Você está na página 1de 11

Repertório violonístico do eixo geográfico Ásia Menor-Bálcãs: concepções

interpretativas em diálogo com a música tradicional


MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

SIMPÓSIO: PANORAMA DA PESQUISA SOBRE VIOLÃO NO BRASIL

Resumo. Este é um relato parcial de pesquisa artística, a qual busca compreender elementos da
música tradicional da Ásia Menor e dos Bálcãs presentes em obras para violão. Visando a construção
de interpretações informadas, primordialmente, em termos de inserção cultural, caráter e tradução
de aspectos idiomáticos, foram selecionadas composições e arranjos de seis violonistas-
compositores, tais como: Üstüntaş (Turquia), Bogdanović (Sérvia) e Ourkouzounov (Bulgária). Para
maior fundamentação teórica, dialoga-se com conceitos de autores como Arom, Brăiloiu, Laranjeira
e Neuhaus. São também apontadas algumas perspectivas estético-interpretativas com o intuito de
incorporar conteúdo poético – culturalmente informado – ao discurso musical.

Palavras-chave. Violão. Ásia Menor. Bálcãs. Música tradicional. Interpretação culturalmente


informada.

Title. Guitar Repertoire of the Asia Minor-Balkans Geographic Axis: interpretative


conceptions in dialogue with traditional music

Abstract. This is a partial account of artistic research, which seeks to understand elements of
traditional music from Asia Minor and the Balkans present in works for guitar. Aiming at building
informed interpretations, primarily in terms of cultural insertion, character and translation of
idiomatic aspects, compositions and arrangements of six guitarists-composers were selected, such
as: Üstüntaş (Turkey), Bogdanović (Serbia) and Ourkouzounov (Bulgaria). For greater theoretical
foundation, it dialogues with concepts from authors such as Arom, Brăiloiu, Laranjeira and Neuhaus.
Some aesthetic-interpretative perspectives are also pointed out in order to incorporate poetic content
– culturally informed – into the musical discourse.

Keywords. Guitar. Asia Minor. Balkans. Traditional music. Culturally informed interpretation.

1. Introdução
O repertório para violão originário nas localidades de fronteira entre a Ásia e o
Sudeste da Europa é ainda pouco difundido e explorado por violonistas brasileiros. Quando se
trata de culturas musicais afastadas da nossa, a falta de informações pode gerar uma série de
dificuldades para o intérprete e ocasionar tal distanciamento. Isso porque determinadas
combinações rítmicas e melódicas, bem como idiossincrasias técnicas ou especificidades
culturais, resultam em uma sonoridade de tal ordem distinta que, mesmo num mundo
globalizado, ainda podem parecer exóticas para ouvidos “educados” ou acostumados a
manifestações musicais mais ocidentais.
Visando abordar questões como essa, a pesquisa de doutorado em andamento está
direcionada à compreensão de elementos da música tradicional da Ásia Menor e dos Bálcãs
(Figura 1) presentes em obras para violão.
Figura 1: mapa do eixo geográfico Ásia Menor-Bálcãs.

Este estudo foi desencadeado pelo contato com o multi-instrumentista e compositor


turco Çağdaş Üstüntaş, que reside há mais de 10 anos no Brasil. Seus diversos tipos de trabalho
incluem composições e arranjos ligados à música tradicional de seu país. A atração causada
pela sonoridade em certo sentido “exótica" do material levou ao interesse pela obra de outros
compositores de países fronteiriços, como a do búlgaro Atanas Ourkouzounov – também
caracterizada pela imersão na música folclórica de sua região, com a presença de elementos
tradicionais em muitas de suas composições – e a do sérvio Dušan Bogdanović, talvez o mais
conhecido dos três em virtude das muitas edições de suas peças.
Com o amadurecimento da problematização em torno de um repertório das regiões
da Ásia Menor e dos Bálcãs para violão, outros 2 compositores-violonistas se somaram ao trio
inicial: Serkan Yilmaz (Turquia) e Miroslav Tadić (Sérvia). São peças desses cinco
compositores que formam a base do repertório trabalhado na pesquisa, à qual pode ainda se
acrescentar a contribuição do violonista-arranjador Ricardo Moyano que, embora de origem
argentina, reside há muitos anos na Turquia e desenvolve relevante trabalho voltado para a
música tradicional turca.
A partir do interesse inicial, a principal questão da pesquisa tomou a seguinte
forma: até que ponto pode-se caracterizar uma apropriação do violão no eixo geográfico Ásia
Menor-Bálcãs no sentido de adaptação do instrumento às exigências das práticas culturais e
musicais locais? A partir daí, perguntas derivadas e mais específicas se estabeleceram: pelas
características específicas desse repertório em termos de técnica e de linguagem; pelos
procedimentos idiomáticos oriundos de outros instrumentos; e pelos aspectos interpretativos
relacionados à compreensão estética e incorporação de expressividade ao discurso musical. A
especulação em torno dessas questões irá alimentar construções interpretativas de um repertório
selecionado informadas, em termos propriamente sonoros e musicais, pela escuta focada de
instrumentos, ritmos e canções folclóricas do universo de pesquisa unida a uma experimentação
embasada no violão.
Em termos teóricos, dialogando com trabalhos como Poética da Tradução, propõe-
se uma aproximação metafórica ao conceito de “língua-cultura de partida" (LARANJEIRA,
2003, p. 30-33). Em nosso caso, tal conceito representaria as manifestações culturais/musicais
em que se inserem os elementos geradores das composições analisadas, podendo estes se referir
a parâmetros musicais, procedimentos idiomáticos específicos de determinados instrumentos
ou questões de sentido, caráter e conteúdo poético.
Para as análises e performances ligadas à pesquisa – cuja natureza artística assim
se manifesta – foi feita uma seleção de obras com predomínio de elementos da música folclórica
das regiões pesquisadas. São aqui divididas em dois grupos: 1) composições e 2) arranjos de
músicas tradicionais.
As composições para violão escolhidas foram: Laments, Dances and Lullabies
(Miroslav Tadić); Six Balkan Miniatures (Dušan Bogdanović); Trois Balkanesques (Atanas
Ourkouzounov); Çöl Masali (Serkan Yılmaz); e Taço'nun Ruyasi (Çağdaş Üstüntaş). Quanto
aos arranjos: Alli Turnam – canção anônima turca e Indim Yarin Bahçesine – canção anônima
do Azerbaijão (arranjos de Üstüntaş); Kara Toprak – composta por Aşık Veysel e Yemen Elleri
– canção anônima turca (arranjos de Ricardo Moyano); Mastika – música cigana turca, Ah
Yalan Dünya – composta por Neşet Ertaş e Çiğdem Der Ki – composta por Aşık Veysel
(arranjos de Yilmaz).

2. Elementos da música tradicional


Nesta seção são explicitados, resumidamente, elementos presentes nas obras que
são objeto desta pesquisa. Os aspectos observados são 1) ritmo/métrica; 2)
modos/escalas/polos; 3) instrumentos típicos e a tradução de seus procedimentos idiomáticos;
4) inserção cultural: caráter dos ritmos, danças e/ou canções tradicionais.
2.1 Ritmo e métrica
A pesquisa se debruçou sobre um sistema rítmico peculiar que difere do padrão
musical da tradição escrita da Europa centro-ocidental. Trata-se do aksak que, segundo Simha
Arom (2004, p. 2)1, “tem sua origem na teoria musical otomana”. O termo significa “manco,
coxo, irregular,” sendo caracterizado por uma relação hemiólica entre as unidades de tempo e
pela sensação de irregularidade do pulso por ela provocada, ou seja, a proporção 3:2 ou 2:3 é
um fator elementar no aksak e todos os ritmos aksak são obtidos por adição dessas células.
Nesta linha de pensamento rítmico um compasso 5/4, por exemplo, é considerado binário (2+3
ou 3+2), assim como um 7/8 é um ternário (3+2+2; 2+3+2 ou 2+2+3). Somada a essa bicronia
irregular,2 a presença de andamentos rápidos parece ser fator crucial para a ocorrência de um
aksak.
Já o conceito de bicronia irregular vêm do princípio de ritmos aditivos, proposto
por Curt Sachs (1953, p.24-25). Basicamente, o autor considera a existência de dois princípios
reguladores do ritmo: o divisivo e o aditivo. Enquanto os ritmos divisivos contém pulsações
iguais (regularidade gráfica na escrita), os ritmos aditivos têm pulsações assimétricas.
Uma importante diferença conceitual entre tais princípios, ressaltada por Simha
Arom (2004, p. 8), é a de “pulsação e valor fundamental”. A pulsação, base da abordagem
ocidental do compasso, é um elemento orgânico de músicas baseadas no princípio divisivo. Já
o valor fundamental é a unidade métrica elementar do princípio aditivo e todos os outros valores
são múltiplos desta. É importante clarificar que embora graficamente o valor fundamental se
encontre no lugar onde estaria indicada a unidade de tempo na escrita ocidental de compassos
simples, em termos de percepção, sensação e execução rítmica, ele funciona tal como a
subdivisão.
Dentre tantos aksaks presentes no repertório pesquisado encontra-se, por exemplo:
11/16 (2+2+3+2+2) em Jutarnje Kolo (Exemplo 1) e 5/8 (2+3) em Makedonsko Kolo (Exemplo
1) – 1ª e 4ª miniaturas de Six Balkan Miniatures; 11/8 (2+2+3+2+2) em Walk Dance (Exemplo
5) – 3º movimento de Laments, Dances and Lullabies; e, no 1º movimento de Çöl Masali
(Exemplo 1) ocorre o 9/8 (2+2+2+3).

Exemplo 1: métricas aksak em Jutarnje Kolo – 11/16 (2+2+3+2+2), Makedonsko Kolo – 5/8 (2+3) e Çöl Masali
– 9/8 (2+2+2+3).

2.2 Modos, escalas, polos


Quanto às escalas utilizadas, as manifestações musicais das regiões pesquisadas
lidam tradicionalmente com microtonalidades. Sendo um instrumento ocidental, o violão
originalmente não dispõe dessas alturas e intervalos. Trabalhos como Lost in scales: Balkan
Folk Music Research and the Ottoman Legacy, do etnomusicólogo Risto Pekka Penannen,
demonstram que, assim como no aspecto rítmico, a possível origem para o regime de alturas é
também otomana – como no caso dos chamados makams, que são os modos microtonais da
música turca. Dada a dominação do Império Otomano na região dos Bálcãs por séculos, é
natural que essas raízes musicais tendam a perdurar.
Ainda é necessário maior aprofundamento acerca dos makams. A maioria das obras
pesquisadas não trabalha com microafinação no violão, o que nos levou, até o momento, a
basear a análise de alturas nos modos gregos modernos e em modos “sintéticos” deles
derivados. Tomemos como exemplo as peças Çöl Masali e Kara Toprak.
O 2º movimento de Çöl Masali traz explicitamente na scordatura (Exemplo 2) o
modo Eólio de Ré (sem o 2º e o 4º graus), constatado em diversos momentos da peça. Já em
Kara Toprak, impera o modo Dórico de Fá# no tema da canção (Exemplo 3) e, além disso, a
própria scordatura sugere esta polarização em torno de Fá#. (Exemplo 2)

Exemplo 2: indicações de scordatura nas partituras do 2º mov. de Çöl Masali e em Kara Toprak.

Exemplo 3: tema Dórico (voz superior) + utilização de cordas soltas (círculos azuis) em Kara Toprak.

2. 3 Instrumentos típicos e procedimentos idiomáticos


A propósito dos instrumentos típicos, vamos nos ater brevemente aos cordofones
da família dos saz. Dentre tantos, estão a bağlama, divan saz, bozuk, çöğür, cura e tambura,
instrumentos que variam tanto no comprimento do braço (número de trastes – tessitura) quanto
no número de cordas, embora a maioria contenha 7 cordas: 3 ordens – uma tripla e duas duplas
(de baixo para cima). Estes possuem afinação reentrante,3 tendo intervalos de oitava na relação
entre as cordas de cada ordem – salvo os uníssonos encontrados na afinação das 2 cordas da
ordem do meio (ou 2ª ordem) e também nas 2 cordas inferiores da ordem tripla (1ª ordem).
Outra peculiaridade que fixa a ideia reentrante vem do fato de que a altura mais grave da 2ª
ordem é mais aguda do que a altura mais grave da 1ª. Ou seja, a reentrância é afirmada tanto na
relação entre as 7 cordas, quanto na relação entre as 3 ordens.
As afinações dos saz são diversas, incluindo microtons separados pelos trastes ao
longo do braço dos instrumentos, muitos deles possuindo trastes móveis. Uma das afinações
mais tradicionais é: Lá-Ré-Sol – da 1ª à 3ª ordem. Ascendentemente, considerando as 7 cordas
e suas alturas absolutas, têm-se: Sol 1, Lá 1, Ré 2, Ré 2, Sol 2, Lá 2, Lá 2.
Sabido o polo (em Lá)4 desta afinação e as relações intervalares a partir do Lá mais
grave, nota-se, por exemplo, que a scordatura usada no arranjo de Kara Toprak (Exemplo 2)
demonstra uma busca pela aproximação idiomática entre violão e saz. Dentro no âmbito de 8ª,
são encontrados os mesmos intervalos – com exceção da 5ª J: da 5ª para a 4ª corda do violão –
transpostos para o polo em Fá#, porém dispostos de outra maneira (Figura 2):

Figura 2: Aproximação idiomática entre violão e saz: mesmas relações intervalares através do uso de
scordatura.

Seguindo com as ideias de tradução dos procedimentos idiomáticos, percebeu-se


nas peças selecionadas que o violão visa a uma aproximação em termos de "atmosfera” e de
execução técnica. Desta maneira, alguns dos aspectos comumente presentes são: 1) o próprio
uso de scordatura (Exemplos 2 e 5) – aproximação aos padrões de afinação de instrumentos
típicos; 2) ampla utilização de cordas soltas (Exemplos 3, 4, 5 e 7) – valorizando a afinação, as
ressonâncias do instrumento, para ideias de ostinatos e pedais no baixo, além da funcionalidade
gerada pela liberação da mão esquerda; 3) rasgueios e gestos rápidos de mão direita em cordas
adjacentes (Exemplos 6 e 7) – emulando o uso do plectro (presente na técnica tradicional dos
saz); 4) utilização de ligados de mão esquerda (Exemplos 4 e 8) – aproximando-se às
articulações em legato comumente obtidas na voz, instrumentos de sopro e de arco, e/ou em
ornamentos dentro do estilo.

Exemplo 4: utilização de cordas soltas (círculos azuis) + ligados de mão esquerda em Çöl Masali.
Exemplo 5: métrica aksak + utilização de cordas soltas (círculos azuis) + scordatura em Walk Dance.

Exemplo 6: rasgueios em Ah Yalan Dünya e Sitni Vez.

Exemplo 7: gestos rápidos de mão direita + utilização de cordas soltas (círculos azuis) em Ah Yalan Dünya.

Exemplo 8: utilização de ligados de mão esquerda em Kara Toprak – ornamentos.

2.4 Inserção cultural


Já os aspectos ligados à inserção cultural podem ser observados de algumas
maneiras: 1) na origem dos ritmos e danças em questão; 2) nas letras das canções tradicionais;
e 3) no contexto da prática dos compositores que se utilizam de seus instrumentos – incluem-
se vozes – para expressar pensamentos, emoções ou questões históricas mais amplas,
relacionadas a culturas determinadas.
Algumas das danças das quais derivaram as composições estudadas são: kopanitsa
(origem búlgara), vranjanka (origem sérvia), pajdusko (origens macedônia, búlgara e grega),
kalajdzisko (origem macedônia), karsilama (origem turca) e rustemul (origem romena). A
grande maioria delas é baseada no princípio aksak e, para uma compreensão inicial dessas
danças folclóricas, baseamo-nos em escutas e visualizações de vídeos e áudios disponíveis em
sites diversos, como o YouTube.
Dentre as peças selecionadas que originalmente contêm letra, a canção anônima do
Azerbaijão Indim Yarin Bahçesine (Entrei no jardim de meu bem), por exemplo, traz uma
poesia de amor, leve e apaixonada. Partindo deste dado, que não se encontra na versão
instrumental, as concepções de interpretação tendem a um caráter condizente, ou seja,
privilegiam um fraseado bastante legato e com liberdades agógicas.
Já um exemplo que desperta outras qualidades emocionais ocorre na canção Kara
Toprak (Terra Negra) de autoria do tocador de bağlama e poeta turco Aşık Veysel (1894-1973).
A letra exalta o valor da terra, suas belezas e os alimentos que ela gera para o homem. É como
um agradecimento à terra, às raízes. A compreensão de um estado interno de agradecimento e
carinho com a terra e com a natureza é um possível caminho interpretativo para o caráter da
peça.
Tais questões ligadas ao caráter podem parecer (e são!) bastante subjetivas, mas
lembremos que a música – enquanto expressão sonora – é algo que pode ser sentido e
transmitido. A presença da imaginação e da intenção de comunicar está na base da
expressividade musical, que não se reduz a questões de técnica instrumental, antes alia-se a elas
para intensificar qualquer interpretação. Trata-se de incorporar conteúdo poético ao discurso.

3. Expressão musical
Buscando maior fundamentação em vista de concepções interpretativas aliadas a
expressividade, caráter, imaginação e à transmissão culturalmente informada de conteúdo
poético do discurso musical, dialogamos com conceitos, aqui muito sucintamente expostos, de
dois autores: Heinrich Neuhaus (1888-1964) e Vladimir Jankélévitch (1903-1985).
As reflexões estéticas do filósofo Vladimir Jankélévitch são bastantes relevantes no
campo da expressão musical. Em sua obra A Música e o Inefável, ao falar sobre a miragem da
expressão, o autor considera que o meio de expressão – música – está a serviço do
instrumentista – pensamento –, assim como os próprios instrumentos estão à disposição do
musicista e diz ainda que é necessário conceber antes de falar, assim como é necessário
deliberar antes de decidir, e os signos são sempre subalternos.
Essas afirmações dialogam com considerações do pianista-professor Heinrich
Neuhaus, mestre de brilhantes pianistas como Sviatoslav Richter e Emil Gillels. Ele afirma, em
sua obra A arte do piano, a importância de “vivenciar a música na mente antes que o dedo
encoste na tecla ou que o arco toque a corda.” (NEUHAUS, 1987, p.15). A partir de sua
experiência, Neuhaus percebeu que a compreensão estética das obras musicais é crucial para
que se chegue a um nível de expressividade artística mais reflexivo e fundamentado –
denominada por ele imagem estética.5
Considera-se neste trabalho que a criação de imagens estéticas é um fator chave
para que se encontrem graus mais sutis na interpretação. Entende-se que isso deve figurar como
um dos pontos a serem buscados incessantemente pelo intérprete. Realmente a compreensão e
as concepções musicais deveriam ser anteriores a quaisquer decisões interpretativas, embora a
grande maioria de nós – músicos – não seja instigada a essa busca nos primeiros contatos com
a linguagem musical.
Em outra reflexão acerca da linguagem e do fenômeno musicais Jankélévitch
aponta a existência de uma música-em-si. Esta teria um sentido próprio e mais profundo que
precede a linguagem, a qual transmite e expressa a música enquanto fenômeno sonoro, sendo
algo metafísico e muito mais sutil do que se pode expressar. Embora o filósofo francês traga
conceitos que possam soar absolutos, compreende-se que essa música-em-si é algo que nos
move enquanto performers. E é desse algo mais que estamos atrás, quando somos artistas
inquietos. É tarefa árdua explicar o significado disto e vai além do que podemos tratar nesta
comunicação, bastando-nos por ora sinalizar que essa busca pela imagem estética, pelo inefável
existe.

4. Considerações finais
Observa-se um risco de distanciamento do intérprete em relação a elementos
geradores das obras musicais – em termos estruturais, rítmicos, timbrísticos, de tradução de
ideias idiomáticas de outros instrumentos ou de caráter –, perdendo-se assim um fio condutor
muito importante para a construção de sentido em performances. É comum que interpretações
de diversas obras ao violão se baseiem em interpretações anteriores.
Tomemos como exemplo obras do repertório canônico, escritas originalmente ou
não para o instrumento, como Prelúdio, Fuga e Alegro - BWV 998 de Bach, Variações sobre a
Flauta Mágica de Sor, 3 Peças Espanholas de Rodrigo e Decameron Negro de Brouwer, dentre
tantas. Após diversas escutas de obras como estas, que estão no “ouvido” de praticamente todo
violonista, constata-se que para a construção interpretativa há certos consensos ou decisões –
de articulação, acentuação, timbre, fraseado, andamento e agógica – que se repetem. Ou seja, a
imagem estética se forma primordialmente por imitação de interpretações anteriores, achatando
o potencial sonoro multidirecional que a música tem, além de perpetuar um violonismo
irrefletido.
Embora acredite-se que imitar referências sonoras desenvolva qualidades
importantíssimas do músico, fica a ressalva para que isso não constitua um atalho na relação
entre intérprete e conteúdo poético do discurso musical. Ressalta-se que o tipo de imitação a
que se referiu diz respeito apenas àquela que tende a perpetuar vícios, cânones e dogmas
interpretativos. Por outro lado, a pesquisa em que nos encontramos – inserida num contexto
distante do nosso local cultural – busca trazer informações, repertório, inter-relações e expansão
ao “ouvido”, desenvolvendo uma audição mais crítica. Desta maneira, podemos nos tornar mais
capazes de captar elementos intrínsecos a linguagens ou culturas musicais determinadas e
buscar incorporá-los, por via de práticas de percepção-sensação – corporais e instrumentais –,
em direção à maior autonomia e liberdade para a construção de interpretações.
Assim, conclui-se que através da compreensão teórica e estética de especificidades
musicais – rítmicas, métricas, melódicas, harmônicas e idiomáticas – da música tradicional do
eixo geográfico Ásia Menor-Balcãs, juntamente à apreensão – sensorial-perceptiva – da
linguagem e à experimentação informada no violão, as imagens estéticas das obras vão sendo
concebidas e os horizontes desta pesquisa artística corrente se encontram na performance
culturalmente informada.

Referências
AROM, Simha. L’aksak: principes e typologie. Cahiers d’ethnomusicologie, Genebra, v. 17, p.
11-48, 2004. Disponível em: http://journals.openedition.org/ethnomusicologie/413. Acesso
em: 03 maio 2020.
BOGDANOVIĆ, Dusan. Six Balkan Miniatures: música balcânica; violão. São Francisco:
Guitar Solo Publications, 1993. Partitura. 11 p.
BRĂILOIU, Constantin. Le rythme aksak. Revue de Musicologie. Paris, v. 33, n. 99/100, p. 71-
108, 1951.
ERTAŞ, Neşet. Ah Yalan Dünya: canção turca; arranjo para violão de Serkan Yilmaz. [S.l.:
s.n.], 2019. Partitura. 3 p.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Tradução: GONTIJO, Clovis Salgado. A Música e o Inefável. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2018. 216 p.
LARANJEIRA, Mário. Poética da Tradução: do sentido à significância. 2ª Edição. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2003. 217 p.
MOYANO, Ricardo. Yemen Elleri: canção anônima turca; arranjo para violão. [S.l.: s.n., 199?].
Partitura. 6 p.
NEUHAUS, Heinrich. Tradução: COLINET, Consuelo Matín; GONZÁLEZ, Guillermo. El
arte del piano. Madrid: Editora Real Musical, 1987. 217 p.
OURKOUZOUNOV, Atanas. Trois Balkanesques: música balcânica; violão. Québec: Les
Éditions Doberman-Yppan Editions, 2015. Partitura. 12 p.
PENANNEN, Risto Pekka. Lost in Scales: Balkan Folk Music Research and the Ottoman
Legacy. Muzikologija, Helsinki, v. 8, p. 127-147, 2008.
SACHS, Curt. Rhythm and tempo: a study in music history. Nova York: W.W. Norton &
Company, 1953. 391 p.
TADIĆ, Miroslav. Laments, Dances and Lullabies: volume 1, música balcânica; violão.
Québec: Les Éditions Doberman-Yppan, 2008. Partitura. 16 p.
ÜSTÜNTAŞ, Çağdaş. Alli Turnam: canção anônima turca; arranjo para violão. [S.l.: s.n., 200?].
Partitura manuscrita. 2 p.
______. Indim Yarin Bahçesine: canção anônima do Azerbaijão; arranjo para violão. [S.l.: s.n.,
200?]. Partitura. 4 p.
______. Taço'nun Ruyasi: música turca; violão. [S.l.: s.n., 200?]. Partitura. 3 p.
VEYSEL, Aşık. Çiğdem Der Ki: canção turca; arranjo para violão de Serkan Yilmaz. [S.l.: s.n.],
2019. Partitura. 2 p.
______. Kara Toprak: canção turca; arranjo para violão de Ricardo Moyano. [S.l.: s.n., 199?]
Partitura. 6 p.
YILMAZ, Serkan. Çöl Masali: música turca; violão. [S.l.: s.n., 200?]. Partitura. 13 p.
______. Mastika: música cigana turca; arranjo para violão. [S.l.: s.n.], 2019. Partitura. 4 p.

Notas

1
“Le terme turc aksak, emprunté à la théorie musicale ottomane, signifie « boiteux», « trébuchant», « claudiquant»,
en d’autres termes, irrégulier.” (AROM, 2004, p.2).
2
Bicronia irregular é um termo proposto pelo etnomusicólogo romeno Constantin Brăiloiu (1893-1958) em seu
trabalho Le Rythme Aksak (1952) – primeiro registro ocidental em que o termo aksak foi empregado. A bicronia
irregular diz respeito à irregularidade na percepção temporal das unidade de tempo, ou seja, ao invés de uma tem-
se duas unidades: uma pontuada e outra não pontuada.
3
A afinação reentrante ocorre quando determinada corda adjacente de cima tem um som mais agudo do que a de
baixo. Este tipo de afinação não obedece a lógica do violão, por exemplo, que traz – de cima a baixo – as cordas
mais graves às agudas.
4
Afinação comumente chamada de standard long-neck bağlama A tunning.
5
“...o que isso significa – a imagem estética – senão a música em si, a matéria sonora que vive, o discurso musical
com suas leis, seus componentes, que são chamados a harmonia, polifonia, etc...em sua forma definida e em seu
conteúdo poético e emocional?” (NEUHAUS, 1987, p.21).

Você também pode gostar