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“Tudo à minha volta era uma vasta extensão: não se ouviam viajantes ou
pássaros. À noite, havia lampejos de fogos monstruosos, brilhando como estrelas;
durante o dia, os ventos assustadores abraçavam a areia e a espalhavam como
chuva. Mesmo que eu tivesse encontrado este desastre, o meu coração não estava
com medo. Minha única preocupação era a falta de água, à medida que, com sede,
eu não podia continuar. Por quatro noites e cinco dias eu não tinha uma única gota
para aliviar a minha garganta. [...] Mas não importava o quão debilitado eu estava,
continuei repetindo o nome de Kuan-yin em silêncio. Eu também rezei para os
Bodhisattva, “Esta viagem do Hsuan-tsang não é levada a cabo por fama ou lucro, é
apenas para procurar a lei correta da verdade incomparável. Eu sempre soube que
tua misericórdia se estende a todos os seres vivos e que a tua missão é salvá-las.
Agora estou em perigo — não notastes?”. Através de orações, eu mantive meu
coração em um estado de esperança incessante.” (p. 109)
“[...] O mastigar e triturar dos ossos lembrou Tripitaka do som que um tigre
faz ao devorar uma ovelha. A cena era tão horrenda e assustadora que a alma de
Tripitaka quase deixou o seu corpo. Os ogros ainda estavam mastigando ossos e
sugando tutano quando o Sol se pôs e ficou escuro, antes que eles começassem a se
retirar. Tripitaka dormiu nas profundezas do desespero, tendo abandonado toda a
esperança de escapar com vida.” (KHERDIAN, 2003, p. 148).
Outros episódios ainda podem ser citados como provas de sua covardia, tal qual a sua
pouca demonstração de fé em sua tarefa de seguir uma dieta estritamente vegetariana e a
promessa quebrada a uma das criaturas que ajudaram-no a concluir a sua missão.
Hsia continua dizendo que, onde em alegorias ocidentais como Everyman (1530) e
The Pilgrim's Progress (1678) o herói passa por uma jornada cuidadosamente mapeada para
permitir que ele aceite a plenitude da morte e entre no céu, Tripitaka não mostra nenhum sinal
de evolução espiritual durante a jornada cheia de calamidades. Contraditoriamente, ele fica
mais rabugento e mal-humorado à medida que sua jornada avança. Mesmo enquanto ele está
sendo transportado para a Outra Margem da Salvação para encontrar o próprio Buda e pegar
as escrituras, ele se ressente do fato de que o Macaco o empurrou para o barco sem fundo e o
deixou encharcado.
Mas é claro que a manifestação deliberada de medo e credulidade de Tripitaka,
somada à sua obsessão fanática com a conduta correta e preocupação persistente com o seu
próprio bem estar são todos partes da sátira planejada por Wen Cheng’en, tanto como o
comportamento grosseiro de Pigsy, cuja relação comicamente conflituosa com Macaco já foi,
por várias vezes, comparada à dos personagens Dom Quixote e Sancho Pança.
Também é interessante como ele se valeu das propriedades humanas de Tripitaka para
tornar indispensável a ajuda dos outros peregrinos, que apesar de possuírem habilidades
físicas e espirituais muitas vezes superiores à de seu mestre, ainda assim tinham que obedecer
as limitações do “caminho certo”, ou do contrário nenhum deles seria capaz de resgatar os
documentos religiosos.
Por fim, no que diz respeito, novamente, ao personagem de Macaco, não há
comprovadamente nenhuma contraparte histórica ou cultural. Hu Shih, filósofo e ensaísta
chinês, sugeriu Hanuman, o guerreiro macaco de The Ramayana, como o modelo mais
próximo do Macaco de Wen Cheng’en. Independente de seus potenciais protótipos, contudo,
Macaco também sugere a influência de heróis místicos ocidentais como Prometheus e Fausto,
em vista de sua busca incessante por conhecimento e poder e insistente postura desafiadora às
autoridades estabelecidas.
Referências Bibliográficas
KHERDIAN, David. Macaco: Uma jornada para o oeste. 1. ed. São Paulo: Odysseus, 2003.
290 p.
JOURNEY to the West. In: HSIA, C. T. The Classic Chinese Novel: A Critical Introduction.
1968. cap. IV, p. 107-152.
FLEET, John Darwin Van. “Monkey King: Journey to the West” by Wu Cheng’en, translated
by Julia Lovell. Asian Review of Books, 31 jan. 2021. Disponível em:
https://asianreviewofbooks.com/content/monkey-king-journey-to-the-west-by-wu-chengen-tr
anslated-by-julia-lovell/. Acesso em: 21 jul. 2021.
JORNADA ao Oeste – O nascimento do rei dos macacos. Diplomatique Brasil. 4 maio 2009.
Disponível em:
https://diplomatique.org.br/review/jornada-ao-oeste-o-nascimento-do-rei-dos-macacos/.
Acesso em: 21 jul. 2021.