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Parecer Técnico acerca da Lei nº 4.

847, de 03 de agosto de 2020 Macrozona


Turística de Palhoça.

Palhoça, 07 de janeiro de 2021

Apresentação

O presente Parecer Técnico foi elaborado a partir de demanda gerada pelo


coletivo de organizações ambientalistas e indígenas decorrentes r de preocupações
legítimas no que diz respeito à incompatibilidade da Lei nº 4.847, de 03 de agosto de
2020 com o ordenamento que inclui leis municipais, estaduais, federais e acordos
internacionais ratificados, especialmente no que diz respeito ao dever de proteção ao
meio ambiente e aos direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da
região. Este documento tem como objetivo realizar uma análise crítica a respeito da
forma e do conteúdo da referida Lei nº. 4.847, que institui Macrozona Turística de
Palhoça, no Estado de Santa Catarina.

I - Da Forma

Ao analisar os trâmites da Lei nº 4.847, de 03 de agosto de 2020, que institui a


Macrozona Turística, a qual, por sua vez, visa o ordenamento do solo do Município de
Palhoça, cria o Conselho e o Fundo de Desenvolvimento da Macrozona Turística, prevê
o instituto do Solo Criado e dá outras providências, constata-se que os Poderes
Executivo e Legislativo deixaram de observar normas gerais e específicas ao elaborar e
aprovar a proposta da Macrozona Turística do município de Palhoça, composta pelos
bairros Guarda do Embaú, Três Barras, Sertão do Campo, Albardão, Morretes, Pinheira,
Ponta do Papagaio, Praia do Sonho, Passagem do Massiambu, Massiambu Pequeno,
Enseada do Brito, Praia de Fora, Praia do Pontal, Furadinho e Guarda do Cubatão.

A violação ao direito à Consulta Livre Prévia e Informada, resguardado aos


povos indígenas nos casos de quaisquer deliberações que os afetem direta ou
indiretamente, decorre das inobservâncias de ordem formal que macularam a

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formulação e a aprovação da referida lei municipal. A Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, internalizada pelo ordenamento jurídico brasileiro por meio
do Decreto 5.051/2004 e atualmente em vigor nos termos do Decreto 10.088/2019,
orienta os processos de Consulta Livre Prévia e Informada junto aos povos indígenas e
será retomada abaixo.

II - Do Conteúdo

Quanto ao conteúdo, a presente avaliação preliminar fundamenta-se na análise


do Macrozoneamento proposto, de acordo com os anexos I, II, III, IV e V citados no
artigo 4º da Lei nº 4.847, disponibilizados no sítio eletrônico
http://www1.palhoca.sc.gov.br​.

É certo que a Constituição Federal de 88 confere aos municípios a competência


para legislar sobre temas de interesse local (Art. 30, I), suplementando a legislação
federal e a estadual no que couber (Art. 30, II), bem como para promover, observados
os limites de sua competência, o ordenamento territorial adequado, viabilizando que a
função social seja pelas áreas que compõem o Município, mediante planejamento e
controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (Art. 30, VIII). Adiante,
caberá traçar um panorama da legislação ambiental a fim de sustentar a hipótese de
ilegalidade do Decreto Municipal 10.088/2019

Em relação ao espaço da Baixada do Massiambu, onde estão localizados a maior


parte dos bairros mencionados na Lei nº 4.847, é necessário destacar que trata-se de área
ambientalmente frágil, composta por praias, restingas, dunas, áreas alagadas,
manguezais e cursos d’água. Essa condição motiva a categorização de vários destes
espaços como áreas de preservação permanente (APP), segundo a legislação federal
(Lei nº 12.651/2012). Em relação às áreas de margens de rios, a restrição legal à
ocupação destes terrenos iniciou-se já em 1867, quando foi editada a Lei nº 1.507, de 26
de setembro de 1867, que estabeleceu restrições ao uso das terras numa faixa de sete
braças nas margens dos rios. Uma braça equivale a 2,2 metros, portanto, as sete braças
da Lei nº 1.507 equivalem a 15,4 metros. Posteriormente, em 1934, foi editado o
Decreto nº 24.643, denominado Código de Águas, que estabelece, em seu art. 14, que

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“​os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do
alcance das marés, vão até a distância de 15m para a parte de terra, contados desde o
ponto médio das enchentes ordinárias​” – nesse aspecto, o Código de Águas manteve as
determinações da Lei nº 1.507/1867.

Em 1965, com a edição da Lei nº 4.771, o Código Florestal, em sua versão


original, definiu como APP a área equivalente à metade da largura dos cursos que
​ o caso
meçam de 10 (dez) a 200 (duzentos) metros de distância entre as margens. N
particular do rio da Madre, com largura de cerca de 100m, a APP projetada seria de
50m.

A Lei nº 6.766/79, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras


providências, também definia que “​ao longo das águas correntes e dormentes e das
faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de
uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências
da legislação específica”.

Considerados o histórico de ocupação na região da Baixada do Massiambu, os


usos ali estabelecidos, a antropização e urbanização da área, constata-se que as
intervenções deram-se, em boa parte, sem observar as normas legais vigentes, gerando
descaracterização de parte do ecossistema local.

A inobservância destas normas gera danos ambientais significativos, bem como


riscos associados a instabilidade de um terreno geologicamente recente e frágil,
refletidos na ampliação do assoreamento do leito dos cursos d’água, do
comprometimento da qualidade das águas superficiais e subterrâneas, inundações,
soterramento com movimentação de dunas, assim como a restrição ao livre fluxo gênico
da fauna e flora, numa área indicada pelo Mapa de Áreas Prioritárias para a
Conservação da Biodiversidade da Mata Atlântica e Campos Sulinos, editado pelo
Ministério do Meio Ambiente, como de ​extrema importância biológica​.

A extrema importância biológica da área da Baixada do Massiambu foi


reconhecida pelo Estado de Santa Catarina que, em 1975, quando da criação do Parque
Estadual da Serra do Tabuleiro, incluiu essa área em seus limites. Posteriormente, em

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razão da falta de uma política de controle sobre a onda crescente de ocupações
irregulares, prevalecendo a tese do fato consumado, os limites do referido parque foram
revistos, e estas áreas excluídas.

Cabe ressaltar que em relação a Lei Estadual n° 14.661/2009, que redefiniu os


limites do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, retirando desta Unidade de
Conservação de Proteção Integral relevantes áreas ecológicas na região Sul do
Município de Palhoça e transformando-as na APA do Entorno Costeiro, tramita no
Supremo Tribunal Federal ação que questiona sua constitucionalidade. Esta condição
atribui a parte do território que é objeto do referido Decreto Municipal o caráter de áreas
em litígio, com base na possibilidade judicial de aprovação da Ação Direta de
Inconstitucionalidade N° 182.808/2015-AsJConst/SAJ/PGR. Consequentemente, a Lei
Municipal nº 4.847/2020, trata da Macrozona Turística do Município de Palhoça, acirra
um quadro já estabelecido de insegurança jurídica e de conflitos sociais.

A análise da evolução da ocupação nesta região do município de Palhoça, assim


como em diversos outros locais do país, mostra um claro descompasso entre o
surgimento e a constatação dos problemas, bem como a inércia do Estado, ao que
alguns estudiosos denominam irresponsabilidade organizada. Nota-se a evolução e o
agravamento dos problemas, sem que haja a mobilização mecanismos jurídicos de
solução dos mesmos. A despeito da consciência da existência desses riscos pelo Poder
Público, a mesma é desacompanhada de políticas de gestão compatíveis com tais
problemas. Nesse contexto, há de ser considerado que proprietários dos imóveis
inseridos nas regiões da referida Macrozona, bem como o Poder Público, em níveis
municipal, estadual e federal, concorrem para a consolidação desse quadro de
degradação ambiental e urbanística. No caso destes últimos, é necessário destacar a
ineficiência da atuação normativa e fiscalizatória. Com a aprovação da Lei nº 4.847, o
Município de Palhoça agrava tal quadro de maneira ilegal, afrontando normas gerais
que regulam a proteção de espaços territoriais especialmente protegidos. As imagens
abaixo (figura 1) mostram a expansão da ocupação sobre áreas úmidas, com
aterramento de vegetação primária de Mata Atlântica, incluindo aterros para abertura de
novas ruas sem qualquer controle ou planejamento por parte da prefeitura de Palhoça, e
sem licenciamento pelo órgão ambiental do Estado de Santa Catarina, conforme
determina a Lei da Mata Atlântica.

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Figura 1​: Aterro sobre vegetação de área úmida para abertura de nova rua (seta) na
região da Praia do Sonho.

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O Estatuto da Cidade (Lei ​nº 10.257/2001) preconiza no seu artigo 4º, entre
outros instrumentos, o planejamento municipal, dando ênfase ao Plano Diretor e,
consequentemente, à disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo,
devendo está ser disciplinada via ​zoneamento ambiental​. Como a Macrozona Turística
instituída pela Lei nº 4.847/2020 incide sobre área ambientalmente frágil e com trechos
sujeitos a inundação periódica, o zoneamento ambiental mostra-se como instrumento
prévio essencial para o adequado trabalho de planejamento municipal. Todavia, não
houve elaboração do zoneamento ambiental. Assim, como consequência do
macrozoneamento disposto na lei nº 4.847/2020, todo o necessário processo de
planejamento municipal, necessário para a efetivação das normas ambientais e
urbanísticas, resta comprometido.
Importante lembrar que, dado as características peculiares da vegetação fixadora
de dunas, das baixadas úmidas periodicamente alagadas e dos manguezais, muitas
destas áreas são classificadas como vegetação primária, recebendo proteção especial da
Lei nº 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica). Além disso, o Estatuto da Cidade, em seu
artigo 42-B, determina que os Municípios que pretendam ampliar o seu perímetro
urbano após a data de publicação desta Lei deverão elaborar projeto específico que
 contenha, no mínimo, dentre outros requisitos, a "II - delimitação dos trechos com
restrições à urbanização e dos trechos sujeitos a controle especial em função de ameaça
  de desastres naturais" e, "VI - definição de diretrizes e instrumentos específicos para
proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural". A observância destes
requisitos mostra-se de relevante importância no caso da Baixada do Massiambu, e
como determinação legal não poderia ser negligenciado pelo Município – no entanto, a
edição do referido Decreto Municipal, distancia-se desse padrão de legalidade.

Ainda de maneira preocupante, o Decreto Municipal prevê a implantação de uma


Zona Industrial em área de extrema sensibilidade ambiental​, à qual não foi
dedicado qualquer tipo de estudo ou planejamento. Tal área inclui porções interiores da
região sul do Município, como os bairros Albardão, Três Barras, Massiambu Pequeno,
Sertão do Campo, as quais, em decorrência do parcelamento irregular do solo, já sofrem
com a descaracterização de suas áreas naturais e rurais. As ocupações existentes nessa
área sensível não são acompanhadas de projetos infra-estruturais, tais como de
saneamento, escolas, mobilidade urbana, segurança e postos de saúde. A situação

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narrada tende a agravar-se, pois, sobre a região, projetam-se demandas por habitação,
decorrentes do excedente populacional gerado pelo crescimento urbano dos balneários
Pinheira, Sonho, Guarda do Embaú e Passagem do Massiambu.

Como imagem exemplificativa dessa dinâmica, destacamos a localidade de Três


Barras, uma comunidade tradicional rural disposta nas proximidades da prevista “Zona
Industrial” e à margem do médio curso do Rio da Madre, o qual é enquadrado como
pertencente à "Classe 1", nos termos da Resolução CONAMA 357/2005. Nesse ponto,
também são escamoteados os objetivos de integração e complementaridade entre as
atividades urbanas e rurais, os quais devem levar em conta, de um lado, o
desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de
influência, e de outro, a adoção de padrões de produção, consumo de bens e serviços e
de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e
econômica do Município e do território sob sua área de influência.

A controvertida estratégia de desenvolvimento voltada para um ideal crescimento


urbano que prevê a inserção Zona Industrial, deliberada pela Prefeitura Municipal de
Palhoça e legitimada pela Câmara de Vereadores, também afronta Capítulo III do
 Estatuto da Cidade, visto que o mesmo determina que "o conteúdo do plano diretor
deverá ser compatível com as disposições insertas nos planos de recursos hídricos,
formulados consoante a ​Lei n​o​ 9.433, de 8 de janeiro de 1997​".

Constatam-se também, no processo de ordenamento territorial, incoerências em


relação ao ​Plano de Recursos Hídricos das Bacias do Rio Cubatão, Madre e Bacias
Contíguas,​ publicado no início de 2019 pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento
Econômico Sustentável. Nesse instrumento de planejamento e gestão das Bacias do Rio
da Madre e do Rio Massiambu, são apontadas condições críticas para expansão de
atividades que demandam recursos hídricos superficiais. O referencial imprescindível
destas considerações diz respeito à abrangência territorial das áreas protegidas
(Unidades de Conservação e Territórios Indígenas) e à correlacionada demanda de
diluição de efluentes, em especial na planície litorânea, no sentido de evitar a
intensificação dos índices de poluição e permitir salvaguardar um horizonte de
efetivação do enquadramento dos corpos hídricos como Classe Especial e Classe 1.
No sentido a fragilidade das áreas sobre as quais é projetada a Zona Industrial,
temos que as características hidrodinâmicas e biogeoquímica do rio da Madre

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promovem uma baixa capacidade de diluição dos efluentes em suas águas sob baixa
precipitação, comprometendo a qualidade da água (Cabral e Fonseca, 2019;
https://doi.org/10.1016/j.ecss.2019.05.010). Ou seja, existe uma suscetibilidade natural
do sistema às pressões antrópicas, como a poluição por efluentes domésticos e
industriais, o que é comum nas bacias hidrográficas costeiras da região
(http://tede.ufsc.br/teses/PPCA0019-D.pdf).

É importante ressaltar que o Município de Palhoça a região também abriga a


Terra Indígena Morro dos Cavalos, onde habitam diversas comunidades guarani, todas
elas titulares de direitos fundamentais e socioambientais propriamente indígenas.
Todavia, configurando mais uma camada de vícios contidos no processo que culminou
com a edição normativa que prevê a implementação da Macrozona, esses direitos foram
violados, principalmente no que diz respeito à consulta livre, prévia e informada,
prevista na já citada Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, e
desrespeitada nese caso.

Ao analisar o Mapa que espelha as alterações legislativas propostas, é possível


observar que parte significativa da Terra Indígena Morro dos Cavalos
(​https://guarani.map.as/#!/lands/554/?z=15.100000000000001&x=-27.82717517422049
3&y=-48.630267972625916​), demarcada conforme Portaria MJ nº 771 de 18/04/2008 e
Despacho nº. 201 da FUNAI, permanece em zonas limítrofes às áreas que foram objetos
das mesmas alterações. Assim, é nítido que as comunidades indígenas poderão ​sofrer
impactos diretos e indiretos como, por exemplo, o aumento de pressões sobre território
indígena e invasões do mesmo, devido a dinâmica social gerada pela construção civil.
No entanto, não houve a garantia de participação efetiva dos membros das comunidades
que compõem o território demarcado nas discussões que propuseram essas alterações.
Além disso, as alterações legislativas viabilizam a instauração de novas dinâmicas
econômicas e urbanísticas ao redor da Terra Indígena. Essas dinâmicas, por sua vez,
potencialmente afetam o equilíbrio da população indígena, da fauna e da flora no
território em questão.

Nos termos do artigo 7º da Convenção 169 da OIT, é garantido aos povos


indígenas o direito de decidir sobre suas prioridades, especialmente no que se refere a
processos de desenvolvimento adotados e que possam, de alguma maneira, afetar suas
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vidas, bem estar espiritual, terras e no que possa afetar, de alguma forma o seu próprio
sentido de desenvolvimento. Referido direito é uma consequência lógica do direito à
participação garantido aos Povos Indígenas, consubstanciado no direito à Consulta
Livre, Prévia e Informada, previsto no artigo 6º do diploma internacional do qual o
Brasil é signatário.
De acordo com o artigo 6º. ​os governos deverão consultar os povos, com o
objetivo de se chegar a um acordo ou obter o consentimento, toda vez que se
considerem medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los
diretamente​, como é o caso das legislações municipais sobre planejamento urbano e
turístico que também influem no funcionamento da cidade e de seus habitantes.

É importante ressaltar que o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, não


pode ser confundido com a realização de audiências públicas, pois se trata de um
mecanismo ​sui generis de participação social, já que o fundamento desse direito não é o
de mera participação, mas decorre do direito à autodeterminação, o qual “não se reduz a
uma atuação político-partidária e nem de natureza individual” (ALMEIDA;
DOURADO, 2013, p.13).

De acordo com o jurista e professor Joaquim SHIRAISHI (2019, p. 8), a


“consulta deve ter como objetivo a fluência de um diálogo, propiciando espaço
adequado para que os povos e comunidades digam ao outro quais fatores são
indispensáveis à sua identidade e porque se posicionam contra determinada medida”.
Há, portanto, um princípio de diálogo pleno que fundamenta o direito à CLPI, que, para
ser alcançado, precisa respeitar o direito desses povos de constituir suas próprias fontes
de informação, equipe de assessores técnicos e jurídicos, tradução de documentos e
informações para a língua dos povos e comunidades envolvidas, respeitando o tempo e
as suas formas internas de discussão, sempre respeitando os princípios da publicidade,
razoabilidade, entre outros (AYLWIN, 2013).

Além desses requisitos mínimos, a melhor doutrina sobre o tema defende que
todo o processo deve ser amplamente documentado, livre de qualquer pressão, seja
econômica, física ou moral, que deve ser realizado de maneira prévia, de boa-fé, e com
o objetivo sincero de se chegar a um acordo ou consentimento, mas sempre com
informações verdadeiras, completas, de fácil compreensão e adequada às circunstâncias
(SHIRAISHI, 2013, p. 8).

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De acordo com Aylwin (2013), o procedimento de consulta, para atender os
objetivos anteriores, deve ser precedido de uma consulta sobre a própria consulta,
momento em que possa ser elaborado um planejamento, com procedimentos adequados,
com pactuação de prazos em diálogo com as comunidades respeitando seus
procedimentos internos de deliberação e com mecanismos que garantam e incentivem a
participação, dispondo, inclusive de ferramentas e assistências necessárias, sob pena de
ilegalidade e anulação das medidas tomadas.

Ora, se a participação popular é um dos pilares para a aprovação de plano diretor


e de zonas turísticas, as ferramentas para a garantia da efetiva participação popular
devem ser adequadas às características complexas que conformam a população do local
onde essas leis serão debatidas e futuramente aprovadas, sob pena de ser esvaziado de
seu conteúdo e se transformar em mero requisito formal a ser cumprido para a
aprovação de legislação municipal.

No mesmo sentido citamos:

Uma vez que se percebe que, ao definirmos a cidade, definimos a nós mesmos
e ao outro, conclui-se que tal definição deve advir de escolhas conscientes
feitas pelas pessoas. Considera-se que o direito à cidade deve ser restituído às
pessoas, principalmente às minorias constantemente ameaçadas, exploradas e
exterminadas.

Vale, portanto, ponderar sobre a participação que vem sendo efetivada quanto
ao planejamento urbano nos municípios brasileiros. Em especial, analisar a
participação dirigida aos povos indígenas e comunidades tradicionais que
vivem nas cidades, que são grupos vulneráveis, vem historicamente sofrendo o
desapossamento de suas terras e são possuidores de identidades e direitos
próprios.

Esclarece-se que, no intuito de efetivar a devida participação popular na


elaboração, fiscalização e revisão do plano diretor, o Estatuto da Cidade exige
que sejam realizadas audiências públicas e debates envolvendo a população e
associações representativas de vários segmentos. O Estatuto determina

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também que seja garantido o acesso de qualquer interessado e a publicidade
dos documentos e informações produzidas.

(SHIRAISHI, 2013, p. 6)

Quaisquer estudo ou proposta realizados para revisão do atual Plano Diretor de


1993 – e ainda vigente – devem necessariamente observar as normas sociambientais,
incluindo aquelas constitucionais e infraconstitucionais que constituem a legislação
indigenista.

Fica evidente, a partir da análise dos anexos da Lei nº 4.847, que vários
dispositivos das Leis n​o 10.257/01 e n​o 12.651/12, bem como da própria Constituição
Federal, foram negligenciados com as alterações legislativas que são objeto deste
documento. No seu Art. 4​o​, a referida Lei Federal n​o 12.651/12 considera Área de
Preservação Permanente, em zonas rurais ou ​urbanas​:

I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente,


excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:

a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;

b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50


(cinquenta) metros de largura;

c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200
(duzentos) metros de largura;

...

VI - as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;

VII - os manguezais, em toda a sua extensão;

Já a Resolução CONAMA n​o 303/02, em seu Art. 3​o​, diz que constitui Área de
Preservação Permanente a área situada:

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IX - nas restingas:
a) em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar
máxima;

Não é facultado ao município alterar os limites estabelecidos nestas normas,


como faz a Lei nº 4.847, já que a competência municipal, segundo a Constituição
Federal, está vinculada a suplementação da legislação federal. Além do conflito do
zoneamento com os espaços de APP, parte do macrozoneamento incide sobre bens da
União. Nesse particular registra-se que a Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, por sua
vez, determina em seu Art. 1​o​:

É o Poder Executivo autorizado, por intermédio da Secretaria do


Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, a executar ações de identificação, demarcação, cadastramento,
registro e fiscalização dos bens imóveis da União, bem como a
regularização das ocupações nesses imóveis, inclusive de assentamentos
informais de baixa renda, podendo, para tanto, firmar convênios com os
Estados, Distrito Federal e Municípios em cujos territórios se localizem
e, observados os procedimentos licitatórios previstos em lei, celebrar
contratos com a iniciativa privada.​ ​(Redação dada pela Lei nº 11.481, de
2007)​. Ou seja, legalmente é a Secretaria do Patrimônio da União (SPU)
o órgão gestor dos terrenos de marinha, inclusive no tocante à
regularização de ocupações existentes.

Mesmo considerando que demanda-se uma reação do Poder Público Municipal a


um quadro de ocupações irregulares, a mesma não pode ser procedida sem a
observância do princípio constitucional da legalidade e de diversos direitos
fundamentais, inclusive os socioambientais. A Lei nº 12.651, em seu Art. 65 prevê que,
na regularização fundiária de interesse específico dos assentamentos inseridos em área
urbana consolidada e que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas
como áreas de risco, a regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do
projeto de regularização fundiária, o qual deverá, dentre outros requisitos, indicar as
faixas ou áreas em que devem ser resguardadas as características típicas da Área de
Preservação Permanente. Tal indicação deve ser acompanhada da devida proposta de

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recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de recuperação. Ainda, a
mesma Lei determina que, para fins da regularização fundiária de interesse específico,
ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, será mantida faixa não edificável com
largura mínima de 15 (quinze) metros de cada lado​, não abrindo, porém, a
possibilidade de novas ocupações. A Lei nº 4.847, de 03 de agosto de 2020 não
menciona qualquer projeto de regularização fundiária e sequer observa o limite
mínimo de 15 metros em diversos trechos do macrozoneamento​.

Parte considerável da planície da Baixada do Massiambu é ocupada por terrenos


sujeitos a inundação periódica, entremeados por elevações arenosas, ambos cobertos
originalmente por vegetação característica, definidas no Mapa da Área de Aplicação da
Lei nº 11.428 de 2006 genericamente como Formações Pioneiras. Essas, por sua vez,
são constituídas pelos complexos vegetacionais edáficos de primeira ocupação que
colonizam terrenos pedologicamente instáveis. Essa vegetação é então considerada
como primária, e a ela é conferida especial proteção pela Lei da Mata Atlântica (Lei nº
11.428 de 2006).
A manutenção de uma faixa protetora aos ambientes litorâneos é imperiosa
sobretudo em tempos de mudanças climáticas globais, mostrando-se de grande
relevância, já que estes espaços são particularmente suscetíveis aos processos de erosão
costeira e, quando irregularmente ocupados geram prejuízos incalculáveis a todos –
inclusive ao patrimônio do Estado.

As imagens abaixo (figura 2) mostram os efeitos da erosão costeira numa área


não ocupada (Ponta do Baixio) e outra com ocupação irregular (margem do rio da
Madre, Guarda do Embaú).

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Figura 2​: Efeitos da erosão costeira; primeira foto mostrando margem do rio da Madre
e a última mostrando mesma área após ressaca.

A omissão da Prefeitura Municipal de Palhoça é patente, não sendo raro os casos


de aterramento de áreas úmidas, corte de dunas e posterior ocupação com edificações
(figura 3), suprimindo assim vegetação primária do bioma Mata Atlântica. Segundo o
Art. 14 da Lei da Mata Atlântica, a supressão de vegetação primária e secundária no
estágio avançado de regeneração somente poderá ser autorizada ​em caso de utilidade
pública​, sendo exigidos estudos prévios qualificados. No caso concreto, não há

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qualquer elemento que justifique a indicação de “utilidade pública” para as citadas
intervenções.

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Figura 3​: Registros de aterramento de áreas úmidas (na primeira foto com uso de trator
da Prefeitura de Palhoça) e de supressão de dunas (Praia do Sonho).

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Na sequência apresentamos alguns casos para enumerar, de modo
exemplificativo, alguns conflitos gerados pela proposta de Macrozoneamento da Lei
Municipal nº 4.847/2020 com a legislação federal:

Na ponta do Papagaio, diversos espaços de APP estão zoneados como Zona


Turística - ZT e Zona Comercial - ZC (Figura 4; Anexo I da Lei nº 4.847/2020),
incluindo as áreas de propriedade da União e APP (figuras 5 e 6), cuja ocupação
irregular motivou o ingresso da ACP 5004264-32.2015.4.04.7200/SC, na qual o
município de Palhoça figura como réu. Mesmo sobre dunas com vegetação fixadora são
registradas intervenções com construção de edificações e implantação de infraestrutura
(figura 7).

Figura 4​: Ponta do Papagaio (Anexo I)

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Figura 5​. Ponta do Papagaio indicando as áreas de propriedade da União e espaço da
ACP 5004264-32.2015.4.04.7200/SC.

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Figura 6​: Placa indicativa da Ação Civil Pública.

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Figura 7​: Edificações e instalação de infraestrutura sobre dunas na Ponta do Papagaio.

Na região da Pinheira (figuras 8 e 9; Anexo I), destacamos a inobservância dos


limites de APP no entorno de cursos d’água. Ora pela delimitação de faixas com largura
inferior ao mínimo estabelecido na legislação federal (figura 8), ora pela completa
desconsideração destas faixas a partir de determinada altura do curso d’água (figura 9,
seta).

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Figura 8​: APP de curso d’água (Anexo I)

Figura 9​: Pinheira (Anexo I), APP de curso d’água interrompida (seta).

A figura 10 mostra o trecho do curso d’água que recebeu a faixa de APP no


macrozoneamento, e trecho do mesmo curso onde esta faixa, inexplicavelmente, deixa
de ser prevista.

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Figura 10​: Dois trechos de um mesmo curso d’água na Pinheira; na primeira foto
trecho com APP, na segunda o curso desprovido de APP no macrozoneamento.

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Na região da Guarda do Embaú (figura 11), os problemas são similares, porém
agravados pela condição do rio da Madre, curso d’água com largura próxima dos 100
metros em muitos trechos, e que, pelo efeito das ressacas, tem impactado diretamente as
ocupações irregulares instaladas na sua margem, conforme ilustrado na figura 2.
Destaca-se ainda que o rio da Madre é considerado, segundo critérios da Resolução
CONAMA n​o 357/2005, como de classe "especial", e está localizado na confluência de
três unidades de conservação da natureza: o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro; a
Área de Proteção Ambiental (APA) do Entorno Costeiro e a APA da Baleia Franca,
integradas a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

Figura 11​: Guarda do Embaú - APP de curso d’água (Anexo III)

Além do rio da Madre, que teve no Macrozoneamento a supressão completa de


faixa de APP e a desconsideração da existência de LPM/1831 (figura 12) demarcada na
região de sua margem ocupada com edificações, temos um segundo curso (figura 13) de
menor largura, para o qual, mesmo que houvesse aprovação prévia de um projeto de
regularização fundiária de interesse específico, a legislação exige uma faixa mínima de
25
APP com largura de 15 metros. Contudo, é importante frisar que estamos tratando não
de um projeto de regularização fundiária e sim de um zoneamento, o qual deve
respeitar, entre outras, as normas da Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei
12.651/2012), onde fica estabelecido em 30 m a largura da faixa mínima a ser protegida
nas margens de qualquer curso d'água natural. A supressão dessas faixas de APP, em
direto conflito com a legislação federal, constitui extrapolação da competência
legislativa suplementar do município, gerando perda da eficácia destes dispositivos. As
edificações, na sua maioria, são casas de veraneio ou de uso comercial (figuras 14 e 15).

Figura 12​: Imagem da região da Guarda do Embaú indicando LPM (azul) e LTM
(vermelho).

26
Figura 13​: curso d’água na Guarda do Embaú que não teve sua faixa de proteção de 30
metros mantida no macrozoneamento.

Figura 14​: Imagem das edificações implantadas na faixa de APP de curso d’água na
Guarda do Embaú.

27
Figura 15​: Edificações nas margens do curso d’água na Guarda do Embaú.

28
Na região da Passagem do Massiambu, encontramos também incongruências
inexplicáveis no Macrozoneamento, com supressão de faixas de APP na foz do rio
Massiambu e em trecho de um de seus afluentes (figura 16 setas) e em porções de
manguezal (figura 17), considerado pela legislação federal como APP em toda sua
extensão.

Figura 16​: APP de curso d’água (setas) e manguezal – Passagem do Massiambú


(Anexo IV)

29
Figura 17​: Manguezal na Passagem do Massiambu.

Sobre a cartografia apresentada

Para cumprir com a diretriz estabelecida no artigo 2​o do Estatuto da Cidade,


mostra-se necessário não apenas promover “debates, audiências e consultas públicas”
(Artigo 43, Inciso II), mas também que o Poder Público ofereça aos cidadãos uma
cartografia de qualidade, que apresente elementos necessários a uma boa legibilidade
pela população em geral, facilitando a compreensão da proposta e garantindo ao cidadão
a possibilidade de participação mais empoderada nos debates, audiências e consultas
públicas. Avaliando os anexos da Lei nº 4.847, de 03 de agosto de 2020, fica
30
evidenciado que a cartografia apresentada não oferece a qualidade técnica necessária e
apontamos abaixo alguns dos problemas identificados que contribuem negativamente
para a compreensão do material disponível ao público no sítio eletrônico da Prefeitura
de Palhoça:

a. Ausência de um Mapa-índice que permita a identificação da articulação espacial


das áreas representadas em cada Anexo, facilitando a localização espacial de
cada uma delas. Este Mapa-índice deveria ser apresentado em cada um dos
anexos;

b. Os cinco anexos são apresentados como Prancha Única, quando, na realidade,


constituem partes de um único documento que é a Lei que define o
Macrozoneamento. Sendo assim, deveriam ser apresentados como articulados
entre si;

c. Ausência da indicação do sistema de referência geográfica adotado;

d. Ausência de escalas gráfica e nominal, bem como de outros elementos básicos


de qualquer composição cartográfica (norte, convenções cartográficas);

e. Ausência dos limites das três unidades de conservação existentes na região: a


Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca (APABF/ICMBio), a Área de
Proteção Ambiental do Entorno Costeiro (IMA) e o Parque Estadual da Serra do
Tabuleiro (PEST/IMA);

f. O Anexo I não possui descrição na legenda para os seguintes elementos: APP,


AM, ATE. O Anexo III não possui descrição na Legenda para os seguintes
elementos: APP, AM;

g. Ausência de outros elementos que facilitariam a interpretação do


Macrozoneamento como a toponímia (nomes dos lugares – morros, ilhas,

31
Oceano Atlântico), BR 101, cursos d’água (somente alguns estão presentes) e
massas d’água, a contiguidade espacial com outras áreas zoneadas ou não
zoneadas (como a Passagem do Massiambu, representada como um vazio em
branco, por exemplo), limites municipais;

h. Ausência de um quadro de áreas (facilmente calculável através de ferramentas


de geoprocessamento) contendo a área total para cada Zona definida (ZC, ZCA,
ZTA2, ZT2, ZTE, ZI), apresentando a estimativa da área total passível de
ocupação em cada uma das zonas (levando-se em consideração a taxa de
ocupação prevista), bem como a estimativa da área total passível de aquisição de
solo criado nas zonas ZCA e ZTA2.

Sobre a suscetibilidade à inundação

Encontra-se disponível no sítio eletrônico da CPRM - Companhia de Pesquisas


em Recursos Minerais ​1​, bem como disponível para consulta através do Mapa Online de
Prevenção de Desastres​2​, a carta de suscetibilidade do município de Palhoça, datada de
2015 (revisão 3). De acordo com o mapeamento da CPRM, a suscetibilidade à
inundação é dividida em três classes: baixa, média e alta.

A Baixada do Massiambu apresenta suscetibilidade à inundação em grande parte


de seu território. A área da Pinheira adjacente ao Morro entre a Pinheira e a Guarda,
apresenta baixa e média suscetibilidade à inundação (Figura 18). No zoneamento
aprovado (Anexo I do Macrozoneamento), a área está caracterizada em grande parte
como ZT2 (Zona Turística 2), com algumas áreas menores de ZC (Zona Comercial), ZI
(Zona Institucional), ZTE (Zona Turística Especial) e APP (Área de Preservação
Permanente) (Figura 19).

Chama a atenção que as áreas zoneadas como ZT2, previstas para ocupar
terrenos com baixa e média suscetibilidade à inundação não façam distinção entre os
critérios urbanísticos previstos levando em consideração a Carta de Suscetibilidade.

1
http://www.cprm.gov.br/publique/Gestao-Territorial/Prevencao-de-Desastres/Cartas-de-Suscetibilidad
e-a-Movimentos-Gravitacionais-de-Massa-e-Inundacoes---Santa-Catarina-5087.html
2
​https://geoportal.cprm.gov.br/desastres/

32
A taxa de ocupação prevista (50%) em terrenos com suscetibilidade natural à
inundação pode induzir ao agravamento do problema, causando riscos e danos aos
moradores, bem como ônus ao Poder Público, na medida em que o aumento do
problema tende a criar demanda por obras de infraestrutura para o seu equacionamento
– salientamos ainda que taxa de ocupação é diferente de taxa de impermeabilização.
Desse modo, o morador poderia ocupar o terreno respeitando as normas urbanísticas,
mas concretando parte do seu terreno, levando a uma piora nas condições de
permeabilidade do solo.

Na Pinheira, a região em torno da Rua Aderbal Ramos da Silva está


caracterizada como Zona Comercial (ZC) e assentada sobre terrenos mapeados como de
baixa e média suscetibilidade à inundação. Essa zona prevê taxa de ocupação de 50%,
com possibilidade de ampliar até 80%, conforme a Lei 4847/2020:

Fica permitido para fins comerciais seguindo todos os critérios


de acessibilidade, ocupação e determinação de vagas de
estacionamento já previstos em Lei e demais itens solicitados
pelo Setor de Análise Técnica o percentual do pavimento térreo
para o máximo de 80% sem as exigências dos afastamentos
laterais e fundo.

Na Figura 18, a elipse em vermelho evidencia as duas classes (média e baixa) de


suscetibilidade à inundação na área adjacente ao Morro entre a Pinheira e a Guarda.

33
Figura 18​: Suscetibilidade à inundação no Bairro Pinheira: Fonte: CPRM, 2015.
Fragmento extraído da Carta de Suscetibilidade a Movimentos Gravitacionais de Massa
e Inundações – município de Palhoça (escala 1:50.000), disponível em:
http://rigeo.cprm.gov.br/jspui/handle/doc/15148​.

Na Figura 19, a elipse em vermelho corresponde aproximadamente à área de


baixa e média suscetibilidade à inundação identificada na Figura 18.

34
Figura 19​: Zoneamento no bairro Pinheira. Fonte: Prefeitura Municipal de Palhoça,
2020. Fragmento extraído do Anexo I - Zoneamento Região I. Disponível em:
http://www1.palhoca.sc.gov.br/macrozonaturistica/AnexoI.Lei4923.2020.Alterado.Mac
rozonaTuristicacomemendaCamara-Regiao1.pdf

A Figura 20 representa a suscetibilidade à inundação no bairro Guarda do


Embaú. A elipse em vermelho assinalada como (1) evidencia a alta suscetibilidade à
inundação em área no entorno da Estrada Geral do Morretes. Em área correspondente,
na Figura 21, identificamos três zonas cujos padrões urbanísticos não apresentam
compatibilidade com a classe de suscetibilidade à inundação alta. São elas: Zona

35
Comercial ZC (taxa de ocupação máxima entre 50% a 80%), ZTE (taxa de ocupação
máxima de 30%), e ZT2 (taxa de ocupação máxima de 50%).

Figura 20​: Suscetibilidade à inundação no bairro Guarda do Embaú. Fonte: CPRM,


2015. Fragmento extraído da Carta de Suscetibilidade a Movimentos Gravitacionais de
Massa e Inundações – município de Palhoça (escala 1:50.000). Disponível em:
http://rigeo.cprm.gov.br/jspui/handle/doc/15148​.

A área assinalada na elipse (2) compreende o centrinho da Guarda, já


estabelecido e assentado sobre terrenos com baixa a alta suscetibilidade à inundação.

36
Figura 21​: Zoneamento no bairro Guarda do Embaú. Fonte: Prefeitura Municipal de
Palhoça, 2020. Fragmento extraído do Anexo III - Zoneamento Região III. Sem escala.
Disponível em:
http://www1.palhoca.sc.gov.br/macrozonaturistica/AnexoIII.Lei4923.2020.Alterado.Ma
crozonaTuristicacomemendaCamara-Regiao3.pdf

A Figura 22 apresenta a suscetibilidade à inundação no bairro Morretes. As


linhas azuis representam rios e canais naturais de drenagem. Nas elipses (1) e (2) estão
identificadas áreas cujo zoneamento (figura 23) não apresenta compatibilidade com as
classes de suscetibilidade dos terrenos. Na elipse (1) encontram-se terrenos, em sua
maioria de alta a média suscetibilidade, cujo zoneamento aprovado prevê ZIS (Zona
37
Industrial Sustentável - taxa máxima de ocupação 80%) e ZT2 (Zona Turística 2 – taxa
máxima de ocupação 50%).

A área assinalada na elipse (2) corresponde à parte da Estrada Geral do Morretes


na confluência com a Rua Manoel Joaquim da Silveira. São, em grande parte, terrenos
com alta a média suscetibilidade e cujo zoneamento proposto (ZC – Zona Comercial)
admite taxa máxima de ocupação entre 50% a 80%.

Figura 22​: Suscetibilidade à inundação no bairro Morretes. Fonte: CPRM, 2015.


Fragmento extraído da Carta de Suscetibilidade a Movimentos Gravitacionais de Massa
e Inundações – município de Palhoça (escala 1:50.000). Disponível em:
http://rigeo.cprm.gov.br/jspui/handle/doc/15148​.

38
Figura 23​: Zoneamento no bairro Morretes (Fonte: Lauro Narciso, 2020). Montagem
realizada a partir dos arquivos do zoneamento e sobreposição com imagem de satélite.

No bairro Passagem do Massiambu, também ocorreu a aprovação de


zoneamento não compatível com a suscetibilidade natural dos terrenos, conforme as
Figuras 24 e 25. Na área em questão ocorrem trechos de terrenos com alta, média e
baixa suscetibilidade à inundação, cujas zonas previstas permitem taxas máximas de
ocupação de 50% (ZT2 - Zona Turística 2) até 80% sob certas condições (ZC – Zona
Comercial).

39
Figura 24​: Suscetibilidade à inundação no bairro Passagem do Massiambu (Fonte:
CPRM, 2015). Fragmento extraído da Carta de Suscetibilidade a Movimentos
Gravitacionais de Massa e Inundações – município de Palhoça (escala 1:50.000).
Disponível em: ​http://rigeo.cprm.gov.br/jspui/handle/doc/15148​.

40
Figura 25​: Zoneamento no bairro Passagem do Massiambu (Fonte: Prefeitura
Municipal de Palhoça, 2020). Fragmento extraído do Anexo IV - Zoneamento Região
IV. Disponível em:
http://www1.palhoca.sc.gov.br/macrozonaturistica/AnexoIV.MacrozonaTuristicaComE
mendaCamara-Regiao4.pdf

Critérios urbanísticos para áreas suscetíveis à inundação (baixa e média


suscetibilidade) devem ter justificativa fundamentada em estudos técnicos, aos quais
deve ser dada prévia e ampla publicidade. Frisamos que a Lei 10.257/2001 estabelece
em seu Artigo 42-A que:

(...) o plano diretor dos Municípios incluídos no cadastro


nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de
deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou

41
processos geológicos ou hidrológicos correlatos deverá conter:
(...) II - mapeamento contendo as áreas suscetíveis à ocorrência
de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou
processos geológicos ou hidrológicos correlatos; (...)IV -
medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à
mitigação de impactos de desastres; e (...)VI - identificação e
diretrizes para a preservação e ocupação das áreas verdes
municipais, quando for o caso, com vistas à redução da
impermeabilização das cidades.

§ 1​o​ A identificação e o mapeamento de áreas de risco levarão


em conta as cartas geotécnicas.

Resta, portanto, evidenciado que o Macrozoneamento aprovado através da Lei


4.847/2020 e a alteração de zoneamento aprovada pela Lei 4.923/2020, mostram
desconformidade com o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), pois além de
configurarem um fracionamento do Plano Diretor, vedado pela Lei 10.257/2001 (Artigo
40, § 2​o​: “O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo”),
não atende ainda aos requisitos dispostos nos artigos 42 e 42-A da referida lei, que
tratam do conteúdo mínimo obrigatório dos planos diretores.

A suscetibilidade à inundação associada ao solo arenoso altamente permeável,


que domina as áreas baixas da planície, reforça o alto potencial de contaminação das
águas subterrâneas superficiais, e consequentemente das águas superficiais, pelo esgoto
doméstico e industrial. A poluição por esgoto doméstico já tem sido registrada na bacia
hidrográfica do rio da Madre e Massiambu, afetando a saúde única desses ecossistemas,
com perdas de importantes serviços ecossistêmicos, como a qualidade e quantidade do
pescado (Cabral e Fonseca, 2019).

O planejamento territorial também deve considerar as mudanças climáticas em


curso, com os eventos extremos e o aumento do nível do mar, com foco nos desastres
naturais como indicado anteriormente. Chuvas extremas e o aumento da frequência e da
intensidade dos ciclones extratropicais são realidades na região (Grimm e Tedeschi,
2009). Esses eventos geram o aumento agudo do nível do lençol freático e do mar,

42
respectivamente, amplificando o alagamento nas áreas já suscetíveis e a erosão do solo
arenoso, promovendo a perda de bens materiais e de vidas humanas.

O aumento crônico do nível do mar, resultado do aquecimento do oceano e do


derrretimento das calotas polares, foi recentemente projetado para 2050 e está
disponível pelo endereço ​https://coastal.climatecentral.org/map/12/-48.6428/-27.9049
(acesso em janeiro de 2021). Essa projeção ​considera a elevação do terreno e o aumento
do nível do mar pelo cenário conservador do IPCC (Kopp et al. 2014). Ao considerar a
região em análise (Figura 26), o aumento crônico do nível do mar irá afetar a região
(área vermelha na figura) e promover alagamento e erosão, amplificando as demais
escalas temporais e espaciais de ação dos desastres naturais. As medidas necessárias
para remediar esses desastres teriam um custo extremamente vultoso para os cofres
públicos e, além disso, têm pouca efetividade na escala temporal. As áreas úmidas
continentais e marinhas, manguezais e restingas são sistemas que têm como função
amortecer essas forças físicas naturais, além de servirem como filtros biogeoquímicos
aos poluentes que afetam o meio hídrico. Reforça-se, assim, a necessidade do
planejamento do território com base no planejamento ambiental e ecossistêmico, como
previsto em lei.

Figura 26: Projeção de áreas potencialmente afetadas com futura elevação do nível do
mar.

43
Fauna da Baixada do Massiambu

As restingas do sul do Brasil apresentam notável riqueza e diversidade de


espécies da fauna de Mata Atlântica, além de características zoogeográficas que elevam
este ecossistema ao status de ambiente de relevante interesse biológico para muitos
taxa​. Exemplo disso está na fauna que ocupa o complexo ambiente formado pelo
mosaico de vegetação, cordões arenosos, dunas, banhados e cursos d’água que
compõem a Baixada do Massiambu. Apesar de ainda pouco conhecida, a fauna da
restinga da região apresenta aproximadamente 140 espécies de aves, 26 de mamíferos,
24 de répteis e 15 de anfíbios.

Nesse contexto, a perda e alterações do hábitat são, sem dúvida, os impactos


negativos mais pronunciados à fauna da restinga. Apesar da variada, constante e intensa
pressão sobre a fauna, decorrente da ocupação humana, a fauna da Baixada do
Massiambu é persistente e ainda ocupa as formações de restinga. A profusão de
micro-habitats sob a cobertura de vegetação arbóreo-arbustiva e herbácea, que ocorre
em áreas úmidas e secas, ainda mantém sua funcionalidade ecológica, visto que gera
condições para a manutenção de inúmeras espécies da fauna de Mata Atlântica, em
especial aquelas ameaçadas de extinção no âmbito estadual, nacional e internacional.

Fauna ameaçada de extinção

As áreas de restinga da Baixada do Massiambu mantêm considerável número de


espécies ameaçadas de extinção, de diferentes grupos da fauna. São espécies muitas
vezes ameaçadas em diferentes escalas (estadual, nacional e internacional), algumas
restritas aos ambientes heterogêneos como as áreas de banhados encontradas na Baixada
do Massiambu.
Exemplo emblemático de restrição de ocupação de ambiente é a ave
bicudinho-do-brejo ​(​Formicivora acutirostris)​ , que vive quase que exclusivamente em
poucas formações de banhado (distribuição disjunta) na planície litorânea entre o estado
de São Paulo e Santa Catarina. E as áreas úmidas da Baixada do Massiambu onde
dominam ciperáceas e tifáceas são locais onde se encontra a população mais austral de
toda sua distribuição. Isto exemplifica o grau de importância das áreas de banhado da
restinga da Baixada do Massiambu, que apesar de bastante ameaçada, contribui para que

44
esta pequena ave permaneça fora da lista de espécies extintas na natureza. Outra espécie
que merece especial atenção é o ​gato-do-mato-pequeno (​Leopardus guttulus)​ ,
ameaçado de extinção em âmbito nacional e internacional. Esta espécie tem o estado de
Santa Catarina como área de maior importância em toda sua distribuição. Além deste
importante aspecto, a presença do gato-do-mato-pequeno na restinga da Baixada do
Massiambu é igualmente relevante pois ocupa formações estruturalmente heterogêneas
e desempenha suas atribuições funcionais/ecológicas praticamente sem competidores
neste lugar, o que configura um verdadeiro ‘laboratório’ para estudos que abordam a
relação competitiva intra e interespecífica entre carnívoros e suas presas.
Considerando as informações contidas em estudos publicados, são registradas
pelo menos cinco espécies de mamíferos ameaçados de extinção, três aves, três anfíbios
e um réptil com ocorrência confirmada para Baixada do Massiambu. Com exceção de
algumas espécies, a maioria ocupa as formações de restinga de forma indistinta, não
havendo o uso exclusivo de determinado micro-habitat.
Cabe ressaltar que tais grupos da fauna ainda carecem de estudos mais
aprofundados para se ter um levantamento de espécies satisfatório. É bastante razoável
afirmar que o número de espécies ameaçadas de extinção seja ainda maior,
especialmente se contabilizados outros grupos, como invertebrados terrestres, voadores
e aquáticos e peixes, que podem ser considerados grupos subamostrados, praticamente
desconhecidos para restinga da Baixada do Massiambu.

CONCLUSÕES

O presente documento apresenta elementos que demonstram que o processo de


elaboração da Lei nº 4.847, de 03 de agosto de 2020, que institui a macrozona Turística
com a finalidade de ordenamento do solo do Município de Palhoça, deixou de observar
diversas determinações constantes no ordenamento jurídico nacional, tanto no que diz
respeito a seu processo formal de formulação, quanto aos aspectos técnicos associados
ao zoneamento definido na referida lei municipal. Como destacado, a inobservância dos
procedimentos de garantia da efetiva participação social, de consulta prévia às
comunidades indígenas e a inexistência de estudos para determinação técnica de
condicionantes para o zoneamento compõem um zoneamento que afronta diretamente
45
os princípios de um Estado Socioambiental de Direito. Os elementos trazidos neste
documento mostram que a Lei Municipal aprovada pelos parlamentares do município de
Palhoça afastaram-se do padrão de legalidade ao qual o ordenamento jurídico brasileiro
exige que estes se atenham.

O zoneamento aprovado, considerando as características dos locais sobre os


quais ele incide, tende a ampliar problemas crônicos atualmente observados na região,
eleva o grau de vulnerabilidade da população aos efeitos de desastres naturais, gera
maior comprometimento da qualidade ambiental e tende a elevar o grau de insegurança
jurídica. Ressaltamos que os aspectos destacados no presente documento devem balizar
qualquer processo de planejamento urbano, já que sua finalidade maior é orientar a
ocupação de modo a conciliar o desenvolvimento da comunidade com a garantia de
outros direitos. Pelo exposto, as entidades signatárias do presente documento solicitam
ao Ministério Público que adote as medidas cabíveis e necessárias para o
questionamento da Lei nº 4.847, de 03 de agosto de 2020, buscando garantir a
observância dos princípios básicos de um processo de planejamento urbano
minimamente compatível com o ordenamento jurídico vigente.

Atenciosamente

Comissão Guarani Yvyrupa; Centro de Formação Tataendy Rupa; Fundação Mata


Atlântica e Ecossistemas; Instituto Tabuleiro; Rede Brasileira de ONGs da Mata
Atlântica; SOS Rio da Madre.

REFERÊNCIAS

46
Cabral, A., Fonseca, A., 2019. Coupled effects of anthropogenic nutrient sources and
meteo-oceanographic events in the trophic state of a subtropical estuarine system.
Estuar. Coast. Shelf Sci. 225, 106228. https://doi.org/10.1016/j.ecss.2019.05.010.

Grimm, A.M., Tedeschi, R.G., 2009. ENSO and extreme rainfall events in South
America. J. Clim. 22, 1589–1609. ​https://doi.org/10.1175/2008JCLI2429.1​.

Kopp et al. (2014). Probabilistic 21st and 22nd century sea-level projections at a global
network of tide-gauge sites. Earth’s Future, 2(8), 383-406.

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