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A CARTOGRAFIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE

GEOGRAFIA: CONTRAPONTOS DE UMA PESQUISA

THE CARTOGRAPHY IN DIDACTIC GEOGRAPHY BOOKS: THE FOR AND


AGAINST POINTS OF A RESEARCH

CLÉZIO SANTOS
Colegiado de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Centro Universitário Fundação Santo André - CUFSA

RESUMO

A Cartografia e a Geografia estão diretamente presentes na sociedade, tanto no dia-a-dia, como em setores específicos. A escola é
um desses locais onde a presença desses conhecimentos é importante na tarefa de formar e informar nossos cidadãos. O ambiente
escolar nos faz refletir, enquanto pesquisadores, o comprometimento social que temos, em trabalhar as diversas realidades presentes
no cotidiano dos alunos. Pretendemos, com nossa pesquisa, oferecer aos professores e alunos de Geografia do Ensino Fundamental
e Médio alternativas de trabalho da realidade espaço geográfico na sala de aula, por meio da representação gráfica e cartográfica,
colaborando para divulgar a relevância da Cartografia no processo de ensino-aprendizagem de Geografia no Ensino Médio, e
ressaltando a necessidade da linguagem visual nesse período escolar.

PALAVRAS-CHAVE: cartografia; geografia escolar; representação

Os livros não são feitos para acreditarmos trabalho. A escolha da definição também pretende
neles, mas para serem submetidos a facilitar e distinguir o livro didático dos outros livros e
investigações. Diante de um livro não materiais escolares, como os livros de referência, os
devemos nos perguntar o que diz mas nos textos-base, atlas, enciclopédias, dicionários, entre
perguntar o que quer dizer, idéia que os outros.
velhos comentadores dos livros sagrados Para que possamos entender como a cartografia
tiveram claríssima (UMBERTO ECO) se encontra nos livros didáticos do ensino médio,
devemos antes de mais nada entender o livro didático
O tema livro didático é polêmico no Brasil. Até no Brasil. Entender esse material didático extrapola seu
mesmo a definição do que seja o livro didático torna-se lado aparente e necessita do entendimento de sua gênese
objeto de debates. Todo livro é ou pode ser didático, e estrutura. Apresentamos, neste trabalho, os estudos
dependendo do seu uso, argumentam alguns. Outros são sobre livro didático no Brasil, destacando os livros de
mais precisos e diferem de forma bem clara. Adotaremos geografia e focalizamos a cartografia nos livros didáticos
nesta pesquisa a definição de Richaudeau (1979, p. 5) de geografia.
segundo o qual “o livro didático será entendido como Todavia, não descartamos uma incursão pela
um material impresso, estruturado, destinado ou história do livro didático no Brasil, destacando as políticas
adequado a ser utilizado num processo de aprendizagem educacionais do governo e ressaltando a importância
ou formação”. desse material didático que, apesar de muito criticado, é
Procuramos com essa definição sobre o livro de relevância reconhecida. É necessário também
didático delimitar o campo de estudo e um vocábulo de ressaltar os aspectos pedagógicos, mercadológicos e
Livro didático-definição

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políticos do livro didático. Indicamos, para um maior Para Schaffer (1998), ainda que existam poucos
aprofundamento, os trabalho de Mekesenas (1998, estudos sobre a forma de uso e os efeitos do livro didático
p. 55), Oliveira (1980), Oliveira, Guimarães e Bomény em sala de aula, muitos são os textos sobre este livro,
(1984), Soares (1996), Mekesenas (1998), Pena e Cicilli sua evolução e suas características, que apontam para
(2001). sua indiscutível importância no processo de ensino
aprendizagem no Brasil.
O ESTUDO DO LIVRO DIDÁTICO DE O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
GEOGRAFIA (IBGE) e o Colégio D. Pedro II do Rio de Janeiro por
muito tempo foram os “grandes mentores” do elenco de
É necessário proceder uma mudança na conteúdos que deveria constar do programa de ensino
estrutura dos livros. Essa mudança deve ser da disciplina geografia no Brasil, antes da formação da
norteada fundamentalmente pela primeira geração de licenciados das universidades de
preocupação de se construir documentos São Paulo e do Rio de Janeiro.
cartográficos mais inteligíveis, para serem O IBGE teve papel expressivo na produção de
usados como instrumentos de elaboração de artigos de caráter geográfico, chegando aos alunos do
conhecimento e não apenas como ilustrações antigo ginásio e colégio via professores de geografia,
do texto geográfico (LE SANN, 1985, p .36). desde a escola fundamental até a universidade, pelos
Segundo Pontuschka (1999), até os anos 60, livros didáticos e orientações metodológicas
muito pouco sabemos sobre a produção de pesquisas fundamentadas em materiais e publicações produzidas
voltadas para o ensino e aprendizagem da geografia, a por esse órgão.
não ser pelas críticas aos livros didáticos, realizadas Segundo Prevé (1988)1 para o ensino médio
sobretudo por historiadores ou pelos próprios autores destacou-se o Boletim Geográfico, com
que, na década de 30, produziram livros sobre distribuição em todo território nacional, por
metodologia da geografia, com destaque para Delgado intermédio das agências e delegacias do
de Carvalho. IBGE, tendo sido um dos primeiros a se
Essas críticas, feitas por historiadores e autores preocupar com o ensino da geografia de
de livros didáticos de geografia, não compunham ainda forma regular. O Boletim Geográfico, que
existiu por trinta e seis anos (de 1943 a
estudos mais aprofundados sobre os livros didáticos.
1978), possuía várias seções, entre elas, uma
Mas essas críticas foram importantes para alterar a
dedicada ao ensino de geografia. Os
estrutura dos livros.
geógrafos estrangeiros e a geração que
A Metodologia do ensino de geografia,
sucederam deixaram artigos e transcrições
publicado em 1925, constituiu o trabalho
sobre ensino nesse periódico.
mais importante de geografia do Brasil, na
Podemos destacar outras duas instituições que
primeira metade do século XX, escrito por
passaram a influenciar decisivamente a geografia
Delgado de Carvalho, professor e diretor do brasileira, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
tradicional Colégio D. Pedro II é o primeiro (FFCL)2 , da USP, fundada em 1934 e a Associação
a se preocupar com o ensino de geografia, dos Geógrafos Brasileiros (AGB) fundada em 1935,
fundamentado pelo método de pesquisa e explicitadas em detalhes no capítulo sobre o pensamento
ensino da época e propondo uma geográfico.
distribuição mais precisa e lógica dos Para Pontuschka (op. cit., p. 114) “a geografia
conteúdos. Esse estudioso interferiu inclusive no antigo ginásio, até a época da fundação da FFLC-
nas concepções dessa disciplina nas reformas USP, nada mais era do que a dos livros didáticos.
de ensino ocorridas no início do século em
nosso país. (PONTUSCHKA, op. cit., p. 113).
Já na segunda metade do século XX, os
geógrafos passaram a produzir mais artigos sobre o 1
PREVÉ, Orlandina S. D. A autora analisa o papel do IBGE no ensino
ensino de geografia, preocupados bem mais com os e formação dos professores de geografia. Temos ainda poucos trabalhos
que versam sobre o livro didático de geografia neste periódico.
conteúdos escolares, do que com o ensino da geografia. 2
Após a reforma universitária esta unidade da Universidade de São
O livro didático só era criticado em função dos conteúdos Paulo passou a chamar-se Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
presentes e não enquanto forma. Humanas (FFLCH).

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Conteúdo de Geografia
abordado no Brasil antes da
criação da fflc

Geralmente eles expressam o que havia sido a geografia aceita por várias instituições, dentre elas destacamos o
até meados do século XIX na Europa: enumeração de Departamento de Geografia da USP e a Associação
nomes de rios, serras, montanhas, capitais, cidades dos Geógrafos Brasileiros (AGB) em suas várias seções
principais, totais demográficos de países, de cidades etc.” esparramadas pelo território nacional4 .
Sem dúvida, a fundação da Faculdade de O importante é que nesta linha e nestas
Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo, instituições gestaram-se inúmeros trabalhos sobre o
contribui para mudanças no perfil do professor de ensino de geografia e, em especial, o estudo do livro
geografia e das demais disciplinas presentes na grade didático de geografia que influenciaram e continuam a
curricular nacional, criando um profissional novo, o influenciar mudanças no panorama do ensino brasileiro
bacharel e licenciado em geografia, com um papel de geografia.
importante na mudança cultural, sobretudo na sala de Para Schaffer (1998, p. 13) quanto à produção
aula e na produção da geografia. de material relativo ao livro didático de
A Associação dos Geógrafos Brasileiros Seção geografia, presencia-se um crescente número
Contribuição de artigos em revistas especializadas,
São Paulo deu início à publicação do Boletim Paulista da ABG
de Geografia (BPG), tornando-se o órgão mais sobretudo após o V Encontro Nacional de
importante de divulgação dos geógrafos paulistas e, Geógrafos (V ENG), realizado em Porto
principalmente da USP. Seu primeiro número surgiu em Alegre, em julho de 1982. A Associação dos
1946, contanto hoje com 78 números publicados. Os Geógrafos Brasileiros (AGB) vem tendo um
artigos contidos nesse periódico passaram a influenciar papel decisivo no estímulo a esta produção
o ensino de geografia não apenas no Estado de São e na abertura de espaços para o debate deste
Paulo, como em todo o Brasil, já que a AGB é uma tema.
entidade nacional. Podemos encontramos artigos críticos A década de 80 é marcada pelo aumento da
sobre o ensino de geografia e sobre o livro didático de discussão e reflexão sobre o livro didático de geografia,
geografia nas publicações desta associação. resultando numa produção de livros didáticos de melhor
Na década de 70 temos uma outra linha do qualidade, principalmente para o ensino médio, de
pensamento geográfico estruturando-se no Estado de inúmeros títulos de paradidáticos de geografia escritos
São Paulo, junto ao Departamento de Geografia da por professores pesquisadores das universidade paulistas,
do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, entre outros locais.
Faculdade de Filosofia de Rio Claro, que fundou uma
Temos a presença de pós-graduandos preocupados com
entidade denominada Associação de Geografia Teorética
a realização de teses, dissertações e artigos sobre o
(AGETEO). Produziu, em 1971, o primeiro número do
ensino de geografia.
periódico denominado Boletim de Geografia Teorética.
Nessa mesma década, a Associação dos
Esses geógrafos eram influenciados pelo IBGE do Rio
Geógrafos Brasileiros teve papel
de Janeiro e utilizavam procedimentos quantitativos em
fundamental na promoção de encontros como
suas análises3 .
o objetivo principal de pensar o ensino de
Esta linha de pensamento geográfico não teve
geografia no país. O objetivo seria atingir
repercussão no ensino fundamental e médio brasileiro.
os docentes das escolas de 1º 2º e 3º graus,
Encontramos poucos artigos sobre o ensino de geografia
descobrindo meios para minimizar a
no Boletim de Geografia Teorética, mas não é a pouca
compartimentação dos conteúdos escolares,
quantidade de material sobre o ensino a causa maior.
a distância do ensino da geografia em
Este grupo ficou restrito a Rio Claro e a outros poucos
relação à realidade social, política e
centros universitários.
econômica do país e conseguir a maior
A década de 80 é marcada por uma outra linha
participação dos docentes das escolas
de pensamento geográfico, oposicionista à anterior, que
públicas de 1º e 2º graus nos debates que se
buscava um caminho para a compreensão e a explicação
realizavam no âmbito da universidade
do espaço geográfico. Tinha a orientação marxista,
(PONTUSCHKA, op. cit., p. 127).
denominada de geografia crítica. Essa linha foi bem

3
O IBGE foi o pioneiro na produção de artigos geográficos utilizando 4
Isso não quer dizer que todo o corpo destas instituições seguia a abor-
métodos matemáticos. Essas análises podem ser lidas em diferentes dagem materialista/dialética e nem que, em outras instituições, não
números da Revista Brasileira de Geografia, publicada por este órgão. havia seguidores dessa maneira de pensar e fazer geografia.

Preocupação com o
ensino de Geografia nos
anos 80
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Com este intuito, a AGB realizou o I Encontro um novo posicionamento: a reflexão do autor de livro
Nacional de Ensino de Geografia – Fala professor, em didático e seu uso no ensino médio. Rua enriquece seu
Brasília (DF) – 1990; o II Encontro Nacional de Ensino trabalho trazendo o posicionamento de quem elabora o
de Geografia – Fala professor, em São Paulo (SP) - livro didático e de quem o utiliza na sala de aula – o
1992; o III Encontro Nacional de Ensino de Geografia – professor apresenta exercícios e os discute, como uma
Fala professor, em Presidente Prudente (SP) – 1995 e o aula interpretativa em que o eixo principal é o discurso
IV Encontro Nacional de Ensino de Geografia – Fala adotado pelo autor de livro didático e a resposta do
professor, em Curitiba (PR) em 1999. professor que utiliza esse material.
Nas décadas de 80 e 90, uma importante O mestrado de Rockenbach (op. cit.) enfoca o
produção geográfica sobre o ensino foi colocada à estudo da geografia urbana no livro didático de geografia
disposição dos professores de geografia e dos e utiliza a metodologia de questionários para captar suas
formadores de professores do país, como apresentamos informações. Sua amostra refletiu 54% dos professores
no capítulo anterior. Essa produção não mais se restringe de geografia da 16ª delegacia de ensino da capital de
a uma única linha de pensamento, temos expressos os São Paulo, apontado suas visões sobre conceitos em
embates teóricos-metodológicos entre as diferentes geografia urbana, e refletindo como os professores
correntes do pensamento geográfico: a Geografia Nova, trabalhavam com as problemáticas ligadas à
a Geografia Tradicional, a Geografia Crítica, a Geografia urbanização.
Comportamental. Os diversos enfoques enriqueceram Os três trabalhos que comentamos brevemente
acima demonstram o caminhar de uma linha de pesquisa
mais as análises sobre o ensino de geografia.
dentro do Departamento de Geografia da Faculdade de
Nos anos 80-90, a linha de pesquisa que aglutina
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
maior número de trabalhos sobre o ensino de geografia,
de São Paulo, que vem se desenvolvendo desde a década
versa sobre o instrumento de trabalho mais utilizado em
de 80. Nosso trabalho procura acrescentar a essa linha
sala de aula: o livro didático.
o papel da cartografia temática do relevo junto ao livro
Dentre os trabalhos que enfatizam os livros
didática e conseqüentemente no ensino de geografia do
didáticos de geografia, destacamos as dissertações de
nível médio.
mestrado de Ribeiro (1983), Rua (1990) e Rockenbach
(1993), defendidas no Departamento de Geografia da A CARTOGRAFIA NOS LIVROS DIDÁTICOS
USP e o artigos de Castrogiovanni e Goulart (1998) e DE GEOGRAFIA DO ENSINO MÉDIO
de Schaffer (1998) sobre a reflexão dos estudos do livro
didático de geografia. As obras escolhidas não esgotam Pretendemos perseguir uma análise crítica sobre
a bibliografia sobre este tema, entretanto, são referências a cartografia encontrada nos livros didáticos de geografia
importantes para os estudos sobre o livro didático de do ensino médio. Não pretendemos esgotar as
geografia. discussões, já que, muitas vezes, estão permeadas de
O trabalho de Ribeiro (op. cit.), esta dividido polêmica, mas fazer uma reflexão que permita a abertura
em três partes. Na primeira parte, procura “localizar” a de um campo de pesquisa sobre a utilização da
formação dos estudos de população na geografia, na cartografia temática no ensino médio de geografia,
segunda, identifica a formação dos conteúdos de enfatizando a representação gráfica do relevo.
população nos livros didáticos de geografia do Brasil e, A crise que se instalou na estrutura e no sistema
na última parte, faz a crítica do estudo da população nos educacional brasileiro, somada à própria crise de muitos
livros didáticos de geografia da 5ª série. Este trabalho é paradigmas científicos que, com certeza, afetam a
importante por ser original – enfocando o livro didático geografia, tem impedido uma prática de ensino mais
como objeto de estudo e pesquisa - e por servir de obra saudável. Ou seja, no tocante a esse ensino em séries
de diálogo aos dois trabalhos que o sucedem, bem como ou ciclos iniciais, ainda predomina a idéia de que os
aos demais trabalhos que enfocam o livro didático, seja profissionais que atuam nestes níveis de ensino são
no ensino de geografia como nos demais. reprodutores daquilo que se produz no gabinete de
A pesquisa de Rua (op. cit.) dá continuidade acadêmicos ou dos autores do livro didáticos. Além do
ao diálogo iniciado pelo autor anterior, acrescentando mais, coloca-se em questão a qualidade dos cursos de

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formação dos professores e, finalmente, a questão das O resultado dessa forma de encarar e trabalhar
condições de trabalho para o exercício satisfatório da a cartografia no ensino de geografia reflete, em alguns
profissão docente. Em relação às condições de trabalho, aspectos, deficiências para a vida do educando.
ensinar/aprender cartografia exige profissionais Podemos notar que a maioria dos adultos se perde
qualificados e muitos equipamentos que permitam ao facilmente na locomoção em espaços pouco conhecidos,
aprendiz, futuro educador, ter uma base mínima de ou mesmo, na tentativa de representação do espaço
compreensão das linguagens cartográficas. Apesar da vivido.
amplitude destas referências, aqui relacionadas, podemos Podemos verificar a ausência da construção
afirmar a existência de poucos cursos de graduação e gradativa dos conceitos de cartografia no ensino de
pós graduação que fazem um estudo mais sistemático geografia mencionados acima. Este posicionamento fica
da cartografia e seu uso no ensino (LIMA, 2000, p. 41). claro nos livros didático, nos quais parênteses, capítulos,
Destacamos um elemento desse panorama
caixas de textos, são abertos em meios ao
traçado por Lima (op. cit), a questão da formação de
desenvolvimento de conteúdos e temas geográficos. Os
geografia no que se refere à cartografia, um
conceitos de cartografia aparecem como elementos
conhecimento muito próximo da geografia, como
detalhamos no primeiro capítulo. É muito comum os externos e ilustrativos; eles não aparecem
cursos superiores de geografia estruturarem seus contextualizados ao conteúdo geográfico escolar, ou à
currículos sem se preocupar com a ampliação da visão vida cotidiana dos alunos.
de cartografia aos profissionais que irão se utilizar dela A cartografia é um importante recurso de
e limitam a formação a abordagens insuficientes5 . aprendizagem que não pode ser subutilizada no ensino
Impedem um maior contato com a cartografia para além de geografia. Não queremos abandonar o conteúdo
daquelas que consideram a cartografia apenas como geográfico em prol de um novo conteúdo - o cartográfico,
ilustração gráfica de materiais didáticos, subestimando mas gostaríamos de defender um tratamento mais sério
essa importante linguagem gráfica, importante para os da cartografia no ensino de geografia, principalmente
estudos geográficos. no livro didático. Não defendemos também uma utilização
Essa deficiência em relação à cartografia por meramente associada a uma nova política de orientação
parte dos professores de geografia do ensino pedagógica e sim a uma utilização mais eficaz da
fundamental fica mais caótica no ensino médio, já que potencialidade desse conhecimento pela geografia. Não
as deficiências são repassadas e somadas. É comum se trata de uma imposição de conceitos e sim de utilização
perceber o quanto a cartografia é pouco utilizada e até de conceitos em prol de um conteúdo, colaborando com
desmerecida nos vários níveis de ensino. No ensino o enriquecimento do conteúdo geográfico, seja no ensino
fundamental e no médio, são raras as iniciativas que fundamental, seja no médio.
valorizam o desenvolvimento de conceitos elementares Os livros didáticos de geografia no ensino médio,
da cartografia como lateralidade, profundidade, quanto às suas representações gráficas – cartográficas,
densidade, reversibilidade, perspectivas, projeções, e enquanto subsídios à aprendizagem, merecem atenção
coordenadas, descentralidade, dentre outros. maior. A história dos livros didáticos em geral, como os
Para Almeida e Passini (1989) os conceitos de geografia, já desenvolvida antes, está relacionada com
referentes à cartografia quando apresentados no ensino
as ações governamentais quanto à propagação de
de geografia, são trabalhados como conteúdos prontos,
interesses e ideologias, além do fortalecimento da
tecnicamente precisos, desconsidera-se a dedicação de
indústria gráfica e editorial no país.
tempo para construí-los gradativamente.
Os conteúdos presentes nos livros didáticos de
geografia, como das demais disciplinas escolares,
passaram a ter ares de manuais construídos para alunos
5
O problema agrava-se em cursos privados de licenciatura em geogra-
fia, em que temos poucas disciplinas relacionadas à cartografia; em e professores. Ou seja, nossa história educacional
muitos cursos, é reduzida ao número de uma. A cartografia escolar depositou e ainda deposita nos livros didáticos uma
trabalhada por alguns professores de prática e metodologia de ensino de grande confiança. Eles aparecem como “norteadores”
geografia nos cursos públicos de geografia é inexistente por parte de
professores de prática de ensino de escolas privadas, cuja formação e “interlocutores” privilegiados do processo de ensino-
provém de cursos de pedagogia. aprendizagem, eles passam a ser quase inquestionáveis.
deficiência do ensino
cartográfico nas escolas

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dogmatismo dos professores
ao livro didático e como isso
influencia no ensino
A postura adotada em relação ao livro didático, Acrescentaríamos à tecnologia da indústria
repercute nas representações gráficas e cartográficas gráfica e editorial a nova política educacional brasileira:
presentes neles. O material cartográfico é visto como os novos parâmetros curriculares nacionais (PCNs), que
verdade absoluta por alunos e professores. Poucos passaram a vigorar no final da década de 90, privilegiando
professores aventuram-se a trabalhar a cartografia de os conceitos cartográficos, fazendo com que todas as
forma mais crítica. Ela permanece como mera ilustração obras didáticas alterassem suas estruturas. Vemos
em meio ao conteúdo dos livros didáticos. novamente o atrelamento do livro didático ao governo.
Essa situação de desvalorizar a cartografia como Antes, a escolha do uso de mapas por parte de
recurso útil para compreender os conteúdos geográficos
autores de livros didático era feita por suas concepções
agrava-se nos livros didáticos; o rigor técnico-
de mundo e formação profissional. Hoje temos dúvidas
cartográfico distancia-se, e a cartografia é apresentada
dessa liberdade de escolha, o que prevalece é como esses
muito mais como ilustração, do que propriamente como
instrumento de compreensão da realidade social. autores vêem a cartografia. Muitos ainda de forma
A cartografia do livro didático nem sempre ilustrativa apenas, e outros já começam a apresentar
alcança esses objetivos, haja visto os em suas obras representações gráficas e cartográficas
depoimentos de professores sobre as questionadoras. Quais materiais esses autores escolhem
dificuldades e as atitudes negativas dos é o maior diferencial dos modos de pensar e de expressar
alunos em relação aos mapas e gráficos. graficamente os conteúdos geográficos.
Essa atitude muitas vezes é uma resposta à Seguindo um pouco essas idéias, Santos e Le
má qualidade das ilustrações...é um reflexo Sann (op. cit., p. 8), concluem que 65% das
da atitude do professor despreparado para representações cartográficas dos livros didáticos
ler, analisar e/ou construir documentos referem-se basicamente a mapas sobre: recursos
cartográficos (SANTOS; LE SANN, 1985, p. minerais, divisão políticas, relevo, agricultura, industria
4). e clima. Mapas de população, históricos e de vegetação,
Essa visão sobre os usuários da cartografia nos representam 18,7%.
livros didáticos de geografia está presa muito mais às Esses dados apontados por Le Sann (1983)
questões técnicas e teóricas das representações gráficas deixam claro: o que prevalece são mapas estáticos e
e cartográficas, do que aos recursos tecnológicos da não mapas dinâmicos. As representações gráficas e
indústria editorial. Os produtos cartográficos devem
cartográficas expressam um espaço estático, onde as
também ser construídos como os textos presentes
mudanças causadas pelo homem não são representadas.
nesses mesmo livros, eles devem ser questionadores e
Nos trabalhos de Passini (1990, 1994), cujo
não meramente ilustrativos.
Bertin (1979) sugere que toda representação enfoque é a análise crítica da “alfabetização
cartográfica proposta por autor que observa o mundo cartográfica” presente nos livros didáticos dos dois
real, depois de passar pelas mãos de um receptor ou primeiros ciclos do ensino fundamental (1ª à 4ª séries),
usuário, deve ser acrescentada ou, no mínimo, avaliada podemos também localizar os conteúdos dos mapas
em sua capacidade de poder comunicar ou informar presentes nos livros didáticos nestes ciclos.
sobre a realidade representada. Lima (2000, p. 54), em trabalho de análise de
Segundo Santos e Le Sann (op. cit., p. 8) os livros didáticos de geografia feitos até 1995, ressalta que
livros didáticos de geografia publicados, principalmente no final da década de 80 e início de 90, os livros didáticos
a partir dos anos 80, apresentam um número de geografia passaram a ter uma redução do número de
considerável de mapas como simples ilustração, em torno mapas; nesse momento, as propostas curriculares
de 78%, contra 14% de gráficos. Provavelmente o estaduais – destacando os Estados de São Paulo e Minas
aumento das ilustrações por meio de mapas, em livros Gerais - privilegiavam os conteúdos de geografia política
didáticos, se deva principalmente ao fato de terem e de geopolítica. Em outros casos, continuam a
sofisticadíssimos sistemas infográficos adotados pelas apresentar mapas mal elaborados ou incompatíveis entre
grandes gráficas e editoras. os conteúdos específicos e as informações dos mapas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS BERTIN, J. Sémiologie Ghapique: Les diagrames, Les
Réseaux, Les Cartes. Paris: Mouton e Gauthier, 1979.
Atualmente podemos perceber que temos uma
crescente valorização dos conceitos e conteúdos CASTROGIOVANI, A.; GOULART, M. O discurso e
cartográficos nos meios científicos e mesmo nos de o ensino de geografia. Boletim Gaúcho de Geografia,
comunicação. Destacamos o grupo de cartografia n. 16, p. 22-32,1998.
escolar que passou a atuar mais diretamente junto às
universidades brasileiras, divulgando e debatendo os LE SANN, J. G. Documento cartográfico: considerações
trabalhos de cartografia no âmbito escolar, grupo este gerais. Revista Geografia e Ensino. Belo Horizonte:
reunido desde 1995 nos colóquios e encontros da área. UFMG, n. 3, p. 3 - 17, mar. 1985.
Algumas edições de livros didáticos que utilizam
LIMA, H. R. Algumas reflexões sobre o uso de mapas
sistemas gráficos sofisticados começam a melhorar a
e atlas no ensino fundamental e no ensino médio. Revista
qualidade dos mapas, tabelas e gravuras, levando em
Olhares & Trilhas. Uberlândia: ESEBA/UFU, v. 1, n.
conta não apenas o avanço da tecnologia, mas também
1, p. 40 - 59, 2000.
as teorias de comunicação e representação gráfica
debatidas e experenciadas por trabalhos de cartografia
MEKESENAS, P. O uso do livro didático e a Pedagogia
e análise de imagens.
da Comunicação. In: PENTEADO, H. D. (Org.).
Porém, muitos livros ainda lidam a cartografia Pedagogia da Comunicação: teorias e práticas. São
como ilustração, apresentando uma cartografia Paulo: Cortez, 1998. p. 51 - 75.
desinteressante, que pouco auxilia no processo de ensino-
aprendizagem de geografia. OLIVEIRA, A. L. O livro didático. Belo Horizonte:
A cartografia deve, por meio de sua linguagem Eddal, 1980.
gráfica específica, incrementar a análise espacial e
proporcionar aos alunos uma nova leitura da realidade. OLIVEIRA, J. B. A; GUIMARÃES, S. D. P.;
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São Paulo, 1993.
Clézio Santos é Professor do Centro Universitário
RUA, J. Em busca da autonomia e da construção do Fundação Santo André e pós-graduando no
conhecimento. 1990. 213 f. (Mestrado em Geografia) Departamento de Geografia da Universidade de São
- Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Paulo.
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
São Paulo, 1990. Centro Universitário Fundação Santo André / Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras
Av. Príncipe de Gales, 821
SANTOS, C. A cartografia no ensino médio. 2002. CEP: 09060-650 - Santo André - SP
196 f. (Mestrado em Geografia) - Departamento de e-mail: cleziosantos@ibest.com.br
Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
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SANTOS, M. M. D.; LE SANN, J. G. A cartografia Tramitação:


ano livro didático de geografia. Revista Geografia e Artigo recebido em: 13/02/2003
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