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Teoria das

Relações
Internacionais II

Prof.ª Mariana Balau Silveira

Indaial – 2021
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Mariana Balau Silveira

Copyright © UNIASSELVI 2021

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

S587t
Silveira, Mariana Balau

Teoria das relações internacionais II. / Mariana Balau Silveira


– Indaial: UNIASSELVI, 2021.
150 p.; il.
ISBN 978-65-5663-888-1
ISBN Digital 978-65-5663-884-3
1. Relações internacionais. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo
da Vinci.
CDD 327

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
A historiografia do campo das Relações Internacionais, amplamente
discutida em Teoria das Relações Internacionais I, é marcada pela narrativa de que
o entendimento de fenômenos internacionais evoluiu de maneira linear e focada na
produção do conhecimento majoritariamente vindo do norte global. Do primeiro debate
entre idealistas e realistas, passando pela discussão (e contraposição) entre ideias e
conceitos neorrealistas e neoliberais, essa compreensão das RIs baseada em visões
dicotômicas cumpre uma função pedagógica e de apresentação lógica das ideias.
Dessa narrativa derivam as noções de que é possível explicar fenômenos internacionais
a partir da primazia da guerra ou da possibilidade de cooperação entre Estados, e de que
a realidade social existe materialmente, pode ser observada e de que hipóteses sobre
os fenômenos internacionais podem ser criadas, testadas, confirmadas ou refutadas.

Durante décadas a narrativa sobre as Relações Internacionais foi limitada ao


que era produzido nos grandes centros, notadamente nos Estados Unidos e na Europa.
Isso não significa, porém, que não havia produção de conhecimento válido no sul
global – o que ocorreu foi a validação daquilo que vinha dos polos de poder mundiais,
em detrimento dos saberes e conhecimentos dos povos colonizados e subalternos.
Esse processo influenciou sobremaneira a autoimagem do campo e a própria política
internacional conduzida ao longo dos anos: são considerados válidos na arena
internacional os Estados, a política nos moldes ocidentais, as instituições criadas pelos
que “venceram” os grandes conflitos em nível global. Ficam à margem das discussões
as pautas relacionadas a raça, gênero e às consequências da colonização.

O objetivo do presente livro é introduzir os alunos à discussão sobre teorias


contemporâneas do campo das Relações Internacionais, lançando luz às abordagens
mais recentes e não-convencionais. A Unidade 1 enfatiza a Escola Inglesa, abordagem
que emerge nos centros britânicos de estudos de política internacional entre os anos
1950 e 1960 e tem como um de seus principais marcos a publicação seminal de “A
Sociedade Anárquica”, de Hedley Bull, em 1977. Os conceitos de sistema internacional,
sociedade internacional e sociedade mundial serão discutidos e compreendidos,
a fim de ampliar nossa visão acerca das tensões entre as instituições criadas para a
manutenção da ordem a as demandas por justiça na política internacional. Em seguida
a vertente normativa da Escola Inglesa, baseada em discussões filosóficas sobre moral
e ética aplicadas ao internacional, será compreendida. A última seção da unidade aplica
os conceitos estudados a estudos de caso específicos: guerra justa, justiça climática/
atmosférica e a entrada da China na denominada sociedade internacional.

Na Unidade 2 o foco é na discussão sobre a dualidade entre agente e estrutura


e o papel das identidades na política internacional. A teoria construtivista, considerada
amplamente um “meio-termo” entre as visões positivistas e pós-positivistas do campo,
será contemplada a partir da análise dos conceitos centrais desenvolvidos por autores
relevantes como Alexander Wendt e Nicholas Onuf. A última seção questiona os pontos
centrais da teoria e debate as possibilidades de um construtivismo crítico e sensível às
colonialidades, à raça e a gênero.

Estes últimos serão foco da Unidade 3, que tem como objetivo ampliar as
discussões teóricas propostas nos dois livros de Teoria das Relações Internacionais. A
ideia é revisitar a narrativa canônica e a própria fundação do campo, desconstruindo os
debates e identificando as relações de poder envolvidas na produção do conhecimento
e suas consequências. Nessa unidade abordaremos as teorias decoloniais e pós-
coloniais, além de analisar as RIs a partir de recortes de raça e gênero.

O presente livro é um convite ao aprofundamento no processo de entendimento


e explicação da política internacional e, principalmente, à valorização de temas e
personagens subalternizados, colonizados e esquecidos pela historiografia canônica do
campo.

Boa leitura!

Prof.ª Mariana Balau Silveira


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SUMÁRIO
UNIDADE 1 - A ESCOLA INGLESA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS................................ 1

TÓPICO 1 - A ESCOLA INGLESA EM LINHAS GERAIS............................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 COMUNIDADE E SOCIEDADE..............................................................................................5
3 DO SISTEMA INTERNACIONAL A SOCIEDADE MUNDIAL.................................................. 7
4 A RELAÇÃO ENTRE ORDEM E JUSTIÇA ........................................................................... 12
RESUMO DO TÓPICO 1.......................................................................................................... 21
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 22

TÓPICO 2 - A TEORIA NORMATIVA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS........................... 25


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 25
2 MORAL E ÉTICA NO ESTUDO DO INTERNACIONAL......................................................... 25
3 COSMOPOLITISMO E COMUNITARISMO.......................................................................... 28
4 PLURALISMO E SOLIDARISMO........................................................................................ 30
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 33
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 34

TÓPICO 3 - TEMAS DA TEORIA NORMATIVA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS............ 35


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 35
2 GUERRA JUSTA: DA VISÃO CRISTÃ À SECULARIZAÇÃO DO DEBATE.......................... 35
3 JUSTIÇA CLIMÁTICA........................................................................................................ 40
4 CONCLUSÃO: LIMITES E POSSIBILIDADES DA TEORIA NORMATIVA NAS RIS............. 44
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................. 46
RESUMO DO TÓPICO 3.......................................................................................................... 51
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 52
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 53

UNIDADE 2 — O CONSTRUTIVISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.......................... 55

TÓPICO 1 — AS CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA PARA O PENSAMENTO


CONSTRUTIVISTA.................................................................................................................57
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................57
2 INTERACIONISMO SIMBÓLICO E A VIRADA LINGUÍSTICA............................................. 58
3 A RELAÇÃO ENTRE AGENTE E ESTRUTURA EM GIDDENS............................................. 60
4 ESTRUTURA, SISTEMA E REPRODUÇÃO SOCIAL: A TEORIA DA ESTRUTURAÇÃO...... 61
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................... 64
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 65

TÓPICO 2 - O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA...........................................................67


1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................67
2 A DUALIDADE DA ESTRUTURA NO ENTENDIMENTO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL ..... 68
3 O QUARTO DEBATE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS................................................ 69
4 O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA............................................................................ 71
RESUMO DO TÓPICO 2..........................................................................................................75
AUTOATIVIDADE...................................................................................................................76
TÓPICO 3 - ABORDAGENS CANÔNICAS E CONTEMPORÂNEAS E DO CONSTRUTIVISMO....... 77
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 77
2 O CONSTRUTIVISMO REGRA-ORIENTADO: DE ONUF À MARTHA FINNEMORE............. 77
3 O CONSTRUTIVISMO ESTRUTURAL: WENDT E A POPULARIZAÇÃO DO
CONSTRUTIVISMO............................................................................................................... 84
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................. 92
RESUMO DO TÓPICO 3..........................................................................................................97
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 98
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................99

UNIDADE 3 — ABORDAGENS CRÍTICAS E DECOLONIAIS DAS RELAÇÕES .................... 101


INTERNACIONAIS............................................................................................................... 101

TÓPICO 1 — AS RAÍZES COLONIAIS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.........................103


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 103
2 A FUNDAÇÃO DO CAMPO REVISITADA.......................................................................... 104
3 ABORDAGENS PÓS-COLONIAIS.....................................................................................106
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................ 115
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 116

TÓPICO 2 - RACISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS.....................................................117


1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................117
2 POR QUE A DISCUSSÃO SOBRE RACISMO IMPORTA NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS?..............................................................................................................117
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................ 127
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................128

TÓPICO 3 - O GÊNERO ENQUANTO CATEGORIA ANALÍTICA DE RELAÇÕES


INTERNACIONAIS...............................................................................................................129
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................129
2 POR QUE A DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO IMPORTA?....................................................130
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................ 141
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................ 147
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................148
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................149
UNIDADE 1 -

A ESCOLA INGLESA
NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender os elementos centrais da Escola Inglesa do campo das Relações Inter-


nacionais;

• conceituar e relacionar as noções de ordem e justiça;

• diferenciar os conceitos de sistema internacional, sociedade internacional e socieda-


de mundial;

• entender as dimensões ética e moral da política internacional a partir da compreen-


são da Teoria Normativa das Relações Internacionais.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoati-
vidades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A ESCOLA INGLESA EM LINHAS GERAIS


TÓPICO 2 – A TEORIA NORMATIVA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
TÓPICO 3 – TEMAS DA TEORIA NORMATIVA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
A ESCOLA INGLESA EM LINHAS GERAIS

1 INTRODUÇÃO

O presente tópico tem como principal objetivo apresentar as contribuições


gerais da Escola Inglesa das Relações Internacionais. O que se conhece hoje como
Escola Inglesa tem suas origens no denominado Comitê Britânico de Teoria da Política
Internacional – um grupo de acadêmicos proeminentes no campo da ciência política
e no estudo da política internacional, que se reuniu durante o fim dos anos 1950 e
início dos anos 1960, com o objetivo de refletir sobre questões relevantes das relações
internacionais. Dentre os autores mais relevantes dessa escola destacaram-se,
inicialmente, acadêmicos como Hedley Bull, Martin Wight e Adam Watson, que a partir de
suas obras influenciaram a expansão da compreensão acerca da política internacional.

ATENÇÃO
O COMITÊ BRITÂNICO DE TEORIA DA POLÍTICA INTERNACIONAL

As contribuições do Comitê Britânico são usualmente compreendidas


em três fases: (1) as discussões sobre a natureza da Teoria de Relações
Internacionais e as possibilidades de se estabelecer uma ordem dada
a condição de anarquia internacional; (2) análise comparativa de
sistemas estatais e, por fim, (3) análise sobre a emergência da sociedade
internacional europeia e o impacto da colonização e dos processos de
descolonização nas regras e instituições da sociedade internacional
globalizada.

FIGURA 1 – O COMITÊ BRITÂNICO DE TEORIA DA POLÍTICA INTERNACIONAL

FONTE: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:British_Committee.jpg>. Acesso em: 21 set. 2021.

3
Com o objetivo de oferecer um entendimento mais amplo e completo das
relações internacionais, a Escola Inglesa destinou-se inicialmente à busca por respostas
à seguinte pergunta: “como incorporar o aspecto cooperativo das relações internacionais
à concepção realista acerca da natureza conflituosa do sistema internacional?”
(ROBERSON, 2002, p. 13).

Esse questionamento é particularmente relevante tendo em vista a localização


da teoria – principalmente em suas contribuições primárias – nos debates teóricos no
campo. A maioria dos manuais e materiais historiográficos as localiza no segundo debate,
denominado “metodológico”, e considera a Escola Inglesa parte do tradicionalismo do
campo.

Isso significa que, em oposição à crescente valorização do behaviorismo nos


anos 1960 – tanto no campo específico das Relações Internacionais, quanto na Ciência
Política de modo geral – autores como Bull e Watson defendiam a valorização da História,
da compreensão e interpretação da política internacional, em oposição à busca por
explicação e valorização de pesquisas quantitativas.

ATENÇÃO
O SEGUNDO DEBATE TEÓRICO E A IMPORTÂNCIA DO MÉTODO

Conforme discutido em “Teoria das Relações Internacionais I”, ainda que a maioria dos debates
não tenha ocorrido diretamente – em termos de confrontações diretas e direcionadas – o
que estava em jogo era a contraposição de ideias e interpretações distintas sobre a política
internacional, o que os caracteriza amplamente como “debates”. Particularmente no
segundo, a discussão foi majoritariamente metodológica. Quase
seis décadas após a criação formal do campo a preocupação deixa
de ser unicamente “o que estudar em RI?” e passa a incorporar
a discussão sobre “como estudar RI”? O contexto das ciências
sociais era marcado, nos anos 1960, pela valorização de métodos
científicos quantitativos e do behaviorismo como abordagem
válida na análise das sociedades. Nessa conjuntura, Hedley Bull
publica um artigo intitulado “International Theory: the case for a
Classical Approach”, em 1966, defendendo uma análise filosófica,
tradicional e clássica da política internacional. Em contraposição
à Bull, Morton Kaplan publica no mesmo ano o artigo “The New
Great Debate: traditionalism vs. Science in International Relations”,
rearfirmando a relevância do behaviorismo e do critério científico
na produção do conhecimento no campo.

4
Nesse tópico serão apresentados os conceitos de comunidade e sociedade na
perspectiva de Ferdinand Tönnies, visando ao seu entendimento e o estabelecimento
das bases do pensamento da Escola Inglesa. Em seguida serão exploradas as obras
seminais de Hedley Bull, Martin Wight e Adam Watson, com o objetivo de compreender a
relação entre ordem e justiça e a diferença entre três dimensões centrais no pensamento
inglês: sistema internacional, sociedade internacional e sociedade mundial.

2 COMUNIDADE E SOCIEDADE
O conceito de sociedade e suas implicações é central no desenvolvimento
teórico da Escola Inglesa. Em contraposição à abordagem realista, que nos anos 1940
e 1950 defendia que a interação entre os Estados ocorria em um sistema internacional
sem autoridade superior – e, portanto, anárquico – a Escola Inglesa aponta a existência
de instituições, derivadas principalmente do compartilhamento de valores e interesses
comuns (BULL, 1977).

Essa diferença exigiu a ampliação da compreensão da política internacional


para além da noção de sistema internacional, que era amplamente reduzida à existência
de um grupo de Estados, partes de um todo, cujas ações geram impacto recíproco entre
si. A diferença entre os conceitos de sistema e sociedade internacional será discutida na
última seção do presente tópico.

A ampliação citada exigiu o estudo detalhado do conceito de sociedade a partir


das principais contribuições de acadêmicos do campo da Sociologia, como Max Weber
e Ferdinand Tönnies. Ambos os autores alemães, em momentos distintos de suas
trajetórias acadêmicas, utilizaram as categorias analíticas “gemeinschaft” (comunidade)
e “gesellschaft” (sociedade) visando o entendimento das interações entre indivíduos e
melhor compreensão dos agrupamentos sociais.

Uma das obras mais relevantes sobre o tema é o livro “Comunidade e Sociedade”,
publicado por Tönnies em 1887. Em linhas gerais, o autor dedicou-se ao entendimento
das interações sociais e da sociedade de modo geral, particularmente a partir da noção
de mudança social e das tradições e crenças que guiam os indivíduos. O livro é até
hoje um dos principais guias acadêmicos para o entendimento das categorias sociais
e para a análise das diferentes sociedades – aqui reside sua principal relevância para a
abordagem societária das RIs, ou Escola Inglesa.

Segundo o autor, a vontade social seria passível de transformação ao longo


da história e o desenvolvimento dos indivíduos se daria através de dois formatos de
coletividade: as comunidades e as sociedades. Uma comunidade pode ser definida
como um grupo de pessoas que compartilha tradições, crenças ou objetivos. Tönnies
utiliza o termo para descrever grupos que ativamente mantêm sua ligação como, por
exemplo, igrejas ou outras instituições religiosas. Nesse caso, aqueles que frequentam

5
a igreja regularmente formam relacionamentos com outros fiéis de modo a criar laços,
compartilhar crenças, valores e tradições. Em uma comunidade a tendência é haver
um certo “senso de suporte” e coletividade, o que sustentaria um sentimento de
pertencimento entre os membros (TÖNNIES, 1988).

Relações comunitárias também caracterizam os laços entre parentes, cônjuges,


amigos, ou qualquer grupo de indivíduos que ordenam sua vida de modo comum. O
autor divide essas relações em três tipos: relações autoritárias, de companheirismo e
mistas.
As relações autoritárias seriam aquelas nas quais há desigualdade de força,
poder e autoridade – a relação entre pais e filhos, por exemplo. A segunda categoria diz
respeito a relações em que há companheirismo, típicas da interação entre irmãos. As
relações mistas, por fim, seriam aquelas que combinariam as duas formas anteriores:
como as relações entre cônjuges (TÖNNIES, 1988).

Em contraposição à primeira categoria, o conceito de sociedade pressupõe


relações informais e mais impessoais. O surgimento desse tipo de agrupamento
humano se daria no contexto de passagem da vida rural para o modo de vida urbano.
Conforme as cidades cresciam e se urbanizavam, principalmente a partir da Revolução
Industrial e da expansão capitalista, menores passam a ser os vínculos e ligações entre
indivíduos e menos comunitárias passam a ser as relações. As novas classes sociais,
como os comerciantes, voltariam à atenção muito menos às suas comunidades e mais
ao potencial do mercado no meio urbano.

O autor descreve esse processo como uma espécie de transição do predomínio


da vontade natural para a vontade arbitrária – ou seja, o enfraquecimento de relações
caracterizadas por laços afetivos, familiares, pela tradição e costume e o fortalecimento
do cálculo racional e do interesse individual. Tönnies afirma que “se na comunidade
os indivíduos permanecem unidos, apesar de todas as separações, na sociedade
permanecem separados, não obstante todas as uniões” (TÖNNIES, 1988, p. 65).

O conceito de “vontade arbitrária” citado, característico das relações em


sociedade, seria produto da sociabilidade orientada para o mercado. Os indivíduos,
cientes de seus interesses, se relacionariam uns com os outros a partir do cálculo de
custo-benefício, buscando sempre maximizar seus ganhos com o menor custo possível
(TÖNNIES, 1988).

O quadro abaixo resume, em linhas gerais, as diferenças entre o modo de vida


comunitário e o modo de vida societário:

6
QUADRO 1 – OS CONCEITOS DE COMUNIDADE E SOCIEDADE
EM FERDINAND TÖNNIES

COMUNIDADE SOCIEDADE
MODO DE UNIÃO Afetivo Objetivo-Contratual

Vida de família (hábitos); Vida na metrópole (convenção);


CONVIVÊNCIA vida de aldeia (costumes); vida nacional (polítca, Estado);
EXTERNA vida urbana (religião); vida cosmopolita (opinião
pública);

TIPO DE OCUPAÇÃO
E TENDÊNCIA Economia doméstica, Comércio (contrato); indústria
DOMINANTE DE agricultura, artes, religião. (planejamento); ciência
ORIENTAÇÃO (imprensa, opinião pública).
ESPIRITUAL
FONTE: A autora (2021)

Em ambas as formas de agrupamento humano, que podem coexistir


historicamente, os indivíduos exercem um papel central. Na comunidade, o indivíduo
possui um senso de pertencimento a uma comunidade e contribui para as vidas dos
outros membros. Como parte de uma sociedade, o mesmo indivíduo pode contribuir
para o funcionamento da economia e para a estabilização social. A diferença central
residiria na natureza dos relacionamentos: enquanto na comunidade há afeto,
compartilhamento de experiências e tradições, nas sociedades as relações seriam
muito mais instrumentais e orientadas para os ganhos individuais (TÖNNIES, 1988).

Essas definições do autor, ainda que discutidas aqui de modo breve e amplo,
são úteis para o entendimento das bases do pensamento de acadêmicos como Bull,
Wight e Watson, discutidos a seguir.

3 DO SISTEMA INTERNACIONAL A SOCIEDADE MUNDIAL


Os anos 1950 foram marcados, em termos empíricos, pelas consequências
políticas, sociais e econômicas do pós-Segunda Guerra Mundial. A multiplicação gradual
de organizações, regimes e instituições internacionais, além da crescente rivalidade
entre os dois maiores polos de poder mundiais – Estados Unidos e União Soviética – são
destaques desse contexto político global.

No campo da Ciência Política de modo geral, e nas Relações Internacionais em


específico, a produção do conhecimento à época passou a ser cada vez mais focada na
adoção de métodos “científicos” a partir do behaviorismo como método. A observação
acurada do comportamento dos atores internacionais e análises estatísticas de um

7
conjunto amplo de dados passaram a ser o “modus operandi” teórico mais aceito e
publicado na academia, influenciando o modo como a política internacional era
analisada, explicada e compreendida.

IMPORTANTE
O behaviorismo foi criado a partir de um movimento nos campos
da Psicologia e Filosofia no início do século XX, em defesa da
análise de aspectos comportamentais e da observação empírica
(real, objetiva) dos objetos de estudo. Metodologicamente, o
behaviorismo influenciou pesquisas nos campos da Sociologia,
Ciência Política e Relações Internacionais, em direção a um
predomínio de aspectos objetivos, observáveis, “palpáveis” –
sentimentos, pensamentos (elementos subjetivos) não seriam
considerados “científicos” ou passíveis de análise científica
propriamente dita.

Em contraposição a essa tendência, o Comitê Britânico – anteriormente citado


– organiza uma série de análises e reflexões com o objetivo de defender uma forma
de teoria internacional que seria muito menos “científica” no sentido behaviorista do
termo, e muito mais próxima de “um estudo da filosofia política a partir da compreensão
das principais tradições anteriores das Relações Internacionais” (BULL, 1991, p. 10). A
proposta seria, então, de valorização da história, da compreensão e interpretação da
política internacional, em oposição à proposição de hipóteses testáveis e de relações
de causalidade.

Um dos pontos de partida desse esforço de compreensão das tradições teóricas


anteriores foi a organização das abordagens e premissas teóricas em esquemas mais
simples, inteligíveis e didáticos. Martin Wight (1913-1972) foi um dos precursores desse
esforço na Escola Inglesa de pensamento no campo das Relações Internacionais.

8
FIGURA 2 – MARTIN WIGHT (1913-1972)

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3f/Wight.JPG>. Acesso em: 20 set. 2021.

Wight (1987) afirma que a importância de entender o que havia sido produzido
até aquele momento no campo era compreender e comparar as principais “respostas
dadas pelos teóricos acerca da natureza da sociedade internacional” (WIGHT, 1987, p.
222). O objetivo era identificar os objetivos e valores compartilhados pelos Estados
na manutenção da ordem internacional – aqui é importante ressaltar que o foco
foi na compreensão da Europa ocidental e do sistema de Estados europeus, não
necessariamente dos agrupamentos humanos na África, América Latina ou Ásia (a
última seção da unidade problematiza e aponta as consequências dessa ênfase na
experiência europeia).

Refletindo sobre o primeiro debate, entre Idealismo e Realismo Político – discutido


amplamente em “Teoria das Relações Internacionais I” – Wight critica o foco excessivo
dos autores em períodos específicos da história e afirma que seria dúbio considerar
válidas análises que se baseiam em fragmentos históricos, não nos processos mais
amplos da política e da economia das sociedades europeias. O autor também acreditava
que resumir a teorização do campo a duas visões quase opostas privilegiava a visão de
que a explicação da política internacional poderia ser resumida a extremos.

Essas são as principais justificativas para a organização do pensamento sobre


política internacional em três principais tradições – que não seriam excludentes e
poderiam ser combinadas na compreensão do internacional: Realismo, Racionalismo
e Revolucionismo, os denominados “3 Rs” ou “Três Tradições” da teoria da política
internacional. A ideia era compará-las quanto à interpretação da sociedade internacional,
conceito central para a Escola Inglesa.

9
Wight (1987) afirma que o realismo seria muito mais influenciado pelo pensamento
de Nicolau Maquiavel do que pelas contribuições de Thomas Hobbes. Nessa tradição,
conforme visto anteriormente, prevaleceria o pessimismo em relação à existência de
uma sociedade internacional – no sentido da identificação mútua de valores e interesses
comuns entre os Estrados. O que o autor denomina “revolucionismo” seria próximo da
visão de pensadores como Woodrow Wilson, Norman Angell e, especialmente, Immanuel
Kant sobre a política internacional. Essa visão seria mais otimista em relação à existência
de uma sociedade internacional, na medida em que veria além da realidade conflituosa e
acreditaria na possibilidade de formação de uma “comunidade da humanidade” (WIGHT,
1991, p. 41).

O racionalismo, por fim, seria baseado na concepção filosófica de Hugo Grotius


(1583-1645) acerca da natureza humana, pouco explorada pelas contribuições teóricas
do campo até aquele momento. A visão grotiana seria considerada o “meio-termo”
entre as tradições realista e revolucionista. Para a visão racionalista alguns indivíduos
seriam bons, outros ruins – do mesmo modo, alguns Estados tenderiam a se envolver
em conflitos internacionais, outros não. Nessa concepção haveria um grau de ordem na
sociedade internacional, derivado da construção de instituições e regras comuns aos
Estados.

O quadro abaixo resume as principais concepções das três tradições em relação


às suas visões acerca da história e os elementos centrais de cada uma delas:

FIGURA 2 – MARTIN WIGHT (1913-1972)

Tradição Visão sobre a História/ Elementos Centrais


Política Internacional
Realismo Pessimista Anarquia/Poder
(Hobbes/Maquiavel)
Racionalismo Cautelosa Ordem/Interação
(Grotius) Internacional
Revolucionismo Otimista Comunidade humana/
(Kant) Justiça

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3f/Wight.JPG>. Acesso em: 20 set. 2021.

As contribuições de Wight exerceram uma profunda influência no modo como


os acadêmicos de Relações Internacionais, principalmente no Reino Unido, passam
a enxergar o campo e as suas teorias. Um dos principais autores influenciados pelo
pensamento de Wight foi o pensador australiano, e um dos pensadores clássicos da
Escola Inglesa, Hedley Bull (1932-1985). Dentre várias obras relevantes na compreensão
da sociedade internacional, do papel das normas e regras e do direito internacional na
relação entre Estados, destaca-se “A Sociedade Anárquica” (1977).

10
Dois dos principais temas desenvolvidos por Bull foram o conceito de sociedade
internacional e a manutenção da ordem internacional. Em relação ao primeiro, uma
sociedade internacional seria assim definida quando “um grupo de Estados, conscientes
de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade no sentido de se
considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto de regras e participam
de instituições comuns” (BULL, 1977, p. 13).

Como o título de sua principal obra enfatiza, Bull defende a existência dessa
sociedade internacional, ainda que reconheça a ausência de autoridade acima dos
Estados (anarquia). O autor defende que a despeito da falta de governo central, os atores
seriam capazes de manter a ordem a partir de regras, normas e instituições comuns.

Essa ideia seria distinta da noção de “sistema internacional”, amplamente citada


e teorizada pela teoria realista. Segundo Bull, haveria sistema internacional “quando dois
ou mais Estados têm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recíproco nas
suas decisões, de tal forma que se conduzam, pelo menos até certo ponto, como partes
de um todo” (BULL, 1977, p. 12).

A principal diferença entre os dois conceitos reside na crença de Bull de que na


política internacional haveria a possibilidade de estabelecimento de instituições comuns
e compartilhamento de valores e interesses, elementos não considerados – ou vistos
como secundários – pelo realismo. É importante ressaltar que sociedade internacional
pressupõe um sistema internacional – ou seja, para que haja o reconhecimento de
interesses comuns entre os Estados é necessário que haja, ao menos, contato recíproco
entre eles.

Nesse sentido, a Escola Inglesa seria mais otimista em relação à possibilidade


de coexistência entre os Estados e se afasta do realismo na medida em que não crê em
uma política internacional caracterizada apenas pela busca por sobrevivência. Ao incluir
na análise o compartilhamento de normas e valores, a teoria avança no entendimento
das relações internacionais para além da primazia do conflito e, ao fazê-lo, desafia o
domínio norte-americano no campo. É importante ressaltar, porém, que mesmo que
a Escola Inglesa seja mais abrangente que o realismo, uma teoria não seria “melhor”
que a outra – conforme discutido anteriormente, teorias são “lentes”, “interpretações”
da política internacional, válidas e mais ou menos apropriadas de acordo com o objeto
estudado.

11
FIGURA 2 – HEDLEY BULL (1932-1985)

FONTE: London School of Economics and Political Science. Disponível em: <https://www.lse.ac.uk/interna-
tional-relations/centres-and-units/cis/The-Hedley-Bull-Lectures>. Acesso em: 21 set. 2021.

DICA
The Hedley Bull Lectures

O site da universidade britânica London School of Economics and


Political Science (LSE) possui uma vasta coleção de artigos, vídeos e
materiais de pesquisa que celebram o legado de Hedley Bull, intitulada
“The Hedley Bull Lectures”.
Confira: https://www.lse.ac.uk/international-relations/centres-and-
units/cis/The-Hedley-Bull-Lectures

Na tentativa de relacionar os dois conceitos centrais em sua obra, Bull propõe


respostas a três questões: “(I) em que consiste a ordem na política mundial?; (II) como
essa ordem é mantida dentro do atual sistema de Estados soberanos?; e (III) o sistema
de Estados soberanos ainda constitui um caminho viável para a ordem mundial?” (Bull,
1977, pg. 25). A seção a seguir aborda o conceito de ordem e a relação entre ordem e
justiça.

4 A RELAÇÃO ENTRE ORDEM E JUSTIÇA


Ciente da ausência de teorização mais extensa sobre o assunto no campo das
Relações Internacionais, Bull inicia suas reflexões sobre ordem observando como ela se
manifesta primeiramente na vida social. Uma das metáforas utilizadas pelo autor para a
compreensão do conceito é a da organização de livros em uma estante:

12
A METÁFORA DA ESTANTE DE LIVROS EM BULL:
O CONCEITO DE ORDEM NA VIDA SOCIAL

“Uma fileira de livros em uma estante exibe ordem, o que não acontece com um
monte de livros amontoados no chão. Mas quando falamos de ordem na vida social,
por oposição à desordem, não temos em mente qualquer padrão ou arranjo metódico
dos fenômenos sociais, mas sim uma estrutura de tipo especial” (BULL, 1977, p. 7).

“A ordem que se procura na vida social não é qualquer ordem ou regularidade nas
relações entre indivíduos ou grupos, mas uma estrutura de conduta que leve a um
resultado particular, ou arranjo na vida social que promove determinadas metas ou
valores. Nesse sentido, que implica um propósito, alguns livros exibem ordem quando
não se encontram simplesmente dispostos em fila, mas estão organizados de acordo
com o autor ou o assunto, servindo assim a um objetivo” (BULL, 1977, p. 8).

“Era essa concepção finalística que Santo Agostinho tinha em mente quando a definiu
assim: ‘uma boa disposição de elementos discrepantes, cada um deles ocupando o
lugar mais apropriado’” (BULL, 1977, p. 9).

A metáfora acima descrita é útil no entendimento do conceito de ordem porque


o relaciona a um objetivo: a organização dos livros varia de acordo com o objetivo de
quem o organiza (seja um indivíduo, ou um grupo) – o objetivo pode ser encontrar o
livro a partir do sobrenome do autor, ou de acordo com o assunto. Quando relacionamos
esse exemplo à manutenção da ordem na vida social, cabe refletir sobre quais são os
objetivos elementares (principais) dos indivíduos em sociedade. Bull afirma que seriam
três: (I) a proteção da vida; (II) a garantia do cumprimento das promessas; e (III) a garantia
das posses e propriedades. De modo sucinto: vida, verdade e propriedade.

O primeiro objetivo diz respeito a uma tensão amplamente discutida em “Teoria


das Relações Internacionais I”: a necessidade de preservação da vida por parte dos
indivíduos, principalmente no estado de natureza (em que não há um soberano que
garanta a segurança e a limitação do uso da força). O segundo, também presente
na contribuição dos contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau, é relacionado
à demanda por obediência às leis e regras como parte da garantia dos direitos dos
cidadãos em sociedade.

Por fim, a garantia da propriedade é vista como um objetivo dos indivíduos,


na medida em que não desejam estar sujeitos a violação de suas posses e almejam
a garantia de sua preservação. O autor, nesse sentido, afirma que “dificilmente seria
possível chamar de sociedade uma constelação de pessoas ou de grupos onde não
houvesse uma expectativa de segurança contra a violência, de cumprimento de acordos
e de estabilidade na posse da propriedade” (BULL, 1977, p. 9).

13
A manutenção da ordem em sociedade seria, portanto, o padrão de atividade
que sustenta os objetivos elementares – busca pela vida, verdade e propriedade – na
vida social. Seria a obediência a todas as regras, normas, leis (formais ou informais)
estabelecidas com o objetivo de garantir que esses objetivos sejam alcançados. Ordem
internacional, por consequência, seria então o “padrão de atividade que sustenta os
objetivos elementares da sociedade dos Estados, ou sociedade internacional” (BULL,
1977, p. 13). Ordem seria, então, uma condição efetiva ou possível, uma “situação
concreta da política mundial” (BULL, 1977, p. 91).

O que os Estados consideram objetivo elementar? Quais as prioridades desses


atores na sociedade internacional? Também à semelhança da vida social, os Estados
desejam sobreviver (manter suas fronteiras, sua população e sua soberania), defendem
a garantia da obediência às regras e normas internacionais e almejam a estabilidade das
posses. O padrão de atividade que visa a garantia desses objetivos seria parte central do
que se denomina “ordem internacional”.

O que seria, então, o “padrão de atividade” dos Estados na manutenção da ordem


internacional? Bull explora historicamente como as sociedades europeias estabeleceram
regras, leis e princípios com o objetivo de garantir vida, verdade e propriedade. Segundo
o autor, durante os séculos XV, XVI e XVII prevaleceu na Europa uma ordem baseada em
valores majoritariamente cristãos e na ideia de “direito natural”.

ATENÇÃO
AS NOÇÕES DE DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO

Direito natural seria uma doutrina que defende que os seres


humanos possuiriam valores intrínsecos que governariam sua
razão e o comportamento. A capacidade de julgar justo ou injusto
determinado comportamento, ação ou pensamento, segundo essa
visão, seria inerente aos indivíduos, ou dada por Deus. Alguns dos
pensadores mais influentes do direito natural incluem Aristóteles
(384-322 a.C), São Tomás de Aquino (1224-1274) e John Locke
(1632-1704). Direito positivo, em contraposição, seria a doutrina
que aponta o estabelecimento de leis, regras, direitos e deveres
em sociedades específicas a partir de estatutos, constituições, etc.
Essas regras seriam mantidas por instituições, como a polícia e o
poder judiciário, por exemplo. Seriam exemplos de pensadores
do direito positivo autores como Hans Kelsen (1881-1973) e Lassa
Oppenheim (1858-1919).

14
Ao longo da história, e com a secularização das sociedades, a ordem passa a
ser mantida a partir de instituições e regras identificáveis na prática dos Estados. Duas
instituições, principalmente, seriam centrais na preservação da ordem internacional:
a balança de poder e o direito internacional. Em relação à primeira, ela teria três
funções na sociedade internacional: evitar que o sistema de Estados se transforme em
um império; proteger a independência dos Estados e prover as condições para que as
outras instituições operem.

Nesse sentido, a guerra foi historicamente parte desse processo. Segundo o


autor: “a guerra desempenha também um papel fundamental na manutenção da ordem
internacional, no fortalecimento do direito internacional, na preservação do equilíbrio
de poder e na realização de mudanças consideradas consensualmente como justas”
(BULL, 1977, p. 108). Ela determinaria quais Estados em particular sobrevivem, ou quais
serão eliminados, se vão emergir como grandes potências ou não, se suas fronteiras
permanecerão as mesmas, ou serão modificadas.

A segunda instituição central na manutenção da ordem, o direito internacional,


seria importante na definição de limites e possibilidades da ação dos Estados. Nesse
sentido, convenções, tratados e organizações internacionais (como a Organização das
Nações Unidas - ONU) seriam os principais instrumentos. Ao analisar a Carta de São
Francisco, que estabelece a criação e manutenção da ONU, fica evidente a defesa da
ordem internacional, a partir dos princípios de paz e segurança:

Preâmbulo da Carta da ONU

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras


do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos
indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem,
na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das
mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições
sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras
fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social
e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.

E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons
vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais,
e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força
armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo
internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos.

15
RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES
OBJETIVOS

Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes


reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que
foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das
Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que
será conhecida pelo nome de Nações Unidas.

É importante ressaltar que os princípios refletem os valores dos países


fundadores da organização, principalmente as grandes potências vencedoras da II
Guerra Mundial: Estados Unidos, Reino Unido, França, China, e União Soviética. Segundo
o autor, as grandes potências contribuiriam para a ordem internacional de duas formas:
administrando seu relacionamento bilateral e explorando sua preponderância no sentido
de “centralizar os assuntos do conjunto da sociedade internacional” (BULL, 1977, p. 237).

As grandes potências administram suas relações para a manutenção da ordem


quando “(I) preservam o equilíbrio geral de poder; (II) procuram evitar ou controlar as
crises no seu relacionamento recíproco; (III) buscam limitar ou conter as guerras entre
si; (IV) respeitam mutuamente suas esferas de influência” (BULL, 1977, p. 237).

Segundo Bull e Adam Watson (1914-2007), outro importante pensador da


Escola Inglesa, a expansão de regras e instituições da sociedade europeia para o resto
do mundo foi acelerada a partir da revolta contra a dominação ocidental. A busca por
igualdade de soberania e as lutas anticoloniais por independência, igualdade racial,
justiça econômica e libertação cultural tiveram expressão legal. Os principais exemplos
incluem a resolução 1514 da Assembleia Geral (discutida no quadro abaixo), a aprovação
das convenções da ONU sobre Direitos Humanos, dentre outros mecanismos legais.

Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais

Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral de 14 de dezembro de 1960

A Assembleia Geral,

Levando em consideração que os povos do mundo proclamaram na Carta das Nações


Unidas que estão decididos a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre os homens e
as mulheres e das nações grandes ou pequenas, e a promover o progresso social e a
elevar o nível de vida dentro de um conceito amplo de liberdade,

16
Consciente da necessidade de criar condições de estabilidade e bem-estar e relações
pacíficas e amistosas baseadas no respeito aos princípios de igualdade de direitos
e à livre determinação dos povos, e de assegurar o respeito universal dos direitos
humanos e as liberdades fundamentais para todos sem fazer distinção por motivo de
raça, sexo, idioma ou religião, e a efetividade de tais direitos e liberdades,

Reconhecendo o fervoroso direito que todos os povos possuem dependentes e o


papel decisivo de tais povos na conquista de sua independência,

Consciente dos crescentes conflitos que surgem do ato de negar a liberdade a esses
povos e de impedi-la, o qual constitui uma grave ameaça à paz mundial,

Considerando o importante papel que corresponde às Nações Unidas como meio


de favorecer o movimento em prol da independência em territórios ocupados e em
territórios não autônomos,

Reconhecendo que os povos do mundo desejam ardentemente o fim do colonialismo


em todas as suas manifestações,

Convencida que a continuação do colonialismo impede o desenvolvimento da


cooperação econômica internacional, dificulta o desenvolvimento social, cultural e
econômico dos povos dependentes e age contra o ideal de paz universal das Nações
Unidas,

Afirmando que os povos podem, para seus próprios fins dispor de suas riquezas e
recursos naturais sem prejuízo das obrigações resultantes da cooperação econômica
internacional, baseada no princípio do proveito mútuo e do direito internacional,

Acreditando que o processo de liberdade é irresistível e irreversível e que a fim de evitar


crises graves, é preciso pôr fim ao colonialismo e a todas as práticas de segregação e
discriminação que o acompanham,

Celebrando que nos últimos anos muitos territórios dependentes tenham alcançado a
liberdade e a independência e reconhecendo as tendências cada vez mais poderosas
em direção á liberdade que se manifestam nos territórios que não tenham obtido
ainda sua independência,

Convencida de que todos os povos têm o direito inalienável à liberdade absoluta, ao


exercício de sua soberania e à integridade de seu território nacional,

Proclama solenemente a necessidade de pôr fim rápido e incondicional ao colonialismo


em todas as suas formas e manifestações;

17
Declara que:
1. A sujeição dos povos a uma subjugação, dominação e exploração constitui uma
negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas
e compromete a causa da paz e da cooperação mundial;
2. Todos os povos têm o direito de livre determinação; em virtude desse direito,
determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu
desenvolvimento econômico, social e cultural.
3. A falta de reparação na ordem política, econômica e social ou educativa não deverá
nunca ser o pretexto para o atraso da independência.
4. A fim de que os povos dependentes possam exercer de forma pacífica e livremente
o seu direito à independência completa, deverá cessar toda ação armada ou toda e
qualquer medida repressiva de qualquer índole dirigida contra eles, e deverá respeitar-
se a integridade de seu território nacional.
5. Nos territórios, sem condições ou reservas, conforme sua vontade e seus desejos
livremente expressados, sem distinção de raça, crença ou cor, para lhes permitir
usufruir de liberdade e independência absolutas.
6. Toda tentativa encaminhada a quebrar total ou parcialmente a unidade nacional e
a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da
Carta das Nações Unidas.
7. Todos os estados devem observar fiel e estreitamente as disposições da Carta
das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos e da presente
declaração sobre a base da igualdade, da não intervenção nos assuntos internos
dos demais Estados e do respeito aos direitos soberanos de todos os povos e de sua
integridade territorial.

Essa expansão evidencia que, a despeito de paz e segurança serem tratadas


como objetivos primários da ONU, e a promoção de direitos humanos e de justiça
internacional como secundários, resoluções como a supracitada mostram que estados
africanos e asiáticos se empenharam historicamente em inverter essa ordem de
prioridade. Esse esforço ressalta outro elemento importante da política internacional: a
busca por justiça.

Qual seria, então, a relação entre os princípios de ordem e justiça? Bull afirma
que, ao contrário de ordem, justiça seria um termo que só poderia ser definido de modo
pessoal ou subjetivo. Internacionalmente, seriam “as regras morais que atribuem direitos
e deveres aos Estados e nações” (BULL, 1977, p. 202). Segundo o autor, não haveria
incompatibilidade entre ordem e justiça, mas a política internacional seria permeada
pela tensão entre Estados preocupados com a preservação da ordem e as aspirações
por justiça.

18
Desse modo, ao mesmo tempo em que há regras e instituições – como guerra,
balança de poder e até o direito internacional – que sustentam a ordem na sociedade
de Estados (ao longo da história mantidas majoritariamente pelas grandes potências
e países ocidentais), há um conjunto de exigências por justiça e reparação (realizadas
principalmente pelas antigas colônias e/ou países insatisfeitos com as disposições da
ordem vigente) na política internacional.

Dessa relação emerge duas questões centrais que permeiam as reflexões da


Escola Inglesa: se, e como, a sociedade internacional de Estados soberanos é capaz
de atender as demandas por ordem e justiça?; entre ordem e justiça, qual deve ter
prioridade? Bull aponta três doutrinas para responder esse questionamento, descritas
abaixo:

1. Visão Conservadora: reconhece a existência de um conflito entre os valores da


ordem e da justiça – e atribui maior importância ao primeiro em relação ao segundo.
Para essa visão, a sociedade internacional seria uma sociedade na qual os Estados
devem esperar o mínimo de coexistência.

2. Visão Revolucionária: baseada na ideia, à semelhança da visão conservadora, de


que haveria um conflito entre ordem e justiça. Ao contrário da primeira visão, porém,
nessa perspectiva a justiça é considerada valor supremo. “Que se faça justiça, mesmo
que o mundo pereça.” (BULL, 1977, p. 110). Essa visão não acredita que o mundo de
fato vá parecer, mas esperam uma ordem que garanta as mudanças justas que
desejam implementar.

3. Visão liberal (ou progressista): aponta possibilidades de conciliação entre a


manutenção da ordem e a busca por justiça na política mundial. O pensamento
liberal observa a correção das injustiças como uma forma de fortalecimento da
ordem. Exemplos incluiriam a busca pelo fim da segregação racial na África do Sul e
os processos de descolonização durante o século XX.

As contribuições dos autores discutidos até aqui permitiram a Escola Inglesa


evoluir no entendimento das instituições, normas e regras internacionais e abriram
espaço para a reflexão sobre moralidade, ética e responsabilidade dos Estados. Refletir
sobre como ordem e justiça se relacionam na sociedade de Estados envolve a análise
histórica da formação dessa sociedade e das razões pelas quais os princípios de
manutenção da ordem refletem visões de mundo específicas. O próximo tópico discutirá
a teoria normativa, uma das vertentes da Escola Inglesa do campo das Relações
Internacionais.

19
DICA DE FILME
A trilogia “Senhor dos Aneis”, conhecida do grande público e baseada
nas obras de J.R.R. Tolkien, pode ajudar a elucidar alguns dos conceitos
estudados pela Escola Inglesa. Um exercício interessante é assistir os
filmes e questionar-se: quais as visões de cada uma das sociedades
ilustradas (condado, Valfenda, Mordor) acerca da relação entre
ordem e justiça? Complemente os estudos com a leitura do livro “The
International Relations of Middle-Earth: learning from the Lord of the
Rings”, de Abigail Ruane e Patrick James.

20
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Comunidade e sociedade são dois conceitos importantes no entendimento dos


agrupamentos humanos e do comportamento dos indivíduos na vida social.

• A Escola Inglesa nasce a partir das contribuições do Comitê Britânico de Teoria da


Política Internacional, formado por acadêmicos proeminentes do Reino Unido.

• O Comitê Britânico dedicou-se à historiografia do campo das Relações Internacionais,


reconstruindo os debates teóricos e compreendendo as premissas centrais de cada
uma das tradições.

• Um dos resultados mais conhecidos desse esforço foi a narrativa das “Três Tradições”,
defendida por Martin Wight, que apresenta o realismo, revolucionismo e racionalismo
como três vertentes do pensamento teórico em Relações Internacionais.

• Sistema Internacional, Sociedade Internacional, Ordem e Justiça são os conceitos


centrais da obra de Hedley Bull (1977). A tensão entre os dois últimos permearia boa
parte das interações entre os Estados nas relações internacionais.

21
AUTOATIVIDADE
1 Em contraposição à incorporação da visão hobbesiana do estado de natureza
pela literatura norte-americana, autores da Escola Inglesa, como Manning e Bull,
desenvolvem uma discussão em torno do conceito de sociedade internacional,
cunhado por Hugo Grotius no século XVII. Tal conceito permite a compreensão
da formação de normas internacionais tácitas ou explícitas, ou seja, instituições
internacionais, e traz para o campo das relações internacionais o debate sociológico
a respeito da origem das normas sociais. Assim, alguns autores enfatizam a formação
de uma cultura internacional, ao passo que outros buscam detectar a existência de
interesses comuns das partes atomizadas.

HERZ, M. Teoria das Relações Internacionais no Pós Guerra Fria. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n.2, 1997
(adaptado).

Em face desse assunto, avalie as afirmações a seguir a respeito dos conceitos da Escola
Inglesa.

I- Entre os principais pressupostos para uma sociedade internacional, estão a defesa da


soberania (interna e externa), o poder militar associado e o desemprenho econômico
como emancipação.
II- O caráter anárquico do sistema internacional e a falta de governo central com
capacidade de fazer respeitar as leis não impedem a existência da sociedade
internacional com membros heterogêneos.
III- O conceito de sociedade internacional pressupõe a existência de um grupo de
Estados que, conscientes de certos valores e interesses comuns, participam de
instituições comuns e se consideram ligados por um conjunto de regras que regem
suas relações.
IV- O conceito de sociedade mundial é baseado em um entendimento de mundo
kantiano, que leva em consideração a humanidade em seu conjunto como base para
a moralidade global.

É correto apenas o que se afirma em:


a) I e II.
b) II e III.
c) III e IV.
d) I, II e IV.
e) II, III e IV.

2 Quais as diferenças entre os conceitos de comunidade e sociedade em Ferdinand


Tönnies? O que caracterizaria a mudança de um agrupamento em relação ao outro?

22
3 Segundo Bull (1977), qual a relação entre a manutenção da ordem na sociedade
internacional e as reivindicações por justiça na sociedade mundial?

4 Quais as principais diferenças entre os conceitos de sistema internacional e sociedade


internacional, teorizados em Bull (1977)?

5 Em que medida as contribuições de Bull aproximam-se da visão realista política? Em


que medida são distintas?

23
24
UNIDADE 1 TÓPICO 2 - A
TEORIA NORMATIVA NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS

1 INTRODUÇÃO
Conforme discutido no tópico anterior, a Escola Inglesa contribuiu para a
inclusão da discussão sobre moralidade e ética no campo das Relações Internacionais.
Isso não significa, porém, que as reflexões sobre responsabilidade estatal, justiça na
guerra e ética na condução da política não estivessem presentes historicamente nos
campos da Filosofia, Ciências Sociais e Ciência Política.

O presente tópico remonta as origens da teoria normativa, contrapondo as


visões dos autores que afirmam que a discussão é antiga e aqueles que defendem ser
um campo recente de estudos, alinhado à Escola Inglesa. A primeira seção é dedicada à
reflexão sobre a importância dos conceitos de moral e ética nas relações internacionais,
a partir das contribuições, tanto de autores clássicos como Platão, Aristóteles, Marx,
Hegel e Kant, como de autores contemporâneos. A segunda seção avança na discussão
sobre as visões cosmopolita e comunitarista da sociedade internacional. A seção três
por fim, encerra a reflexão aqui objetivada, trazendo a contribuição de Barry Buzan, um
dos expoentes mais importantes da Escola Inglesa de modo geral, e da teoria normativa
em específico.

2 MORAL E ÉTICA NO ESTUDO DO INTERNACIONAL


Os acontecimentos da política internacional através dos anos possuem uma
dimensão ética que se faz presente, principalmente, no debate público. Quando, por
exemplo, acontece um ataque terrorista como o ocorrido em 11 de Setembro nos
Estados Unidos, a mídia e a opinião pública geralmente debatem questões relacionadas
à responsabilidade estatal, à moralidade, à “culpa” do ocorrido. Também é possível
identificar julgamentos e posições morais nos discursos de lideranças políticas – quando
um chefe de Estado declara ter responsabilidade moral de agir dessa, ou daquela, forma,
ou quando julga justa ou injusta determinada conduta.

25
GIO
A DIFERENÇA ENTRE ÉTICA E MORAL

As noções de ética e moral, muitas vezes discutidas de modo


intercambiável, são distintas, ainda que relacionadas em vários
aspectos. Enquanto a moral diz respeito a um conjunto de princípios
que definem o que seria certo ou errado em determinada sociedade,
cultura e/ou religião, a ética seria um sistema de princípios morais, mais
fixo e mais universal. Enquanto a ética constrange as ações individuais,
a partir da reflexão sobre se são boas ou ruins, a moral motiva.

Se e como as dimensões moral e ética estão presentes na teoria de Relações


Internacionais? O que se denomina “teoria normativa” não compreende necessariamente
um corpo teórico uníssono. Reflexões sobre moralidade e ética estão presentes na
discussão acadêmica há décadas, principalmente no campo da Filosofia Moral e na
Teoria Política.

Erskine (2013) afirma que nas RIs as reflexões sobre essas questões são
largamente baseadas nas contribuições desses dois campos, principalmente a partir
dos debates entre consequencialismo e deontologia (proveniente da filosofia moral)
e comunitarismo e cosmopolitismo (derivado da teoria política). Desse modo, para
compreendermos como moral e ética estão presentes na política internacional e na
teoria das Relações Internacionais, é necessária a apresentação desses debates.

Consequencialismo e Deontologia são duas grandes categorias de análise da


chamada filosofia moral, um ramo da Filosofia que envolve a discussão sobre as ideias
de “certo e errado”, “bom e ruim”, “justo e injusto” no comportamento humano. Exemplos
de precursores desse debate envolvem filósofos gregos, como Aristóteles, Sócrates
(469-399 a.C), Epiteto (55-135) e o estóico Zenão de Cítio (333 a.C – 263 a.C), que se
dedicaram a reflexão sobre o sentido de “certo” e “errado” nas ações dos indivíduos.

No pensamento político ocidental, a figura histórica mais importante na


discussão sobre ética internacional deontológica é Immanuel Kant (1724-1804). O termo
“deontologia” diz respeito à “ciência do dever”, ou seja, à reflexão dos indivíduos sobre
o seu dever em sociedade. Em suas obras, Kant propõe uma teoria ética deontológica
que (1) postula indivíduos e Estados como agentes morais autônomos e racionais; (2)
identifica a reciprocidade como princípio supremo racional da moralidade e o conceito
de direito público como seu corolário político; (3) descreve um método formal para os
atores usarem a razão para definir seu dever com os demais em sociedade; e (4) aplica
sua teoria a problemas, conflitos e à reflexão sobre a política.

26
Segundo essa visão, o julgamento moral das ações (se elas são certas ou
erradas) deve ser realizado a partir das ações em si, não de suas consequências. O
denominado “imperativo categórico” de Kant deriva dessa visão e pode ser traduzido na
conhecida frase: “faça com os outros o que gostaria que fosse feito com você” – isso
significa que, segundo a deontologia, o indivíduo deve decidir o que fazer com base no
que se espera que os outros façam com ele – deve agir, então, com reciprocidade.

As teorias consequencialistas, por outro lado, avaliam a moralidade das ações


(se são certas ou erradas) com base em suas consequências – intencionais ou não.
Pensadores importantes que desenvolveram teorias e princípios consequencialistas
incluem Jeremy Bentham (1747-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).

Erskine (2013) cita um exemplo útil no entendimento das duas categorias de


análise:

Um possível argumento consequencialista pode ser que a tortura de


um suspeito de terrorismo durante o interrogatório seria justificada,
e até mesmo exigida, se a informação a ser obtida a partir da tortura
salvar, por exemplo, mil pessoas. Em outras palavras, o julgamento
moral sobre o que é certo e errado dependeria de pesarmos os
benefícios projetados de uma ação contra os possíveis danos
(ERSKINE, 2013, p. 44).

O argumento deontológico, em contraposição, criticaria essa posição. A tortura,


em qualquer situação, seria considerada moralmente errada. O indivíduo que usa
a razão e age com reciprocidade, segundo essa visão, não cometeria uma ação que
não gostaria que fosse cometida contra si mesmo. Abaixo está ilustrado um dilema
comumente utilizado para elucidar os argumentos consequencialista e deontológico, o
“Dilema do Bonde”:

FIGURA 3 – O DILEMA DO BONDE NA DISCUSSÃO SOBRE MORALIDADE

FONTE: <https://nymag.com/intelligencer/2016/08/trolley-problem-meme-tumblr-philosophy.html>. Aces-


so em: 21 set. 2021.

27
A ideia do “experimento” acima é ilustrar as visões apresentadas e suas
diferenças. O dilema é pontuado da seguinte forma: imagine que um bonde (ou um trem)
perdeu o freio e está indo em direção a cinco pessoas amarradas nos trilhos. É possível
puxar uma alavanca e evitar que o bonde siga o seu percurso, mas a consequência seria
levar uma pessoa à morte, também amarrada nos trilhos. O que fazer?

O argumento consequencialista seria em favor de se puxar a alavanca, porque a


consequência dessa ação seria matar apenas uma pessoa e “salvar” cinco – o julgamento
moral, portanto, foi realizado a partir das consequências esperadas da ação. A visão
deontológica defenderia que nada fosse feito, porque puxar a alavanca seria incorrer em
assassinato deliberadamente, ainda que a consequência seja a morte de cinco pessoas.

Como essas reflexões nos auxiliam na análise da política internacional? Discutir


esses conceitos auxiliam no aprendizado da teoria normativa em RI e na compreensão
e avaliação de julgamentos éticos subjacentes a políticas específicas nas relações
internacionais. O ataque à civis em um conflito, por exemplo, seria moralmente aceito?
Como a deontologia e o consequencialismo avaliariam esse exemplo? Questões como
essas permeiam a teoria normativa e serão válidas para a compreensão das seções
seguintes.

DICA DE SÉRIE
A série norte-americana “The Good Place” discute, de modo lúdico, algumas
das premissas da filosofia moral aqui discutidas. O dilema do bonde, por
exemplo, é ilustrado e utilizado como exemplo de problema na definição
das ações individuais.

3 COSMOPOLITISMO E COMUNITARISMO
Segundo Kimberly Hutchings, uma das autoras mais proeminentes no subcampo
da teoria normativa na Escola Inglesa, um dos maiores desafios ao domínio realista tem
sido a discussão sobre ética internacional (Hutchings, 1999). Nos últimos trinta anos
há um esforço de reviver as discussões citadas anteriormente e trazê-las dos campos
da Ciência Política e da Filosofia para a área específica de Relações Internacionais.
Segundo a autora, a tentativa de análise da moralidade na sociedade de Estados exige,
primeiramente, o exame do que seria essa moralidade - ou seja, o que o conjunto de
Estados nas relações internacionais considera “justo” ou “correto”?

Se analisarmos a ordem internacional que emerge após os Tratados de Westphalia,


ou, mais recentemente, o conjunto de princípios e normas do direito internacional e as
convenções e tratados das Nações Unidas, alguns elementos centrais aparecem como
parte do que seria a moralidade da sociedade internacional, segundo Dower, 1998:

28
1. Os Estados têm o devem de apoiar o sistema de Estados;
2. Os Estados têm o dever de respeitar a soberania, autonomia ou independência de
outros Estados;
3. Os Estados têm o dever de não interferir ou intervir em assuntos internos de outros
Estados;
4. Os Estados têm o direito de se engajar em violência organizada;
5. Os Estados têm um dever geral de promover paz, mas têm o direito de declarar guerra
caso julguem que sua causa é justa;
6. Os Estados têm o dever de observar restrições na conduta da guerra.
7. Os Estados têm o dever que honrar seus acordos;
8. Os Estados têm o dever de não usar a força uns contra os outros, mas não têm a
obrigação de promover bens comuns globais, bens a outros Estados ou o bem-estar
de indivíduos que vivem em outros Estados;
9. Indivíduos não possuem direitos contra quaisquer outros Estados além daqueles em
que vivem (Dower, 1998, pg. 55).

Todos esses elementos refletem, direta ou indiretamente, os princípios do direito


internacional contemporâneo, estabelecido pelos Estados a partir da percepção de que
possuem interesses comuns. Na filosofia moral, à visão que defende a existência de
padrões universais de julgamento normativo dá-se o nome de cosmopolitismo.

A palavra cosmopolita deriva da expressão “kosmopolites”, que significa “cidadão


do mundo”. O cosmopolitismo é, portanto, uma visão de mundo que defende que todos
os seres humanos, independente de sua nacionalidade e cultura, são cidadãos de uma
única comunidade. Na maioria das visões cosmopolitas, a “comunidade” universal de
cidadãos do mundo seria um ideal a ser atingido – uma vez que ainda prevaleceria a
sociedade de Estados, cada um com uma especificidade cultural, identitária e jurídica.
São expoentes do cosmopolitismo autores liberais como Immanuel Kant (1724-1804) e
Adam Smith (1723-1790).

O cosmopolitismo como visão de mundo é geralmente dividido em duas


vertentes: o cosmopolitismo moral e o cosmopolitismo político. Em relação ao primeiro,
defende que (1) todos os seres humanos compartilhariam uma identidade moral comum
– ou seja, todo indivíduo racional seria capaz de agir com reciprocidade e estabelecer
uma noção do que é “certo” e “errado” que se assemelharia à noção dos outros indivíduos
e (2) existiriam padrões universais de julgamento normativo: todos os seres humanos,
independente da cultura e nacionalidade, compartilhariam noções comuns sobre o que
seria moralmente aceito. O cosmopolitismo político iria além dessas duas concepções e
defenderia a criação de uma ordem política cosmopolita (uma espécie de “Cosmópolis”
global), distante do atual sistema de Estados soberanos.

Essa ideia de que existe uma moralidade comum aos Estados não é unânime –
há pensadores que defendem que cada Estado possui um senso de “certo” e “errado”,
derivado de sua cultura e identidade. A essa visão, de modo geral, dá-se o nome de
comunitarismo.

29
Em linhas gerais, o comunitarismo – representado principalmente por autores
como Charles Taylor e Michael Walzer – defende que as identidades dos indivíduos
seriam moldadas por suas relações sociais e essas relações definiriam nossos
julgamentos morais e políticos, assim como nossas instituições sociais. Essa visão se
contrapõe ao pensamento liberal cosmopolita, que enfatiza o comportamento individual
e a autonomia pessoal.

O comunitarismo defende que a identidade dos indivíduos seria parcialmente


constituída pela cultura e, conforme citado, pelas relações sociais. Não haveria, portanto,
uma maneira coerente de formular direitos ou interesses individuais sem que se leve
em consideração os contextos sociais. Quando aplicada às relações internacionais,
essa visão defende a aceitação e celebração da pluralidade de valores culturais – cada
comunidade política possuiria um conjunto de valores e uma cultura específicos, que
não poderiam ser transcendidos por valores universais.

DICA
ARTIGO “O DEBATE ENTRE COMUNITARISTAS E COSMOPOLITAS E AS
TEORIAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: RAWLS COMO VIA MÉDIA”

O artigo de Feliciano de Sá Guimarães, “O debate entre Comunitaristas


e Cosmopolitas e as Teorias de Relações Internacionais: Rawls como
via média”, publicado no periódico Contexto Internacional, traz uma
discussão interessante sobre as principais abordagens de comunitaristas
e cosmopolitas em relação a justiça distributiva internacional. Vale a leitura!

4 PLURALISMO E SOLIDARISMO
O debate entre as visões cosmopolita e comunitarista se deu, inicialmente, nos
campos da Filosofia e da Ciência Política, ainda que suas considerações sejam úteis
para a compreensão das relações internacionais. Na Escola Inglesa a reflexão sobre as
diferenças entre essas abordagens deu origem às visões pluralista e solidarista. Barry
Buzan, em “An Introduction to the English School of International Relations” (2014),
detalha as principais premissas dessas duas visões e apresenta as contribuições desses
conceitos para a compreensão da política internacional.

O debate entre pluralismo e solidarismo seria, em linhas gerais, sobre como


a sociedade de Estados se relaciona com os indivíduos. De um lado, o pensamento
pluralista (alinhado ao comunitarismo filosófico) defende que a fonte de direitos seria a
moralidade dos Estados, ou a interpretação cultural e identitária de cada Estado do que
seria moralmente “certo” ou errado”.

30
Do outro, o solidarismo (alinhado ao cosmopolitismo) afirma que haveria um
conjunto de valores aplicáveis universalmente, independente da nacionalidade e da
cultura dos indivíduos. De modo simples, para o pluralismo, um cidadão nascido e criado
no Brasil seria primariamente brasileiro e, em segundo plano, cidadão do mundo. Para o
solidarismo, esse mesmo cidadão seria acima de tudo cidadão do mundo e, em segundo
lugar, brasileiro.

Buzan (2014) enfatiza que pluralismo e solidarismo não seriam visões opostas
– a sociedade internacional seria tanto pluralista quanto solidarista. Ao mesmo tempo,
por exemplo, que os Estados defendem a permanência do sistema internacional e da
soberania irrestrita (características pluralistas), há iniciativas de natureza solidarista, como
a Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pela ONU em dezembro de 1948.

GIO
A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS (DUDH)

Discutida e aprovada no contexto de criação da Organização das


Nações Unidas (ONU) e de uma estrutura multilateral de governança
internacional, a DUDH foi criada em 1948 com o objetivo de estabelecer
as bases para a paz mundial após um longo período de guerra entre
os Estados. Possui 30 artigos que resumiriam as posições dos Estados-
membros da ONU a respeito dos princípios de justiça e paz.

Leia a Declaração na íntegra em:


http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/declaracao_universal_
dos_direitos_do_homem.pdf.

A discussão entre as posições pluralista e solidarista retomaria o debate, já citado,


entre ordem e justiça. A visão pluralista (identificada em autores clássicos da Escola
Inglesa, como Hedley Bull) reconheceria a ordem como princípio prevalecente sobre
a justiça na sociedade internacional. Segundo essa visão, os Estados possuiriam uma
visão mais conservadora a respeito da tensão entre ordem e justiça, principalmente as
grandes potências que estabeleceram a estrutura multilateral no pós-segunda guerra.
A garantia da soberania e da obediência às regras e ao direito internacional (ordem) seria
mais valorizada que a busca por justiça distributiva e por reparação histórica (justiça).

Para o pluralismo, não existiria um conjunto universal de princípios normativos.


O que haveria seria uma “ilusão” de universalidade – o que prevaleceria seriam
princípios ocidentais e das grandes potências “revestidos” de princípios universais. A
sociedade internacional não teria potencial para o desenvolvimento de instituições que
promoveriam justiça acima da ordem porque os Estados são culturais e identitariamente
distintos. Desse modo, autores pluralistas como Bull excluem a possibilidade de os
Estados compartilharem valores e objetivos para além da coexistência – ou seja, a visão
solidarista de mundo seria utópica e dificilmente refletida no “mundo real”.

31
DICA
O site Moral Machine <https://www.moralmachine.net> foi desenvolvido
pelo Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT) com o
objetivo de coletar dados relacionados às respostas sociais a um conjunto
de dilemas morais. A partir de exemplos de situações reais, o site oferece
ao leitor alternativas e analisa os resultados com base nos princípios da
filosofia moral. Vale a pena conferir!

No próximo tópico, as visões aqui discutidas serão utilizadas para a análise


de temas importantes nas relações internacionais: a guerra, mudanças do clima e a
entrada da China na sociedade internacional, segundo a Escola Inglesa.

32
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Os acontecimentos da política internacional através dos anos possuem uma dimensão


ética e moral, pouco explorada pelas teorias realista e liberal clássica no campo.

• As visões deontológica e consequencialista provem guias para a análise das ações


dos indivíduos e são úteis para a avaliação de acontecimentos da política internacional
enquanto moralmente “corretos” ou não.

• Comunitarismo e cosmopolitismo são tradições da filosofia política que refletem sobre


a existência de uma moralidade universal ou primazia de uma moralidade limitada à
cultura e à identidade. Nesse sentido, são categorias importantes para a análise e
compreensão das relações internacionais.

• Pluralismo diz respeito à visão que defende a existência de uma sociedade


internacional na qual prevalecem princípios de ordem e defesa da coexistência
entre os Estados. Solidarismo, por outro lado, crê na defesa da justiça e no
compartilhamento de valores comuns. Ainda que distintas, não são visões opostas
e excludentes. A sociedade de Estados seria, ao mesmo tempo, pluralista e
solidarista.

33
AUTOATIVIDADE
1 Seria a tortura moralmente permissível em alguns casos? Quais? Apresente o
argumento com base nos conceitos de deontologia ou consequencialismo.

2 Como os conceitos de sistema, sociedade e sociedade mundial, respectivamente,


explicam a evolução da agenda de direitos humanos na política internacional?

3 Quais os argumentos de Bull (1977) em afirmar que a ordem internacional pode ser
ameaçada pelo solidarismo?

4 Analise a seguinte afirmação de Williams (2005): “a diversidade inerente à sociedade


é pluralista, mesmo quando a sociedade internacional se mostra predominantemente
solidarista”. Recorra aos conceitos de direito natural e direito positivo para a resposta.

34
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
TEMAS DA TEORIA NORMATIVA DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS

1 INTRODUÇÃO
Conforme discutido anteriormente, a tradição teórica da Escola Inglesa retomou
uma série de abordagens da filosofia e da ciência política com o objetivo de explorar
os dilemas e tensões existentes entre o nível individual e a sociedade de Estados
soberanos. A partir da reflexão acerca da moralidade e ética em nível internacional é
possível analisar uma gama ampla de temas cuja compreensão não seria possível a
partir das lentes realista e liberal.

Alguns exemplos de análises normativas no campo incluem a reflexão sobre


justiça na guerra e as abordagens sobre justiça climática. As seções seguintes são
dedicadas à aplicação dos conceitos e abordagens anteriormente discutidos a esses
exemplos. Espera-se que ao concluir essa unidade o aluno seja capaz de compreender
a importância da reflexão acerca de moral e ética para o campo e as tensões entre as
visões cosmopolita e comunitarista, pluralista e solidarista e entre as noções de ordem
e justiça.

2 GUERRA JUSTA: DA VISÃO CRISTÃ À SECULARIZAÇÃO


DO DEBATE
Um dos temas mais presentes nas discussões do campo de Relações
Internacionais é a guerra. De uma forma ou de outra esse fenômeno sempre apareceu
como recurso utilizado por Estados e/ou comunidades políticas na defesa de seus
interesses, na busca por poder ou na garantia de sua soberania. Mesmo antes da
criação formal do campo, em 1919, pensadores – religiosos ou não – se ocupavam da
reflexão sobre a validade da guerra na garantia dos interesses dos indivíduos. A tradição
da Guerra Justa aparece como uma das principais tentativas de compreensão do
fenômeno a partir de suas dimensões moral e ética.

Teóricos da Guerra Justa, de modo geral, se baseiam na afirmação de que


apenas sob certas condições a guerra pode ser defendida. Essa visão seria um meio-
termo entre a tradição realista, que trata a moralidade como irrelevante, e até mesmo
perigosa, e o pacifismo, que rejeita a guerra em quaisquer condições. Os argumentos
da Guerra Justa são normalmente divididos em duas categorias básicas: as condições

35
de justificariam o envolvimento na guerra (a decisão de declarar e/ou se envolver na
guerra) – em latim, jus ad bellum, e as regras que governam como a guerra deve ser
travada uma vez iniciada – em latim, jus in bello.

A discussão sobre jus ad bellum (ou “direito da guerra”) enfatiza a adequação


moral de lutar por uma “causa justa”, definida como defensiva e como o último recurso.
As abordagens que focam em jus in bello (ou “direito na guerra”) têm como objetivo
limitar a extensão da violência na guerra. As regras relacionadas à segunda categoria
(ex.: Convenções de Genebra) protegem a vida de civis inocentes e combatentes que
não representam uma ameaça, como prisioneiros desarmados e feridos, e limitam a
destruição de propriedade. Nas últimas décadas uma terceira categoria tem sido foco
dos estudos de Guerra Justa: a reflexão sobre as regras morais que devem orientar
como as guerras terminam (just post bellum, em latim), principalmente as condições
políticas, sociais e econômicas nesse contexto.

GIO
VISÕES NÃO-OCIDENTAIS SOBRE A GUERRA JUSTA

O artigo “A Just Cause? The Eastern Interpretation of Just War Theory”,


publicado em 2016 e escrito por Toh Junhan, oferece uma análise
interessante sobre a visão de autores chineses e indianos sobre a
guerra justa. O objetivo do autor foi compreender como a filosofia
não-ocidental compreendeu a guerra ao longo dos anos. Como
consequência, Junhan defende que as análises sobre guerra justa se
baseiam não apenas na visão tradicional europeia, mas evoquem as
contribuições chinesa e hindu no entendimento desse fenômeno.

Leia mais em:


https://www.e-ir.info/2016/08/25/a-just-cause-the-eastern-
interpretation-of-just-war-theory/

Do ponto de vista histórico, a teoria da guerra justa tem uma longa história.
Partes da bíblia, por exemplo, sugerem o que seria um comportamento “ético” na guerra
e oferecem conceitos de guerra justa, tipicamente anunciando a justiça da guerra por
intervenção divina. Mesmo antes da identificação de princípios de guerra justa cristãos,
realistas políticos como Tucídides (460 a.C – 400 a.C) em a “História da Guerra do
Peloponeso” teorizaram sobre o fenômeno da guerra. Para Tucidides a guerra seria uma
extensão da política e, portanto, permeada por interesses políticos.

36
FIGURA 4 – O PENSADOR GREGO TUCÍDIDES

FONTE: <https://www.istockphoto.com/br/foto/retrato-de-estátua-do-historiador-grego-tuc%C3%ADdi-
des-em-frente-ao-parlamento-austr%C3%ADaco-em-gm862217220-142879391>. Acesso em: 21 set.
2021.

A guerra justa também foi tema de reflexão no pensamento cristão. Embora


Santo Agostinho (354-430) tenha fornecido comentários sobre a moralidade da guerra
a partir da perspectiva cristã (protestando contra o “amor” à violência que a guerra pode
estimular), a tradição mais conhecida e analisada sobre esse tema foi realizada por São
Tomás de Aquino (1225-1274) no século XIII. Em “Summa Theologicae”, Aquino apresenta
o esboço geral do que se tornaria a teoria tradicional da guerra justa. Ele não discute
apenas as justificativas da guerra, mas também os tipos de atividades permitidas a um
cristão durante o conflito. Os pensamentos de Tomás de Aquino se tornaram o modelo
a partir do qual juristas e acadêmicos contemporâneos expandissem e gradualmente
universalizassem a compreensão acerca da moralidade da guerra.

O pensador cristão acreditava que os fiéis deveriam ser pacifistas e evitar o uso
da força, assim como pregava a tradição católica. A guerra, entretanto, seria moralmente
permissível como meio de preservação da paz no longo prazo. Em sua obra, Aquino
apresenta três condições para a definição de uma guerra enquanto “justa” ou “injusta”:

Primeira condição – Autoridade Própria: somente uma autoridade legítima (reis,


príncipes, chefes de Estado) podem declarar guerra. Guerras privadas não podem ser
justas.

Segunda condição – Intenção Correta: deve-se recorrer á força somente com a


intenção de obter, preservar ou reconquistar a paz.

Terceira condição – Causa Justa: uma causa seria justa se envolve tornar certo
aquilo que está errado.

37
Se refletirmos sobre essas três condições aplicadas a acontecimentos históricos
da política internacional, é possível identificar a dificuldade de se julgar se uma causa
seria justa ou não. Se a soberania e autonomia dos Estados são princípios primários
da política internacional, condenar os motivos políticos de se declarar guerra torna-se
uma tarefa difícil. As regras e convenções sobre guerra, dessa forma, focam muito mais
na conduta na guerra do que nos motivos de se ir à guerra. Além disso, a presença
de empresas militares privadas – como Blackwater, C.A.C.I e FDG Corp – coloca em
xeque a primeira condição de Aquino, uma vez que não necessariamente representam
os interesses nacionais.

GIO
EMPRESAS MILITARES PRIVADAS

Uma empresa militar privada é uma companhia que provê serviços de


combate e segurança para ganhos financeiros. O papel desses atores
ganhou atenção da comunidade internacional a partir de 2003, com a
invasão dos EUA ao Iraque. As empresas CACI e Titan foram contratadas
pelo governo norte-americano e se envolveram em mortes de civis e
foram acusadas de abuso de poder e negligência.

DICA DE DOCUMENTÁRIO
SHADOW COMPANY

O documentário canadense “Shadow Company”, de 2006, discute a


indústria crescente de serviços militares privados e as implicações desse
processo. Interessante observar as diferenças entre esses atores e os
denominados “mercenários” e a ausência de estruturas legais de limitação
à ação desses atores.

Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=9yCONEdFgWo

No século XX, a teoria da guerra justa sofreu uma espécie de renascimento,


principalmente em resposta ao avanço de tecnologias nucleares no setor militar e ao
envolvimento americano na Guerra do Vietnã (1946-1954). As obras contemporâneas
mais importantes incluem o livro “Guerras Justas e Injustas” (1977), de Michael Walzer –
principal representante do chamado “paradigma legalista” - e o artigo “War and Murder”
(1961), de Elizabeth Anscombe. Desde os ataques terroristas aos Estados Unidos, em
11 de setembro de 2001, os acadêmicos voltaram sua atenção para a guerra justa,
principalmente nos campos das Relações Internacionais, Ciência Política e Sociologia.

38
Um ato de agressão, segundo Walzer (1997), seria a única causa legítima para
se travar uma guerra, uma vez que “desafia os direitos pelos quais vale a pena morrer”
(WALZER, 1997, p. 53). Além disso, conforme decidido pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, “agressão seria o uso de força armada por um Estado contra a soberania,
integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer outra
forma incompatível com a Carta das Nações Unidas” (AGNU, 1974). Baseando-se no que
denomina “analogia doméstica”, Walzer enfatiza o fato de que a soberania territorial e a
política do Estado são propensas à defesa da mesma forma que os direitos dos cidadãos
dentro dos Estados.

Uma vez ocorrido um ato de agressão, o Estado possui o direito à legítima


defesa, desde que algumas condições sejam atendidas. Em primeiro lugar, assim como
defendido por São Tomás de Aquino, deve haver uma causa justa. Da mesma forma, as
guerras devem ser conduzidas e declaradas por uma autoridade legítima. Além disso, os
meios militares empregados devem ser cuidadosamente relacionados aos fins morais e
políticos objetivados que, por sua vez, devem ser proporcionais à ameaça representada.

Em relação à ideia de que nada além da agressão seria causa justa de uma guerra,
é possível argumentar que as ameaças contemporâneas variam significativamente
em escopo e intensidade – as guerras pós 1945 não necessariamente ocorrem com
o objetivo de maximizar poder ou dominar um território. Nesse sentido, o paradigma
legalista de Walzer teria limitações em compreender, por exemplo, guerras de libertação
nacional e de busca por independência, como as ocorridas no continente africano
durante o século XX. Inis (1980) aponta que essa visão precisa revisar seus elementos
para diminuir as limitações que suas ideias ainda possuem.

Outra questão controversa em relação às teorias de guerra justa na


contemporaneidade diz respeito à dificuldade de definição do que seria “causa justa”.
Conforme dito anteriormente, a teologia apontava como “causa justa” aquela que
retomava a paz e era justa aos olhos de Deus. Quando o debate é secularizado (ou seja,
se afasta da abordagem religiosa e se aproxima da ciência formal) essa justificativa
passa a não ser suficiente e se abre uma lacuna na definição do que seria uma causa
justa - como julgar os motivos de um Estado em declarar guerra, e agir em relação a eles,
uma vez que cada país é soberano? Desse modo, as convenções e tratados relativos à
guerra são hoje muito mais relacionados à conduta na guerra (jus in bello): limitações ao
uso de armas químicas e biológicas, proteção à civis, condenação de tortura, etc, que ao
direito de um Estado em declarar guerra.

39
DICAS
ENTREVISTA COM MICHAEL WALZER

“A Conversation with Michael Walzer” é uma entrevista feita com o autor


por Nancy Rosenblum, professora de Ética em Harvard.

Vale a pena conferir:


https://www.youtube.com/watch?v=TvpnmmLoO38

3 JUSTIÇA CLIMÁTICA
Outro objeto de estudo relevante da teoria normativa no campo das Relações
Internacionais é o tema das mudanças do clima. O aumento médio da temperatura
média global vem sido atribuído, há algumas décadas, ao aumento das emissões
de Gases de Efeito Estufa (GEE) provenientes da atividade industrial, da queima de
combustíveis fósseis, da produção de carne, dentre outras atividades humanas. Desse
modo, o fenômeno das mudanças do clima seria agravado pela ação humana, cabendo
aos Estados estabelecer limitações a essas atividades e garantir que as gerações, agora
e no futuro, possam usufruir dos recursos naturais de modo sustentável.

Por que mudança do clima é uma questão passível de análise normativa no


campo das Relações Internacionais? Porque o aumento médio da temperatura global
seria fundamentalmente um subproduto da abundância das nações mais desenvolvidas
e seus habitantes – evitar o agravamento desse quadro e estabelecer direitos e
responsabilidades aos Estados seria uma questão de justiça e, portanto, passível de
reflexão moral e filosófica.

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), “os


impactos das mudanças do clima cairão de forma desproporcional sobre os países
em desenvolvimento e aos povos pobres em todos os países, agravando, assim as
desigualdades no que diz respeito à saúde, ao acesso à água potável e limpa e outros
recursos” (IPCC, 1992). De um lado, os países que mais emitiram historicamente GEEs
são aqueles que possuem um grau mais elevado de desenvolvimento (EUA, Inglaterra,
antigos países da União Soviética, por exemplo) e que, ao longo da história, utilizaram
os recursos naturais de forma pouco sustentável. Do outro, esses mesmos países
possuem recursos suficientes para lidar com essa questão, não dependendo de auxílio
externo ou da cooperação internacional na área ambiental. Desse modo, os impactos
das mudanças do clima agravariam as desigualdades entre países ricos e pobres, apesar
da pouca responsabilidade dos últimos na origem do problema.

40
ATENÇÃO
O PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇA DO CLIMA
(IPCC)

O IPCC é uma organização criada em 1988, no contexto do sistema


ONU, com o principal objetivo de produzir dados, análises e projeções
relacionadas ao aquecimento global e a consequente mudança do
clima. É um painel composto por cientistas do mundo todo e busca
conscientizar a comunidade internacional da urgência em elaborar
soluções sustentáveis e cooperativas. Incentiva a valorização da ciência
sobre o negacionismo presente em várias sociedades contemporâneas.

Ao longo das décadas uma série de instrumentos legais internacionais foram


criados para tentar evitar maiores interferências ao sistema climático global e estabelecer
princípios de justiça distributiva. Abaixo estão listados as principais conferências,
convenções, protocolos e acordos relacionados a essa temática:

• 1972: 1ª Conferência Mundial sobre o Homem e o meio ambiente – Estocolmo;


• 1988: criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC);
• 1992: Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento –
Eco 92;
º Criação da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC);
• 1997: Protocolo de Quioto;
• 2015: Acordo de Paris.

Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento


(também conhecida como Eco 92 ou Rio 92), é criado um dos princípios mais importantes
da governança ambiental global: o “Princípio das Responsabilidades Comuns, porém
Diferenciadas”, que estabeleceu que “os Estados deverão cooperar em espírito de
solidariedade mundial para conservar, proteger e restabelecer a saúde e a integridade
do ecossistema da Terra. Na medida em que tenham contribuído em graus variados para
a degradação do meio ambiente mundial, os Estados têm responsabilidades comuns,
porém diferenciadas” (CNUMAD, 1992).

Esse princípio, considerado um dos principais instrumentos normativos do


que ficou conhecido como Regime Internacional de Mudanças Climáticas, é uma das
evidências de introdução de ideais de equidade na estrutura institucional incipiente. A
ideia foi dividir os Estados em grupos, de acordo com o nível de emissões de GEE e de
degradação ambiental. O princípio evidencia, portanto, que o problema das mudanças
do clima, agravado pela ação humana, seria um problema de injustiça global.

41
DICAS
LIVRO “CLIMATE JUSTICE”

Uma das obras mais importantes sobre justiça climática e ética ambiental
é o livro “Climate Justice”, de Henry Shue. Na obra, o autor se dedica à
análise das desigualdades derivadas da diferença entre o consumo e
a produção industrial em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Vale a leitura!

Conforme discutido anteriormente, as nações cuja responsabilidade causal


pelo aumento médio da temperatura global é maior tendem, também, a possuir maior
capacidade econômica de empreender projetos de redução de GEE em grande escala.
Enquanto isso, os efeitos nocivos das mudanças climáticas, pelas estimativas do IPCC,
serão suportados principalmente por nações em desenvolvimento, que são muito
menos responsáveis e economicamente capazes de empreender projetos de mitigação
e adaptação.

A emergência de novas economias tem consequências importantes e tangíveis,


também, então, na governança global das mudanças climáticas. A criação do BASIC
em 2009, composto pelos países BRICS, com exceção da Rússia, é um exemplo da
importância crescente desses atores na análise ambiental internacional e incita dois
elementos centrais: o debate acerca do futuro do Regime Internacional, de forma
ampla e, mais especificamente, das questões relativas à cooperação entre atores com
preferências e interesses distintos.

Viola (2002) divide os países membros do Regime a partir de seu interesse:

1) Países desenvolvidos com alta intensidade de carbono por unidade de PIB e per
capita: Estados Unidos, Canadá e Austrália;

2) Países desenvolvidos com média intensidade de carbono por unidade de PIB e per
capita, orientados a assumir responsabilidades globais: Alemanha, Reino Unido,
Holanda, Suécia, Dinamarca, Finlândia, França, Bélgica, Luxemburgo, Áustria e Itália;

3) Países desenvolvidos com média intensidade de carbono, que têm dificuldades em


reduzir suas emissões, seja porque já haviam reduzido bastante suas taxas antes de
1990 (Japão, Nova Zelândia, Noruega), seja por possuírem uma opinião pública com
baixa responsabilidade global (Suíça, Islândia).

42
4) Países pertencentes a ex-União Soviética que sofreram uma drástica redução nas
emissões de carbono (entre 40% e 60% mais baixas, em 1999, comparadas com 1990)
pelo colapso da economia (Rússia, Ucrânia, Bielo-Rússia, Bulgária, Romênia) e, em
consequência, têm créditos no conjunto de compromissos assumidos.

5) Países exportadores de petróleo (Arábia Saudita, Kuwait, Irã, Iraque, Emirados Árabes,
Argélia, Líbia, Venezuela, Indonésia e Nigéria), com alta intensidade de carbono por
unidade de PIB e alguns também per capita.

6) Países emergentes com média intensidade de carbono por unidade de PIB derivada
da matriz energética predominantemente de carvão e/ou petróleo (China, Índia, África
do Sul e México) ou do excessivo desmatamento (Brasil, Tailândia, Malásia e Filipinas).
O conjunto desses países apoia os compromissos firmados no Protocolo de Kyoto
em função dos benefícios imediatos advindos da implementação do Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo (MDL).

7) Países emergentes com baixa intensidade de carbono (Argentina, Chile, Uruguai,


Costa Rica, Coréia do Sul e Hungria). Igualmente ao grupo anterior, existe um apoio
genérico ao Protocolo de Kyoto, em função do MDL.

8) Países pobres (África subsaariana, Bangladesh, Bolívia, Honduras, Guatemala etc.),


onde todos os setores da sociedade são favoráveis ao adensamento do regime, tanto
porque implica ganhos consideráveis advindos do Mecanismo do Desenvolvimento
Limpo quanto porque dificilmente teriam compromissos de redução antes de 2050.

9) Pequenos Estados-ilhas (Fiji, Jamaica, Malta etc.), muito vulneráveis à mudança


climática e onde o conjunto da sociedade é fortemente favorável ao adensamento do
regime (VIOLA, 2002, p. 31-32).

A partir dessa divisão, um conjunto específico de países chama a atenção pelo


potencial de emissões elevado, frente à iminente reforma do Protocolo, prevista para
2015: o grupo 6, formado pelos países emergentes com média intensidade de carbono
por unidade de PIB derivada da matriz energética predominantemente de carvão e/ou
petróleo ou do excessivo desmatamento.

Segundo Vanderheiden (2008), a mitigação dos efeitos das mudanças do


clima seria um assunto de justiça cosmopolita. Segundo o autor, “a justiça seria a
principal virtude do regime internacional de mudanças climáticas e, portanto, sujeita
a princípios distributivos como a atribuição de custos e a asseguração de benefícios”
(VANDERHEIDEN, 2008, p. 104).

43
DICAS
ENCÍCLICA PAPAL – LAUDATO SI

Uma dica para entender mais sobre a visão cosmopolita sobre as


mudanças do clima é a encíclica escrita pelo Papa Francisco, intitulada
“Laudato Si” (em português, “louvado seja”). No documento, endereçado
à humanidade em seu conjunto, o pontífice clama por uma relação
sustentável dos homens com o meio ambiente e pela preservação dos
recursos ambientais através das gerações. É possível identificar no
documento uma visão cosmopolita acerca do mundo, uma vez que o
Para endereça a mensagem não a uma ou outra nacionalidade, mas
reconhece o compartilhamento de uma mesma casa (a Terra) por todos
os cidadãos.

O documento está disponível na íntegra em:


http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/
papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

4 CONCLUSÃO: LIMITES E POSSIBILIDADES DA TEORIA


NORMATIVA NAS RIS
A expansão da Escola Inglesa e da Teoria Normativa no campo das Relações
Internacionais significou a retomada de discussões filosóficas acerca da moralidade
e responsabilidade dos Estados. Definir a arena de atuação desses atores como
uma sociedade, não meramente um sistema, permitiu aos analistas introduzir novas
variáveis e temas ao entendimento da política internacional e refletir criticamente sobre
fenômenos como a guerra, as mudanças do clima, a construção de instrumentos legais
de governança internacional, dentre outros.

Autores como Hedley Bull, Barry Buzan, Adam Watson, Kimberly Hutchings e
Michael Walzer contribuíram para o avanço e expansão das agendas de pesquisa no
campo. Se antes da década de 1970 o campo das RIs era mais próximo da Ciência
Política, a partir desse período ele se aproxima da Sociologia e da Filosofia e passa a
contrapor a demanda dos Estados por ordem às reivindicações crescentes por justiça.
Um dos principais legados da Escola Inglesa deriva desse esforço: compreender as
distinções entre ordem e justiça na expansão gradual da sociedade de Estados.

Essa capacidade da Escola Inglesa em compreender uma gama ampla de objetos


não exime a teoria de possíveis críticas. Ao caracterizar a sociedade internacional como
uma expansão do sistema e sociedade europeus, a Escola Inglesa deixa de prover críticas
ao colonialismo, à exploração e às invasões dos Estados europeus nesse processo. Além
disso, a teoria minimiza as desigualdades materiais como parte importante na definição
das leis e regras mais “aceitas” pelos Estados, e o uso da força como instrumento de
coerção em diversas ocasiões da política internacional.

44
Do ponto de vista realista, existiriam problemas na Escola Inglesa do modo
como está atualmente constituída. O primeiro tem a ver com sua falta de clareza como
uma suposta teoria da política internacional. Para cientistas sociais americanos, é difícil
descobrir o que exatamente a Escola está tentando explicar, qual é sua lógica causal, ou
como alguém faria para medir sua variável independente central (causal): a existência
da "sociedade internacional".

A Escola Inglesa seria menos uma teoria que fornece hipóteses falsificáveis ​​a
serem testadas (ou que foram testadas) e se aproximaria de uma abordagem vaga para
se pensar e conceituar a política mundial. Ela ofereceria descrições da relação entre os
Estados ao longo da história e algumas hipóteses mal definidas que associam essas
sociedades a uma maior cooperação no sistema, mas não iria além desse ponto.

Isso não significa que a Escola Inglesa não tenha desenvolvido uma teoria
rigorosa e testável das relações internacionais. No entanto, até o momento, segundo a
crítica realista, pouco trabalho teria sido feito para promover esse objetivo.

Concluímos essa unidade adicionando mais uma lente ao repertório de vocês,


alunos e alunas de Relações Internacionais. Espera-se que a partir do estudo da Escola
Inglesa vocês sejam capazes de compreender as diferenças entre sistema e sociedade
internacional e entre ordem e justiça a partir de concepções como o cosmopolitismo,
comunitarismo, pluralismo e solidarismo, além de entender como temas como a guerra
e as mudanças do clima podem envolver dimensões de justiça.

45
LEITURA
COMPLEMENTAR
A ESCOLA INGLESA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O DIREITO
INTERNACIONAL

Emerson Maione de Souza

Desde os anos 1990, tem sido destacada a necessidade de se formar uma agenda
de pesquisa interdisciplinar entre o Direito Internacional e as Relações Internacionais.
Na busca desta interdisciplinaridade têm se destacado, principalmente, as perspectivas
do institucionalismo neoliberal e do construtivismo. Nesse debate a perspectiva da
Escola Inglesa, também chamada de perspectiva da Sociedade Internacional, aparece
de forma discreta, seja em passagens citando Hedley Bull, Martin Wight ou R. J. Vincent
até trabalhos de autores contemporâneos como os de Andrew Hurrell, Jason Ralph e
Nicholas Wheeler

Nesse sentido, este artigo busca destacar a perspectiva da Escola Inglesa


sobre o direito internacional, focando principalmente em Hedley Bull, dando assim uma
visão mais clássica sobre o assunto, e, ao mesmo tempo, procurando apontar temas
e autores contemporâneos que têm levado adiante essa perspectiva de maneira a
salientar sua importância política nos dias de hoje. Assim, em primeiro lugar, será feita
uma análise dos principais argumentos da Escola Inglesa, enfocando a importância
geral do direito internacional para a estruturação do principal conceito desenvolvido
por seus autores: o conceito de sociedade internacional. Posteriormente, será analisada
a visão de Hedley Bull sobre o direito internacional. Na última parte do artigo, veremos
alguns desenvolvimentos atuais sobre o papel das normas na sociedade internacional
contemporânea e como os autores da Escola Inglesa têm respondido aos principais
desafios políticos da atualidade.

1. O lugar do Direito Internacional no argumento da Escola Inglesa

Desde o final dos anos 1950 a Escola Inglesa é formada por um grande grupo
de acadêmicos, baseados principalmente no Reino Unido, que concordam em tratar a
perspectiva da sociedade internacional como uma importante forma de interpretar a
política mundial. Entre os autores de sua primeira geração estão Charles Manning, Martin
Wight, Hedley Bull, Adam Watson, Alan James e John Vincent. Entre os autores recentes
podemos citar Andrew Hurrell, James Mayall, Robert Jackson, Tim Dunne e Nicholas
Wheeler (Suganami, 2003). A Escola Inglesa é identificada por sua ênfase no conceito
de sociedade internacional e nas chamadas três tradições. Conforme desenvolvido por
Hedley Bull (1995, 13), tal conceito pressupõe a existência de um grupo de Estados que
se consideram ligados por certos valores e interesses comuns. Seu relacionamento
46
acontece, por um conjunto comum de regras e instituições. Essa ênfase demonstra as
preocupações normativas dos membros da Escola Inglesa com as regras, normas, leis e
princípios de legitimidade que sustentam a ordem mundial.

Nesse sentido, ao se analisar um determinado contexto internacional, a Escola


procura focar na prática, ou seja, os significados e as justificações que os agentes dão
para suas ações. E ao mesmo tempo em que procura enxergar a historicidade de tais
práticas, busca apoio na teoria política internacional para informar sobre as bases dos
julgamentos morais destas ações e sobre o estado em que estamos (Dunne 2005a,
170). A sociedade internacional reflete um ordenamento precário e difícil de ser
mantido, mesmo quando suas instituições funcionam adequadamente. Ela varia não
somente de acordo com as mudanças na distribuição de poder, como nos dizem os
realistas, mas, principalmente, com as mudanças dos princípios de legitimidade que
estão em sua base. Há uma tensão subjacente à ordem internacional. Isso porque as
três tradições da política mundial – revolucionista, racionalista e realista – convivem
simultaneamente. A tradição revolucionista, representada, entre outros, no pensamento
internacional por Kant, acredita que a unidade moral essencial não é o Estado, mas os
indivíduos. Os revolucionistas ou universalistas, dependendo da sua vertente (marxista-
leninsta, jacobina, facista, liberal) pregam a solidariedade ou o conflito transnacional,
que atravessam fronteiras. A tradição realista, representada por Maquiavel e Hobbes,
destaca o elemento do conflito e da guerra nas relações internacionais. Toda política
é política de poder. A tradição racionalista, cujo representante máximo é Hugo Grócio,
é descrita por Martin Wight (1966b, 91) como uma via média entre as duas tradições.
Os racionalistas são os maiores defensores da ideia de uma sociedade internacional.
Enfatizam os elementos da cooperação, da diplomacia e do comércio. Para Wight
(1991) as três tradições de pensamento refletiam a interpenetração entre a teoria e a
prática da política: a teoria, através da análise e classificação de escritos dos teóricos
das respectivas tradições; a prática, através da análise dos discursos e das ações de
diversos estadistas. Aqui vemos a importância do direito internacional para Wight.
Ele observa que historicamente o direito internacional é a principal corrente de teoria
internacional (1966a, 18-29). Além da importância teórica do direito internacional, ele
está intimamente ligado à própria ideia da sociedade internacional. Vemos também que
essa definição de sociedade internacional destacada anteriormente é intersubjetiva,
porque coloca como ponto principal não fatores materiais, mas a noção simbólica dos
atores sociais perceberem-se ligados por valores e interesses comuns. Segue-se daí
que o Direito Internacional tem um papel importante na configuração dessa sociedade.

Martin Wight (1985, 87) (ver também Manning, 1962) destaca a importância do
Direito Internacional ao afirmar que a sua existência é a comprovação mais essencial da
própria existência de uma sociedade internacional. Pois, assim como toda sociedade,
a internacional também possui um sistema de regras que estabelece os direitos e
deveres de seus membros. Em consequência disso, prossegue Wight, aqueles que
negam a existência da sociedade internacional começam por negar a realidade do
Direito Internacional. É o caso dos realistas, por exemplo, para quem os Estados apenas
seguem o Direito Internacional quando é do seu interesse.

47
Diferentemente desta posição, Bull (1995a, 131) rejeita a visão realista de
que o direito internacional seja “um fator negligenciável na conduta das relações
internacionais”. Ele observa que o argumento de que os Estados só obedecem à lei por
motivos escusos ou que eles só o fazem quando consideram do seu interesse, muitas
vezes é dito como se afirmasse que o direito internacional não precisa ser levado a sério.
Na sua visão, “é claro que precisa ser levado a sério”, e argumenta que se observarmos
a prática dos Estados, a importância do direito internacional se baseia não no fato dos
Estados aderirem aos seus princípios em detrimento de seus interesses, mas pelo fato
de que “eles frequentemente julgam ser do seu interesse se conformar a ele” (ibid, 134).

Nesse sentido, Bull demonstra uma visão mais sofisticada do papel do direito
internacional ao fugir do “dilema austiniano” de que se o Direito Internacional não
impede os Estados de usarem a força, então ele não serve. O direito internacional é
parte constitutiva da sociedade de Estados. Essa, por sua vez, desenvolveu instituições
que lhe são peculiares, como o próprio direito internacional público, já que nas palavras
de Wight (1966b, 127): “não havia um Grócio grego”. Ao desenvolver seu argumento
de que a sociedade internacional é de fato uma sociedade contra a visão realista que
nega este ponto, o autor destaca que “claramente onde existe direito, existe sociedade”
(1991, 140, ênfase no original). Igualmente, Hedley Bull afirma que “não há dúvida de
que existem regras que os Estados e outros agentes na política internacional vêem
como obrigatórias. É em virtude desse fato que podemos falar da existência de uma
sociedade internacional” (1995, 124).

2. Hedley Bull e o Direito Internacional


As Concepções Pluralista e Solidarista da Sociedade Internacional

Bull devotou grande parte de sua vida acadêmica em Relações Internacionais


à análise do direito internacional. Além desse ser um dos principais ndicadores da
existência de uma sociedade no plano internacional, ele também reflete divergências
no plano da moralidade. A Escola Inglesa de Relações Internacionais distingue duas
concepções de sociedade internacional que refletem duas concepções sobre o
ordenamento jurídico internacional: pluralista e solidarista (Bull, 1966). Um dos principais
argumentos da concepção pluralista é que a sociedade internacional não dispõe de
um consenso em questões sobre justiça global. Consequentemente são mínimas as
possibilidades de ações conjuntas em matérias de redistribuição das riquezas globais
ou direitos humanos universais. Nesse sentido, a cooperação é limitada, pois, segundo
a definição de Bull (idem, 67), na concepção pluralista da sociedade internacional, os
Estados são capazes de acordarem somente com relação a propósitos mínimos, sendo
os principais: o reconhecimento recíproco da soberania e a norma da não-intervenção.
Assim, o foco “nas verdadeiras áreas de acordo entre os Estados” (ibid., 73) faz com
que a sociedade internacional receie toda ação que coloque em risco as instituições
internacionais plenamente estabelecidas.

48
Como fica claro na citação de Bull: Se um direito de intervenção é proclamado
com o propósito de impor padrões de conduta em uma situação em que não exista
um consenso que governe o seu uso, então se abre a porta para intervenções por
determinados Estados que venham a usar tal direito como um pretexto, e o princípio
da soberania territorial é posto em perigo (ibid., 71, ênfases nossas). A ordem na política
mundial é baseada nesses objetivos elementares e é sustentada pelas normas e
instituições — balança de poder, direito internacional, diplomacia, a guerra, e as grandes
potências — da sociedade internacional, que, por sua vez, tem a sua legitimidade apoiada
em seus membros, ou seja, nos Estados. Esses últimos, longe de garantirem uma
ordem estável e segura, provêm uma ordem precária e imperfeita. Consequentemente,
acarreta o fato de que, mesmo quando as instituições e mecanismos que sustentam a
ordem internacional funcionam adequadamente, noções de justiça são frequentemente
violadas (idem 1995, 50 e 87).

Tais objetivos elementares permitem que a ordem possa existir mesmo entre
Estados que não pertençam a uma civilização em comum, demonstrando que a
sociedade internacional tem um caráter 'funcional' ao invés de 'cultural'. A necessidade
pragmática de coexistir é suficiente para produzir o que Bull chamou de “cultura
diplomática” — um sistema de regras, convenções e instituições, que preserva a ordem
entre associações políticas com culturas e ideologias diversas (Linklater 1996, 97).
Na concepção solidarista da sociedade internacional, a cooperação não é limitada, e
sim extensiva. Tal concepção baseia-se no argumento grociano da solidariedade, ou
potencial de solidariedade, entre os Estados, em relação à imposição da lei (Bull 1966,
52). A pressuposição solidarista de intervenção humanitária tem por base o postulado
de que os indivíduos são sujeitos do Direito Internacional e membros da sociedade
internacional, de maneira que os governantes, além de serem responsáveis pela
segurança e bem estar de seus cidadãos, são responsáveis pela proteção dos direitos
humanos em qualquer lugar (ibid., 63- 64, ênfases nossas). É importante destacar que
a atual relevância destas distinções conceituais elaboradas por Bull. Nos anos 90, com
todas as intervenções humanitárias, o debate entre os defensores das concepções
pluralista e solidarista dentro da Escola Inglesa ressurgiu com força total. A intervenção
da OTAN no conflito do Kosovo, em março de 1999, foi mais do qualquer outro evento,
o grande mediador deste debate na Escola Inglesa. Entre os teóricos da Escola Inglesa
que trataram do assunto, os dois principais "protagonistas" dos dois lados do debate
foram Robert Jackson (pluralista) e Nicholas Wheeler.

Enquanto a tendência ao longo dos anos 1990 foi tratar as duas concepções
como mutuamente excludentes, as contribuições recentes destacam que apesar de
suas diferenças e características próprias, elas não devem ser vistas como totalmente
antagônicas, mas como complementares. Barry Buzan (2004, 58-59) destaca que, para
evitarmos concepções dicotômicas, deveríamos pensar sobre o pluralismo e solidarismo
como pontas de um mesmo espectro. Se o solidarismo é compreendido como sendo
sobre a densidade das normas, regras e instituições que os Estados decidem criam para
gerenciar suas relações, então pluralismo e solidarismo simplesmente ligam posições
em um espectro e não são necessariamente contraditórios.

49
Dessa forma, eles representam diferenças de grau e não posições contraditórias.
A mudança de ênfase de Bull em direção ao solidarismo em seus últimos trabalhos
nos anos 1980, apesar de nunca abandonar totalmente seu ceticismo inicial, também
demonstra a artificialidade desta dicotomia. Sua análise da “revolta contra o ocidente”
levava em conta, principalmente, se as potências ocidentais saberiam lidar com as
demandas de mudanças de maneira a acatá-las e construir, dessa forma, as bases de
uma sociedade internacional mais justa e igualitária. Sua visão sobre o papel do Terceiro
Mundo (hoje por muitos chamado de “Sul Global”) dialoga diretamente com os desafios
contemporâneos das chamadas “potências emergentes” (ver Alden, Morphet e Viera,
2010). Isso tem repercussões diretas no argumento deste artigo sobre a importância da
abordagem do direito internacional feita pela Escola Inglesa. Vejamos, Bull (1995, 303)
destacava que um consenso baseado apenas nas grandes potências e que não levasse
em consideração as demandas dos países asiáticos, africanos e latino-americanos não
poderia durar. Hoje a sociedade internacional enfrenta as demandas desses países por
maior participação nos processos decisórios internacionais.

Nesse sentido, é preciso reavaliar as bases normativas da ordem internacional,


pois pressupor que essas já foram mutuamente estabelecidas é negligenciar os
problemas que atualmente ameaçam desestabilizar essa ordem (O`Hagan 2005,
226-7). Devemos questionar em que medida as normas da sociedade internacional
representam um consenso genuíno ou uma hierarquia disfarçada de um poder ideacional
e institucional que pode, em última instância, enfraquecer a eficácia das normas e
a coesão da sociedade internacional (ibid., 224). Por isso, é importante a análise do
impacto das potências emergentes na estrutura de normas da sociedade internacional.
Em que medida elas aceitam ou contestam o arcabouço liberal da ordem do pós- Guerra
Fria? (ver Hurrell, 2006, 2008 e 2010). E, sobretudo, mantém no centro do debate a
questão da legitimidade (Fonseca Jr., 1998 e 2008; Hurrell, 2005; Clark, 2005 e 2007).

FONTE: SOUZA, E. A Escola Inglesa de Relações Internacionais e o Direito Internacional. Mural internacio-
nal, v.4, n. 1, 2013.

Leia mais em:


https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/6755

50
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A tradição da Guerra Justa vai desde as contribuições teológicas de Santo Agostinho


e São Tomás de Aquino ao paradigma legalista de autores como Michael Walzer.

• Entender os limites legais da guerra nos ajuda a analisar a moralidade dos conflitos e
questões como responsabilidade estatal e o envolvimento de empresas privadas em
conflitos armados.

• Há diferenças consideráveis no que se denomina direito à guerra e direito na guerra.


O direito internacional contemporâneo enfatiza a segunda categoria, uma vez que,
em virtude do princípio da soberania e da valorização da autonomia estatal, é quase
impossível julgar objetivamente as motivações de um Estado em declarar guerra.

• Mudanças do clima são um fenômeno agravado pela ação humana cuja governança
envolve o estabelecimento de princípios de justiça distributiva e cosmopolita.
Compreender o que é a justiça climática é importante para entender como meio
ambiente e Relações Internacionais estão conectados.

51
AUTOATIVIDADE
1 Segundo Buzan (2011): “o debate entre Pluralismo e Solidarismo é sobre como a
sociedade interestatal se relaciona/deveria se relacionar com a sociedade mundial
- ou, em outras palavras, como os estados se relacionam/deveriam se relacionar
com indivíduos.” Apresente as respostas a esses questionamentos segundo as duas
abordagens normativas principais: Pluralismo e Solidarismo.

2 Apresente a evolução histórica do pensamento sobre Guerra Justa e as linhas gerais


do paradigma legalista de Walzer.

3 O que é justiça climática? Como justiça e mudanças climáticas se relacionam e se


manifestam na governança ambiental global?

52
REFERÊNCIAS
ANSCOMBE, E. War and Murder. In: STEIN, W. Nuclear Weapons: a catholic response.
Sheed and Ward, 1961.

BULL, H. International Theory: the case for a classical approach. World Politics, v. 18.
n. 3, 1966.

BULL, H. The Anarchical Society. London: Macmillan, 1977.

BULL, H. Martin Wight and the Theory of International Relations. In: International
Theory: the Three Traditions. Leicester University Press, 1991.

ERSKINE, T. Normative International Relations Theory. In: DUNNE, T.; KURKI, M.; SMITH,
S. International Relations Theory: discipline and diversity. Oxford University Press,
2013.

HUTCHINGS, K. International Political Theory: rethinking ethics in a global era. Sage


Publications, 1999.

KAPLAN, M. The New Great Debate: Traditionalism vs. Science in International


Relations. World Politics. v. 19, n.1, 1966.

ROBERSON, B. Probing the idea and prospects for international society. International
Society and the Development of International Relations Theory. Continuum,
2002.

SOUZA, E. A Escola Inglesa de Relações Internacionais e o Direito Internacional. Mural


internacional, v.4, n.1, 2013.

TONNIES, F. Community and Society. Routledge, 1988.

VANDERHEIDEN, S. Atmospheric Justice: a political theory of climate change. Oxford


University Press, 2008.

WALZER, M. Just and Unjust Wars: a moral argument with historical illustrations.
Basic Books Classics Series, 1977.

WIGHT, M. An Anatomy of International Thought. Review of International Studies.


1987.

WIGHT, M. International Theory: the Three Traditions. Leicester University Press, 1991.

53
54
UNIDADE 2 —

O CONSTRUTIVISMO
NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender conceitos da sociologia contemporânea, importantes para o


desenvolvimento teórico construtivista, tais como “dualidade da estrutura”,
“rotinização” e “estruturação”;

• entender a teoria construtivista como via média no campo das Relações internacionais
e suas principais vertentes: o construtivismo regra-orientado e construtivismo
estrutural;

• compreender a importância da análise das normas e das identidades nas relações


internacionais.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoati-
vidades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – AS CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA PARA O PENSAMENTO CONSTRUTIVISTA


TÓPICO 2 – O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA
TÓPICO 3 – ABORDAGENS CANÔNICAS E CONTEMPORÂNEAS DO CONSTRUTIVISMO

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

55
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

Acesse o
QR Code abaixo:

56
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
AS CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA PARA
O PENSAMENTO CONSTRUTIVISTA

1 INTRODUÇÃO
O fim da Guerra Fria representou uma série de mudanças – tanto na ordem
política global, quanto na compreensão dessa ordem por parte da academia. As teorias
racionalistas dominantes do campo das Relações Internacionais (discutidas em “Teoria
das Relações Internacionais I”) falharam em explicar a totalidade das mudanças nesse
contexto, o que abriu espaço para abordagens mais reflexivistas e que levassem em
consideração o papel das ideias, das identidades, da cultura e das normas na política
internacional. Dentre essas abordagens destaca-se o Construtivismo.

O Construtivismo foca, em linhas gerais, na análise da relação entre os fatores


não-materiais (como normas, ideias, conhecimento e cultura) e materiais das relações
internacionais. Ainda que não seja possível homogeneizar as diferentes contribuições
ao pensamento construtivista, três premissas são comuns a elas: (I) a interação entre
indivíduos não seria moldada por fatores materiais, mas primariamente por fatores
ideacionais; (II) os fatores ideacionais mais significativos nesse contexto são as crenças
“intersubjetivas” compartilhadas entre os atores em sociedade e (III) essas crenças
constroem as identidades e interesses dos atores (FINNEMORE; SIKKINK, 2001, p. 393).

O pensamento construtivista foi amplamente influenciado pelo desenvolvimento


teórico em outros campos, como Filosofia e Sociologia. O primeiro tópico dessa unidade
será dedicado à discussão dos conceitos e contribuições teóricas da teoria social,
especialmente o Interacionismo Simbólico, de pensadores como George Hebert Mead
(1863-1931) e Herbert Blumer e a Teoria da Estruturação em Anthony Giddens. O objetivo
é estabelecer a base para a reflexão sobre o papel da linguagem e de fatores subjetivos
na compreensão da sociedade, elementos importantes para o Construtivismo.

IMPORTANTE
OS CONCEITOS DE OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE

As noções de subjetividade e objetividade foram discutidas ao longo da


história por uma série de pensadores notáveis nos diversos campos das
humanidades. De modo geral, objetividade diz respeito a tudo aquilo que
pode ser “observado” – na visão kantiana é aquilo que possui validade
universal, que não varia de acordo com a época, a cultura, a religião, etc.
Subjetividade, por outro lado, diz respeito ao mundo das ideias, dos valores
e dos significados. Ao contrário daquilo que é objetivo, a subjetividade não
é universal - depende de interesses e desejos individuais.

57
2 INTERACIONISMO SIMBÓLICO E A VIRADA LINGUÍSTICA
Ao longo do século XX as ciências humanas e sociais passaram por
transformações notáveis – tanto teórica, quanto metodologicamente. Se antes a ênfase
majoritária das análises era na estrutura social e seu impacto sobre os cidadãos (ex.:
a tríade Marx, Durkheim e Weber enfatiza as estruturas sociais como determinantes
do comportamento humano), a partir da virada linguística a preocupação passa a ser,
também, com o papel desses cidadãos na formação e reprodução das estruturas sociais.
Essa mudança não ocorreu de modo linear e em pouco tempo – ainda assim, é possível
identificar similaridades na produção do conhecimento em diferentes áreas, a partir do
reconhecimento da importância do estudo da linguagem.

O que foi, então, a virada linguística e por que é importante compreender seu
papel nas ciências humanas e sociais? Em linhas gerais, a virada linguística se refere à
crescente adoção do estudo da linguagem para a compreensão de fenômenos sociais,
principalmente a partir do século XX, nos campos da Filosofia, Sociologia e Psicologia.
Uma das principais obras que discute esse fenômeno é o livro “’The Linguistic Turn”,
publicado por Richard Rorty em 1967.

Rorty (1967) afirma que a virada linguística seria um fenômeno crescente na


Filosofia porque o campo estaria notando que “problemas filosóficos são problemas que
podem ser resolvidos (ou dissolvidos) tanto pela reforma da linguagem, quanto por um
maior entendimento da linguagem que nós utilizamos” (RORTY, 1967, p. 7). Isso significa
que a análise da comunicação entre indivíduos em sociedade, e dos significados
atribuídos por esses indivíduos a acontecimentos e objetos por meio da linguagem, seria
útil para compreender uma série de fenômenos subjugados pela sociologia clássica. A
partir dessas mudanças, a academia passa a refletir mais sistematicamente sobre o
papel da linguagem na vida social e sobre os aspectos subjetivos das sociedades.

Nos campos das Ciências Sociais, Psicologia e Filosofia destacam-se dois


representantes dos estudos da linguagem e da comunicação em sociedade: George
Hebert Mead (1863-1931) e Herbert Blumer (1900-1987), pesquisadores da Escola de
Chicago e precursores da corrente denominada por Blumer “Interacionismo Simbólico”.
Segundo essa visão, o papel do pesquisador nas ciências humanas e sociais não seria
analisar um conjunto de fatos, mas observar atentamente os processos sociais e as
interações entre indivíduos na sociedade. O que se denomina “realidade social” não
existiria externamente ao indivíduo, mas dependeria da sua interpretação e do modo
como ele a comunica a outros.

58
FIGURA 1 – HERBERT BLUMER

FONTE: <https://maestrovirtuale.com/herbert-blumer-biografia-teoria-e-obras/>. Acesso em: 21 set. 2021.

IMPORTANTE
A ESCOLA DE CHICAGO NA PSICOLOGIA SOCIAL

A Escola de Chicago é o nome atribuído a um conjunto de pensadores


que conduziu pesquisas e análises na Universidade de Chicago, nos
Estados Unidos, da década de 1920 a década de 1960. Influenciados pela
virada linguística na Filosofia, os pensadores de Chicago se dedicaram
a compreender, de modo geral, o papel da linguagem na interação
entre indivíduos e os significados provenientes dessa interação. Foram
membros dessa corrente pensadores como George Hebert Mead,
Herbert Blumer, William Thomas, Robert Park e Robert McKenzie.

Segundo Blumer (1969), o que diferencia os seres humanos das outras espécies
de animais seria a nossa capacidade de dar nome as coisas e de nos comunicar através
da linguagem simbólica (palavras, desenhos, símbolos etc.). A mente humana, embora
seja resultado da herança biológica, se desenvolveria no decurso da interação social. Ao
longo de nossas vidas desenvolvemos gestos simbólicos com significados, e os outros
reagiriam em conformidade com o significado que fixaram ao longo de suas próprias
vidas. Isso fica claro quando dois indivíduos, em situação semelhante, reagem de igual
modo (ex.: quando alguém exclama “perigo!” a duas pessoas que falam português,
geralmente a reação de ambas é alarmar-se, correr ou verificar ao redor se há alguma
ameaça) – isso significa que o significado da expressão “perigo!” é compartilhado (tanto
pelas duas pessoas, quanto por quem exclamou) e associado às sensações de medo,
desconfiança e às ações de correr, se alarmar.

59
Blumer (1969) destaca, desse modo, as três premissas centrais do Interacionismo
Simbólico:

1. Os seres humanos agem em relação ao mundo fundamentando-se nos significados


que este lhes oferece.
2. Os significados são provenientes da interação social que se mantém com as demais
pessoas.
3. Significados são manipulados por um processo interpretativo do indivíduo ao se
relacionar com os elementos com os quais entra em contato.

A partir da Virada Linguística e do Interacionismo Simbólico, o indivíduo deixa


de ser analisado apenas como um agente que reage às estruturas sociais e passa a ser
entendido como observador e crítico dessas estruturas e como parte indissociável da
construção e reprodução dessas estruturas. A linguagem (falada, escrita, etc) torna-se
elemento importante da análise social e a filosofia da linguagem (cujas contribuições têm
como principal expoente Ludwig Wittgenstein) amplia suas influências para a Sociologia
e, mais recentemente, para as Relações Internacionais.

3 A RELAÇÃO ENTRE AGENTE E ESTRUTURA EM GIDDENS


A relação entre indivíduos (agentes) e estrutura social foi compreendida
pelos clássicos da sociologia (notadamente Marx, Durkheim e Weber) com ênfase
principalmente na estrutura – nas regras, normas, papeis sociais e classe social.
Após a virada linguística, o campo das Ciências Sociais passa a compreender como
essa estrutura, além de influenciar as ações individuais, também é influenciada pelos
indivíduos a partir da comunicação entre eles. Um dos principais expoentes desse
esforço é o sociólogo britânico Anthony Giddens.

Giddens tornou-se um dos principais nomes da Teoria Social contemporânea


em virtude do número de publicações sobre diferentes temáticas (além da relação
entre agente e estrutura, destacam-se obras sobre modernidade, meio ambiente,
divisão política entre esquerda e direita, dentre outros temas relevantes no campo).
Para as Relações Internacionais, uma de suas principais contribuições reside na “Teoria
da Estruturação”, uma das bases do pensamento Construtivista. Nesse tópico serão
discutidos os conceitos de estrutura e agência em Giddens a partir de suas críticas ao
funcionalismo

Giddens (1984) afirma que seria incompleto o esforço de análise da ação humana
como sendo restringida por poderosas estruturas sociais estáveis (como instituições
educacionais, religiosas ou políticas) – como afirmava o funcionalismo de Durkheim -
ou como apenas como sendo uma função da expressão individual da vontade – como
defendiam correntes no campo da Psicologia. Ou seja, entender os indivíduos a partir da
análise apenas da estrutura ou da agência, seria reduzir a sociedade a um ou outro fator.

60
A Teoria da Estruturação, como foi nomeada a teoria elaborada por Giddens, reconhece
a interação entre significado, padrões, valores e poder, e postula uma relação dinâmica
entre agente e estrutura.

A relação entre agência e estrutura tem sido foco de análises no campo da


Sociologia desde a sua criação. As teorias que defendem a preeminência da estrutura
(denominadas teorias objetivistas) afirmam que o comportamento dos indivíduos seria
determinado por sua socialização nessa estrutura (ex.: conformação das expectativas da
sociedade em relação a gênero, classe social, religião etc.). As estruturas sociais operam
em níveis variados: em seu nível mais alto, é possível afirmar que a sociedade consiste
em estratificações socioeconômicas de massa (ex.: classes sociais). No nível médio,
destacam-se as instituições sociais (ex.: religião, família). Em escala menor, destacam-
se normas e regras comunitárias. Em todos os níveis, essas estruturas constrangem/
limitam a agência, ou seja, a capacidade do indivíduo de agir de modo autônomo.

Até os anos 1980, era possível identificar duas correntes centrais na sociologia: o
estruturalismo e os teóricos da agência. Autores estruturalistas da sociologia descrevem
o efeito da estrutura de diferentes maneiras. Émile Durkheim (1858-1917), por exemplo,
destacou o papel positivo das estruturas sociais na estabilidade e na permanência
de práticas sociais, enquanto Karl Marx (1818-1883) descreveu como as estruturas
protegeriam poucos e deixariam em segundo plano as necessidades de muitos. Em
contraste, os proponentes da teoria da agência (também denominada “visão subjetiva”)
consideram que os indivíduos possuem a capacidade de exercer seu próprio livre arbítrio
e fazer suas próprias escolhas. Para essa visão, as estruturas sociais são vistas como
simples produtos da ação individual, ao invés de forças incomensuráveis como afirmam
os estruturalistas.

Giddens desenvolve, a partir dos anos 1980, um argumento que propôs o fim da
polarização do debate estrutura-agência, destacando a síntese dessas duas influências
no comportamento humano. O autor afirma que, assim como a autonomia de um
indivíduo é influenciada pelas estruturas nas quais ele está inserido, as estruturas são
mantidas e adaptadas por meio da autonomia individual (agência). Essa relação de co-
constituição entre agente e estrutura é denominada “estruturação”.

4 ESTRUTURA, SISTEMA E REPRODUÇÃO SOCIAL: A


TEORIA DA ESTRUTURAÇÃO
A Teoria da Estruturação de Giddens tenta compreender o comportamento social
humano por meio da conciliação entre as perspectivas macro (ênfase na estrutura) e
micro (ênfase na agência). O autor a realiza por meio do estudo dos processos que
ocorrem na interface entre o indivíduo e as estruturas sociais, afirmando que a ação
social não pode ser explicada apenas por um ou por outro elemento. Em vez disso,
reconhece que os indivíduos operam dentre de contextos de regras produzidas por

61
estruturas sociais, mas que essas estruturas só se manteriam no tempo e no espaço se
forem reforçadas, ou seja, se por meio da agência houver uma legitimação da estrutura.
Como resultado, as estruturas sociais não teriam estabilidade inerente fora da ação
humana, porque seriam socialmente construídas. A relação entre agente e estrutura
não seria um dualismo como afirmam as teorias estruturalistas e da agência, mas uma
dualidade.

FIGURA 2 – ANTHONY GIDDENS

FONTE: <https://filosoficabiblioteca.wordpress.com/2013/11/15/giddens-varios-titulos-pdf/>. Acesso em:


21 set. 2021.

GIO
DUALISMO E DUALIDADE DA RELAÇÃO AGENTE-ESTRUTURA:
QUAL A DIFERENÇA?

As teorias clássicas da sociologia, como o funcionalismo de Durkheim e


o estruturalismo, afirmam que a relação entre agente e estrutura seria
um dualismo, ou seja, uma relação entre dois elementos independentes
e opostos. Quando Giddens propõe uma reconceituação da relação
entre os dois elementos, e cunha o termo “estruturação”, ele afirma que
a relação seria, na verdade, de dualidade – ou seja, de dois elementos
que se relacionam, existem simultaneamente, e não são excludentes.

O conceito de estrutura em Giddens difere do conceito de estrutura na teoria


sociológica clássica. O pensador britânico afirma que haveria três tipos de estrutura em
um sistema social: a primeira é a significação, em que o significado é codificado na prática
da linguagem e do discurso. A segunda é a legitimação, que consiste nas perspectivas
normativas incorporadas como normas sociais e valores. A terceira é a dominação, que
diz respeito a forma como o poder é aplicado, principalmente no controle de recursos
(GIDDENS, 1984, p. 45).

62
O esquema abaixo resume a relação entre os três elementos estruturais e a
interação entre os indivíduos em sociedade:

Em suma, a relação de dualidade entre estruturas sociais, a comunicação entre


indivíduos e a capacidade de agir de modo autônomo estão no centro da Teoria da
Estruturação. Como pensar, então, na estrutura do sistema internacional sem enfatizar
o papel dos agentes na sua formação e sustentação ao longo do tempo? Os avanços no
campo da Sociologia passam a oferecer um desafio teórico e metodológico ao campo
das Relações Internacionais, que durante seis décadas foi caracterizado pelo predomínio
de teorias influenciadas pelo estruturalismo e/ou pela total negligência em relação ao
que se produzia nos campos da Filosofia e da Sociologia.

Ao observar as teorias centrais do debate neo-neo, o Neorrealismo e o


Institucionalismo Neoliberal, por exemplo, é possível identificar como a estrutura é vista
como independente da agência. A relação entre os dois elementos é conceitualizada
como dualismo, não como dualidade – a estrutura (anárquica) influencia os agentes
(Estados) e seu comportamento seria resultado dessa influência. Quando da
emergência da Teoria da Estruturação na Sociologia, algumas questões aparecem como
relevantes nas RIs: “como os agentes moldam essa estrutura? Quais significados são
compartilhados? Como a análise dos discursos e significados compartilhados entre
Estados contribui para a compreensão da política internacional? O Construtivismo se
encarrega das respostas a essas questões. O próximo tópico será dedicado, então, à
reflexão sobre essa teoria como via média entre as teorias objetivistas das Relações
Internacionais (três primeiros debates) e as propostas reflexivistas do quarto debate do
campo.

63
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• O pensamento construtivista foi amplamente influenciado pelo desenvolvimento


teórico em outros campos, como Filosofia e Sociologia.

• Virada Linguística é o nome dado ao período em que desenvolvimento teórico nos


campos da Psicologia, Sociologia e Filosofia passa a considerar centrais a linguagem
e os processos interpretativos dos indivíduos na análise das sociedades.

• A Teoria da Estruturação de Giddens enfatiza a relação de dualidade entre agente e


estrutura – isso significa que, segundo o autor, a estrutura sozinha não influencia as
ações individuais, tampouco os agentes possuem total autonomia.

• A relação de dualidade entre estruturas sociais, a comunicação entre indivíduos e a


capacidade de agir de modo autônomo estão no centro da Teoria da Estruturação de
Giddens e são elementos importantes para o entendimento da teoria Construtivista
das RIs.

64
AUTOATIVIDADE
1 O que foi a “Virada Linguística”? Qual a sua importância para o desenvolvimento
teórico-conceitual nos campos da Filosofia, Sociologia e Psicologia?

2 Cite e explique as três premissas centrais do Interacionismo Simbólico.

3 Qual a diferença entre dualismo e dualidade na relação entre agente e estrutura? Por
que Giddens inova ao propor uma reconceituação dessa relação?

65
66
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA

1 INTRODUÇÃO
A Escola Inglesa, discutida na primeira unidade do livro, é frequentemente
considerada um “meio-termo” teórico entre o Liberalismo e o Realismo no campo das
Relações Internacionais. O pensamento de autores como Hedley Bull, Martin Wight e
Barry Buzan envolve a ideia de uma sociedade de Estados que coexistem em nível
internacional a partir do compartilhamento de normas e regras comuns – nesse sentido,
os autores diferem do Realismo ao considerar possível a manutenção da ordem sem a
primazia do conflito e da lógica de sobrevivência, ao mesmo tempo em que se afastam
do Liberalismo ao estabelecer limites a possibilidade de cooperação e de haver harmonia
de interesses entre os Estados.

O Construtivismo, teoria que emerge no campo no início dos anos 1980, também
é amplamente considerada um “meio-termo” – dessa vez entre teorias convencionais
racionalistas (ou “mainstream”) e abordagens reflexivistas. A teoria destaca a
importância da análise da dualidade entre agente e estrutura para o entendimento do
sistema internacional, além da ênfase nas interações entre indivíduos e Estados a partir
da Teoria Social.

Nicholas Onuf foi o primeiro teórico a introduzir o termo “construtivismo” no


campo das Relações Internacionais – precisamente, em 1989 no livro “World of Our
Making” - argumentando que os Estados, assim como os indivíduos, vivem em um
mundo criado por eles mesmos. Nesse sentido, os fatos sociais seriam produto da ação
humana, não existindo de modo independente dos indivíduos.

Assim como as demais abordagens no campo, não é possível afirmar que existe
um único Construtivismo. Ao longo dos anos uma série de obras foram publicadas e
enquadradas na corrente construtivista – seja pela ênfase na relação entre agente e
estrutura (como é o caso das obras de Alexander Wendt), seja pelo estudo das normas
internacionais (em que se destaca Nicholas Onuf), seja pela análise da difusão e
internalização de normas internacionais (que tem como referências centrais autores
como Michael Barnett e Martha Finnemore).

Neste tópico, o foco será na discussão sobre a teoria Construtivista em


linhas gerais, a partir de sua posição como “via média”, ou ainda, “meio termo” entre
as abordagens racionalista e interpretativista. A ideia é entender como a discussão
sobre dualidade da estrutura influenciou os estudos do campo, além de compreender a
posição da teoria no denominado “quarto debate” teórico.

67
2 A DUALIDADE DA ESTRUTURA NO ENTENDIMENTO DA
SOCIEDADE INTERNACIONAL
O conceito de “estrutura” é um dos mais importantes e elusivos nas Ciências
Sociais, de modo geral, e nas Relações Internacionais, especificamente. Conforme
discutido em “Teoria das Relações Internacionais I”, a teoria Neorrealista de Kenneth Waltz
(1959, 1979) considera a estrutura do sistema internacional um elemento fundamental
da explicação do comportamento dos Estados. Durante décadas essa concepção
dominou as análises do campo e se popularizou como uma das principais premissas
teórico-conceituais das RIs.

A influência dos debates teóricos em outros campos, além da expansão dos


temas internacionais no pós Guerra-Fria, desafiou essa concepção e, por consequência,
a centralidade da estrutura na explicação do comportamento dos Estados. No tópico
anterior discutimos uma das contribuições mais importantes nesse desafio à ortodoxia
do campo: a Teoria da Estruturação de Giddens. Nessa seção o objetivo será compreender
como suas premissas se aplicam ao entendimento do sistema internacional e em que
medida a reconceituação da relação entre agente e estrutura na Teoria Social teve
consequências também no campo das Relações Internacionais.

O Neorrealismo de Waltz conceitua a estrutura em termos fundamentalmente


materiais. Relembrando nossa discussão em Teoria I, o autor assinala para uma estrutura
internacional anárquica em que prevalece uma “distribuição de capacidades”. Isso
significa que a abordagem enfatiza o papel dos elementos materiais (poder e recursos
que os Estados possuem) na explicação das relações internacionais.

Giddens, por outro lado, revisita a concepção dualista da relação entre agente
e estrutura e afirma que essa última deve ser compreendida não apenas em termos
materiais, mas a partir da análise do papel dos indivíduos na sua construção. A estrutura
seria, portanto, um elemento social e passível de análise a partir desse domínio. Essa
concepção abre espaço para uma série de críticas às visões estruturalistas nas Ciências
Sociais: se o papel dos indivíduos importa na definição, reificação ou alteração das
estruturas, seria equivocado (e/ou incompleto) enfatizar o papel de apenas um dos
elementos na explicação tanto das sociedades, quanto do comportamento dos Estados.

O Construtivismo, de modo geral, influenciado por essa série de mudanças


nas Ciências Sociais, reage ao domínio racionalista e materialista do campo e produz
uma série de estudos sobre como a intersubjetividade guia e molda o comportamento
estatal. A preocupação com a construção e reconstrução da política internacional levou
as análises construtivistas ao estudo da mudança nas relações internacionais a partir
do entendimento da convergência entre os Estados em torno de formas similares de
organização nas sociedades doméstica e internacional, e como as normas se tornam
internacionalizadas e institucionalizadas, influenciando o que atores estatais e não-
estatais fazem, além de suas ideias sobre o que seria um comportamento considerado
legítimo.
68
Nesse sentido, para o Construtivismo o Estado não seria o único protagonista
possível das Relações Internacionais, a ênfase dos atores na política internacional não
seria necessariamente na manutenção da sobrevivência e na busca por poder e ideias,
normas e valores possuem relevância e também definiriam os interesses dos Estados.
A abordagem se destaca no que a historiografia do campo denomina “quarto debate”,
discutido a seguir.

3 O QUARTO DEBATE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS


No início dos anos 1990, o terceiro debate (também denominado “debate
interparadigmático, ou neo-neo) perde apelo no campo – seja pelo próprio fim da
Guerra Fria e da emergência de uma política internacional marcada cada vez mais pela
emergência de questões identitárias e pela multiplicação de temas e atores relevantes,
seja pelo desenvolvimento teórico do próprio campo e das Ciências Sociais de modo
geral.

No contexto da emergência do pensamento construtivista – que será estudado


em profundidade no tópico seguinte – é possível identificar a tentativa de construção de
um novo debate no campo. Havia, ao menos, duas razões para deslegitimar o terceiro
debate e apostar na produção do conhecimento a partir de outras epistemologias: em
primeiro lugar, a possibilidade de tornar o campo mais eclético e plural e, em segundo
lugar, a “promessa” construtivista de enfatizar na análise da política internacional o
papel das normas e a possibilidade de mudança.

Na produção de análises no campo das Relações Internacionais duas questões


frequentemente aparecem: 1) As Relações Internacionais são uma ciência ou não?,
e 2) Sobre quais elementos/objetos de estudo devem ser as análises da política
mundial? A partir desses questionamentos, as análises do campo foram organizadas
pela historiografia em debates. Relembrando nossas discussões anteriores, o primeiro
debate (entre os anos 40 e 50) contrapôs as visões realista política e idealista; o
segundo debate (predominante entre os anos 70 e 70) envolveu a discussão entre a
visão tradicionalista e behaviorista de ciência e o terceiro debate, também denominado
“neo-neo” (entre os anos 70 e 80) foi responsável pela consolidação das correntes
neorrealista e institucionalista neoliberal como dominantes.

O quarto debate, geralmente visto como aquele que atualmente domina os


estudos de política internacional no campo (a partir dos anos 1990) pode ser caracterizado
de três maneiras:

69
1. Um debate entre explicar e compreender: as teorias explicativas são aquelas que
buscam emular as Ciências Naturais, buscando causas gerais. Seriam abordagens
explicativas do campo principalmente o neorrealismo e o institucionalismo neoliberal.
A posição compreensiva, por sua vez, argumenta que as análises devem explorar
a vida social e a interpretação dos significados internos - as crenças e razões dos
atores. O Construtivismo e as teorias pós-estruturalistas adotam dessa posição.

2. Um debate entre positivismo e pós-positivismo: positivismo é uma filosofia da


ciência que:

a) Defende uma ciência baseada na observação sistemática que segue diretrizes claras;
b) Acredita no estudo de regularidades observadas e observáveis;
c) Tende a evitar análises sobre realidades que não se consegue observar.

O pós-positivismo se refere, por sua vez, a um número de teorias que utilizam


uma teoria interpretativa ou que buscam uma versão não-positivista de ciência, levando
em consideração o papel das ideias e crenças.

3. Um debate entre racionalismo e reflexivismo; enquanto o racionalismo se


refere àquelas análises que aplicam métodos positivistas e de escolha racional,
o reflexivismo diz respeito a análises que rejeitam esses métodos e defendem
metodologias interpretativas e reflexivas.

O quadro abaixo resume a categorização das principais teorias do campo a


partir dessa última concepção:

TEORIAS RACIONALISTAS TEORIAS REFLEXIVISTAS


Neorrealismo Teoria Crítica
Institucionalismo Neolibral Construtivismo
Pós-estruturalismo
Feminismo

O quarto debate amplia as discussões do campo e passa a contrapor dois


modos distintos de se “enxergar” as RIs: a partir de questões objetivas e da busca por
explicações causais ou a partir da análise das ideias, valores e crenças e da compreensão
das relações internacionais. Uma vez em que as teorias são “lentes” a partir das quais é
possível analisar a política internacional, a cada concepção teórica está associada uma
visão sobre a relação entre Estados, a relevância de cada ator internacional e sobre a
possibilidade de mudança no sistema internacional. Nesse sentido, o Construtivismo é
considerado uma “via média”, ou “meio-termo” entre essas duas grandes categorias do
campo. Essa visão será explorada em detalhes a seguir.

70
4 O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA
A partir dos anos 1990, o Construtivismo passa a ser considerado um “meio-
termo” entre as concepções positivista e pós positivista no campo. Emanuel Adler
(1999) afirma que a teoria seria uma perspectiva segundo a qual “o modo pelo qual
o mundo material forma a, e é formado pela, ação e interação humana depende de
interpretações normativas e epistêmicas do mundo material” (ADLER, 1999, p. 205). Ou
seja, para o Construtivismo o mundo não seria só aquilo que se pode observar (como
afirmam as teorias positivistas), e nem só aquilo que deriva da interpretação dos atores
(como afirmam os pós-positivistas). Ideias e mundo material importam igualmente na
explicação da política internacional.

FIGURA 1 – EMANUEL ADLER

FONTE: <https://www.emanueladler.com>. Acesso em: 21 set. 2021.

DICA DE LEITURA
“O CONSTRUTIVISMO NO ESTUDO DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS”, DE EMANUEL ADLER

Um dos artigos mais importantes no estudo do Construtivismo como


via média é “O Construtivismo no Estudo das Relações Internacionais”,
escrito por Emanuel Adler e publicado em português na revista
Lua Nova, em 1999 (o artigo original, “Seizing the Middle Ground:
Constructivism in World Politics” foi publicado no European Journal of
International Relations). O autor explora a importância da teoria no
estabelecimento de uma “ponte” entre as duas concepções de ciência
no campo. Adler enfatiza que a abordagem construtivista apresenta
a oportunidade de desenvolvimento de uma teoria sócio-cognitiva
no campo e de análise não só dos fatos objetivos da política mundial,
mas desses fatos a partir da compreensão mútua entre atores. Vale a
leitura!

Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ln/n47/a11n47.pdf

71
Adler (1999) afirma que o Construtivismo, em oposição às teorias realista e
liberal, não seria uma teoria da política internacional em si, mas uma teoria social a
partir da qual as análises de “via-média” nas RIs se organizam. A abordagem lançaria
luz a características importantes das relações internacionais antes negligenciadas
ou colocadas em segundo plano (como a identidade nacional dos Estados, a difusão
e internalização de normas internacionais, o papel das ideias e as possibilidades de
mudança na política). Isso traria a possibilidade de entender melhor os processos de
cooperação, o conflito e todo tipo de interação existente na política internacional.

O Construtivismo não seria “anti-liberal” ou “anti-realista” ou, ainda, “pessimista”


ou “otimista”. Segundo Adler (1999), seria:

“A primeira oportunidade real de criação de uma teoria sintética


das relações internacionais desde Carr (1939). Se for possível que
se persuada que os entendimentos normativos e coletivos causais
são reais, na medida em que eles têm consequências para os
mundos físico e social, será muito mais fácil argumentar que tanto
a compreensão da política mundial quanto o progresso da disciplina
podem depender da construção de uma síntese sócio-cognitiva
que se forma nas dimensões material, subjetiva e intersubjetiva do
mundo” (Adler, 1999, pg. 207).

Ao conciliar elementos materiais e ideacionais, a teoria leva em consideração


conhecimento e poder na explicação sobre o surgimento dos interesses (FINNEMORE,
1996). Em outras palavras, “busca compreender como nascem os interesses dos
Estados, como eles adquirem esse status e como são politicamente selecionados pelo
e através do processo político” (ADLER, 1999, p. 225).

Para essa abordagem as relações internacionais são uma construção social


– Estados, alianças e Organizações Internacionais, por exemplo, seriam fenômenos e
elementos sociais: possuem formas culturais, históricas e políticas específicas, produtos
da interação humana no mundo social. A partir das contribuições da virada linguística,
por exemplo, o Construtivismo afirma que os fenômenos sociais não existiram à parte
do processo de significação humano.

Nesse sentido, ainda que não haja um único Construtivismo, é possível identificar
três temas centrais abordados por essa corrente:

Mudança na Política Internacional

Se a política internacional emerge a partir da construção social, esse processo depende


também do contexto, não representando uma única realidade objetiva.

72
Dimensões Sociais

A teoria enfatiza o papel das normas, regras e da linguagem na política e compreende


como fatores ideacionais se combinam a fatores materiais na construção de diferentes
resultados.

Processo de Interação

Os atores internacionais – Estados, OIs, regimes, atores não-estatais – fazem escolhas


no processo de interação com os outros, trazendo diferentes realidades históricas,
culturais e políticas. A imagem abaixo ilustra o “lugar” ocupado pelo Construtivismo no
campo, a partir da ideia de “via média”, ou “meio-termo”:

FIGURA 2 – O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA

FONTE: Adaptado de Dunne, Kurki e Smith (2016)

As análises construtivistas, desse modo, oferecem à análise do internacional


a possibilidade de se considerar o papel da subjetividade dos atores e não apenas
os elementos materiais. A percepção dos Estados, suas identidades e o modo como
os interesses emergem e se modificam passam a ser elementos importantes no
entendimento das relações internacionais. O quadro abaixo traz um exemplo de
aplicação da abordagem construtivista na análise da Guerra ao Terror, lançada pelo ex-
presidente dos Estados Unidos George W. Bush após os ataques terroristas, em 11 de
Setembro de 2001.

73
ESTUDO DE CASO:
A GUERRA AO TERROR PELA LENTE CONSTRUTIVISTA

Em 11 de Setembro de 2001 ocorreu uma série de ataques nos Estados Unidos


(realizados pela organização islâmica Al-Qaeda), desencadeando uma série de eventos
por parte do governo norte-americano e seus aliados. Em uma das manifestações
mais notáveis nesse contexto, o ex-presidente George W. Bush, declarou que os
EUA utilizariam todos os recursos disponíveis para combater os inimigos do país e
denominou essa reação “guerra ao terror”. As principais consequências foram: 1) a
invasão do país ao Afeganistão, ainda em 2001 e 2) a declaração de guerra ao Iraque,
em 2003.

Como as principais teorias discutidas até aqui analisariam esse fenômeno?

Os realistas abordariam o estudo do terrorismo e da guerra através de análises dos


Estados e de sua busca pela sobrevivência e pelo poder. O interesse dos Estados
Unidos no conflito seria explicado em termos materiais.

O Construtivismo se afasta dessa ênfase no Estado e nos fenômenos como sendo


dados e objetivos. Uma análise construtivista da Guerra ao Terror exploraria como as
identidades, as ações e o sofrimento humano são construídos a partir dos processos
de interação social.

Após 11 de Setembro, a identidade foi mutuamente constituída em torno de uma


diferença entre o “bem” e o “mal”, categorias personificadas, respectivamente, em
Bush e no líder islâmico Osama Bin Laden.

Nesse sentido, não apenas as ameaças e a violência seriam construídas a partir


do discurso e da interação entre os atores envolvidos, mas o próprio sofrimento e
traumas derivados dessas guerras seriam elementos importantes para a análise.

O próximo tópico aborda a evolução da teoria Construtivista através dos anos,


do Construtivismo Regra-Orientado (de autores como Nicholas Onuf), passando pela
Teoria Social da Política Internacional e pela análise do “problema agente-estrutura”
(elementos centrais da obra de Alexander Wendt), até a proposta de um “construtivismo
crítico” (representado por obras influenciadas por pensadores como Jaques Derrida e
Michel Foucault).

74
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A reconceituação da relação entre agente e estrutura, proposta por Anthony Giddens,


influenciou uma série de análises nos vários campos ligados às Ciências Sociais,
principalmente aquelas dedicadas à reflexão sobre a formação e reprodução das
estruturas sociais a partir das ideias e da intersubjetividade entre os indivíduos.

• O Construtivismo emerge como abordagem relevante no campo a partir dos anos


1990, no contexto do quarto debate. Em linhas gerais, esse debate contrapõe duas
concepções distintas sobre como fazer (e o que significa) ciência no campo: o
positivismo e o pós positivismo.

• O Construtivismo é considerado uma via média ou um meio-termo entre essas duas


concepções, na medida em que busca conciliar elementos materiais e ideacionais
(objetividade e subjetividade) na análise da política internacional.

75
AUTOATIVIDADE
1 O que foi o quarto debate das Relações Internacionais? Qual a diferença entre a
discussão realizada nesse contexto e as demais abordagens do campo publicadas
antes dos anos 1990.

2 Por que as ideias e a subjetividade importam, segundo o Construtivismo?

76
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
ABORDAGENS CANÔNICAS
E CONTEMPORÂNEAS E DO
CONSTRUTIVISMO

1 INTRODUÇÃO
O Construtivismo emerge no campo nos anos 1990, desafiando o domínio do
Realismo e do Liberalismo nas Relações Internacionais. Da primeira menção à teoria aos
desenvolvimentos recentes dessa abordagem, uma série de obras foram publicadas e
postas à prova pelos acontecimentos recentes da política internacional. A díade conflito-
cooperação deixa de ser a ênfase única da produção do conhecimento na área e a
análise de questões subjetivas abre espaço para a compreensão da realidade social não
apenas a partir da materialidade e da resposta dos atores a determinantes estruturais,
mas do papel da interação entre os agentes na construção e reprodução das estruturas.

Nesse tópico serão discutidas as várias abordagens da corrente construtivista


no campo. Na primeira seção analisaremos o Construtivismo Regra-Orientado, de
autores como Nicholas Onuf e Martha Finnemore. Em seguida, a relação entre agente
e estrutura e o papel da identidade serão os elementos centrais da discussão sobre as
obras de Alexander Wendt.

2 O CONSTRUTIVISMO REGRA-ORIENTADO: DE ONUF À


MARTHA FINNEMORE
Conforme citado anteriormente, o termo “construtivismo” foi cunhado por
Nicholas Onuf, em 1989. O autor afirma que a abordagem seria “uma resposta construtiva
ao “pós-movimento”, em particular rejeitando os extemos de alguns pensadores pós-
modernos” (Onuf, 1998 pg. 20). A ideia central era rejeitar a ortodoxia do campo das
Relações Internacionais e entender se, e como, a construção do mundo sociopolítico era
resultado da prática humana. Segundo Walt (1998), o construtivismo emergiu como uma
espécie de “substituição” ao lugar que o marxismo ocupava no campo, dando origem à
tríade “realismo-construtivismo-liberalismo”.

77
FIGURA 3 – NICHOLAS ONUF

FONTE: <https://history.virginia.edu/people/profile/pso2k>. Acesso em: 21 set. 2021.

Segundo Onuf (1989), fatos não existiriam de modo independente, mas


dependeriam da construção social da realidade a partir da subjetividade dos indivíduos:
“povos e sociedades constroem e constituem uns aos outros” (Onuf, 1989, pg. 36). O
autor enfatiza a importância das regras na política internacional – por esse motivo sua
contribuição é conhecida como “construtivismo regra-orientado”. Por que as regras
importam na política internacional, segundo Onuf, e como o construtivismo regra-
orientado analisa o internacional?

Regras (declarações gerais prescritivas), segundo o autor, são essencialmente


sociais. As regras orientam as pessoas acerca do que devem ou não fazer. Se, por um lado,
elas proveem “guias” para o comportamento humano e tornam o compartilhamento de
significados algo possível, por outro, elas criam a possibilidade de agência em sociedade.
A agência (ou, conforme discutido anteriormente, a capacidade dos indivíduos de agir)
influencia as regras porque:

toda vez que os agentes escolhem seguir uma regra, eles a modificam
– fortalecem a regra tornando mais possível que eles mesmos e
outros a sigam no futuro. Toda vez que os agentes escolhem não
seguir uma regra, eles a modificam enfraquecendo-a e, ao fazê-lo,
contribuem para a constituição de uma nova regra (ONUF, 1994, p.
18).

Esse elemento é importante, então, porque as regras seriam o elemento básico


da definição de “política” no construtivismo regra-orientado. De acordo com Onuf (1989),
a sociedade política possui duas características gerais: em primeiro lugar, em sociedade
há sempre regras que tornam as atividades humanas significativas e, em segundo lugar,
regras resultam em uma distribuição desigual de benefícios. Política, portanto, é sempre
sobre privilégio e envolve questões normativas.

78
Sociedade e política seriam dois conceitos associados: as sociedades seriam
baseadas em regras e a política sempre lida com relações sociais assimétricas geradas
por essas regras. O que as pessoas fazem em sociedade, portanto, não está apenas
conectado pelas regras que seguem, mas constroem essas regras e, de modo geral,
constroem o mundo ao seu redor. Essa concepção segue a mesma lógica da relação de
dualidade entre agência e estrutura discutida anteriormente.

Onuf (1989) concorda com a Teoria Social de Giddens quando afirma que o
mundo seria construído por atos que consistem em significados construídos a partir da
linguagem, ao invés de existirem independente no “mundo material”. A importância da
linguagem é central na obra do autor, porque é a partir dela que as pessoas constroem
seus “mundos”: “a linguagem não descreve ou representa a realidade; ela cria a realidade,
ao ponto que os atos de fala possuem efeitos sobre a política internacional” (Onuf, 1989,
pg. 98). Nesse sentido, o conceito de “ato de fala” seria importante para a análise das
relações internacionais, conforme o quadro abaixo explica.

A IMPORTÂNCIA DO “ATO DE FALA” PARA O CONSTRUTIVISMO REGRA-


ORIENTADO

“A linguagem é tanto representativa como performativa. As pessoas utilizam palavras


para representar ações. Atos de fala são performances sociais, ou seja, possuem
consequências sociais diretas. Porque as pessoas respondem a eles com suas
próprias performances, nem sempre a partir da linguagem falada, o padrão dos
atos de fala e das performances constituem as práticas que tornam as condições
materiais e a experiência humana carregadas de significado. Mais especificamente,
o padrão dos atos de fala confere às práticas normatividade; dão origem a regras
que, ao assumir esse padrão, fixam expectativas e preferências, moldando o futuro
em relação ao passado. O ato de fala, nesse sentido, pode criar constrangimentos
normativos às ações. Falar, em outras palavras, é uma atividade com consequências
normativas.”

(Nicholas Onuf em “World of Our Making”, 1989, p. 183)

79
DICA DE FILME
“A CHEGADA” (2016)

“A Chegada”, de 2016, é um filme norte-americano do gênero ficção-


científica que retrata uma invasão alienígena na terra e a tentativa
de estabelecimento de alguma forma de comunicação entre seres
humanos e os visitantes de outro planeta. O filme retrata a relação
entre linguagem e mundo material e é uma dica interessante para o
estudo da relação esses conceitos.

Filme: “A Chegada”; Ano: 2016; Direção: Denis Villeneuve; País da


produção: Estados Unidos.

O autor classifica os atos de fala como sendo assertivos, diretivos ou comissivos.


Atos de fala assertivos são declarações que quem emite deseja que o ouvinte aceite.
Os diretivos contêm uma ação que o orador (quem fala) deseja que o ouvinte execute.
O ato de fala comissivo, por fim, consiste na declaração do compromisso do orador com
alguma ação futura. As regras, por consequência, também podem ser classificadas a
partir dessas três categorias. Segundo Onuf, a linguagem seria crucial para a construção
das regras e o modo como se fala importa no processo de construção do mundo: para
o autor, “falar é fazer: falar é sem dúvida o modo mais importante de construirmos o
mundo como ele é” (ONUF, 1989, p. 59).

Seguindo a mesma linha, Finnemore e Sikkink (1998) e Barnett e Finnemore


(1999) afirmam que na política internacional a estrutura seria determinada pelo
compartilhamento de ideias, expectativas e crenças dos atores sobre o que seriam
comportamentos apropriados ou não na política internacional. Desse modo, as
mudanças nas regras, normas e ideias seriam os principais meios de transformação do
sistema internacional. O construtivismo regra-orientado define norma como “um padrão
de comportamento adequado a atores com uma dada identidade” (Finnemore e Sikkink,
pg. 4). As autoras afirmam que todas as normas são, ao mesmo tempo, constitutivas ou
regulatórias, simultaneamente: ou seja, as normas dizem aos agentes o que devem ou
não fazer e os próprios agentes reagem as normas, as repetindo ou as modificando, a
partir da linguagem.

80
FIGURA 4 – MARTHA FINNEMORE

FONTE: <https://mortara.georgetown.edu/profile/martha-finnemore/>.
Acesso em: 21 set. 2021.

Quantos atores devem compartilhar um padrão de comportamento para o


denominarmos como norma? Ou seja, o que define o que é, ou não, uma norma nas
relações internacionais? Finnemore e Sikkink (1998) afirmam que seria possível analisar
as normas internacionais a partir de seu “ciclo de vida”, composto por três fases: a
emergência da norma, a “cascata da norma” e a internalização da norma, descritas a
seguir.

A Emergência das Normas Internacionais

Muitas normas internacionais têm início em contextos nacionais e se


internacionalizam através dos esforços do que as autoras denominam “norm
entrepeneurs”, ou “empreendedores de normas”. A luta pelo direito de voto das
mulheres, por exemplo, tem início em vários países antes de tornar-se uma norma
internacional. Nesse sentido, há uma espécie de jogo normativo em dois níveis: o que
ocorre domesticamente influencia a política internacional e vice-versa. A discussão
sobre como questões internacionais são influenciadas por dinâmicas domésticas ganha
relevância a partir da publicação de “Diplomacia e Política Doméstica: a lógica dos jogos
de dois níveis”, do cientista político Robert Putnam, em 1988. O quadro abaixo resume,
em linhas gerais, o pensamento do autor.

81
OS JOGOS DE DOIS NÍVEIS EM PUTNAM (1988)

“A política doméstica e as relações internacionais com freqüência são inextricavelmente


vinculadas; todavia, as teorias existentes (particularmente as estatocêntricas) não
levam adequadamente em considerações tais vínculos. Quando os líderes nacionais
devem obter as ratificações (formais ou informais) dos membros de seus parlamentos
para um acordo internacional, seus comportamentos em negociações refletem os
imperativos simultâneos tanto de um jogo de política doméstica quanto de um
jogo de política internacional. Usando exemplos de cúpulas econômicas ocidentais,
das negociações do Canal do Panamá e do Tratado de Versalhes, dos programas
de estabilização do Fundo Monetário Internacional, da Comunidade Européia e de
muitos outros contextos diplomáticos, o artigo oferece uma teoria da ratificação. Ele
enfatiza o papel das preferências, coalizões, instituições e práticas domésticas, das
estratégias e táticas dos negociadores, da incerteza, das reverberações domésticas
das pressões externas e o papel dos interesses do negociador-chefe. Essa teoria de
“jogos de dois níveis” também pode ser aplicável a muitos outros fenômenos políticos,
tais como a dependência, os comitês legislativos e as coalizões multipartidárias.”
(PUTNAM, 1988, p. 1).

Quando Putnam publica, em 1988, o artigo “Diplomacia e Política Doméstica: a


lógica dos jogos de dois níveis” suas premissas passam a ser contrastadas às visões
realistas de uma política internacional que desconsidera, ou coloca em segundo
plano, determinantes domésticos.

Ainda que a obra de Putnam não seja, por definição, construtivista, sua visão
influenciou uma série de análises no campo e reforçou uma tendência importante
de colaboração entre os campos da Ciência Política (representado nos estudos
sobre democracia, divisão entre os poderes, influência do legislativo na aprovação e
internalização de diretrizes internacionais) e das Relações Internacionais.

A primeira fase do ciclo de vida das normas é, então, caracterizada pela sua
emergência. Nessa fase os empreendedores de normas tentam persuadir o que
Finnemore e Sikkink (1998) denominam “massa crítica de Estados” a adotar novos padrões
de comportamento em um determinado tema da política internacional. Nesse sentido,
para que uma norma “surja” nas relações internacionais é necessária a presença de um
empreendedor normativo (geralmente esses atores são ativistas de uma determinada
causa) e de plataformas organizacionais (nas relações internacionais geralmente essas
plataformas são as organizações internacionais, como a ONU, ou o Banco Mundial).

O que motiva um indivíduo (ou um grupo de indivíduos) a agir como empreendedor


de uma norma? Finnemore e Sikkink (1998) afirmam que seria muito difícil explicar ou
compreender o que motiva esses atores sem nos referirmos a empatia, altruísmo e/ou
comprometimento de natureza ideológica. Os grupos que agem em prol da promoção

82
de uma norma internacional agem, geralmente, a partir de um desses três elementos
(ou de uma combinação entre eles). Após a ação inicial desses empreendedores, haveria
o que as autoras conceituam como “limiares”, ou “pontos de inflexão”: momentos em
que a norma começa a ser aceita pela massa crítica (mesmo que não por unanimidade).
Nesse momento da análise do ciclo de vida da norma é importante identificar quais
Estados compõem essa massa crítica. Geralmente são aqueles em que o tema em
discussão possui proeminência: as autoras exemplificam, citando a discussão sobre o
uso de minas terrestres – países que não produzem, ou não utilizam, minas terrestres
não seriam parte da massa crítica que deve aceitar, ou não, uma norma sobre esse
tema. A mesma lógica se aplica a outros temas, como a emissão de gases de efeito
estufa, o direito ao voto feminino, a proteção de civis em conflitos, etc. (Finnemore e
Sikkink, 1998).

A “Cascata das Normas”

Finnemore e Sikkink (1998) afirmam que o processo de cascata das normas


geralmente ocorre após a aceitação das normas pela massa crítica de Estados e se
caracteriza por um rápido processo de adoção da norma por vários Estados a partir
da socialização em nível internacional. O principal objetivo nessa fase é convencer
Estados “transgressores” de que o novo padrão de comportamento deve ser aceito
e adotado. Essa socialização pode envolver elogios ao Estado que adota a regra, ou
censura diplomática àqueles que não o fazem, e até sanções materiais. É importante
enfatizar que Estados não são os únicos atores capazes de promover essa socialização:
organizações internacionais e organizações não-governamentais internacionais
também teriam o poder de persuadir.

Uma das maiores inovações que o construtivismo regra-orientado oferece às


análises de política internacional, portanto, é a possibilidade de compreender como
algumas normas são socializadas e internalizadas a partir de plataformas organizacionais,
o que reforça a ênfase no papel desses atores nas relações internacionais.

Por que os Estados aderem a uma norma durante essa fase? O que os leva a
aceitar ou não uma norma? As autoras afirmam que a aceitação de uma norma depende
do grau de “pressão” dos grupos e/ou identidades às quais os Estados se identificam na
política internacional. Não aceitar uma norma pode acarretar altos custos, como o Estado
ser visto como “vilão” e, como consequência, perder a credibilidade em assuntos caros
ao governo vigente. Nas discussões internacionais sobre direitos humanos, por exemplo,
os chefes de Estado se importam cada vez mais com a sua “imagem” internacional.
Se eventualmente são rotulados como violadores de direitos humanos e como “vilões”,
a consequência geralmente é uma série de mudanças visando a reconstrução dessa
imagem (Finnemore e Sikkink, 1998).

83
A Internalização das Normas Internacionais

A última etapa do ciclo de vida das normas é a internalização – fase em que a


norma é aceita e passa a ser algo “dado” e não algo a ser discutido amplamente. A figura
abaixo ilustra as três fases do ciclo de vida das normas, segundo o Construtivismo.

FIGURA 5 – O CICLO DE VIDA DAS NORMAS SEGUNDO O CONSTRUTIVISMO

FONTE: Finnemore e Sikkink (1998, p. 34)

3 O CONSTRUTIVISMO ESTRUTURAL: WENDT E A


POPULARIZAÇÃO DO CONSTRUTIVISMO
Ao final dos anos 1980 emerge nos Estados Unidos um outro esforço de integração
de abordagens inspiradas na Teoria Social e, em especial, o debate sobre a relação entre
agente e estrutura, às Relações Internacionais. Um dos destaques nesse período foi
a obra de Alexander Wendt. Em 1987 o autor publica um artigo seminal intitulado “The
Agent-Structure Problem in International Relations Theory”. Para Wendt o problema
agente-estrutura tem suas origens em dois truísmos (verdades incontestáveis) sobre
a vida social:

1. Seres humanos e suas organizações são atores que possuem propósitos, e suas
ações ajudam a reproduzir e transformar as sociedades em que vivem.
2. A sociedade é feita de relações sociais, que estruturam as interações entre esses
atores propositados.

Juntas, essas afirmações sugerem que os agentes humanos e as estruturas


sociais são teoricamente interdependentes e de impacto mútuo.

84
FIGURA 6 – ALEXANDER WENDT

FONTE: <https://polisci.osu.edu/people/wendt.23>. Acesso em: 21 set. 2021.

Segundo o autor, a relação agente-estrutura deve ser compreendida enquanto


dois problemas inter-relacionados: um de caráter ontológico e outro de caráter
epistemológico. A primeira dimensão diz respeito à natureza, tanto dos agentes, como
da estrutura e à sua relação. Do ponto de vista epistemológico, a pergunta reside em
que tipo de entidades são essas e como são inter-relacionadas.

A análise dessas duas questões pode ser realizada de duas principais formas:
em primeiro lugar, é possível fazer uma dessas unidades de análise (agente ou estrutura)
precedente do ponto de vista ontológico. Em segundo lugar, existe a possibilidade de
dar a ambas as unidades um status ontológico igual e, portanto, irredutível, ou seja,
uma unidade não pode ser “menor”, ou menos simples - do ponto de vista teórico - que
a outra.

A partir do engajamento do campo em responder essas questões, Wendt (1987)


afirma que existem três respostas possíveis para a questão ontológica, denominadas:
individualismo, estruturalismo e estruturacionismo. O autor afirma que o neorrealismo
seria a abordagem representativa das abordagens individualistas do campo, na medida
em que reduz a estrutura do sistema internacional às propriedades e interações de seus
elementos constitutivos, ou seja, dos próprios Estados. No que diz respeito às abordagens
estruturalistas, o autor cita como exemplo as teorias do Sistema-Mundo, na medida em
que essas abordagens reduzem os agentes estatais (e as classes sociais) aos efeitos do
sistema mundial capitalista. Por fim, em relação às abordagens que o autor denomina
estruturacionistas, elas tentariam evitar as consequências negativas do individualismo
e do estruturalismo, ao dar aos agentes e às estruturas um status ontológico igual. Isso
significa que tanto as questões estruturais, quanto aquelas relacionadas à autonomia
individual teriam relevância na explicação das questões internacionais.

85
A abordagem estruturacionista não deve ser confundida com uma síntese
“vazia” entre o individualismo e o estruturalismo, mas demanda uma conceitualização
particular e profunda da relação entre agente e estrutura. Na visão de Wendt, esse
processo leva à reflexão sobre as propriedades fundamentais do Estado (agentes) e a
estrutura do sistema. Por sua vez, essa abordagem permitiria lançar mão dos conceitos
de agente e estrutura para explicar e compreender algumas propriedades centrais de
cada unidade, bem como seus efeitos intrínsecos, e observar agentes e estruturas
como elementos co-determinados e mutuamente constituídos.

Na visão de Wendt (1987) a Teoria da Estruturação de Giddens, apresentada


anteriormente, seria uma alternativa ao reducionismo e à reificação das estruturas
sociais, na medida em que apresenta uma diferença explícita entre estruturas sociais
e estruturas nacionais. A primeira não existiria de modo independente às atividades
governadas por elas, sendo, ao invés, iniciadas pelos agentes. As estruturas sociais
seriam ontologicamente dependentes de seus elementos, ainda que não reduzíveis
a eles. Além disso, as estruturas sociais não existiriam de modo independente às
concepções dos agentes sobre o que fazem em suas atividades em sociedade. Essas
atividades seriam inseparáveis da dimensão discursiva inerente às estruturas sociais e
às razões e autoentendimentos dos agentes. Isso não significa, porém, que as estruturas
sociais seriam redutíveis ao que os agentes pensam que estão fazendo, uma vez que
eles podem não compreender os antecedentes estruturais ou as implicações de suas
ações.

Nesse sentido, o autor apresenta a proposta de um Construtivismo Estrutural, a


partir de dois princípios básicos:

1. Estruturas de associação humana seriam mais determinadas pelas ideias


compartilhadas que por forças materiais. Nesse sentido, Wendt apresenta uma
abordagem idealista sobre a vida social.

ATENÇÃO
ABORDAGEM IDEALISTA NA OBRA DE WENDT X ABORDAGEM
IDEALISTA DO PRIMEIRO DEBATE

Quanto Wendt refere-se à uma abordagem idealista, o autor não faz


referência às ideias de pensadores como Immanuel Kant, Woodrow
Wilson e Norman Angell, discutidos em “Teoria das Relações
Internacionais I” como parte do denominado primeiro debate
teórico do campo. O termo “idealista” aqui empregado faz menção à
valorização das ideias na análise da política internacional.

86
2. As identidades e interesses dos atores seriam construídas por tais ideias
compartilhadas e não unicamente a partir de determinantes naturais. Isso significa
que o autor propõe uma abordagem holística e estruturalista. Como consequência, o
Construtivismo em Wendt pode ser visto como um tipo de “idealismo estrutural”.

Para o autor, o estudo construtivista das Relações Internacionais partiria da


necessidade de escolha das unidades e dos níveis de análise, ou seja, dos agentes e
estruturas. A teoria construtivista estrutural de Wendt propõe, portanto, a análise do
comportamento dos Estados no sistema internacional e busca oferecer uma teoria do
sistema estatal crítica à apresentada por Waltz.

O autor defende a ideia de que existem dois tipos de teorização sistêmica nas
Relações Internacionais: uma que vê esse sistema como uma variável dependente e
outra que o vê como variável independente.

GIO
VARIÁVEL DEPENDENTE X VARIÁVEL INDEPENDENTE

No processo de elaboração de pesquisas, análises e de compreensão


nas Ciências Sociais, as hipóteses e conceitos são muitas vezes
estruturados a partir da relação entre suas variáveis (elementos
da análise). A variável dependente é o elemento que o pesquisador
pretende explicar ou compreender. A variável independente (ou as
múltiplas variáveis independentes), por sua vez, são aqueles elementos
que explicam ou auxiliam na compreensão da variável dependente.

A partir dessas considerações, Wendt apresenta duas críticas ao Neorrealismo


de Waltz e três movimentos necessários à construção de um projeto sistêmico estatal
alternativo. A primeira crítica é de que a teoria neorrealista não seria capaz de explicar
a mudança nas estruturas sociais, uma vez que ela não alteraria as estruturas de poder
ou o princípio ordenador do sistema. Além disso, o neorrealismo não seria capaz de
“explicar as poucas e importantes coisas” (o que Waltz apresenta como sendo o principal
objetivo de sua teoria neorrealista). O que o neorrealismo afirma ser explicado pela
anarquia (a primazia da busca por sobrevivência e o conflito) se deve, na verdade, a uma
suposição de que ela seria um sistema de autoajuda, ou seja, o fator explicativo (variável
independente) seria o fato de os Estados serem egoístas em relação à sua segurança,
e não a anarquia.

Em relação aos movimentos necessários, Wendt afirma que o mais importante


seria a reconceituação da estrutura enquanto um fenômeno social, e não material. Além
disso, seria necessário adotar uma conduta de pesquisa holística em relação à estrutura,
levando em consideração dois aspectos: 1. A forma pela qual as identidades estatais, e

87
não apenas o seu comportamento, são afetadas pelo sistema internacional e 2. A forma
pela qual tais identidades são constituídas, mais propriamente, que apenas “causadas”
pelo sistema internacional.

O último movimento, por fim, envolveria incorporar as interações e os processos


como elementos próprios de uma teoria sistêmica. Nesse sentido, a anarquia não
possuiria uma lógica separada dos processos, na mesma medida em que a interação
seria também um processo estruturado. É importante destacar que Wendt não apresenta
em 1987 a teoria construtivista de fato (como discutido, o termo foi cunhado enquanto
abordagem do campo apenas em 1989, por Nicholas Onuf), mas o artigo apresenta
bases importantes para a análise construtivista da política internacional, principalmente
ao apontar as limitações as abordagens convencionais das Relações Internacionais até
aquele momento.

Uma elaboração teórica mais profunda foi apresentada pelo autor, doze anos
depois, no livro “Teoria Social da Política Internacional” (1999). A primeira grande
discussão realizada na obra é sobre as identidades. Elas seriam constituídas por
estruturas internas e externas e a partir das ideias de “eu” e “outro”. O autor afirma que
existiriam quatro tipos de identidade: a pessoal, ou corporativa; tipo; papel e coletiva.

A identidade pessoal ou corporativa (no caso de organizações), faz dos atores


entidades distintas, ao identificar suas propriedades essenciais. Ela seria composta pela
base material (que, no caso das pessoas, seriam seus corpos e no caso dos Estados
seriam os territórios) e a consciência e memória do “eu” como um lugar separado de
pensamento e atividade. Identidades pessoais ou corporativas não dependem do outro
para sua constituição. Essa identidade seria um lugar, ou uma plataforma, para outras
identidades.

A identidade “tipo” é aplicada a pessoas que compartilham alguma


característica, como aparência, comportamento, atitudes, valores, habilidades,
conhecimento, opinião, lugar de nascimento etc. É evidente, portanto, que um ator possa
possuir mais de uma dessas identidades ao mesmo tempo. Essa identidade tem uma
dimensão inerentemente cultural, mas as características que a definem possuem base
intrínseca aos atores, ou seja, um Estado pode ser um Estado capitalista democrático
sozinho, mas seu significado e suas consequências são adquiridos apenas a partir das
interações em sociedade.

A identidade papel, por sua vez, depende da cultura e, portanto, do “outro”.


Enquanto as identidades “tipo” apresentam características pré-sociais, que adquirem
sentido uma vez em sociedade, a identidade papel não é baseada em propriedades
intrínsecas, mas só existe em relação ao “outro”. Uma pessoa pode possuir sozinha,
por exemplo, uma característica física (cabelo castanho, curto, olhos azuis etc.),
mas só pode ser um estudante em relação a um professor ou a outros estudantes;
um patrão em relação a um empregado, etc. Ao se identificar com um papel, o ator

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passa a desempenhar determinadas ações, mas também a esperar que outros, com
papeis semelhantes ou distintos, ajam de forma correspondente às suas expectativas.
O compartilhamento de expectativas, dependentes da identidade, é facilitado pelo
fato de que muitos papeis já estão institucionalizados de estruturas que pré-datam a
interações particulares. Exemplo: você pode tornar-se amigo (ou inimigo) de alguém –
mas a identidade, e o que esperar de alguém que exerce o papel de “amigo” ou “inimigo”,
é anterior, já está institucionalizado.

A identidade coletiva, por fim, leva à relação entre o “eu” e o “outro” à sua
conclusão lógica: a identificação. A identificação é um processo cognitivo no qual a
distinção entre o “eu” e o “outro” se torna turva e, no limite, é transcendida. A identificação
entre esses dois elementos geralmente é limitada a questões específicas e raramente é
total. Sempre envolve a extensão das fronteiras do “eu” para a inclusão do “outro”:

“A identidade coletiva, em resumo, é uma combinação distinta das


identidades papel e tipo, com o poder causal de induzir os atores
a definir o bem-estar do Outro como parte daquele do Eu, a ser
"altruísta". Atores altruístas ainda podem ser racionais, mas a base
sobre a qual eles calculam seus interesses é o grupo ou "equipe".”
(WENDT, 1999, p. 229).

Uma vez estabelecidos os tipos de identidade, Wendt passa a analisar duas


questões a respeito da natureza do sistema internacional, a partir do pressuposto
de que sua estrutura seria anárquica (aqui compreendida apenas como ausência de
autoridade central e não a partir da concepção realista de que essa condição levaria a
um sistema de autoajuda).

A primeira questão seria relacionada à variação, ou seja, se a anarquia seria


compatível com mais de um tipo de estrutura e, portanto, com mais de uma lógica para
além da autoajuda. A segunda questão é relacionada à construção, e busca compreender
se a anarquia afeta as identidades e os interesses, não apenas o comportamento dos
Estados como afirma a teoria realista. Essa questão tem uma implicação acerca da análise
sobre a possibilidade de mudança na política internacional: atores cujas identidades são
constituídas pela estrutura terão interesse na sua manutenção, tornando-a estável.

A chave para o argumento sobre as possibilidades de mudança da estrutura é


compreendê-la como social, argumento que o autor apresenta desde 1987, conforme
discutido anteriormente. As estruturas sociais são concebidas a partir da distribuição
de ideias, ou dos estoques de conhecimento dos atores. Essas ideias compartilhadas
formam o subconjunto da estrutura social, conhecida como cultura. O autor aponta três
questões centrais relacionadas ao que ele denomina “cultura do sistema internacional”:
a primeira diz respeito ao grau de internalização das normas, caracterizado em termos
de força, interesse ou legitimidade.

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A segunda questão é relacionada à ausência de relação entre a medida de ideias
compartilhadas, ou cultura, em um sistema, e a medida de cooperação apresentada
nesse sistema. Não seria verdade, por exemplo, que haveria mais cooperação quanto
maior for a internalização de normas e padrões de comportamento, na medida em que
essas normas podem relacionar-se a conflito.

A terceira questão se refere à centralidade do conceito de identidade papel


para a teorização sobre a estrutura do sistema internacional. O “papel” não seria uma
propriedade no nível da unidade, mas da estrutura. A cultura do sistema internacional
é baseada em uma estrutura de papeis. Como consequência, a lógica da anarquia
não seria fixa e única, como afirma a teoria neorrealista, mas uma função da cultura
vigente e seu caráter constitutivo depende do grau de internalização. Segundo Wendt
(1999), seria possível identificar três culturas da anarquia internacional: a hobbesiana, a
lockeana e a kantiana, descritas no abaixo:

A Cultura Hobbesiana da Anarquia

Wendt (1999) descreve a cultura hobbesiana de anarquia como sendo


caracterizada pela inimizade. A representação do “outro” aparece como sendo a de um
ator de não reconhece o direito do “eu” existir” como um ser autônomo e não disposto
a limitar sua violência. O autor aponta como imagens de inimigo as ideias de bárbaros,
infiéis, selvagens etc., e como momentos históricos em que prevaleceu uma cultura
hobbesiana de anarquia o Holocausto, a Guerra Fria e os conflitos entre Israel e Palestina
e o genocídio em Ruanda.

A Cultura Lockeana da Anarquia

Wendt contrapõe o sistema westfaliano de Estados à noção neorrealista


de uma anarquia hobbesiana e conclui que a taxa de “mortalidade” de Estados seria
praticamente nula, ou seja, poucos Estados desapareceram totalmente na história
das relações internacionais. Quando a estrutura internacional é caracterizada por uma
cultura lockeana de anarquia, a rivalidade prevalece sobre a inimizade. Ao contrário de
uma situação de conflito direto, a rivalidade pressupõe a existência do reconhecimento
mútuo da soberania como um direito. O nível de violência na cultura hobbesiana, nesse
sentido, seria muito maior que na cultura lockeana.

Haveria, nesse sentido, quatro principais implicações para a política externa dos
Estados:

a. Em qualquer conflito que aconteça, os Estados devem se comportar de maneira a


preservar o status quo em relação à soberania do outro.

b. Em relação à natureza do comportamento racional: na cultura de anarquia lockeana


há a abertura para a possibilidade de ganho absoluto.

90
c. Relevância do poder militar relativo: na cultura lockeana as ameaças geralmente não
são existenciais.

d. Na guerra os Estados limitam sua própria violência.

A Cultura Kantiana da Anarquia

Após apresentar as culturas de anarquia supracitadas, a hobbesiana e a


lockeana, Wendt (1999) constata que haveria uma região no mundo em que essas
lógicas não se aplicariam adequadamente: o Atlântico Norte. O autor afirma que o
histórico de relacionamento desses atores construiu uma identidade de amizade, que
seria caracterizada através de duas regras que dizem respeito ao relacionamento entre
os atores e com atores externos: em primeiro lugar, as disputas que eventualmente
pudessem emergir internamente a esse grupo seriam resolvidas não somente sem a
guerra, mas sem a ameaça de guerra. No que diz respeito a atores externos a essa
amizade, caso um Estado ameace algum dos membros desse grupo de Estados, a
totalidade dos membros agiria como um time, de modo a conter a ameaça.

Wendt faz três considerações a respeito da cultura kantiana: em primeiro lugar,


essas duas regras seriam independentes, mas igualmente necessárias. Em segundo
lugar, a amizade referida pelo autor diz respeito apenas à segurança nacional, não
atingindo outras áreas temáticas. Ademais, a ideia de “não-violência” não exclui a
possibilidade de que entre os membros desse grupo de Estados haverá conflito, mas
apenas que este será resolvido através de outros meios. Por fim, Wendt (1999) traça
uma diferença entre alianças e conflito, na medida em que a aliança seria formada para
enfrentar ameaças específicas e desfeita uma vez contida a ameaça. A amizade, por sua
vez, seria duradoura ao longo do tempo.

Essas duas regras geram duas tendências que podem ser associadas às ideias
de comunidades pluralísticas de segurança (no caso da primeira) e segurança coletiva
(no caso da segunda). Nas comunidades pluralísticas de segurança, há uma certeza real
de que os Estados-membros não lutarão fisicamente contra os outros, mas resolverão
suas disputas de outras formas. Nesse sentido, a guerra não seria uma forma legítima
de resolução de disputas.

No que diz respeito à segunda regra, associada à ideia de segurança coletiva,


ameaças externas seriam resolvidas a partir da articulação entre os membros do grupo.
Nesse sentido, há uma alteração qualitativamente radical na visão dos membros do
grupo sobre as capacidades estatais, na medida em que as capacidades de um membro
do grupo são vistas como vantagens coletivas.

A leitura complementar indicada ilustra uma análise relevante das relações


entre Rússia e Ucrânia a partir do Construtivismo – a leitura auxilia na elucidação de
alguns dos pontos aqui discutidos.

91
LEITURA
COMPLEMENTAR
IDENTIDADE COMO FONTE DE CONFLITO:
UCRÂNIA E RÚSSIA NO PÓS-URSS

Fabiano Mielniczuk

Com o fim da URSS, as ex-repúblicas socialistas adquirem o status de países


independentes e dão início à construção de uma nova ordem no leste da Europa. A
instabilidade é esperada, pois a falência da autoridade central soviética introduz os
novos países no reino da anarquia. Nesse sentido, a emergência de Estados soberanos
traz à tona uma série de conflitos de interesses que permaneceram latentes durante
o regime comunista e nos quais a Rússia está envolvida por causa de sua extensão
territorial, o tamanho de sua população e sua importância militar. Além disso, algumas
disputas envolvem as aspirações de autonomia das antigas repúblicas, as quais passam
a enxergar a Rússia como sucessora da União Soviética no papel de opressor. Por isso
a postura russa em relação a seus vizinhos é crucial para a viabilidade da nova ordem
regional.

O presente artigo trata da relação entre Rússia e Ucrânia nesse contexto. Mais
especificamente, sugiro que os conflitos que emergem entre os dois países têm origem
no modo como suas identidades são construídas a partir do fim da URSS. O texto está
dividido em quatro partes. Na primeira, algumas contribuições teóricas sobre os conflitos
entre Ucrânia e Rússia são comentadas. Na segunda, um modelo construtivista para ser
aplicado no caso em questão é sugerido. A terceira parte consiste na aplicação deste
modelo, a partir da análise da interação entre Ucrânia e Rússia no imediato pós-URSS.
Na quarta, a relação entre a Ucrânia, a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) é analisada tendo em vista o que é apresentado nas seções anteriores.
Algumas considerações finais concluem o artigo.

Os Conflitos entre Ucrânia e Rússia no pós-URSS

No pós-URSS, a intensidade e a abrangência dos conflitos da Rússia com as


demais ex-repúblicas socialistas variam de acordo com os países em questão. O conflito
principal entre os três países do Báltico e a Rússia diz respeito ao estatuto das minorias
na região. A Rússia receia que o resgate dos valores nacionais na Letônia, Lituânia e
Estônia resulte em discriminação contra as minorias russas. Por sua vez, os três países
temem que a situação dos russos em seus territórios seja utilizada por Moscou como
pretexto para justificar a ingerência da Rússia nos seus assuntos internos (Lieven, 1999).

92
Já o conflito entre Rússia e Bielo-Rússia é econômico. A maior parte do petróleo
e do gás natural consumidos pela Bielo-Rússia é fornecida pela Rússia. Porém, por causa
das precárias condições econômicas do país, o governo de Minsk tem dificuldades em
pagar suas dívidas. Todavia, o problema é facilmente administrado e as divergências
econômicas não afetam a cooperação em outras áreas (Burant, 1995).

A indisposição entre Rússia e Moldávia é militar. Durante o processo de


dissolução da URSS é criada a Frente Popular da Moldávia, um movimento político que
busca a união do país com a Romênia. Com medo das conseqüências de uma provável
anexação à Romênia, a população eslava que habita a região entre o rio Dniester e
a fronteira com a Ucrânia inicia uma guerra de secessão. Imediatamente, as forças
armadas russas localizadas na região rebelde apóiam abertamente o movimento. Desde
então, Moscou e Chisinau têm um relacionamento pouco amistoso (Garnett e Lebenson,
1998). A relação da Ucrânia com a Rússia é mais complexa. Quase todas as disputas
envolvendo os dois países no pós-URSS são tratadas em um ambiente de conflito. Assim
como os países bálticos, a Ucrânia também teme que a preocupação com o status da
minoria russa que vive em seu território seja utilizada pela Rússia como pretexto para
interferir na política interna ucraniana. Porém, a presença russa na Ucrânia tem um
potencial de desestabilização muito maior.

Dos 50 milhões de habitantes do país, 25 milhões falam russo como primeiro


idioma e mais de 10 milhões são originários da Rússia. Essa “grande” minoria russa se
concentra nas regiões leste e sul da Ucrânia, exatamente na parte que faz fronteira com
a Rússia. Na Península da Criméia, por exemplo, 70% da população é de origem russa. As
manifestações da Rússia sobre sua diáspora são consideradas pela Ucrânia como uma
estratégia para incentivar o início de uma guerra civil entre russos e ucranianos. Desse
modo, seria mais fácil para a Rússia incorporar as regiões ucranianas habitadas por
russos ao seu território (Garnett, 1997). Assim como ocorre com a Bielo-Rússia, a Ucrânia
também enfrenta problemas com a Rússia na esfera econômica. Aproximadamente
70% do petróleo e 90% do gás natural consumidos no país são fornecidos pela Rússia.
Em situação econômica frágil, a Ucrânia nem sempre tem condições de efetuar
os pagamentos em dia. A Rússia utiliza sua condição de credora como trunfo nas
negociações que envolvem outras disputas com o país. Caso a Ucrânia não aceite suas
diretrizes, a Rússia ameaça cortar o fornecimento de energia – o que é feito geralmente
durante o inverno.

Os ucranianos temem que a interrupção do fornecimento mergulhe o país no


caos econômico. Nesse cenário, é difícil manter a lealdade da minoria russa à Ucrânia.
Na tentativa de dissuadir a Rússia, a Ucrânia lança mão do único recurso que possui
nesse âmbito: sua localização geográfica. O país aumenta as taxas de passagem do
petróleo e do gás russos, exportados para a Europa pelos dutos localizados em território
ucraniano. A medida força o restabelecimento do diálogo, mas não soluciona o problema.
O círculo vicioso é reiniciado, e a cooperação torna-se ainda mais difícil (Balmaceda,
1998a; Smolanski, 1995).

93
Ucrânia e Rússia também enfrentam problemas na esfera militar. A participação
russa na guerra da Moldávia – que ocorre na fronteira ocidental da Ucrânia – demonstra
a disposição da Rússia em garantir pela força seus interesses no “estrangeiro próximo”.
Com essa percepção, a Ucrânia obstrui as negociações sobre seu desarmamento nuclear
com a Rússia, e exige a participação dos EUA como garanti- dor dos Tratados (Papadiuk,
1996). No momento em que os acordos são firmados, o país quer salvaguardas da
comunidade internacional sobre a sua integridade territorial após a desnuclearização.
Além disso, a Ucrânia procura integrar-se à OTAN, o que é visto pela Rússia como um
ato de provocação, uma vez que a Rússia não aceita a expansão da Aliança para os
países do leste europeu. Mas os conflitos mais intensos ocorrem por causa do estatuto
de Sevastopol e da divisão da Frota do Mar Negro (FMN). Depois de anos de difíceis
negociações e de algumas ameaças de uso da força, as partes aceitam uma solução
provisória. Por não ser definitiva, é mantida a possibilidade
de que conflitos militares irrompam entre os dois países no futuro (Sherr, 1997).

Conclui-se que o relacionamento entre a Ucrânia e a Rússia no pós-URSS


beira uma conflagração geral, pois há divergência de interesses em quase todos os
seus aspectos. Por isso, é difícil formular uma hipótese que dê conta da permanência
do conflito entre os dois países. Mesmo assim, algumas delas são sugeridas. Para
Morrison (1993), o relacionamento entre Rússia e Ucrânia é afetado pelo caráter inaudito
da situação pós-URSS, dado que ambos jamais haviam coexistido como Estados
totalmente independentes. Por isso, os países recorrem à própria história a fim de definir
a maneira como proceder na interação.

Segundo o autor, é o Tratado de Pereyaslav (1654) que melhor representa


a utilização de mitos do passado para orientar a ação dos Estados no presente.
Os ucranianos o assinam como um acordo de responsabilidades mútuas, no qual
receberiam proteção contra os poloneses em troca da lealdade ao czar. Na visão russa,
trata-se do início de mais uma anexação do império. Em conseqüência, os sentimentos
atuais em relação a Pereyaslav variam. Para os ucranianos, ele ensina que não se deve
confiar na Rússia, por- que sua aparente boa vontade esconde o desejo de conquista.
Para os russos, o Tratado representa a união da Rússia com seus “irmãos menores,” e
repara uma separação artificial ocorrida no século XIII, quando os mongóis conquistam
a região. Assim, no momento da independência, tanto a Ucrânia quanto a Rússia não se
consideram interlocutores legítimos. O resultado são os conflitos entre os dois países
a partir de então. Uma outra explicação é oferecida por Kuzio (2001). Os conflitos entre
Rússia e Ucrânia têm origem na crise de identidade que assola os dois países com o fim
da URSS.

Definida em termos territoriais, étnicos e culturais, a identidade é construída


em um processo de disputa entre as elites, internamente, e tem como ponto de
referência um ou ro Estado. A elite da Rússia não aceita a identidade da Ucrânia como
país independente. Essa postura acirra a disputa entre a elite ucraniana, que se divide
entre os que apóiam a vinculação com a Rússia e os que preferem o afastamento. De

94
acordo com o autor, a inabilidade das elites russas em aceitar a separação da Ucrânia
é responsável pela ênfase dada pela elite ucraniana no governo à diferenciação em
relação à Rússia. Esse processo origina os conflitos entre os dois países. De acordo
com Kincade e Melnyczuk (1994), os conflitos entre Ucrânia e Rússia são conseqüência
da crise de legitimidade que assola a URSS durante seu fim, que acaba ficando como
herança para as repúblicas sucessoras.

A lógica de seu argumento é a seguinte: com a legitimidade em baixa, os líderes


políticos utilizam a estigmatização do adversário como um recurso para aumentar o
seu prestígio. Nesse sentido, os problemas entre Ucrânia e Rússia são causados por ex-
comunistas recém convertidos aos ideais nacionais. Formados por membros da antiga
nomenklatura, esses políticos não avaliam os riscos da prática agressiva empregada
na defesa de seus interesses. A “guerra fria” entre Ucrânia e Rússia que se segue
após o final da URSS decorre dessa situação. Em ambos os países, os líderes buscam
diminuir a contestação sobre sua legitimidade criando crises políticas para distrair a
atenção da população. As três explicações contribuem muito para o entendimento das
relações entre Ucrânia e Rússia. A ênfase dada por Morrison (1993) ao papel da história
nas relações entre os dois países é válida, mas a história é utilizada por ele de modo
inadequado.

Ao privilegiar um evento ocorrido há 350 anos, o autor reifica o significado que
o episódio tem na época e o transporta para o final do século XX. Assim, as diferenças
entre o contexto original de Pereyaslav e o contexto atual não são respeitadas. Isso
implica a menor capacidade de indicar alternativas ao padrão de conflito existente pós-
URSS. Uma abordagem complementar deve privilegiar o papel da história respeitando a
maneira como ela é interpretada em perspectiva. Dessa maneira, a ênfase recai sobre
o modo como o passado dá origem a novos significados no presente. Para alcançar
esse objetivo, é necessário priorizar o estudo da interação entre Ucrânia e Rússia na
atualidade. A ênfase dada ao papel da identidade estatal é a maior contribuição de Kuzio
(2001), que indica o processo de construção das identidades da Rússia e da Ucrânia
como fonte do conflito entre os dois países. Todavia, a identidade é entendida como
um sentimento comum compartilhado por setores da elite dentro da Ucrânia, os quais
lutam pelo poder estatal com o objetivo de impor a sua identidade sobre os demais.

Nesse processo, a percepção que se tem sobre a Rússia é fundamental. Assim,


a abordagem do autor não permite entender por que a Ucrânia não se fragmenta em
vários Estados, com limites estabelecidos em congruência com as diferentes identidades
em disputa. A partilha da Ucrânia seria muito mais cômoda e menos custosa do que
as disputas pelo governo de um Estado com várias identidades. O problema sugere a
existência de uma identidade mais ampla que mantém unidos os diferentes setores
da elite ucraniana. Uma abordagem complementar deve considerar essa identidade na
análise.

95
O mérito de Kincade e Melnyczuk (1994) está em ressaltar a importância das
representações a respeito do outro para o início e, posteriormente, a manutenção dos
conflitos entre Ucrânia e Rússia. Entretanto, o modo como a representação é construída
em sua abordagem é problemático. É facultada aos políticos a capacidade de estigmatizar
um outro Estado para aumentar seu prestígio e desviar a atenção sobre seu déficit de
legitimidade. Assume-se que estão em jogo apenas os interesses desses líderes, sendo
difícil explicar por que os russos que vivem na Ucrânia aceitam a representação negativa
da Rússia feita pela elite ucraniana. Essa falha pode ser superada por uma abordagem
que privilegie os interesses do Estado, em vez dos interesses de grupos que atuam
dentro do Estado. Por um lado, seria possível substituir a visão instrumental segundo a
qual a elite da Ucrânia manobra a política externa a fim de se manter no poder.

Por outro, a abordagem permitiria entender por que a maior parte dos russos da
Ucrânia deseja a manutenção da soberania do país e aceita a representação da Rússia
como uma ameaça. No presente artigo, propõe-se que a origem dos conflitos entre
Ucrânia e Rússia no pós-URSS seja buscada a partir de uma abordagem construtivista.
Nela, a história da interação entre Rússia e Ucrânia imediatamente após o final da União
Soviética é crucial para a definição da representação que um país tem do outro. A partir
dessa interação, são construídas as identidades estatais de ambos, que não podem ser
reduzidas às identidades das elites que disputam o poder político dentro dos Estados.
Essas identidades dão origem a interesses, que também não podem ser reduzidos
aos interesses das elites de Ucrânia e Rússia. As identidades demonstram o que os
Estados “são,” e os interesses indicam o que os Estados “querem”. Logicamente, não é
possível “querer” algo sem “ser” alguma coisa. Portanto, a abordagem teórica pressupõe
a determinação dos interesses pelas identidades dos Estados.

FONTE: MIELNICZUK, F. Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-URSS. Contexto Int.,
Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 223-258, 2006.

Leia mais em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-85292006000100004&script=sci_abstrac-


t&tlng=pt

96
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• O Construtivismo Regra-Orientado concorda com a Teoria Social de Giddens quando


afirma que o mundo seria construído por atos que consistem em significados
construídos a partir da linguagem, ao invés de existirem independente no mundo
material.

• As normas internacionais poderiam ser analisadas a partir de um ‘ciclo de vida’


composto por três fases: emergência, cascata de normas e internalização.

• Na difusão e internalização de normas dois elementos seriam centrais: o


“empreendedor normativo”, ou seja, o ator responsável pela conscientização acerca
da necessidade de mudança de conduta e as plataformas organizacionais, que na
política internacional seriam principalmente as organizações internacionais, como a
ONU.

• Wendt propõe que agentes humanos e estruturas sociais seriam teoricamente


interdependentes e teriam impacto mútuo. O autor defende que a anarquia não
seria “fixa”, mas uma consequência das relações entre Estados e da construção das
identidades, podendo assumir três lógicas baseadas em três culturas: hobbesiana,
lockeana e kantiana.

97
AUTOATIVIDADE
1 Wendt critica Waltz sobre o resultado da anarquia nas relações internacionais e
apresenta novas possibilidades interpretativas da mesma. Cite e explique-as.

2 Wendt afirma que a
autoajuda e a política de poder não derivam lógica ou causalmente da
anarquia, e que se hoje nos encontramos em um mundo de autoajuda,
isto se deve ao processo, não à estrutura. Não há uma “lógica” da
anarquia à parte das práticas que criam e instanciam uma estrutura
de identidades e interesses em detrimento de outras; a estrutura não
tem existência ou poderes causais à parte do processo. A autoajuda
e a política de poder são instituições, não características essenciais
da anarquia. A anarquia é o que os estados fazem dela (WENDT, 2013,
p. 425-6).
 
Sobre a perspectiva construtivista de Wendt, avalie as afirmações a seguir: 

I- O Construtivismo é uma teoria que deposita na estrutura a primazia ontológica em


sua compreensão do mundo social. 
II- O argumento a que Wendt se refere na citação da questão é desenvolvido melhor em
seu livro, quando o autor apresenta três possibilidades de anarquia. 
III- A diferença entre as abordagens Realista e Construtivista podem ser compreendidas,
também, a partir do lugar da “anarquia” na lógica de variáveis. Enquanto que para o
primeiro a anarquia é uma variável independente, para o segundo a anarquia é uma
variável dependente. 
 
É correto o que se afirma em: 
a) ( ) I apenas.  
b) ( ) III apenas.  
c) ( ) II e III apenas.  
d) ( ) I e III apenas.  
e) ( ) I, II e III. 

3 Cite e explique as três fases do ciclo de vida das normas, exemplificando momentos
da história mundial em que houve a tentativa de promoção de normas.

98
REFERÊNCIAS
ADLER, E. O construtivismo no estudo das relações internacionais. Lua Nova, São
Paulo, n. 47, p. 201-246, ago, 1999.  

DUNNE, T., KURKI, M., SMITH, S. International Relations Theories: discipline and
diversity. Oxford University Press, 2016.

BLUMER, H. Symbolic Interactionism: perspective and method. University of


California Press, 1969.

FINNEMORE, M. National Interests in international Society. Cornell University


Press, 1996.

FINNEMORE, M. Constructing Norms in Humanitarian Intervention. In: KATZENSTEIN,


P. The Culture of National Security: norms and Identity. Columbia University Press,
1996.

GIDDENS, A. The Constitution of Society: outline of the theory of the Structuration.


University of California Press, 1984.

MIELNICZUK, Fabiano. Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-


URSS. Contexto Int., Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 223-258, 2006.

ONUF, N. World of Our Making: rules and rule in Social Theory and International
Relations. University of South Carolina Press, 1989.

ONUF, N. The Constitution of International Society. European Journal of


International Law, 1994.

ONUF, N. Constructivism: a user’s manual. In: KUBALKOVA, V. et al. International


Relations: a constructed world. M. E. Sharpe. 1998.

RORTY, R. The Linguistic Turn: essays in philosophical method. Chicago University


Press, 1967.

SIKKINK, K. et al. Dinâmicas de Norma Internacional e mudança política. Monções:


Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v. 3, n. 6, p. 335-393, abr.,
2015.

WALT, S. One World, Many Theories. Foreign Policy, 1998.

99
WENDT, A. The Agent-Structure Problem in International Relations Theory.
International Organization, 1987.

WENDT, A. Anarchy is What States Make of It: the social construction of power.
International Organization, 1992.

WENDT, A. A Social Theory of International Politics. Cambridge University Press,


1999.

100
UNIDADE 3 —

ABORDAGENS CRÍTICAS
E DECOLONIAIS DAS
RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as bases coloniais e imperialistas, tanto da criação do Estado-Nação,


quanto do campo das Relações Internacionais;

• entender a importância da problematização da condição colonial para a produção


de um conhecimento que seja sensível às diferenças presentes nas relações
internacionais, tanto de nacionalidade, quanto raça e gênero;

• identificar contribuições pós-coloniais, decoloniais, feministas e sensíveis à raça,


pertencentes ao 4º debate teórico do campo das Relações Internacionais.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoati-
vidades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – AS RAÍZES COLONIAIS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS


TÓPICO 2 – RACISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
TÓPICO 3 – O GÊNERO ENQUANTO CATEGORIA ANALÍTICA DE RELAÇÕES
INTERNACIONAIS

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

101
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A TRILHA DA
UNIDADE 3!

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102
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
AS RAÍZES COLONIAIS DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS

1 INTRODUÇÃO
As reflexões e análises discutidas no presente livro reproduziram, até aqui, os
destaques do que é amplamente conhecido como o campo das Relações Internacionais
e as principais teorias. Na maioria dos cursos de Relações Internacionais pelo mundo
esse campo é apresentado do mesmo modo, resumido nos seguintes pontos: a
importância da Paz de Vestfália (1648) na afirmação dos Estados-Nação como unidade
política soberana, o ano de 1919 representando o marco inicial dos estudos sobre política
internacional e a reflexão em torno de quatro grandes debates que contrapõem teorias
e conceitos concorrentes.

Ainda que essa seja a narrativa mais conhecida e amplamente estudada pelos
acadêmicos da área, ela tem sido contestada e criticada por uma série de autores e
autoras (JONES, 2006; KRISHNA, 2006; CARVALHO; LEIRA; HOBSON, 2011). Essa
contestação é baseada na visão de que o campo das Relações Internacionais e o ensino
da política internacional focam predominantemente no estudo das relações entre
grandes potências, no papel da hegemonia e na busca pela preservação da soberania e
do poder e essa ênfase teria consequências sobre o nosso olhar acerca do campo e do
próprio objeto de estudo das relações internacionais.

As teorias e visões de mundo discutidas até aqui partem de contribuições


majoritariamente europeias e dos denominados “clássicos” da Ciência Política (ex.:
Hobbes, Locke e Rousseau), das Ciências Sociais (ex.: Marx, Durkheim e Weber), da
Filosofia (ex.: Kant, Grotius), dentre outros, cujas referências de mundo remetem ao
continente europeu e/ou ao ocidente de modo mais amplo. Autores como Nogueira e
Messari (2005) e Jones (2006) discutem essa predominância e afirmam que grande parte
da literatura estudada por alunos, e ensinada por professores, na área de RI permanece
sendo de autoria europeia ou norte-americana. A grande consequência disso seria um
campo pouco sensível a sociedades não-ocidentais e a formas de vida e coletividades
que não correspondem ao padrão ocidental.

A terceira unidade do livro tem como objetivo discutir a fundação do campo


e revisitá-la, compreendendo como, a despeito de se intitular “internacional”,
historicamente reproduziu – e ainda reproduz – visões de mundo e análises limitadas
a sociedades ocidentais. A ideia é abordar aqui teorias e lentes críticas que levam essa
questão em consideração e que propõem olhares múltiplos acerca tanto do campo,
quanto dos objetos de estudo das relações internacionais. Esse esforço de releitura é

103
particularmente relevante quando consideramos o lugar do Brasil no mundo, suas raízes
coloniais e seu histórico escravocrata. Compreender as relações internacionais a partir
de lentes alternativas representa também, nesse sentido, uma reflexão acerca de nossa
história.

2 A FUNDAÇÃO DO CAMPO REVISITADA


A visão convencional do campo – baseada na narrativa de debates teóricos e
no estudo das relações entre Estados em um sistema internacional anárquico – foca
em dois grandes “marcos” definidores do que se entende por relações internacionais.
O primeiro marco seria a Paz de Vestfália (1648), amplamente compreendida como
o momento de criação do Estado-Nação moderno. O segundo seria a criação – no
contexto entre guerras - da primeira disciplina de Política Internacional, na Universidade
de Gales, em 1919, intitulada “Cátedra Woodrow Wilson de Política Internacional”.
Carvalho, Leira e Hobson (2011) afirmam que esses dois momentos (que denominam
“big bangs”, por serem análogos ao início do “universo” das RIs) seriam os grandes mitos
do desenvolvimento teórico do campo.

DICA DE LEITURA
THE BIG BANGS OF IR

O artigo “The Big Bangs of IR: the myths that your teachers still tell
you about 1648 and 1919”, de Carvalho, Leira e Hobson, publicado
em 2011 no periódico “Millennium – Journal of International Studies”
faz uma reflexão importante sobre os mitos de criação do campo
de RI. Os autores exploram a historiografia do campo e revisam os
pontos considerados canônicos, revelando a importância do estudo
da história e a ausência de reflexão crítica acerca do que se considera
a origem das RIs. Vale a leitura!

A Paz de Vestfália aparece nas principais obras canônicas do campo como


um momento definidor. Em “Política entre as Nações” (1948), o pensador realista Hans
Morgenthau referiu-se ao momento como “o fim das guerras religiosas e o início do
Estado-territorial como o símbolo do sistema moderno de Estados” (Morgenthau, 1948,
pg. 254). Similarmente, autores como Adam Watson e David Held fizeram menção a
Vestfália como um marco crucial para a internalização do princípio de soberania
territorial.

Nos últimos anos, porém, tem havido um esforço de revisão historiográfica que
revela que o surgimento da soberania e do sistema internacional foi resultado de um
processo longo de mudança, não limitado à Guerra dos 30 Anos e à Vestfália. Além

104
disso, a história mundial pós-1648 foi marcada pela proliferação de hierarquias imperiais
e de dominação colonial – boa parte do que se considera, então, o sistema internacional
de Estados soberanos, era caracterizado pela dominação de territórios e povos ao redor
do mundo por poucos Estados europeus (CARVALHO; LEIRA; HOBSON, 2011).

O segundo “mito” seria a história sobre a criação do campo. Conforme visto


anteriormente, a narrativa principal e clássica presente nas obras canônicas da área
é de que as Relações Internacionais, enquanto disciplina, teria nascido em 1919, por
influência do fim da I Guerra Mundial, com o principal objetivo de explicar o conflito
e evitá-lo. Nessa conjuntura teria emergido o Internacionalismo Liberal de Woodrow
Wilson e, em consequência, o pensamento realista político de Carr (1939), crítico ao grau
de idealismo da proposta wilsoniana.

Carvalho, Leira e Hobson (2011) afirmam que essa narrativa seria equivocada
por uma série de razões. Em primeiro lugar, vários autores associados ao período entre
guerras (1919-1939) já haviam publicado análises e reflexões duas décadas antes.
Alguns exemplos incluem os trabalhos de John A. Hobson, Norman Angell, Harold Laski
e o próprio Woodrow Wilson. Em segundo lugar, o esforço revisionista de autores como
Charles Jones (1998) e Peter Wilson (2000) revela que seria um erro classificar a obra
de Edward H. Carr como puramente realista. Os autores afirmam que há em “Vinte Anos
de Crise” elementos dialéticos que aproximariam Carr do Marxismo e de uma visão
reflexivista do internacional, o que desafia a visão canônica.

Essa releitura dos elementos fundamentais de nosso campo encontra


consonância na afirmação do sociólogo e ativista por justiça racial, W. E. Burghardt
Du Bois (1868-1963): “a educação foi organizada para que os jovens aprendam não
necessariamente a verdade, mas aqueles aspectos e interpretações da realidade que
os líderes do mundo desejam que eles aprendam e saibam” (DU BOIS, 1946).

FIGURA 1 – W. E. BURGHARDT DU BOIS (1868-1963)

FONTE: <https://www.theguardian.com/world/2017/feb/14/web-du-bois-racism-data-paris-african-ameri-
cans-jobs>. Acesso em: 22 set. 2021.

105
Quais as consequências das narrativas clássicas do campo na nossa percepção
do internacional? Segundo Jones (2006) o campo das RIs teria silenciado as bases
imperiais da constituição das relações internacionais modernas. Enquanto o senso
comum observa a expansão europeia da sociedade internacional como um processo de
ampliação da soberania, democracia e do direito internacional para além do continente
europeu, as abordagens revisionistas ressaltam o legado de autoritarismo, racismo,
massacres e genocídios do colonialismo. Diminuir o peso desse “legado” no entendimento
das relações internacionais seria minimizar a importância dos povos colonizados – a
negligência acadêmica a essas violências seria o principal “dano colateral” do campo. As
próximas seções do tópico apresentam duas das principais abordagens que desafiam a
visão canônica do campo e oferecem uma leitura alternativa das relações internacionais:
as teorias pós coloniais e decoloniais.

3 ABORDAGENS PÓS-COLONIAIS
O pós-colonialismo como abordagem acadêmica pode ser dividido entre
as contribuições clássicas, representadas pelas obras de Frantz Fanon (1925-1961),
Edward Said (1935-2003), Aimé Césaire (1913-2008) e Albert Memmi (1920-2020), e as
análises do Grupo de Estudos Subalternos, fundado na década de 1970 por Ranajit Guha
e composto por autores indianos como Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri
Chakrabarty Spivak.

O pós-colonialismo dedica-se à análise de sociedades, povos e governos


historicamente colonizados. Enfatiza, desse modo, o impacto da colonização e do
imperialismo e busca compreender como esses elementos influenciaram a valorização
do conhecimento ocidental e a consequente marginalização do mundo não-ocidental.
Essa visão destaca a negligência das Ciências Sociais ocidentais em relação às
interseções entre imperialismo, raça/etnia, gênero e classe.

A percepção ocidental acerca do “resto do mundo” seria resultado dos legados da


colonização europeia e do imperialismo. Os discursos europeus teriam construído uma
visão dos povos não-ocidentais como “diferentes”, usualmente de modo a enxergá-los
como inferiores. Ao fazê-lo, justificaram a dominação dos povos – na América Latina, no
continente africano e na Ásia – como forma de torná-los civilizados e levar o progresso.

Tanto a crítica pós-colonial, quanto os estudos subalternos, em contraste às


análises marxistas sobre o colonialismo e seus legados, estão preocupados em libertar-
se dos discursos e relatos eurocêntricos. A crítica ao ocidente não se concentra apenas
na análise da exploração e do lucro derivados da colonização, mas enfatiza como as
narrativas históricas ocidentais contribuíram para esses processos. As obras pós-
coloniais e subalternas, nesse sentido, têm um papel fundamental na reflexão sobre
como a história convencional do mundo não é a única, e tampouco oferece uma visão
de fato mundial. Chakrabarty (1997) argumenta que:

106
No que diz respeito ao discurso acadêmico da História – isso é, a
“História” como discurso produzido nas universidades – a ‘Europa’
continua sendo o sujeito teórico soberano de todas as histórias,
incluindo aquelas que denominamos ‘indianas’, ‘chinesas’, ‘quenianas’,
e assim por diante. Há uma maneira peculiar pela qual todas essas
outras histórias tendem a se tornar variações de uma narrativa
que poderia ser chamada simplesmente de ‘história da Europa
(CHAKRABARTY, 1997, p. 263).

A História enquanto campo do conhecimento (e as RIs como consequência)


seria estruturada por conceitos e visões de mundo que derivam do pensamento e
das experiências europeias. Nesse sentido, a crítica pós-colonial propõe um diálogo
interdisciplinar entre as Relações Internacionais e outros campos do conhecimento na
área das humanidades.

DICA DE VÍDEO
DISCUSSÃO SOBRE A PERCEPÇÃO MIDIÁTICA SOBRE O ORIENTE
MÉDIO

Em entrevista para Museu Nacional Árabe Americano, Evelyn Alsultany,


professora especialista em representações árabes e muçulmanas na
mídia norte-americana, fala brevemente sobre como a percepção do
Oriente Médio como uma região “exótica”. É um vídeo interessante
para compreender o papel do discurso e da narrativa no nosso
entendimento acerca do internacional.

Vídeo disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=cNI8zc6r7KU

Uma das obras mais importantes do pensamento pós-colonial é o livro


“Orientalismo”, de Edward Said, publicado em 1978. A crítica do autor ao imperialismo
europeu enfatiza como os conceitos de conhecimento e poder são relacionados
à ideia de “oriente”. De acordo com Said (1978), a distinção feita pela História entre
o “ocidente” e o “oriente” promoveria uma relação de poder e dominação e reforça a
tese de superioridade racial e de contraposição entre um mundo “desenvolvido”,
tecnológico, superior (ocidente) e um mundo “atrasado” e subdesenvolvido (oriente). As
expressões acadêmicas e filosóficas do ocidente são vistas por Said como centrais para
a promoção e proteção do projeto imperialista europeu. Nesse sentido, a forma como
o conhecimento ocidental foi produzido e reproduzido teria um papel fundamental na
difusão e manutenção do imperialismo.

107
FIGURA 2 – EDWARD SAID (1935-2003)

FONTE: <https://colunastortas.com.br/orientalismo/>. Acesso em: 22 set. 2021.

O CONCEITO DE ORIENTALISMO EM EDWARD SAID (1978)

A obra “Orientalismo” (1978) discute sobre como as culturas árabes são representadas
de forma exagerada e estereotipada em produções acadêmicas, romances, descrições
sociais e relatos políticos.
De acordo com o autor, esse “orientalismo” data do período do Iluminismo europeu e
da colonização do mundo árabe – teria sido parte da racionalização das violências e
dominações coloniais, tomando como base a versão de que o “ocidente” desenvolvido
construiu o “oriente” como sendo diferente e inferior e que, portanto, necessitava
de intervenção e de resgate pelas potências europeias. É possível visualizar o
orientalismo em pinturas e obras de arte – Said enfatiza que uma série de obras do
séc. XIX, início do séc. XX retratam o mundo árabe como um lugar exótico e misterioso,
com areia, haréns e dançarinas do ventre, refletindo uma longa história de fantasias
que continuaram a permear a cultura popular contemporânea. As Feiras Mundiais
de Chicago (1863) e St. Louis (1904) reforçaram as imagens orientalistas nos Estados
Unidos.
O cruzamento do orientalismo europeu com o dos EUA pode ser visto nas imagens do
livro fotográfico de James Buel, que catalogou a Feira Mundial de 1893 em Chicago.
Esta publicação inclui fotografias de ruas árabes recriadas, acompanhadas por
legendas que capturam o pensamento orientalista da época. Por exemplo, a legenda
que acompanha a imagem "Garota egípcia na rua do Cairo" refere-se aos "modos
peculiares dos egípcios" e seu "disfarce desagradável". Além de ser descrita como um
objeto em exposição, suas características são descritas como pertencentes a uma
cultura atrasada:

108
FONTE: <https://www.lookandlearn.com/history-images/M465831/Chicago-Worlds-Fair-1893-Egyp-
tian-Girl-in-Street-of-Cairo>. Acesso em: 21 set. 2021.

A crítica pós-colonial ajuda a analisar que processos como o colonialismo


e o imperialismo não ocorreram apenas do ponto de vista material, mas também
possuem consequências sobre o modo como compreendemos o mundo. A tradição
pós-colonial, nesse sentido, inspirou uma série de contribuições teóricas ao redor do
mundo, principalmente a partir dos anos 1990, cujo objetivo central foi compreender os
processos e consequências materiais e imateriais derivados da colonização. Uma das
principais é a denominada crítica decolonial latino-americana, representada por autores
como Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo e Ramón Grosfogel.

Abordagens Decoloniais

Como discutido anteriormente, a corrente pós-colonial representa um grupo


vasto de contribuições, em sua maioria associadas a teóricos críticos clássicos e ao
Grupo de Estudos Subalternos. Esse conjunto de acadêmicos propôs uma ruptura ao
eurocentrismo presente nos vários campos do saber, a partir de um diálogo com as visões
pós-moderna e pós-estruturalista. Haveria, porém, diferenças entre o colonialismo na
Ásia e na África, a partir de onde os teóricos indianos do Grupo de Estudos Subalternos
escrevem, em relação ao processo de colonização na América Latina.

Carvalho e Rosevics (2017) afirmam que no caso indiano certos princípios


filosóficos e epistemológicos anteriores à colonização teriam sido preservados, o
que permitiria um resgate das raízes dessas sociedades. Na América, em oposição, a
colonização espanhola e portuguesa destruiu boa parte da memória anterior à ocupação,

109
“através da desintegração dos padrões de poder e das civilizações existentes na região,
do extermínio de comunidades inteiras e de seus portadores de cultura e poder, tais
como os intelectuais, os artistas, os cientistas e os líderes” (CARVALHO; ROSEVICS,
2017, p. 2). Aqueles que sobreviveram aos massacres foram subjugados e submetidos
a repressão durante séculos, até o desaparecimento completo de seu passado anterior
à colonização.

Essa diferença – e o fato de que os estudos pós-coloniais partiam de metodologias


e lentes ocidentais para a compreensão de povos e experiências subalternos – levou
à criação da abordagem decolonial na América Latina, com o objetivo de decolonizar
tanto os estudos subalternos, quanto os pós-coloniais. A justificativa para a separação
entre pós-colonialismo e teoria decolonial é baseada no conceito de colonialidade do
saber, de Aníbal Quijano:

a maneira como a dominação das potências centrais em relação


às periféricas está estruturada em uma diferença étnica racial/
de gênero/de classe que hierarquiza o dominador em relação ao
dominado, com o objetivo de controlar o trabalho, os recursos e os
produtos em prol do capital e do mercado mundial. É uma dominação
política e econômica que se justifica através do conceito de raça,
acompanhado de uma dominação epistêmica/filosófica/científica/
linguística ocidental (QUIJANO, 2000).

FIGURA 3 – ANÍBAL QUIJANO (1928-2018)

Fonte: https://lamericalatina.net/2020/10/23/omaggio-ad-anibal-quijano/

Na América Latina, mais profundamente que em outras regiões do mundo,


o fim do colonialismo não teria significado o fim da colonialidade. A conquista ibérica
das Américas foi o momento inicial de dois processos principais: a modernidade e a
organização colonial do mundo. Walter Mignolo (1995) e Quijano (1992) afirmam que nos
séculos XI e XII se constituiu o início de um longo processo de colonização dos saberes,
das linguagens e da memória dos povos latino-americanos.

110
Esse processo foi marcado pela narrativa de que a Europa seria o centro
geográfico do mundo e pela universalização da experiência europeia. O que isso
significa, na leitura decolonial? Que uma parte significativa do pensamento ocidental
(ex.: Locke, Hegel etc.) fez uma leitura do tempo e do espaço da experiência humana
a partir da leitura europeia, universalizando, homogeneizando as experiências e,
consequentemente, excluindo aqueles que não correspondem ao padrão. Entender e
analisar o mundo a partir de outras experiências e modos de vida depende, então, de
um processo de “decolonização”.

A decolonialidade existe desde a conquista e colonização das Américas. Inclui todas


as formas de resistência à colonialidade e à matriz de poder colonial global predominante
embutida no sistema mundial capitalista. Como indica Catherine Walsh (2007):

A decolonialidade denota formas de pensar, conhecer, ser e fazer


que começaram, mas também precedem, a colonização e a invasão.
Implica o reconhecimento e a anulação das estruturas hierárquicas
de raça, gênero, heteropatriarcado e classe que continuam a controlar
a vida, o conhecimento, a espiritualidade e o pensamento, estruturas
que estão claramente interligadas e constitutivas do capitalismo
global e da modernidade ocidental (WALSH, 2007, p. 5).

Walter Mignolo (1995) acrescenta que a decolonialidade não é “um ponto linear
de chegada ou iluminação” (MIGNOLO, 1995, p. 15), mas “busca tornar visível, abrir e
avançar perspectivas e posicionalidades radicalmente distintas que deslocam a
racionalidade ocidental como a única estrutura e possibilidade de existência, análise e
pensamento” (MIGNOLO, 1995, p. 16).

FIGURA 4 – WALTER MIGNOLO

FONTE: <https://www.skoob.com.br/autor/28173-walter-mignolo>.
Acesso em: 22 set. 2021.
111
O que seria, então, “decolonizar” as relações internacionais? Seria, entre outros
esforços, expor o papel que o colonialismo teve na construção tanto das relações
entre Estados e povos, quanto no campo de estudos desses objetos e, por meio dessa
consciência, potencializar o desenvolvimento futuro de formas não colonizadas.
A maioria das disciplinas modernas tem práticas disciplinares, objetos de estudo e
interpretações que são inseparáveis ​​do colonialismo. Por exemplo, na Antropologia,
as distinções entre sociedades "primitivas" e "avançadas" e a prerrogativa das últimas
de compreender e descrever as primeiras de forma científica e verdadeira não foram
questionadas no apogeu do colonialismo.

No entanto, após duas guerras mundiais, a crescente onda de nacionalismo


anticolonial em três continentes (Ásia, África e América Latina), e a recusa crescente
daqueles que foram objetos de sua investigação de se reconhecerem em suas
descrições, uma Antropologia “decolonizada” não poderia mais ser adiada, mesmo com
um número significativo de estudiosos resistindo a tal esforço. É possível traçar uma
trajetória semelhante - com vários graus de sucesso - em disciplinas como História,
Sociologia, Ciência Política, Economia e outras à medida que o século XX se desenrolou.

A compreensão de que poder e conhecimento estavam entrelaçados, e que


as descrições "ocidentais" de povos não ocidentais nunca foram separadas de seus
próprios interesses políticos, econômicos e outros nesses espaços, gradualmente abriu
caminho em direção a um processo ainda incompleto e contínuo de descolonização
dessas disciplinas.

Por várias razões, o campo de Relações Internacionais (RI) tem sido resistente a
esse impulso de descolonização. Em primeiro lugar, conforme discutido anteriormente,
as RI enquanto campo surgiu nos Estados Unidos, uma sociedade alheia à sobre sua
própria história (doméstica) como colônia e uma história (externa) como colonizador
na América Latina, nas Ilhas do Pacífico, no Extremo Oriente, etc. Em vez disso, os EUA
enfatizaram seu status pós-colonial ao romper com a Grã-Bretanha no final do século
XVIII e apoiar os esforços de descolonização de países do terceiro mundo que buscavam
a independência da Inglaterra, França ou Japão.

Esse esquecimento do genocídio dos nativos americanos e da escravidão dos


africanos exportados para o Novo Mundo, centrais para a fundação dos Estados Unidos,
foi transportado para a disciplina essencialmente americana de RI, que muitas vezes
fala das relações entre as nações como se fossem entidades sem história, que surgiram
repentinamente - todas idênticas e soberanas - em algum momento em meados do
século XX.

Em segundo lugar, emergindo no interregno entre duas guerras mundiais, as RI


sempre se concentraram em explicar as condições que levam à guerra e as formas de
evitá-la. Isso produziu uma espécie de “obsessão” com questões de segurança nacional
e, especialmente, com a necessidade de evitar uma política "irresponsável" ou idealismo

112
que poderia baixar a guarda e criar condições para a guerra. Questões "históricas",
como o colonialismo, foram consideradas menos relevantes, como consequência. Em
outras palavras, o discurso de RI é predominantemente marcado por um nacionalismo
metodológico que se destina a evitar todas as ameaças à soberania do Estado.

Em terceiro lugar, por fim, as RI tem procurado construir-se à imagem de


uma disciplina científica, que visa desvendar as leis invariáveis ​​que regem as relações
entre as nações. Essa ênfase em alcançar uma ciência universal aplicável em todas as
situações significa que o nosso campo tem uma forte preferência pela teoria abstrata,
em detrimento dos contextos históricos.

Descolonizar o campo das RI - baseado em um poderoso conjunto de repressões


e “amnésias” em relação à sua própria fundação - não é uma tarefa fácil. Algumas
questões, propostas por Krishna (2012) auxiliam nesse processo:

qual é a relação entre nossas técnicas de abstração (a obsessão


por teoria sem lugar e sem contexto) e o desaparecimento de
questões de raça, genocídio e colonialismo de nosso campo de
estudo? As Relações Internacionais devem sempre se reduzir a
relações internacionais, isto é, relações entre entidades soberanas
chamadas Estados-nação? Por que, depois de exercitarmos nossos
tabus contra análises histórico-qualitativas e por relevância política
e rigor conceitual, nos encontramos em uma disciplina obcecada por
combater o terrorismo, garantir a soberania, selar fronteiras, maximizar
a utilidade e vencer os jogos que as nações ostensivamente jogar?
Como essas obsessões, escritas a partir de um locus de enunciação
branco, ocidental e privilegiado, soam para quem é negro, não
ocidental e desfavorecido? (KRISHNA, 2012, p. 2).

Fazer essas perguntas é um passo importante e crítico para descolonizar


o campo. Tão importante quanto, porém, é ir além da crítica. Pensar as Relações
Internacionais a partir da crítica decolonial envolve:

(a) Colocar todos os contextos e questões contemporâneos no campo das Relações


Internacionais sob a perspectiva genealógica, questionando como o campo tornou-se
o que é hoje. Isso envolve a análise das histórias entrelaçadas que produziram esse
momento no tempo e no espaço.

(b) Ouvir vozes, histórias, narrativas, ciências sociais e outras literaturas de pessoas de
fora da corrente dominante e considerá-las pelo menos iguais em sua capacidade de
compreender e mudar nossos mundos.

(c) Ensinar Relações Internacionais de maneiras que não reverenciam um cânone, mas
sim abram esse cânone para contestação e desconstrução, e para fazer perguntas
como "Os cânones são universais ou são entendimentos de mundos complexos de um
ponto de vista particular que faz uma reivindicar tal status onisciente?”.

113
(d) Escolher temas para pesquisar e trabalhar que sejam verdadeiramente globais em
seu campo de ação, que não pressuponham apenas que pertencer à nacionalidade é a
única maneira de ser e existir.

(e) reconhecer que o mundo se torna legível para nós através de uma variedade de
modos de compreensão – não há nada que sugira que um modo quantitativo ou
supostamente logicamente rigoroso de análise seja superior àqueles reproduzidos em
diferentes idiomas e usando diferentes sensibilidades.

Em última análise, as abordagens pós e decoloniais defendem que descolonizar


as RI seria responsabilidade de todos os que habitam esse campo. Não seria apenas
responsabilidade de indivíduos que habitam e produzem conhecimento em continentes
específicos. Descolonizar a disciplina envolve um questionamento crítico contínuo de
nossas práticas cotidianas e lógicas de interpretação.

DICA DE VÍDEO
“THEORY FROM THE MARGINS”, COM WALTER MIGNOLO

O projeto “Theory from the Margins” organiza entrevistas e palestras


com acadêmicos renomados no campo das Relações Internacionais,
com ênfase em contribuições críticas e decoloniais. O prof. argentino
Walter Mignolo foi entrevistado em 2020 e suas reflexões estão
disponíveis no YouTube.

<https://www.youtube.com/watch?v=qDEEbVcxmRU>

Vale a pena assistir e compreender as contribuições válidas de Mignolo


para o pensamento decolonial.

114
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Segundo as abordagens pós-coloniais e decoloniais, o campo das Relações


Internacionais (e a política internacional de modo geral) historicamente reproduziu –
e ainda reproduz – visões de mundo e análises limitadas a sociedades ocidentais.

• Tem havido um esforço de revisão historiográfica que revela que o surgimento da


soberania e do sistema internacional foi resultado de um processo longo de mudança,
não limitado à Guerra dos 30 Anos e à Vestfália, como as narrativas tradicionais do
campo afirmam.

• A crítica ao colonialismo é uma das similaridades entre as teorias pós-coloniais e


decoloniais. A diferença reside no lugar de onde os autores escrevem – enquanto
os pós-coloniais refletem sobre a colonização nos continentes africano e asiático,
os decoloniais buscam compreender as colonialidades do ser e do saber a partir da
experiência latino-americana – e nos métodos empregados no processo de produção
do conhecimento.

115
AUTOATIVIDADE
1 Aponte e discuta as diferenças entre as abordagens pós-coloniais e as abordagens
decoloniais.

2 Segundo a crítica pós-colonial, qual seria o problema da narrativa tradicional do


campo das RIs, que enfatiza a importância de Vestfália e do contexto entre guerras
na definição do que deve ser estudado?

3 O que significa “descolonizar” o campo? Por que esse esforço seria necessário, segundo
a abordagem decolonial?

116
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
RACISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

1 INTRODUÇÃO
Temas como raça e racismo estão presentes tanto em nosso cotidiano, quanto
na política internacional. Do mesmo modo como o pós-colonialismo e as abordagens
decoloniais discutidas no tópico anterior analisam as colonialidades e injustiças
presentes no campo das Relações Internacionais, um conjunto de acadêmicos tem
recentemente empreendido esforços para compreender as dimensões raciais da política
internacional e por que é importante trazê-las à tona.

O racismo é, de modo resumido, um conjunto de crenças sociais que considera


grupos de pessoas inferiores e facilita práticas discriminatórias. Como isso se manifesta
nas RI? Alguns exemplos incluem o projeto de construção de um muro na fronteira entre
EUA e México durante o governo de Donald Trump, ou a denominação do coronavírus
enquanto “vírus chinês”, para citar casos recentes. Como no caso da colonização,
reconhecer as dimensões de raça nas relações internacionais é importante para que seja
possível analisar os vários temas que permeiam o nosso campo de modo compreensivo
e justo.

O presente tópico propõe uma discussão sobre as dimensões de raça nas


relações internacionais e se (e como) o campo inclui esse tema em suas agendas de
pesquisa. Além disso, será discutida a ideia de “linha global de cor”, de pensadores como
W. E. Burghardt Du Bois e como ela ajuda a compreender como raça é uma questão
presente tanto na prática quanto no campo das Relações Internacionais.

2 POR QUE A DISCUSSÃO SOBRE RACISMO IMPORTA NAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS?
As questões relacionadas a raça são geralmente tratadas como questões
domésticas – isto é, como questões de identidade ou em termos de estratificação (de
classe, casta ou qualquer outra divisão social). Embora essas duas categorias de análise
sejam de importância fundamental, elas frequentemente negligenciam os processos
internacionais por meio dos quais as diferenças raciais também foram produzidas. A
política contemporânea é geralmente vista através das lentes do Estado-nação, que
é amplamente, mas erroneamente, entendido como tendo suas origens no sistema de
estados soberanos que surgiu na Europa em 1648.

117
A história do sistema de Estados moderno, como muitas vezes é ensinada,
enfatiza o impacto das Revoluções Americana e Francesa no final do século XVIII. No
entanto, como as abordagens críticas pós e decoloniais discutidas apontam, este é
precisamente o período de expansão e colonização colonial que viu alguns estados
europeus consolidarem seu domínio sobre outras partes do mundo e sobre suas
populações, que passaram a ser representadas em termos racializados.

Essa dominação externa raramente é descrita ou teorizada como um aspecto


constitutivo do chamado Estado moderno – que é tanto imperial quanto nacional. As
hierarquias racializadas do império definiram a política mais ampla além do Estado-nação
e, após a descolonização, continuaram a construir desigualdades de cidadania dentro
dos Estados que só recentemente se tornaram nacionais. Gurminder Bhambra, uma
das autoras do campo que problematiza a questão de raça, exemplifica esse processo:

A Grã-Bretanha, por exemplo, não fez distinção entre os membros


de sua política imperial ao legislar para a cidadania em 1948, com
a cidadania comum disponível para aqueles no Reino Unido e em
suas colônias. À medida que o império recuava, o direito à cidadania
diminuía ao longo das linhas raciais. À luz das chamadas políticas
ambientais hostis subsequentes, aqueles que haviam se mudado
legitimamente para o Reino Unido da Comunidade não-branca foram
obrigados a demonstrar seu direito à cidadania e, se não puderam,
foram em muitos casos deportados no que veio a ser conhecido
como o escândalo Windrush (BHAMBRA, 2020, p. 1).

FIGURA 5 – GURMINDER BHAMBRA

FONTE: <http://speri.dept.shef.ac.uk/people/gurminder-k-bhambra/>. Acesso em: 22 set. 2021.

118
Segundo Bhambra (2020), os estudiosos e profissionais das Relações
Internacionais devem levar a sério as histórias coloniais que foram constitutivas da
formação dos Estados modernos. Deixar de fazer isso não seria apenas um erro intelectual,
mas também tem profundas consequências para a natureza e as possibilidades da
política - incluindo a política racial - no presente.

Olivia Rutazibwa (2020) afirma que levar a sério o problema do racismo no campo
das RI significa vê-lo não apenas como uma questão de estereótipos ou insensibilidades
culturais, mas como uma tecnologia colonial de vida e morte prematura construída
sobre ideologias de branquitude e supremacia branca. Também não se trata apenas
de adicionar um pouco de racismo e colonialismo na análise do internacional. Significa
repensar fundamentalmente o propósito da disciplina: fazemos dela uma ciência do
status quo ou uma ciência da possibilidade de vida – começando com as vidas negras?

FIGURA 6 – OLIVIA RUTAZIBWA

FONTE: <https://mortara.georgetown.edu/profile/olivia-u-rutazibwa/>.
Acesso em: 22 set. 2021.

Desafiar as análises racistas na disciplina também significa ser mais atento à


agência dos atores africanos em vários níveis de análise. Abordagens centradas no
Estado tendem a se concentrar nas capacidades e falhas desses atores e os indivíduos
africanos meramente como corpos a serem atuados e movidos como peões em um
tabuleiro de xadrez global, o que obscurece como suas estratégias, engajamento e
resistência moldam os fluxos de poder no sistema internacional.

Qualquer discussão atual sobre a chamada "nova corrida pela África" - na


qual países como os Estados Unidos, China e Rússia competem por participação de
mercado, recursos e influência no continente – quando não acompanhada de uma
análise adequada de interesses regionais, dinâmica de poder, normas e práticas
produzirá análises acadêmicas e de política externa incompletas. Para compreender
adequadamente o papel central que a África desempenhou e continuará a desempenhar

119
em debates futuros sobre as relações internacionais e nos assuntos mundiais, o campo
precisa remediar o apagamento do continente africano e se sentir confortável com a
discussão sobre raça.

GIO
A “NOVA” CORRIDA PELA ÁFRICA

O fenômeno conhecido como nova corrida pela África diz respeito à


rivalidade entre as grandes potências da atualidade, como Estados
Unidos, China, Reino Unido e França pelo controle de recursos e
influência no continente africano. Exemplos dessa rivalidade incluem a
intervenção militar no Mali e na Líbia, o estabelecimento do Comando
dos EUA para a África (AFRICOM), além do alto fluxo de investimentos
e projeto de infraestrutura empreendidos pela China no continente.

DICAS
WHEN CHINA MET AFRICA

O documentário de 2010 “When China Met Africa” ilustra a expansão


econômica chinesa a partir de sua influência no continente africano.
É um retrato interessante das relações sino-africanas e auxilia no
entendimento da nova corrida pela África, discutida acima.

O documentário está disponível na íntegra em:


https://whenchinametafrica.com

Da mesma forma que as relações internacionais negligenciaram a raça, o


campo foi ao mesmo tempo ignorante e desdenhoso em relação às formas alternativas
de pensar sobre o mundo que, de acordo com uma compreensão eurocêntrica da
história, não se originam do Ocidente. Ideias de fora do Ocidente foram consideradas
inferiores no campo de RI e sem valor por causa de sua origem geográfica, porque não
são expressas na linguagem teórica considerada legítima pelos autores canônicos de RI
ou não aparecem em formas – como artigos de periódicos acadêmicos reconhecidos ou
livros – considerados fontes adequadas para o estudo de RI.

Além disso, estudiosos de fora do Ocidente, de uma forma que reflete a economia
global, foram relegados ao papel de fornecedores de matéria-prima. Por exemplo, os
estudiosos ocidentais frequentemente avaliam os Estados africanos de acordo com
critérios desenvolvidos pelas teorias europeias de criação de um Estado e contam

120
com os estudiosos locais para fornecer os dados relevantes, em vez de considerar
entendimentos africanos alternativos do que significa Estado. Como consequência, a
maioria do que os alunos leem em RI continua a ser escrita por uma minoria de pessoas
no mundo todo. A presunção de que todas as ideias valiosas se originaram no Ocidente
não é apenas excludente, mas falsa, como argumentam estudiosos como Pinar Bilgin,
Robbie Shilliam e Siba Grovogui – e deve ser reconhecida como uma forma de racismo
intelectual.

FIGURA 7 – SIBA GROVOGUI

FONTE: <https://www.gorki.de/en/company/interdisciplinary/siba-n-grovogui>.
Acesso em: 22 set. 2021.

Grovogui (2002) afirma que as análises tradicionais sobre os Estados africanos e


sobre as relações exteriores da África frequentemente focam nas causas, consequências
e repercussões de seus fracassos. Essas análises se baseiam nas preocupações com as
populações africanas que carregam o “peso” da disfunção política e dos regimes falhos
e autoritários. No entanto, essas visões seriam errôneas no que diz respeito à gênese
do Estado africano e aos modos de governança dentro dos quais ele passou a existir.

Em “Worlds of Color”, Du Bois (1925, 423) propôs que o “presente problema dos
problemas”, ou seja, a estrutura global da exploração do trabalho, precisava ser repensada
em relação à “sombra colonial” lançada por impérios europeus. Empreendendo uma
análise comparativa desses impérios, o autor observou que o imperialismo moderno
tinha uma “face democrática” em casa e uma “autocracia severa e inflexível” nas
colônias. Du Bois argumentou que a negação da democracia nas colônias dificultou sua
realização completa na Europa. “É isso”, sugeriu ele aos formuladores da política externa
ocidental, “que torna o problema da cor e o problema do trabalho, em grande medida,
dois lados do mesmo emaranhado humano” (DU BOIS 1925, 442). Segundo o autor, o

121
grande problema do século XX seria o problema da “linha de cor”, ou seja, “a relação
entre as raças mais escuras com as raças mais claras dos homens na Ásia, na África e
na América” (DU BOIS, 1925, p. 23).

Dez anos depois, Du Bois (1935) escreveu novamente para a revista Foreign
Affairs e fez um prognóstico de que a segunda guerra italiana/etíope (1935-1937)
inflamaria ainda mais a linha global de cor. Desse modo, Du Bois enfatizou a importância
crucial da raça e do racismo como princípios organizadores fundamentais da política
internacional; eixos de hierarquia e opressão que estruturam a lógica da política mundial
como a conhecemos.

GIO
A GUERRA ENTRE ITÁLIA E ETIÓPIA (1935-1937)

A Guerra Ítalo-Etíope

FONTE: <https://www.blackpast.org/global-african-history/second-italo-abyssinian-
-war-1935-1936/>. Acesso em: 22 set. 2021.

A segunda guerra Itálo-Etiope ocorreu entre 1935 e 1937 em um contexto de fortalecimento


do Eixo, que depois tornou-se uma das alianças centrais da Segunda Guerra Mundial. A
invasão italiana ao território etíope ocorreu com o objetivo de fortalecer o nacionalismo
indiano e como revanche à derrota italiana na Batalha de Adowa no século XIX (mais
especificamente em 1896).

Em resposta aos apelos etíopes, a Liga das Nações condenou a invasão


italiana em 1935 e votou pela imposição de sanções econômicas ao
agressor. As sanções permaneceram ineficazes devido à falta geral de
apoio. Embora a agressão de Mussolini à Etiópia tenha sido vista com
desagrado pelos britânicos, que tinham uma participação na África
Oriental, as outras grandes potências não tinham nenhum interesse
real em se opor a ele. A guerra, ao dar substância às reivindicações
imperialistas italianas, contribuiu para as tensões internacionais entre
os Estados fascistas e as democracias ocidentais. Também serviu como
ponto de encontro, especialmente após a Segunda Guerra Mundial,
para o desenvolvimento de movimentos nacionalistas africanos.

122
A linha global de cor

Como discutido acima, a resposta de Du Bois às causas das duas grandes guerras
mundiais e as perspectivas de paz mundial foram sistematicamente enquadradas por
meio de uma consideração dos efeitos políticos do pensamento racial e da ordem
racial. Para Du Bois (1925), a guerra não era uma aberração da civilização europeia, mas
sua expressão mais clara, e as principais causas da grandeza europeia – a expansão
ultramarina e o engrandecimento colonial – foram também as próprias causas da guerra.
“É dever da Europa branca”, opinou Du Bois (1925), “dividir o mundo negro e administrá-
lo para o bem da Europa” (DU BOIS, 1925, p. 503).

Enquanto essas práticas permaneceram sendo o esteio da governança global


europeia do pós-guerra, as perspectivas de paz eram escassas. O argumento de Du
Bois ressoou com a teoria marxista, mas foram os pensamentos e experiências dos
escravos africanos na América do Norte e o impacto de sua luta pela libertação que
formaram a inspiração chave para sua “teoria internacional” da linha de cor. Du Bois
não só passou longos períodos ensinando, mas também convivendo e aprendendo com
os povos negros do Sul, segundo Anievas, Manchanda e Shilliam (2015). Na verdade, o
termo “linha de cor” não foi invenção de Du Bois, mas já parte da gramática do debate
sobre a reconstrução do Sul dos EUA após a proclamação da emancipação. Antes de
Du Bois, Frederick Douglass (1881) defendia a eliminação da linha de cor, enquanto seus
oponentes previam o fim da civilização se isso acontecesse.

Du Bois foi responsável pela criação do primeiro departamento de Sociologia


em uma universidade historicamente marcada pela presença de acadêmicos negros,
a Universidade de Atlanta, no fim do século XIX. A concepção dominante nos EUA à
época era de superioridade branca em relação à população negra. Foi um período de
segregação racial e de violência generalizada.

GIO
A SEGREGAÇÃO RACIAL NOS EUA E AS LEIS DE JIM CROW

As leis de Jim Crow foram a base legal da imposição da segregação racial


no sul dos Estados Unidos durante os séculos XIX e XX. De 1877 a 1964
um conjunto de regras foram impostas para estabelecer uma separação
entre os direitos da população branca e os direitos da população negra
no país. As escolas, transporte público, instalações e locais públicos
passaram a ser segregadas e os espaços reservados à população negra
eram inferiores àqueles reservados à população branca.

123
O legado de Du Bois por si só desafiou as concepções dominantes nos EUA
nesse período: o autor foi o primeiro acadêmico afro-americano a concluir o PhD na
Universidade de Harvard, com uma tese que discutiu o tráfico de escravos africanos
para os Estados Unidos. Durante sua carreira, Du Bois denunciou o racismo tendencioso
presente nas Ciências Sociais e reconheceu que essa característica não foi desafiada
ao longo dos anos pois era apoiada pelas elites brancas. O autor também questionou as
afirmações de uma suposta superioridade branca baseada na ciência, denunciando que
se tratava de racismo, não fato.

DICA DE FILME
HISTÓRIAS CRUZADAS (2011)

O filme estadunidense “Histórias Cruzadas”, de 2011, conta a história


da relação entre donas de casa do Mississippi e suas empregadas
domésticas nos anos 1960, período de vigência das Leis de Jim Crow,
marcado pela segregação racial e por racismo nos EUA. Vale a pena
assistir!

O campo das RI parte das críticas de Du Bois ao racismo científico e de suas


considerações sobre a linha global de cor para elaborar análises sobre as dimensões
raciais das relações internacionais. Uma das obras mais importantes nesse sentido é o
livro “Race and Racism in International Relations: confronting the global colour line”, de
Alexander Anievas, Nivi Manchanda e Robbie Shilliam, publicado em 2015, que discute
temas como a falência de Estados-nação, a violência colonial, a racialização da ordem
jurídica internacional e o racismo presente nas correntes teóricas tradicionais do campo.

FIGURA 8 – ROBBIE SHILLIAM

FONTE: <https://blackbritishacademics.co.uk/person/prof-robbie-shilliam/>.

124
Raça e racismo não são apenas fundamentais para o campo das RI, mas também
seminais para o desenvolvimento do campo, dada sua centralidade na condução
dos assuntos internacionais. Por exemplo, perto do fim da Guerra Fria, Lauren (1996)
reconheceu que:

A primeira tentativa global de falar de igualdade centrou-se na raça.


As primeiras disposições de direitos humanos na Carta das Nações
Unidas foram colocadas lá por causa da raça. O primeiro desafio
internacional à reivindicação de um país de jurisdição doméstica e
tratamento exclusivo de seus próprios cidadãos centrado na raça.
A convenção internacional com maior número de signatários é a de
corrida. Dentro das Nações Unidas, há mais resoluções que tratam
de raça do que de qualquer outro assunto. E certamente um dos
problemas mais antigos e frustrantes das Nações Unidas é o da
raça. Quase cento e oitenta governos, por exemplo, recentemente
chegaram a concluir que a discriminação racial e o racismo ainda
representam os problemas mais sérios para o mundo hoje (LAUREN,
1996, p. 4).

Persaud e Walker (2001) acrescentam que "o significado da raça em RI vai muito
além de várias conquistas multilaterais e outras conquistas diplomáticas" porque "a raça
tem sido uma força fundamental na própria formação do sistema mundial moderno
e nas representações e explicações de como esse sistema surgiu e como funciona”
(PERSAUD; WALKER, 2001, p. 374). Para os autores, “raça tem estado no centro de
gravidade durante uma parte substancial do sistema mundial moderno” (PERSAUD;
WALKER, 2001, p. 116).

DICA DE DOCUMENTÁRIO
I AM NOT YOUR NEGRO

“I Am Not Your Negro” é um documentário francês-estadunidense de


2016 que discute as relações étnicas e raciais durante a luta por direitos
civis nos Estados Unidos, a partir do protagonismo de figuras históricas
como Martin Luther King e Malcolm X. Elaborado por James Baldwin,
romanista estadunidense, o documentário problematiza o papel da
população negra na sociedade americana e as tensões sociais derivadas
do racismo. Vale a pena assistir!

Segundo Henderson (2015), o racismo não apenas fez parte da constituição os


paradigmas da política mundial, como foi fundamental para a conceituação de uma de
suas características centrais: a anarquia. Os teóricos do contrato social (Hobbes, Locke
e Rousseau, principalmente) enraizaram suas conceitualizações do estado de natureza
em um “contrato racial” mais amplo que dicotomizou a humanidade racialmente e
estabeleceu uma hierarquia de supremacia branca em suas concepções fundamentais
da sociedade.

125
Teóricos de RI do final do século XIX e início do século XX construíram esse
dualismo racista ao construir sua concepção de uma anarquia global e o papel dos
brancos "civilizados" para fornecer, manter e garantir a ordem por meio de um sistema
de relações de poder internacionais entre os brancos – ou, no mínimo, dominado por
brancos e um sistema de subjugação colonial para não-brancos – ou aqueles não-
brancos que não conseguiram resistir com sucesso à sua dominação militar.

O impacto e o papel do racismo se manifestam por meio dos principais paradigmas


no campo hoje - Realismo, Neorrealismo, Liberalismo/Idealismo e Construtivismo
– principalmente por meio de sua confiança contínua em uma concepção racista de
anarquia; no caso do Neorrealismo por meio de sua base no primitivismo africano,
enquanto para o Marxismo, sua dependência e “normalização” de uma teleologia
eurocêntrica de desenvolvimento econômico para o mundo.

Ao continuar a ensinar a ficção de que o campo emergiu após a devastação da


Primeira Guerra Mundial, como "idealistas" liderados por procuraram fornecer os controles
institucionais sobre a realpolitik que estava implicada na “guerra para acabar com todas
as guerras”, o campo torna secundária a realidade da centralidade do colonialismo, o
desenvolvimento racial e a supremacia racial branca para o desenvolvimento do campo
acadêmico de RI.

126
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A dimensão de raça está presente tanto na prática das relações internacionais,


quanto no campo do conhecimento das Relações Internacionais.

• Reconhecer as dimensões de raça nas relações internacionais é importante para


que seja possível analisar os vários temas que permeiam o nosso campo de modo
compreensivo e justo.

• Um dos conceitos mais importantes para a compreensão da dimensão racial das


relações internacionais é o de “linha global de cor”, discutido principalmente por Du
Bois (1925). Esse conceito diz respeito às relações desiguais entre brancos e negros
nos processos de colonização e expansão imperial europeus.

127
AUTOATIVIDADE
1 O que é a linha global de cor, segundo Du Bois (1925)?

2 Por que a discussão sobre e raça e racismo importa nas Relações Internacionais?

3 Qual a relação entre a proposta pós-colonial de estudos sobre a política internacional e a


defesa de análises sensíveis a raça e racismo?

128
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
O GÊNERO ENQUANTO CATEGORIA ANALÍTICA
DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

1 INTRODUÇÃO
O pensamento feminista nas Relações Internacionais emergiu relativamente
tarde em comparação com outras correntes das ciências sociais. Teóricas do campo
propuseram um conjunto de análises sobre como o gênero afetava a teoria e a prática
das relações internacionais no final dos anos 1980, durante o debate, anteriormente
discutido, entre positivistas e pós-positivistas. Como as críticas pós-positivistas das
abordagens convencionais de RI, as teóricas feministas afirmam que paradigmas
como realismo, neorrealismo e institucionalismo liberal apresentam uma visão
limitada, enraizada em suposições políticas que não contam toda a história da política
internacional.

A abordagem feminista das RI não representa um único corpo teórico


homogêneo, mas um discurso distinto composto de muitas teorias concorrentes. Por
exemplo, feministas liberais se concentram na análise e na garantia de direitos iguais
e acesso à educação e economia para as mulheres, enquanto feministas marxistas
procuram transformar as estruturas socioeconômicas opressivas da sociedade
capitalista (STEANS, 1998, p. 19). As feministas pós-modernas, por outro lado, rejeitam
as afirmações de que uma teoria pode contar “uma história verdadeira” sobre a
experiência humana (STEANS, 1998, p. 26). Esse grupo de autoras argumenta que não
há experiência ou ponto de vista feminino autêntico que possa ser usado como um
modelo para a compreensão do mundo, e repreendem as feministas liberais por sua
adesão ao projeto iluminista, seu preconceito e suas visões essencialistas das mulheres
(STEANS, 1998, p. 27).

Apesar da natureza heterogênea do feminismo na disciplina, todas as


estudiosas feministas de RI estão unidas por uma preocupação com básica em relação
a gênero: a diferença ideológica e socialmente construída entre homens e mulheres, em
oposição às diferenças biológicas entre os sexos. Para a teoria feminista das Relações
Internacionais, gênero constitui e é constituído por desigualdades nas relações de
poder e nas estruturas sociais, e tem implicações significativas para as respectivas
experiências de homens e mulheres.

De maneiras diferentes, as feministas pretendem explicar o papel do gênero


na teoria e prática das relações internacionais, localizando as mulheres na política
internacional, investigando como elas são afetadas pelas estruturas e comportamento
no sistema internacional e explorando maneiras de reconstruir a teoria das RI, tornando-a

129
neutra em relação a gênero. Uma vez que as principais correntes teóricas de RI não
estavam tradicionalmente preocupadas com gênero, o trabalho das primeiras feministas
de RI buscou desvendar o papel crucial das mulheres em espaços convencionais da
política internacional, como a economia global, a política e a guerra.

O presente tópico tem como objetivo discutir por que gênero importa na análise
da política internacional, analisando as contribuições de autoras como Cynthia Enloe
e Ann Tickner, precursoras do pensamento feminista no campo. Em seguida será
discutido o pensamento feminista liberal, a desigualdade de representação na política
e as consequências dessa estrutura. Por fim serão apresentadas as principais linhas
de estudo do feminismo decolonial, representado aqui pelas contribuições de María
Lugones, Ochy Curiel e Breny Mendoza.

2 POR QUE A DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO IMPORTA?


Em seu trabalho seminal, “Bananas, Beaches and Bases”, Cynthia Enloe (1989)
enfatizou as experiências cotidianas das mulheres como indivíduos, demonstrando
sua importância para a continuidade do funcionamento do sistema estatal como
trabalhadoras de plantações, consumidoras, esposas de diplomatas e de soldados e
prostitutas em bases militares. Ela afirmou que omitir mulheres nas teorias do campo
deixaria as RIs “com uma análise política incompleta, até ingênua” (ENLOE, 1989, p. 2).

FIGURA 9 – CYNTHIA ENLOE

FONTE: <https://www.goodreads.com/author/show/138098.Cynthia_Enloe>. Acesso em: 22 set. 2021.

130
A dimensão de gênero pode ser observada, por exemplo, através na análise das
experiências das mulheres na guerra: em geral, a guerra intensifica as desigualdades
econômicas entre homens e mulheres e muitas vezes força as mulheres a trabalhar sem
remuneração no cuidado de soldados feridos ou doentes quando os hospitais estão
superlotados ou destruídos (CHEW, 2008, p. 77). As mulheres são forçadas ao comércio
sexual para subsistência, às vezes sendo contratadas informalmente por líderes militares
em torno das bases para sustentar o moral dos soldados (ENLOE, 1989).

Os não combatentes, ou seja, mulheres e crianças, representam 90% das mortes


nas guerras contemporâneas, e o estupro sistemático tem sido usado como arma
durante a guerra, como durante a guerra na Bósnia e Herzegovina, ou atualmente na
República Democrática do Congo (CHEW, 2008, p. 75). Ver a guerra pelos olhos de uma
mulher pode mudar a própria natureza do que constitui as fronteiras das RI, mudando
o foco das causas e custos da guerra entre Estados para as consequências drásticas
sofridas pelos indivíduos devido à militarização e opressão.

A teoria feminista desafiou a quase completa ausência das mulheres da teoria


e prática das RI nos três primeiros debates teóricos. Essa ausência é visível tanto
na marginalização das mulheres da tomada de decisões quanto na suposição de
que a realidade da vida cotidiana das mulheres não é afetada ou importante para as
relações internacionais. Além disso, as contribuições feministas às RI também podem
ser entendidas por meio de sua desconstrução de gênero – tanto como identidades
socialmente construídas, quanto como uma poderosa lógica de organização.

Isso significa reconhecer e, em seguida, desafiar as suposições sobre os papéis


de gênero masculino e feminino que ditam o que mulheres e homens devem ou podem
fazer na política global e o que conta como importante nas considerações das relações
internacionais. Essas suposições, por sua vez, moldam o processo da política global
e os impactos que têm nas vidas de homens e mulheres. Em vez de sugerir que as RI
tradicionais eram neutras em termos de gênero – isto é, que gênero e RI eram duas
esferas separadas que não impactavam uma na outra – a teoria feminista mostrou
que as RIs tradicionais são, na verdade, cegas em relação a gênero. A teoria feminista,
portanto, leva as mulheres e o gênero a sério – e ao fazê-lo, desafia os conceitos e
premissas fundamentais das RI.

Ao compreender as RI de uma forma que leva as mulheres e o gênero a sério, o


feminismo demonstrou a construção de identidades de gênero que perpetuam as ideias
normativas sobre o que homens e mulheres devem fazer. A este respeito, é importante
compreender a distinção entre 'sexo' como biológico e 'gênero' como construído
socialmente.

Nem todas as considerações de gênero se apoiam na análise das mulheres: se


relaciona a expectativas e identidades ligadas tanto a homens quanto mulheres. Gênero
pode ser entendido como o conjunto de suposições construídas socialmente que são
atribuídas a corpos masculinos ou femininos - isto é, comportamento que é considerado

131
apropriado como comportamento "masculino" ou "feminino". A masculinidade é
frequentemente associada à racionalidade, poder, independência e esfera pública. A
feminilidade é frequentemente associada à irracionalidade, à necessidade de proteção,
à domesticidade e à esfera privada. Essas identidades de gênero social e politicamente
produzidas moldariam e influenciariam as interações globais, e as RIs como teoria – e
a política global como prática – também produzem essas identidades de gênero ao
perpetuar suposições sobre quem deve fazer o quê e por quê.

Essas identidades de gênero também estão imbuídas de poder, em particular


o poder patriarcal, que subordina as mulheres e as identidades de gênero femininas
aos homens e às identidades de gênero masculinas. O que isso significa é que as
identidades de gênero socialmente construídas também determinam as distribuições
de poder, que impactam onde as mulheres estão na política global. Considerando que
os homens podem ser femininos e as mulheres masculinas, a masculinidade é esperada
para os homens e a feminilidade das mulheres.

Cynthia Enloe fez o questionamento: ‘onde estão as mulheres?’ em 1989,


encorajando acadêmicos de RI a ver os espaços que as mulheres habitam na política
global e demonstrando que as mulheres são atores essenciais no sistema internacional.
Ela se concentrou em desconstruir as distinções entre o que é considerado internacional
e o que é considerado pessoal, mostrando como a política global impacta e é moldada
pelas atividades diárias de homens e mulheres – e, por sua vez, como essas atividades
se baseiam em identidades de gênero.

Tradicionalmente, o militarismo e a guerra têm sido vistos como empreendimentos


masculinos, vinculados à ideia de que os homens são guerreiros e protetores, que são
atores armados legítimos que lutam para proteger aqueles que precisam de proteção –
mulheres, crianças e homens que não lutam.

Na prática, isso significa que as muitas maneiras pelas quais as mulheres


contribuem para o conflito e o vivenciam foram consideradas periféricas, fora do âmbito
das considerações de RI. Por exemplo, a questão da violência sexual e de gênero em
conflitos só recentemente entrou na agenda internacional. Comparativamente, o estupro
em massa de mulheres durante e após a Segunda Guerra Mundial não foi discutido ou
problematizado, pois a sua ocorrência foi considerada um infeliz subproduto da guerra
ou simplesmente ignorada. Isso mudou desde então, com o Estatuto de Roma de 2002
reconhecendo o estupro como um crime de guerra. No entanto, esse reconhecimento
não levou à redução da violência sexual relacionada ao conflito e essa forma de violência
permanece endêmica em muitos conflitos ao redor do mundo, assim como a impunidade
por sua ocorrência.

132
GIO
O ESTATUTO DE ROMA DE 2002

O Estatuto de Roma foi aprovado em 1998, instituído formalmente


em 2002 pelo Tribunal Penal Internacional e estabelece como crimes
internacionais genocídios, crimes contra a humanidade, crimes de
guerra e crime de agressão. Enquadrados nessas categorias, passíveis
de julgamento e punição legais, estão crimes como assassinato, tortura,
prostituição forçada, violência sexual, estupro e desaparecimento
forçado.

Ao tornar as mulheres visíveis, o feminismo também destacou a ausência das


mulheres na tomada de decisões e nas estruturas institucionais. Por exemplo, em 2015, o
Banco Mundial estimou que, globalmente, as mulheres representavam apenas 22,9% dos
parlamentos nacionais. Um dos principais pressupostos das perspectivas tradicionais
que o feminismo desafiou é o foco excludente em áreas que são consideradas centrais
para o campo – por exemplo, soberania, Estado e segurança militar.

O foco tradicional nos Estados e nas relações entre eles ignora o fato de que os
homens são predominantemente responsáveis pelas instituições do Estado, dominando
o poder e as estruturas de tomada de decisão. Ele também ignora outras áreas que tanto
impactam a política global quanto são impactadas por ela.

FIGURA – 10 REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL, POR GÊNERO, EM COMPARAÇÃO COM A MÉDIA


MUNDIAL

FONTE: IBGE (2018)

133
Essa é uma exclusão de gênero, já que as mulheres contribuem de maneiras
essenciais para a política global, embora sejam mais propensas a ocupar áreas não
consideradas políticas importantes e seu dia-a-dia possa ser considerado periférico.
As perspectivas tradicionais que ignoram o gênero não apenas negligenciam as
contribuições das mulheres e o impacto que a política global tem sobre elas, mas
também justificam perpetuamente essa exclusão. Se as mulheres estão fora desses
domínios de poder, suas experiências e contribuições não são relevantes. As teóricas
feministas, como Ann Tickner, Cynthia Enloe e Christine Sylvester trabalharam para
demonstrar que essa distinção entre privado e público é falsa. Ao fazer isso, eles
mostram que áreas anteriormente excluídas são centrais para o funcionamento de RI,
mesmo que não sejam reconhecidas, e que a exclusão e inclusão de certas áreas no
pensamento tradicional de RI é baseada em ideias de gênero sobre o que importa e o
que não importa na política internacional.

FIGURA 11 – J. ANN TICKNER

FONTE: <https://centreforfeministforeignpolicy.org/selectedinterviews/2018/4/19/j-ann-tickner>. Acesso


em: 22 set. 2021.

Conforme discutido anteriormente, o pensamento feminista não é homogêneo e


suas contribuições não partem necessariamente das mesmas bases ontológicas. Ainda
que haja um conjunto de abordagens distintas (ex.: feminismo marxista, feminismo
pós-moderno, feminismo liberal, feminismo decolonial etc.), aqui serão discutidas duas
das mais influentes no campo: o feminismo liberal e o feminismo decolonial.

O feminismo liberal

O que se denomina feminismo liberal foca na análise e na obtenção da


igualdade de direitos para homens e mulheres, para os quais as mulheres precisam
ser empoderadas e devem ter um papel igual na sociedade e ter um papel igual na

134
política e no trabalho. Eles defendem a visão de que os seres humanos são racionais e
devem usar sua racionalidade para raciocinar que os seres humanos têm direitos inatos
de buscar a realização na busca de seus interesses, desde que também respeitem os
direitos dos outros tanto quanto façam valer seus próprios direitos, o que é consonante
com o pensamento liberal clássico discutido em Teoria das Relações Internacionais I.

O pensamento feminista liberal foi expresso pela primeira vez na Europa do


século XVIII pela pensadora feminista Olympe de Gourges e por Mary Wollstonecraft,
da Grã-Bretanha. A filósofa francesa Simone de Beauvoir também é considerada
como pertencente à escola de pensamento feminista liberal. Nos séculos XVIII e XIX,
as feministas liberais argumentaram que, como resultado de diferentes processos de
socialização e práticas sociais e culturais discriminatórias, as mulheres tiveram menos
oportunidades do que os homens para realizar seu pleno potencial como seres humanos.

FIGURA 12 – SIMONE DE BEAUVOIR (1908-1986)

FONTE: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/04/14/simone-de-beauvoir-e-a-teoria-politica/>. Acesso


em: 22 set. 2021.

Como resultado disso, as mulheres foram confinadas a casa para buscar


os serviços domésticos de seus maridos e filhos e tiveram poucas oportunidades de
exercer suas faculdades intelectuais ou desenvolver habilidades diferentes daquelas
consideradas necessárias para o desempenho das tarefas domésticas. O objetivo do
feminismo liberal é garantir a igualdade de gênero completa entre homens e mulheres,
sem alterar a socialização de meninos e meninas nas diferentes sociedades.

A proposta é similar a visão dos liberais clássicos, que acreditam que homens e
mulheres são iguais e se concentram na igualdade de gênero no trabalho e na política,
promovendo políticas para garantir a paridade nos parlamentos e estruturas legislativas.

135
O liberalismo defende a inclusão de mulheres como objetos de estudo: tanto as mulheres
em lideranças políticas, mulheres soldadas ou outras mulheres atuando fora dos papéis
tradicionais.

O liberalismo clássico afirma que mulheres e homens são donos de si mesmos,


capazes de adquirir direitos de propriedade sobre as coisas. Desse modo, mulheres
e homens, igualmente, teriam o direito à liberdade de interferência coercitiva em sua
pessoa e propriedade. Este direito à liberdade de interferência coercitiva consiste em,
pelo menos, direitos à liberdade de consciência e expressão, liberdade de controlar o
que acontece com o corpo, liberdade de associação, liberdade de adquirir, controlar
e transferir propriedade, liberdade de contrato, bem como o direito a compensação
quando direitos são violados. O papel do Estado seria, exclusivamente, proteger os
cidadãos de interferências coercitivas, protegendo seus direitos.

Feministas liberais clássicas sustentam que o direito à liberdade de interferência


coercitiva tem implicações poderosas para a vida das mulheres. Isso implica que as
mulheres têm direito à liberdade em questões íntimas, sexuais e reprodutivas.

A liberdade de interferência na pessoa e na propriedade também significa


que as mulheres têm o direito de se envolver em atividades econômicas, celebrando
contratos e adquirindo, controlando e transferindo propriedade livre de limites estatais
sexistas. As feministas liberais clássicas sustentam que a lei não deve tratar mulheres
e homens de maneira diferente. A justificativa é baseada na crença de que todos têm
os mesmos direitos, não na crença de que as mulheres têm o direito de ser tratadas da
mesma forma que os homens.

Isso fica claro quando notamos que, para o feminismo liberal clássico, o
tratamento igual perante a lei injusta não é justiça. O mesmo tratamento sob a lei não
garante os mesmos resultados. Feministas liberais clássicas sustentam que os direitos
das mulheres não são violados quando os cidadãos exercem seus direitos de maneiras
que criam resultados desiguais (EPSTEIN, 2002, p. 30). Os direitos de uma mulher são
violados apenas quando ela sofre interferência coercitiva, ou seja, quando há, ou há
uma ameaça de perda forçada de liberdade, propriedade ou vida.

O feminismo liberal também faz suposições aparentemente contraditórias,


segundo Donovan (2012): de que as mulheres não deveriam ser excluídas de cargos de
poder, mas não deveriam ser incluídas à força, pois isso não levaria a qualquer mudança
na natureza do sistema internacional. Eles se contentam em defender medidas
reformistas para lidar com a discriminação contra as mulheres – segundo o feminismo
liberal as mudanças sociais e políticas deveriam ocorrer via reforma, não revolução.

Essa abordagem celebra, por exemplo, o aumento gradual da participação


feminina na política nos últimos anos, sem questionar em profundidade quais pautas
são defendidas por essas mulheres e se há de fato uma representação em termos de

136
gênero, classe social e nacionalidade. Esses questionamentos estão presentes em
outras abordagens feministas no campo, como o feminismo decolonial, discutido a
seguir.

O feminismo decolonial

A abordagem feminista decolonial parte da mesma base da teoria decolonial


anteriormente discutida. Autoras como María Lugones, Ochy Curiel e Breny Mendoza
questionam radicalmente o entendimento de que o 'progresso na conquista dos direitos
das mulheres', que se pensa ter sido alcançado na Europa, nos Estados Unidos e em
alguns países 'avançados' do chamado 'terceiro mundo', deve ser a linha de chegada a ser
alcançada pelo feminismo, o marxismo e outros movimentos sociais. Tal compreensão,
argumenta o feminismo decolonial, reproduz a ideia da Europa como início e fim da
história, e da modernidade como o grande projeto de superação que todo grupo humano
deve realizar; esse projeto seria em si uma falácia.

À medida que algumas feministas – especialmente as de ascendência africana


e indígena – aprofundam a análise das condições históricas que deram origem a uma
organização social que sustenta estruturas hierárquicas de opressão e dominação que
não são explicadas apenas pelo gênero, se “esbarra” nas grossas paredes de contenção
construídas por aqueles que efetivamente desfrutam das prerrogativas de privilégio
dentro da ficção de universalidade inclusiva do movimento feminista. O ideal de "unidade
na opressão", sustentado pela academia e amplos setores do movimento feminista e de
mulheres, continuaria a operar como uma ferramenta que legitima todos os tipos de
movimentos e objetivos sob a ilusão de que servem ao interesse comum.

O feminismo decolonial é um movimento em crescimento que se proclama


revisionista da teoria ocidental, branca e burguesa e da proposta política do feminismo
dominante. O nome foi proposto pela primeira vez por María Lugones, feminista de
origem argentina radicada nos Estados Unidos que, após participar por alguns anos do
movimento feminista de cor naquele país, voltou à América Latina atraída pelas políticas
comunais surgidas com o zapatismo e os múltiplos levantes indígenas que ocorreram
na região a partir da década de 1990, e interessada ​​no renascimento do pensamento
latino-americano que veio com a virada decolonial.

Como ela aponta, a proposta de um feminismo decolonial foi viabilizada pelo


encontro entre a perspectiva da interseccionalidade, que vinha se desenvolvendo há
décadas, e o projeto de pesquisa sobre modernidade/ colonialidade:

137
Por um lado, há o importante trabalho sobre gênero, raça e
colonização que constitui os feminismos das mulheres negras nos
Estados Unidos, os feminismos das mulheres do Terceiro Mundo e as
versões feministas das escolas de jurisprudência, Lat Crit e a Teoria
Crítica da Raça ... A outra estrutura é aquela introduzida por Aníbal
Quijano e que é central para sua análise do padrão de poder global
capitalista. Refiro-me ao conceito de colonialidade do poder, que é
central para o trabalho sobre a colonialidade do conhecimento, do
ser e da decolonialidade. O entrelaçamento de ambas as vertentes de
análise me permite alcançar o que estou chamando, provisoriamente,
de "sistema de gênero moderno/colonial" (LUGONES, 2008, p. 73).

FIGURA 13 – MARIA LUGONES (1944-2020)

FONTE: <https://www.washingtonpost.com/local/obituaries/maria-lugones-feminist-philosopher-who-s-
tudied-colonialisms-legacy-dies-at-76/2020/07/21/dbea9250-cb58-11ea-91f1-28aca4d833a0_story.
html>. Acesso em: 22 set. 2021.

O feminismo decolonial coleta, revê e dialoga com a produção de conhecimento


que têm contado com pensadoras, intelectuais, ativistas e lutadoras, feministas ou não,
de ascendência africana ou indígena, mestiças, camponesas, migrantes racializadas e,
também, acadêmicas brancas comprometidas com a subalternidade na América Latina
e em todo o mundo.

138
DICAS
ENTREVISTA COM OCHY CURIEL

A autora feminista decolonial Ochy Curiel concedeu uma entrevista


em 2020 à revista “Em Pauta”. Questões como a importância das
lutas feministas na América Latina e a influência da sociedade civil
na produção do conhecimento no campo das Ciências Sociais são
discutidas em profundidade. Vale a leitura!

Entrevista disponível na íntegra pelo link:


https://www.epublicacoes.uerj.br/ojs/index.php/revistaempauta/
article/view/52020/34475

FIGURA 14 – OCHY CURIEL

FONTE: <https://globalsocialtheory.org/thinkers/curiel-ochy/>. Acesso em: 22 set. 2021.

A contribuição da teoria feminista de RI para a disciplina como um todo é


importante e tem sido cada vez mais reconhecida. Enquanto o feminismo liberal
continua a contribuir para a prática da política internacional, afetando a mudança nas
políticas nacionais e internacionais, também é evidente que a análise feminista pode
transformar a maneira como os estudiosos de RI entendem conceitos centrais como
Estado, poder e segurança, aproximando a teoria da realidade ao redirecionar nosso
interesse em interdependência, direitos humanos individuais e direitos das mulheres.

No entanto, debates entre feministas liberais, feministas pós-positivistas e


feministas decoloniais sugerem que há uma tensão inerente entre seu desejo de situar
as vozes das mulheres no cenário internacional e seu objetivo de desconstruir o gênero
por completo (SYLVESTER, 1999, p. 268). Consequentemente, a abordagem feminista é

139
difusa e de difícil definição, pois não está claro a literatura feminista pretende reconstruir
completamente o núcleo das RI ou rejeitar a literatura dominante da disciplina e
continuar a criticar “pelas margens”.

Em linhas gerais, a literatura feminista oferece uma contribuição muito


substancial para as RI. A teoria feminista como um todo demonstra os preconceitos
normativos subjacentes embutidos nos próprios fundamentos da teoria de Relações
Internacionais convencional. Ela também torna evidentes as maneiras pelas quais as
teorias dominantes são incompletas: ser incapaz de contabilizar metade da população
do mundo (as mulheres) é, segundo Buskie (2013), um descuido quase inacreditável.
Nesse sentido, a teoria feminista fornece uma ferramenta analítica rica que continuará
a fazer contribuições perspicazes e transformadoras para a disciplina de RI.

140
LEITURA
COMPLEMENTAR
AMÉRICA LATINA E O GIRO DECOLONIAL

Luciana Ballestrin

O objetivo principal deste artigo é o de apresentar a constituição, a trajetória e o


pensamento do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), constituído no final dos anos
1990. Formado por intelectuais latino-americanos situados em diversas universidades
das Américas, o coletivo realizou um movimento epistemológico fundamental para
a renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XXI: a
radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de "giro
decolonial". Assumindo uma miríade ampla de influências teóricas, o M/C atualiza
a tradição crítica de pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e
problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a "opção decolonial"
- epistêmica, teórica e política - para compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva.

O trabalho está estruturado em duas partes. Em um primeiro momento é traçada


uma breve genealogia do pós-colonialismo, propondo pensá-lo de um modo mais
abrangente. O pós-colonialismo no contexto do argumento deste artigo aparece como
precursor para o desenvolvimento do argumento pós-colonial que é radicalizado pelo
M/C. Posteriormente, apresenta-se a constituição do grupo, a partir de seu rompimento
com os estudos subalternos latino-americanos, bem como alguns conceitos centrais
criados e compartilhados pelos seus principais expoentes. Ao introduzir essa discussão,
o artigo sugere que a identificação e a superação da colonialidade do poder, do saber
e do ser, apresenta-se como um problema desafiador a ser considerado pela ciência e
teoria política estudada no Brasil.

Uma Breve Genealogia do Pós-Colonialismo

Depreendem-se do termo "pós-colonialismo" basicamente dois entendimentos.


O primeiro diz respeito ao tempo histórico posterior aos processos de descolonização
do chamado "terceiro mundo", a partir da metade do século XX. Temporalmente, tal
ideia refere-se, portanto, à independência, libertação e emancipação das sociedades
exploradas pelo imperialismo e neocolonialismo - especialmente nos continentes
asiático e africano. A outra utilização do termo se refere a um conjunto de contribuições
teóricas oriundas principalmente dos estudos literários e culturais, que a partir dos
anos 1980 ganharam evidência em algumas universidades dos Estados Unidos e da
Inglaterra. Como tantas escolas orientadas pelo "pós", o pós-colonialismo se tornou

141
uma espécie de "moda" acadêmica, tendo penetrado tardiamente nas ciências sociais
brasileiras. Costa afirmou que o pós-colonialismo compartilha, em meio suas diferentes
perspectivas, do "caráter discursivo do social", do "descentramento das narrativas e
dos sujeitos contemporâneos", do "método da desconstrução dos essencialismos" e da
"proposta de uma epistemologia crítica às concepções dominantes de modernidade"
(Costa, 2006, p. 83-84).

Na continuidade do argumento, sugere ainda que o "colonial" do termo "alude


a situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas
ou raciais". Sobre esse ponto, nota-se que nem todas as situações de opressão são
consequências do colonialismo - veja-se a história do patriarcado e da escravidão - ,
ainda que possam ser reforçadas ou ser indiretamente reproduzidas por ele. Em suma,
ainda que não haja colonialismo sem exploração ou opressão, o inverso nem sempre
é verdadeiro. Na primeira chave de interpretação, o autor perceptivelmente associa
o pós-colonialismo com as condições de emergência oferecidas pelos estudos pós-
estruturais, desconstrutivistas e pós-modernos. De fato, ela se aplica a vários autores
diaspóricos citados no livro Dois Atlânticos, mas apaga duas noções importantes.

A primeira é o fato de pensadores pós-coloniais poderem ser encontrados


antes mesmo da institucionalização do pós-colonialismo como corrente ou escola de
pensamento. A segunda é o fato de que o pós-colonialismo surgiu a partir da identificação
de uma relação antagônica por excelência, ou seja, a do colonizado e a do colonizador. Se
por um lado essa fixação binária de identidades essencializadas foi rompida nos escritos
de Memmi, Said, Spivak e Bhabha, por outro, ela foi permitida pela identificação daquilo
que Mignolo (2003) chamou de "diferença colonial". Nesse sentido, a relação colonial é
uma relação antagônica: "[A] presença do outro me impede de ser totalmente eu mesmo.
A relação não surge de identidades plenas, mas da impossibilidade da constituição
das mesmas" (Laclau e Mouffe, 1985, p. 125). Foi Fanon (2010) quem pela primeira
vez expressou esse impedimento, em 1961. Franz Fanon soma-se a um conjunto de
autores precursores do argumento pós-colonial, cujas primeiras elaborações podem ser
observadas pelo menos desde o século XIX na América Latina. Nesse período, a América
Latina atravessou "o seu" período pós-colonial, com reprodução daquilo que Casanova
(2002) chamou de "colonialismo interno". Por sua vez, expressões anticoloniais puderam
também ser encontradas em pensadores europeus, europeístas e eurocêntricos (Merle e
Mesa, 1972). Mesmo que não linear, disciplinado e articulado, o argumento pós-colonial
em toda sua amplitude histórica, temporal, geográfica e disciplinar percebeu a diferença
colonial e intercedeu pelo colonizado. Em essência, foi e é um argumento comprometido
com a superação das relações de colonização, colonialismo e colonialidade. Dessa
forma, ele não é prerrogativa de autores diaspóricos ou colonizados das universidades
periféricas.

Essa ponderação se faz importante, visto que, para certa crítica ao pós-
colonialismo (Feres Jr. e Pogrebinschi, 2010), isso determinaria a legitimidade de quem
com ele trabalha. Aquilo que é considerado clássico na literatura pós-colonial é passível

142
de questionamento, como a eleição dos próprios clássicos das ciências sociais (Connel,
2007). Porém, existe um entendimento compartilhado sobre a importância, atualidade
e precipitação da chamada "tríade francesa", Césaire, Memmi e Fanon, talvez pelo fato
de o argumento pós-colonial ter sido, pela primeira vez, desenvolvido de forma mais ou
menos simultânea.

Franz Fanon (1925-1961) - psicanalista, negro, nascido na Martinica e


revolucionário do processo de libertação nacional da Argélia - ,Aimé Césaire (1913-
2008) - poeta, negro, também nascido na Martinica - e Albert Memmi (1920-) -
escritor e professor, nascido na Tunísia, de origem judaica - foram os porta-vozes que
intercederam pelo colonizado quando este não tinha voz, para usar os termos de Spivak.
Os livros Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador (1947), de Albert
Memmi, Discurso sobre o colonialismo (1950), de Césaire, e Os condenados da terra
(1961), de Franz Fanon, foram escritos seminais. Os dois últimos foram agraciados com
prefácios de Jean-Paul Sartre, que em um "complexo de culpa" europeia, recomenda
suas leituras, elogia seus autores e, logo, intercede pelos colonizados.

A esses três clássicos soma-se a obra Orientalismo (1978), de Edward Said (1935-
2003), crítico literário de origem palestina, intelectual e militante da causa. O Oriente
como "invenção" do Ocidente denunciou a funcionalidade da produção do conhecimento
no exercício de dominação sobre o "outro". Estes quatro autores contribuíram para uma
transformação lenta e não intencionada na própria base epistemológica das ciências
sociais. De forma paralela, é indispensável apresentar outro movimento que acabou por
reforçar o pós-colonialismo como um movimento epistêmico, intelectual e político. Na
década de 1970, formava-se no sul asiático o Grupo de Estudos Subalternos - com a
liderança de Ranajit Guha, um dissidente do marxismo indiano - cujo principal projeto
era "analisar criticamente não só a historiografia colonial da Índia feita por ocidentais
europeus, mas também a historiografia eurocêntrica nacionalista indiana" (Grosfoguel,
2008, p.116), bem como a historiografia marxista ortodoxa (Castro-Gómez e Mendieta,
1998). Na década de 1980, os subaltern studies se tornaram conhecidos fora da Índia,
especialmente através dos autores Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri
Chakrabarty Spivak.

O termo "subalterno" fora tomado emprestado de Antonio Gramsci e entendido


como classe ou grupo desagregado e episódico que tem uma tendência histórica a
uma unificação sempre provisória pela obliteração das classes dominantes. Spivak
apresentou o trabalho do grupo ao público estadunidense, sendo ela uma das mais
importantes tradutoras de Jaques Derrida. De acordo com Subrahmanyam (2004), sob
sua influência os estudos subalternos foram sendo descaracterizados pela introdução
excessiva do desconstrutivismo de Deleuze e Derrida4. Em 1985, Spivak publicou um
artigo que, ao lado dos livros já citados, tornou-se outro cânone do pós-colonialismo:
"Pode o subalterno falar?". É importante reparar que, nesse artigo, a autora faz uma
profunda crítica aos intelectuais ocidentais Deleuze e Foucault - a despeito de sua
filiação pós-estruturalista e desconstrucionista - e uma autocrítica aos estudos

143
subalternos, através da reflexão sobre a prática discursiva do intelectual pós-colonial.
Para ela, o sujeito subalterno é aquele cuja voz não pode ser ouvida; sua crítica à
intelectualidade que pretende falar em seu nome é ao fato de que "nenhum ato de
resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato seja imbricado no
discurso hegemônico" (Almeida, 2010, p. 12).

Nesse caso, o subalterno permanece silenciado e aparece como constituição de


mais um "outro", uma classificação essencialista que acaba por não incorporar a noção
de différance ou hibridismo. Para a autora, não só o subalterno não pode falar como
também o intelectual pós-colonial não pode fazer isso por ele6. Mas como, hoje, poder-
se-ia desautorizar Césaire, Fanon, Memmi e Said? O intelectual não poderia também
ser um "subalterno"? Na década de 1980, o debate pós-colonial foi difundido no campo
da crítica literária e dos estudos culturais na Inglaterra e nos Estados Unidos, cujos
expoentes mais conhecidos no Brasil são Homi Bhabha (indiano), Stuart Hall (jamaicano)
e Paul Gilroy (inglês). O local da cultura, Da diáspora e Atlântico negro foram traduzidos
para o português e tiveram repercussão nas ciências sociais brasileiras.

Em um contexto de globalização, cultura, identidade (classe/etnia/gênero),


migração e diáspora apareceram como categorias fundamentais para observar as
lógicas coloniais modernas, sendo os estudos pós-coloniais convergentes com os
estudos culturais e multiculturais. Por sua vez, as origens do grupo M/C podem ser
remontadas à década de 1990, nos Estados Unidos. Em 1992 - ano de reimpressão do
texto hoje clássico de Aníbal Quijano "Colonialidad y modernidad-racionalidad" - um
grupo de intelectuais latino-americanos e americanistas que lá viviam fundou o Grupo
Latino-Americano dos Estudos Subalternos. Inspirado principalmente no Grupo Sul-
Asiático dos Estudos Subalternos, o founding statement do grupo foi originalmente
publicado em 1993 na revista Boundary 2, editada pela Duke University Press8. Em
1998, Santiago Castro-Gómez traduziu o documento para o espanhol como "Manifiesto
inaugural del Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos".

A América Latina foi assim inserida no debate pós-colonial: O trabalho do Grupo


de Estudos Subalternos, uma organização interdisciplinar de intelectuais sul-asiáticos
dirigida por Ranajit Guha, inspirou-nos a fundar um projeto semelhante dedicado
ao estudo do subalterno na América Latina. O atual desmantelamento dos regimes
autoritários na América Latina, o final do comunismo e o consequente deslocamento
dos projetos revolucionários, os processos de democratização, as novas dinâmicas
criadas pelo efeito dos meios de comunicação de massa e a nova ordem econômica
transnacional: todos esses são processos que convidam a buscar novas formas de
pensar e de atuar politicamente. Por sua vez, a mudança na redefinição das esferas
política e cultural na América Latina durante os anos recentes levou a vários intelectuais
da região a revisar epistemologias previamente estabelecidas nas ciências sociais e
humanidades. A tendência geral para uma democratização outorga prioridade a uma
reconceitualização do pluralismo e das condições de subalternidade no interior das
sociedades plurais (Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos, 1998, p. 70). Tal

144
incorporação do "Manifiesto" deu-se em uma coletânea de artigos lançada em 1998, sob
a coordenação de Eduardo Mendieta e Santiago Castro-Gómez, intitulada Teorias sin
disciplina: latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate. Na introdução
escrita pelos dois autores, eles explicam a inspiração do grupo:

O Manifesto Inaugural redigido pelo Grupo Latino-americano de Estudos


Subalternos incorpora vários dos temas abordados pelo historiador indiano Ranajit
Guha, a partir dos quais se pretende avançar para uma reconstrução da história latino-
americana das últimas duas décadas. Tal reconstrução ocorreria como uma alternativa
ao projeto teórico feito pelos Estudos Culturais desde os finais dos anos oitenta. Por esta
razão, o grupo põe muita ênfase em categorias de ordem política tais como "classe",
"nação" ou "gênero", que no projeto dos Estudos Culturais pareciam ser substituídas
por categorias meramente descritivas como a de "hibridismo", ou sepultadas sob uma
celebração apressada da incidência da mídia e das novas tecnologias no imaginário
coletivo (Castro-Gómez e Mendieta, 1998, p. 16) Já nessa coletânea, a voz mais crítica
e radical do grupo, Walter Mignolo, demonstra seu descontentamento também com os
estudos subalternos "originais".

Na leitura de seus coordenadores, Walter Mignolo aproveita também alguns


elementos das teorias pós-coloniais para realizar uma crítica dos legados coloniais na
América Latina. Mas, à diferença de Ileana Rodríguez e de outros membros do Grupo
de Estudos Subalternos, Mignolo pensa que as teses de Ranajit Guha, Gayatri Spivak,
Homi Bhabha e outros teóricos indianos não deveriam ser simplesmente assumidas
e traduzidas para uma análise do caso latino-americano. Ecoando críticas anteriores
de Vidal e Klor de Alva, Mignolo afirma que as teorias pós-coloniais têm seu lócus
de enunciação nas heranças coloniais do império britânico e que é preciso, por isso,
buscar uma categorização crítica do ocidentalismo que tenha seu lócus na América
Latina (Castro-Gómez e Mendieta, 1998, p. 17). Na ocasião Mignolo denuncia o
"imperialismo" dos estudos culturais, pós-coloniais e subalternos que não realizaram
uma ruptura adequada com autores eurocêntricos (Mignolo, 1998). Para ele, o grupo
dos latinos subalternos não deveria se espelhar na resposta indiana ao colonialismo, já
que a trajetória da América Latina de dominação e resistência estava ela própria oculta
no debate. A história do continente para o desenvolvimento do capitalismo mundial
fora diferenciada, sendo a primeira a sofrer a violência do esquema colonial/imperial
moderno. Além disso, os latino-americanos migrantes possuem outras relações de
colonialidade por parte do novo império estadunidense - ele mesmo tendo sido uma
colônia nas Américas.

Devido às divergências teóricas, o grupo latino foi desagregado em 1998, ano em


que ocorreram os primeiros encontros entre os membros que posteriormente formariam o
Grupo Modernidade/Colonialidade. Grosfoguel (2008), ao narrar seu descontentamento
com o projeto do grupo, atribuiu duas razões para sua dissolução. Ambas se referem
à incapacidade do grupo em romper com a episteme - ao seu ver, ainda centrada no
Norte - dos estudos regionais estadounidenses e dos estudos subalternos indianos.

145
Descrevendo-se como "um latino a viver nos Estados Unidos" (Grosfoguel, 2008, p. 115),
para ele [o]s latino-americanistas deram preferência epistemológica ao que chamaram
os "quatro cavaleiros do Apocalipse", ou seja, a Foucault, Derrida, Gramsci e Guha. Entre
estes quatro, contam-se três pensadores eurocêntricos, fazendo dois deles (Derrida
e Foucault) parte do cânone pós-estruturalista/pós-moderno ocidental. Apenas um,
Rinajit Guha, é um pensador que pensa a partir do Sul. Ao preferirem pensadores
ocidentais como principal instrumento teórico traíram o seu objetivo de produzir estudos
subalternos. (...).

Entre as muitas razões que conduziram à desagregação do Grupo Latino-


americano de Estudos Subalternos, uma delas foi a que veio opor os que consideravam
a subalternidade uma crítica pós-moderna (o que representa uma crítica eurocêntrica
ao eurocentrismo) àqueles que a viam como uma crítica descolonial (o que representa
uma crítica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados). Para
todos nós que tomamos o partido da crítica descolonial, o diálogo com o Grupo Latino-
americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender
epistemologicamente - ou seja, de descolonizar - a epistemologia e o cânone ocidentais
(Grosfoguel, 2008, p. 116). Para Grosfoguel, a permanência de Gramsci e Foucault
como referências da escola subalterna sul-asiática "acabou por espelhar o apoio dado
ao pós-modernismo pelo setor do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos"
(Grosfoguel, 2008, p 116). Em suma, nenhum dos dois grupos de estudos subalternos
teria conseguido aprofundar e radicalizar sua crítica ao eurocentrismo, um diagnóstico
convergente com o de Mignolo. De fato, a maioria dos componentes dos subalternos
latinos não migrou para o coletivo modernidade/colonialidade, que teve na figura de
Mignolo um de seus fundadores.

FONTE: BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít. Brasília, n. 11, p. 89-
117, ago., 2013.

Leia mais em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-


d=S0103-33522013000200004&lng=pt&tlng=pt

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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A abordagem feminista das RI não representa um único corpo teórico homogêneo,


mas um discurso distinto composto de muitas teorias concorrentes.

• A abordagem feminista decolonial parte da mesma base da teoria decolonial


anteriormente discutida e questiona pressupostos centrais do campo, tidos como
universais.

• O feminismo liberal foca na análise e na obtenção da igualdade de direitos para


homens e mulheres, para os quais as mulheres precisam ser empoderadas e devem
ter um papel igual na sociedade e ter um papel igual na política e no trabalho.

147
AUTOATIVIDADE
1 Quais as diferenças entre as abordagens feministas liberais e decoloniais?

2 Por que a dimensão de gênero importa na análise da política internacional?

3 Pesquise e aponte exemplos de sub-representação de gênero na política internacional


contemporânea e os analise a partir da teoria feminista das Relações Internacionais.

148
REFERÊNCIAS
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BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít.
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