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Chorar é preciso (Tatiana Belinky)

Quando eu era pequena, lá no norte da Europa, no Báltico, antes de vir para o Brasil, com dez anos
de idade, eu era uma menina durona, que não chorava. Não chorava quando ficava doente, nem quando
caía e me machucava, ou cortava o dedo e a mamãe desinfetava o corte com tintura de iodo, o que ardia
muito, e nem quando papai ou mamãe me repreendiam, nem quando a minha prima me puxava pelos
cabelos... Não chorava mesmo.
Vocês podem pensar que eu era, como se diz hoje, uma criança reprimida. Pois não é nada disso,
não é por aí _mas isto já é outra história. O fato é que eu não chorava _ talvez fosse porque não queria
“dar o braço a torcer”, não queria fazer feio diante do irmão menor, ou talvez fosse por uma espécie de
orgulho, sei lá. Entretanto, chorar às vezes é tão necessário para uma criança como rir, ou sentir uma
cosquinha de medo _de vez em quando. Daí, havia dias em que eu sentia necessidade de chorar. O que é
que eu fazia então? Não se espantem: eu lia.
Eu ia direto ler um dos meus “livros de chorar”. Pois é. Eu tinha na minha estante _ sim, porque eu
tinha a minha própria pequena estante de livros, desde que me lembro de mim mesma _alguns livros com
histórias que me faziam chorar toda vez que eu lia uma delas. Era um choro que eu me permitia, porque
não era por um problema meu, uma queixa minha. Não era por minha própria causa, e sim por causa da
história triste que eu acabava de reler.
Uma dessas histórias era, por exemplo, o conto “A menina dos fósforos”, de Andersen. A
comovente história da meninazinha pobre e órfã, que morre de frio numa gélida noite de Natal, lá na
Dinamarca, na rua onde era obrigada a vender fósforos aos transeuntes. Outra história, do mesmo
Andersen, que me fazia chorar sempre, era a “Pequena sereia”, que se apaixonou por um ser humano que
ela salvou de um naufrágio, e pediu para a bruxa do mar lhe dar pernas a fim de poder ficar na terra, com
ele. E que as ganhou, ao preço de sentir dores lancinantes a cada passo que desse _ só para no fim ver o
seu amado casar-se com outra moça...
Mas a minha história de chorar preferida era um poema do maior poeta clássico russo, Aleksandr
Puchkin: a História da Ursa-Parda.
O poema conta a história da ursa-mãe que, numa ensolarada manhã de primavera, saiu a passear
na clareira com seus filhotes ursinhos, que brincam e rolam e dão cambalhotas na relva macia. Mas chega
um caçador com um facão e um forcado e mata a ursa que defendia os filhotes, arranca-lha a pele felpuda
e carrega embora os filhotes, dentro dum saco. E a história termina com a noticia chegando ao Urso
_Pardo, que chora e se lamente, e com todos os bichos da floresta acorrendo para tentar consolar o infeliz
esposo e pai...
Contada em versos belos e ritmados como uma música, essa história me fazia derramar rios de
lágrimas, toda vez que a relia. E aliviava meu coração de criança que, evidentemente, por algum motivo,
precisava desse alivio.
Aqui entre nós confesso que essa história tão triste me comove até hoje. Com licença, vou pegar o
meu lenço...
“Gaffe” (Tatiana Belinky)

Vocês sabem o que é uma gaffe? A palavra é francesa, mas é muito usada aqui entre nós, mais do
que a sua correspondente portuguesa, ou melhor dizendo, brasileira, que é “rata” _e que não é, como
alguém pode pensar, a fêmea do rato. Essa rata, segundo o meu fiel dicionário Aurélio, é “ato inoportuno
ou inconveniente; desazo (isto é português mesmo); fiasco, mancada, gafe” (olha ela aqui de novo!). em
suma, gaffe _ou gafe _é um fora que a gente dá às vezes, muito sem querer. E que deixa a gente com cara
de tacha (tacho de cobre: vermelho) e uma doida vontade de afundar pelo chão adentro, que pode durar
vários dias e mesmo semanas.
Certo dia me aconteceu uma dessas, ai que desgosto! Foi há muito tempo. Eu estava jogando
peteca com um amigo, um rapaz que, depois de uma traiçoeira poliomielite (quando ele era pequeno,
ainda não existia a santa vacina Sabin), ficou com um defeito num pé. Não era tão grave a ponto de
impedi-lo de andar ou mesmo de jogar peteca. Só que ele mancava, arrastava um dos pés. Mas era um
garoto valente e disposto, que fazia questão de não deixar de fazer nada, de participar de tudo o que os
outros faziam _ de tal forma que os amigos e colegas simplesmente esqueciam que ele tinha aquele
problema.
Bem, como eu ia dizendo, estávamos jogando peteca, muito animados, rindo e estimulando-nos
mutuamente com toda sorte de gritos e interjeições, quando de repente o meu amigo calculou mal o seu
lance e... deixou cair a peteca. E eu, instintivamente, dei uma gargalhada e um berro: “Ó seu perna-de-
pau!”. E no mesmo instante em que essas palavras saíam _literalmente escapavam da minha boca, e não
dava mais para “segurá-las”_eu senti o sangue subir-me ao rosto, numa onda de calor horrível, e parei no
lugar, dura, momentaneamente paralisada, sem saber o que fazer. Minha vontade era pedir desculpas,
mas ao mesmo tempo eu sentia que não dava jeito, não era por aí. Eu queria mesmo era sumir, cair num
buraco e emergir nos antípodas.
Quem salvou a situação foi o próprio “perna-de-pau”, que não se deu por achado, não hesitou, e,
naquela fração de segundo que me pareceu uma eternidade, gritou para mim, rindo descontraído,
enquanto, rápido, apanhava e me atirava a peteca:
- O ponto é seu, ó pamonha! Por que está parada aí feito um estafermo? Mexa-se!
E eu me mexi, e o jogo continuou, e a minha vontade agora era correr para o meu amigo,
agradecer-lhe, dar-lhe um beijo _mas isso também não era possível: seria espichar o incidente, que estava
esgotado e encerrado. Pelo menos ali, naquele lugar e naquela hora.
Porque eu levei muitos dias para assimilar e digerir aquela horrível sensação de gaffe. Ou rata. Ou
desazo. Ou qualquer nome que tenha essa coisa que até hoje, tantos anos depois, quando me lembro,
ainda me faz subir o rubor às bochechas...
O torcedor (José Carlos Oliveira)

Jogam Flamengo e Botafogo, e meu coração se divide. Como qualquer brasileiro, nasci Flamengo;
mas, aos 18 anos, decidi romper com todos os preconceitos, e mesmo com as crenças mais sensatas que
vinha acumulando. Para começar tudo de novo. Resultado: fiquei sem um céu para onde ir depois da
morte, e sem um time de futebol que me fizesse experimentar simbolicamente, nos fins de semana, as
alternativas de vitória e derrota em que se resume a aventura humana. Uma tarde de domingo, jogavam
Botafogo e Fluminense em partida final de campeonato. Toda a cidade estava no Maracanã. Andei pelas
ruas desertas, indiferente à sorte do campeonato. Cheguei ao Metro Copacabana e entrei para ver um
filme infantil. Lá dentro eram raros os adultos. Na saída, com o sol já se apagando, fui andando na direção
do Roxy, e na minha frente ia uma família muito jovem: o marido com uns quarenta anos, a mulher grávida
de seis meses. O marido levava ao colo um menino pequeno, e a mulher conduzia pela mão dois outros
meninos. Fui andando a pensar na alegria que eles teriam se dentro de três meses nascesse a primeira filha
apenas para alegrar o homem, cujo sonho era ser pai de uma gentil criança do sexo feminino. A jovem
senhora grávida era bela, de traços finos; usava sandálias sem alças e mostrava uns pés verdadeiramente
sublimes. Íamos andando assim quando topamos com um cidadão que, encostado a uma árvore, ouvia um
rádio de pilha. Ao vê-lo, o homem, a mulher e as crianças ficaram paralisados. O homem e a mulher se
entreolharam em silencio e ficaram ainda algum tempo indecisos. Depois, o homem, sempre com o filho
caçula no colo, aproximou-se cautelosamente do cidadão que ouvia o rádio e falou:
- Por favor... Quanto foi o jogo?
- Seis a dois - disse o outro.
- Ah, seis a dois... Mas para quem?
- Para o Botafogo, naturalmente...
- Naturalmente! - exclamou então o pai de família, e a jovem senhora ficou com o rosto iluminado.
Os dois meninos que iam a pé pularam de contentamento. O pai entregou à mulher o filho de colo, beijou-
a na testa, deu adeus aos outros filhos e saiu correndo na direção de um táxi que passava. Entrou no táxi e
seguiu para o Túnel Novo.
Fiquei curioso para saber o que se passara. Contemplei algum tempo a jovem mulher que seguia
agora o seu caminho, com dois filhos pela mão, um terceiro no colo e um quarto na barriga. Adiantei-me e
lhe disse:
- Queira desculpar, mas... Que foi que houve?
- O Botafogo venceu _disse ela _e ele foi para a sede do clube comemorar.
- Mas _insisti _ se ele gosta tanto assim do Botafogo, por que diabo não foi ao Maracanã? Por que
se meteu no cinema?
- Para evitar o enfarte! _disse ela, com simplicidade e também com uma espécie de triunfo na voz.
- Ah, si... O enfarte...
A mulher e os filhos seguiram caminho. Entrei num bar e pedi um cafezinho. A partir daquele dia o
meu time seria o Botafogo.

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