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PUC RiO

TEXTOS
Reitor
Pe. Iesus Hor tal Sanchez, S.L ESCOLHIDOS
Vice- Reitor
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Vice-Reitor par, Assuntos Académicos


ORGANIZAÇÃO E INTRODUÇÃO
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Decanos
Praia víaria Clara l.ucchetti Bingemer 'CTCH)
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Pror. Hilton Augusro Koch (CCBM)

COOTRAPOOTO
EDITORA

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CAPiTULO 7

o PROBLEMA DA INDUÇÃO
[1953,1974]

Para uma formulação sucinta do problema da indução podemos recor-


rer a Bom, que escreveu: "Obervações ou experimentos, por mais am-
plos que sejam, só podem sujeitar-se a um número finito de repetições";
portanto, "a afirmação de uma lei - B depende de A - sempre trans-
cende a experiência. Mesmo assim, esse tipo de afirmação é feito em toda
parte, o tempo todo, às vezes com base em material escasso."1
Em outras palavras, o problema lógico da indução provém (1) da des-
coberta de Hume (muito bem expressa por Bom) de que é impossível
justificar uma lei pela observação ou pela experimentação, pois a lei
"transcende a experiência"; (2) do fato de que a ciência propõe e usa leis
"em toda parte, o tempo todo". (Tal como Hume, Bom impressionou-se
com o "material escasso", ou seja, os poucos casos observados nos quais
a lei podia fundamentar-se.) A isso temos de acrescentar (3) o principio
do empirismo, que afirma que só a observação e a experimentação po-
dem decidir sobre a aceitação ou rejeição das afirmações científicas, in-
clusive leis e teorias.
À primeira vista, esses três princípios parecem entrar em choque, e
esse choque aparente constitui o problema lógico da indução.
Diante disso, Bom abandonou (3), o princípio do empirismo (como
antes dele tinham feito Kant e muitos outros, inclusive Bertrand Russell)
em favor do que chamou "princípio metafísico" - um princípio que ele
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'~: sequer tentou formular, descrevendo-o vagamente como um "código ou
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regra do ofício", e do qual nunca vi nenhuma formulação que parecesse
+
promissora ou não fosse claramente insustentável.
Na verdade, porém, os princípios (1) a (3) não se opõem um ao ou-
~
tro. Podemos percebê-lo quando nos damos conta de que a aceitação de
j .o;
uma lei ou uma teoria pela ciência é apenas provisória, o que equivale a
I dizer que todas as leis e teorias são conjecturas ou hipóteses temporárias

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PARTE I • TEORIA DO CONHECIMENTO

(atitude que chamei, em algumas ocasiões, de "hipoteticismo"). Podemos


r
~
CAPiTULO 7· O PROBLEMA o»; INDUÇÃO

que o Sol nascerá amanhã ou que nasceu há 100 mil anos. Do ponto
rejeitar uma lei ou uma teoria com base em novos dados, sem necessa- de vista pragmático é possível dizer que a inferência preditiva é a mais
riamente descartar as evidências antigas que nos haviam levado a aceitá- importante.
Ias. (Não duvido que Bom e muitos outros concordassem em que as teo- Outros filósofos também consideram mal concebido esse problema
rias só são aceitas provisoriamente, mas a crença muito difundida na tradicional da indução. Alguns afirmam que não é necessário justificar
indução mostra que as importantes implicações desse ponto de vista ra- nem a inferência indutiva nem a dedutiva. A inferência indutiva é tão vá-
lida, indutivamente, quanto o é a inferência dedutiva, dedutivamente.
ramente são percebidas.)
Creio que o professor Strawson foi o primeiro a dizer isso.
O princípio (3) do empirismo pode ser inteiramente preservado, pois
Minha opinião é diferente. Com Hume, afirmo que simplesmente não
o destino de uma teoria, sua aceitação ou rejeição, é decidido pela obser-
existe uma entidade lógica chamada inferéncia indutiva; todas as cha-
vação e pelos experimentos - pelos resultados de testes. Uma teoria é
madas inferências indutivas carecem de validade lógica - e até de vali-
aceita enquanto resiste aos mais severos testes que possamos imaginar; é
dade indutiva. para dizê-lo em termos mais rigorosos [ver o final deste
rejeitada quando não o faz. Mas nunca é inferida, em nenhum sentido, a
texto]. Temos muitos exemplos de inferências dedutivamente válidas e
partir dos dados empíricos. Não existem nem indução psicológica nem
até alguns critérios parciais de validade dedutiva, mas não existe nenhum
indução lógica. Os dados empíricos só nos permitem inferir a falsidade de
exemplo de inferência indutivamente válida." Podemos encontrar esse
uma teoria, e essa inferência é puramente dedutiva.
resultado na obra de Hume, embora este, ao mesmo tempo e em nítido
Hume mostrou que não é possível inferir uma teoria a partir de contraste comigo, confiasse no poder psicológico da indução, não como um
enunciados de observações, mas isso não afeta a possibilidade de se re- procedimento válido, mas como um procedimento do qual animais e se-
futar uma teoria por meio de enunciados de observações. A plena apre- res humanos se servem com êxito, como uma questão prática e de ne-
ciação dessa possibilidade deixa clara a relação entre as teorias e as ob- cessidade biológica.
servações. Mesmo à custa de alguma repetição, julgo importante deixar claro
Isso resolve o problema do suposto conflito entre os princípios O), onde concordo com Hume e onde discordo dele.
(2) e (3) e, junto com ele, o problema da indução apontado por Hume. Concordo com sua opinião de que a indução não tem validade e não
se justifica em nenhum sentido. Consequentemente, nem Hume nem eu
11 podemos aceitar as formulações tradicionais que solicitam acriticamen-
te a justificativa da indução; tal solicitação é acrítica por não ver a possi-
O problema da indução, de Hume, foi quase sempre mal formulado pelo bilidade de que a indução seja desprovida de validade em todos os senti-
que podemos chamar de tradição filosófica. Primeiro mostrarei algumas dos e, por conseguinte, injustificável.
dessas formulações ruins, ou formulações tradicionais do problema da Discordo da opinião de Hume (e de quase todos os filósofos) de que
indução. Mas vou substituí-Ias pelo que considero serem formulações a indução é uma realidade e, de qualquer maneira, é necessária. Afirmo
melhores. que nem os animais nem os seres humanos usam qualquer procedimen-
Eis exemplos típicos de formulações tradicionais e ruins do problema to como a indução ou qualquer argumento baseado na repetição de ca-
da indução: sos. Acreditar que usamos a indução é um erro, uma espécie de ilusão
O que justifica a crença em que o futuro se assemelhará ao passado? de óptica.
O que justifica as chamadas inferências indutivas? O que de fato usamos é um método de ensaio e eliminação do erro;
Por "inferência indutiva" referimo-nos a uma inferência a partir de por mais que ele possa assemelhar-se à indução, veremos que sua estru-

.. casos repetidamente observados para casos ainda não observados. É de


importância relativamente menor saber se tal inferência do observado
tura lógica, se o examinarmos de perto, difere totalmente da observada
na indução. Além disso, trata-se de um método que não dá margem a
para o não observado prevê ou retroage no tempo, ou seja, se inferimos nenhuma das dificuldades relacionadas ao problema da indução.

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PARTE I • TEORIA DO CONHECIMENTO

Portanto, oponho-me ao problema tradicional não porque a indução


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CAPiTULO 7 • o PROBLEMA DA IN.DUÇAo

problema da indução, é uma doutrina que podemos chamar de teoria do


pode ser manejada sem justificativa; ao contrário, ela necessitaria urgen- conhecimento humano baseada no senso comum, ou teoria da mente
temente de uma justificativa. Mas essa necessidade não pode ser atendi- humana como balde,'
da. A inducão não existe. O ponto de vista oposto é um erro flagrante.
IV
111
Tenho o senso comum em altíssima conta. Na verdade, penso que toda
Há muitas maneiras de apresentar meu ponto de vista não indutivista. filosofia deve partir do exame crítico de pontos de vista sensatos.
Talvez a mais simples seja a que se segue. Tentarei mostrar que todo o Para nossos propósitos aqui, quero distinguir duas partes da visão de
aparato da índução torna-se desnecessário quando admitimos a falibili- mundo baseada no senso comum e chamar a atenção para o fato de que
dade geral do conhecimento humano, ou, como gosto de chamá-Io, o elas entram em conflito.
caráter coniectural do conhecimento humano. A primeira é o realismo do senso comum; trata-se do ponto de vista
Permitam-me assinalar isso, em primeiro lugar, no tocante ao melhor de que existe um mundo real que contém pessoas, animais e plantas, au-
tipo de conhecimento humano de que dispomos, o conhecimento cien- tomóveis e estrelas, todos de verdade. Creio que essa visão é verdadeira e
tífico. Afirmo que o conhecimento científico é essencialmente conjectu- de imensa importância, e que nunca foi objeto de uma crítica válida. [Ver
ralou hipotético. também o texto 17, adiante.]
Tomemos como exemplo a mecânica newtoniana clássica. Nunca Outra parte, muito diferente, da visão de mundo segundo o bom sen-
houve teoria mais bem-sucedida. Se o sucesso observacional reiterado so é a teoria do conhecimento calcada no senso comum. O problema está
pudesse estabelecer a validade de uma teoria, esta seria a teoria de New- em como adquirimos conhecimentos sobre o mundo. A solução sensata
tono No entanto, ela foi suplantada pela de Einstein, no âmbito da astro- é: abrindo olhos e ouvidos. Nossos sentidos são as fontes principais, se não
nomia, e pela teoria quântica, no âmbito atômico. Hoje, quase todos os as únicas, de nosso conhecimento do mundo.
físicos consideram que a mecânica clássica newtoniana não passa de uma Considero essa segunda visão totalmente errada e insuficientemente
conjectura maravilhosa, uma hipótese estranhamente bem-sucedida e criticada (apesar de Leibniz e Kant). Chamo-a de "teoria da mente como
uma aproximação espantosamente boa da verdade. balde" porque ela pode ser resumida nesse diagrama.
Agora posso formular minha tese central: ao percebermos plenamen-
te as implicações do caráter conjectural do conhecimento humano, o :~
problema da indução muda radicalmente de natureza; já não há necessi-
dade de nos inquietarmos com os resultados negativos de Hume, pois
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deixa de ser necessário atribuir ao conhecimento humano uma validade \é:;)fd
decorrente de observações repetidas. O conhecimento humano não pos-
sui tal validade. Por outro lado, podemos explicar todas as nossas reali- Supõe-se que os elementos - os átomos ou moléculas - do conheci-
zações em termos do método de ensaio e eliminação do erro. Em suma, mento entram no balde por meio de nossos sentidos. Nosso conhe-
nossas conjecruras são balões de ensaio. Nós as testamos, criticando-as e cimento, portanto, consistiria em uma acumulação, uma compilação, ou,
i: procurando substituí-Ias, tentando mostrar que há conjecturas melho- quem sabe, uma síntese dos elementos que nossos sentidos nos oferecem.

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res ou piores e que elas podem ser aperfeiçoadas. O lugar do problema As duas metades da filosofia do senso comum - o realismo do senso
da indução passa a ser ocupado pelo problema da qualidade, boa ou comum e a teoria do conhecimento calcada no senso comum - foram
ruim, das conjecturas ou teorias rivais propostas. defendidas por Hume. Tal como antes fizera Berkeley, ele julgou que
# A principal barreira à aceitação do caráter conjectural do conheci- havia um conflito entre elas, pois a teoria do conhecimento baseada no
mento humano, bem como à admissão de que esse caráter soluciona o senso comum tende a levar a uma espécie de antirrealismo. Se o conhe-

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~. PARTE I • TEORIA DO CONHECIMENTO
CAPfTULO 7 : O PROBLEMA DA INDUÇAO

cimento resulta de sensações, então as sensações são os únicos compo- É mérito eterno de Hume ter-se atrevido a questionar o ponto de vis-
nentes seguros do conhecimento, e não podemos ter nenhuma boa razão ta da indução baseada no senso comum, embora nunca tenha duvidado
para crer que exista algo além da sensação. . de que ela devia ser, em grande medida, verdadeira. Ele acreditava que a
Hume, Berkeley e Leibniz eram adeptos do princípio da razão sufi- indução por repetição era logicamente insustentável - no plano racio-
ciente. Para Berkeley e Hume, tal princípio assumia esta forma: se você nal ou lógico, nenhum número de casos observados podia ter alguma in-
não tem razões suficientes para sustentar uma convicção, eis aí uma ra- fluência sobre os não observados. Foi essa a solução negativa de Hume
zão suficiente para abandonar tal convicção. Para eles, o conhecimento para o problema da indução, uma solução que endosso plenamente.
autêntico consistia essencialmente em uma crença apoiada em razões Ao mesmo tempo, Hume sustentou que, embora a indução não tives-
suficientes, mas isso os levou à posição de que o conhecimento consistia se validade em termos racionais, ela era uma realidade psicológica na
mais ou menos em puras sensações. qual todos confiávamos.
Para esses filósofos, portanto, o mundo real do senso comum não Assim, os dois problemas humianos da indução eram:
existe realmente; de acordo com Hume, nem nós mesmos temos existên- (1) O problema lógico: Haverá uma justificativa racional para racioci-
cia plena. Tudo que existe são sensações, impressões e imagens mnêmi- narmos a partir de situações reiteradas, que conhecemos, para situações que
caso [Ver também o texto 22, seção r.] nunca experimentamos?
Podemos caracterizar essa visão antirrealista com diversos nomes; o A resposta inflexível de Hume foi: não há justificativa, por maior
mais comum parece ser "idealismo". Hume considerava seu idealismo que seja o número de repetições. Ele acrescentou que não fazia a menor
como uma refutação rigorosa do realismo do senso comum. Entretanto, diferença considerar justificada não uma crença segura, mas uma crença
embora se sentisse racionalmente obrigado a considerar errado o realis- provável. As situações que vivenciamos não nos permitem ponderar ou
mo do senso comum, ele próprio admitiu que, na prática, era incapaz de discutir nem a probabilidade nem a certeza de situações que não experi-
descrer desse realismo por mais de uma hora. mentamos.
Hume vivenciou com muita intensidade o choque entre as duas par- (2) A pergunta psicológica: Como, ainda assim, todas as pessoas sensa-
tes da filosofia do senso comum: o realismo e a teoria do conhecimento tas esperam e acreditam que situações que nunca experimentaram venham
baseada no senso comum. Apesar de perceber que, emocionalmente, era a conformar-se àquelas que experimentaram? Em outras palavras, por que
incapaz de abandonar o realismo, ele via isso como mera consequência todos temos expectativas? Por que nos apegamos a elas com tanta con-
de um costume ou hábito irracional; estava convencido de que a adesão fiança. com uma convicção tão forte?
coerente aos resultados mais críticos da teoria do conhecimento nos le- A resposta de Hume a esse problema psicológico da indução foi: por
varia a abandonar o realismo. -I O idealismo de Hume permaneceu como "costume ou hábito'; ou, em outras palavras, pelo poder irracional, mas ir-
a corrente central do empirismo britânico. resistivel, da lei da associação. Somos condicionados pela repetição. Sem
esse mecanismo de condicionamento, segundo Hume, dificilmente con-
seguiríamos sobreviver.
v Creio que a resposta de Hume ao problema lógico está correta e sua
Creio que a melhor maneira de apresentar os dois problemas relaciona- resposta ao problema psicológico, apesar de persuasiva, está errada.
dos à indução apontados por Hume - o lógico e o psicológico - é
manter como pano de fundo a teoria da indução baseada no senso co- VI
mum. Trata-se de uma teoria muito simples. Corno se supõe que todo
conhecimento resulta da observação passada, isso se aplica especialmen- As respostas dadas por Hume aos problemas lógico e psicológico da in-
te ao conhecimento ligado a uma expectativa: o Sol nascerá amanhã, to- dução levam a uma conclusão irracionalista. De acordo com ele, nosso
.•. dos os homens morrerão, o pão alimenta. Tudo isso resulta de observa- conhecimento, em especial o científico, é só hábito ou costume irracio-
ções passadas. nal, sendo indefensável em termos racionais.

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PARTE I • TEORIA DO CONHECIMENTO r·


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CAPITULO Z • O PROBLEMA DA INDUÇAO

Hume pensava nisso como uma forma de ceticismo. Porém, como as- VII
sinalou Bertrand Russell, tratava-se mais de uma rendição não intencio-
nal ao irracionalismo. É incrível que um gênio crítico ímpar, uma das Minha maneira de evitar as consequências irracionalistas de Hume é
mentes mais racionais de todas as épocas, tenha não somente passado a muito simples. Soluciono o problema psicológico da indução (e também
formulações como o problema pragmático) de um modo que satisfaça o
descrer da razão, mas também se convertido em um defensor da desra-
seguinte "princípio da primazia da solução lógica", ou, em termos mais
zão, do irracionalismo.
sucintos, "princípio da transferência", que diz: a solução do problema ló-
Ninguém sentiu esse paradoxo com mais intensidade do que Russeil,
gico da indução, longe de conflitar com a dos problemas psicológico ou
admirador e, em muitos aspectos, discípulo tardio de Hume. No capítu-
pragmático, pode, com algum cuidado, ser diretamente transferida para
lo dedicado a esse filósofo na História da filosofia ocidental, publicada em
eles. Como resultado, não há choque nem consequências irracionalistas.
1946, Russell disse, a respeito da abordagem humiana da indução: "A fi-
Para começar, o problema lógico da indução precisa ser reformulado.
losofia de Hume [...] represen ta a falência da racionalidade setecentista,"
Primeiro, deve ser proposto não apenas em termos de "exemplos"
E prosseguiu:
(como em Hume), porém de regularidades ou leis universais. As regu-
Por isso, é importante descobrir se existe uma resposta a Hume em uma laridades ou leis são pressupostas pelo próprio termo "exemplo", usado
filosofia que seja total ou predominantemente empírica. Em caso negati- por Hume, pois o exemplo é exemplo de algo - de uma regularidade
vo, não há diferença intelectual entre sanidade e insanidade. O lunático que ou de uma lei. (Ou melhor, é exemplo de muitas regularidades ou de
acredita ser um ovo poché deve ser condenado exclusivamente por estar
muitas leis.)
em minoria.
Segundo, devemos ampliar o alcance do raciocínio, passando de exem-
Russell afirma em seguida que, sendo rejeitada a indução (ou o prin- plos para leis, a fim de também podermos prestar atenção nos exemplos
cípio da indução), "toda tentativa de chegar a leis científicas gerais a par- contrários.
tir de observações particulares se torna falaciosa; O ceticismo de Hume é Desse modo, reformulamos nos seguintes moldes o problema lógico
inescapável para o ernpirista" Com o seguinte comentário dramático ele da indução exposto por Hume:
resume seu ponto de vista sobre a situação criada pelo choque entre as Será racionalmente justificável raciocinarmos partindo de exemplos ou
duas respostas humianas: "O aumento da desrazão ao longo do século XIX contra-exemplos que experimentamos para descobrir a verdade ou falsi-
e do que já passou do século XX é uma consequência natural da destrui- dade das leis correspondentes ou para exemplos que não tenhamos expe-
ção do empirismo por Hume." rimentado?
Esta última citação de Russell talvez vá longe demais. Não quero dra- Esse é um problema puramente lógico. Essencialmente, é só uma pe-
matizar excessivamente a situação. Às vezes acho que a ênfase de Russell quena extensão do problema lógico da indução em Hume, formulado
está correta, mas em outros momentos duvido dela. na seção V.
A seguinte citação do professor Strawson parece corroborar a grave A resposta a esse problema é: como Hume deixou implícito, não é jus-
opinião de Russell: "[Se] ... existe um problema da indução e ... Hume o tificável raciocinarmos a partir de um exemplo para chegar à verdade da
postulou, convém acrescentar que ele o resolveu ...[;] a aceitação dos 'çà- lei correspondente. Mas a esse resultado negativo pode-se acrescentar um
nones básicos' [da indução j ... nos é imposta pela natureza. '" A razão é segundo resultado, igualmente negativo: é justificável raciocinarmos a
e deve ser escrava das paixões." partir de um contra-exemplo para chegar à falsidade da lei universal cor-
Proponho uma resposta para o problema psicológico humiano que respondente (isto é, de qualquer lei da qual ele seja um exemplo contrá-
elimina o contlito entre a lógica e a psicologia do conhecimento. Com rio). Em outras palavras, de um ponto de vista puramente lógico, a acei-
isso, elimina todo o raciocínio de Hume e de Strawson contra a razão. tação de um contra-exemplo à afirmação "todos os cisnes são brancos"
'*' implica a falsidade da lei "todos os cisnes são brancos" - isto é, da lei
cujo contra-exemplo aceitamos. A indução é logicamente desprovida de

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•... ~
PARTE I • TEORIA DO CONHECIMENTO
r: CAPíTULO 7 • O PROBLEMA,DA INDUÇÃO

',' validade, mas a refutação é um modo logicamente válido de argumentar sas, ao passo que a de Einstein pode ser verdadeira ou falsa: isso nós não
a partir de um único exemplo contrário para chegar à lei correspondente sabemos. Logo, pode haver preferências puramente intelectuais por uma
- ou melhor, para contrariá-Ia. ou outra dessas teorias. Estamos longe de dizer, com Russell, que desa-
Isso mostra que continuo a concordar com o resultado lógico negati- parece a diferença entre ciência e loucura. A tese de Hume ainda se sus-
vo de Hume, mas o torno mais amplo. tenta. Portanto, a diferença entre um cientista e um lunático não está em
Essa situação lógica independe de qualquer questão sobre se devemos o primeiro basear suas teorias, com segurança, em observações e o se-
ou não, na prática, aceitar um único contra-exemplo - tal como um cis- gundo, não; nem está em nada parecido com isso. Não obstante, agora
ne negro solitário - para refutar uma lei até então bem-sucedida. Não vemos que pode haver uma diferença: é possível que a teoria do louco seja
estou sugerindo que fiquemos necessariamente satisfeitos com tanta fa- facilmente refutável pela observação, enquanto a teoria do cientista re-
cilidade; podemos desconfiar que o espécimen negro diante de nós não siste a diversos testes.
é um cisne. Relutamos na prática em aceitar um contra-exemplo isola- As teorias do cientista e do louco têm algo em comum: ambas são
do, mas essa é outra questão [ver seção IV do texto 10, adiante I. A lógica conhecimento conjectural. Mas algumas conjecturas são muito melhores
nos obriga a rejeitar até mesmo a lei mais bem-sucedida no momento que outras. Essa resposta, suficiente para Russell, também é suficiente
em que aceitamos um único exemplo contrário. para evitar o ceticismo radical. Como algumas conjecturas podem ser
Assim, podemos dizer que Hume estava correto em seu resultado ne- preferíveis a outras, nosso conhecimento conjectural pode se aprimorar
gativo de que não pode haver argumento positivo logicamente válido e se desenvolver. (Uma teoria preferida em um dado momento pode cair
que nos leve na direção indutiva. Mas há outro resultado negativo: exis- em descrédito em um momento seguinte e a outra pode se tornar prefe-
tem argumentos negativos logicamente válidos que levam na direção in- rida, mas isso pode não acontecer.)
dutiva: um exemplo contrário pode refutar uma lei. Podemos ter motivos puramente racionais para preferir algumas teo-
rias rivais a outras. É importante sabermos com clareza quais são os
VIII princípios da preferência ou da escolha.
Em primeiro lugar, eles são regidos pela ideia de verdade. Até onde é
o resultado negativo de Hume estabelece definitivamente que nossas leis possível, queremos teorias verdadeiras, e por isso procuramos eliminar
ou teorias universais se mantêm eternamente como palpites, conjecturas as falsas.
ou hipóteses. Mas o segundo resultado negativo, concernente à força dos Mas queremos mais do que isso. Buscamos uma verdade nova e inte-
contra-exemplos, não exclui a possibilidade de existir uma teoria positi- ressante. Assim, somos levados à ideia de aumento do conteúdo informa-
va que, com argumentos puramente racionais, nos permita preferir algu- tivo e, em especial, do teor de verdade. Em outras palavras, somos leva-
mas conjecturas rivais a outras. dos ao seguinte princípio de preferência: de modo geral, uma teoria com
De fato, podemos construir uma bem elaborada teoria lógica da pre- grande conteúdo informativo é mais interessante, antes mesmo de ser
ferência - preferência do ponto de vista da busca da verdade. testada, do que uma teoria com pouco conteúdo. Talvez tenhamos de
Está errada a observação desesperançada de Russell de que, ao re- abandonar a teoria com conteúdo maior, mais ousada, se ela não resistir
jeitarmos com Hume qualquer indução positiva, "não há diferença inte- '!li
aos testes. Mesmo nesse caso, porém, talvez aprendamos mais com ela
lectual entre sanidade e insanidade". A rejeição da indução não nos im- do que com uma teoria de pouco conteiído, pois às vezes os testes refu-
pede de preferir, digamos, a teoria de Newton à de Kepler, ou a teoria de tadores revelam fatos e problemas novos e inesperados [Ver também o
Einstein à de Newtorr: durante o debate crítico racional dessas teorias, texto 13, adiante J .
podemos aceitar a existência de contra-exemplos à teoria de Kepler que Assim, nossa análise lógica leva diretamente a uma teoria do método
não refutam a de Newton, e de contra-exemplos à teoria de Newton que e à seguinte regra metodológica: experimente e almeje teorias ousadas,
iIi' não refutam a de Einstein. Dada a aceitação desses exemplos contrários, com grande teor informativo, e depois as deixe competir, debatendo-as
podemos dizer que as teorias de Kepler e de Newton certamente são fal- criticamente e testando-as com rigor.

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~
PARTE I . TEORIA DO CONHECIMENTO

IX

Propus a seguinte solução ao problema lógico da indução: podemos ter


r
~
CAPíTULO 7 • O PROBLEMA DA INDUÇÃO

esperança de que uma delas seja verdadeira - mesmo que nunca possa-
mos nos certificar disso.
Portanto, há mais de um caminho aberto ao teórico puro. Ele só es-
preferência por algumas das conjecturas rivais, isto é, por aquelas que se- colherá um método como o do ensaio e eliminação do erro se sua curio-
jam altamente informativas e até agora tenham resistido à crítica. Essas sidade ultrapassar a decepção diante da incerteza e da incompletude ine-
conjecturas preferidas resultam da seleção, da luta pela sobrevivência de vitáveis de todos os nossos esforços.
hipóteses submetidas à pressão da crítica, que é uma pressão de seleção A situação é diferente para ele na condição de homem de ação práti-
artificialmente intensificada. ca. Pois o homem de ação prática tem sempre que escolher entre alterna-
O mesmo se aplica ao problema psicológico da indução. Também tivas mais ou menos definidas, pois até a inação é uma forma de ação.
nesse caso estamos diante de hipóteses rivais que talvez possam ser cha- Entretanto, toda ação pressupõe um conjunto de expectativas, isto é,
madas de crenças, e algumas delas são eliminadas enquanto outras so- teorias sobre o mundo. Que teoria o homem de ação escolherá? Será que
brevivem, pelo menos temporariamente. É comum os animais serem eli- existe uma escolha racional?
minados junto com suas crenças ou então sobreviverem com elas. Os Isso nos leva aos problemas pragmáticos da indução, os quais, para co-
seres humanos frequentemente vivem mais do que suas crenças, mas elas, meçar, podemos formular da seguinte maneira:
enquanto sobrevivem (amiúde por prazos muito curtos), formam a base (1) Em que teoria devemos confiar, do ponto de vista racional, para
da ação (momentânea ou duradoura). empreender a ação prática?
Esse processo darwinista de seleção de crenças e ações não pode ser (2) Que teoria devemos preferir, do ponto de vista racional, para em-
descrito como irracional em nenhum sentido. Não entra em choque com . preender a ação prática?
a solução racional do problema lógico da indução; antes, é apenas a Minha resposta a (1) é: do ponto de vista racional, não devemos "con-
fiar" em nenhuma teoria, pois nenhuma foi nem pode ser comprovada
transferência da solução lógica para o campo psicológico. (Isso não sig-
como verdadeira (ou "confiável").
nifica que nunca sejamos afetados pelas chamadas "crenças irracionais")
Minha resposta a (2) é: devemos preferir a teoria mais bem testada
Assim, com a aplicação do princípio de transferência ao problema
como base para a ação.
psicológico de Hume, suas conclusões irracionalistas desaparecem.
Em outras palavras, não existe "confiança absoluta", mas, como temos
de escolher, é "racional" escolher a teoria mais bem testada. Isso será
x "racional" no sentido mais óbvio da palavra: a teoria mais bem testada é
aquela que, à luz de nosso debate crítico, parece ser a melhor até agora;
Até aqui, ao falar em preferência, analisei apenas a preferência dos teóri- não conheço nada mais "racional" do que um debate crítico bem con-
cos - quando eles a têm - e o motivo por que ela se inclina em favor duzido.
da teoria "melhor", ou seja, a mais testável e mais bem testada. É claro Como esse ponto não parece ter sido compreendido, tentarei refor-
, que o teórico pode não ter preferência nenhuma: pode ficar desanimado
l mulá-lo de um modo ligeiramente novo, que David Miller me sugeriu.
com a solução "céptica" de Hume (e com a minha) para o problema ló-

I
Esqueçamos por um momento quais são as teorias que "usamos" ou
gico de Hume; pode dizer que, sendo impossível ter certeza de encontrar "escolhemos", ou nas quais "baseamos nossas ações práticas", e conside-
a teoria verdadeira entre teorias rivais, não lhe interessa nenhum méto- remos apenas a proposta ou decisão resultantes (fazer X, não fazer X, não
do como o que foi descrito - nem mesmo se o método tomar razoavel- fazer nada e assim por diante). Tal proposta pode ser racionalmente criti-
mente seguro que, se houver uma teoria verdadeira entre as teorias pro- cada. Se somos agentes racionais, desejamos que ela sobreviva, se possí-
postas, ela estará entre as sobreviventes, as preferidas e corroboradas. vel, à crítica mais exigente que possamos imaginar. Mas essa crítica usará
., Todavia, um teórico "puro" mais otimista, mais dedicado ou mais curio- livremente as teorias científicas mais bem testadas que temos ao nosso al-
so pode animar-se com nossa análise para propor novas teorias rivais na cance. Por conseguinte, qualquer proposta que ignore essas teorias (quan-

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PARTE I • TEORIA DO CONHECIMENTO i CAPiTULO 7 • o PROBLEMA DA INDUÇÃO
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do elas forem relevantes, é claro) desmoronará diante da crítica. Se algu- na a nossa possibilidade de fazer algo a respeito dela quanto de um fe-
ma proposta suportar o peso da crítica rigorosa, será racional adotá-Ia. nômeno da natureza.)
Estamos muito longe de uma tautologia. Com efeito, a frase grifada Mesmo que pudéssemos ter certeza de que nossas teorias físicas e bio-
no último parágrafo poderia ser questionada: por que a crítica racional lógicas são verdadeiras, tudo isso se sustentaria. Mas não temos. Ao con-
usa as teorias mais bem testadas, apesar de elas serem pouco confiáveis? trário, temos ótimas razões para suspeitar até das melhores delas, o que,
A resposta é exatamente a mesma de antes. Decidir criticar uma propos- evidentemente, acrescenta outras infinidades às infinitas possibilidades
ta prática a partir do ponto de vista da medicina moderna (em vez de de catástrofe.
fazê-lo, digamos, em termos frenológicos) é uma espécie de decisão "prá- Esse tipo de consideração torna importantes a resposta negativa de
tica" (ou que, pelo menos, pode ter consequências práticas). Por isso, a Hume e a minha. Agora podemos ver com clareza por que devemos to-
decisão racional é sempre esta: adotar métodos críticos que tenham re-' mar cuidado para que nossa teoria do conhecimento não prove coisas de-
sistido, eles mesmos, a críticas severas. mais. Em termos mais exatos, nenhuma teoria do conhecimento deve ten-
É claro que existe aí uma regressão infinita, mas ela é evidentemente tar explicar por que temos êxito em nossas tentativas de explicar as coisas.
inofensiva. Mesmo que presumamos que tivemos êxito - ou seja, que nossas
Não estou particularmente interessado em negar (nem em afirmar, teorias físicas são verdadeiras -, podemos aprender com nossa cosmo-
aliás) que, ao escolhermos como base da ação a teoria mais bem testada, logia como esse êxito é infinitamente improvável: nossas teorias nos di-
"confiamos" nela, em determinado sentido da palavra. Ela pode até ser zem que o mundo é quase completamente vazio e o espaço vazio está
descrita como a teoria mais "confiável" que existe, em determinada acep- repleto de radiações caóticas. Quase todos os lugares não vazios são ocu-
ção desse termo. Mas isso não equivale a dizer que seja "confiável" É "in- pados por uma poeira caótica, gases ou estrelas quentíssimas - tudo em
digna de confiança", pelo menos no sentido em que, mesmo na ação prá- condições que parecem impossibilitar a aplicação de qualquer método
tica, sempre faremos bem em prever a possibilidade de que algo corra físico para adquirir conhecimento.
mal com ela e com as nossas expectativas. Existem muitos mundos, possíveis e reais nos quais a busca de conhe-
Nossa resposta negativa ao problema pragmático (1) não deve se es- cimento e de regularidades falharia. Mesmo no mundo tal como o co-
gotar nessa precaução trivial. Para compreender todo o problema, espe- nhecemos a partir das ciências, o surgimento de condições em que a vida
cialmente o que chamei de problema tradicional, é importantíssimo per- e a busca de conhecimento poderiam aparecer - e lograr êxito - pare-
ceber o seguinte: é "racional" escolhermos como base da ação a teoria ce quase infinitamente improvável. Ademais, mesmo que tais condições
mais bem testada, mas essa escolha não é"racional" no sentido de se ba- viessem um dia a aparecer, parece que estariam fadadas a desaparecer
sear em boas razões a favor da expectativa de que, na prática, ela se revele novamente depois de um intervalo curtíssimo, em termos cosmológicos.
exitosa; não pode haver boas razões nesse sentido, eis aí o resultado de É nesse sentido que a indução é indutivamente sem validade, como
Hume. Mesmo que nossas teorias físicas sejam verdadeiras, é perfeita- afirmei acima. Dito de outra maneira, qualquer resposta positiva vigo-
mente possível que o mundo, tal como o conhecemos, com todas as suas rosa ao problema lógico de Hume (digamos, a tese de que a indução é
regularidades, desintegre-se no próximo segundo. Isso deve ser óbvio válida) seria paradoxal. Pois, por um lado, se a indução é o método da
para qualquer um atualmente, mas eu o afirmei? antes de Hiroshima: há ciência, a cosmologia moderna está pelo menos aproximadamente cor-
uma infinidade de causas possíveis de desastres locais, parciais ou totais. reta (o que não contesto); por outro, a cosmologia moderna nos ensina
Do ponto de vista prático, é óbvio que não vale a pena nos incomo- que fazer generalizações a partir de observações realizadas em nossa re-
darmos com a maioria dessas possibilidades, pois nada podemos fazer a gião incrivelmente idiossincrática do universo seria quase sempre des-
seu respeito; elas estão fora do âmbito da ação. (É evidente que não in- provido de validade. Se a indução fosse "indutivarnente válida", quase
.,; cluo a guerra atômica entre os desastres que estão fora do alcance da sempre levaria a conclusões falsas; por isso, ela é indutivamente despro-
ação humana, embora a maioria de nós pense assim, já que é tão peque- vida de validade.

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