Você está na página 1de 5

Avaliação de Literatura Chinesa Moderna I

Nome: Amanda Menezes de Souza


Docente: Dr. Sylvio Roque de Guimarães Horta

Resenha de “Uma jornada para o oeste”, de Wen Cheng’en

Originalmente escrito por Wu Cheng’en (1500-1582 d.C.) durante a Dinastia Ming


(1368-1644 d.C.), “Uma jornada para o oeste” é um patrimônio cultural chinês de extrema
importância, tendo sido adaptado, ao longo dos anos, por renomados nomes, tais quais David
Kherdian – material usado para esta resenha – e Arthur Waley, e transformado em peças
teatrais, histórias em quadrinhos, adaptações cinematográficas e mesmo desenhos animados.
Baseando-se nos relatos de Hsuan-tsang (600-664), monge budista chinês que
abandonou a China da Dinastia T’ang em uma longa peregrinação rumo à Índia para coletar
textos sagrados budistas, Wu Cheng’en desenvolveu uma narração lendária e fantástica em
que retrata a penosa peregrinação do monge Tripitaka (ou Hsuan-tsang) e seus companheiros
Macaco (Sun Wukong, no título original, ou o Rei Macaco), Pigsy, Sandy e o cavalo-dragão.
Em busca das escrituras budistas sagradas, os cinco personagens, portanto, enfrentam
virtuosamente criaturas divinas, monstros, demônios, espíritos malignos e uma série de outros
seres místicos inspirados nas tradições do Taoísmo e em religiosidades populares chinesas.
A narrativa se inicia através do retrato do personagem Macaco, nascido de um ovo de
pedra fecundado pelas sementes do Céu e da Terra e pelas essências do Sol e da Lua, nas
fronteiras do país de Ao-lai. Ao aceitar o desafio proposto entre seus colegas macacos,
atravessa a cachoeira onde nasce o rio e descobre uma caverna mágica, chamada Caverna da
Cortina de Água da Terra Abençoada da Montanha das Flores, e passa a governar a ela e aos
seus companheiros. Suas aventuras estendem-se por numerosos capítulos, e através deles
acompanhamos tanto a sua ascensão enquanto poderoso Rei Macaco como a sua queda e
conseguinte caminhada rumo à redenção espiritual.
Carregando o impetuoso título de Elegante Rei Macaco, portanto, a ganância de
Macaco eleva-se a tal ponto que, descontente com suas limitações mortais, parte ao mundo
humano para encontrar os chamados imortais e, dessa maneira, aprender o seu segredo para a
vida eterna. Em sua jornada enquanto discípulo de um monge ocidental, são várias as vezes
em que Macaco se frustra com a ineficácia dos ensinamentos aprendidos em sua busca pela
imortalidade até que, finalmente, se torna capaz de dominar todas as setenta e duas
transformações disponíveis e encantamentos e alcançar o seu objetivo, tornando-se um ser de
força e poder quase insuperáveis.
No entanto, após ser expulso pelo Patriarca Subodhi, afugentar o terrível demônio que
aprisionava alguns de seus pequeninos e intimidar o Dragão do Oceano Leste e seus três
outros irmãos, é iniciada uma busca incansável dos seres celestiais por Macaco, a fim de
aprisioná-lo como punição para todos os seus pecados. É nesse ponto que a sua figura satírica
começa a caminhar ao seu auge, expressando cada vez mais traços de sua personalidade
trapaceira, tirânica e perversa.
Mostrando-se um ser extremamente inclinado às elevações divinas, poderoso o
bastante para que não fosse facilmente capturado, é apenas depois de uma série de travessuras
que desordenam o Céu que, enfim, é detido por Buda e convertido a discípulo de
Hsuan-Tsang, ou Tripitaka, engajando na lancinante jornada ao Oeste.
Os outros personagens que os acompanham são igualmente incumbidos de
desempenhar tal papel pela Bodhisattva Kuan-yin, sob o pretexto de ganharem perdão divino
e voltarem às suas formas originais.

“Tudo à minha volta era uma vasta extensão: não se ouviam viajantes ou
pássaros. À noite, havia lampejos de fogos monstruosos, brilhando como estrelas;
durante o dia, os ventos assustadores abraçavam a areia e a espalhavam como
chuva. Mesmo que eu tivesse encontrado este desastre, o meu coração não estava
com medo. Minha única preocupação era a falta de água, à medida que, com sede,
eu não podia continuar. Por quatro noites e cinco dias eu não tinha uma única gota
para aliviar a minha garganta. [...] Mas não importava o quão debilitado eu estava,
continuei repetindo o nome de Kuan-yin em silêncio. Eu também rezei para os
Bodhisattva, “Esta viagem do Hsuan-tsang não é levada a cabo por fama ou lucro, é
apenas para procurar a lei correta da verdade incomparável. Eu sempre soube que
tua misericórdia se estende a todos os seres vivos e que a tua missão é salvá-las.
Agora estou em perigo — não notastes?”. Através de orações, eu mantive meu
coração em um estado de esperança incessante.” (p. 109)

Kuan-yin é uma deidade presente no taoísmo e em vertentes do budismo, consagrada


universalmente como principal figura da devoção. Por ser conhecida como “aquela que ouve
os lamentos do mundo”, configura o arquétipo da misericórdia divina, do amor feminino
(essencialmente materno) e da compaixão, à medida em que acredita-se que ela realiza
milagres em momentos de grande dificuldade.
Em sua obra, Wen Cheng’en incorpora vários dos grandes nomes da espiritualidade,
acrescentando-lhes habilidades mágicas que ajudam os peregrinos a superarem as
adversidades de sua jornada. Reconhecendo, portanto, a compaixão incondicional da
Bodhisattva, atribui a ela diversas vezes a tarefa de guiá-los pelo caminho sacro e propor
soluções para os problemas enfrentados, sobretudo salientando a indispensabilidade de uma
boa conduta e da não preferência à violência e à desonestidade.
Apesar de todas essas memoráveis aparições, que reiteram vários dos valores
filosóficos pregados no período da dinastia Ming, é interessante como o próprio Hsuan-tsang
pode não ter quaisquer semelhanças com a sua contraparte histórica. Em “The Classic
Chinese Novel”, as colocações de C. T. Hsia para com esse paralelo conflituoso são
extremamente engenhosas. Em suas palavras, apesar de em sua jornada ter enfrentado graves
perigos como o de se encontrar com ladrões e ser quase sacrificado por um grupo de piratas,
de que se salvou somente pela ação de uma tempestade milagrosa, o Tripitaka como figura
histórica é conhecido, sobretudo, por ser um homem de coragem e piedade louváveis e, além
disso, também “dotado de grande curiosidade intelectual e profundamente versado na lógica
escolar indiana” (HSIA, 1968, p. 116). Mas não existem quaisquer traços desse reverenciado
intelecto nas representações literárias populares de Tripitaka, em que igualmente se inclui a
obra de Wen Cheng’en.
No romance, Tripitaka é a caricatura humorística de pelo menos três diferentes
personagens. Antes de mais nada, é o monge santo da lenda popular, um herói mítico que
pode ser comparado mesmo a Moisés ou Édipo, pela crença de que foi abandonado pela mãe
logo depois ao seu nascimento, boiando em um rio até ser encontrado por um mosteiro
budista, que o acolheu durante todo o seu crescimento. Aos oito anos, recebe o título de padre
e sai em busca de seus pais biológicos. Logo depois de encontrá-los, sua santidade evidente
chama a atenção da corte de tal modo que é encarregado pelo Imperador T’sai-tsung de
procurar as escrituras budistas Mahayana.
Nessa história, é concebido o mito de que Hsuan-tsang foi, originalmente, o Ancião
Cigarra Dourada, um discípulo de Buda no Paraíso Ocidental. Por conta de sua falta de
interesse na doutrina budista, foi banido para o plano terreno. Durante as dez encarnações em
que viveu sob pureza estrita e após completar a sua última missão na Terra de levar as
escrituras sagradas à China, novamente é bem recebido no Paraíso Ocidental, sob o novo
título de Buda do Mérito Precoce.

“— Sábio monge — disse o Buda —, na sua encarnação anterior você era o


meu segundo discípulo, chamado Cigarra Dourada. Porque você não prestou
atenção ao meu ensinamento e deu pouco valor à minha doutrina, fiz com que fosse
exilado no Leste. Buscando as escrituras, você mostrou verdadeira fé e ganhou um
grande mérito. Por causa disto, nomeio-o “Buda do Mérito Precoce.” (KHERDIAN,
2003, p. 288)

Ainda acompanhando o raciocínio de Hsia, o aspecto de Tripitaka como um Buda em


potencial é central para o enredo da história, e isso porque “os monstros e demônios não estão
interessados em um monge da China, independentemente do quão santificado ele seja, mas
em um hospedeiro mágico cuja carne pode conferir a eles a vida eterna” (1968, p. 117). Mas
assim que Tripitaka, no romance de Wen Cheng’en, se faz cônscio de seu potencial como
objeto de tentação suprema, se torna uma pessoa permanentemente assustada e temerosa. Sua
imagem histórica de sabedoria e determinação não é preservada, e posteriormente Wen
Cheng’en o apresenta em seu terceiro aspecto, como um mortal ordinário que é facilmente
perturbado pelo menor dos incômodos.
Por esse motivo, não são raras as vezes em que o vemos “perdendo a cabeça” com a
imprudência e petulância de Macaco, assim como a sua hesitação em se colocar como alvo de
qualquer possibilidade de perigo.

“[...] O mastigar e triturar dos ossos lembrou Tripitaka do som que um tigre
faz ao devorar uma ovelha. A cena era tão horrenda e assustadora que a alma de
Tripitaka quase deixou o seu corpo. Os ogros ainda estavam mastigando ossos e
sugando tutano quando o Sol se pôs e ficou escuro, antes que eles começassem a se
retirar. Tripitaka dormiu nas profundezas do desespero, tendo abandonado toda a
esperança de escapar com vida.” (KHERDIAN, 2003, p. 148).

Outros episódios ainda podem ser citados como provas de sua covardia, tal qual a sua
pouca demonstração de fé em sua tarefa de seguir uma dieta estritamente vegetariana e a
promessa quebrada a uma das criaturas que ajudaram-no a concluir a sua missão.
Hsia continua dizendo que, onde em alegorias ocidentais como Everyman (1530) e
The Pilgrim's Progress (1678) o herói passa por uma jornada cuidadosamente mapeada para
permitir que ele aceite a plenitude da morte e entre no céu, Tripitaka não mostra nenhum sinal
de evolução espiritual durante a jornada cheia de calamidades. Contraditoriamente, ele fica
mais rabugento e mal-humorado à medida que sua jornada avança. Mesmo enquanto ele está
sendo transportado para a Outra Margem da Salvação para encontrar o próprio Buda e pegar
as escrituras, ele se ressente do fato de que o Macaco o empurrou para o barco sem fundo e o
deixou encharcado.
Mas é claro que a manifestação deliberada de medo e credulidade de Tripitaka,
somada à sua obsessão fanática com a conduta correta e preocupação persistente com o seu
próprio bem estar são todos partes da sátira planejada por Wen Cheng’en, tanto como o
comportamento grosseiro de Pigsy, cuja relação comicamente conflituosa com Macaco já foi,
por várias vezes, comparada à dos personagens Dom Quixote e Sancho Pança.
Também é interessante como ele se valeu das propriedades humanas de Tripitaka para
tornar indispensável a ajuda dos outros peregrinos, que apesar de possuírem habilidades
físicas e espirituais muitas vezes superiores à de seu mestre, ainda assim tinham que obedecer
as limitações do “caminho certo”, ou do contrário nenhum deles seria capaz de resgatar os
documentos religiosos.
Por fim, no que diz respeito, novamente, ao personagem de Macaco, não há
comprovadamente nenhuma contraparte histórica ou cultural. Hu Shih, filósofo e ensaísta
chinês, sugeriu Hanuman, o guerreiro macaco de The Ramayana, como o modelo mais
próximo do Macaco de Wen Cheng’en. Independente de seus potenciais protótipos, contudo,
Macaco também sugere a influência de heróis místicos ocidentais como Prometheus e Fausto,
em vista de sua busca incessante por conhecimento e poder e insistente postura desafiadora às
autoridades estabelecidas.

“— Eu estava agora mesmo refletindo sobre o meu futuro — respondeu


Macaco. — O que será de mim, de todos nós, quando nossas vidas se gastarem?
— Como podeis pensar em tais coisas! — Os outros macacos exclamaram. — Nós
não temos banquetes diários aqui nesta montanha abençoada que provê todas as
nossas necessidades? Nós não estamos sob o governo de unicórnios, nem somos
controlados pelas fênix.
— O que vocês dizem é verdade — respondeu Macaco. — Nenhum ser humano
pode nos reprimir, nem estamos aterrorizados por qualquer pássaro ou besta. Mas
chegará o dia em que ficarei velho e fraco, e Yama, o Rei do Submundo da Morte,
destruirá a minha existência. O que então eu terei para esperar a não ser nascer de
novo na Terra e viver de novo em vão?” (KHERDIAN, 2003, p. 19)

Apesar de sua arrogância e ambição, quase plenamente permeada pela procura e


conquista da imortalidade, o que difere Macaco de personagens como Ravana ou Satã de
Paraíso Perdido, como tantas vezes citado por Hsia, é a sua habilidade de sempre se observar
sob uma perspectiva humorística e seu comportamento de desapego, mesmo quando lutando
com um batalhão inteiro de tropas enviadas do Céu. Sem o seu inigualável senso de humor,
Macaco provavelmente se tornaria um herói trágico ou então partilharia do mesmo destino
dos outros monstros.
Fato interessante é que essa postura condiz com a convicção budista de que é através
do riso que devemos enxergar o mundo. No romance, portanto, a comédia faz a mediação
entre o mito e a alegoria.
Se a piedade humanitária continua sendo uma característica cativante de Tripitaka,
então, com toda sua compreensão superior e desprendimento zombeteiro, Macaco também é a
antítese do vazio budista em seu apego passional à causa da viagem e a seu mestre. Há até
mesmo circunstâncias em que ele parece ser o único peregrino “sério”, perpetuamente
atormentado pela desconfiança e indolência de seus companheiros peregrinos e pela
indiferença e malícia das divindades celestiais.
Acima e além de seus papéis míticos e cômicos, ele se mostra como uma personagem
intrigante, sujeita a incompreensões e inveja e também inclinado a frequentes explosões
emocionais. Assim, ele, também, desmente sua realização superior na sabedoria budista com
sua humanidade incorrigível.
Dessa maneira, conclui-se que Wen Cheng’en foi esplendorosamente hábil em
combinar em sua escrita elementos cômicos e ao mesmo tempo filosóficos, dando forma à
obra que dignamente recebeu título de honorável clássico literário chinês.

Referências Bibliográficas

KHERDIAN, David. Macaco: Uma jornada para o oeste. 1. ed. São Paulo: Odysseus, 2003.
290 p.

JOURNEY to the West. In: HSIA, C. T. The Classic Chinese Novel: A Critical Introduction.
1968. cap. IV, p. 107-152.

FLEET, John Darwin Van. “Monkey King: Journey to the West” by Wu Cheng’en, translated
by Julia Lovell. Asian Review of Books, 31 jan. 2021. Disponível em:
https://asianreviewofbooks.com/content/monkey-king-journey-to-the-west-by-wu-chengen-tr
anslated-by-julia-lovell/. Acesso em: 21 jul. 2021.

JORNADA ao Oeste – O nascimento do rei dos macacos. Diplomatique Brasil. 4 maio 2009.
Disponível em:
https://diplomatique.org.br/review/jornada-ao-oeste-o-nascimento-do-rei-dos-macacos/.
Acesso em: 21 jul. 2021.

GOODA, Guilherme. JORNADA AO OESTE: A queda e ascensão do Macaco Dourado.


MidiÁsia, 24 jun. 2020. Disponível em:
https://www.midiasia.com.br/jornada-ao-oeste-a-queda-e-ascensao-do-macaco-dourado/.
Acesso em: 25 jul. 2021.

CHIA, Ho Yeh. Nota Sobre a Misericórdia de Bodhisattva Guan-Yin: reflexão a partir do


artigo “Mother Mary Comes To Me – A Radical Insegurança da Condição Humana”. Editora
Mandruvá. Disponível em: http://www.hottopos.com/mp2/bodhisattva.htm. Acesso em: 22
jul. 2021.

Você também pode gostar