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Relações
Internacionais II
Indaial – 2021
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Mariana Balau Silveira
S587t
Silveira, Mariana Balau
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
A historiografia do campo das Relações Internacionais, amplamente
discutida em Teoria das Relações Internacionais I, é marcada pela narrativa de que
o entendimento de fenômenos internacionais evoluiu de maneira linear e focada na
produção do conhecimento majoritariamente vindo do norte global. Do primeiro debate
entre idealistas e realistas, passando pela discussão (e contraposição) entre ideias e
conceitos neorrealistas e neoliberais, essa compreensão das RIs baseada em visões
dicotômicas cumpre uma função pedagógica e de apresentação lógica das ideias.
Dessa narrativa derivam as noções de que é possível explicar fenômenos internacionais
a partir da primazia da guerra ou da possibilidade de cooperação entre Estados, e de que
a realidade social existe materialmente, pode ser observada e de que hipóteses sobre
os fenômenos internacionais podem ser criadas, testadas, confirmadas ou refutadas.
Estes últimos serão foco da Unidade 3, que tem como objetivo ampliar as
discussões teóricas propostas nos dois livros de Teoria das Relações Internacionais. A
ideia é revisitar a narrativa canônica e a própria fundação do campo, desconstruindo os
debates e identificando as relações de poder envolvidas na produção do conhecimento
e suas consequências. Nessa unidade abordaremos as teorias decoloniais e pós-
coloniais, além de analisar as RIs a partir de recortes de raça e gênero.
Boa leitura!
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ENADE
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dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
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do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
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para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
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LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.
A ESCOLA INGLESA
NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoati-
vidades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
1
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
Acesse o
QR Code abaixo:
2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
A ESCOLA INGLESA EM LINHAS GERAIS
1 INTRODUÇÃO
ATENÇÃO
O COMITÊ BRITÂNICO DE TEORIA DA POLÍTICA INTERNACIONAL
3
Com o objetivo de oferecer um entendimento mais amplo e completo das
relações internacionais, a Escola Inglesa destinou-se inicialmente à busca por respostas
à seguinte pergunta: “como incorporar o aspecto cooperativo das relações internacionais
à concepção realista acerca da natureza conflituosa do sistema internacional?”
(ROBERSON, 2002, p. 13).
ATENÇÃO
O SEGUNDO DEBATE TEÓRICO E A IMPORTÂNCIA DO MÉTODO
Conforme discutido em “Teoria das Relações Internacionais I”, ainda que a maioria dos debates
não tenha ocorrido diretamente – em termos de confrontações diretas e direcionadas – o
que estava em jogo era a contraposição de ideias e interpretações distintas sobre a política
internacional, o que os caracteriza amplamente como “debates”. Particularmente no
segundo, a discussão foi majoritariamente metodológica. Quase
seis décadas após a criação formal do campo a preocupação deixa
de ser unicamente “o que estudar em RI?” e passa a incorporar
a discussão sobre “como estudar RI”? O contexto das ciências
sociais era marcado, nos anos 1960, pela valorização de métodos
científicos quantitativos e do behaviorismo como abordagem
válida na análise das sociedades. Nessa conjuntura, Hedley Bull
publica um artigo intitulado “International Theory: the case for a
Classical Approach”, em 1966, defendendo uma análise filosófica,
tradicional e clássica da política internacional. Em contraposição
à Bull, Morton Kaplan publica no mesmo ano o artigo “The New
Great Debate: traditionalism vs. Science in International Relations”,
rearfirmando a relevância do behaviorismo e do critério científico
na produção do conhecimento no campo.
4
Nesse tópico serão apresentados os conceitos de comunidade e sociedade na
perspectiva de Ferdinand Tönnies, visando ao seu entendimento e o estabelecimento
das bases do pensamento da Escola Inglesa. Em seguida serão exploradas as obras
seminais de Hedley Bull, Martin Wight e Adam Watson, com o objetivo de compreender a
relação entre ordem e justiça e a diferença entre três dimensões centrais no pensamento
inglês: sistema internacional, sociedade internacional e sociedade mundial.
2 COMUNIDADE E SOCIEDADE
O conceito de sociedade e suas implicações é central no desenvolvimento
teórico da Escola Inglesa. Em contraposição à abordagem realista, que nos anos 1940
e 1950 defendia que a interação entre os Estados ocorria em um sistema internacional
sem autoridade superior – e, portanto, anárquico – a Escola Inglesa aponta a existência
de instituições, derivadas principalmente do compartilhamento de valores e interesses
comuns (BULL, 1977).
Uma das obras mais relevantes sobre o tema é o livro “Comunidade e Sociedade”,
publicado por Tönnies em 1887. Em linhas gerais, o autor dedicou-se ao entendimento
das interações sociais e da sociedade de modo geral, particularmente a partir da noção
de mudança social e das tradições e crenças que guiam os indivíduos. O livro é até
hoje um dos principais guias acadêmicos para o entendimento das categorias sociais
e para a análise das diferentes sociedades – aqui reside sua principal relevância para a
abordagem societária das RIs, ou Escola Inglesa.
5
a igreja regularmente formam relacionamentos com outros fiéis de modo a criar laços,
compartilhar crenças, valores e tradições. Em uma comunidade a tendência é haver
um certo “senso de suporte” e coletividade, o que sustentaria um sentimento de
pertencimento entre os membros (TÖNNIES, 1988).
6
QUADRO 1 – OS CONCEITOS DE COMUNIDADE E SOCIEDADE
EM FERDINAND TÖNNIES
COMUNIDADE SOCIEDADE
MODO DE UNIÃO Afetivo Objetivo-Contratual
TIPO DE OCUPAÇÃO
E TENDÊNCIA Economia doméstica, Comércio (contrato); indústria
DOMINANTE DE agricultura, artes, religião. (planejamento); ciência
ORIENTAÇÃO (imprensa, opinião pública).
ESPIRITUAL
FONTE: A autora (2021)
Essas definições do autor, ainda que discutidas aqui de modo breve e amplo,
são úteis para o entendimento das bases do pensamento de acadêmicos como Bull,
Wight e Watson, discutidos a seguir.
7
conjunto amplo de dados passaram a ser o “modus operandi” teórico mais aceito e
publicado na academia, influenciando o modo como a política internacional era
analisada, explicada e compreendida.
IMPORTANTE
O behaviorismo foi criado a partir de um movimento nos campos
da Psicologia e Filosofia no início do século XX, em defesa da
análise de aspectos comportamentais e da observação empírica
(real, objetiva) dos objetos de estudo. Metodologicamente, o
behaviorismo influenciou pesquisas nos campos da Sociologia,
Ciência Política e Relações Internacionais, em direção a um
predomínio de aspectos objetivos, observáveis, “palpáveis” –
sentimentos, pensamentos (elementos subjetivos) não seriam
considerados “científicos” ou passíveis de análise científica
propriamente dita.
8
FIGURA 2 – MARTIN WIGHT (1913-1972)
Wight (1987) afirma que a importância de entender o que havia sido produzido
até aquele momento no campo era compreender e comparar as principais “respostas
dadas pelos teóricos acerca da natureza da sociedade internacional” (WIGHT, 1987, p.
222). O objetivo era identificar os objetivos e valores compartilhados pelos Estados
na manutenção da ordem internacional – aqui é importante ressaltar que o foco
foi na compreensão da Europa ocidental e do sistema de Estados europeus, não
necessariamente dos agrupamentos humanos na África, América Latina ou Ásia (a
última seção da unidade problematiza e aponta as consequências dessa ênfase na
experiência europeia).
9
Wight (1987) afirma que o realismo seria muito mais influenciado pelo pensamento
de Nicolau Maquiavel do que pelas contribuições de Thomas Hobbes. Nessa tradição,
conforme visto anteriormente, prevaleceria o pessimismo em relação à existência de
uma sociedade internacional – no sentido da identificação mútua de valores e interesses
comuns entre os Estrados. O que o autor denomina “revolucionismo” seria próximo da
visão de pensadores como Woodrow Wilson, Norman Angell e, especialmente, Immanuel
Kant sobre a política internacional. Essa visão seria mais otimista em relação à existência
de uma sociedade internacional, na medida em que veria além da realidade conflituosa e
acreditaria na possibilidade de formação de uma “comunidade da humanidade” (WIGHT,
1991, p. 41).
10
Dois dos principais temas desenvolvidos por Bull foram o conceito de sociedade
internacional e a manutenção da ordem internacional. Em relação ao primeiro, uma
sociedade internacional seria assim definida quando “um grupo de Estados, conscientes
de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade no sentido de se
considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto de regras e participam
de instituições comuns” (BULL, 1977, p. 13).
Como o título de sua principal obra enfatiza, Bull defende a existência dessa
sociedade internacional, ainda que reconheça a ausência de autoridade acima dos
Estados (anarquia). O autor defende que a despeito da falta de governo central, os atores
seriam capazes de manter a ordem a partir de regras, normas e instituições comuns.
11
FIGURA 2 – HEDLEY BULL (1932-1985)
FONTE: London School of Economics and Political Science. Disponível em: <https://www.lse.ac.uk/interna-
tional-relations/centres-and-units/cis/The-Hedley-Bull-Lectures>. Acesso em: 21 set. 2021.
DICA
The Hedley Bull Lectures
12
A METÁFORA DA ESTANTE DE LIVROS EM BULL:
O CONCEITO DE ORDEM NA VIDA SOCIAL
“Uma fileira de livros em uma estante exibe ordem, o que não acontece com um
monte de livros amontoados no chão. Mas quando falamos de ordem na vida social,
por oposição à desordem, não temos em mente qualquer padrão ou arranjo metódico
dos fenômenos sociais, mas sim uma estrutura de tipo especial” (BULL, 1977, p. 7).
“A ordem que se procura na vida social não é qualquer ordem ou regularidade nas
relações entre indivíduos ou grupos, mas uma estrutura de conduta que leve a um
resultado particular, ou arranjo na vida social que promove determinadas metas ou
valores. Nesse sentido, que implica um propósito, alguns livros exibem ordem quando
não se encontram simplesmente dispostos em fila, mas estão organizados de acordo
com o autor ou o assunto, servindo assim a um objetivo” (BULL, 1977, p. 8).
“Era essa concepção finalística que Santo Agostinho tinha em mente quando a definiu
assim: ‘uma boa disposição de elementos discrepantes, cada um deles ocupando o
lugar mais apropriado’” (BULL, 1977, p. 9).
13
A manutenção da ordem em sociedade seria, portanto, o padrão de atividade
que sustenta os objetivos elementares – busca pela vida, verdade e propriedade – na
vida social. Seria a obediência a todas as regras, normas, leis (formais ou informais)
estabelecidas com o objetivo de garantir que esses objetivos sejam alcançados. Ordem
internacional, por consequência, seria então o “padrão de atividade que sustenta os
objetivos elementares da sociedade dos Estados, ou sociedade internacional” (BULL,
1977, p. 13). Ordem seria, então, uma condição efetiva ou possível, uma “situação
concreta da política mundial” (BULL, 1977, p. 91).
ATENÇÃO
AS NOÇÕES DE DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO
14
Ao longo da história, e com a secularização das sociedades, a ordem passa a
ser mantida a partir de instituições e regras identificáveis na prática dos Estados. Duas
instituições, principalmente, seriam centrais na preservação da ordem internacional:
a balança de poder e o direito internacional. Em relação à primeira, ela teria três
funções na sociedade internacional: evitar que o sistema de Estados se transforme em
um império; proteger a independência dos Estados e prover as condições para que as
outras instituições operem.
E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons
vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais,
e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força
armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo
internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos.
15
RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES
OBJETIVOS
A Assembleia Geral,
16
Consciente da necessidade de criar condições de estabilidade e bem-estar e relações
pacíficas e amistosas baseadas no respeito aos princípios de igualdade de direitos
e à livre determinação dos povos, e de assegurar o respeito universal dos direitos
humanos e as liberdades fundamentais para todos sem fazer distinção por motivo de
raça, sexo, idioma ou religião, e a efetividade de tais direitos e liberdades,
Consciente dos crescentes conflitos que surgem do ato de negar a liberdade a esses
povos e de impedi-la, o qual constitui uma grave ameaça à paz mundial,
Afirmando que os povos podem, para seus próprios fins dispor de suas riquezas e
recursos naturais sem prejuízo das obrigações resultantes da cooperação econômica
internacional, baseada no princípio do proveito mútuo e do direito internacional,
Celebrando que nos últimos anos muitos territórios dependentes tenham alcançado a
liberdade e a independência e reconhecendo as tendências cada vez mais poderosas
em direção á liberdade que se manifestam nos territórios que não tenham obtido
ainda sua independência,
17
Declara que:
1. A sujeição dos povos a uma subjugação, dominação e exploração constitui uma
negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas
e compromete a causa da paz e da cooperação mundial;
2. Todos os povos têm o direito de livre determinação; em virtude desse direito,
determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu
desenvolvimento econômico, social e cultural.
3. A falta de reparação na ordem política, econômica e social ou educativa não deverá
nunca ser o pretexto para o atraso da independência.
4. A fim de que os povos dependentes possam exercer de forma pacífica e livremente
o seu direito à independência completa, deverá cessar toda ação armada ou toda e
qualquer medida repressiva de qualquer índole dirigida contra eles, e deverá respeitar-
se a integridade de seu território nacional.
5. Nos territórios, sem condições ou reservas, conforme sua vontade e seus desejos
livremente expressados, sem distinção de raça, crença ou cor, para lhes permitir
usufruir de liberdade e independência absolutas.
6. Toda tentativa encaminhada a quebrar total ou parcialmente a unidade nacional e
a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da
Carta das Nações Unidas.
7. Todos os estados devem observar fiel e estreitamente as disposições da Carta
das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos e da presente
declaração sobre a base da igualdade, da não intervenção nos assuntos internos
dos demais Estados e do respeito aos direitos soberanos de todos os povos e de sua
integridade territorial.
Qual seria, então, a relação entre os princípios de ordem e justiça? Bull afirma
que, ao contrário de ordem, justiça seria um termo que só poderia ser definido de modo
pessoal ou subjetivo. Internacionalmente, seriam “as regras morais que atribuem direitos
e deveres aos Estados e nações” (BULL, 1977, p. 202). Segundo o autor, não haveria
incompatibilidade entre ordem e justiça, mas a política internacional seria permeada
pela tensão entre Estados preocupados com a preservação da ordem e as aspirações
por justiça.
18
Desse modo, ao mesmo tempo em que há regras e instituições – como guerra,
balança de poder e até o direito internacional – que sustentam a ordem na sociedade
de Estados (ao longo da história mantidas majoritariamente pelas grandes potências
e países ocidentais), há um conjunto de exigências por justiça e reparação (realizadas
principalmente pelas antigas colônias e/ou países insatisfeitos com as disposições da
ordem vigente) na política internacional.
19
DICA DE FILME
A trilogia “Senhor dos Aneis”, conhecida do grande público e baseada
nas obras de J.R.R. Tolkien, pode ajudar a elucidar alguns dos conceitos
estudados pela Escola Inglesa. Um exercício interessante é assistir os
filmes e questionar-se: quais as visões de cada uma das sociedades
ilustradas (condado, Valfenda, Mordor) acerca da relação entre
ordem e justiça? Complemente os estudos com a leitura do livro “The
International Relations of Middle-Earth: learning from the Lord of the
Rings”, de Abigail Ruane e Patrick James.
20
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• Um dos resultados mais conhecidos desse esforço foi a narrativa das “Três Tradições”,
defendida por Martin Wight, que apresenta o realismo, revolucionismo e racionalismo
como três vertentes do pensamento teórico em Relações Internacionais.
21
AUTOATIVIDADE
1 Em contraposição à incorporação da visão hobbesiana do estado de natureza
pela literatura norte-americana, autores da Escola Inglesa, como Manning e Bull,
desenvolvem uma discussão em torno do conceito de sociedade internacional,
cunhado por Hugo Grotius no século XVII. Tal conceito permite a compreensão
da formação de normas internacionais tácitas ou explícitas, ou seja, instituições
internacionais, e traz para o campo das relações internacionais o debate sociológico
a respeito da origem das normas sociais. Assim, alguns autores enfatizam a formação
de uma cultura internacional, ao passo que outros buscam detectar a existência de
interesses comuns das partes atomizadas.
HERZ, M. Teoria das Relações Internacionais no Pós Guerra Fria. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n.2, 1997
(adaptado).
Em face desse assunto, avalie as afirmações a seguir a respeito dos conceitos da Escola
Inglesa.
22
3 Segundo Bull (1977), qual a relação entre a manutenção da ordem na sociedade
internacional e as reivindicações por justiça na sociedade mundial?
23
24
UNIDADE 1 TÓPICO 2 - A
TEORIA NORMATIVA NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
1 INTRODUÇÃO
Conforme discutido no tópico anterior, a Escola Inglesa contribuiu para a
inclusão da discussão sobre moralidade e ética no campo das Relações Internacionais.
Isso não significa, porém, que as reflexões sobre responsabilidade estatal, justiça na
guerra e ética na condução da política não estivessem presentes historicamente nos
campos da Filosofia, Ciências Sociais e Ciência Política.
25
GIO
A DIFERENÇA ENTRE ÉTICA E MORAL
Erskine (2013) afirma que nas RIs as reflexões sobre essas questões são
largamente baseadas nas contribuições desses dois campos, principalmente a partir
dos debates entre consequencialismo e deontologia (proveniente da filosofia moral)
e comunitarismo e cosmopolitismo (derivado da teoria política). Desse modo, para
compreendermos como moral e ética estão presentes na política internacional e na
teoria das Relações Internacionais, é necessária a apresentação desses debates.
26
Segundo essa visão, o julgamento moral das ações (se elas são certas ou
erradas) deve ser realizado a partir das ações em si, não de suas consequências. O
denominado “imperativo categórico” de Kant deriva dessa visão e pode ser traduzido na
conhecida frase: “faça com os outros o que gostaria que fosse feito com você” – isso
significa que, segundo a deontologia, o indivíduo deve decidir o que fazer com base no
que se espera que os outros façam com ele – deve agir, então, com reciprocidade.
27
A ideia do “experimento” acima é ilustrar as visões apresentadas e suas
diferenças. O dilema é pontuado da seguinte forma: imagine que um bonde (ou um trem)
perdeu o freio e está indo em direção a cinco pessoas amarradas nos trilhos. É possível
puxar uma alavanca e evitar que o bonde siga o seu percurso, mas a consequência seria
levar uma pessoa à morte, também amarrada nos trilhos. O que fazer?
DICA DE SÉRIE
A série norte-americana “The Good Place” discute, de modo lúdico, algumas
das premissas da filosofia moral aqui discutidas. O dilema do bonde, por
exemplo, é ilustrado e utilizado como exemplo de problema na definição
das ações individuais.
3 COSMOPOLITISMO E COMUNITARISMO
Segundo Kimberly Hutchings, uma das autoras mais proeminentes no subcampo
da teoria normativa na Escola Inglesa, um dos maiores desafios ao domínio realista tem
sido a discussão sobre ética internacional (Hutchings, 1999). Nos últimos trinta anos
há um esforço de reviver as discussões citadas anteriormente e trazê-las dos campos
da Ciência Política e da Filosofia para a área específica de Relações Internacionais.
Segundo a autora, a tentativa de análise da moralidade na sociedade de Estados exige,
primeiramente, o exame do que seria essa moralidade - ou seja, o que o conjunto de
Estados nas relações internacionais considera “justo” ou “correto”?
28
1. Os Estados têm o devem de apoiar o sistema de Estados;
2. Os Estados têm o dever de respeitar a soberania, autonomia ou independência de
outros Estados;
3. Os Estados têm o dever de não interferir ou intervir em assuntos internos de outros
Estados;
4. Os Estados têm o direito de se engajar em violência organizada;
5. Os Estados têm um dever geral de promover paz, mas têm o direito de declarar guerra
caso julguem que sua causa é justa;
6. Os Estados têm o dever de observar restrições na conduta da guerra.
7. Os Estados têm o dever que honrar seus acordos;
8. Os Estados têm o dever de não usar a força uns contra os outros, mas não têm a
obrigação de promover bens comuns globais, bens a outros Estados ou o bem-estar
de indivíduos que vivem em outros Estados;
9. Indivíduos não possuem direitos contra quaisquer outros Estados além daqueles em
que vivem (Dower, 1998, pg. 55).
Essa ideia de que existe uma moralidade comum aos Estados não é unânime –
há pensadores que defendem que cada Estado possui um senso de “certo” e “errado”,
derivado de sua cultura e identidade. A essa visão, de modo geral, dá-se o nome de
comunitarismo.
29
Em linhas gerais, o comunitarismo – representado principalmente por autores
como Charles Taylor e Michael Walzer – defende que as identidades dos indivíduos
seriam moldadas por suas relações sociais e essas relações definiriam nossos
julgamentos morais e políticos, assim como nossas instituições sociais. Essa visão se
contrapõe ao pensamento liberal cosmopolita, que enfatiza o comportamento individual
e a autonomia pessoal.
DICA
ARTIGO “O DEBATE ENTRE COMUNITARISTAS E COSMOPOLITAS E AS
TEORIAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: RAWLS COMO VIA MÉDIA”
4 PLURALISMO E SOLIDARISMO
O debate entre as visões cosmopolita e comunitarista se deu, inicialmente, nos
campos da Filosofia e da Ciência Política, ainda que suas considerações sejam úteis
para a compreensão das relações internacionais. Na Escola Inglesa a reflexão sobre as
diferenças entre essas abordagens deu origem às visões pluralista e solidarista. Barry
Buzan, em “An Introduction to the English School of International Relations” (2014),
detalha as principais premissas dessas duas visões e apresenta as contribuições desses
conceitos para a compreensão da política internacional.
30
Do outro, o solidarismo (alinhado ao cosmopolitismo) afirma que haveria um
conjunto de valores aplicáveis universalmente, independente da nacionalidade e da
cultura dos indivíduos. De modo simples, para o pluralismo, um cidadão nascido e criado
no Brasil seria primariamente brasileiro e, em segundo plano, cidadão do mundo. Para o
solidarismo, esse mesmo cidadão seria acima de tudo cidadão do mundo e, em segundo
lugar, brasileiro.
Buzan (2014) enfatiza que pluralismo e solidarismo não seriam visões opostas
– a sociedade internacional seria tanto pluralista quanto solidarista. Ao mesmo tempo,
por exemplo, que os Estados defendem a permanência do sistema internacional e da
soberania irrestrita (características pluralistas), há iniciativas de natureza solidarista, como
a Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pela ONU em dezembro de 1948.
GIO
A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS (DUDH)
31
DICA
O site Moral Machine <https://www.moralmachine.net> foi desenvolvido
pelo Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT) com o
objetivo de coletar dados relacionados às respostas sociais a um conjunto
de dilemas morais. A partir de exemplos de situações reais, o site oferece
ao leitor alternativas e analisa os resultados com base nos princípios da
filosofia moral. Vale a pena conferir!
32
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
33
AUTOATIVIDADE
1 Seria a tortura moralmente permissível em alguns casos? Quais? Apresente o
argumento com base nos conceitos de deontologia ou consequencialismo.
3 Quais os argumentos de Bull (1977) em afirmar que a ordem internacional pode ser
ameaçada pelo solidarismo?
34
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
TEMAS DA TEORIA NORMATIVA DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
1 INTRODUÇÃO
Conforme discutido anteriormente, a tradição teórica da Escola Inglesa retomou
uma série de abordagens da filosofia e da ciência política com o objetivo de explorar
os dilemas e tensões existentes entre o nível individual e a sociedade de Estados
soberanos. A partir da reflexão acerca da moralidade e ética em nível internacional é
possível analisar uma gama ampla de temas cuja compreensão não seria possível a
partir das lentes realista e liberal.
35
de justificariam o envolvimento na guerra (a decisão de declarar e/ou se envolver na
guerra) – em latim, jus ad bellum, e as regras que governam como a guerra deve ser
travada uma vez iniciada – em latim, jus in bello.
GIO
VISÕES NÃO-OCIDENTAIS SOBRE A GUERRA JUSTA
Do ponto de vista histórico, a teoria da guerra justa tem uma longa história.
Partes da bíblia, por exemplo, sugerem o que seria um comportamento “ético” na guerra
e oferecem conceitos de guerra justa, tipicamente anunciando a justiça da guerra por
intervenção divina. Mesmo antes da identificação de princípios de guerra justa cristãos,
realistas políticos como Tucídides (460 a.C – 400 a.C) em a “História da Guerra do
Peloponeso” teorizaram sobre o fenômeno da guerra. Para Tucidides a guerra seria uma
extensão da política e, portanto, permeada por interesses políticos.
36
FIGURA 4 – O PENSADOR GREGO TUCÍDIDES
FONTE: <https://www.istockphoto.com/br/foto/retrato-de-estátua-do-historiador-grego-tuc%C3%ADdi-
des-em-frente-ao-parlamento-austr%C3%ADaco-em-gm862217220-142879391>. Acesso em: 21 set.
2021.
O pensador cristão acreditava que os fiéis deveriam ser pacifistas e evitar o uso
da força, assim como pregava a tradição católica. A guerra, entretanto, seria moralmente
permissível como meio de preservação da paz no longo prazo. Em sua obra, Aquino
apresenta três condições para a definição de uma guerra enquanto “justa” ou “injusta”:
Terceira condição – Causa Justa: uma causa seria justa se envolve tornar certo
aquilo que está errado.
37
Se refletirmos sobre essas três condições aplicadas a acontecimentos históricos
da política internacional, é possível identificar a dificuldade de se julgar se uma causa
seria justa ou não. Se a soberania e autonomia dos Estados são princípios primários
da política internacional, condenar os motivos políticos de se declarar guerra torna-se
uma tarefa difícil. As regras e convenções sobre guerra, dessa forma, focam muito mais
na conduta na guerra do que nos motivos de se ir à guerra. Além disso, a presença
de empresas militares privadas – como Blackwater, C.A.C.I e FDG Corp – coloca em
xeque a primeira condição de Aquino, uma vez que não necessariamente representam
os interesses nacionais.
GIO
EMPRESAS MILITARES PRIVADAS
DICA DE DOCUMENTÁRIO
SHADOW COMPANY
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=9yCONEdFgWo
38
Um ato de agressão, segundo Walzer (1997), seria a única causa legítima para
se travar uma guerra, uma vez que “desafia os direitos pelos quais vale a pena morrer”
(WALZER, 1997, p. 53). Além disso, conforme decidido pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, “agressão seria o uso de força armada por um Estado contra a soberania,
integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer outra
forma incompatível com a Carta das Nações Unidas” (AGNU, 1974). Baseando-se no que
denomina “analogia doméstica”, Walzer enfatiza o fato de que a soberania territorial e a
política do Estado são propensas à defesa da mesma forma que os direitos dos cidadãos
dentro dos Estados.
Em relação à ideia de que nada além da agressão seria causa justa de uma guerra,
é possível argumentar que as ameaças contemporâneas variam significativamente
em escopo e intensidade – as guerras pós 1945 não necessariamente ocorrem com
o objetivo de maximizar poder ou dominar um território. Nesse sentido, o paradigma
legalista de Walzer teria limitações em compreender, por exemplo, guerras de libertação
nacional e de busca por independência, como as ocorridas no continente africano
durante o século XX. Inis (1980) aponta que essa visão precisa revisar seus elementos
para diminuir as limitações que suas ideias ainda possuem.
39
DICAS
ENTREVISTA COM MICHAEL WALZER
3 JUSTIÇA CLIMÁTICA
Outro objeto de estudo relevante da teoria normativa no campo das Relações
Internacionais é o tema das mudanças do clima. O aumento médio da temperatura
média global vem sido atribuído, há algumas décadas, ao aumento das emissões
de Gases de Efeito Estufa (GEE) provenientes da atividade industrial, da queima de
combustíveis fósseis, da produção de carne, dentre outras atividades humanas. Desse
modo, o fenômeno das mudanças do clima seria agravado pela ação humana, cabendo
aos Estados estabelecer limitações a essas atividades e garantir que as gerações, agora
e no futuro, possam usufruir dos recursos naturais de modo sustentável.
40
ATENÇÃO
O PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇA DO CLIMA
(IPCC)
41
DICAS
LIVRO “CLIMATE JUSTICE”
Uma das obras mais importantes sobre justiça climática e ética ambiental
é o livro “Climate Justice”, de Henry Shue. Na obra, o autor se dedica à
análise das desigualdades derivadas da diferença entre o consumo e
a produção industrial em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Vale a leitura!
1) Países desenvolvidos com alta intensidade de carbono por unidade de PIB e per
capita: Estados Unidos, Canadá e Austrália;
2) Países desenvolvidos com média intensidade de carbono por unidade de PIB e per
capita, orientados a assumir responsabilidades globais: Alemanha, Reino Unido,
Holanda, Suécia, Dinamarca, Finlândia, França, Bélgica, Luxemburgo, Áustria e Itália;
42
4) Países pertencentes a ex-União Soviética que sofreram uma drástica redução nas
emissões de carbono (entre 40% e 60% mais baixas, em 1999, comparadas com 1990)
pelo colapso da economia (Rússia, Ucrânia, Bielo-Rússia, Bulgária, Romênia) e, em
consequência, têm créditos no conjunto de compromissos assumidos.
5) Países exportadores de petróleo (Arábia Saudita, Kuwait, Irã, Iraque, Emirados Árabes,
Argélia, Líbia, Venezuela, Indonésia e Nigéria), com alta intensidade de carbono por
unidade de PIB e alguns também per capita.
6) Países emergentes com média intensidade de carbono por unidade de PIB derivada
da matriz energética predominantemente de carvão e/ou petróleo (China, Índia, África
do Sul e México) ou do excessivo desmatamento (Brasil, Tailândia, Malásia e Filipinas).
O conjunto desses países apoia os compromissos firmados no Protocolo de Kyoto
em função dos benefícios imediatos advindos da implementação do Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo (MDL).
43
DICAS
ENCÍCLICA PAPAL – LAUDATO SI
Autores como Hedley Bull, Barry Buzan, Adam Watson, Kimberly Hutchings e
Michael Walzer contribuíram para o avanço e expansão das agendas de pesquisa no
campo. Se antes da década de 1970 o campo das RIs era mais próximo da Ciência
Política, a partir desse período ele se aproxima da Sociologia e da Filosofia e passa a
contrapor a demanda dos Estados por ordem às reivindicações crescentes por justiça.
Um dos principais legados da Escola Inglesa deriva desse esforço: compreender as
distinções entre ordem e justiça na expansão gradual da sociedade de Estados.
44
Do ponto de vista realista, existiriam problemas na Escola Inglesa do modo
como está atualmente constituída. O primeiro tem a ver com sua falta de clareza como
uma suposta teoria da política internacional. Para cientistas sociais americanos, é difícil
descobrir o que exatamente a Escola está tentando explicar, qual é sua lógica causal, ou
como alguém faria para medir sua variável independente central (causal): a existência
da "sociedade internacional".
A Escola Inglesa seria menos uma teoria que fornece hipóteses falsificáveis a
serem testadas (ou que foram testadas) e se aproximaria de uma abordagem vaga para
se pensar e conceituar a política mundial. Ela ofereceria descrições da relação entre os
Estados ao longo da história e algumas hipóteses mal definidas que associam essas
sociedades a uma maior cooperação no sistema, mas não iria além desse ponto.
Isso não significa que a Escola Inglesa não tenha desenvolvido uma teoria
rigorosa e testável das relações internacionais. No entanto, até o momento, segundo a
crítica realista, pouco trabalho teria sido feito para promover esse objetivo.
45
LEITURA
COMPLEMENTAR
A ESCOLA INGLESA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O DIREITO
INTERNACIONAL
Desde os anos 1990, tem sido destacada a necessidade de se formar uma agenda
de pesquisa interdisciplinar entre o Direito Internacional e as Relações Internacionais.
Na busca desta interdisciplinaridade têm se destacado, principalmente, as perspectivas
do institucionalismo neoliberal e do construtivismo. Nesse debate a perspectiva da
Escola Inglesa, também chamada de perspectiva da Sociedade Internacional, aparece
de forma discreta, seja em passagens citando Hedley Bull, Martin Wight ou R. J. Vincent
até trabalhos de autores contemporâneos como os de Andrew Hurrell, Jason Ralph e
Nicholas Wheeler
Desde o final dos anos 1950 a Escola Inglesa é formada por um grande grupo
de acadêmicos, baseados principalmente no Reino Unido, que concordam em tratar a
perspectiva da sociedade internacional como uma importante forma de interpretar a
política mundial. Entre os autores de sua primeira geração estão Charles Manning, Martin
Wight, Hedley Bull, Adam Watson, Alan James e John Vincent. Entre os autores recentes
podemos citar Andrew Hurrell, James Mayall, Robert Jackson, Tim Dunne e Nicholas
Wheeler (Suganami, 2003). A Escola Inglesa é identificada por sua ênfase no conceito
de sociedade internacional e nas chamadas três tradições. Conforme desenvolvido por
Hedley Bull (1995, 13), tal conceito pressupõe a existência de um grupo de Estados que
se consideram ligados por certos valores e interesses comuns. Seu relacionamento
46
acontece, por um conjunto comum de regras e instituições. Essa ênfase demonstra as
preocupações normativas dos membros da Escola Inglesa com as regras, normas, leis e
princípios de legitimidade que sustentam a ordem mundial.
Martin Wight (1985, 87) (ver também Manning, 1962) destaca a importância do
Direito Internacional ao afirmar que a sua existência é a comprovação mais essencial da
própria existência de uma sociedade internacional. Pois, assim como toda sociedade,
a internacional também possui um sistema de regras que estabelece os direitos e
deveres de seus membros. Em consequência disso, prossegue Wight, aqueles que
negam a existência da sociedade internacional começam por negar a realidade do
Direito Internacional. É o caso dos realistas, por exemplo, para quem os Estados apenas
seguem o Direito Internacional quando é do seu interesse.
47
Diferentemente desta posição, Bull (1995a, 131) rejeita a visão realista de
que o direito internacional seja “um fator negligenciável na conduta das relações
internacionais”. Ele observa que o argumento de que os Estados só obedecem à lei por
motivos escusos ou que eles só o fazem quando consideram do seu interesse, muitas
vezes é dito como se afirmasse que o direito internacional não precisa ser levado a sério.
Na sua visão, “é claro que precisa ser levado a sério”, e argumenta que se observarmos
a prática dos Estados, a importância do direito internacional se baseia não no fato dos
Estados aderirem aos seus princípios em detrimento de seus interesses, mas pelo fato
de que “eles frequentemente julgam ser do seu interesse se conformar a ele” (ibid, 134).
Nesse sentido, Bull demonstra uma visão mais sofisticada do papel do direito
internacional ao fugir do “dilema austiniano” de que se o Direito Internacional não
impede os Estados de usarem a força, então ele não serve. O direito internacional é
parte constitutiva da sociedade de Estados. Essa, por sua vez, desenvolveu instituições
que lhe são peculiares, como o próprio direito internacional público, já que nas palavras
de Wight (1966b, 127): “não havia um Grócio grego”. Ao desenvolver seu argumento
de que a sociedade internacional é de fato uma sociedade contra a visão realista que
nega este ponto, o autor destaca que “claramente onde existe direito, existe sociedade”
(1991, 140, ênfase no original). Igualmente, Hedley Bull afirma que “não há dúvida de
que existem regras que os Estados e outros agentes na política internacional vêem
como obrigatórias. É em virtude desse fato que podemos falar da existência de uma
sociedade internacional” (1995, 124).
48
Como fica claro na citação de Bull: Se um direito de intervenção é proclamado
com o propósito de impor padrões de conduta em uma situação em que não exista
um consenso que governe o seu uso, então se abre a porta para intervenções por
determinados Estados que venham a usar tal direito como um pretexto, e o princípio
da soberania territorial é posto em perigo (ibid., 71, ênfases nossas). A ordem na política
mundial é baseada nesses objetivos elementares e é sustentada pelas normas e
instituições — balança de poder, direito internacional, diplomacia, a guerra, e as grandes
potências — da sociedade internacional, que, por sua vez, tem a sua legitimidade apoiada
em seus membros, ou seja, nos Estados. Esses últimos, longe de garantirem uma
ordem estável e segura, provêm uma ordem precária e imperfeita. Consequentemente,
acarreta o fato de que, mesmo quando as instituições e mecanismos que sustentam a
ordem internacional funcionam adequadamente, noções de justiça são frequentemente
violadas (idem 1995, 50 e 87).
Tais objetivos elementares permitem que a ordem possa existir mesmo entre
Estados que não pertençam a uma civilização em comum, demonstrando que a
sociedade internacional tem um caráter 'funcional' ao invés de 'cultural'. A necessidade
pragmática de coexistir é suficiente para produzir o que Bull chamou de “cultura
diplomática” — um sistema de regras, convenções e instituições, que preserva a ordem
entre associações políticas com culturas e ideologias diversas (Linklater 1996, 97).
Na concepção solidarista da sociedade internacional, a cooperação não é limitada, e
sim extensiva. Tal concepção baseia-se no argumento grociano da solidariedade, ou
potencial de solidariedade, entre os Estados, em relação à imposição da lei (Bull 1966,
52). A pressuposição solidarista de intervenção humanitária tem por base o postulado
de que os indivíduos são sujeitos do Direito Internacional e membros da sociedade
internacional, de maneira que os governantes, além de serem responsáveis pela
segurança e bem estar de seus cidadãos, são responsáveis pela proteção dos direitos
humanos em qualquer lugar (ibid., 63- 64, ênfases nossas). É importante destacar que
a atual relevância destas distinções conceituais elaboradas por Bull. Nos anos 90, com
todas as intervenções humanitárias, o debate entre os defensores das concepções
pluralista e solidarista dentro da Escola Inglesa ressurgiu com força total. A intervenção
da OTAN no conflito do Kosovo, em março de 1999, foi mais do qualquer outro evento,
o grande mediador deste debate na Escola Inglesa. Entre os teóricos da Escola Inglesa
que trataram do assunto, os dois principais "protagonistas" dos dois lados do debate
foram Robert Jackson (pluralista) e Nicholas Wheeler.
Enquanto a tendência ao longo dos anos 1990 foi tratar as duas concepções
como mutuamente excludentes, as contribuições recentes destacam que apesar de
suas diferenças e características próprias, elas não devem ser vistas como totalmente
antagônicas, mas como complementares. Barry Buzan (2004, 58-59) destaca que, para
evitarmos concepções dicotômicas, deveríamos pensar sobre o pluralismo e solidarismo
como pontas de um mesmo espectro. Se o solidarismo é compreendido como sendo
sobre a densidade das normas, regras e instituições que os Estados decidem criam para
gerenciar suas relações, então pluralismo e solidarismo simplesmente ligam posições
em um espectro e não são necessariamente contraditórios.
49
Dessa forma, eles representam diferenças de grau e não posições contraditórias.
A mudança de ênfase de Bull em direção ao solidarismo em seus últimos trabalhos
nos anos 1980, apesar de nunca abandonar totalmente seu ceticismo inicial, também
demonstra a artificialidade desta dicotomia. Sua análise da “revolta contra o ocidente”
levava em conta, principalmente, se as potências ocidentais saberiam lidar com as
demandas de mudanças de maneira a acatá-las e construir, dessa forma, as bases de
uma sociedade internacional mais justa e igualitária. Sua visão sobre o papel do Terceiro
Mundo (hoje por muitos chamado de “Sul Global”) dialoga diretamente com os desafios
contemporâneos das chamadas “potências emergentes” (ver Alden, Morphet e Viera,
2010). Isso tem repercussões diretas no argumento deste artigo sobre a importância da
abordagem do direito internacional feita pela Escola Inglesa. Vejamos, Bull (1995, 303)
destacava que um consenso baseado apenas nas grandes potências e que não levasse
em consideração as demandas dos países asiáticos, africanos e latino-americanos não
poderia durar. Hoje a sociedade internacional enfrenta as demandas desses países por
maior participação nos processos decisórios internacionais.
FONTE: SOUZA, E. A Escola Inglesa de Relações Internacionais e o Direito Internacional. Mural internacio-
nal, v.4, n. 1, 2013.
50
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
• Entender os limites legais da guerra nos ajuda a analisar a moralidade dos conflitos e
questões como responsabilidade estatal e o envolvimento de empresas privadas em
conflitos armados.
• Mudanças do clima são um fenômeno agravado pela ação humana cuja governança
envolve o estabelecimento de princípios de justiça distributiva e cosmopolita.
Compreender o que é a justiça climática é importante para entender como meio
ambiente e Relações Internacionais estão conectados.
51
AUTOATIVIDADE
1 Segundo Buzan (2011): “o debate entre Pluralismo e Solidarismo é sobre como a
sociedade interestatal se relaciona/deveria se relacionar com a sociedade mundial
- ou, em outras palavras, como os estados se relacionam/deveriam se relacionar
com indivíduos.” Apresente as respostas a esses questionamentos segundo as duas
abordagens normativas principais: Pluralismo e Solidarismo.
52
REFERÊNCIAS
ANSCOMBE, E. War and Murder. In: STEIN, W. Nuclear Weapons: a catholic response.
Sheed and Ward, 1961.
BULL, H. International Theory: the case for a classical approach. World Politics, v. 18.
n. 3, 1966.
BULL, H. Martin Wight and the Theory of International Relations. In: International
Theory: the Three Traditions. Leicester University Press, 1991.
ERSKINE, T. Normative International Relations Theory. In: DUNNE, T.; KURKI, M.; SMITH,
S. International Relations Theory: discipline and diversity. Oxford University Press,
2013.
ROBERSON, B. Probing the idea and prospects for international society. International
Society and the Development of International Relations Theory. Continuum,
2002.
WALZER, M. Just and Unjust Wars: a moral argument with historical illustrations.
Basic Books Classics Series, 1977.
WIGHT, M. International Theory: the Three Traditions. Leicester University Press, 1991.
53
54
UNIDADE 2 —
O CONSTRUTIVISMO
NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• entender a teoria construtivista como via média no campo das Relações internacionais
e suas principais vertentes: o construtivismo regra-orientado e construtivismo
estrutural;
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoati-
vidades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
55
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
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56
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
AS CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA PARA
O PENSAMENTO CONSTRUTIVISTA
1 INTRODUÇÃO
O fim da Guerra Fria representou uma série de mudanças – tanto na ordem
política global, quanto na compreensão dessa ordem por parte da academia. As teorias
racionalistas dominantes do campo das Relações Internacionais (discutidas em “Teoria
das Relações Internacionais I”) falharam em explicar a totalidade das mudanças nesse
contexto, o que abriu espaço para abordagens mais reflexivistas e que levassem em
consideração o papel das ideias, das identidades, da cultura e das normas na política
internacional. Dentre essas abordagens destaca-se o Construtivismo.
IMPORTANTE
OS CONCEITOS DE OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE
57
2 INTERACIONISMO SIMBÓLICO E A VIRADA LINGUÍSTICA
Ao longo do século XX as ciências humanas e sociais passaram por
transformações notáveis – tanto teórica, quanto metodologicamente. Se antes a ênfase
majoritária das análises era na estrutura social e seu impacto sobre os cidadãos (ex.:
a tríade Marx, Durkheim e Weber enfatiza as estruturas sociais como determinantes
do comportamento humano), a partir da virada linguística a preocupação passa a ser,
também, com o papel desses cidadãos na formação e reprodução das estruturas sociais.
Essa mudança não ocorreu de modo linear e em pouco tempo – ainda assim, é possível
identificar similaridades na produção do conhecimento em diferentes áreas, a partir do
reconhecimento da importância do estudo da linguagem.
O que foi, então, a virada linguística e por que é importante compreender seu
papel nas ciências humanas e sociais? Em linhas gerais, a virada linguística se refere à
crescente adoção do estudo da linguagem para a compreensão de fenômenos sociais,
principalmente a partir do século XX, nos campos da Filosofia, Sociologia e Psicologia.
Uma das principais obras que discute esse fenômeno é o livro “’The Linguistic Turn”,
publicado por Richard Rorty em 1967.
58
FIGURA 1 – HERBERT BLUMER
IMPORTANTE
A ESCOLA DE CHICAGO NA PSICOLOGIA SOCIAL
Segundo Blumer (1969), o que diferencia os seres humanos das outras espécies
de animais seria a nossa capacidade de dar nome as coisas e de nos comunicar através
da linguagem simbólica (palavras, desenhos, símbolos etc.). A mente humana, embora
seja resultado da herança biológica, se desenvolveria no decurso da interação social. Ao
longo de nossas vidas desenvolvemos gestos simbólicos com significados, e os outros
reagiriam em conformidade com o significado que fixaram ao longo de suas próprias
vidas. Isso fica claro quando dois indivíduos, em situação semelhante, reagem de igual
modo (ex.: quando alguém exclama “perigo!” a duas pessoas que falam português,
geralmente a reação de ambas é alarmar-se, correr ou verificar ao redor se há alguma
ameaça) – isso significa que o significado da expressão “perigo!” é compartilhado (tanto
pelas duas pessoas, quanto por quem exclamou) e associado às sensações de medo,
desconfiança e às ações de correr, se alarmar.
59
Blumer (1969) destaca, desse modo, as três premissas centrais do Interacionismo
Simbólico:
Giddens (1984) afirma que seria incompleto o esforço de análise da ação humana
como sendo restringida por poderosas estruturas sociais estáveis (como instituições
educacionais, religiosas ou políticas) – como afirmava o funcionalismo de Durkheim -
ou como apenas como sendo uma função da expressão individual da vontade – como
defendiam correntes no campo da Psicologia. Ou seja, entender os indivíduos a partir da
análise apenas da estrutura ou da agência, seria reduzir a sociedade a um ou outro fator.
60
A Teoria da Estruturação, como foi nomeada a teoria elaborada por Giddens, reconhece
a interação entre significado, padrões, valores e poder, e postula uma relação dinâmica
entre agente e estrutura.
Até os anos 1980, era possível identificar duas correntes centrais na sociologia: o
estruturalismo e os teóricos da agência. Autores estruturalistas da sociologia descrevem
o efeito da estrutura de diferentes maneiras. Émile Durkheim (1858-1917), por exemplo,
destacou o papel positivo das estruturas sociais na estabilidade e na permanência
de práticas sociais, enquanto Karl Marx (1818-1883) descreveu como as estruturas
protegeriam poucos e deixariam em segundo plano as necessidades de muitos. Em
contraste, os proponentes da teoria da agência (também denominada “visão subjetiva”)
consideram que os indivíduos possuem a capacidade de exercer seu próprio livre arbítrio
e fazer suas próprias escolhas. Para essa visão, as estruturas sociais são vistas como
simples produtos da ação individual, ao invés de forças incomensuráveis como afirmam
os estruturalistas.
Giddens desenvolve, a partir dos anos 1980, um argumento que propôs o fim da
polarização do debate estrutura-agência, destacando a síntese dessas duas influências
no comportamento humano. O autor afirma que, assim como a autonomia de um
indivíduo é influenciada pelas estruturas nas quais ele está inserido, as estruturas são
mantidas e adaptadas por meio da autonomia individual (agência). Essa relação de co-
constituição entre agente e estrutura é denominada “estruturação”.
61
estruturas sociais, mas que essas estruturas só se manteriam no tempo e no espaço se
forem reforçadas, ou seja, se por meio da agência houver uma legitimação da estrutura.
Como resultado, as estruturas sociais não teriam estabilidade inerente fora da ação
humana, porque seriam socialmente construídas. A relação entre agente e estrutura
não seria um dualismo como afirmam as teorias estruturalistas e da agência, mas uma
dualidade.
GIO
DUALISMO E DUALIDADE DA RELAÇÃO AGENTE-ESTRUTURA:
QUAL A DIFERENÇA?
62
O esquema abaixo resume a relação entre os três elementos estruturais e a
interação entre os indivíduos em sociedade:
63
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
64
AUTOATIVIDADE
1 O que foi a “Virada Linguística”? Qual a sua importância para o desenvolvimento
teórico-conceitual nos campos da Filosofia, Sociologia e Psicologia?
3 Qual a diferença entre dualismo e dualidade na relação entre agente e estrutura? Por
que Giddens inova ao propor uma reconceituação dessa relação?
65
66
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA
1 INTRODUÇÃO
A Escola Inglesa, discutida na primeira unidade do livro, é frequentemente
considerada um “meio-termo” teórico entre o Liberalismo e o Realismo no campo das
Relações Internacionais. O pensamento de autores como Hedley Bull, Martin Wight e
Barry Buzan envolve a ideia de uma sociedade de Estados que coexistem em nível
internacional a partir do compartilhamento de normas e regras comuns – nesse sentido,
os autores diferem do Realismo ao considerar possível a manutenção da ordem sem a
primazia do conflito e da lógica de sobrevivência, ao mesmo tempo em que se afastam
do Liberalismo ao estabelecer limites a possibilidade de cooperação e de haver harmonia
de interesses entre os Estados.
O Construtivismo, teoria que emerge no campo no início dos anos 1980, também
é amplamente considerada um “meio-termo” – dessa vez entre teorias convencionais
racionalistas (ou “mainstream”) e abordagens reflexivistas. A teoria destaca a
importância da análise da dualidade entre agente e estrutura para o entendimento do
sistema internacional, além da ênfase nas interações entre indivíduos e Estados a partir
da Teoria Social.
Assim como as demais abordagens no campo, não é possível afirmar que existe
um único Construtivismo. Ao longo dos anos uma série de obras foram publicadas e
enquadradas na corrente construtivista – seja pela ênfase na relação entre agente e
estrutura (como é o caso das obras de Alexander Wendt), seja pelo estudo das normas
internacionais (em que se destaca Nicholas Onuf), seja pela análise da difusão e
internalização de normas internacionais (que tem como referências centrais autores
como Michael Barnett e Martha Finnemore).
67
2 A DUALIDADE DA ESTRUTURA NO ENTENDIMENTO DA
SOCIEDADE INTERNACIONAL
O conceito de “estrutura” é um dos mais importantes e elusivos nas Ciências
Sociais, de modo geral, e nas Relações Internacionais, especificamente. Conforme
discutido em “Teoria das Relações Internacionais I”, a teoria Neorrealista de Kenneth Waltz
(1959, 1979) considera a estrutura do sistema internacional um elemento fundamental
da explicação do comportamento dos Estados. Durante décadas essa concepção
dominou as análises do campo e se popularizou como uma das principais premissas
teórico-conceituais das RIs.
Giddens, por outro lado, revisita a concepção dualista da relação entre agente
e estrutura e afirma que essa última deve ser compreendida não apenas em termos
materiais, mas a partir da análise do papel dos indivíduos na sua construção. A estrutura
seria, portanto, um elemento social e passível de análise a partir desse domínio. Essa
concepção abre espaço para uma série de críticas às visões estruturalistas nas Ciências
Sociais: se o papel dos indivíduos importa na definição, reificação ou alteração das
estruturas, seria equivocado (e/ou incompleto) enfatizar o papel de apenas um dos
elementos na explicação tanto das sociedades, quanto do comportamento dos Estados.
69
1. Um debate entre explicar e compreender: as teorias explicativas são aquelas que
buscam emular as Ciências Naturais, buscando causas gerais. Seriam abordagens
explicativas do campo principalmente o neorrealismo e o institucionalismo neoliberal.
A posição compreensiva, por sua vez, argumenta que as análises devem explorar
a vida social e a interpretação dos significados internos - as crenças e razões dos
atores. O Construtivismo e as teorias pós-estruturalistas adotam dessa posição.
a) Defende uma ciência baseada na observação sistemática que segue diretrizes claras;
b) Acredita no estudo de regularidades observadas e observáveis;
c) Tende a evitar análises sobre realidades que não se consegue observar.
70
4 O CONSTRUTIVISMO COMO VIA MÉDIA
A partir dos anos 1990, o Construtivismo passa a ser considerado um “meio-
termo” entre as concepções positivista e pós positivista no campo. Emanuel Adler
(1999) afirma que a teoria seria uma perspectiva segundo a qual “o modo pelo qual
o mundo material forma a, e é formado pela, ação e interação humana depende de
interpretações normativas e epistêmicas do mundo material” (ADLER, 1999, p. 205). Ou
seja, para o Construtivismo o mundo não seria só aquilo que se pode observar (como
afirmam as teorias positivistas), e nem só aquilo que deriva da interpretação dos atores
(como afirmam os pós-positivistas). Ideias e mundo material importam igualmente na
explicação da política internacional.
DICA DE LEITURA
“O CONSTRUTIVISMO NO ESTUDO DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS”, DE EMANUEL ADLER
Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ln/n47/a11n47.pdf
71
Adler (1999) afirma que o Construtivismo, em oposição às teorias realista e
liberal, não seria uma teoria da política internacional em si, mas uma teoria social a
partir da qual as análises de “via-média” nas RIs se organizam. A abordagem lançaria
luz a características importantes das relações internacionais antes negligenciadas
ou colocadas em segundo plano (como a identidade nacional dos Estados, a difusão
e internalização de normas internacionais, o papel das ideias e as possibilidades de
mudança na política). Isso traria a possibilidade de entender melhor os processos de
cooperação, o conflito e todo tipo de interação existente na política internacional.
Nesse sentido, ainda que não haja um único Construtivismo, é possível identificar
três temas centrais abordados por essa corrente:
72
Dimensões Sociais
Processo de Interação
73
ESTUDO DE CASO:
A GUERRA AO TERROR PELA LENTE CONSTRUTIVISTA
74
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
75
AUTOATIVIDADE
1 O que foi o quarto debate das Relações Internacionais? Qual a diferença entre a
discussão realizada nesse contexto e as demais abordagens do campo publicadas
antes dos anos 1990.
76
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
ABORDAGENS CANÔNICAS
E CONTEMPORÂNEAS E DO
CONSTRUTIVISMO
1 INTRODUÇÃO
O Construtivismo emerge no campo nos anos 1990, desafiando o domínio do
Realismo e do Liberalismo nas Relações Internacionais. Da primeira menção à teoria aos
desenvolvimentos recentes dessa abordagem, uma série de obras foram publicadas e
postas à prova pelos acontecimentos recentes da política internacional. A díade conflito-
cooperação deixa de ser a ênfase única da produção do conhecimento na área e a
análise de questões subjetivas abre espaço para a compreensão da realidade social não
apenas a partir da materialidade e da resposta dos atores a determinantes estruturais,
mas do papel da interação entre os agentes na construção e reprodução das estruturas.
77
FIGURA 3 – NICHOLAS ONUF
toda vez que os agentes escolhem seguir uma regra, eles a modificam
– fortalecem a regra tornando mais possível que eles mesmos e
outros a sigam no futuro. Toda vez que os agentes escolhem não
seguir uma regra, eles a modificam enfraquecendo-a e, ao fazê-lo,
contribuem para a constituição de uma nova regra (ONUF, 1994, p.
18).
78
Sociedade e política seriam dois conceitos associados: as sociedades seriam
baseadas em regras e a política sempre lida com relações sociais assimétricas geradas
por essas regras. O que as pessoas fazem em sociedade, portanto, não está apenas
conectado pelas regras que seguem, mas constroem essas regras e, de modo geral,
constroem o mundo ao seu redor. Essa concepção segue a mesma lógica da relação de
dualidade entre agência e estrutura discutida anteriormente.
Onuf (1989) concorda com a Teoria Social de Giddens quando afirma que o
mundo seria construído por atos que consistem em significados construídos a partir da
linguagem, ao invés de existirem independente no “mundo material”. A importância da
linguagem é central na obra do autor, porque é a partir dela que as pessoas constroem
seus “mundos”: “a linguagem não descreve ou representa a realidade; ela cria a realidade,
ao ponto que os atos de fala possuem efeitos sobre a política internacional” (Onuf, 1989,
pg. 98). Nesse sentido, o conceito de “ato de fala” seria importante para a análise das
relações internacionais, conforme o quadro abaixo explica.
79
DICA DE FILME
“A CHEGADA” (2016)
80
FIGURA 4 – MARTHA FINNEMORE
FONTE: <https://mortara.georgetown.edu/profile/martha-finnemore/>.
Acesso em: 21 set. 2021.
81
OS JOGOS DE DOIS NÍVEIS EM PUTNAM (1988)
Ainda que a obra de Putnam não seja, por definição, construtivista, sua visão
influenciou uma série de análises no campo e reforçou uma tendência importante
de colaboração entre os campos da Ciência Política (representado nos estudos
sobre democracia, divisão entre os poderes, influência do legislativo na aprovação e
internalização de diretrizes internacionais) e das Relações Internacionais.
A primeira fase do ciclo de vida das normas é, então, caracterizada pela sua
emergência. Nessa fase os empreendedores de normas tentam persuadir o que
Finnemore e Sikkink (1998) denominam “massa crítica de Estados” a adotar novos padrões
de comportamento em um determinado tema da política internacional. Nesse sentido,
para que uma norma “surja” nas relações internacionais é necessária a presença de um
empreendedor normativo (geralmente esses atores são ativistas de uma determinada
causa) e de plataformas organizacionais (nas relações internacionais geralmente essas
plataformas são as organizações internacionais, como a ONU, ou o Banco Mundial).
82
de uma norma internacional agem, geralmente, a partir de um desses três elementos
(ou de uma combinação entre eles). Após a ação inicial desses empreendedores, haveria
o que as autoras conceituam como “limiares”, ou “pontos de inflexão”: momentos em
que a norma começa a ser aceita pela massa crítica (mesmo que não por unanimidade).
Nesse momento da análise do ciclo de vida da norma é importante identificar quais
Estados compõem essa massa crítica. Geralmente são aqueles em que o tema em
discussão possui proeminência: as autoras exemplificam, citando a discussão sobre o
uso de minas terrestres – países que não produzem, ou não utilizam, minas terrestres
não seriam parte da massa crítica que deve aceitar, ou não, uma norma sobre esse
tema. A mesma lógica se aplica a outros temas, como a emissão de gases de efeito
estufa, o direito ao voto feminino, a proteção de civis em conflitos, etc. (Finnemore e
Sikkink, 1998).
Por que os Estados aderem a uma norma durante essa fase? O que os leva a
aceitar ou não uma norma? As autoras afirmam que a aceitação de uma norma depende
do grau de “pressão” dos grupos e/ou identidades às quais os Estados se identificam na
política internacional. Não aceitar uma norma pode acarretar altos custos, como o Estado
ser visto como “vilão” e, como consequência, perder a credibilidade em assuntos caros
ao governo vigente. Nas discussões internacionais sobre direitos humanos, por exemplo,
os chefes de Estado se importam cada vez mais com a sua “imagem” internacional.
Se eventualmente são rotulados como violadores de direitos humanos e como “vilões”,
a consequência geralmente é uma série de mudanças visando a reconstrução dessa
imagem (Finnemore e Sikkink, 1998).
83
A Internalização das Normas Internacionais
1. Seres humanos e suas organizações são atores que possuem propósitos, e suas
ações ajudam a reproduzir e transformar as sociedades em que vivem.
2. A sociedade é feita de relações sociais, que estruturam as interações entre esses
atores propositados.
84
FIGURA 6 – ALEXANDER WENDT
A análise dessas duas questões pode ser realizada de duas principais formas:
em primeiro lugar, é possível fazer uma dessas unidades de análise (agente ou estrutura)
precedente do ponto de vista ontológico. Em segundo lugar, existe a possibilidade de
dar a ambas as unidades um status ontológico igual e, portanto, irredutível, ou seja,
uma unidade não pode ser “menor”, ou menos simples - do ponto de vista teórico - que
a outra.
85
A abordagem estruturacionista não deve ser confundida com uma síntese
“vazia” entre o individualismo e o estruturalismo, mas demanda uma conceitualização
particular e profunda da relação entre agente e estrutura. Na visão de Wendt, esse
processo leva à reflexão sobre as propriedades fundamentais do Estado (agentes) e a
estrutura do sistema. Por sua vez, essa abordagem permitiria lançar mão dos conceitos
de agente e estrutura para explicar e compreender algumas propriedades centrais de
cada unidade, bem como seus efeitos intrínsecos, e observar agentes e estruturas
como elementos co-determinados e mutuamente constituídos.
ATENÇÃO
ABORDAGEM IDEALISTA NA OBRA DE WENDT X ABORDAGEM
IDEALISTA DO PRIMEIRO DEBATE
86
2. As identidades e interesses dos atores seriam construídas por tais ideias
compartilhadas e não unicamente a partir de determinantes naturais. Isso significa
que o autor propõe uma abordagem holística e estruturalista. Como consequência, o
Construtivismo em Wendt pode ser visto como um tipo de “idealismo estrutural”.
O autor defende a ideia de que existem dois tipos de teorização sistêmica nas
Relações Internacionais: uma que vê esse sistema como uma variável dependente e
outra que o vê como variável independente.
GIO
VARIÁVEL DEPENDENTE X VARIÁVEL INDEPENDENTE
87
não apenas o seu comportamento, são afetadas pelo sistema internacional e 2. A forma
pela qual tais identidades são constituídas, mais propriamente, que apenas “causadas”
pelo sistema internacional.
Uma elaboração teórica mais profunda foi apresentada pelo autor, doze anos
depois, no livro “Teoria Social da Política Internacional” (1999). A primeira grande
discussão realizada na obra é sobre as identidades. Elas seriam constituídas por
estruturas internas e externas e a partir das ideias de “eu” e “outro”. O autor afirma que
existiriam quatro tipos de identidade: a pessoal, ou corporativa; tipo; papel e coletiva.
88
passa a desempenhar determinadas ações, mas também a esperar que outros, com
papeis semelhantes ou distintos, ajam de forma correspondente às suas expectativas.
O compartilhamento de expectativas, dependentes da identidade, é facilitado pelo
fato de que muitos papeis já estão institucionalizados de estruturas que pré-datam a
interações particulares. Exemplo: você pode tornar-se amigo (ou inimigo) de alguém –
mas a identidade, e o que esperar de alguém que exerce o papel de “amigo” ou “inimigo”,
é anterior, já está institucionalizado.
A identidade coletiva, por fim, leva à relação entre o “eu” e o “outro” à sua
conclusão lógica: a identificação. A identificação é um processo cognitivo no qual a
distinção entre o “eu” e o “outro” se torna turva e, no limite, é transcendida. A identificação
entre esses dois elementos geralmente é limitada a questões específicas e raramente é
total. Sempre envolve a extensão das fronteiras do “eu” para a inclusão do “outro”:
89
A segunda questão é relacionada à ausência de relação entre a medida de ideias
compartilhadas, ou cultura, em um sistema, e a medida de cooperação apresentada
nesse sistema. Não seria verdade, por exemplo, que haveria mais cooperação quanto
maior for a internalização de normas e padrões de comportamento, na medida em que
essas normas podem relacionar-se a conflito.
Haveria, nesse sentido, quatro principais implicações para a política externa dos
Estados:
90
c. Relevância do poder militar relativo: na cultura lockeana as ameaças geralmente não
são existenciais.
Essas duas regras geram duas tendências que podem ser associadas às ideias
de comunidades pluralísticas de segurança (no caso da primeira) e segurança coletiva
(no caso da segunda). Nas comunidades pluralísticas de segurança, há uma certeza real
de que os Estados-membros não lutarão fisicamente contra os outros, mas resolverão
suas disputas de outras formas. Nesse sentido, a guerra não seria uma forma legítima
de resolução de disputas.
91
LEITURA
COMPLEMENTAR
IDENTIDADE COMO FONTE DE CONFLITO:
UCRÂNIA E RÚSSIA NO PÓS-URSS
Fabiano Mielniczuk
O presente artigo trata da relação entre Rússia e Ucrânia nesse contexto. Mais
especificamente, sugiro que os conflitos que emergem entre os dois países têm origem
no modo como suas identidades são construídas a partir do fim da URSS. O texto está
dividido em quatro partes. Na primeira, algumas contribuições teóricas sobre os conflitos
entre Ucrânia e Rússia são comentadas. Na segunda, um modelo construtivista para ser
aplicado no caso em questão é sugerido. A terceira parte consiste na aplicação deste
modelo, a partir da análise da interação entre Ucrânia e Rússia no imediato pós-URSS.
Na quarta, a relação entre a Ucrânia, a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) é analisada tendo em vista o que é apresentado nas seções anteriores.
Algumas considerações finais concluem o artigo.
92
Já o conflito entre Rússia e Bielo-Rússia é econômico. A maior parte do petróleo
e do gás natural consumidos pela Bielo-Rússia é fornecida pela Rússia. Porém, por causa
das precárias condições econômicas do país, o governo de Minsk tem dificuldades em
pagar suas dívidas. Todavia, o problema é facilmente administrado e as divergências
econômicas não afetam a cooperação em outras áreas (Burant, 1995).
93
Ucrânia e Rússia também enfrentam problemas na esfera militar. A participação
russa na guerra da Moldávia – que ocorre na fronteira ocidental da Ucrânia – demonstra
a disposição da Rússia em garantir pela força seus interesses no “estrangeiro próximo”.
Com essa percepção, a Ucrânia obstrui as negociações sobre seu desarmamento nuclear
com a Rússia, e exige a participação dos EUA como garanti- dor dos Tratados (Papadiuk,
1996). No momento em que os acordos são firmados, o país quer salvaguardas da
comunidade internacional sobre a sua integridade territorial após a desnuclearização.
Além disso, a Ucrânia procura integrar-se à OTAN, o que é visto pela Rússia como um
ato de provocação, uma vez que a Rússia não aceita a expansão da Aliança para os
países do leste europeu. Mas os conflitos mais intensos ocorrem por causa do estatuto
de Sevastopol e da divisão da Frota do Mar Negro (FMN). Depois de anos de difíceis
negociações e de algumas ameaças de uso da força, as partes aceitam uma solução
provisória. Por não ser definitiva, é mantida a possibilidade
de que conflitos militares irrompam entre os dois países no futuro (Sherr, 1997).
94
acordo com o autor, a inabilidade das elites russas em aceitar a separação da Ucrânia
é responsável pela ênfase dada pela elite ucraniana no governo à diferenciação em
relação à Rússia. Esse processo origina os conflitos entre os dois países. De acordo
com Kincade e Melnyczuk (1994), os conflitos entre Ucrânia e Rússia são conseqüência
da crise de legitimidade que assola a URSS durante seu fim, que acaba ficando como
herança para as repúblicas sucessoras.
Ao privilegiar um evento ocorrido há 350 anos, o autor reifica o significado que
o episódio tem na época e o transporta para o final do século XX. Assim, as diferenças
entre o contexto original de Pereyaslav e o contexto atual não são respeitadas. Isso
implica a menor capacidade de indicar alternativas ao padrão de conflito existente pós-
URSS. Uma abordagem complementar deve privilegiar o papel da história respeitando a
maneira como ela é interpretada em perspectiva. Dessa maneira, a ênfase recai sobre
o modo como o passado dá origem a novos significados no presente. Para alcançar
esse objetivo, é necessário priorizar o estudo da interação entre Ucrânia e Rússia na
atualidade. A ênfase dada ao papel da identidade estatal é a maior contribuição de Kuzio
(2001), que indica o processo de construção das identidades da Rússia e da Ucrânia
como fonte do conflito entre os dois países. Todavia, a identidade é entendida como
um sentimento comum compartilhado por setores da elite dentro da Ucrânia, os quais
lutam pelo poder estatal com o objetivo de impor a sua identidade sobre os demais.
95
O mérito de Kincade e Melnyczuk (1994) está em ressaltar a importância das
representações a respeito do outro para o início e, posteriormente, a manutenção dos
conflitos entre Ucrânia e Rússia. Entretanto, o modo como a representação é construída
em sua abordagem é problemático. É facultada aos políticos a capacidade de estigmatizar
um outro Estado para aumentar seu prestígio e desviar a atenção sobre seu déficit de
legitimidade. Assume-se que estão em jogo apenas os interesses desses líderes, sendo
difícil explicar por que os russos que vivem na Ucrânia aceitam a representação negativa
da Rússia feita pela elite ucraniana. Essa falha pode ser superada por uma abordagem
que privilegie os interesses do Estado, em vez dos interesses de grupos que atuam
dentro do Estado. Por um lado, seria possível substituir a visão instrumental segundo a
qual a elite da Ucrânia manobra a política externa a fim de se manter no poder.
Por outro, a abordagem permitiria entender por que a maior parte dos russos da
Ucrânia deseja a manutenção da soberania do país e aceita a representação da Rússia
como uma ameaça. No presente artigo, propõe-se que a origem dos conflitos entre
Ucrânia e Rússia no pós-URSS seja buscada a partir de uma abordagem construtivista.
Nela, a história da interação entre Rússia e Ucrânia imediatamente após o final da União
Soviética é crucial para a definição da representação que um país tem do outro. A partir
dessa interação, são construídas as identidades estatais de ambos, que não podem ser
reduzidas às identidades das elites que disputam o poder político dentro dos Estados.
Essas identidades dão origem a interesses, que também não podem ser reduzidos
aos interesses das elites de Ucrânia e Rússia. As identidades demonstram o que os
Estados “são,” e os interesses indicam o que os Estados “querem”. Logicamente, não é
possível “querer” algo sem “ser” alguma coisa. Portanto, a abordagem teórica pressupõe
a determinação dos interesses pelas identidades dos Estados.
FONTE: MIELNICZUK, F. Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-URSS. Contexto Int.,
Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 223-258, 2006.
96
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
97
AUTOATIVIDADE
1 Wendt critica Waltz sobre o resultado da anarquia nas relações internacionais e
apresenta novas possibilidades interpretativas da mesma. Cite e explique-as.
2 Wendt afirma que a
autoajuda e a política de poder não derivam lógica ou causalmente da
anarquia, e que se hoje nos encontramos em um mundo de autoajuda,
isto se deve ao processo, não à estrutura. Não há uma “lógica” da
anarquia à parte das práticas que criam e instanciam uma estrutura
de identidades e interesses em detrimento de outras; a estrutura não
tem existência ou poderes causais à parte do processo. A autoajuda
e a política de poder são instituições, não características essenciais
da anarquia. A anarquia é o que os estados fazem dela (WENDT, 2013,
p. 425-6).
Sobre a perspectiva construtivista de Wendt, avalie as afirmações a seguir:
3 Cite e explique as três fases do ciclo de vida das normas, exemplificando momentos
da história mundial em que houve a tentativa de promoção de normas.
98
REFERÊNCIAS
ADLER, E. O construtivismo no estudo das relações internacionais. Lua Nova, São
Paulo, n. 47, p. 201-246, ago, 1999.
DUNNE, T., KURKI, M., SMITH, S. International Relations Theories: discipline and
diversity. Oxford University Press, 2016.
ONUF, N. World of Our Making: rules and rule in Social Theory and International
Relations. University of South Carolina Press, 1989.
99
WENDT, A. The Agent-Structure Problem in International Relations Theory.
International Organization, 1987.
WENDT, A. Anarchy is What States Make of It: the social construction of power.
International Organization, 1992.
100
UNIDADE 3 —
ABORDAGENS CRÍTICAS
E DECOLONIAIS DAS
RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoati-
vidades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.
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101
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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102
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
AS RAÍZES COLONIAIS DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
1 INTRODUÇÃO
As reflexões e análises discutidas no presente livro reproduziram, até aqui, os
destaques do que é amplamente conhecido como o campo das Relações Internacionais
e as principais teorias. Na maioria dos cursos de Relações Internacionais pelo mundo
esse campo é apresentado do mesmo modo, resumido nos seguintes pontos: a
importância da Paz de Vestfália (1648) na afirmação dos Estados-Nação como unidade
política soberana, o ano de 1919 representando o marco inicial dos estudos sobre política
internacional e a reflexão em torno de quatro grandes debates que contrapõem teorias
e conceitos concorrentes.
Ainda que essa seja a narrativa mais conhecida e amplamente estudada pelos
acadêmicos da área, ela tem sido contestada e criticada por uma série de autores e
autoras (JONES, 2006; KRISHNA, 2006; CARVALHO; LEIRA; HOBSON, 2011). Essa
contestação é baseada na visão de que o campo das Relações Internacionais e o ensino
da política internacional focam predominantemente no estudo das relações entre
grandes potências, no papel da hegemonia e na busca pela preservação da soberania e
do poder e essa ênfase teria consequências sobre o nosso olhar acerca do campo e do
próprio objeto de estudo das relações internacionais.
103
particularmente relevante quando consideramos o lugar do Brasil no mundo, suas raízes
coloniais e seu histórico escravocrata. Compreender as relações internacionais a partir
de lentes alternativas representa também, nesse sentido, uma reflexão acerca de nossa
história.
DICA DE LEITURA
THE BIG BANGS OF IR
O artigo “The Big Bangs of IR: the myths that your teachers still tell
you about 1648 and 1919”, de Carvalho, Leira e Hobson, publicado
em 2011 no periódico “Millennium – Journal of International Studies”
faz uma reflexão importante sobre os mitos de criação do campo
de RI. Os autores exploram a historiografia do campo e revisam os
pontos considerados canônicos, revelando a importância do estudo
da história e a ausência de reflexão crítica acerca do que se considera
a origem das RIs. Vale a leitura!
Nos últimos anos, porém, tem havido um esforço de revisão historiográfica que
revela que o surgimento da soberania e do sistema internacional foi resultado de um
processo longo de mudança, não limitado à Guerra dos 30 Anos e à Vestfália. Além
104
disso, a história mundial pós-1648 foi marcada pela proliferação de hierarquias imperiais
e de dominação colonial – boa parte do que se considera, então, o sistema internacional
de Estados soberanos, era caracterizado pela dominação de territórios e povos ao redor
do mundo por poucos Estados europeus (CARVALHO; LEIRA; HOBSON, 2011).
Carvalho, Leira e Hobson (2011) afirmam que essa narrativa seria equivocada
por uma série de razões. Em primeiro lugar, vários autores associados ao período entre
guerras (1919-1939) já haviam publicado análises e reflexões duas décadas antes.
Alguns exemplos incluem os trabalhos de John A. Hobson, Norman Angell, Harold Laski
e o próprio Woodrow Wilson. Em segundo lugar, o esforço revisionista de autores como
Charles Jones (1998) e Peter Wilson (2000) revela que seria um erro classificar a obra
de Edward H. Carr como puramente realista. Os autores afirmam que há em “Vinte Anos
de Crise” elementos dialéticos que aproximariam Carr do Marxismo e de uma visão
reflexivista do internacional, o que desafia a visão canônica.
FONTE: <https://www.theguardian.com/world/2017/feb/14/web-du-bois-racism-data-paris-african-ameri-
cans-jobs>. Acesso em: 22 set. 2021.
105
Quais as consequências das narrativas clássicas do campo na nossa percepção
do internacional? Segundo Jones (2006) o campo das RIs teria silenciado as bases
imperiais da constituição das relações internacionais modernas. Enquanto o senso
comum observa a expansão europeia da sociedade internacional como um processo de
ampliação da soberania, democracia e do direito internacional para além do continente
europeu, as abordagens revisionistas ressaltam o legado de autoritarismo, racismo,
massacres e genocídios do colonialismo. Diminuir o peso desse “legado” no entendimento
das relações internacionais seria minimizar a importância dos povos colonizados – a
negligência acadêmica a essas violências seria o principal “dano colateral” do campo. As
próximas seções do tópico apresentam duas das principais abordagens que desafiam a
visão canônica do campo e oferecem uma leitura alternativa das relações internacionais:
as teorias pós coloniais e decoloniais.
3 ABORDAGENS PÓS-COLONIAIS
O pós-colonialismo como abordagem acadêmica pode ser dividido entre
as contribuições clássicas, representadas pelas obras de Frantz Fanon (1925-1961),
Edward Said (1935-2003), Aimé Césaire (1913-2008) e Albert Memmi (1920-2020), e as
análises do Grupo de Estudos Subalternos, fundado na década de 1970 por Ranajit Guha
e composto por autores indianos como Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri
Chakrabarty Spivak.
106
No que diz respeito ao discurso acadêmico da História – isso é, a
“História” como discurso produzido nas universidades – a ‘Europa’
continua sendo o sujeito teórico soberano de todas as histórias,
incluindo aquelas que denominamos ‘indianas’, ‘chinesas’, ‘quenianas’,
e assim por diante. Há uma maneira peculiar pela qual todas essas
outras histórias tendem a se tornar variações de uma narrativa
que poderia ser chamada simplesmente de ‘história da Europa
(CHAKRABARTY, 1997, p. 263).
DICA DE VÍDEO
DISCUSSÃO SOBRE A PERCEPÇÃO MIDIÁTICA SOBRE O ORIENTE
MÉDIO
107
FIGURA 2 – EDWARD SAID (1935-2003)
A obra “Orientalismo” (1978) discute sobre como as culturas árabes são representadas
de forma exagerada e estereotipada em produções acadêmicas, romances, descrições
sociais e relatos políticos.
De acordo com o autor, esse “orientalismo” data do período do Iluminismo europeu e
da colonização do mundo árabe – teria sido parte da racionalização das violências e
dominações coloniais, tomando como base a versão de que o “ocidente” desenvolvido
construiu o “oriente” como sendo diferente e inferior e que, portanto, necessitava
de intervenção e de resgate pelas potências europeias. É possível visualizar o
orientalismo em pinturas e obras de arte – Said enfatiza que uma série de obras do
séc. XIX, início do séc. XX retratam o mundo árabe como um lugar exótico e misterioso,
com areia, haréns e dançarinas do ventre, refletindo uma longa história de fantasias
que continuaram a permear a cultura popular contemporânea. As Feiras Mundiais
de Chicago (1863) e St. Louis (1904) reforçaram as imagens orientalistas nos Estados
Unidos.
O cruzamento do orientalismo europeu com o dos EUA pode ser visto nas imagens do
livro fotográfico de James Buel, que catalogou a Feira Mundial de 1893 em Chicago.
Esta publicação inclui fotografias de ruas árabes recriadas, acompanhadas por
legendas que capturam o pensamento orientalista da época. Por exemplo, a legenda
que acompanha a imagem "Garota egípcia na rua do Cairo" refere-se aos "modos
peculiares dos egípcios" e seu "disfarce desagradável". Além de ser descrita como um
objeto em exposição, suas características são descritas como pertencentes a uma
cultura atrasada:
108
FONTE: <https://www.lookandlearn.com/history-images/M465831/Chicago-Worlds-Fair-1893-Egyp-
tian-Girl-in-Street-of-Cairo>. Acesso em: 21 set. 2021.
Abordagens Decoloniais
109
“através da desintegração dos padrões de poder e das civilizações existentes na região,
do extermínio de comunidades inteiras e de seus portadores de cultura e poder, tais
como os intelectuais, os artistas, os cientistas e os líderes” (CARVALHO; ROSEVICS,
2017, p. 2). Aqueles que sobreviveram aos massacres foram subjugados e submetidos
a repressão durante séculos, até o desaparecimento completo de seu passado anterior
à colonização.
Fonte: https://lamericalatina.net/2020/10/23/omaggio-ad-anibal-quijano/
110
Esse processo foi marcado pela narrativa de que a Europa seria o centro
geográfico do mundo e pela universalização da experiência europeia. O que isso
significa, na leitura decolonial? Que uma parte significativa do pensamento ocidental
(ex.: Locke, Hegel etc.) fez uma leitura do tempo e do espaço da experiência humana
a partir da leitura europeia, universalizando, homogeneizando as experiências e,
consequentemente, excluindo aqueles que não correspondem ao padrão. Entender e
analisar o mundo a partir de outras experiências e modos de vida depende, então, de
um processo de “decolonização”.
Walter Mignolo (1995) acrescenta que a decolonialidade não é “um ponto linear
de chegada ou iluminação” (MIGNOLO, 1995, p. 15), mas “busca tornar visível, abrir e
avançar perspectivas e posicionalidades radicalmente distintas que deslocam a
racionalidade ocidental como a única estrutura e possibilidade de existência, análise e
pensamento” (MIGNOLO, 1995, p. 16).
FONTE: <https://www.skoob.com.br/autor/28173-walter-mignolo>.
Acesso em: 22 set. 2021.
111
O que seria, então, “decolonizar” as relações internacionais? Seria, entre outros
esforços, expor o papel que o colonialismo teve na construção tanto das relações
entre Estados e povos, quanto no campo de estudos desses objetos e, por meio dessa
consciência, potencializar o desenvolvimento futuro de formas não colonizadas.
A maioria das disciplinas modernas tem práticas disciplinares, objetos de estudo e
interpretações que são inseparáveis do colonialismo. Por exemplo, na Antropologia,
as distinções entre sociedades "primitivas" e "avançadas" e a prerrogativa das últimas
de compreender e descrever as primeiras de forma científica e verdadeira não foram
questionadas no apogeu do colonialismo.
Por várias razões, o campo de Relações Internacionais (RI) tem sido resistente a
esse impulso de descolonização. Em primeiro lugar, conforme discutido anteriormente,
as RI enquanto campo surgiu nos Estados Unidos, uma sociedade alheia à sobre sua
própria história (doméstica) como colônia e uma história (externa) como colonizador
na América Latina, nas Ilhas do Pacífico, no Extremo Oriente, etc. Em vez disso, os EUA
enfatizaram seu status pós-colonial ao romper com a Grã-Bretanha no final do século
XVIII e apoiar os esforços de descolonização de países do terceiro mundo que buscavam
a independência da Inglaterra, França ou Japão.
112
que poderia baixar a guarda e criar condições para a guerra. Questões "históricas",
como o colonialismo, foram consideradas menos relevantes, como consequência. Em
outras palavras, o discurso de RI é predominantemente marcado por um nacionalismo
metodológico que se destina a evitar todas as ameaças à soberania do Estado.
(b) Ouvir vozes, histórias, narrativas, ciências sociais e outras literaturas de pessoas de
fora da corrente dominante e considerá-las pelo menos iguais em sua capacidade de
compreender e mudar nossos mundos.
(c) Ensinar Relações Internacionais de maneiras que não reverenciam um cânone, mas
sim abram esse cânone para contestação e desconstrução, e para fazer perguntas
como "Os cânones são universais ou são entendimentos de mundos complexos de um
ponto de vista particular que faz uma reivindicar tal status onisciente?”.
113
(d) Escolher temas para pesquisar e trabalhar que sejam verdadeiramente globais em
seu campo de ação, que não pressuponham apenas que pertencer à nacionalidade é a
única maneira de ser e existir.
(e) reconhecer que o mundo se torna legível para nós através de uma variedade de
modos de compreensão – não há nada que sugira que um modo quantitativo ou
supostamente logicamente rigoroso de análise seja superior àqueles reproduzidos em
diferentes idiomas e usando diferentes sensibilidades.
DICA DE VÍDEO
“THEORY FROM THE MARGINS”, COM WALTER MIGNOLO
<https://www.youtube.com/watch?v=qDEEbVcxmRU>
114
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
115
AUTOATIVIDADE
1 Aponte e discuta as diferenças entre as abordagens pós-coloniais e as abordagens
decoloniais.
3 O que significa “descolonizar” o campo? Por que esse esforço seria necessário, segundo
a abordagem decolonial?
116
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
RACISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
1 INTRODUÇÃO
Temas como raça e racismo estão presentes tanto em nosso cotidiano, quanto
na política internacional. Do mesmo modo como o pós-colonialismo e as abordagens
decoloniais discutidas no tópico anterior analisam as colonialidades e injustiças
presentes no campo das Relações Internacionais, um conjunto de acadêmicos tem
recentemente empreendido esforços para compreender as dimensões raciais da política
internacional e por que é importante trazê-las à tona.
117
A história do sistema de Estados moderno, como muitas vezes é ensinada,
enfatiza o impacto das Revoluções Americana e Francesa no final do século XVIII. No
entanto, como as abordagens críticas pós e decoloniais discutidas apontam, este é
precisamente o período de expansão e colonização colonial que viu alguns estados
europeus consolidarem seu domínio sobre outras partes do mundo e sobre suas
populações, que passaram a ser representadas em termos racializados.
118
Segundo Bhambra (2020), os estudiosos e profissionais das Relações
Internacionais devem levar a sério as histórias coloniais que foram constitutivas da
formação dos Estados modernos. Deixar de fazer isso não seria apenas um erro intelectual,
mas também tem profundas consequências para a natureza e as possibilidades da
política - incluindo a política racial - no presente.
Olivia Rutazibwa (2020) afirma que levar a sério o problema do racismo no campo
das RI significa vê-lo não apenas como uma questão de estereótipos ou insensibilidades
culturais, mas como uma tecnologia colonial de vida e morte prematura construída
sobre ideologias de branquitude e supremacia branca. Também não se trata apenas
de adicionar um pouco de racismo e colonialismo na análise do internacional. Significa
repensar fundamentalmente o propósito da disciplina: fazemos dela uma ciência do
status quo ou uma ciência da possibilidade de vida – começando com as vidas negras?
FONTE: <https://mortara.georgetown.edu/profile/olivia-u-rutazibwa/>.
Acesso em: 22 set. 2021.
119
em debates futuros sobre as relações internacionais e nos assuntos mundiais, o campo
precisa remediar o apagamento do continente africano e se sentir confortável com a
discussão sobre raça.
GIO
A “NOVA” CORRIDA PELA ÁFRICA
DICAS
WHEN CHINA MET AFRICA
Além disso, estudiosos de fora do Ocidente, de uma forma que reflete a economia
global, foram relegados ao papel de fornecedores de matéria-prima. Por exemplo, os
estudiosos ocidentais frequentemente avaliam os Estados africanos de acordo com
critérios desenvolvidos pelas teorias europeias de criação de um Estado e contam
120
com os estudiosos locais para fornecer os dados relevantes, em vez de considerar
entendimentos africanos alternativos do que significa Estado. Como consequência, a
maioria do que os alunos leem em RI continua a ser escrita por uma minoria de pessoas
no mundo todo. A presunção de que todas as ideias valiosas se originaram no Ocidente
não é apenas excludente, mas falsa, como argumentam estudiosos como Pinar Bilgin,
Robbie Shilliam e Siba Grovogui – e deve ser reconhecida como uma forma de racismo
intelectual.
FONTE: <https://www.gorki.de/en/company/interdisciplinary/siba-n-grovogui>.
Acesso em: 22 set. 2021.
Em “Worlds of Color”, Du Bois (1925, 423) propôs que o “presente problema dos
problemas”, ou seja, a estrutura global da exploração do trabalho, precisava ser repensada
em relação à “sombra colonial” lançada por impérios europeus. Empreendendo uma
análise comparativa desses impérios, o autor observou que o imperialismo moderno
tinha uma “face democrática” em casa e uma “autocracia severa e inflexível” nas
colônias. Du Bois argumentou que a negação da democracia nas colônias dificultou sua
realização completa na Europa. “É isso”, sugeriu ele aos formuladores da política externa
ocidental, “que torna o problema da cor e o problema do trabalho, em grande medida,
dois lados do mesmo emaranhado humano” (DU BOIS 1925, 442). Segundo o autor, o
121
grande problema do século XX seria o problema da “linha de cor”, ou seja, “a relação
entre as raças mais escuras com as raças mais claras dos homens na Ásia, na África e
na América” (DU BOIS, 1925, p. 23).
Dez anos depois, Du Bois (1935) escreveu novamente para a revista Foreign
Affairs e fez um prognóstico de que a segunda guerra italiana/etíope (1935-1937)
inflamaria ainda mais a linha global de cor. Desse modo, Du Bois enfatizou a importância
crucial da raça e do racismo como princípios organizadores fundamentais da política
internacional; eixos de hierarquia e opressão que estruturam a lógica da política mundial
como a conhecemos.
GIO
A GUERRA ENTRE ITÁLIA E ETIÓPIA (1935-1937)
A Guerra Ítalo-Etíope
FONTE: <https://www.blackpast.org/global-african-history/second-italo-abyssinian-
-war-1935-1936/>. Acesso em: 22 set. 2021.
122
A linha global de cor
Como discutido acima, a resposta de Du Bois às causas das duas grandes guerras
mundiais e as perspectivas de paz mundial foram sistematicamente enquadradas por
meio de uma consideração dos efeitos políticos do pensamento racial e da ordem
racial. Para Du Bois (1925), a guerra não era uma aberração da civilização europeia, mas
sua expressão mais clara, e as principais causas da grandeza europeia – a expansão
ultramarina e o engrandecimento colonial – foram também as próprias causas da guerra.
“É dever da Europa branca”, opinou Du Bois (1925), “dividir o mundo negro e administrá-
lo para o bem da Europa” (DU BOIS, 1925, p. 503).
GIO
A SEGREGAÇÃO RACIAL NOS EUA E AS LEIS DE JIM CROW
123
O legado de Du Bois por si só desafiou as concepções dominantes nos EUA
nesse período: o autor foi o primeiro acadêmico afro-americano a concluir o PhD na
Universidade de Harvard, com uma tese que discutiu o tráfico de escravos africanos
para os Estados Unidos. Durante sua carreira, Du Bois denunciou o racismo tendencioso
presente nas Ciências Sociais e reconheceu que essa característica não foi desafiada
ao longo dos anos pois era apoiada pelas elites brancas. O autor também questionou as
afirmações de uma suposta superioridade branca baseada na ciência, denunciando que
se tratava de racismo, não fato.
DICA DE FILME
HISTÓRIAS CRUZADAS (2011)
FONTE: <https://blackbritishacademics.co.uk/person/prof-robbie-shilliam/>.
124
Raça e racismo não são apenas fundamentais para o campo das RI, mas também
seminais para o desenvolvimento do campo, dada sua centralidade na condução
dos assuntos internacionais. Por exemplo, perto do fim da Guerra Fria, Lauren (1996)
reconheceu que:
Persaud e Walker (2001) acrescentam que "o significado da raça em RI vai muito
além de várias conquistas multilaterais e outras conquistas diplomáticas" porque "a raça
tem sido uma força fundamental na própria formação do sistema mundial moderno
e nas representações e explicações de como esse sistema surgiu e como funciona”
(PERSAUD; WALKER, 2001, p. 374). Para os autores, “raça tem estado no centro de
gravidade durante uma parte substancial do sistema mundial moderno” (PERSAUD;
WALKER, 2001, p. 116).
DICA DE DOCUMENTÁRIO
I AM NOT YOUR NEGRO
125
Teóricos de RI do final do século XIX e início do século XX construíram esse
dualismo racista ao construir sua concepção de uma anarquia global e o papel dos
brancos "civilizados" para fornecer, manter e garantir a ordem por meio de um sistema
de relações de poder internacionais entre os brancos – ou, no mínimo, dominado por
brancos e um sistema de subjugação colonial para não-brancos – ou aqueles não-
brancos que não conseguiram resistir com sucesso à sua dominação militar.
126
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
127
AUTOATIVIDADE
1 O que é a linha global de cor, segundo Du Bois (1925)?
2 Por que a discussão sobre e raça e racismo importa nas Relações Internacionais?
128
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
O GÊNERO ENQUANTO CATEGORIA ANALÍTICA
DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
1 INTRODUÇÃO
O pensamento feminista nas Relações Internacionais emergiu relativamente
tarde em comparação com outras correntes das ciências sociais. Teóricas do campo
propuseram um conjunto de análises sobre como o gênero afetava a teoria e a prática
das relações internacionais no final dos anos 1980, durante o debate, anteriormente
discutido, entre positivistas e pós-positivistas. Como as críticas pós-positivistas das
abordagens convencionais de RI, as teóricas feministas afirmam que paradigmas
como realismo, neorrealismo e institucionalismo liberal apresentam uma visão
limitada, enraizada em suposições políticas que não contam toda a história da política
internacional.
129
neutra em relação a gênero. Uma vez que as principais correntes teóricas de RI não
estavam tradicionalmente preocupadas com gênero, o trabalho das primeiras feministas
de RI buscou desvendar o papel crucial das mulheres em espaços convencionais da
política internacional, como a economia global, a política e a guerra.
O presente tópico tem como objetivo discutir por que gênero importa na análise
da política internacional, analisando as contribuições de autoras como Cynthia Enloe
e Ann Tickner, precursoras do pensamento feminista no campo. Em seguida será
discutido o pensamento feminista liberal, a desigualdade de representação na política
e as consequências dessa estrutura. Por fim serão apresentadas as principais linhas
de estudo do feminismo decolonial, representado aqui pelas contribuições de María
Lugones, Ochy Curiel e Breny Mendoza.
130
A dimensão de gênero pode ser observada, por exemplo, através na análise das
experiências das mulheres na guerra: em geral, a guerra intensifica as desigualdades
econômicas entre homens e mulheres e muitas vezes força as mulheres a trabalhar sem
remuneração no cuidado de soldados feridos ou doentes quando os hospitais estão
superlotados ou destruídos (CHEW, 2008, p. 77). As mulheres são forçadas ao comércio
sexual para subsistência, às vezes sendo contratadas informalmente por líderes militares
em torno das bases para sustentar o moral dos soldados (ENLOE, 1989).
131
apropriado como comportamento "masculino" ou "feminino". A masculinidade é
frequentemente associada à racionalidade, poder, independência e esfera pública. A
feminilidade é frequentemente associada à irracionalidade, à necessidade de proteção,
à domesticidade e à esfera privada. Essas identidades de gênero social e politicamente
produzidas moldariam e influenciariam as interações globais, e as RIs como teoria – e
a política global como prática – também produzem essas identidades de gênero ao
perpetuar suposições sobre quem deve fazer o quê e por quê.
132
GIO
O ESTATUTO DE ROMA DE 2002
O foco tradicional nos Estados e nas relações entre eles ignora o fato de que os
homens são predominantemente responsáveis pelas instituições do Estado, dominando
o poder e as estruturas de tomada de decisão. Ele também ignora outras áreas que tanto
impactam a política global quanto são impactadas por ela.
133
Essa é uma exclusão de gênero, já que as mulheres contribuem de maneiras
essenciais para a política global, embora sejam mais propensas a ocupar áreas não
consideradas políticas importantes e seu dia-a-dia possa ser considerado periférico.
As perspectivas tradicionais que ignoram o gênero não apenas negligenciam as
contribuições das mulheres e o impacto que a política global tem sobre elas, mas
também justificam perpetuamente essa exclusão. Se as mulheres estão fora desses
domínios de poder, suas experiências e contribuições não são relevantes. As teóricas
feministas, como Ann Tickner, Cynthia Enloe e Christine Sylvester trabalharam para
demonstrar que essa distinção entre privado e público é falsa. Ao fazer isso, eles
mostram que áreas anteriormente excluídas são centrais para o funcionamento de RI,
mesmo que não sejam reconhecidas, e que a exclusão e inclusão de certas áreas no
pensamento tradicional de RI é baseada em ideias de gênero sobre o que importa e o
que não importa na política internacional.
O feminismo liberal
134
política e no trabalho. Eles defendem a visão de que os seres humanos são racionais e
devem usar sua racionalidade para raciocinar que os seres humanos têm direitos inatos
de buscar a realização na busca de seus interesses, desde que também respeitem os
direitos dos outros tanto quanto façam valer seus próprios direitos, o que é consonante
com o pensamento liberal clássico discutido em Teoria das Relações Internacionais I.
A proposta é similar a visão dos liberais clássicos, que acreditam que homens e
mulheres são iguais e se concentram na igualdade de gênero no trabalho e na política,
promovendo políticas para garantir a paridade nos parlamentos e estruturas legislativas.
135
O liberalismo defende a inclusão de mulheres como objetos de estudo: tanto as mulheres
em lideranças políticas, mulheres soldadas ou outras mulheres atuando fora dos papéis
tradicionais.
Isso fica claro quando notamos que, para o feminismo liberal clássico, o
tratamento igual perante a lei injusta não é justiça. O mesmo tratamento sob a lei não
garante os mesmos resultados. Feministas liberais clássicas sustentam que os direitos
das mulheres não são violados quando os cidadãos exercem seus direitos de maneiras
que criam resultados desiguais (EPSTEIN, 2002, p. 30). Os direitos de uma mulher são
violados apenas quando ela sofre interferência coercitiva, ou seja, quando há, ou há
uma ameaça de perda forçada de liberdade, propriedade ou vida.
136
gênero, classe social e nacionalidade. Esses questionamentos estão presentes em
outras abordagens feministas no campo, como o feminismo decolonial, discutido a
seguir.
O feminismo decolonial
137
Por um lado, há o importante trabalho sobre gênero, raça e
colonização que constitui os feminismos das mulheres negras nos
Estados Unidos, os feminismos das mulheres do Terceiro Mundo e as
versões feministas das escolas de jurisprudência, Lat Crit e a Teoria
Crítica da Raça ... A outra estrutura é aquela introduzida por Aníbal
Quijano e que é central para sua análise do padrão de poder global
capitalista. Refiro-me ao conceito de colonialidade do poder, que é
central para o trabalho sobre a colonialidade do conhecimento, do
ser e da decolonialidade. O entrelaçamento de ambas as vertentes de
análise me permite alcançar o que estou chamando, provisoriamente,
de "sistema de gênero moderno/colonial" (LUGONES, 2008, p. 73).
FONTE: <https://www.washingtonpost.com/local/obituaries/maria-lugones-feminist-philosopher-who-s-
tudied-colonialisms-legacy-dies-at-76/2020/07/21/dbea9250-cb58-11ea-91f1-28aca4d833a0_story.
html>. Acesso em: 22 set. 2021.
138
DICAS
ENTREVISTA COM OCHY CURIEL
139
difusa e de difícil definição, pois não está claro a literatura feminista pretende reconstruir
completamente o núcleo das RI ou rejeitar a literatura dominante da disciplina e
continuar a criticar “pelas margens”.
140
LEITURA
COMPLEMENTAR
AMÉRICA LATINA E O GIRO DECOLONIAL
Luciana Ballestrin
141
uma espécie de "moda" acadêmica, tendo penetrado tardiamente nas ciências sociais
brasileiras. Costa afirmou que o pós-colonialismo compartilha, em meio suas diferentes
perspectivas, do "caráter discursivo do social", do "descentramento das narrativas e
dos sujeitos contemporâneos", do "método da desconstrução dos essencialismos" e da
"proposta de uma epistemologia crítica às concepções dominantes de modernidade"
(Costa, 2006, p. 83-84).
Essa ponderação se faz importante, visto que, para certa crítica ao pós-
colonialismo (Feres Jr. e Pogrebinschi, 2010), isso determinaria a legitimidade de quem
com ele trabalha. Aquilo que é considerado clássico na literatura pós-colonial é passível
142
de questionamento, como a eleição dos próprios clássicos das ciências sociais (Connel,
2007). Porém, existe um entendimento compartilhado sobre a importância, atualidade
e precipitação da chamada "tríade francesa", Césaire, Memmi e Fanon, talvez pelo fato
de o argumento pós-colonial ter sido, pela primeira vez, desenvolvido de forma mais ou
menos simultânea.
A esses três clássicos soma-se a obra Orientalismo (1978), de Edward Said (1935-
2003), crítico literário de origem palestina, intelectual e militante da causa. O Oriente
como "invenção" do Ocidente denunciou a funcionalidade da produção do conhecimento
no exercício de dominação sobre o "outro". Estes quatro autores contribuíram para uma
transformação lenta e não intencionada na própria base epistemológica das ciências
sociais. De forma paralela, é indispensável apresentar outro movimento que acabou por
reforçar o pós-colonialismo como um movimento epistêmico, intelectual e político. Na
década de 1970, formava-se no sul asiático o Grupo de Estudos Subalternos - com a
liderança de Ranajit Guha, um dissidente do marxismo indiano - cujo principal projeto
era "analisar criticamente não só a historiografia colonial da Índia feita por ocidentais
europeus, mas também a historiografia eurocêntrica nacionalista indiana" (Grosfoguel,
2008, p.116), bem como a historiografia marxista ortodoxa (Castro-Gómez e Mendieta,
1998). Na década de 1980, os subaltern studies se tornaram conhecidos fora da Índia,
especialmente através dos autores Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri
Chakrabarty Spivak.
143
subalternos, através da reflexão sobre a prática discursiva do intelectual pós-colonial.
Para ela, o sujeito subalterno é aquele cuja voz não pode ser ouvida; sua crítica à
intelectualidade que pretende falar em seu nome é ao fato de que "nenhum ato de
resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato seja imbricado no
discurso hegemônico" (Almeida, 2010, p. 12).
144
incorporação do "Manifiesto" deu-se em uma coletânea de artigos lançada em 1998, sob
a coordenação de Eduardo Mendieta e Santiago Castro-Gómez, intitulada Teorias sin
disciplina: latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate. Na introdução
escrita pelos dois autores, eles explicam a inspiração do grupo:
145
Descrevendo-se como "um latino a viver nos Estados Unidos" (Grosfoguel, 2008, p. 115),
para ele [o]s latino-americanistas deram preferência epistemológica ao que chamaram
os "quatro cavaleiros do Apocalipse", ou seja, a Foucault, Derrida, Gramsci e Guha. Entre
estes quatro, contam-se três pensadores eurocêntricos, fazendo dois deles (Derrida
e Foucault) parte do cânone pós-estruturalista/pós-moderno ocidental. Apenas um,
Rinajit Guha, é um pensador que pensa a partir do Sul. Ao preferirem pensadores
ocidentais como principal instrumento teórico traíram o seu objetivo de produzir estudos
subalternos. (...).
FONTE: BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít. Brasília, n. 11, p. 89-
117, ago., 2013.
146
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:
147
AUTOATIVIDADE
1 Quais as diferenças entre as abordagens feministas liberais e decoloniais?
148
REFERÊNCIAS
ANIEVAS, A., MANCHANDA; N., SHILLIAM, R. Race and Racism in International
Relations. Routledge, 2015.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít.
Brasília, n. 11, p. 89-117, ago. 2013.
BHAMBRA, G. Forget Westphalia. The Modern State was Born from Colonialism.
Foreign Policy. 2020.
CHEW, A. What’s left? After “imperial feminist” hijackings. In: RILEY, R., MOHANTY, C.,
PRATT, B. Feminism and War: confronting US Imperialism. Zeb Books, 2008.
DOUGLASS, F. The Color Line. In: LOWELL, J. North American Review, 1881.
DU BOIS, W. The World and Africa: An Inquiry into the part which Africa has played in
World History. International Publishers, 1946.
149
EPSTEIN, R. Liberty, Patriarchy, and Feminism. University of Chicago Legal Forum,
1999.
MIGNOLO, Walter. The Darker Side of the Renaissance. Literacy, Territoriality and
Colonization. Ann Arbor: Michigan University Press, 1995.
RUTAZIBWA, O. IR Should Abandon the Notion of Aid and Address Racism and
Reparations. Foreign Policy. 2020.
SYLVESTER, C. The Contributions of Feminist Theory. In: SMITH, S., BOOTH, K.,
MARYSIA, Z. International Relations Theory: positivism and beyond. Cambridge
University Press, 1999.
150