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Braga
Lembrei a história contada por um amigo. Mais de uma vez insistira com certa
moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não queria ir. Ele um dia
telefonou: “Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha, fazer molho
pardo…” achou que a recusa da moça era menos dura. E insistiu mais: —
Vem… tem manga carlotinha…
É um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso; inclusive, para falar a
verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o indicador o gelo que
boiava no uísque, e como seria insuportável não fazer a pergunta, ergui os olhos
e fiz: — Mas, afinal, o que foi que o médico disse?
Eu disse francamente que não sabia; apenas tinha a impressão de que a palavra
era feminina; mas também podia ser masculina; era paroxítona ou átona, mas
também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e, ainda por cima, tanto se podia
dizer sindroma como síndrome, e até mesmo sindromo.
Em todo o caso — juntei — não era bem uma doença; era um conjunto de
sintomas… eu falava assim não para mostrar sabença, mas para mostrar
incerteza, e ignorância da verdade verdadeira — ou até uma certa indiferença
por essas coisas de palavras.
Confessei-lhe que há muitas palavras que evito dizer porque nunca estou muito
seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado há palavras que a gente só
conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até existe uma cidade
assim, uma cidade de que ninguém se lembraria jamais se não tivesse apenas
duas letras e não fosse terra de Abraão ou cidade da Caldéia: UR. Se os
charadistas do mundo inteiro formassem uma pátria a capital teria de ser UR. Eu
falava essas bobagens com volubilidade. Ela disse: — Todo mundo, quando tem
uma doença como essa minha, procura se enganar. Eu, não.
Chamei-a de pessimista, aliás ela sempre fora pessimista.
Senti que ela ia dizer o nome da doença, e que tudo estaria perdido se ela
pronunciasse aquele nome; seria intolerável.
Era insuportável pensar que alguém assim pudesse estar condenada. Dentro de
mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão de que sua cabeça
estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós, na penumbra do
bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.
Ela achava que não era justo falar em virtuosidades acrobáticas; o que havia era
uma renúncia a todo expressionismo e a toda pantomima, a beleza do bale
puro… E no meio da discussão me chamou de literato; mas juntou logo um
sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já tivessse dito uma vez: — Foi uma
pena você não ter estudado bale.
Pensava no seu corpo de pernas longas, na linha dura das ancas, nos seios
pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua. Ela me censurou por beber
tão depressa, e de repente: — E esse seu bigode agora está horrível.
– Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus
bigodes?
Como as pessoas costumam dizer, uma risada de cristal. Clara, alegre, tilintante
como o cristal. O cristal, que se parte tão fácil.