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Resumo. Este é um relato parcial de pesquisa artística, a qual busca compreender elementos da
música tradicional da Ásia Menor e dos Bálcãs presentes em obras para violão. Visando a construção
de interpretações informadas, primordialmente, em termos de inserção cultural, caráter e tradução
de aspectos idiomáticos, foram selecionadas composições e arranjos de seis violonistas-
compositores, tais como: Üstüntaş (Turquia), Bogdanović (Sérvia) e Ourkouzounov (Bulgária). Para
maior fundamentação teórica, dialoga-se com conceitos de autores como Arom, Brăiloiu, Laranjeira
e Neuhaus. São também apontadas algumas perspectivas estético-interpretativas com o intuito de
incorporar conteúdo poético – culturalmente informado – ao discurso musical.
Abstract. This is a partial account of artistic research, which seeks to understand elements of
traditional music from Asia Minor and the Balkans present in works for guitar. Aiming at building
informed interpretations, primarily in terms of cultural insertion, character and translation of
idiomatic aspects, compositions and arrangements of six guitarists-composers were selected, such
as: Üstüntaş (Turkey), Bogdanović (Serbia) and Ourkouzounov (Bulgaria). For greater theoretical
foundation, it dialogues with concepts from authors such as Arom, Brăiloiu, Laranjeira and Neuhaus.
Some aesthetic-interpretative perspectives are also pointed out in order to incorporate poetic content
– culturally informed – into the musical discourse.
Keywords. Guitar. Asia Minor. Balkans. Traditional music. Culturally informed interpretation.
1. Introdução
O repertório para violão originário nas localidades de fronteira entre a Ásia e o
Sudeste da Europa é ainda pouco difundido e explorado por violonistas brasileiros. Quando se
trata de culturas musicais afastadas da nossa, a falta de informações pode gerar uma série de
dificuldades para o intérprete e ocasionar tal distanciamento. Isso porque determinadas
combinações rítmicas e melódicas, bem como idiossincrasias técnicas ou especificidades
culturais, resultam em uma sonoridade de tal ordem distinta que, mesmo num mundo
globalizado, ainda podem parecer exóticas para ouvidos “educados” ou acostumados a
manifestações musicais mais ocidentais.
Visando abordar questões como essa, a pesquisa de doutorado em andamento está
direcionada à compreensão de elementos da música tradicional da Ásia Menor e dos Bálcãs
(Figura 1) presentes em obras para violão.
Figura 1: mapa do eixo geográfico Ásia Menor-Bálcãs.
Exemplo 1: métricas aksak em Jutarnje Kolo – 11/16 (2+2+3+2+2), Makedonsko Kolo – 5/8 (2+3) e Çöl Masali
– 9/8 (2+2+2+3).
Exemplo 2: indicações de scordatura nas partituras do 2º mov. de Çöl Masali e em Kara Toprak.
Exemplo 3: tema Dórico (voz superior) + utilização de cordas soltas (círculos azuis) em Kara Toprak.
Figura 2: Aproximação idiomática entre violão e saz: mesmas relações intervalares através do uso de
scordatura.
Exemplo 4: utilização de cordas soltas (círculos azuis) + ligados de mão esquerda em Çöl Masali.
Exemplo 5: métrica aksak + utilização de cordas soltas (círculos azuis) + scordatura em Walk Dance.
Exemplo 7: gestos rápidos de mão direita + utilização de cordas soltas (círculos azuis) em Ah Yalan Dünya.
3. Expressão musical
Buscando maior fundamentação em vista de concepções interpretativas aliadas a
expressividade, caráter, imaginação e à transmissão culturalmente informada de conteúdo
poético do discurso musical, dialogamos com conceitos, aqui muito sucintamente expostos, de
dois autores: Heinrich Neuhaus (1888-1964) e Vladimir Jankélévitch (1903-1985).
As reflexões estéticas do filósofo Vladimir Jankélévitch são bastantes relevantes no
campo da expressão musical. Em sua obra A Música e o Inefável, ao falar sobre a miragem da
expressão, o autor considera que o meio de expressão – música – está a serviço do
instrumentista – pensamento –, assim como os próprios instrumentos estão à disposição do
musicista e diz ainda que é necessário conceber antes de falar, assim como é necessário
deliberar antes de decidir, e os signos são sempre subalternos.
Essas afirmações dialogam com considerações do pianista-professor Heinrich
Neuhaus, mestre de brilhantes pianistas como Sviatoslav Richter e Emil Gillels. Ele afirma, em
sua obra A arte do piano, a importância de “vivenciar a música na mente antes que o dedo
encoste na tecla ou que o arco toque a corda.” (NEUHAUS, 1987, p.15). A partir de sua
experiência, Neuhaus percebeu que a compreensão estética das obras musicais é crucial para
que se chegue a um nível de expressividade artística mais reflexivo e fundamentado –
denominada por ele imagem estética.5
Considera-se neste trabalho que a criação de imagens estéticas é um fator chave
para que se encontrem graus mais sutis na interpretação. Entende-se que isso deve figurar como
um dos pontos a serem buscados incessantemente pelo intérprete. Realmente a compreensão e
as concepções musicais deveriam ser anteriores a quaisquer decisões interpretativas, embora a
grande maioria de nós – músicos – não seja instigada a essa busca nos primeiros contatos com
a linguagem musical.
Em outra reflexão acerca da linguagem e do fenômeno musicais Jankélévitch
aponta a existência de uma música-em-si. Esta teria um sentido próprio e mais profundo que
precede a linguagem, a qual transmite e expressa a música enquanto fenômeno sonoro, sendo
algo metafísico e muito mais sutil do que se pode expressar. Embora o filósofo francês traga
conceitos que possam soar absolutos, compreende-se que essa música-em-si é algo que nos
move enquanto performers. E é desse algo mais que estamos atrás, quando somos artistas
inquietos. É tarefa árdua explicar o significado disto e vai além do que podemos tratar nesta
comunicação, bastando-nos por ora sinalizar que essa busca pela imagem estética, pelo inefável
existe.
4. Considerações finais
Observa-se um risco de distanciamento do intérprete em relação a elementos
geradores das obras musicais – em termos estruturais, rítmicos, timbrísticos, de tradução de
ideias idiomáticas de outros instrumentos ou de caráter –, perdendo-se assim um fio condutor
muito importante para a construção de sentido em performances. É comum que interpretações
de diversas obras ao violão se baseiem em interpretações anteriores.
Tomemos como exemplo obras do repertório canônico, escritas originalmente ou
não para o instrumento, como Prelúdio, Fuga e Alegro - BWV 998 de Bach, Variações sobre a
Flauta Mágica de Sor, 3 Peças Espanholas de Rodrigo e Decameron Negro de Brouwer, dentre
tantas. Após diversas escutas de obras como estas, que estão no “ouvido” de praticamente todo
violonista, constata-se que para a construção interpretativa há certos consensos ou decisões –
de articulação, acentuação, timbre, fraseado, andamento e agógica – que se repetem. Ou seja, a
imagem estética se forma primordialmente por imitação de interpretações anteriores, achatando
o potencial sonoro multidirecional que a música tem, além de perpetuar um violonismo
irrefletido.
Embora acredite-se que imitar referências sonoras desenvolva qualidades
importantíssimas do músico, fica a ressalva para que isso não constitua um atalho na relação
entre intérprete e conteúdo poético do discurso musical. Ressalta-se que o tipo de imitação a
que se referiu diz respeito apenas àquela que tende a perpetuar vícios, cânones e dogmas
interpretativos. Por outro lado, a pesquisa em que nos encontramos – inserida num contexto
distante do nosso local cultural – busca trazer informações, repertório, inter-relações e expansão
ao “ouvido”, desenvolvendo uma audição mais crítica. Desta maneira, podemos nos tornar mais
capazes de captar elementos intrínsecos a linguagens ou culturas musicais determinadas e
buscar incorporá-los, por via de práticas de percepção-sensação – corporais e instrumentais –,
em direção à maior autonomia e liberdade para a construção de interpretações.
Assim, conclui-se que através da compreensão teórica e estética de especificidades
musicais – rítmicas, métricas, melódicas, harmônicas e idiomáticas – da música tradicional do
eixo geográfico Ásia Menor-Balcãs, juntamente à apreensão – sensorial-perceptiva – da
linguagem e à experimentação informada no violão, as imagens estéticas das obras vão sendo
concebidas e os horizontes desta pesquisa artística corrente se encontram na performance
culturalmente informada.
Referências
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11-48, 2004. Disponível em: http://journals.openedition.org/ethnomusicologie/413. Acesso
em: 03 maio 2020.
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BRĂILOIU, Constantin. Le rythme aksak. Revue de Musicologie. Paris, v. 33, n. 99/100, p. 71-
108, 1951.
ERTAŞ, Neşet. Ah Yalan Dünya: canção turca; arranjo para violão de Serkan Yilmaz. [S.l.:
s.n.], 2019. Partitura. 3 p.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Tradução: GONTIJO, Clovis Salgado. A Música e o Inefável. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2018. 216 p.
LARANJEIRA, Mário. Poética da Tradução: do sentido à significância. 2ª Edição. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2003. 217 p.
MOYANO, Ricardo. Yemen Elleri: canção anônima turca; arranjo para violão. [S.l.: s.n., 199?].
Partitura. 6 p.
NEUHAUS, Heinrich. Tradução: COLINET, Consuelo Matín; GONZÁLEZ, Guillermo. El
arte del piano. Madrid: Editora Real Musical, 1987. 217 p.
OURKOUZOUNOV, Atanas. Trois Balkanesques: música balcânica; violão. Québec: Les
Éditions Doberman-Yppan Editions, 2015. Partitura. 12 p.
PENANNEN, Risto Pekka. Lost in Scales: Balkan Folk Music Research and the Ottoman
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SACHS, Curt. Rhythm and tempo: a study in music history. Nova York: W.W. Norton &
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TADIĆ, Miroslav. Laments, Dances and Lullabies: volume 1, música balcânica; violão.
Québec: Les Éditions Doberman-Yppan, 2008. Partitura. 16 p.
ÜSTÜNTAŞ, Çağdaş. Alli Turnam: canção anônima turca; arranjo para violão. [S.l.: s.n., 200?].
Partitura manuscrita. 2 p.
______. Indim Yarin Bahçesine: canção anônima do Azerbaijão; arranjo para violão. [S.l.: s.n.,
200?]. Partitura. 4 p.
______. Taço'nun Ruyasi: música turca; violão. [S.l.: s.n., 200?]. Partitura. 3 p.
VEYSEL, Aşık. Çiğdem Der Ki: canção turca; arranjo para violão de Serkan Yilmaz. [S.l.: s.n.],
2019. Partitura. 2 p.
______. Kara Toprak: canção turca; arranjo para violão de Ricardo Moyano. [S.l.: s.n., 199?]
Partitura. 6 p.
YILMAZ, Serkan. Çöl Masali: música turca; violão. [S.l.: s.n., 200?]. Partitura. 13 p.
______. Mastika: música cigana turca; arranjo para violão. [S.l.: s.n.], 2019. Partitura. 4 p.
Notas
1
“Le terme turc aksak, emprunté à la théorie musicale ottomane, signifie « boiteux», « trébuchant», « claudiquant»,
en d’autres termes, irrégulier.” (AROM, 2004, p.2).
2
Bicronia irregular é um termo proposto pelo etnomusicólogo romeno Constantin Brăiloiu (1893-1958) em seu
trabalho Le Rythme Aksak (1952) – primeiro registro ocidental em que o termo aksak foi empregado. A bicronia
irregular diz respeito à irregularidade na percepção temporal das unidade de tempo, ou seja, ao invés de uma tem-
se duas unidades: uma pontuada e outra não pontuada.
3
A afinação reentrante ocorre quando determinada corda adjacente de cima tem um som mais agudo do que a de
baixo. Este tipo de afinação não obedece a lógica do violão, por exemplo, que traz – de cima a baixo – as cordas
mais graves às agudas.
4
Afinação comumente chamada de standard long-neck bağlama A tunning.
5
“...o que isso significa – a imagem estética – senão a música em si, a matéria sonora que vive, o discurso musical
com suas leis, seus componentes, que são chamados a harmonia, polifonia, etc...em sua forma definida e em seu
conteúdo poético e emocional?” (NEUHAUS, 1987, p.21).