Você está na página 1de 5

José Ribeiro Ferreira Matrizes Greco-Romanas na Arte Ocidental

in FERREIRA, José Ribeiro, Civilizações Clássicas I – Grécia, Universidade Aberta, Lisboa, 1996, pp.
119-122.

ESPARTA: A PÓLIS OLIGÁRQUICA

Esparta, a cidade rival de Atenas, constitui um caso especial e um exemplo típico de


oligarquia. Caracteriza-se por uma estratificação social de um modo pouco vulgar; por
constituir uma máquina de guerra, sempre pronta para o combate; por uma vida familiar
muito limitada; pelo empenho em evitar a evolução e a mudança, fechando-se aos contactos
externos; pelo uso de um sistema monetário muito primitivo.

A EVOLUÇÃO DESDE A ÉPOCA ARCAICA

Esparta foi uma cidade que se desenvolveu muito cedo, possivelmente a partir de um
sinecismo de povoações, que se teria verificado antes de meados do século VIII a. C.1
Até aos fins do século VII ou inícios do VI a. C., Esparta era uma sociedade aberta e
hospitaleira, que tinha uma cultura florescente e era visitada e escolhida para local de
residência por poetas e artistas estrangeiros. Dada à arte, poesia, música, era então uma pólis
aristocrática que não se distinguia das demais. A arqueologia mostra que, como qualquer
outra cidade aristocrática da época arcaica, importava e exportava objectos de arte, cerâmica e
produtos de luxo2. O isolamento só começou a verificar-se a partir do século VI a. C., devido
a transformações ocorridas nos fins do século anterior e primeira metade desse, motivadas
possivelmente pelas lutas sociais subsequentes à Segunda Guerra Messénica (c. 650-620 a.
C.). Essas reformas, lentas e progressivas, deram a Esparta a feição característica de cidade
quartel, fechada e imobilista, que apresenta na época clássica.
Hoje admite-se que duas foram as etapas decisivas: uma anterior a Tirteu, em que se
teria verificado a criação e implantação das instituições ou órgãos políticos (a "grande rhêtra)

1
- Vide J. T. Hooker, The ancient Spartans (London, 1980), pp. 99 sqq.
2
- Vide C. M. Bowra, Greek Lyric Poetry (Oxford, 1961, repr. 1967), sobretudo pp.16-20 e 66-73; P. Janni, La
cultura de Sparta arcaica (2 vols, Roma, 1965-1970); A. J. Podlecki, The early Greek poets and their times (Vancouver,
1984), pp.89-116.

1
José Ribeiro Ferreira Matrizes Greco-Romanas na Arte Ocidental

e uma segunda, iniciada por volta de 600 a. C., a que a transformou na cidade fechada e
militarizada3.

Os cidadãos, os Espartanos, só podiam dedicar-se à guerra e à preparação para ela. Com


uma vida familiar reduzida, viviam em grupos, combatiam em grupos, em grupos tomavam as
refeições. A alimentação era-lhes fornecida pelos hilotas que trabalhavam no seu lote de terra.
Cidade oligárquica totalmente virada para a guerra, era natural que, para Esparta, a
excelência do homem (a aretê) fosse o ideal heróico, a coragem e destreza no combate — o
ideal já proposto na Ilíada — e que, em consonância com isso, nos primeiros séculos da
existência da pólis, a educação do jovem fosse essencialmente militar e visasse a
aprendizagem directa ou indirecta do manejo das armas. Esparta fora das primeiras (senão a
primeira) a introduzir a hoplitia, nos fins do século VIII ou inícios do VII a. C., em detrimento
da cavalaria. Tornou-se uma potência militar temida e respeitada e granjeou grande prestígio.
Na sua cultura o ideal militar ocupava papel dominante.
Tirteu, por exemplo, compunha poemas de incitamento ao combate, entoados pelos
soldados espartanos, quando se dirigiam para a batalha (cf. Ateneu 14. 630e), nos quais o
poeta põe em relevo o heroísmo e a valentia guerreira (fr. 10 West) e exorta os cidadãos a
manterem-se firmes nas primeiras filas, pois essa é a verdadeira superioridade (fr. 12 West,
vv. 1-9):

Eu não lembraria nem celebraria um homem


pela sua excelência (aretê) na corrida ou na luta,
nem que tivesse dos Ciclopes a estatura e a força
e vencesse na corrida o trácio Bóreas,
nem que tivesse figura mais graciosa que Titono,
ou fosse mais rico do que Midas e Ciniras,
ou mais poderoso que Pélops, filho de Tântalo,
ou tivesse a eloquência dulcíssima de Adrasto
ou possuísse toda a glória — se lhe faltasse a coragem valorosa.4

3
- Vide W. G. Forrest, A History of Sparta 950-192 B. C. (London, 1968), pp. 40-68; P. Cartledge, Sparta and
Lakonia. A regional history 1300-362 B. C. (London, 1979), pp. 102-159.

- Tradução de M.H. da Rocha Pereira, Hélade (Porto, 92005), Hélade, p. 121.


4

2
José Ribeiro Ferreira Matrizes Greco-Romanas na Arte Ocidental

Mas nessa época, a par da guerra e da preparação para ela, deparamos com uma cultura
que lentamente evoluía e se afirmava. Os nobres, além de se dedicarem a actividades
relacionadas com o governo e defesa da pólis, levavam uma vida de requinte, apreciavam a
arte, a poesia e a música e entregavam-se aos exercícios físicos. Neste domínio, Esparta não
se distinguia das demais, a não ser por as ter superado nesses primeiros tempos. Do século
VIII aos inícios do VI a. C. Esparta era um grande centro de cultura. Era na opinião de
Marrou a metrópole da civilização helénica e não apresenta de modo algum a imagem
tradicional de cidade severa, guerreira e desconfiada que possuirá na época clássica5.
Sobressaiu naturalmente no domínio da preparação atlética, com inovações ao nível dos
métodos de treino e da prática desportiva e com uma série significativa de vitórias olímpicas6.
Mas foi também cultora da poesia (Tirteu e Álcman) e da música, com duas escolas que
exerceram alguma influência no século VII a. C., a uma das quais está ligado nome de
Terpandro. Segundo Marrou, colocada no centro da cultura grega, a música assegura a ligação
dos diversos aspectos da formação do jovem: pela dança associa-se à ginástica e pelo canto
veicula a poesia7. Todos estes aspectos confluíam nas grandes manifestações colectivas das
festas religiosas, com procissões solenes, competições várias — atléticas, musicais, entre
outras.
Nas crises do século VII a. C., por que passam as diversas póleis gregas, Esparta parece
trilhar um caminho diferente do da maioria das outras cidades, em especial do de Atenas. A
partir de fins do século VII a. C., possivelmente em consequência de lutas sociais
subsequentes à Segunda Guerra Messénica (c. 650-620 a. C.), a cidade da Lacónia passa a
valorizar a parte física e militar da sua formação, em detrimento da intelectual. Tudo parece
indicar que a aristocracia, talvez chefiada por Quílon, põe termo à agitação popular e
estabiliza o seu triunfo por meio de instituições apropriadas — as reformas que a tradição
transmitiu sob o nome de Licurgo. A atribuição a esse legislador do cosmos espartano (para
utilizar o termo de Heródoto 1. 64. 5) suscita alguma dificuldade. Em primeiro lugar, não
sabemos se o legislador teve existência real ou se é uma criação lendária.

5
- Histoire de l' éducation dans l' Antiquité, p. 46
6
- Refere Marrou, Histoire de l' éducation dans l' Antiquité, pp. 48-49 que entre 720 e 576, de 81 vencedores
conhecidos, 46 são espartanos. Segundo Tucídides 1. 6 foram eles que introduziram na prática desportiva a nudez total do
atleta e a aplicação de óleo no corpo.
7
- Histoire de l' éducation dans l' Antiquité, p. 49.

3
José Ribeiro Ferreira Matrizes Greco-Romanas na Arte Ocidental

- Mencionado pela primeira vez por Simónides de Céos (fr. 123 Page =
Plutarco, Licurgo 1. 4), nunca os fragmentos de Tirteu se lhe referem.
- Os dados de Heródoto e de outros autores gregos a seu respeito são
contraditórios.
- Foi objecto de culto em Esparta (cf. Heródoto 1. 66. 1; Plutarco, Licurgo 31.
4; Pausânias 3. 16. 6) e é contrário ao espírito religioso grego deificar homens.

Tudo isto parece apontar para a conclusão de que a biografia de Licurgo é


fundamentalmente um produto lendário. Penso, no entanto, que se não deve ir ao ponto de
negar a existência real do legislador8. De qualquer modo, a ter existido, seria uma figura não
posterior ao século IX a. C., portanto de uma época muito anterior às transformações que
progressivamente deram a Esparta o cariz da época clássica.
A formação do Estado espartano foi fruto de uma longa evolução, com vários momentos
e estádios, uns mais determinantes do que outros. Não é de excluir por completo a
participação de Licurgo nessa longa caminhada. Não terá sido porém o autor das reformas dos
fins do século VII e primeira metade do VI a. C., a parte mais significativa dessa
transformação. Essas talvez se devam atribuir a Quílon, que a tradição incluiu no grupo dos
Sete Sábios e que foi, sem dúvida, um legislador de grande importância na afirmação de
Esparta no mundo grego9.

8
- Heródoto 1. 64. 4 e 7. 204 dá-o como tio e tutor do rei Leobotes, doze gerações anterior a Leónidas que
morreu em 480 a. C., o que nos leva para uma datação nos inícios do século X a. C.; Simónides, fr. citado considera-o tio
de Carilau, um euripôntida que reinou até 885; as outras datações antigas oscilam por um espaço de cinco séculos, entre a
época dos Heraclidas e o século VII a. C. Estas divergências motivaram já as dúvidas de Plutarco, Licurgo 1. Acresce,
além disso, que as suas reformas são atribuídas por Helanico (FGrHist. 4 F 116 = Estrabão 8. 5. 5, 366a) a Eurístenes e
Procles; que o estudo da etimologia do nome a nada tem conduzido e que são também suspeitos os nomes do pai (Êunomo
ou Prítane: Plutarco, Lic. 1) e o do irmão (Eucosmo: Pausânias 3. 16. 6); que a tradição grega tende a atribuir a um só
legislador todas as instituições. Sobre o assunto vide A. Toynbee, Some problems of Greek history (Oxford, 1969), pp.
274-283.
9
- Quílon, um dos chamados Sete Sábios gregos (cf. Heródoto 1. 27. 2; Plutarco, Mor. 35f), era conhecido pela
sua piedade (cf. Plutarco, Mor. 35f) e pela sua sabedoria prática (cf. Heródoto 7. 235. 2) e teve culto como herói em
Esparta. Exerceu o cargo de éforo por meados do século VI a. C. e, com base em Diógenes Laércio 1. 68, há quem o
considere o criador do eforato, mas é mais provável que o tenha reformado, contibuindo para cimentar consideravelmente
a influência dessa magistratura na sociedade espartana. É uma figura ligada à consolidação da Simaquia do Peloponeso, à
grande transformação sofrida por Esparta e à propaganda e luta de Esparta contra os regimes tirânicos: com a sua ajuda
foram alguns desses regimes afastados de cidades-estado gregas (cf. Plutarco, De Malig. Her. 21).
Sobre o problema da cronologia das transformações vide Gomme, A historical commentary on Thucydudes I
(Oxford, 1945), pp. 128 sqq.

4
José Ribeiro Ferreira Matrizes Greco-Romanas na Arte Ocidental

A cidade começa a enquistar-se, fecha-se e perde vitalidade cultural. Erige em ideal


máximo a defesa da pólis e centra a sua atenção na actividade militar, a que sujeitava toda a
vida do cidadão, desde os mais tenros anos. Esparta é um caso paradigmático de empenho na
preparação do jovem para a guerra. Essa pólis transformara-se numa máquina de combate:
vivia para ele e em função dele. Verdadeira cidade-quartel, as suas instituições haviam sido
pensadas e dispostas para que os cidadãos estivessem sempre preparados e prontos a entrarem
em combate. O tipo de educação instituído tinha o nome técnico de agogê; organizada em
função das necessidades da pólis, toda ela estava nas mãos do Estado

Você também pode gostar