que está ali. Deixa os sapatos no calcanhar da árvore, encarra-me, faz um sinal para que eu
também me divorcie das vestes. Dispo-me, sem questões. Vou até a figueira. Vejo ali mochos,
corvos e águias a sonecar num dos ramos.
No edifício ouço insurdecedoras batucadas.
"Vamos entrar.", diz Mbalame.
Vou na dianteira.

O interior da igreja é um escombro, escuro, fedorento, sem assento algum. O chão é


lamacento, pegajoso como o de um curral nauseabundo. Fico tonto logo que a primeira molécula
de ar chega aos meus pulmões. As batucadas entorpecem-me os sentidos. Tacteio o vazio até
alcançar uma parede. Apoio-me nela. Mas os joelhos tremem. Caio. Tento ajoelhar-me, mas
acabo por afogar-me de barriga ao chão inóspito. Fecho os olhos.Vomito.
As batucadas cessam. Tudo transforma-se em silêncio.Volto a vomitar. Abro os olhos. De
repente, uma lâmpada alumia toda a igreja. Vejo um grupo de albinos. Todos exibindo a nudez.
Deduzo o significado de Church Mbunya: rezar nu. Mbalame estava no altar ao lado de um
homem alto, nu. Foi este homem quem enforcou o silêncio:
"Parece que temos um novato aqui na nossa church".
Todos bateram palmas, assobiaram, incluindo Mbalame. E depois numa só voz disseram:
"AMÉM". E o silêncio renasceu.
O homem desceu do altar. Veio até diante de mim. Mbalame ajudou-me a erguer-se. Os
outros fizeram uma roda ao meu redor. Apesar das fortes tonturas, fiz esforço até conseguir notar
que, na verdade, todos eram albinos. O homem, Mbalame e eu éramos os únicos ostentando
outras tonalidades epidérmicas: eu - branca - e eles - preta.
"Seja bem-vindo ao nosso reino.", disse o homem alto. A sua cara lembrava a de um
felino qualquer.
Orvalho em Chamas

"Acho que está havendo um engano, senhor..."


Mbalame mandou-me calar a boca. Uma voz surgiu dentre os albinos que me rodeavam:
"Deus nunca se engana."
Os restantes vomitaram um estrondoso "AMÉM" com as cordas vocais.
Mbalame adicionou:
"Irmão Carlos, não se preocupe, estás no lugar certo no momento certíssimo."
O homem alto sorriu como um gato. Disse que se chamava Pastor Pedro Paulo Pontes
lider mundial da Church Mbunya. Acrescentou que esta igreja foi fundada logo que se criou o
mundo, isto é, foi fundada pelo Altíssimo; tem as portas abertas para todas as pessoas do mundo.
Mas em Eyupuro, é maioritariamente frequentada por albinos. Pois, é nela que se sentem livres
para expor os seus corpos sem ninguém para lhes dirigir olhares preconceituosos. Primeiro,
porque resa-se na calada da noite e passa-se a maior parte dos cultos com as lâmpadas apagadas.
O pastor discursava com seus olhos sintonizados aos meus. Falava muito rápido que não
surgia se quer uma brecha para outros interferirem. Mesmo assim, cortei-lhe a palavra:
"Vocês são uns loucos, deixem-me sair daqui. É a este sítio que me trazia ou entramos
aqui por engano?"
"Irmão Carlos, não me envergonhe.", disse Mbalame.
Uma voz atrás de mim, pronunciou-se:
"O que te faz concluir que somos uns loucos?"
Sinto um aperto no peito. Vomito mais uma vez. Contudo, imediatamente retomo a
palavra.
"Porque rezam numa possilga... um sitio cheio de merda do que de Espírito Santo."
Todos gargalham, menos o Pastor e o Mbalame. No final da risada, Paulo Pontes
interfere.
"Deus está em qualquer sítio. Não interessa se é limpo ou não. Do mesmo jeito que ama a
todos independentemente da cor… mas é necessário frizar que os albinos são as suas predilectas
e primordiais criaturas."
O mau cheiro aumentava a cada instante dissolvido na ampulheta.
"Deus não gosta de sujidade e nunca gostará...", ralho.

179
Fernando Absalão Chaúque

"A igreja não pode ser um sítio de luxo. Tem que estar assim, sujo para testar a fé dos
crentes. Quem se distancia do templo por causa do mau cheiro mostra que não tem a fé em dia."
"Excelência, o que é isto? Convidou-me para ouvir estas loucuras.", volto a ralhar.
Mbalame olha-me como quem quer dizer que lhe decepciono diante de Deus.
"Vão a merda vocês todos.", digo.
Ninguém reage. Calam-se como se não tivessem boca nenhuma.
"Estás cheio de demónios, miúdo. ", diz o pastor. "Agora vou-te baptizar para te salvar de
todos eles."
"Exactamente. É por isso que lhe levei até aqui. Vi que estava a sofrer." diz Mbalame.
O pastor fechou os olhos. Começou a balbuciar uma oração numa língua estranha.
"Larguem-me, seus loucos.", vociferei.
As batucadas retornam. O pastor eleva a voz. Vejo mochos, corvos e águias entrarem.
Dirigem-se a ele, pousam na sua cabeça e ombros. A lâmpada desliga-se. Por segundos, a
escuridão é a única coisa que brilha. Muitos gatos surgem no altar. Acendem os olhos, iluminam
tudo.
Pedro interrompe as orações. Manda-me ajoelhar. Os outros também ajoelham-se
incluindo Mbalame. Em coro todos repetem "Seja purificado. Seja lavado."
Pedro Pontes guia as suas mãos ao falo. Mija-me na cara, cabeça, corpo inteiro. Após ele
seguem os outros. Irrigam-me com urina. Vontade de arrancar-lhes os falos com os dentes não
me faltava. No final, Mbalame grita:
"Parabéns, irmão. Já estás limpo."

Eles carregam-me ao altar. Amarram-me numa cadeira. O pastor força-me a engolir duas
bolachinas. Diz que é a minha primeira comunhão. Os gatos iluminam-me com os olhos.
Mantenho-me em silêncio. Cansei de ralhar. Pontes ordena que os outros perfilem-se atrás de
mim. As batucadas não cessam. Todos cantam "Orvalho em Chamas". Começam a fazer dilizas
em torno de mim. No meio de todo turbilhão uma voz feminina corta o ar:
"É ele."
A lâmpada volta a iluminar a igreja. Vejo a Khefassi diante de mim. Aponta-me. Repete:
"É ele que..."
Orvalho em Chamas

"Antes de falar qualquer coisa, sai daqui, vai tirar a roupa. Respeita o nosso Deus. A sua
roupa está a sujar o nosso templo.", o pastor afronta a esposa do líder comunitário.
. Mbalame desce do altar, arrasta a sua esposa para fora. Os dois regressam passado
menos de um minuto. Khefassi já está nua, mas não deixou a bolsa fora da igreja. As batucadas e
o canto são degolados.
"Agora pode falar..." diz o pastor dirigindo-se à Khefassi.
"Ele é que sequestra pessoas aqui na nossa localidade.’’
"Quem?", um dos crentes pergunta, aflito pela resposta.
"Esse vosso Carlos Cardoso não é nenhuma merda de turista é um traficante."
"Khefassi, cala a tua boca, não anda a mentir para o nosso branquelo.", Mbalame remata.
Todos olhos viram-se a mim. Não me pronuncio. A Khefassi deve estar a delirar.
O pastor desce do altar com as mãos à cabeça. Caminha de um lado para o outro. Senta-se no
chão lamacento. Respira fundo. Diz:
"Khefassi, não acusa o turista sem provas. Imagina se os grandes lá da capital souberem
dessa tua brincadeira...".
"Essa mulher está louca, não sabe o que fala", digo.
"Tenho provas, irmãos.", ela responde.
"Quais são?" Perguntão os crentes.
"Se for verdade, eu te juro senhor Carlos, vou-te enforcar diante de todos habitantes de
Eyupuro", ameaça-me o Mbalame.
A igreja transforma-se em centro de discussão e ameaça.
"É tudo invenção dela...", contraponho.

Khefassi abre a bolsa. Tira o meu gravador e a minha máquina fotográfica.


"Vejam só. Tudo isto, é dele.", diz ela.
Pontes levanta-se. Arranca-lhe a máquina fotográfica. Ela entrega o gravador ao
Mbalame.
Os crentes começam a ferver. Agitam-se. Trocam conversas em surdina.
"Isso é invasão de privacidade... Khefassi, não devias ter mexido nas minhas pastas."

181
Fernando Absalão Chaúque

Ninguém está interessado nas minhas declarações e acusacões. Todos querem saber o que
tem nos aparelhos que a Khefassi tirou da bolsa.
O Mbalame mexe a máquina fotográfica, arregala os olhos:
"É verdade."
"É verdade?", perguntam os restantes.
"Sim, ele tem fotos de muitos que desapareceram daqui."
"Então ele na verdade não é nenhum turista!!, exclama o pastor.
Mbalame passa a máquina a um outro senhor. Este pega a máquina observa as fotos.
Declara:
"É verdade. Nas fotos estou a ver os dois filhos da Laurinda Mafemane que
desapareceram há anos, fotos de Mazoio entre outros que estão desaparecidos há muito tempo."
"Há um mal entendido aqui, deixem-me explicar", intervenho.
O pastor devolve o gravador à Khefassi. Arranca a máquina do senhor que está ao lado de
Mbalame. Observa as fotos.
"Sim, são as fotos deles...."
"Deixem-me explicar, por favor."
Nenhum deles me escutou. Estavam todos cheios de raiva. Algo seco embateu-se na
minha nuca. Virei-me. Vi um dos seguidores do Pedro Pontes com um pau nas mãos. Deu-me
mais uma paulada na nuca. Tudo começou a girar. Vieram todos para cima de mim. Agrediram-
me, coléricos, até o ar esquecer o caminho para os meus pulmões e o meu corpo transformar-se
em pedra.
Orvalho em Chamas

NAPWERE – A BOCA DO INFERNO

183
Fernando Absalão Chaúque

Por vezes
o destino é como uma pequena
tempestade de areia
que não pára de mudar de direcção.

(Haruki Murakami, Kafka à Beira-Mar)


Orvalho em Chamas

O abismo era a única luminosidade possível. Nuvens negras corriam nas pálpebras das
alturas. O silêncio berrava congelado nos tímpanos do universo. Além de mim, nenhuma outra
existência ali se pronunciava, assim pensei depois que voltei à consciência.
Parecia que estava sepultado numa caverna há muito apagada da memória. Tudo era
inércia. Nenhum ponteiro se atrevia a sustentar o voo do cosmos.
Que lugar assustador…
Estava deitado de costas. Coberto, talvez pela capulana da minha mãe. A superfície na
qual me apoiava tremelicava, lembrava um terramoto escrevendo intermitentes vibrações nas
linhas do chão.
(Que lugar era aquele?)
Sentia uma imensurável fome. Tentei chorar, mas a minha voz projectava-se somente
para dentro de mim. Sufocava-me o aparelho fonador. Melhor, sufocava-me os sentidos todos.
As lágrimas salgavam-me a alma, desciam dos olhos, penetravam-me pelos canais auditivos.
Mosquitos pousavam em mim. Mas não conseguiam sugar-me o sangue. Quando
tentavam perfurar a pele morriam como se num trago bebessem um mar de veneno.
Dói-me o peito. Um objecto afiado atravessasse-me os pulmões, talvez. Não me consigo
mover. Respiro fundo. Deixo o ar metálico inundar-me os pulmões. Estou impotente. Como um
pássaro com asas e patas amputadas.
O silêncio reinava até que o que presumi ser um bando de corvos começou a gritar numa
voz acesa capaz de ressuscitar os mortos. Gritavam enquanto batiam as asas como se batessem
palmas.
O chão continuava a estremecer num ritmo indescritível. Estranho! Aquilo não era um
chão verdadeiro. Podia ser uma outra coisa, mas, chão, não, não era. Fechei os olhos. Era em vão
mantê-los abertos. Um gato miou.
A escuridão assombrava-me. Porém, de alguma forma lembrava-me a minha primeira
casa: o ventre. Lá navegava o vazio como um orvalho negro em apuros ou pegadas de gaivotas
germinando em terras aquáticas. As minhas cambalhotas eram cantigas de hipnotizar os deuses.

185
Fernando Absalão Chaúque

Durante nove meses sonhei em libertar-me daquelas paredes. Nascer. Queria tanto conhecer o
mundo. Não imaginava o que aqui me esperava. Uma infinidade de melancolias. Nasci. Ainda
não tenho um mês de vida. Contudo, o mundo já me ensinou que as pessoas não são iguais. Há
incontáveis diferenças entre elas em vários aspectos: a cor, o sexo entre outras coisas que ainda
descobrirei. Que inóspita forma de viver! O desdém da enfermeira lá no berçário, o fingido olhar
da parteira, a repulsa da minha avó Tempestade mostraram-me que ser um napwere é carregar
uma eterna maldição dentro de si.
Pensando bem, haverá alguma diferença entre um napwere e outros humanos? Não! Não
existe, acho eu. Todos têm tudo em comum desde a composição corporal até à metafísica. Qual é
o motivo de tanta segregação? Ainda sou um bebezinho, mas atrevo-me a dizer que quem
desdenha, resigna, oprime ou denigre o outro insulta-se a si mesmo e amargamente molda o seu
próprio futuro.
Ora, acho que foi por eu ser um napwere que a minha mãe e eu viemos parar neste lugar
em que o abismo é a única luminosidade possível.
***
De repente, uma lâmpada suspensa no meio do teto expulsou a escuridão, dispersou os
corvos.
O teto era preto. Lembrava-me o fardamento dos dois homens que mataram o motorista
da ambulância. Senti o chão a estremecer. Mais forte que antes.
Alguém tossiu.
Passados alguns instantes, um líquido pegajoso começou a molhar-me a nuca, desceu até
baptizar-me as costas.
Mais uma vez: alguém tossiu.
Percebi que era a minha mãe. E era o seu leite que jorrava dos mamilos e me inundava o
corpo. O chão agora tremelicava mais rápido como se um redemoinho o sacudisse. Atencioso,
descobri que não estava deitado no chão, mas sim no peito da minha mãe. Não ocorria ali
nenhum terramoto, era o coração dela que ribombava.
Mais uma vez, alguém tossiu, aproximou-se (não era a minha mãe que agora tossia, era
uma outra pessoa).
A minha mãe despertou, sobressaltada, o seu coração triplicou a pulsação.
Orvalho em Chamas

Ajuda! Ajuda! Ajuda!, ela gritou enquanto levantava-se e colocava-me ao colo. Desfilou
o olhar arredores. Viu o teto, as paredes e o chão adornados a preto. Voltou a gritar:
Ajuda! Ajuda! Ajuda…
Hey, menina… acalme-se, uma voz rouca apelou.
A minha mãe voltou-se; viu dois homens com cabelo longo, despenteado e barba já há
meses nunca feita, ajoelhou-se, implorou:
Por favor, matem a mim… mas… mas deixem o meu filho.
Os homens trocaram olhares. Um deles aproximou uma cadeira. Gesticulou sugerindo
que a minha mãe ali se sentasse.
Não preciso sentar, podem me matar agora, eu vi o que vocês fizeram com o motorista
da ambulância.
Menina sente-se aí, por favor, o outro homem aconselhou a minha mãe com uma voz
amena.
A minha mãe sentou-se na cadeira e voltou a ralhar:
Já estou pronta, podem me matar…
Não somos assassinos, pah!
E o motorista?
Não sabemos nada desse motorista que estás a referir.
Mentirosos, vocês os dois mataram o motorista.
Acalme-se menina, também fomos sequestrados, estamos no mesmo barco que tu.
Estamos num barco? Aonde vamos?, a minha mãe questiona.
Não. É só uma forma de dizer que estamos na mesma situação, fomos todos enganados,
respondeu o homem da voz rouca.
O cabelo desfasado e a barba amarrotada atribuíam-lhes um ar diabólico.
Depois de alguns minutos, a minha mãe estava calma.
Antes de muito, eu chamo-me Mazoio, disse o homem da voz rouca.
Eu sou Komachu. O outro apresentou-se e questionou: e a menina… quem é?
A minha mãe pôs-se a pensar como se tivesse esquecido o próprio nome. Depois
respondeu:
Sou Alegria; chamo-me Alegria mas também podem me chamar Felicidade.

187
Fernando Absalão Chaúque

Certo, Komachu assentiu (sem imaginar que o verdadeiro nome da minha mãe era o
antónimo das palavras que acabara de proferir; adicionou:
Não somos os homens que te sequestraram; fomos também sequestrados. Estamos aqui
talvez há três meses, não é isso Mazoio?
Sim. Três meses ou mais.
Os homens não tinham como afirmar com precisão. Trancados ali não havia como
controlar os dias. Não sabiam quando era noite e quando era dia. Nunca viam o sol a nascer nem
a se pôr. Na maioria do tempo, a única coisa que faziam era contemplar o abismo que lhes
circundava. Os sequestradores ligavam a lâmpada quando acabavam de meter ali mais um
sequestrado ou vinham retirá-lo.
(Retirá-lo para onde?)
A minha mãe encolheu a testa. Tinha tantas questões, muitas das quais naquele momento
era impossível descobrir uma resposta exacta.
Mas que lugar é este?
Não sabemos. Sabemos apenas que é o nosso cativeiro, Mazoio respondeu.
A minha mãe esbugalha os olhos. Só agora nota as anomalias físicas que estes homens
apresentam. Arrepia-se. Tapa a boca com a palma da mão direita como se abortasse um grito ou
enfocasse um choro. Lágrimas desfilaram na sua face ao perceber que Mazoio tinha os dedos da
mão direita amputados. Komachu não tinha as orelhas. Tinham sido removidas deixando os
orifícios avulsos. A dor triplicou-se quando a minha mãe viu que as feridas nos dois homens
eram recentes e, naturalmente, ainda faltavam eternidades para sararem.
O que…
Mazoio interrompe a fala da minha mãe, já previa a pergunta que borbulharia dos lábios
dela. Os dois homens sentam-se no chão, lado a lado, afrente de nós. Não há nenhuma outra
cadeira por ali. Mazoio desmancha os factos.
‘’Foi há acessivelmente três meses que abri os olhos e me descobri neste tedioso lugar.
Ora, antes disso, eu vivia em Eyupuro.’’
Sinto o coração da minha mãe tentando arrombar-lhe o peito ao ouvir o nome da sua
terra natal. Mas não interfere, deixa o homem continuar com a narração.
‘’Eyupuro é a terra que me viu nascer. Mas deixa-me ir directo ao que aqui nos interessa.
Queres saber como fui amputado os dedos, não é isso?, Alegria, é este o teu nome, pois não?’’
Orvalho em Chamas

Sim!
‘’Foi assim. Há anos que eu frequentava a maior igreja daquela localidade, a Church
Mbunya. Nesse dia, no final do culto nocturno, o pastor Pedro Paulo Pontes chamou-me à
secretaria, disse-me que havia tido uma revelação que resolveria todo o meu sofrimento. Disse
que as minhas orações haviam tido resposta.’’
Mazoio coça-se a barba, respira fundo.
‘’Na visão, ele me vira empregado numa enorme empresa na capital, recebia uma
avultada quantia monetária. Fiquei alagado de alegria. O pastor disse que na manhã seguinte eu
devia ir à igreja com os meus documentos. Antes das sete horas viria um carro dessa tal empresa
para me levar à cidade. Acreditei em tudo que Pedro Paulo Pontes disse. Quem era eu para
duvidar das visões divinas? Não tinha eu a fé em dia? Ademais, há muito que procurava um
emprego.
No dia seguinte, não pensei tanto, acordei, fui à igreja. Ao chegar lá vi um carro preto,
não hesitei, aproximei-me, falei com o motorista, confirmou que era quem me viera buscar.’’
O homem paralisa as falas. Pisca os olhos como se tentasse rever com nitidez ou apagar
da memória o episódio que relata.
‘’Embarquei. O homem pôs o carro em marcha. Durante o percurso, ele repisava o facto
de na cidade haver um emprego luxuoso para mim, secundava as palavras do pastor. Foram
incontáveis horas de percurso que a fome começou a roer-me o estômago. Ele ofereceu-me um
refrigerante. Não recusei. Tomei-o. E o que se seguiu foi uma treva roubando-me a consciência.
Adormeci. Quando despertei já estava aqui, preso.’’
O homem corta a narração, tosse, depois adiciona com os olhos cheios de lágrimas:
Talvez o emprego que o pastor profetizou era este… ficar aqui trancado.
Mazoio tinha uma teia de dúvidas presa na sua mente. Será que o pastor o enganara? Não.
Pontes nunca faria isso. A santidade que nele habita nunca o deixaria enveredar por caminhos
maliciosos. Mazoio preferia acreditar que o motorista é que não fora sério, distorcera todo o
plano.
E o que aconteceu com os seus dedos?
Ah, os dedos, sim ainda ia chegando ai…

189
Fernando Absalão Chaúque

Mazoio levanta-se. Chega pertíssimo da minha mãe, eleva o indicador esquerdo, aponta a
uma porta nos fundos do compartimento em que nos encontramos. Diz:
Tudo aconteceu por detrás daquela porta. Leia o que está ali escrito…
A minha mãe pousa os olhos no topo da porta, lê, mas não percebe a semântica daquelas
palavras.
O que é Mdomo Wa Kizumo?
É ‘’Boca Do Inferno’’, Komachu responde.
Aquela porta é a verdadeira boca infernal, quem a atravessa já mais volta. Quem tem a
sorte de voltar, traz consigo sangrentas memórias, Mazoio salienta.
Vocês passaram por aquela porta ou…?
Sim, já estivemos do outro lado e lá fomos arrancados as partes corporais que nos
faltam.
Mas, quem está atrás da porta? Tristeza questiona.
Estão lá os anjos da maldade…
Mazoio relata que certo dia, depois de ter passado quase uma semana submerso na
escuridão daquele cativeiro despertou e viu a lâmpada propalando intensas luminosidades por
todos os cantos. Em seguida, a ‘’porta infernal’’ abriu-se, um homem vestido a preto e com uma
máscara de caveira entrou. Trazia uma pistola com a qual apontou-lhe na face, puxou o gatilho,
porém em vez de bala, a arma expeliu-lhe um gás inodoro. Mazoio enfraqueceu-se. Tombou.
Não desmaiou nem perdeu o mínimo controlo dos sentidos, apenas ficou sem força alguma. Um
outro homem mascarado entrou pela Mdomo Wa Kizumo empurrando uma maca. Os dois
carregaram-no na maca, levaram-no para a sala do outro lado da porta. Lá, ele viu incontáveis
máquinas que se quer conhecia a função. Viu também muitos aparelhos e instrumentos que antes
só vira em hospitais, especialmente nas salas de cirurgia e bancos de sangue.
Os dois homens amararam-no na maca com cordas e ligaduras. Em seguida uma mulher
vestida a executiva apareceu, apreciou-lhe todo corpo incluindo os órgãos genitais. Depois,
virou-se àqueles dois homens mascarados:
Quais são as requisições de hoje?, perguntou numa voz fina, elegante.
Cinco dedos masculinos e dois litros de sangue e o resto é o pedido de sempre, boss, um
dos homens vestidos a preto respondeu.
Rins?
Orvalho em Chamas

Não, pele e olhos de um albino recém-nascido.


Humm… isso ainda não conseguimos…
Mazoio percebia tudo que ali acontecia e imaginava o que se avizinhava, mas não tinha
forças para reverter a situação.
Que tipo de sangue o cliente quer?
Disse que pode ser qualquer grupo, boss.
A mulher colocou uma bata branca e uma máscara. Um dos homens entregou-lhe um
bisturi. O outro levantou a mão direita de Mazoio, na horizontal, deixou os dedos fora da maca,
na direcção do pulso colocou uma bacia metálica inoxidável. A mulher começou a decepar os
dedos de Mazoio com o bisturi. Começou pelo polegar. Mas, o gume do bisturi inseminou-se
entre a junta dos ossos, não conseguiu atravessar todo o dedo, encravou-se à metade. O sangue
jorrava com uma indescritível velocidade, caia na bacia que não demoraria a encher. Apesar de
estar meio apagado, Mazoio sentia uma dor infernal. A cara da mulher era-lhe familiar, mas as
terríveis dores perturbavam-lhe a memória.
O homem continuava com a bacia na direção do pulso do homem.
Este sangue já é suficiente, disse a mulher.
Boss, eles pediram cinco litros…
Sei disso, mas se lhe tirarmos essa quantidade ele morrerá.
Ele pode morrer, sim boss, iremos sequestrar um outro.
Ele não pode morrer agora, precisaremos dos olhos dele, do pénis, dos testículos, do
nariz e doutras partes, tu sabes que há clientes para qualquer coisa…
Humm!
Ok. Despacha lá os dedos do gajo, disse a mulher enquanto se retirava daquela sala com
a bacia de sangue.
O homem foi levar um facão num dos armários, cortou os dedos de Mazoio, meteu-os
num frigorífico camuflado na parede e envolveu-lhe a ferida com ligaduras. Mazoio desmaiou.
Mais tarde, quando abri os olhos estava de volta ao cativeiro.
A minha mãe está apavorada. Mesmo boquiaberta, é lhe difícil falar. Chora imaginando o
que Mazoio acaba de contar.
Alegria, reze muito para não passar daquela porta.

191
Fernando Absalão Chaúque

Acho que eles querem o bebé dela, Mazoio adiciona.


A minha mãe recupera o fôlego.
Achas que querem o meu filho?
Komachu confima. Adiciona que quando chegou àquele cativeiro encontrou muitos
albinos. Entretanto, diariamente, um era levado pelos homens da farda preta. Atravessavam a
Boca Do Inferno e nunca mais voltaram.
Meu filho, por quê?
Um napwere vale muito dinheiro. Só um fio de cabelo dele vale milhões de dólares
americanos.
Como sabes disso, Mazoio?
Komachu é que me disse.
A minha mãe vira os salgados olhos à Komachu; repete a questão.
No dia em que o levaram àquela sala amararam-no na maca, do mesmo jeito que fizeram
com Mazoio. Arrancaram-lhe as orelhas com um alicate e as conservaram no mesmo frigorífico.
Mas antes disso, fizeram-lhe inalar aquele gás inodoro que o deixou impotente.
Quando estavam para me arrancar as orelhas ouvi a diaba, a boss dos criminosos, a
comentar sobre essas coisas. Ela falou como se contasse uma piada aos seus homens.
O que disse?, a minha mãe pergunta.
Disse que um Napwere é uma grande bolada!
Uma o quê?
Uma bolada, bo-la-da.
O que é… bo-la-da?
É um negócio informal que rende rios de dinheiro num piscar de olhos.
Meu deus… achas que eles querem vender o meu filho?
Sim. Há muito que estão a procura de um bebé albino. Parece que ele tem algo
importante que um albino adulto já perdeu. Mas, eu acho que antes de vender o teu filho eles
vão … Mazoio interrompe a frase.
O que vão fazer?
Komachu e Mazoio voltam a trocar olhares, como se se perguntassem quem entre eles
responderá.
Orvalho em Chamas

Menina, deixa Komachu contar como veio aqui parar. Depois eu te digo o que poderá
acontecer com o teu filho.
Komacho está sentado ao lado de Mazoio. Enche os pulmões de ar. Esvazia-os. Repete o
exercício três vezes consecutivas. Depois encara a minha mãe.
O meu sequestro está relacionado a uma mulher.
A tua esposa?
Não.
A tua irmã?
Não. A minha própria mãe.
Hummmmm?
‘’Meus pais e eu éramos uma família muito feliz. Nada nos faltava. Vivíamos na capital e
tínhamos uma vida estável. Eu era o único filho. O meu pai trabalhava nos Caminhos-de-ferro e
eu nos Correios; ainda não me casara, queria primeiro terminar o ensino superior. Cada coisa
tem o seu tempo, filho. A tartaruga vive muitos anos porque odeia azáfamas, sempre salientava o
meu pai.’’
A minha mãe esbugalha os olhos fascinada pela esperteza da tartaruga.
‘’Muitos acreditam que só depois da tempestade é que vem a bonança. Mas para mim,
aconteceu o inverso. Depois do que parecia ser uma eterna ordem surgiu o caos. O meu pai
morreu. Eu e a minha mãe começamos a usufruir da pensão. Um ano depois fiquei
desempregado. Passado algum tempo, a minha mãe conheceu um jovem muito novo, mais novo
que ela, aliás, muito mais novo que eu. A paixão era intensa que não demorou muito que ela o
convidasse a morar connosco. Na verdade, eu não tinha nada contra a felicidade da minha mãe.
Porém, era-me desconfortável conviver com o meu padrasto na casa em que um dia passara
inesquecíveis momentos com o meu pai.’’
Komachu cala-se. Fita a minha mãe como se a desse tempo de triturar a informação.
‘’Sem óbvias razões, a minha mãe começou a tratar-me com desdém. Um dia ela disse-
me que devia interromper a faculdade. Havia necessidade de eliminar algumas despesas porque o
dinheiro da pensão não chegava para tudo. Recusei. A partir desse dia, os sarilhos triplicaram-se.
Semanas mais tarde, o meu padrasto disse que eu devia sair de casa. Recusei. Tive uma

193
Fernando Absalão Chaúque

efervescente discussão com os dois. A minha mãe humilhou-me diante dos vizinhos. Defendeu o
seu maridinho. Insultou-me como se não fosse seu filho legítimo.’’
Komachu cala-se. Soluça. Limpa as lágrimas com as costas dos pulsos. E continua:
‘’Quando anoiteceu, a minha mãe desapareceu. À meia-noite, alguém bateu à porta.
Demorei a atender dando espaço para que o meu padrasto tomasse a dianteira. Mas ele não o fez.
Permaneceu trancado no quarto. Por fim, abri a porta. Vi a minha mãe. É ele, ela disse aos
homens de preto e máscaras de caveira que a escoltavam.’’
Mazoio abana a cabeça em jeito de lamentar o que o companheiro está a contar.
‘’Um dos homens aproximou-se. Tirou a pistola do coldre. Mandou-me levantar as mãos.
Levantei-os. Ele algemou-me. Ordenou que eu me voltasse. Obedeci. Depois, senti duas
pauladas na nuca. Caí, mas não demaiei. Levem o miúdo, a minha mãe e o padrasto gritaram,
alegres. Em seguida o outro homem pediu o número da conta bancária da minha mãe. Ela ditou-
o. Depois de alguns segundos o homem disse que a transacção já tinha sido efectuada com
sucesso. A minha mãe manteve-se em silêncio por poucos segundos. E depois confirmou que já
havia recebido o valor. Senti mais uma paulada na nuca. E, desta vez, desmaiei. E quando
recuperei a consciência achei-me aqui neste cativeiro.’’
Está bem, já chega, irmão, disse Mazoio ao notar que Komachu começava a chorar
descontrolado.
Sem demoraras a minha mãe interfere.
Que triste, Komachu.
Não se preocupe comigo, Alegria, preocupe-se com o seu filho, tão ingénuo para estar
aqui neste inferno.
Mazoio, peço para revelar o segredo, por favor, estou muito curiosa.
Que segredo, menina?
Já se esqueceu? Quero saber o que eles vão fazer com o meu filho?
Ahh! Eles vão matar, despedaçar o seu bebé para poderem vendê-lo em pedaços…
membro por membro, assim poderão ganhar muito dinheiro.

Um gato miou diante de nós, dispersou os corvos no teto.


A luz apagou-se. O felino ficou a iluminar todo o cativeiro com os olhos.
Orvalho em Chamas

Muitos dias passaram-se até aquela lâmpada voltar a iluminar o cativeiro. Entretanto, no
tal dia, Komachu e Mazoio foram dali retirados e nunca mais voltaram.

195
Fernando Absalão Chaúque

Eyupuro, 16 de janeiro de 1997

"Maldito!"
O marrulhar das vozes verte uma aguda ressonância aos meus ouvidos. São tantas as
vozes; inúmeras as bocas que fulminam toneladas de insultos.
"Seu cão!"
Os meus tímpanos pegam fogo. Tudo arde dentro de mim (a paisagem que não vejo, os
pássaros distantes arquitetando cânticos fatídicas, as tonturas que me perfuram o cérebro, as
lembranças que me fogem em contramão).
"Seu criminoso de merda!"
O aroma que me atravessa os tuneis nasais é uma incessante fogueira náuseabunda. E eu?
Um inominado perdido neste desesperado instante. Desconheço-me feito pluma a boiar no
estômago de uma lava.
"Olhem para ele!... cara sem vergonha."
Estou seminu. O frio coloniza-me o corpo. Sinto a pele lascar-se como que atravessada
por inúmeras navalhas carnívoras. Onde estou? Não sei! Talvez no ventre de uma floresta de
gelo. Não sei como vim aqui surgir. Devo estar assim seminu diante desta gente que a mim
arremessa palavras cortantes, insípidas.
"O gajo fingia ser turista...
Tenho o corpo todo cheio de dores. A nuca doi-me ao caraças. O resto da cabeça está
prestes a desintegrar-se.
...enquanto é um traficante de pessoas."
As pálpebras estão vergadas pelo peso do mundo, são rochas, obesas, fermentados por
rajadas de pancadas que me foram doadas na Church Mbunya antes de desmaiar.

Estou no meio de dois homens que com os dedos atados aos meus antebraços guiam-me
não sei para onde. Os dois murmuram. Pedem licença dentre a povoação, dispersam-na para que
nós possamos passar.
"Abram caminho!"
Orvalho em Chamas

"Afastem-se!"
Obedeço-lhes os movimentos. Os dois são meus faróis, remos ou bengalas indireitando-
me a caligrafia do andar. A multidão em volta não abranda os escárnios:
"Seu lixo de uma figa."
Há uma venda cerando-me os olhos. Vejo o abismo plangente formando muralhas na íris
e imagino as faces dos que me insultam: são rios de nervos, chamas de desdém e revolta, línguas
das serpentes mais venenosas.
Apesar de ter os dois homens guiando-me cambaleio, os joelhos revogam as ordens do
cérebro, paralisam-se. Os dois homens apertam-me os antebraços, puxam-me com todas as
forças que se escondem nos seus músculos.
"Carlos, atenção, vamos subir escadas agora.", avisa-me o que está a minha esquerda.
"Vamos puxar o gajo, nem precisávamos avisar... ainda queres tratar um assassino com
carinho?", pergunta o homem à minha direita.
"E se tudo for um erro?", retribui o outro.
"Contrariar o lider comunitário dá direito à morte. Esqueceu, irmão? Vejo que já não
queres viver."
Os dois arrastam-me. Subimos cinco degraus. Depois parece que os homens chutaram-me
os joelhos. Caí de joelhos ao chão. A multidão triplicou os gritos.
"Tirem-lhe a venda dos olhos."
"Queremos ver bem a cara desse que anda a sequestrar os nossos irmãos aqui em
Eyupuro."
Um dos homens tirou-me a venda.
Apesar das sobracelhas inchadas, pesadas, esforcei-me; abri os olhos. As primeiras
miúdas luzes de sol picotaram-me a visão. No meio da multidão, vejo alguns guardas do
Mbalame com caras omitidas pelas máscaras de caveiras. Lembro-me do Centro de
Acolhimento, da velha Laurinda Mafemane e da Huzina Matessa. Onde será que as duas estão
agora?, pergunto-me enquanto as vozes continuam a exclamar:
"Afinal é um branco!!"
"Afinal é este aqui!"
"Conheces o gajo."

197
Fernando Absalão Chaúque

"Sim, não lembras?


"Não. Quem é ele?"
"É aquele branco que lhe recebemos no parque e dançamos para ele."
"É ele! Afinal não é um turista... é um matador de gente."
"Sim. Dizem que é ele o sequestrador. Mas o gajo vai render..."

O barulho apoquenta-me. Perco forças. Meu estômago é um osso cavando-se com unhas-
de-fome. Doem-me os joelhos de tanto ajoelhar-me nesta superfície dura. Estou num palco. Bem
atrás de mim, no fim deste pódio, vejo dois paus secos equidistantes plantados no chão como se
fossem balizas; descrevo-os com os olhos, de baixo para cima. Vejo que estão iterligados por um
outro pau que os atravessa na horizontal; no meio destes paus há uma corda atada que pende para
o chão exibindo uma argola. Que estranho! Será que esta população toda está para presenciar um
enforcamento? Eu…?
"Sim, vai render, brincou com fogo a pensar o que?"
Os guardas parecem estátuas em redor do palco. A multidão efervece. Alguns tentam
subir ao palco. Mas abrandam logo que os guardas manipulam as AKM's. Mantêm-se no seu
lugar a atirar-me insultos. De repente, mudam de táctica, começam a lançar quaquer coisa a mim
(pedras, sapatos, chinelos).
No fundo, vejo dois carros brancos aproximarem-se. A multidão ao vê-los ajoelha-se. São
dois Fortuners, cabine dupla. No primeiro carro, ao lado do motorista patenteia-se o Mbalame Ya
Moto. Na segunda cabine desce um guarda, vem abrir a porta para o lider comunitário. Depois
abre uma das portas da segunda cabine da qual desce a Khefassi. No segundo Fortuner desce o
Pastor Pedro Paulo Pontes. Apressa-se, vem segredar algo ao Mbalame. Depois caminham até
diante do palco em que estou. Mbalame trajou uma túnica amarela com bordados de girafas e
elefantes na parte frontal; calçou alparcas castanhas. Com a mão esquerda assegura as pontas da
túnica para não arranharem o chão. A Khefassi, desta vez, não está vestida a executiva. Cobriu-
se todo o corpo de capulanas e ainda amarrou um lenço. Não parece a mesma que me recebeu no
centro.
Os três caminham solenemente. A multidão parou de barrulhar; está em absoluto
silêncio, ajoelhada como eu. Mbalame, Pontes e Khefassi sobem ao palco. Posicionam-se atrás
de mim, encaram a multidão. Mbalame saúda o seu povo. Este responde numa só voz e volta a
Orvalho em Chamas

ficar em pé logo que o líder ordena. Agora tudo é silêncio. Ninguém me insulta. Ninguém pode
falar sem o consentimento do expoente máximo. Mbalame começa a discursar. Vai directo ao
assunto. Não quer perder tempo em rodeios.
"Como todos sabem, estamos aqui para conhecer o homem responsável pelo sequestro de
albinos aqui na nossa localidade. Como veem é este aqui chamado Carlos Cardoso. Ele chegou
aqui no mês passado e apresentou-se como turista enquanto é quem vem arquitetando sequestros.
Antes fazia tudo estando lá na capital. Mas veio aqui para poder controlar todo o processo por
perto, acho eu, e, como vosso lider, o que penso é a realidade.’’
O homem discursa enquanto a mão esquerda continua a assegurar as pontas da túnica.
Com a direita gesticula: dedo indicador em riste.
"Segundo as minhas diligências, este homem é traficante de órgãos humanos. Por isso,
não sequestrou apenas a tantos nossos irmãos albinos que há anos estamos procurando. Também
fez desaparecer ao jovem Mazoio que era um dos crentes mais fiéis à nossa tão querida Church
Mbunya e ao nosso benigno Pastor Pedro Paulo Pontes."
A voz do Mbalame ecoava em todos os cantos capaz de perfurar até tímpanos de surdos.
"Então, este é um inimigo do povo!! É ou não é?"
"É...", o povo respondeu.
"E nenhum desgraçado como ele merece perdão. É ou não é?
"É", o povo voltou a concordar.
A ninguém Mbalame dava o privilégio de com ele discordar, era notável. Todos sabiam
que quem o enfrentasse implorava por um enforcamento imediato.
"Agora, vamos ouvir o que o nosso pastor tem a dizer acerca deste assunto e deste
inimigo do povo.
Ergui os olhos ao Mbalame e ele arremessou-me um pontapé no maxilar inferior. Mordi-
me a língua e muito sangue começou a jorrar da minha boca.
"Não me olhe seu imbecil", disse ele.
A multidão gritou de júbilo. Era o que há muito eles queriam: ver-me a sangrar, a pagar
pelos sequestros que vinha cometendo em Eyupuro.
Pontes saiu de trás de mim. Veio parar a meu lado. Trajara um fato preto e anexara uma
cartola na cabeça. Entretanto, estava descalço. Apesar do intenso pânico em que eu estava

199
Fernando Absalão Chaúque

restavam-me forças para reflectir: por que está descalço? Além de defender que se deve rezar nu
será que considera inútil o calçado também?
Ele afronta a multidão que está agora atenta para acompanhar o seu palavreado.
"Meus irmãos, não tenho muito a dizer além de agradecer a sua excelência Mbalame Ya
Moto e a sua esposa por nos terem revelado o rosto de quem há anos faz dos nossos irmãos
mercadoria.’’
O homem pausa o discurso. Tira a cartola da cabeça. Forço as minhas pesadas
sobrancelhas a ebrirem-se mais; observo-lhe em mínimo soslaio (a sua cara é revestida de
estranhezas, que na igreja não as consegui notar; os seus olhos perdidos em órbitas losangulares
emanam um brilho incomum. Tem dentes pontiagudos, afiados, um nariz pequenito, ambos
característicos de felinos).
"Não há perdão algum para quem practica actos macabros como os que o Carlos tem
levado a cabo. Sendo assim, seguiremos com a nossa lei comunitária. É claro que todos a
conhecem. Sim ou não?, Pontes pergunta.
‘’Sim, conhecemos…", o povo responde.
‘’Qual é?’’, Pontes quer saber.
"Olho por olho, dente por dente.", grita a multidão.
‘’Mais uma vez!!’’
"Olho por olho, dente por dente."
"É essa a lei que seguiremos." Ele devolve a cartola à cabeça. "O Carlos matou, logo,
também deve ser morto."
A multidão ferve de alegria: bate palmas, assobia, aponta-me, passa os dedos nos
pescoços, demostrando que vim aqui para ser enforcado. Agora não me restam dúvidas quanto a
isso.
"O nosso lider continuará com o trabalho final", diz o Pastor.
Pontes volta à posição. Mbalame vem parar afrente de mim. Exibe-me as costas. E volta a
dirigir-se ao seu povo. Pergunta:
"Há alguém que queira dizer algo?"
Um silêncio macabro patenteia-se. Ninguém se pronuncia. As árvores bloqueiam a
fotossíntese. Paralisam-se. O sol espreita, triste, lamentando o que se avizinha.
Orvalho em Chamas

Uma mulher levanta a mão. Mbalame ordena que ela suba ao palco. Ela treme de tantos
nervos. Chora. A Khefassi tira o lenço da cabeça. Enchuga-lhe as lágrimas. Depois de alguns
minutos a mulher reave o fôlego e expressa-se apontando-me com desdém.
"Estou de acordo com a decisão tomada pelo nosso líder. Este homem tem que ser morto.
Se possível, eu até podia lhe espetar uma faca directamente no coração porque o meu filho
albino, de quatro anos desapareceu no ano passado. Depois de dois dias, o pai achou o seu
corpinho no mato, sem a cabeça, órgãos sexuais e dedos. Aquilo doeu-nos muito, irmãos. É por
isso que este homem deve ser enforcado. Não merece continuar vivo porque também eliminou
muita gente."
Derramo lágrimas.
A mulher mais uma vez desaba em um estrondoso choro. Os guardas retiram-na do palco.
Acompanham-na de volta à multidão.
"Vamos concluir o nosso trabalho. A sentença já está dada.", diz Mbalame enquanto tira a
túnica. Fica de tronco nu talvez para confirmar que é a altíssima instância da localidade. Um dos
guardas traz uma cadeira. Coloca-a no meio do palco, bem abaixo da corda que está prestes a
apertar-me o pescoço e eliminar-me deste mundo. Arrependo-me de ter aceitado a missão de vir
a Eyupuro para investigar o desaparecimento misterioso de albinos. Olha só, a isca virou-se
contra mim como o caçador que vira gazela. Não me resta saída alguma. Resta-me esperar a
morte que se aproxima de dentes aguçados. Nunca imaginei que morreria numa forca. Choro.
Não pela minha vida, mas pelos meus filhos e esposa que ainda tinha muito amor para com eles
comungar. Quanto a mim, a morte não me assusta. Não há remorso ou rancor algum que me
perturbe o eterno descanço. Morrerei em paz, pois já fiz tudo que o destino me reservara.

Dois guardas vêm levantar-me. Colocam-me em pé na cadeira. Cruzam as minhas mãos


atrás à alrura das nádegas, amarram-nas. Em seguida, colocam a corda de sisal ao pescoço. Basta
que se retire a cadeira dos meus pés para que a corda me asfixie. Adeus! Vou ao além. Nao há
ninguém que me possa ajudar aqui. O pior é que fui condenado à morte sem direito a defesa
alguma. Se calhar nã sou traficante nenhum.
Todo o povo está embriagado de felicidade. Grita:
"Seu assassino..."

201
Fernando Absalão Chaúque

"Morre seu fidamãe."


"Branco de merda...; traficante de humanos... vá ao inferno."
O pastor levanta a mão. A multidão cala-se. Diz:
"Há algo que o nosso querido Mbalame esqueceu-se de dizer. Quem terá a honra de tirar
a cadeira para que a corda possa acabar com o maldito Carlos? Alguém aqui gostaria de ter esse
privilégio?"
Ele dirigiu a segunda questão à multidão. Prontamente, todo povo levantou as mãos.
Todos queriam ser os escolhidos para puxar a cadeira dos meus pés.
Mbalame revira os olhos. Encara a multidão:
"Enfim, já temos a pessoa para dar o último passo para o enforcamento de hoje. É uma
pessoa que nos trouxe as provas de que Carlos Cardoso é um traficante. Falo-vos da minha
esposa Khefassi.
A multidão grita, mais eufórica que antes:
"Morte, morte, morte, morte, morte ao maldito"
A Khefassi não demora. Vem posicionar-se a meu lado. Encaramo-nos, grito:
"Eu não fiz nada, é tudo mentira, não sou traficande nemhum. Tudo é armação dela"
Khefassi sorri, chuta a cadeira. Sinto a corda a apertar-me o pescoço, a enforca-me sem
piedade. Mais sangue jorra da ferida na minha lingua. Meu corpo tremelica. Esforço-me para
manter a respiração, mas a corda é de facto mais forte que todo o meu corpo.
Orvalho em Chamas

Eyupuro, 17 de janeiro de 1997

A corda ao pescoço subtrai-me do plano físico, projecta-me às artérias da vitalidade


imaterial. O meu coração soluça, teima em manter-se vivo, os olhos reviram-se, ganham a cor da
lua inundada de lágrimas. As minhas veias espreitam a atmosfera, querem transpor a pele ao
serem dilatadas pela inércia que se vai instalando no sangue.
A morte pousa no palco, vejo-a; acena-me: é um gato preto, com duas cabeças
quadrangulares, opostas, cada uma em cada extremidade do felino. O animal dobra-se, ganha um
formato de ‘’U’’, encara-me com os quatro olhos. Dança diante de mim. A sua coreografia
lembra-me a dança Maulide que me foi exibida quando desembarquei nesta localidade.
A brutalidade da corda conduz-me à boca do Tânatos. O gato das duas cabeças desaparece do
pódio. Pelo visto, ele era resultado de uma súbita alucinação.
Já nada vejo, a dor de ser asfixiado por uma corda quase expele-me os olhos das órbitas.
Mijo-me e liberto gases pelo anus. A frente de mim, abundão largos sorrisos na cara de toda
multidão. Dói morrer deste jeito. Acho que teria sido melhor se me tivessem dado um tiro na
testa. Não sofreria tanto. Até agora já estaria apagado.
O céu fica totalmente nublado, as nuvens adquirem a cor de sangue, uma forte ventania
começa a assobiar, abana todas as árvores, arranca-lhes as folhas, os frutos, deixa-as de ramos
nus. A manhã transformou-se em noite alta.
Amultidão está alarmada.
"Ninguém sai daqui! Ninguem vai para casa!!” Mbalame ordena.
A ventania intensifica-se! Abana tudo. Rasga o vestuário de algumas pessoas na
multidão. Há uma teia de vozes tecendo-se por todo o lado. Mas ninguém se atreve a contrariar a
ordem do líder comunitário. A multidão toda ajoelha-se, pega arbustos e capim de modo a
resistir a força do raivoso vento que, agora, levanta um mar de poeira para os olhos de todos. Os
guardas mascarados sobem ao palco, empunham as armas, posicionam-se em redor do Mbalame,
Pontes e Khefassi. A mim deixam exposto à fúria do maldito vento.

203
Fernando Absalão Chaúque

"Que merda de ventania é esta?’’, Pontes pergunta, talvez a ele mesmo porque ninguém
lhe responde.
Todos estão em pânico.
"Guardas, controlem o maldito do Carlos, não pode escapar da morte". O pastor orienta.
"Está difícil enxergar debaixo desta poeira negra". Responde um dos guardas.
"Merda pah... só pode ser o Carlos que convocou esta tempestade.", diz Mbalame.
"Eu já imaginava, o gajo além de ser traficante é feiticeiro.", a Khefassi salienta.
Dou o último suspiro. O meu coração silencia-se. E é quando a corda arrebenta-se. Caio na
superfície do palco. Sem demoras, volto a respirar apesar da forte ventania e da poeira que
alagou o ar. Foi sorte? Milagre? Alguém arrebentou a corda para me salvar?
A tempestade desaparece. A poeira abaixa-se, as nuvens esbraquiçam-se, volta a
estabelecer-se uma normal manhã. Estatelado no palco, ainda respiro com dificuldades como se
tivesse um ataque de asma.
Os guardas retiram-se do palco. A multidão toda volta à consciência, levanta-se, surpresa,
espanta-se ao ver que já não estou pendurado nas balizas. O mesmo espanto invade o Mbalame e
a companhia toda.
Mbalame, ainda de tronco nu, começa a insultar-me; Pedro Paulo Pontes baptiza-me com
pontapés na barriga.
"Seu branco, traficante, feiticeiro de merda...", gritam os dois.
As minhas mãos ainda estão atadas à altura das nádegas. Por mais que eu queira afrontá-
los não há possibilidade nenhuma. Acabei de regressar da casa da morte e não me restam forças.
Volto a sangrar pela boca. A multidão mantém-se silenciosa. Não regozija. O lider comunitário e
o Pastor cansam-se de golpearem-me. Os dois elevam os olhos, contemplam a multidão, e eis
que diante deles, bem perto do palco, surge a velha Laurinda Mafemane com as mulheres
integrantes do grupo coral do Centro de acolhimento. A velha e as mulheres são escoltadas por
dez Zamgbetos, as palhas ambulantes que lembram coberturas de palhotas. A multidão não
espera ordem nenhuma do líder comunitário. Ajoelha-se em respeito aos Zangbetos, pois, são a
maior autoridade terrestre. Nada é superior a eles, mesmo o Mbalame deve-lhes obediência. Um
vento forte, cortante volta a fazer-se sentir.
Estes Zangbetos lebram-me os que na primeira noite vi a circular ao pé do aposento antes
do Mbalame mandar a Huzina Matessa para cuidar de mim.
Orvalho em Chamas

A Khefassi é a primeira a ajoelhar-se no palco, depois seguem o Mbalame, o Pastor e os


guardas. Não há quem se atreve a desrespeitar estes espíritos em palhas.
A Laurinda sobe ao palco. Levanta-me. Uma das mulhesres do grupo coral segue-a,
coloca a cadeira que a Khefassi chutara a frente de mim. As duas mulheres guiam-me a sentar-se
nela. Refastelo-me. Enquanto a velha Laurinda posiciona-se no meio do palco a outra mulher
limpa-me o sangue com um pano branco.
A multidão toda está em absoluto silêncio, mesmo o Mbalame mantém-se ajoelhado, de
boca trancada.
A Velha Laurinda dirige-se ao povo:
"Bom dia a todos! Não estou aqui pela minha livre espontânea vontade. Acho que todos
sabem que desde que os meus filhos albinos, os que tive depois da morte de Mafemane, vivo no
centro do acolhimento. Habito aquele lugar porque também sou uma albina, tenho medo de aqui
fora ser sequestrada como os meus queridos filhos. Meus irmãos, estou aqui porque desta vez os
Zangbetos escolheram a mim para aqui traduzir o que eles têm a dizer a todos nós os habitantes
desta localidade. Os Zangbetos é que vieram nos buscar no centro, eu e as minhas companheiras
do grupo coral para aqui virmos.
A voz da Laurinda é velha e minúscula, mas o absoluto silêncio permite que alcance a
toda a multidão.
Dentre os Zangbetos há o que é mais velho de todos: é o mais bojudo, a sua palha é mais
acastanhada que o dos outros. Este, sobe ao palco posiciona-se ao lado da velha Laurinda.
Sentado na cadeira, admiro o Zangbeto, lembro-me das explicações da Huzina Matessa acerca
dos mesmos. É inacreditável que um cone de palha se locomova deste jeito e seja uma autoridade
demasiado respeitado por todos os habitantes desta localidade. Pelo visto, não sou o único que
está deslumbrado. Toda a multidão está de olhos esbugalhados e bocas abertas. Mbalame e a
esposa trocam olhares.
O Velho Zangbeto aproxima-se da Laurinda. Ela encosta o ouvido esquerdo ao Zangbeto
à altura de onde haveria uma boca se aquela palha fosse uma pessoa. Parece que ela escuta a
palha a falar. Mas só ela é capaz de ouvir o tal discurso. Passados cinco minutos de escuta, a
Laurinda volta a dirigir-se ao povo.
"O nosso mais velho Zangbeto diz que todos podem ficar em pé."

205
Fernando Absalão Chaúque

Todos erguemo-nos. Mas a mim a Laurinda sinaliza que me mantenha sentado. Adiciona:
"O nosso Zangbeto disse também que passam-se muitos anos que queria dirigir-se a todos
nós os habitantes de Eyupuro, só estava à espera da oportunidade viável. Entretanto, hoje é o dia
ideal."
A multidão ainda está em silêncio. Pelo visto, é raro ter um Zangbeto a dirigir-se ao povo
e circular à luz do dia. Deve haver um assunto pertinente e importante para que isso aconteça.
Sendo assim, é sábio prestar atenção do que vaiar.
Laurinda volta a a encostar o seu ouvido no Zangbeto. Depois de alguns minutos
discursa.
"O nosso Zangbeto diz que o assunto que o levou a vir aqui hoje é o mesmo que preocupa
a nós todos: o misterioso desaparecimento dos nossos irmãos, principalmente os albinos. É
notável que Mbalame trouxe-nos aqui o Cardoso como o responsável. Quanto a isso, o Zangbeto
nada tem a contrariar mas, tem a alertar que o Mbalame transgrediu as regras locais. Julgou e
condenou um suspeito à morte sem o ter submetido ao Mhondzo."
Os outros Zangbetos rodearam o palco, as mulheres do grupo coral do centro
mantiveram-se em pé, acompanhando a tradução da Laurinda.
Polo que eu saiba como jornalista, o Mhondzo é uma bebida tradicional de fábrico
caseiro que é produzida para a identificação de feiticeiros a nível das comunidades. Esta bebida é
exclusivamente consumida em cerimónias tradicionais que são dirigidas por anciãos. A mesma é
dada aos potenciais feiticeiros a nível da comunidade e não só. Por seu turno, o suspeito fica
incosciente e fala todas as verdades da sua vida. Aliás, se ele for o verdadeiro culpado irá
confessar o crime diante de todo o povo.
"Neste sentido, segundo o nosso Zangbeto, o Carlos deve beber o Mhondzo para que se
posso apurar a pura verdade. Pois, é provável que não seja o sequestrador."
O meu pescoço doi muito devido ao tempo que levei estendido na forca. Além disso, a
corda alejara-me o pescoço e deixara uma marca na epiderme.
As declarações da Laurinda em nome do Zangbeto eram determinantes para a minha vida
e futuro de Eyupuro.
Por fim, a Laurinda Petguntou ao povo se teria algo por perguntar aos Zangbetos. Da
multidão, ninguém se pronunciou. Quem levantou a mão foi uma das companheiras da Laurinda.
Perguntou se eu era o único que devia tomar o Mhondzo.
Orvalho em Chamas

Laurinda traduziu a pergunta ao Zangbeto e depois a resposta ao povo. Disse que eu


devia ser o primeiro a tomar o Mhondzo, visto que era o principal suspeito. Em seguida, o
Pontes, o Mbalame e a Khefassi também deviam beber o Mhondzo. Isso, no ponto de vista da
Laurinda, deu a entender que o responsável pelos sequestros estava entre nós os quatro. Fiquei
intrigado. Porém era imperioso esperar pelo momento da verdade.
O Zangbeto disse à Laurinda que seria a responsável pela cerimónia do Mhondzo. No dia
seguinte, às doze horas, todos devíamos voltar àquele palco para a cerimónia. O velho Zangbeto
garantiu que na tarde do dia seguinte todos sairiamos dali satisfeitos, cheios de confissões
absurdas que seriam proferidas. Ademais, o Zangbeto disse que nenhum deles estaria na
cerimónia, mas donde estivessem acompanhariam tudo e ninguém devia se atrever a não cumprir
o que a Laurinda dissesse. Na verdade, os Zangbrtos não gostam de se expor à luz do dia,
operam na calada da noite quando todos habitantes estão a descansar. No grupo dos Zangbetos
havia um pequenino. Este, subiu ao palco. Falou com a Laurinda. Esta traduziu que eu devia
levantar-me da cadeira e abraçá-lo. Fi-lo mas cheio de medo. Depois do longo abraço com o
Zangbetinho vi todas as feridas no meu pescoço e cara a curarem-se. Senti-me rejuvenescido. Em
seguida, todos nós ajoelhamo-nos. As mulheres do grupo coral entoaram a canção ‘’Orvalho em
Chamas’’. Os dois Zangbetos desceram do palco. Juntaram-se aos outros. A multidão abriu uma
passarela no meio. Os Zangbetos passaram dali até dissolverem-se no infinito. Eu, embalado
pelas melodias em chamas, rezava para que o cântico não findasse.
Dispersamo-nos dali. Voltei ao aposento, não encontrei a Huzina, queria tanto que ela ali
estivesse para me contar mais sobre os Zangbetos. E revelar a ela que aqueles cones de palha me
haviam resgatado da morte.
Rematei um longo banho de modo a livrar-me de toda sujidade que ao meu corpo se
colara desde a Church Mbunya à tempestade poeirenta que me sacudiu no palco.
A Laurinda e as companheiras albinas voltaram ao centro preparam o Mhondzo para a
cerimónia do dia seguinte que veio a ser inesquecível.

207
Fernando Absalão Chaúque

Eyupuro, 18 de janeiro de 1997

~ Às 6:00 da manhã ~

"Senhor Carlos...".
Uma diminuta voz chamou por mim; nascia do outro lado da capulana que era porta do
aposento, perpassava-a até achar abrigo nos meus tímpanos. Com a mão direita peguei o portable
Mp3 player que inerte na cabeceira e em voz alta reproduzia Redemption Song de Bob Marley,
pisei no "pause".
"Senhor Carlos, bom dia!"
Levantei-me da cama. Estiquei-me como um gato. Alguns ossos estaliram no meu corpo.
Meus olhos ardiam, sinal de que não dormira o suficiente. Na verdade, não se passavam quatro
horas de tempo desde que adormecera. Dormira tarde, claro: primeiro, quando deitava-me na
cama a imagem do Mbalame a sentenciar-me à morte atormentava-me, o meu coração acelerava-
se como uma bomba prestes a explodir. Segundo, quando conseguia adormecer via-me numa
cova profunda e os guardas do centro, munidos de pás enterravam-me vivo sem caixão algum;
num outro instante, via-me a morrer carbonizado, a Khefasse era quem regava-me com petróleo
e em seguida ateava-me fogo; devido a estes pesadelos, o sono distanciava-se de mim. Também
pensava muito na cerimónia do Mhondzo. Assustava-me a ideia de ter que ser posto a delirar. Só
consegui dormir quando coloquei o mp3 player na cabeceira a tocar o álbum In a Silent Way de
Miles Devis para me embalar.
"Bom dia, senhor Cardoso!"
"Quem é?", pergunto.
"Isso não interessa! Trago de volta os seus instrumentos."
A que instrumentos se referia?
A voz era novíssima, masculina.
Afastei a capulana e diante de mim vi um menino dos seus dez anos de idade com o
traseiro encostado no capom de um Bugatti. Por detrás do luxuoso caro vi dois Fortuners pretos,
dez homens mascarados, que por sinal eram guardacostas do miúdo. Ele desgrudou-se do carro.
Orvalho em Chamas

Sorriu ao notar que a minha atenção estava mais voltada ao Bugatti que a eles; estendeu-me a
pequenita mão em saudação. Convidei-lhe a entrar. Sentei-me na extremidade da cama. Ele
sentou-se na armchair em que Mbalame se aconcheguara quando viera oferecer-me a Huzina
Matessa.
Não havia necessidade de o menino apresentar-se, as características físicas e o carro já o
identificavam. Era Peter Ya Moto o único manda chuva da localidade e que todas as quartas
feiras despejava dinheiro nas ruas.
"Trago de volta o seu material de trabalho.", diz o filho do líder comunitário.
Um dos seus guardas entra no aposento, entrega-lhe um plástico e retira-se.
"Certo", digo eu, sem querer colocar-lhe infitas perguntas.
Do plástico, ele tira a máquina fotográfica e o gravador. Entrega-mos.
"Se não me engano, este material estava nas mãos da sua mãe, pois não?"
O menino olha para o chão. Vejo uma nuvem de vergonha assentar-se no seu rosto
redondo como o do pai.
"Na verdade, eu é que vim buscá-lo aqui no seu aposento logo que o meu pai levou-lhe à
Church Mbunya."
Ele permanece cabisbaixo como um cão vadio quando nota que o seu dono descobriu-lhe
as trapaças que arquitecta às escondidas.
Levanto-me, nervoso. Apetece-me espancar o miúdo, mas esforço-me para controlar o
animal feroz que morra em mim e às vezes me domina.
"Fizeste isso a mando de quem?," pergunto.
"Ninguém! Vim aqui vasculhar porque queria saber quem, na verdade, é o senhor. Mas,
ainda naquela noite, todo material caiu nas mãos da Khefassi. Desde já, peço-lhe perdão, senhor
Carlos."
Volto a sentar-me na cauda da cama.
"Sabes que o teu pai condenou-me à morte por enforcamento depois de ter visto essa toda
matéria confidencial lá na igreja do Pedro Paulo Pontes?"
O menino confessa que sim. E volta a implorar que o perdoe.
Ficamos quase dez minutos sem nenhum de nós articular palavra alguma. Cada um
encerrara-se dentro de si, regurgitava silêncios.

209
Fernando Absalão Chaúque

"Agora sabe quem sou?", inquiri.


"Sim, não és um turista, és um jornalista."
"Hummm!"
"E estás aqui numa missão..."
"A missão está cancelada. Aliás, sou agora o principal suspeito pelos raptos. Tudo graças
a ti. E, hoje, ao meio dia, estarei a beber o Mhondzo. E se não for morto, volto à capital. Não
quero mais saber deste lugar."
Ele levanta-se da cadeira. Vai à mesa. Pega na jara e serve-se da água. Bebe-a num longo
gole. Depois volta a sentar-se. Pega no seu plástico e tira uma fotografia. Entrega-ma. Observo-a
aos mínimos detalhes. A imagem é de uma menina muito parecida com o Peter. Devolvo os
olhos a ele:
"Quem é?"
"É a minha irmã, Tristeza Ya Moto. Na verdade, eu sou Pedrito Ya Moto... esse outro
nome é apenas uma alcunha que um professor de inglês me atribuiu na oitava classe."
É a menina da qual Laurinda Mafemane me falara no centro. Mas, por enquanto, finjo
não saber de nada. E mais, um menino de dez anos diz já ter frequentado a oitava classe!?
Questiono-me várias vezes, mas decido comentar sobre a aparência dos dois.
"São muito parecidos vocês os dois, é verídico."
"Sinto saudades dela!"
"Afinal não vivem na mesma casa?", volto a fingir não saber que a Tristeza desapareceu
de Eyupuro.
"Vivíamos, senhor Carlos, ela já não está aqui em Eyupuro. Está em Ohawa. E gostaria
que me ajudasses a encontrá-la."
"E... como ela foi parar por lá?
"É uma longa história, ilustre. Mas eu sou o culpado pelo desaparecimento dela, e tenho
vivido com um enorme peso na consciência. Peço que aches a ela, por favor!"
"Eu sou um jornalista, não um detective particular.", enrugo a voz e afronto o miúdo.
Do seu plástico tira um maço de papéis. Coloca-o nas minhas mãos. Vejo que é o
conjunto de cartas que vinha trocando com o meu editor.
Orvalho em Chamas

"Eu sei que és formado em jornalismo investigativo segundo o que teu editor chefe
escreveu na carta do dia nove de Dezembro do ano passado. Ora, do mesmo jeito que estás aqui a
investigar o desaparecimento dos albinos, peço que...".
Nao o deixo terminar. Com a cabeça, nego o seu pedido. Já não tenho forças para
embarcar numa outra investigação. Cansei-me desta localidade e das suas loucalidades. O que
quero é ir-me embora, sublinho.
"Por favor, senhor Carlos, ache a minha irmã pagarei qualquer dinheiro que for
necessário."
"Por mais que eu queira ajudar. Nunca negocio com crianças como tu. Além do mais, só
posso aceitar um outro serviço depois de finalizar esta missão sobre os albinos. E como é do seu
conhecimento, ainda não se sabe quem é o verdadeiro sequestrador."
"Eu não sou criança. Fiz vinte e cinco anos no mês passado. Eu sou mais velho que a
minha irmã Tristeza. Ela só tem Treze anos."
"Não tenho tempo para engolir as suas mentiras, miúdo." Levanto-me. "Desaparece do
meu aposento, já.", Ordeno.
O miúdo mantém-se sentado. Mostra-me o seu bilhete de Identidade. Vejo o ano de
nascimento. Faço as contas. Tudo indica que a idade que acaba de me dizer é verdadeira. Porém,
ele tem as características corporais de uma criança de dez anos.
Com o olhar atabalhoado, observo-lhe. Ele começa com as revelações.
Antes da Tristeza ir a Ohawa, todos acreditavam que ela era mais velha que o Peter. A
irmã, durante anos, também acreditava que fosse mais velha. Por isso, tratava-o com imenso
desrespeito. Com o passar do tempo, foi-se notando que o Peter ou Pedrito é o mais velho.
Apenas permanecia minúsculo, com a estatura e feições fisicas de um menino de poucos anos
por causa da doença congénita que tem a qual afecta o desenvolvimento corporal.
‘’Tenho uma doença chamada Nanismo Primordial.’’, ele revela.
Esta doença faz com que o tamanho corporal da pessoa seja menor em todos os estágios
da vida, começando antes do nascimento. O portador exibe um tamanho reduzido e proporcional
de todo o corpo. Os indivíduos, assim diagnosticados, são extremamente pequenos para a sua
idade, mas apresentam uma capacidade psicológica normal e adequada à sua idade cronológica.

211
Fernando Absalão Chaúque

Apesar de toda explicação e sua boa técnica de persuasão neguei o pedido de procurar a
sua irmã.

~ Às 6:30 min ~
Peter retirou-se do aposento. Contudo, antes disso rogara-me pragas e prometera que
torceria para que na cerimónia do Mhondzo, - eu - apesar de ser inocente, algo me fizesse delirar
e dissesse em público que era o verdadeiro sequestrador. Não lhe devolvi palavra alguma. Preferi
depositar a confiança na Laurinda Mafemane. Até então ela me havia demonstrado que era
íntegra. Daí, o Mhondzo que ele fora encarregada de preparar pelos Zangbetos ninguém teria a
chance de adulterá-lo. Sendo assim, tudo que fosse lá dito seria a verdade absoluta. Apesar de ser
um dos suspeitos, estava meio entusiamado. Queria também saber quem era o mandante ou o
verdadeiro sequestrador de albinos nesta localidade.
‘’Quero que saiba que a minha irmã te admira muito. O seu grande sonho é conhecer-lhe,
senhor Carlos.’’, foi a ultima coisa que Peter disse antes de me insultar e sair do aposento.

~ Às 6:45 min ~
Pousado na janela do aposento deixo que a paisagem em volta me embreague a retina.
Não é oportunidade para todos contemplar e respirar purezas como estas. É uma honra! É como
trocar confidências com Deus. Pergunto: quem é Deus? Não será a natureza que nos rodeia o
verdadeiro Deus? Não me respondam! Pois, toda afirmação categórica nasce da dúvida. Duvidar
e questionar é estar a caminho da verdade.
(Voltemos.)
O vento, silencioso, caminha dentre os arbustos, sobe, até beijar a última película das
árvores mais altas. Em contrapartida, na capital, os prédios e a poluição são o que existe em
abundância.
O céu está nublado. Nenhum raio solar consegue atravessar com forte incidência a rugosa
camada que as nuvens enlançadas criaram na barriga celestial. Apesar da presença não notável
do sol os pássaros não se espreguiçam, estampam o linguajar do voo nas coxas das alturas.
Nestes últimos meses do ano, o verão é o verbo que domina o desenrolar dos dias. Por
isso, apesar do céu estar pardo e singelo, o calor húmido atormenta a todos os habitantes deste
planeta.
Orvalho em Chamas

Desgrudo-me da janela. Instalo-me agora na armchair. Provavelmente, estou vivendo os


últimos dias da minha vida. Penso várias vezes em fugir antes do Mhondzo acontecer, mas o meu
código de conduta não permite. Por mais que esteja preso na situação mais lacónica do mumdo,
tenho que manter-me firme. É assim que se forja o carácter de todo resiliente, encarrando os
obstáculos em vez de fugí-los. É óbvio, desaparecer antes do Mhondzo seria a confirmação das
acusações do Mbalame contra mim. Decido esperar pelo meio-dia, a hora dita pelos Zangbetos.

~ Às 7:00 min ~
"Por favor, senhor Carlos, ache a minha irmã." A voz do Peter continua a rodopiar dentro
de mim. Para esquivá-la, levanto-me da cadeira, recolho as cartas, a máquina fotográfica e o
gravador, meto-os numa das minhas pastas. Volto a ligar o rádio. Removo o flash. Faço um
tunning nas ondas da FM. Na primeira estação ouço dois homens numa conversa descontraída.
Gargalham. Deve ser um programa de comédia. Os dois conversam numa língua que é
totalmente desconhecida pelo meu repositório neurológico-lunguistico. A barreira linguística
obriga-me a vasculhar uma outra estação. Na próxima calho com uma das minhas músicas
favoritas: Dear Mama de 2 Pac Shakur. Quando esta finda segue It's a Man's World de James
Brown. Depois destas seguem-se algumas que não as conheço. Mas conseguem encantar o meu
exigente ouvido.

~ Às 10:00 min ~
O meu estômago reclama de fome. Vou à estante, vejo os mantimentos que restaram da
última vez que improvisei algo para comer. Para ser franco: nunca gostei tanto de mexer com
panelas. Faço-o por necessidade. Enfim, preparei metade de um pacote de massa esparguete e
um ovo estrelado. Comi. O rádio continuava sintonizado na mesma estação. Infelizmente, não
consegui comer toda a comida que servira, pois, de repente, lembrei das bofetadas que levei na
Church Mbunya e do cheiro nauseabundo que ali abundava. Retirei-me da mesa. Desliguei o
rádio. Fui deitar-me na cama ainda a implorar (não sei a quem) que o Mhondzo decorresse sem
sobressaltos e eu fosse declarado inocente. O inverso implicaria morte imediata sobre mim.

~ Às 10:20 min ~

213
Fernando Absalão Chaúque

"Estava em Ohawa, Patrão!", Huzina Matessa responde a minha questão. Ela está na
entrada do aposento. Trajou um vestido preto. Na cabeça patenteia-se o seu enorme chapéu de
palha.
"Posso entrar, patrão?, tenho muita coisa para partilhar consigo."
"À vontade, Huzina." Respondo com a voz grávida de curiosidade. Ela não mudou nada.
Continua linda e formosa como da primeira vez que a vi.
Estou em pé mas com a mão direita plantada no tampo da mesa. Ela tira o chapéu da
cabeça e eu a mão do tampo da mesa. Abraçamo-nos longamente, a saudade fala mais alto.
Haverá um outro sentimento entre nós?
Sento-me na cama e ela a meu lado. Encarro-a com olhos ampliados mais que luas
cheias, pressiono-a a revelar as ditas novidades.
"Sei de tudo que lhe aconteceu, e que não é um simples turista, é um jornalista."
"Hummmm!"
"Sei também da sua missão."
"Huzina, vá directo ao assunto, por favor!!.."
Ela levanta-se volta à entrada.
"Podem entrar." A quem convocava? Quero tanto saber, porém sou obrigado a manter-me
calmo. Ela volta a sentar-se na cama.
Uma velha com a pele composta apenas por rugas entra no aposento. Locomove-se como
um camaleão; pica o soalho com uma bengala preta. A velhinha é seguida por um homem
gigante com as mãos e cabeça grandíssimas. A velha senta-se na armchair. O homem mantém-se
em pé, imovel ao lado da mulher com avançadas idades.
"Ela é Tempestade e ele é Santos. Eles são meus vizinhos em Ohawa, patrão. "
Saúdo os dois com apertos de mão.
"Vieram aqui por um triste motivo.", digo intrigado.
"Sim, é uma motivo muita preocupante que nos reuna agoras!", complementa a
Tempestade.
Troco um breve olhare com a Huzina. Admiramos a desregrada fala da idosa.
"Na verdade, estamos à procura da minha esposa, ela desapareceu há duas semanas.", diz
o Santos.
"Nós decidir vir quando Huzina disser que o senhor podes nos judar."
Orvalho em Chamas

Não se passa tanto tempo desde que Peter saiu daqui insultando-me por não ter aceitado o
seu pedido e agora surge mais um pedido para cima de mim. O pior é que ninguém quer perceber
que sou um jornalista não um detective.
Levanto-me, vou a mesa, bebo um copo de água em um sorvo, do mesmo jeito que Peter
Ya Moto fez. Na pasta onde guardei o gravador, tiro o meu caderno de anotações.
"Quem é essa pessoa?", pergunto.
"Chama-se Tristeza.", respondem os três numa uníssona voz.
Anoto.
"Tristeza? De treze anos de idade?"
"Sim, tem treze anos e tem uma bebé albino. Eles desaparecer lá no maternidade de
Ohawa."
Anoto.
Fico de pensamentos turvos. A Laurinda, o Peter e agora a Tempestade e o Santos falam-
me da mesma pessoa, a Tristeza. E porque o nome dela não se cansa de cruzar os meus ouvidos?
Medito nesta questão. Depois explico-lhes que alguém chamado Peter, ou melhor Pedrito Ya
Moto esteve aqui a requisitar o mesmo serviço.
Santos levanta-se, quase atropela o teto do aposento com a cabeça. Parece que uma
mistura de alegria e nostalgia invadiu-lhe. Diz:
"Pedrito?? É o irmão da Tristeza. Onde podemos encontrá-lo?"
"Eu heide vos levar a casa dele. É filho do Mbalame, o líder comunitário."
"Afinal Tristeza é uma filho de gentes que respiras muitas dinheiro!", Tempestade
exclama enquanto levanta-se. "Vamos procurar esses pessoas dele".

"Podem ir ao centro conversar com a senhora Laurinda Mafemane, talvez possa ter algo
para declarar acerca da Tristeza." Digo.
Afinal vocês não conhcem os vossos sogros?, Huzina questiona-lhes.
Tempestade e Santos não respondem. Retiram-se do aposento. A Huzina vem abraçar-
me, mais uma vez.
"Patrão, sei que se sairá bem no Mhondzo." Diz estas palavras e depois sai, segue a
Tempestade e o Santos.

215
Fernando Absalão Chaúque

~ 11:00 ~
Vou ao banheiro.
Antes de lavar-me faço a barba. Corto-a toda. Quero que a minha verdadeira cara fique
estampada na memória de todos que hoje me virão morrer. Não sei porquê, mas uma voz diz-me
que sou o responsável pelo sequestro de albinos nesta localidade, às vezes, a mesma voz garante-
me que sou inocente.

À saída do banheiro, um gato preto cruza o meu caminho. Ameaça-me com seus olhos
multicolores. Não será isso um incurável azar?
Levo quase quinze minutos para vestir-me. É uma decisão difícil escolher o último traje
para encobrir-me o corpo nas últimas horas da minha vida. Por fim, visto calças jeans, uma
camiseta de marca Nike, calço as minhas sapatihas brancas. Aliás, todo que trajei é branco.
Sento-me à mesa, termino a comida que restara no prato enquanto um pombo branco
passeia em ziguezagues na janela do aposento. Entre o gato preto e o pombo branco, qual dos
dois o seu prenúncio cairá hoje sobre a minha cabeça?
Orvalho em Chamas

Eyupuro, 20 de janeiro de 1997

Apesar de ser o principal suspeito, fui o primeiro a chegar onde o Mhondzo decorreria. O
palco ainda estava como fora deixado no dia anterior. Subi ao seu dorso. Vi a corda que fora
usada no meu não consumado enforcamento. Ela mirou-me envergonhada por não ter
conseguido terminar a missão que lhe fora incubida. Apanhei-a, meti-a no bolso traseiro das
calsas como quem acolhe na sua casa o mais perigoso dos seus inimigos. Sentei-me no palco de
pernas cruzadas como um Buda submerso numa profunda meditação. Senti o ar a revezar-se nos
meus pulmões e o coracão a dialogar com o resto do corpo no seu inesquecível e harmónico
timbre.
Depois de alguns minutos, a populção começou a surgir. Torneou o palco. Desta vez,
ninguém trocava palavra alguma com ninguém. Isso deixou-me deveras preocupado, esperava
que todos viessem mais agressivos que no dia anterior e me espancassem até à morte antes de a
cerimónia decorrer. Entretanto, acontecia o inverso: cada um ao chegar acenava-me em
acolhedoras saudações.
Aos poucos, a multidão foi-se multiplicando até somar milhares de olhos alagados de
curiosidade de conhecer e conhecer o verdadeiro perpetrador de sequestros.
Quando faltava uma dúzia de minutos para o meio-dia, desci do palco. Posicionei-me na
parte frontal do mesmo esperando o clímax daquela reunião.
O céu continuava impetuosamente nublado. Havia chuva em iminência, em pouco tempo
as nuvens abririam as suas comportas. Mas, isso não intimidava a ninguem, por mais que caísse
granizo ou uma tempestade como a do dia anterior se repetisse ninguém dali sairia antes de se
concluir a cerimónia.
Mbalame e Khefassi chegaram albergados no mesmo carro, protegidos por cerca de dez
guardas mascarados. Em seguida, duas albinas e companheiras da Laurinda chegaram
carregando dois bidões amarelos de vinte litros cada um. Depositaram aqueles recepientes diante
de mim. Subiram ao palco e um dos guardas do Mblame entregou-lhes cinco cadeiras pretas.
Elas colocaram os assentos no palco, em fileira. Quando terminaram, chegou a Dona Laurinda

217
Fernando Absalão Chaúque

com algumas mulheres integrantes do grupo coral do Centro, a Huzina Matessa, a Tempestade e
o Santos Faztudo.
A Laurinda trajara um vestido branco, amarara um lenço também da mesma cor. Quando
a vi arrependi-me de ter escolhido roupa branca para a cerimónia. Enfim, não havia tempo
restante para voltar ao aposento e trocar. Até então, ninguém trocara palavra alguma com
ninguém. Quando era imperioso comunicar algo todos limitavam-se a usar contáveis
gesticulações.
A Dona Laurinda foi directamente subir ao palco. Convocou, em seguida, o Mbalame e a
Khefassi. Passeou o olhar pela multidão e depois apontou-me com o polegar direito. Subi ao
palco. Ele indicou-me a cadeira do meio, sentei-me, Mbalame estava à minha esquerda e a
khefassi à direita, uma cadeira manteve-se vazia pois o Pastor Pedro Paulo Pontes ainda não
chegarra.
Os guardas carregaram os bidons para o palco. Uma das mulheres do grupo coral sobe ao
palco e sob a cabeça da Laurinda coloca uma coroa metálica, dourada que reluz como puro ouro,
cinge-lhe o pescoço com um colar feito com pedras transparentes. Após isso, a Laurinda começa
a discursar. Primeiro saúda a todos e faz um breve resumo do que aconteceu no dia anterior;
depois expõe a agenda que será cumprida nos minutos que se avisinham.
Mbalame e Khefassi não eram as mesmas pessoas que nos dias passados tinham sido.
Estavam diferentes. A arrogância, hoje não se manifestava. Mbalame encolhera a cauda de um
modo inacreditável; não era mais aquela pessoa vivíssima que me recebera na praça e dissera que
sonhara com aminha chegada. A Khefassi estava mal vestida, não parecia aquela mulher que um
dia eu vira no centro trajada à executiva castigando o chão com o bico do salto alto. Éramos
todos réus à espera de beber o Mhondzo seguindo as ordens dos Zangbetos. Nada nos
diferenciava. Pontes era o único que se atrevera a não comparecer, apesar de te sido informado
que devia também beber o Mhondzo.
“Caros irmãos, antes de irmos ao ponto principal do nosso encontro de hoje, quero
convidar o grupo coral do centro ao palco para brindar-nos com um número.’’
Colocamo-nos todos em pé. As mulheres integrantes do coral subiram ao palco e
cantaram ‘’Orvalho em Chamas’’. Quando terminaram, eu ainda queria ouvir mais, porém seria
inusitado pedir que a cantassem mais uma vez.
‘’Agora, convoco os nossos altíssimos espíritos locais para avaliar o Mhondzo.’’
Orvalho em Chamas

Um trovão rasgou o ar e em menos de um segundo dois Zangbetos surgiram no palco. A


Laurinda abriu as tampas dos bidons. Verteu o mhondzo ate encher um copo – era um líquido
verde, meio acastanhado; fora concebido com base em folhas de alguns vegetais. Quais?
Ninguem sabia. Nem mesmo a pessoa que o prepara saberia identificá-los, porque no momento
que procurara as tais folhas fora dirigido por um espírito infiltrado no seu corpo.
Laurinda ergueu o copo cheio do Mhondzo, verteu metade do líquido no cume de cada
Zangbeto. Trovejou de novo e aquelas palhas ambulantes desapareceram do palco. Era sinal de
que aquele Mhondzo não fora adulterado; caso tivesse sido, os Zangbetos teriam despejado todos
os quarenta litros e marcado outra data para realizar-se a cerimónia.
‘’Antes de se beber o Mhondzo, sou obrigada a fazer algumas perguntas aos escolhidos
pelos Zangbetos. Se um deles assumir que é o culpado não haverá necessidade de se beber o
Mhondzo. Mas, se todos refutarem passeremos ao passo seguinte.’’, diz a Laurinda.
Nós os réus levantamo-nos.
‘’Khefassi, és a sequestradora de albinos aqui em Eyupuro?’’
‘’Não sou a sequestradora. Nada sei sobre esse assunto.’’
‘’Carlos Cardoso, és o sequestrador?’’
‘’Não senhora.’’
‘’Excelência, é o sequestrador de albinos aqui na nossa localidade?’’
Antes de Mbalame responder. Olho para a multidão. Santos e Tempestade trocam breves
palavras e voltam a concentra-se no palco.
‘’Não sei nada sobre os tais sequestros, senhora Laurinda.’’
Laurinda abana a cabeça assentindo. Depois de encher o copo, diz:
“Sendo assim, Carlos Cardoso será o primeiro a beber o Mhondzo.’’
Estende-me o copo.
A multidão toda abocanha-me com os olhos. Os meus cruzam-se com os da Huzina. Ela
exibe-me um sorriso largo, lindo. O resto da multidão continua silencioso, poucos trocam
comentários diferentemente do dia anterior que todos estavam a favor do meu enforcamento.
Parece que todos já aprenderam que a precipitação é um estorvo que só convoca frustraçõe.
Recebo o copo. Bebo tudo. Sinto os dentes tremerem pela amargua. O Mhondzo atinge o
meu estômago, começa a redemoinhar nas tripas. A minha espinha dorsal aquece, algo percorre-a

219
Fernando Absalão Chaúque

de baixo para cima até chegar ao cérebro. Tudo gira. Nada é estável. Fecho os olhos, vejo-me a
afundar num rio de agulhas que se infiltram em mim através da boca dos poros. Deliro, a minha
boca, língua e dentes e cérebro ganham autonomia e vomitam palavras sem o meu
concentimento.
“Eu sou Carlos Cardoso, o jornalista mais famoso deste país. Menti quando disse que era
turista. Sou um jornalista investigativo. O director e editor chefe da empresa em que trabalho é
que me mandaram para Eyupuro. A minha missão é investigar o misterioso desaparecimento dos
albinos. Eu estou aqui para colher matéria que será posterioremente publicada no nosso jornal.
Essa será uma das formas de pressionar o governo a investigar o tráfico de pessoas e orgãos
humanos no nosso país principalmente nesta localidade. Não sou criminoso. Sou contra a
criminalidade. Por isso que escolhi esta carreia de jornalista investigativo para poder investigar
casos que outros jornalistas não tem coragem de os seguir porque quem os perpetra é um dos
seus familiares ou amigo próximo. Eu sou contra isso. A violação de direitos humanos, corupção
e o crime organizado são as coisas que me tiram sono nesta vida. Por isso que estou aqui em
Eyupuro. Logo que descobrir o verdadeiro sequestrador de albinos voltarei à Cidade das
Palmeiras para reportar tudo que tem acontecido aqui…”
Os meus maxilares paralisam-se. Não consigo mais pronunciar palavra alguma. Duas das
companheiras da Laurinda vêm ajudar-me a sentar-me na cadeira. A multidão rompe o siléncio,
bate palmas, grita:
‘’Inocente!’’
‘’Ele é inocente!’’
‘’Não restam dúvidas, é inocente!
‘’O Mhondzo confirma.’’
‘’Sm. O branquelo é inocente…’’
No fundo, surgem lamentações:
‘’Quase morria na forca ontem enquanto é inocente.’’
‘’Sim, já não estaria entre nós… enquanto veio apenas para nos ajudar.’’
Os efeitos do Mhondzo ainda colonizam-me o cérebro. O meu coração pulsa como uma
locomotiva. Huzina sobe ao palco com um copo de água. Bebo-a num trago. As tonturas cessam.
No estômago aumentam-se as fervuras, vomitei todo o Mhondzo que ingerira. Aos poucos volto
Orvalho em Chamas

ao estado normal. A Huzina retira-se do palco, sorrindo. Lembro-me do que ela me disse no
aposento: "Patrão, sei que se sairá bem no Mhondzo."
Também sorrio!

Laurinda enche o copo de Mhondzo, entrega-o à Khefassi.


Nas alturas, trovões começam a ralhar com suas grossas vozes. As nuvens perambulam
desnorteadas em busca da posição ideal para começarem a derreter-se.
‘’Dona khefassi, beba tudo que está no copo.’’, diz Laurinda.
Khefassi treme com o copo na mão. Os seus olhos ficam completamente avermelhados.
No meio da multidão, uma voz masculina, ínfima, grita:
“Bebe, mãe, não tenha medo…”
Todos viram-se para onde a voz nasce, vislumbram Peter Ya Moto pousado nos ombros
de um homem alto, mas não tão alto quanto o Santos que ao lado da velha Tempestade
permanece inanimado, aéreo, desalmado, talvez esteja pensando na sua esposa que desapareceu
na maternidade.
Talvez!
Khefassi continua a tremer com o copo na mão. De repente, ela deixa o copo tombar.
Parte-se e o Mhondzo molha o palco. Em seguida, ela também tomba, fortes convulsões
apoderam-se do corpo dela. Ela voltea-se deitada de costas no palco. Mbalame, Laurinda e as
integrantes do grupo coral tentam imobilizá-la, mas não conseguem; continua a remoinha,
deruba-lhes com fortes rasteiras, projecta-lhes para fora do palco.
“Amor, o que se passa”, Mbalame grita com as mãos à cabeça.
Peter desce do homem que o tem aos ombros. Engolfa-se no caniçal de gente ao palco.
Grita:
“Mãe, mãe, mãe…”
Mbalame e Laurinda descrevem os degraus de volta ao palco. O corpo da Khefassi já
está reclinado. Pedrito ajoelha-se, prepara-se para encostar o ouvido no peito da mãe. Quer
escutar-lhe os batimentos do coração. Porém, antes disso, da boca da mulher surge uma avultada
quantidade de espuma dourada. A Multidão lamenta em surdina. Peter não desiste. Encosta o
ouvido no peito da mãe.

221
Fernando Absalão Chaúque

‘’Ela está morta, pai.’’, declara.


A Laurinda pousa a palma da sua mão direita no pescoço da Khefassi. Depois confirma o
infortúnio.
Mbalame, de testa amarotada acode o filho. Há dor estampada na sua cara, mas não se
atreve a liberar nenhuma lágrima.
Quatro guardas tirarm o corpo da Khefassi do palco. Evacuarm-no ao mesmo carro em
que ela viera abrigada.
A cerimonia na será enterrompida. Depois do Mhondzo findar é quando se irá cuidar da
defunta. Laurinda apela a população a não alarmar-se, pois em breve se saberá o que levou a
Khefassi ao outro lado da vida. Não que ela soubesse dos pormenores sobre a morte da mulher,
apenas acreditava que o finamento da esposa do líder tinha algo a ver com o assunto que nos
mantinha ali reunidos.
Peter desce do palco. Quer ir ao carro em que se encontra o corpo da mãe, mas os guardas
barram-lhe o caminho.
As nuvens não se movem mais. Os trovões ribombam cheios de raiva, racham os
glaciários no firmamento. Falta pouco para a chuva começar a cair.
Huzina Matessa entrega um copo à Laurinda. Esta, enche-o de Mhondzo, passaa-o ao
Mbalame. Pedrito está inebriado de medo. Teme que o pai também mora em público.
As companheiras da Laurinda tiram-me do palco. A Huzina recebe-me heia de euforia.
Posiciono-me a seu lado. Lanço osolhos ao palco, já não sou o centro das atenções, é a minha
vez de ser expectador. Mbalame recebe o copo. Sem demoras, bebe o Mhondzo. Cambaleia,
deduzo que as tonturas já lhe invadem o corpo. Dois dos seus guardas sobem ao palco e
seguram-no. Mbalame abana a cabeça. Os guardas guiam-no a sentar-se numa das cadeiras
pretas. Ele coloca as mãos na barriga. Exibe os dentes num falso sorriso. De novo, deduzo que já
sente o redemoinho a agitar-lhe o estômago.
Falando em estômago, o meu ronca de fome. Quando a Laurinda pós-me a vomitar acho
que o Mhondzo levou consigo a massa e o ovo estrelado que comi após o banho no aposento.
Mbalame levanta-se.
Huzina vira-se para a velha Tempestade:
‘’É aquele ali o tal do Mbalame, talvez seja ele o pai da Tristeza!
Tempestade nada diz. Quem interfere é o Santos.
Orvalho em Chamas

‘’Talvez ele sabe onde está a minha esposa…’’


‘’Silêncio, Santos. Mbalame já está a falar, vamos ouvir.’’, digo. Tempestade abana a
cabeça endossando as minhas palavras.
Mbalame está a delirar.
“Eu sou o líder daqui. Eu é que mando nesta localidade. Além dos Zangbetos não há
ninguém que está acima de mim. Por isso, eu faço tudo que me vem à mente. Ninguém me pode
parar. Todos os habitantes daqui estão abaixo dos meus pés.’’
‘’Pai, por favor, não fala essas coisas…’’, Pedrito grita. Santos vai fechar-lhe a boca com
a sua enorme mão.
Mbalame continua.
‘’Eu sou Deus aqui. As minhas decisões são definitivas. Ninguém as pode torcer.’’
A multidão observa o homem com olhos melancólicos. Descobre agora que esteve
sempre nas mãos de um monstruoso líder.
Mbalame continua a discursar posicionado no meio do palco. Corpo congelado de
inércia. Porém, cada palavra que profere é escoltada com um gesto ríspido parido pelo dedo
indicador direito.
‘’Eu… antes de ser o líder desta localidade era pobre. Vendi a minha filha, Tristeza Ya
Moto. Vendi-lhe por um valor avultado. Querem saber o que fiz com o dinheiro? Construí a
minha mansão, outro gastei com mulheres e outras coisas. Eu sou um tarado em pessoa. A minha
esposa já sabia disso e não me confusionava mais. Todo verdadeiro macho nasce polígamo e
morre muherengo.’’
‘’A quem vendeu a sua filha?’’, Laurinda pegunta.
‘’Vendi a Tristeza a um homem chamdo Faztudo. Ele disse que queria a minha filha para
ser esposa do filho dele.’’
Santos e Tempestade entreolham-se e nenhum dos dois se atreve a palavrear.
‘’E ela aceitou ser vendida?’’
Claro que não. Disse que queria continuar a estudar para ser jornalista. Mas, como todos
sabem, a opinião do descendente é sempre inferior à decisão do progenitor. Ela teve que ir com o
tal do Faztudo. Além disso, eu e Pedrito desenhamos um plano macabro. Uma cilada contra ela.
Fingimos que Pedrito tivesse roubado a bicicleta do Faztudo. Então dissemos a ela que a

223
Fernando Absalão Chaúque

entregávamos como pagamento e só ficaria em casa do Faztudo por pouco tempo a ajudar-lhe
nas machambas.’’
‘’Estás a dizer que o Peter foi cúmplice nesse negócio sujo.’’
‘’Sim. Ele já estava cansado de viver com a arrogante irmã que faltava-lhe sempre com
respeito. Dizia-se ser a mais velha que ele, simplemente porque Pedrito tem o corpo
pequenininho por causa do Nanismo de que é portador.’’
Peter faz esforço para se soltar das mãos do Santos. Talvez tenciona refutar as revelações
do pai. Contudo, Santos inibe-lhe o desejo.
‘’A quanto vendeu a sua filha, excelência’’., Laurinda pergunta.
‘’Foram novecentos mil rands. Mais tarde descobri que Faztudo roubara o dinheiro no
carro de um turista sul-africano que em Ohawa lhe pedira indicações para Eyupuro. Nada mais
podia fazer. Já havia fechado o negócio com ele. Confesso diante de todos, aquele valor só deu
para construir e gastar com mulheres. Aliás, eu ia me esquecendo, metade do valor doei ao meu
partido.
‘’Doou ao partido?’’
‘’Sim.’’
‘’Qual deles?’’
‘’Esse que detém todos os poderes no país. Você acha que subi ao cargo de líder
comunitário de qualquer maneira? Não. Injectei dinheiro nos bolsos do mais alto camarada do
partido. Nada é de borla no nosso país. É por isso que niguém me pode fazer nada nesta
localidade, tenho a alta protecção dos donos do país.’’
A multidão encrespa-se de nervos. Cada pessoa começa a discursar sem norte. O que
todos agora querem ver é o Mbalame enforcado. Ontem, Mbalame cricificou-me. Agora as suas
próprias azagaias apontam-lhe o corção prontas a abocanhá-lo.
Laurinda apela o povo a acalmar-se. Apedreja o líder com mais uma questão:
‘’E os carros que Sua Excelência tem, comprou também com os duzentos mil rands.’’
‘’Não. Os carros todos pertencem a Khefassi.’’
‘’Como é que ela os adquiriu?’’
‘’Nunca lhe perguntei. Ela também nunca me disse. Mesmo o Bugatti do Peter ela é que
comprou.’’
Orvalho em Chamas

Uma gota gorda, derrete-se no meu ombro. Espande-se na brancura da minha camisete tal
e qual uma rã nervosa. As nuvens já abriram as entranhas para liberar a chuva. Curiosamente, a
multidão não se alarma com os primeiros pingos. Ainda tem muitas questões a colocar ao
Mbalame antes que o delírio provocado pelo Mhondzo finde.
‘’E as regras do centro de acolhimento… quem as alterou?’’, pergunta uma das albinas
companheiras da Laurinda.
‘’Foi a Khefassi. Ela é que alterou tudo. E depois escondeu-se por detrás de mim. Andou
a propalar que tinha sido eu estabelecer novos regimentos no centro.’’
Levanto a mão. A população olha-me, curiosa.
‘’Sobe ao palco, senhor Carlos!’’, Laurinda ordena.
Obedeço. No palco, coloco ao Mbalame a questão que a todos habitantes de Eyupuro
interessa.’’
‘’Excelência, sabe dizer quem é o sequestrador de albinos aqui em Eyupuro?’’
A populaçao bate palmas. Desço do palco. Mbalame faz uma pequena pausa antes de
responder. Depois palavreia.
‘’Não sei quem é. E eu nada tenho a ver com essa onda de criminalidade.’’
Quando termina de falar, cai. Treme. Enrola-se como trepadeira abraçando caules
lenhosos. Uma das albinas ajudantes da Laurinda sobe ao palco com um copo de água. Da-lhe de
ber. Mbalame vomita todo o Mhondzo que ingerira. Senta-se na cadeira a recuperar as forças e a
bússola do raciocínio.
Santos larga o Peter. O minúsculo homem corre ao palco, abraça o pai. Um clarão
projecta-se no céu em forma de uma teia de luz. A chuva já cai com considerável intensidade. As
gotas vão caindo com mais frequência a cada segundo dissolvido.
‘’Parece que ainda não temos o responsável pelos sequestros. O Carlos provou a sua
inocência. O Mbalame também, porém revelou-nos o seu lado escuro.’’, diz Laurinda.

Dois guardas sobem ao palco. São seguidos por duas mulheres, lindas, asseadas. Todos
estão mascarados. Os quatro posicionam-se no meio do palco. A Laurinda atrapalha-se.
Mbalame e o filho descem do palco. Dirigem-se ao carro em que jaz o corpo da Khefassi.

225
Fernando Absalão Chaúque

Os dois guardas tiram as máscaras. O povo exclama, surpreso. Nunca ninguém vira a cara
verdadeira de nenhum guarda. As mulheres mantêm-se mascaradas.
‘’Parece eu conhecer aqueles mulherzinhas.’’, Tempestade comenta com o Santos.
‘’Também parece que já as vi algures.’’ salienta ele.
Um dos guardas começa a falar sem ter pedido autorização a ninguém.
‘’Nós os quatro temos algo a confessar. Não precisamos do Mhondzo. Apenas queremos
dizer a verdade que está por detrás do problema que vem apoquentando a nossa comunidade há
anos.’’
Ele revela que eles, os dois guardas, há anos que fizem parte do grupo que sequestra
pessoas na localidade. Porém, eles são apenas responsáveis pela captura e execução dos alvos.
‘’Quem é o mandante?’’, Laurinda questiona com as mãos arqueadas na cintura, a sua
coroa despenha-se da cabeça. Ela não a apanha. Está deveras preocupada em ouvir a resposta à
sua pergunta.
O segundo guarda responde:
‘’Nós não sabemos exactamenbte quem é o responsável primário dos sequstros…’’
‘’Parem de enrolar. Digam quem é a pessoa que vos dá ordes.’’ Laurinda grita.
‘’A dona khefassi é quem nos dava ordens de capturar pessoas e executá-las dependendo
das requisições diárias.’’
‘’Requisições?’’, exclamo.
Agucei a audição para reter toda a informação na mente. Não trazia o meu gravador nem
o caderno de notas.
‘’Sim. Requisições. Diariamente recebíamos listas dos orgãos humanos que devíamos
extrair: rins, orgãos sexuais, dedos, olhos, lábios, até mesmo o próprio sangue., responde o
primeiro guarda.
Mbalame sai do carro. Algazarrado, regressa ao palco. Santos volta para perto da mãe.
‘’Estás a dizer que minha esposa é que liderava os sequestros. Tenha respeito pah, ela
está morta. Ainda nem foi enterrada.’’
‘’Apenas estamos dizendo a verdade.’’, Argumenta o primeiro guarda. E adiciona: ‘’por
exemplo, eu é que sequestrei Mazoio. O meu amigo aqui há anos atrás é que sequestrou os seus
filhos, dona Laurinda.’’
Orvalho em Chamas

‘’Sim. É verdade. Diz o outro. Nunca foi nossa vontade sequestrar e matar gente, mas a
dona Khefassi obrigava-nos. Das vezes que tentámos recusar, ela ameaçou-nos de morte. Então,
fazíamos o trabalho temendo que ela mandasse eliminar a nós.’’
‘’Seus mentirosos, a minha querida esposa nunca fez isso. Era íntegra e culta.’’
A algazarra afecta agora a todos. Muitos não querem acreditar nas revelações dos dois
guardas. Laurinda não tem mais forças para continuar a questioná-los. Pensa nos seus
desaparecidos filhos. Senta-se numa ds cdeiras, cabisbaixa.
As duas mulheres tiram as máscaras. Uma delas, imediatamente começa a falar.
A Tempestade vira-se ao filho:
‘’São aqueles dois mulheres da maternidade de Ohawa. O que fazem elas aqui?
‘’Isto está a ficar complicadíssimo.’’, Santos comenta.
‘’Tempestade, conheces aquelas duas?’’, Huzina pergunta.
‘’Sim, aqueles duas é que estavam a atender Tristeza e o minha neto na maternidade…’’
‘’Vamos ouvir o que elas têm a dizer.’’, digo.
‘’Queremos confirmar o que estes dois guardas disseram aqui. É tudo verdade. Eu
chamo-me Luisa sou enfermeira no hospital de Ohawa ela é Madalena é parteira no mesmo
hospital. Viemos da capital. Também fomos usadas pela Khefassi. Ela nos mandava roubar
crianças na maternidade. Às vezes vínhamos trabalhar com ela no Centro. Indicava-no as vítimas
e ao anoitecer vínhamos matá-los. Do centro, nós já sequestramos e matamos mais de vinte
pessoas. Tirávamos os órgãos e …
‘’O que fizeram com os orgãos?’’, questiono.
‘’Nós não sabemos aonde ela levava os orgãos. Apenas executávamos o trabalho sujo.
Ela nunca nos deu dinheiro. E sempre ameaçava-nos. Dizia que se não cumpríssemos as suas
ordens perderíamos o nosso emprego.’’, confessa a Luísa.
‘’Nós trabalhamos com ela há mais de cinco anos, mas só na semana passada soubemos o
seu nome verdadeiro. Entre nós ela sempre apresentou-se como A Boss mas gostava de ser
chamada de A Diaba’’. Diz a Madalena.
Mbalame olha para o filho. Ele surpreende-lhe:
‘’Os quatro estão a dizer a verdade. Não finja que de nada sabe, Pai.’’
‘’Não me irrita, filho.’’, Mbalame riposta.

227
Fernando Absalão Chaúque

A multidão começa a assobiar.


Santos levanta a mão. É-lhe concedida a oportunidade de falar.
A Madalena e a Luísa olham-no, assustados. Talvez lembram-se de o terem visto na
maternidade.
‘’Eu quero saber onde esta a T…’’
Um trovão ribomba, insurdecedor. Já é impossível acalmar a população que começa a
atirar pedregulhos ao palco. Os dois guardas são os primeiros a serem atingidos. Tombam,
sangram. A Laurinda, o Mbalame e o Peter já não estão no pulco.
É chegada a hora de a população fazer justiça pelas próprias mãos. Mais pedras, fortes
pedaços de madeira chovem para cima dos guardas, da parteira e da enfermeira.
A população esmaga os quatro enquanto grita:
‘’Seus criminosos de merda, morram, vão encontrar a vossa Diaba, a Khefassi. Seus cães.
Enquanto o povo, sem piedade, dilacera os quatro no palco, eu, Huzina e Santos lutamos para
divorciarmo-nos do vukuvuku. Por fim, conseguimos libertar-nos. Corremos em direção ao
aposento. De repente, lembro-me que faltou o Pedro Paulo Pontes na cerimónia. Mas não páro,
trilho o caminho que sem demora nos levará ao aposento. Santos tem a sua mãe pousada no colo
como se fosse um bebé. Penso em fazer o mesmo com a Huzina. Quando estou prestes a carregá-
la, vejo um gato preto diante de nós, de pelo todo molhado. Tem um algo na boca. A Huzina
grita:
‘’Odeio gatos, patrão.’’
Abroço-a de modo a acalmá-la.
‘’Afastem-se, vou esmagar esse gato só com um pontapé’’, declara Santos.
O gato aproxima-se até aos meus pés. Huzina volta a gritar. Vejo que o que tem na boca é
um envelope. Ele desabocanha-o nos meus pés depois infiltra-se nas matas.
O tumulto no palco ainda continua. Ouço as vozes cheias de raiva a gritar insultos:
‘’Criminosos.’’
‘’Já estão mortos esses merdas…’’
‘’Chega de abusos aqui em Eyupuro.’’
‘’Sim, agora vamos perseguir o Mbalame e o Peter, vamos destruir os seus carros e a
manção, despedaçar o corpo da Khefassi e matar os dois também. São todos criminosos. Não
haverá misericórdia nenhuma para com eles.’’
Orvalho em Chamas

‘’Apoiado, vamos seguir os gajos…’’


‘’A união faz a força, vamos irmãos…’’
O chão estremece devido a tantos pés que o pisam enraivecidos.
A chuva é torrencial. Trovões trocam insultos na atmosfera.
Apanho o encharcado envelope, abro-o; dele, tiro um pedacito de papel. Leio o que nele
está escrito:

Sr. Carlos, venha agora a Church


Mbunya. É urgente!!

Ass: Pr. Pedro Paulo Pontes

229
Fernando Absalão Chaúque

Eyupuro, 22 de janeiro de 1997

Entrego aos meus companheiros o pedaço de papel trazido pelo gato; depois de o terem
lido, reagem:
‘’Eu vou consigo, patrão, não confio naquele Pastor…’’
‘’É verdade, nós ir contigo, não te deixar se sozinhar...’’
‘’Vamos todos juntos, não conheço o tal pastor mas esta convocatória pode ser uma
emboscada, senhor Carlos.''
Descartamos o bihete; antes de chegarmos a igreja, o papel já terá sido engolido pela
fúria da chuva. Começamos a marchar. Estou na dianteira, mas, de repemte, Huzina coloca-se a
frente de mim:
‘’Patrão ainda pode falhar o caminho…’’
Certamente. Entre nós, ela é quem vive há bastante tempo neste lugar, já deve ter o mapa
de toda localidade inseminado na sua mente. No início, trilhávamos um caminho estreito,
delimitado por eucaliptos e casuarinas gigantes que pareciam trocar acenos com entes celestiais.
Agora estamos numa rua larga. Nela, está tudo coberto de água. Os clarões nascem do céu e
reflectem-se nos olhos dos charcos.
‘’Não podemos andar do meio da rua’’, diz a velha Tempestade.
‘’Por que?’’, questiono.
É no coração da rua que o trovão deposita toda a sua ira; caminhar dali é atiçá-lo os
nervos. Pior porque está tudo alagado, em poucos minutos seriamos electrocutados. O trovão e a
água são ireconciliáveis rivais.
Seguimos a sugestão da velha. Caminhamos agora pela berma da estrada. Passados
poucos minutos, alcançamos uma frondosa mafureira. Huzina paralisa-se.
‘’Vamos descansar um pouquinho…’’
‘’Ainda falta tanto para alcançarmos a tal igreja?’’, Santos pergunta enquanto liberta a
mãe do colo.
‘’Não… apenas mais cinco minutos… e… estaremos lá.’’
Orvalho em Chamas

Um trovão desenha uma espiral no céu, descarrega-se sob um cajuerio que dista a quase
cinco metros da outra berma da estrada. A árvore perde o equilíbrio, descamba para um dos
lados, as raízes ficam expostas, nuas. O susto arrebata-nos, mas sobre o incidente, ninguém entre
nós comenta.
‘’Há duas semanas que tenho tido fortes pesadelos.’’, Santos exclama.
‘’A que se deve isso, mano?” Pergunto.
‘’Saudades da minha esposa Tristeza... e do meu filho apesar de que não fui deixado vê-
los na maternidade.’’
Ultimamente, Santos tem em seus sonhos visto um batalhão de gatos pretos a sugarem o
sangue de um recém-nascido. Em seguida, os tais gatos aumentam de volume, até
transformarem-se em leões que, famintos, perseguem a mãe do bebé. Mas nunca a alcançam,
pois ela transforma-se em corvo e dissipa-se nas infindáveis alturas deixando o filho à mercê da
improvável sorte. O que vem a significar o insistente sonho? Santos não sabe.
(Ninguem sabe!)
‘’Aqueles dois mulheres que foram despejados pedras no palco sabiam onde Tristeza
estar!’’, Tempestade exclama.
‘’Sim! Sabiam, por isso que se assustaram logo que viram o mano Santos…’’, saliento.
Huzina aproxima-se da Tempestade, questiona-lhe:
‘’Mãe Tempestade, o que fará quando encontrar a Tristeza e o seu netinho?’’
A velha lança o olhar ao cajueiro abatido pelo trovão. Mastiga alguns minutos de mudez.
‘’Vou fazer Kenguelekezi e dançar Ngombela para o meu neto. Depois disso, os dois
poderão ir ao Umbigo da Terra.’’
‘’O que é Kenguelekezi?’’, pergunto a velha.
Segundo a sua explicação: Kenguelekezi é um ritual em que a avó paterna apresenta o
seu recemém-chegado neto à primeira lua nova. Este ritual é feito nas primeiras horas da noite
em que a lua nasce cheia. Logo que ela começa a espreitar o mundo, a avó deve levar o neto,
posicionar-se num dos cantos do pátio da casa. De preferência, deve ser no canto onde a luz da
lua apresenta-se com mais insidência. Em seguida, deve elevar o netinho, apontá-lo aos quatro
cantos do mundo enquanto grita: Kenguelekezééeee. Kenguelekezééeee... Findo isto, o neto está
apresentado ao mundo. Pois, já foi visto pela lua, o astro que é o principal olho dos antepassados.

231
Fernando Absalão Chaúque

''Qual é a função dessa coisa de Kenguelekeze’’, Huzina pergunta enquanto passa a mão
direita pela cara, de cima para baixo, a eliminar a água da chuva que tenta obstruir-lhe a visão.
''Serve para espantar os maus espiritos e convocar a total protecção dos benignos
antepassados para reinar na vida do recém-nascido?''
“Ja descansamos o suficiente, temos de avançar”, Santos interfere. Em sguida carrega a
sua mãe de volta ao colo. Huzina reactiva a marcha. Caminhamos expondo-nos ao irrevogável
banho do liquido celestial. Entretanto, a velha explica que Ngombela é uma dança e rito de
recepçao ao filho primogenito; é executada por uma das avós acompanhada por outras senhoras
adultas do bairro. Todas pintam-se as caras de preto. Esculpem orgãos sexuais masculinos com
madiocas. Na execução da dança, estas mulheres dispoem-se em circuferência em redor do
recém-nascido. Dançam ao ritmo de alguns batuques ilustrando movimentos sexuais, deitam-se
no chão, em pares, uma em cima da outra, gritam, gemem como se estivessem em verdadeiro
coito. Metem o bebé debaixo das suas saias. Por fim, escondem-no na mata mais próxima de
casa. A mãe é atribuída a tarefa de procurar o filho até achá-lo.
Em suma:
‘’Ngombela é uma dança erótica, um rito que enaltece a importância da procriação na
terra.’’
Quando Tempestade termina a explanação já estamos diante da Church Mbunya.
No cimo a porta principal da igreja não vejo a cruz. Talvez terá sido removida pela
furiosa tempestade. Aproximamo-nos à face do portão. Ao lado, a figueira está tombada, as suas
raízes estão também espostas como o cajueiro que o vimos ser electrocutado por um trovão.
Santos bate a porta. Pede licença. Mas ninguém responde. Depois de tanto esperar, Huzina pede
ao Santos que empure a porta. Ela está demasiado curiosa. Quer saber o motivo do urgente
chamamento enviado a mim pelo Pastor. Santos não divaga. Posiciona-se no meio da porta.
Quando já está prestes a dar uma cabeçada à porta de modo a arrombá-la, eis que ela abre-se.
Defronte a nós, surge o mesmo gato preto que nos trouxe a carta. Com a cabeça, convoca-nos a
entrar. Seguimo-lo, estupefactos. Que tipo de gato era aquele?
A sala de orações está lotada de escuridão. Lembra-me o dia em que o Mbalame
convocara-me para com eles orar. A única luz existente é emanada pelos olhos do gato que nos
mostra o caminho.
Orvalho em Chamas

Subimos ao altar. O gato leva-nos a um outro quarto por detrás do altar. Chegados lá,
ouvimos muitas pessoas a chorar. Os quatro colamo-nos a uma das paredes, assustados. Por
longos minutos ficamos a escutar as tais pessoas a ulular escondidas na escuiridão. De repente,
uma lâmpada acende-se.
No meio do compartimente que parecia um esctitório vimos Pedro Paulo Pontes com os
pés suspensos na secretária, do outro lado vimos uma cadeira tombada. Com os olhos percorri o
homem de baixo para cima. Nas alturas, o corpo dele balouçava pendido do barrote, língua fora,
olhos maiores que a cara pálida e uma corda igual à que trago no bolso enrolada no pescoço
atada no barrote.
Nenhum de nós teceu palavras. Entretanto, ainda não estava completamente clara a razão
de me ter convocado. Seria só para ver como ficava a sua cara depois de ter encontrado a morte?
Na secretária, dentre os pés do corpo do pastor, via-se uma fracção de urina. Fora-lhe difícil e
doloroso morrer, conclui ao lembrar-me que quase também morrera enforcado.
O gato preto que nos recebeu subiu na secretária, cheirou aquele liquido, mas não o
lambeu, exibiu uma cara de desgodto, os seus pelos levantaram-se. Uma dezena de gatos pretos
subiu também à secretária. Todos choravam em coro como se fossem verdadeiras pessoas. Num
dos cantos da secretária, havia um envelope lacrado. Um dos gatos pegou-o pela boca e
entregou-mo. Na parte do destinatário vinha escrito em letras garafais o meu nome e o da
Laurinda Mafemane.
Vontade de abrir o envelope ali naquela compartimento não me faltava. Mas como no
destinatário havia também o nome da mulher escolhida pelos Zangbetos para liderar a cerimónia
do Mhondzo, os meus companheiros aconselharam-me a ir ao Centro para com ela ler o que
Pontes havia escondidodo naquele envelope.

Saímos daquele compartimento. Deixamos os gatos ainda a chorar. Faltava ali as aves
que sempre pousavam nos eus ombros durante as orações nocturnas.

No Centro, a Laurinda e as suas companheiras levaram-nos à sala polivalente, sentamo-


nos todos em círculo ainda com as roupas encharcadas. Imediatamente, abri o envelope, tirei um
papel adornado com palavras escritas à letra da mão, comecei a lê-lo:

233
Fernando Absalão Chaúque

18.01.1997

A todos habitantes de Eyupuro

Se alguem esta a ler estas palavras é porque já não sou vivo. E, antes de
muito, estou partindo do mundo dos vivos por vontade própria. Isto é, deixei-me
morrer como uma ilha que cansada de ser terra implora que as águas a
abocanhem, inteira.
Deixem-me exclarecer tudo!
Nunca fui pastor. Sou um feiticeiro. Essas todas andanças em matéria de
conhecedor das divinas palavras foram apenas maneiras de esconder-me para
que ninguém de mim suspeitasse. Eu sou um anjo da maldade. Nasci feitieiro.
Morri feiticeiro. Aliás, já morri e renasci incontáveis vezes. No dia que quiser
voltar à vida voltarei. Sou um espírito ambulante. Que atravessa todas as
fronteiras que existem em todos planetas. Sou deus de mim mesmo. A qualquer
momento encarno-me em qualquer recém-nascido e volto ao mundo com uma
nova forma. Mas desta vez, acho que não regressarei. Não há nada interessante
em ser um vivo. Não voltarei. Cansei-me de prejudicar a vida dos humanos.
Prefiro permanecer invisível até á eternidade findar.

Eu sou o responsável de todos os sequestros que aconteceram nesta


localidade. Vejam só, estiveram a tanto tempo procurando por algo que esteve
desde sempre a morrar a poucos centímetros dos vossos narizes. Mesmo os
vossos tão respeitados Zangbetos nunca foram capazes de me detectar. Aliás,
vocês todos são uns desatentos, caminham sem saber de que lado as vossas
sombras se projectam. Rio-me de vós. Seus incautos armados em génios. Como
foram capazes de acreditar nas merdas que eu sempre dizia acerca de Deus na
Orvalho em Chamas

minha falsária igreja? Sabem, vocês são grandes pecadores. Pois, quem ouve as
palavras do seu pastor e acredita nelas antes de se quer avaliá-las peca pior que
quem prega mentiras.
Eu sou um feiticeiro. A única benovelencia que conheço é a de nunca
praticar o bem. A maldade é o altruísmo que pratico com total dedicação e
entrega. Comecei a Church Mbunya apenas para poder apreciar os corpos dos
meus crentes para em seguida mandá-los sequestrar. Os meus cultos eram
manobras para reconhecer as vítimas antes de matá-las.
Repito, eu é que mandei sequestrar a todos que daqui desapareceram. Eis
um dos motivos: sou um canibal. Não como nada além de carne humana ou os
seus derivados. Todos que aqui foram sequestrados desaguaram nas minhas
panelas. Inclusive os filhos da Laurinda Mafemane. Como qualquer espécie
humana. Anteontem a Khefassi trouxe-me do cativeiro o Khomachu e um outro
jovem da capital chamado Mazoio. Este foi a própria mãe que vendeu-lhe a mim.
Depois de a Khefassi e a sua equipa terem retalhado os homens e retirado os
orgãos valiosos para a venda, cozinhei e comi os restos dos dois homens. Foi um
guisado de carne humana muito delícioso. Mas, confesso, a carne de albinos é a
minha preferida. Não há nenhuma outra que a supere. Ademais, nunca bebi água
em nenhuma das vidas que vivi. O meu líquido preferido sempre será o sangue
humano. Mesmo o chá que tomo é sangue humano fervido.
Como ia dizendo, sou o mandante de sequestros aqui. O que significa que
tenho quem segue as minhas ordens para satisfazer os meus desejos. Vou aqui
revelar nome da pessoa com quem desde sempre trabalhei. Ninguém irá
acreditar.
KHEFASSI.
Sim! A esposa do Mbalame. Ela é quem sequestra as pessoas por mim. E
em troca, pago-lhe avultadas quantias de dinheiro. Acho que é com esse
dinheiro que ela compra os carros que tem. E onde eu acho tanto dinheiro? Além
de ser um canibal, sou traficante de orgãos humanos. Repiso: antes de ter os
corpos para comé-los, mando a Khefassi tirar deles os orgãos mais procurados.

235
Fernando Absalão Chaúque

Não sei como ela consegue fazer tudo que a mando. Talvez tem alguém que a
ajuda.
E mais, todos os albinos que desapareceram do Centro de Acolhimento
foram todos comidos por mim. Enterrei os seus ossos na sombra da figueira. A
Khefassi é que facilitou o processo do sequestro de todos eles.
Tenho avultadas quantias de dinheiro em cinco bancos nacionais. Todo o
dinheiro adquirí-o neste negócio de tráfico de humanos, principalmente albinos.
Porém, assim que me vou embora desta vida, os bancos poderão fazer o que
quiserem com ele. Pois, não tenho herdeiro nenhum. Mesmo se tivesse não lhe
deixaria com nenhuma quinhenta, pois – riqueza ilícita é uma eterna maldição.

Ora, sou o feiticeiro pai de todos feiticeiros do mundo. Os meus feitiços


são mortais, eternos, irreversíveis. Lembro-me de um que alguém o
encomendou há mais de quatro décadas e até agora perdura. A Laurinda
Mafemane deve conhecer as pessoas que vou aqui referir. Mungoni Faztudo e
Khumane Zuwa que agora não são mais humanos, são bois. Eu é que preparei o
feitiço para transformá-los em bois. Serão bois até a morte levar-lhes da terra.
Sempre trabalhei sozinho nesta arte obscura. Nunca me associei a nenhum
outro feiticeiro. Os únicos discípulos meus são: os mochos, os corvos, as águias
que vivem na figueira da minha igreja e os meus gatos pretos com olhos de luz.
Mas não se preocupem tanto com eles. Todos animais que estão sob o meu
comando não terão muitos dias de vida depois da minha morte. Terão apenas
algumas horas para lamentarem a minha partida e depois também morrerão
porque são extensões de mim. E, são todos carnívoros ou canibais como eu, não
sei que termo correcto usaria para designá-los. Apenas pretendo referir que
somente alimentam-se de carne humana e bebem sangue humano.
Como já referi divorcio-me da vida por vontade própria. Já tinha tudo
pronto para rejuvenescer este corpo que habito e alongar a minha estadia na
terra. Já há um bebezinho napwere no cativeiro que a Khefassi ajudou a
sequestrar. Há muito que queria um recem nascido albino. A sua carne é mais
Orvalho em Chamas

deliciosa que a de um albino adulto. O seu sangue rejuvenesce o corpo de quem


o bebe, elimina todas as hormonas que fazem o corpo humano envelhecer.
Apesar de eu o ter reservado para mim desde quando ainda estava no
ventre da mãe e mandado os meus gatos para visitarem-no em sonhos como
forma de prepará-lo para o dia em que eu beberia o seu sangue agora prefiro
deixá-lo vivo, livre para seguir com a sua vida.

A família Ya Moto caiu nas minhas artimanhas por ser demasiado


ambiciosa. E sem saber a Khefassi mandou sequestrar a sua própria filha
Tristeza Ya Moto e o seu netinho, esse napwerinho de que estou a falar. Agora,
quem quer que esteja a ler estas palavras pode ir ao cativeiro e salvá-los. Os
dois estão presos na casa do Mbalame Ya moto. No quarto dos fundos, que é
habitado por Pedrito Ya Moto. Numa das paredes do guardafato, há uma porta
que leva a um outro compartimento minúsculo no qual há escadas que levam a
uma outra divisão subterrânea. É por lá que a Tristeza e o Napwerinho se
encontram. Paro por aqui. A corda no barrote já chama por mim.

Adeus Eyupuro

Ps: Peço que enterrem no telhado da minha igreja. Quero sempre usufluir
do magnífico banho solar desta terra.

***
Quando termino de ler a carta todos já estão em pé. Também levanto-me. A Laurinda e a
Tempestade abraçam-se. Choram furtivamente. Depois de instantes, Santos pronuncia-se:
“Vou agora salvar a minha esposa e o meu filho.’’
‘’Vamos todos.’’, Laurinda sublinha.
Saimos do centro em fila. No portão não havia se quer um guarda.
Caminhamos de baixo da chuva muidinha. Os trovões já se haviam calado. As mulheres
iam na dianteira. Eu e Santos íamos na cauda de todas elas. Entre as mulheres fluía uma conversa

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Fernando Absalão Chaúque

cheia de desmedida euforia: ora riam-se da fatídica morte da família Ya Moto, ora lamentavam a
distorcida conduta do Pontes que durante décadas enganara a milhares de pessoas fingindo ser
sabedor de palavras divinas. Entretanto, todos estávamos felizes porque íamos reaver a Tristeza e
o seu filhinho.
De tanta felicidade, Santos não parava de sorrir, mesmo no ventre daquela escuridão os
seus dentes megalómanos reluziam como inpagáveis chamas.
‘’Mano Santos, qual é o nome do seu filhinho?’’, pergunto-lhe no meio da caminhada.
‘’Ainda não tem nome, senhor Carlos.’’
Oh! Lembrei-me que ela já havia relatado que o filho fora sequestrado ainda na
maternidade. Reformulei a pergunta:
“Pois… queria perguntar que nome dará ao seu filho…?’’
Santos pára. Lança o olhar às cercanias, depois para o firmamento. Abre a boca, algumas
gotículas de chuva caiem-lhe na língua. Saboreia-as.
‘’Vai-se chamar Orvalho.’’
‘’Osvaldo… hummm… é um nome lindo.’’
‘’Orvalho… Orvalho… ele vai-se chamar Orvalho, não Osvaldo, senhor Carlos.’’
‘’Um nome lindíssimo, mano’’
“Vou dar-lhe esse nome porque o orvalho simboliza a esperança, o renascer dos dias.’’
Fechei os olhos. Deixei que no meu íntimo ecoasse a inesquecível melodia da canção
‘’Orvalho em Chamas.’’
Quando abri os olhos, a Laurinda era quem estava perto de mim. Santos ia já distante.
‘’Sabe, dona Laurinda, depois de resgatarmos a Tristeza e o filho, amanhã voltarei à
capital…’’
‘’Fica mais um pouco, ilustre, ainda há muita coisa que precisas saber sobre a nossa
localidade.’’
‘’Foi muito bom estar aqui, porém preciso voltar para apresentar o relatório sobre esta
missão aos meus superiores, quem sabe, depois peço férias e venho cá divertir-me…’’
‘’Exactamente.’’, concorda a velha e adiciona… ‘’Carlos, se eu fosse o senhor escreveria
um livro sobre tudo que viveu aqui.’’
Abri os olhos subitamente como se despertasse de um sonho profundo. Era uma ideia
fabulosa que a velha me propunha. Abanei a cabeça em concordância.
Orvalho em Chamas

‘’E qual seria o titulo desse livro, dona Laurinda?’’


Ela mergulha-se nos orifícios do seu pensamento e depois diz:
‘’Seria Orvalho em Chamas gosto muito daquela canção…’’
‘’Seria um bom titulo, mas, que tal se fosse Gatos que Bebem Sangue?”
‘’Os gatos do Pedro Paulo Pontes?” Ela questiona e depois põ-se a cuspir infinitas
gargalhadas.
Caminhamos até a casa do Mbalame ainda a discutir qual ds dois seria o melhor título
para o livro. Caminhamos felizardos sem saber que chegaríamos lá e encontraríamos o casarão
dos Ya Moto completamente demolida pela população que nunca saberá que havia ali um
cativeiro no qual a Tristeza e o filhinho estavam trancados…

Cumbeza, 24 de Novembro de 2020

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Fernando Absalão Chaúque

AGRADECIMENTOS
Orvalho em Chamas

SOBRE O AUTOR

Fernando Absalão Chaúque natural do distrito de Manhiça, Provincia de


Maputo.Nasceu a 28 de Março de 1996. Frequenta curso de Ensino da Lingua Inglesa na
Faculdade de Ciencias de Linguagem Comunicacao e Artes – Universidade Pedagogica de
Maputo. Em 2019 venceu o 3º Concurso Literário Alcance Editores com a obra Âncora no
Ventre do Tempo. Ainda no mesmo ano conquistou o 1º lugar no Concuso de Redação da
Embaixada da República da Coreia em Moçambique. É Membro do Movimento Literario Juvenil
(MOLIJU). Fundador do blogue tenacidadedaspalavras.blogspot.com.

Contactos do autor: fernandoabsalao@gmail.com e 842612693

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