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MARCELO DE SALETE SOUZA

A configuração
da curadoria de arte
afro-brasileira de
Emanoel Araujo

Dissertação para obtenção do título de mestre


do Programa de Pós-graduação Interunidades
em Estética e História da Arte da Universidade
de São Paulo, sob orientação da Profª. Drª.
Dilma de Melo Silva, na área de concentração
História e Historiografia da Arte. Este trabalho
tem apoio da FAPESP.

Universidade de São Paulo


São Paulo
2009

1
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Dedico este trabalho à presença constante de Alaíde de Salete Souza,
à memória viva de Cláudio de Salete Souza,
à simplicidade de Francisco Benedito Souza,
à cumplicidade de Marcos e Sheila e à rica vida de Robson.
Dedico também aos amigos e companheiros
que tornaram este estudo possível
e em especial à amizade de Uirai Fuscaldo.

2
Banca Examinadora

Data: ____/___/___

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço aos meus professores e amigos. Gostaria de pontuar


aqui cada um em especial que contribuiu para este trabalho. Infelizmente, a escassez de
espaço não torna isso possível.

Em especial tenho de lembrar as ricas entrevistas realizadas com Maria Lucia


Montes, Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Gilberto Habib, Renata Felinto, Oswaldo
de Camargo, Maria da Betânia Galas e o próprio Emanoel Araujo. Sem estas
contribuições, este trabalho não seria possível. É preciso destacar também a ajuda de Ana
Lúcia Lopes e Percival Tirapelli. Mais do que material importante de pesquisa, todas
essas colaborações engrandeceram o meu olhar.

Durante seu desenvolvimento, este trabalho contou com a colaboração dos


funcionários do Museu Afro Brasil (em especial, Romilda Silva, Isabel Monteiro e
Claudio Nakai); dos funcionários da Biblioteca da Estação Pinacoteca; dos funcionários
do CEDOC, e dos funcionários da Biblioteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
A todos estes sou muito grato pela ajuda.

Além disso, e de extrema importância, revelo minhas especiais considerações à


leitura sempre atenta de Brisa Batista e de Allan Santos da Rosa. Certamente, este texto,
em sua contínua reescrita, foi melhorado com o apoio destes. Mais do que isso, eles
foram interlocutores preciosos. Como não poderia deixar de mencionar, o apoio da
FAPESP foi essencial para a concretização desta dissertação.

4
Resumo

Este trabalho objetiva realizar um estudo sobre a curadoria de Emanoel Araujo, artista,
colecionador e curador baiano. Focaremos compreender os interesses do curador em suas
mostras sobre arte afro-brasileira. A atividade de Araujo acontece dentro do museu de
arte e tem como objetivo último o ato expositivo. A sua maneira de ordenar as obras de
arte no espaço cria uma narrativa sobre arte afro-brasileira que poucas vezes foi abordada
dentro do museu. Perceber como é efetivada essa história, bem como quais são as
conseqüências dela para a história da arte no Brasil, é uma tarefa urgente. O universo da
exposição de Araujo, como um espaço privilegiado de debate e confronto, é de grande
relevância para compreender como se efetiva a visualidade e representação do negro em
toda a sociedade brasileira. Nesse sentido, a explanação sobre as principais exposições de
Araujo no Brasil traz problemas e interrogações relevantes para se pensar a arte afro-
brasileira e a arte brasileira como um todo. A curadoria da arte afro-brasileira de Araujo
é ainda um campo de poucas abordagens acadêmicas. Pontuar como começou essa ação,
como se efetivou e os seus desdobramentos dentro da história da arte é o nosso
propósito.

Palavras-chave: Emanoel Araujo. Arte afro-brasileira. Artes Plásticas. Museologia.


Exposição. Curadoria.

5
Abstract

This paperwork intends to make a study about Emanuel Araujo’s directorship. He is a


notable baiano artist, collector and also a museum’s headman. The main focus is the
searching about his intention on the exhibitions of Afro-Brazilian art. Araujo’s work
happens inside the art museum and has the main target the expositive act. His way to
organize the art pieces in the museum’s space creates an unique narrative, many times
not as important as the exhibitions itself. Realize how this history is constructed and their
consequence to the History of Arts in Brazil is extremely urgent. The single universe of
the exposition, as a privileged space for debate and the confront between the elements is
very relevant to understand how the visibility and representative of the Negro individual
is really effective in the society. This study also focuses how the Afro-Brazilian Arts
appear in the literature about the theme. Besides, the explanation about Araujo’s
principal exhibitions in Brazil brings relevant questions and problems to reflect about the
Afro-Brazilian Arts and also all the Brazilian Arts fields. His narrative in Afro-Brazilian
Arts is a field still not much spoken in the academic environment. Point how this
movement has began, its effectuation and the future disenrollment in the History of Arts
is this paperwork purpose.

Keywords: Afro-Brazilian Arts. Emanuel Araujo. Museum. Exhibitions. Arts in Brazil.

6
Sumário

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9

1. SOBRE ARTE AFRO-BRASILEIRA ......................................................................... 15


A arte brasileira de Luis Gonzaga-Duque Estrada ....................................................... 17
O projeto “mulato” de Mário de Andrade .................................................................... 21
A “arte negra” de Nina Rodrigues ................................................................................ 23
Estudos recentes sobre arte afro-brasileira ................................................................... 25
Artistas negros e afro-brasileiros .................................................................................. 34
Arte afro-brasileira na curadoria de Emanoel Araujo................................................... 37

2. O MUSEU E O ESPAÇO DA EXPOSIÇÃO............................................................... 43


O museu tradicional e a nova museologia .................................................................... 45
O museu tradicional e a arte de origem não-ocidental ................................................. 49
Cultura e arte afro-brasileira no museu ........................................................................ 52
Novas práticas museológicas e a exposição de Emanoel Araujo ................................. 59

3. AS FACES DO CURADOR ........................................................................................ 64


O artista ......................................................................................................................... 65
O colecionador .............................................................................................................. 71
O curador ...................................................................................................................... 74

4. O CONTEXTO DAS EXPOSIÇÕES........................................................................... 81


Poética do acúmulo ....................................................................................................... 82
Exotismo ....................................................................................................................... 86
Memória e reconhecimento .......................................................................................... 90
Um momento preciso.................................................................................................... 94
Ambigüidade................................................................................................................. 96
Ancestralidade ............................................................................................................ 100

5. AS EXPOSIÇÕES SOBRE ARTE AFRO-BRASILEIRA ........................................ 104


A Mão Afro-brasileira ................................................................................................ 106
Vozes da Diáspora ...................................................................................................... 111
Os Herdeiros da Noite – Fragmentos do imaginário negro ........................................ 115
Negro de Corpo e Alma .............................................................................................. 120
Brasileiro, Brasileiros ................................................................................................. 125
Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade ............................... 128
Bijagós – A arte dos povos da Guiné-Bissau.............................................................. 130
Negros Pintores ........................................................................................................... 133
Brasil – Terra de Contrastes ....................................................................................... 134
De Valentim a Valentim ............................................................................................. 136
Artistas afro-brasileiros do acervo permanente do Museu Afro Brasil ...................... 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 143

ANEXOS ........................................................................................................................ 153


Anexos de imagens ..................................................................................................... 154

7
Anexos de entrevistas ................................................................................................. 196
Entrevista de Emanoel Araujo .................................................................................... 197
Entrevista de Maria Lucia Montes .............................................................................. 200
Entrevista de Gilbero Habib Mendonça ..................................................................... 213
Entrevista de Carlos Eugênio Marcondes de Moura .................................................. 228
Entrevista de Maria da Betânia Galas......................................................................... 232
Entrevista de Oswaldo de Camargo ............................................................................ 234
Entrevista de Renata Felinto ....................................................................................... 236
Relação de parte das exposições com destaque sobre arte afro-brasileira e da África de
Emanoel Araujo .......................................................................................................... 243

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 244


Referências bibliográficas de ou sobre Emanoel Araujo ............................................ 244
Referência bibliográfica geral..................................................................................... 248

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Introdução

Este trabalho é um estudo sobre arte afro-brasileira nas exposições de Emanoel


Araujo. Pretendemos compreender o que é essa curadoria e como ela se efetiva no
espaço expositivo. Desse modo, focaremos o estudo dos seus antecedentes e de seu
contexto – tanto em sua esfera social como na especificidade das experiências do
curador.
Embora tenhamos como foco a curadoria de Araujo que remete ao universo afro-
brasileiro, o autor não se pautou somente por esse fenômeno. Ele abordou a arte erudita
internacional e propôs a compreensão da história da arte nacional focando a presença do
negro na arte. Em especial, a proposta do curador realizou uma narrativa da arte afro-
brasileira através dos objetos de arte, engendrando uma história do negro na arte
brasileira que poucas vezes foi evidenciada.
Em relação à curadoria, usamos este conceito para nos referir ao conjunto das
exposições de arte afro-brasileira de Araujo. Mais do que apenas uma mostra, a curadoria
demonstra um pensamento que perpassa diversas exposições. Essa é uma ação que
acontece num conjunto de trabalhos. A curadoria de Araujo não se apresenta
pontualmente em uma mostra, mas como um pensamento que se constrói, afirma,
polemiza e debate pela sua continuidade.
Cabe relatar os principais fatos biográficos sobre o curador Emanoel Araujo.
Baiano, nasceu em Santo Amaro em 15 de novembro de 1940. É adepto do candomblé,
filho de Ogum. Estudou na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia.
Trabalhando primeiramente com gravura, após algumas exposições na Bahia, passou a
apresentar seu trabalho no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em meados da década de
1970, o artista voltou-se à escultura. Em 1977 viaja para o II Festival Mundial de Artes
Negras na Nigéria. De 1981 até 1983 foi diretor do Museu de Arte da Bahia. Lá realizou
as suas primeiras exposições, como a mostra Bahia–África–Bahia (1983), entre outras.
Em 1988 ele organiza a exposição A Mão Afro-brasileira no Museu de Arte Moderna de
São Paulo. Posteriormente, tornou-se diretor na Pinacoteca de São Paulo, cargo que
ocupou durante duas gestões na década de 1990. Em 2004, após longa trajetória
pesquisando e expondo arte de ascendência negra, Araujo inaugura o Museu Afro Brasil.

9
As exposições de arte afro-brasileira de Araujo adquirem pertinência como fator
de representação social. Isso está ligado diretamente às negociações para o
reconhecimento de grupos que historicamente foram alijados de suas próprias narrativas.
Essa necessidade de reconhecimento adquiriu grande envergadura na vida social
contemporânea, afetando a forma como entendemos a história e a vida em sociedade. Por
fim, não poderia deixar de afetar a forma que entendemos a arte brasileira.
Cabe definir um pouco melhor o termo arte afro-brasileira1. O estudo mais
detalhado deste fenômeno está descrito no primeiro capítulo deste trabalho. Antes disso,
porém, é importante procurar orientar nossa leitura em um sentido mais próximo de
nossas preocupações, já que esses estudos remetem a problemas bem diversificados e
complexos. Pretendemos entender o conceito de arte afro-brasileira de uma maneira
ampla. Isso significa tentar abarcar grande parte dos discursos sobre o conceito. E quais
são os principais dispositivos que temos para compreender o problema hoje? Podemos
sintetizar as principais tendências em: primeiro, arte afro-brasileira é produzida por
artistas ligados a cultos afro-brasileiros; segundo, arte afro-brasileira é produzida por
autores razoavelmente próximos da cultura negra; terceiro, arte afro-brasileira é
produzida por autores que remetem ao universo plástico e social do negro no Brasil. De
certo modo essas são as principais tendências para se pensar arte afro-brasileira.
Nenhuma delas é definitiva2.
Pensar em arte afro-brasileira é balizar todas essas formas de enxergar o
fenômeno. A contribuição dessa última tendência talvez seja a mais próxima do nosso
objetivo, procurando na forma do trabalho e em seu contexto as relações de uma

1
Tratar de arte afro-brasileira pode abranger a escultura, a pintura, o desenho, a dança, a literatura, a
oralidade, o teatro, enfim, um conjunto vasto de manifestações culturais que tem na estética grande
importância, senão mesmo sua razão principal. Diversos estudos têm utilizado esse termo deste modo.
Contudo, em nosso caso, usamos o termo para nos referir especificamente ao que está mais próximo do
que convencionamos chamar de artes plásticas – a escultura, a pintura, a gravura, o desenho e as
manifestações próprias da história da arte contemporânea. É nesse sentido que a bibliografia mais precisa
sobre o problema tem tratado esse universo (o que é melhor desenvolvido no Capítulo 1).
2
Realizando uma digressão sobre outro termo que tangencia nossa pesquisa, o uso de conceitos sobre
“raça” neste trabalho objetiva sua aplicação dentro do universo social e cultural brasileiro. Exclui-se desse
modo, então, o seu sentido biológico, pois esse não corresponde a grupos humanos. Por outro lado, para
parte da academia, para os grupos negros organizados e para o público em geral o termo raça ainda é usado
para caracterizar e distinguir grupos e pessoas. Jacques d’Adesky, em livro sobre pluralismo étnico e
multiculturalismo no Brasil, descreve que “a desconstrução científica da raça biológica (...) não faz
desaparecer a evidência da raça simbólica, da raça percebida e, invariavelmente, interpretada”
(D’ADESKY, 2001, p. 46). Do mesmo modo, empregamos o termo “etnia” em associação com “raça”
(étnico-racial) por compreender que este também revela uma noção de pertencimento coletivo pertinente, o
que, em nosso caso, pode remeter à aspiração de objetivos comuns para um determinado grupo.

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produção afro-brasileira. Porém, consideramos que devemos estar atentos à constância e
pertinência de todas essas vertentes na obra de cada artista.
No mesmo sentido, vale analisar como usamos o termo artista afro-brasileiro.
Esta definição serve para os artistas, independentemente de sua origem étnico-racial, que
produzem obras de arte sob influência da cultura afro-brasileira. Isso pode transparecer
na forma estilística da obra ou no problema tratado. Embora esse modo de compreender
o tema seja bem amplo e repleto de sutilezas, não é nosso interesse enrijecer essa visão.
Nesse sentido, cremos que ela é a que mais se aproxima do modo como o curador Araujo
pensa e cria suas exposições focadas numa arte de origem afro-brasileira.
Por outro lado, usamos o termo artista negro para nos referirmos aos artistas que
não produzem uma obra diretamente sob o signo da cultura afro-brasileira. Esse artista,
muito freqüente nas exposições de Araujo, traz diversos outros problemas em relação ao
seu contexto e criação. Por hora, resta entender que o artista negro, que opera sua arte
geralmente sob influência européia (como diversos dos artistas negros acadêmicos do
século XIX), tem sua relevância enquanto artista que produz seu trabalho em condições
diferentes das de seus companheiros não-negros. Em outros termos, mesmo trabalhando
num código ocidental, a condição étnico-racial desse artista negro pode interferir
consideravelmente em seu trabalho final.
Assim como definimos uma perspectiva de leitura do conceito de arte afro-
brasileira, cabe descrever rapidamente o seu suposto oposto, a arte de ascendência
européia. Para a realização deste estudo, foi preciso destacar essas experiências em
campos diferenciados. Todavia, os entremeios, as nuances e o jogo entre esses territórios
são constantes. Não pretendemos recorrer a conceitos essencialistas. O diálogo entre
essas culturas ocorre continuamente, porém, isso não deixa de evidenciar que elas são
diferenciadas, observadas e sentidas em suas singularidades.
Quando inferimos sobre a arte de origem européia, assim, nos referimos a uma
produção que se vincula à história e técnica da arte ocidental. Em todo caso, essa história
e técnica não são sempre restritamente ocidentais. Por exemplo, a influência da arte não-
ocidental, da África e Oceania, no modernismo (que tem sua marca maior no cubismo),
aponta para hibridismos duradouros. Por outro lado, mesmo bebendo de uma fonte fora
da Europa, isso não impede que os artistas modernos sejam reconhecidos como
autênticos artistas da história da arte ocidental. A arte de origem européia passa a ser,

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então, um conceito usado para se diferenciar de obras de arte não-ocidentais, devido a
fatores de feitura, contexto, assim como o reconhecimento do público, do mercado, da
crítica e dos artistas. Mais do que características intrínsecas, assim, há um contexto que
legitima o que consideramos como ocidental ou não-ocidental.
No mesmo sentido, em nosso ambiente, arte não-ocidental passa a ser uma arte
que, em geral, não é reconhecida como própria da história da arte européia. Nesse caso,
arte não-ocidental pode ser a arte tradicional da África como também parte da arte afro-
brasileira. Em relação a arte afro-brasileira, é importante situar essa afirmação com
cautela. Ela se refere a uma arte tradicional (como as esculturas rituais dos Iorubas no
Brasil), mas cria outros problemas se tentamos abarcar a produção de artistas como
Rubem Valentim. A arte contemporânea afro-brasileira, de forte influência conceitual
européia ou norte-americana, está num terreno movediço entre esses dois campos – o
ocidental e o não-ocidental. Analisaremos com mais atenção essa característica no
Capítulo 1.
O uso de arte da África em nosso estudo também não pretende sintetizar toda a
experiência artística desse continente em um único modo de ver. Arte da África remete a
uma heterogeneidade grande de culturas e cruzamentos, o que nem sempre é percebido
pelo senso comum em exposições no ocidente. Não é nosso objetivo destrinchar todo
esse universo, o que seria por demais oneroso no momento. Para nós, interessa saber o
modo como esse conceito é utilizado e veiculado nas exposições no ocidente, percebendo
que ele pode encobrir ao invés de desnudar. Desse modo, a partir do uso desse termo,
não podemos esquecer a complexidade e diversidade de experiências as quais ele se
refere.
Esta pesquisa foi baseada em estudos acadêmicos, na consulta a documentos,
jornais e catálogos. Utilizamos a contribuição de colaboradores do curador para nos
embasarmos no entendimento das exposições de arte afro-brasileira realizadas na
Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu Afro Brasil. As entrevistas aumentaram
as possibilidades de estudo do tema, além de ajudar a compor o panorama de um
período. Elas forneceram maior complexidade ao fenômeno analisado, bem como a
necessidade de pensar essa experiência.
Sobre os entrevistados, Maria Lucia Montes atuou junto à curadoria de Emanoel
Araujo por cerca de 10 anos, no período de 1995 até 2005. Socióloga, curadora,

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professora e pesquisadora, ela nos forneceu depoimento sobre as exposições de Araujo
desde a Pinacoteca até o início do Museu Afro Brasil. Montes colaborou na elaboração
de projetos, catálogos e na concepção das exposições. Gilberto Habib também atuou
junto a Araujo por quase 10 anos. Formado em artes plásticas e museologia, ele observou
a ação de Araujo pelo viés histórico, museológico e da prática de montar exposições.
Carlos Eugênio Marcondes de Moura, pesquisador, colabora com as exposições de
Araujo há cerca de 20 anos. Maria da Betânia Galas é formada em arte-educação e foi
consultora das exposições de Araujo no Museu Afro Brasil. Oswaldo de Camargo é
escritor e estudioso da literatura negra no Brasil. Ele foi colaborador de diversas
exposições de Araujo e é consultor do mesmo Museu. Temos também o relato de Renata
Felinto, consultora de arte educação do Museu Afro Brasil e pesquisadora de arte afro-
brasileira. Por fim, a fala do próprio curador contribuiu ainda mais para a complexidade
deste trabalho.
O movimento maior desta dissertação inicia-se dos temas mais amplos para o
mais específico. No primeiro capítulo procuraremos contornar o campo de nossa atuação:
a arte afro-brasileira dentro das exposições de Araujo. No capítulo seguinte, focaremos o
estudo do local onde este trabalho se desenvolve, a exposição de arte dentro do museu.
No terceiro capítulo buscamos a análise do curador pelas suas diversas atividades no
campo da arte (artista, curador e colecionador), procurando sua síntese na exposição.
Passaremos, no quarto capítulo, para a análise da forma e dos conceitos que contornam a
curadoria de Araujo. E, por fim, no quinto capítulo, estudaremos algumas das exposições
de arte afro-brasileira do curador baiano.
Desse modo, o Capítulo 1 pretende abarcar parte da produção acadêmica sobre
arte afro-brasileira. Nosso interesse foi resgatar as principais contribuições a respeito de
uma possível definição do termo. Assim, optamos por confrontar estudiosos tanto da
crítica de arte quanto da etnologia. Posteriormente, procuramos analisar o uso desse
conceito nas exposições do curador.
O Capítulo 2 pretende realizar um pequeno histórico sobre o museu dentro da
história ocidental, focando a sua forma de atribuir significados sobre as artes de origem
não-ocidental. Além disso, o pensamento a respeito de uma nova narrativa dentro do
museu – o uso de diferentes formatos e dispositivos para contar histórias – é parte das
proposições atuais que permeiam essa instituição.

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O Capítulo 3 busca analisar a curadoria de Araujo em suas diversas nuances. A
pesquisa sobre o colecionador, artista e curador Araujo foi o objetivo desse texto. O seu
pensamento enquanto curador possui bases nessas experiências.
O Capítulo 4 baseia-se na compreensão do contorno das exposições de Araujo.
Procuraremos aqui o estudo dos conceitos e processos que alicerçam o seu pensamento.
Desse modo, torna-se pertinente o estudo de conceitos como exotismo, acúmulo,
ambigüidade, memória, reconhecimento e ancestralidade.
No Capítulo 5 observaremos mais especificamente a análise do ato expositivo de
Araujo. A exposição é a ferramenta com que o trabalho curatorial se mostra ao público.
Assim, tornou-se importante balizar o estudo dessa curadoria a partir da análise do
espaço expositivo e das obras que constroem esse discurso, bem como sobre seu
contexto.
Devido à grande atividade de Araujo como curador, torna-se por demais
dispendioso a análise específica de todas as suas exposições. Isso é certamente uma
contribuição para outras pesquisas. Contudo, através de alguns exemplos, cremos poder
analisar o centro de suas preocupações sobre a arte afro-brasileira.
Araujo criou uma forma específica de pensar a arte afro-brasileira dentro do
museu. Porém, os estudos anteriores sobre essa personalidade tiveram seu interesse
principalmente em seu trabalho artístico (KLINTOWITZ, 1981; ALMEIDA, 2007;
PRESTON & ARAUJO, 1987; entre outros). A tarefa de dimensionar e compreender
essa experiência curatorial ainda não foi realizada. Nosso objetivo é contribuir para esse
debate e suas conexões com o ambiente artístico brasileiro.

14
15
1. Sobre arte afro-brasileira

Analisar arte afro-brasileira é navegar em mares conturbados. Primeiro porque é


um campo pouco consolidado e preciso. Segundo, porque o próprio qualificativo da arte
aqui analisada encontra-se em estado de definição. Além disso, há poucos estudos sobre
o tema e esses se apresentam esparsamente na literatura acadêmica e na crítica de arte.
Ainda assim, procuraremos a seguir apresentar um breve panorama histórico da
formação desse campo3.
Inicialmente, adotaremos como definição de arte afro-brasileira aquela produção
material que de algum modo faz referência ao imaginário da cultura africana ou daquilo
que em nossa própria cultura consideramos como sendo originário daquele continente.
Desse modo, abordaremos alguns pesquisadores que se debruçaram sobre o tema.
Os primeiros trabalhos que mostraremos apenas fornecem o contorno do nosso
universo. Nesse sentido, trazemos a crítica de arte de Luis Gonzaga-Duque Estrada,
apresentando os indícios de uma história da arte no Brasil, preocupada com uma
orientação artística voltada para a ascendência européia. Mario de Andrade altera o
sentido desse vértice quando firma o seu objetivo artístico em torno de um artista mulato,
Antonio Francisco Lisboa (o Aleijadinho). Nina Rodrigues, no início do século XX, traz
abordagens próximas do universo da religião e estética do negro no Brasil. Finalmente, a
partir da segunda metade do século XX, Mario Barata, Clarival do Prado Valladares,
Marianno Carneiro da Cunha, George Nelson Preston, Marta Heloísa Leuba Salum,
dentre outros, são os pesquisadores que analisaram mais precisamente o nosso problema
– a arte afro-brasileira.

3
As obras produzidas por artistas afro-brasileiros, como as de Rubem Valentim, Agnaldo Manoel dos
Santos, Emanoel Araujo, Rosana Paulino, as da família Julião, dentre as de diversos outros artistas,
remetem ao universo da arte do negro no Brasil. Claro está que o sentido e problema trazido por cada uma
dessas vertentes artísticas é diverso. Uns mais e outros menos, porém, tanto a crítica de arte quanto os
artistas e público reconhecem algum tipo de referência de origem afro-brasileira nessa produção, seja ela
presente na forma ou no contexto da obra. A nossa intenção no texto a seguir é apresentar um breve
panorama histórico de alguns problemas pertinentes ao estudo desse tema e nuances.

16
A arte brasileira de Luis Gonzaga-Duque Estrada

Em fins do século XIX a intelectualidade brasileira procurava constituir e


delinear uma identidade para o país. Após o período romântico do indianismo, novas
idéias do Antigo Continente passam a influir no entendimento da realidade brasileira
momentos antes da República e da libertação dos negros e africanos escravizados. O
positivismo tem seu espaço assegurado no Brasil pela influência de pensadores como o
Conde Arthur de Gobineau (1816-1882). Investigando esse período, cabe observar os
escritos de Lilia Schwarcz, afirmando que “a década de [18]70 é entendida como um
marco para a história das idéias no Brasil, uma vez que representa o momento de entrada
de todo um novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de análise
cumprem um papel fundamental” (SCHWARCZ, 1993, p. 14).
Como parte desse universo, referimo-nos à crítica de arte de Luis Gonzaga-
Duque Estrada (Rio de Janeiro, 1863-1911). A princípio, suas observações sobre arte
brasileira resumem-se à crítica de seus contemporâneos. No entanto, o autor buscou
orientar-se para a criação de uma arte brasileira “legítima”, representativa de uma cultura
singular em relação à arte européia4. Ao idealizar e projetar uma arte nacional, ele
distingue, hierarquiza e opina sobre as diferentes experiências artísticas no Brasil.
Gonzaga-Duque defende princípios que afloram principalmente em suas
aspirações em defesa de uma arte nacional. O conjunto de idéias que permeia a obra do
crítico é influenciado pela filosofia positivista européia. Os conceitos de determinismo
racial convergem em demonstrar um extremo pessimismo quanto ao futuro da nação
brasileira, constituída por povos diversos. Tais preceitos têm seus desdobramentos em
sua crítica de arte. Como demonstrou Tadeu Chiarelli (1995) em texto sobre o crítico do
século XIX, esse não é o teor único do livro de Gonzaga-Duque. Em certos momentos, o
autor revela o contrário, ou seja, que é possível pensar numa nação futura a partir da
mescla dos diferentes povos aqui constituídos. No entanto, em sua conclusão, a
afirmação do crítico do século XIX não é tão otimista, tendendo para uma definição
depreciativa da diversidade cultural (e racial) brasileira.

4
Tadeu Chiarelli (1995) descreve que o livro de Gonzaga-Duque “torna visível, após tantos anos, o debate
que fundamentou a constituição de parcela significativa da produção artística realizada no Brasil no século
XIX e no século XX, e dos discursos estabelecidos sobre ela: refiro-me à questão da criação de uma arte
nacional ou brasileira, uma arte que, em sua configuração final fosse capaz de emitir sinais inequívocos de
uma identidade local intransferível” (1995, p. 12).

17
Em A Arte Brasileira (primeira edição de 1888), Gonzaga-Duque tende a
considerar improvável a constituição de uma arte nacional promissora devido à variedade
étnico-racial do país. Vale citar um dos escritos iniciais do crítico sobre a constituição da
nação brasileira: “a família brasileira foi criada nesse meio híbrido: terror de um lado, e
de outro costumes mesclados, saturados das nugacidades, das superstições que sazonam
no cérebro corrompido dos escravos” (Luis Gonzaga-Duque Estrada apud CHIARELLI,
1995, p. 66). Do mesmo modo, descrevendo um dos capítulos finais de Gonzaga-Duque
no mesmo livro, o crítico Tadeu Chiarelli mostra que o escritor “parte de um diagnóstico
pessimista e preconceituoso da sociedade e da história brasileiras, que só poderia resultar
em conclusões igualmente pessimistas sobre a arte produzida no país” (1995, p. 23).
Na obra Mocidade Morta (primeira edição de 1899), o autor apresenta, por meio
de suas personagens, um modelo que orientava, para a elite da época, como deveriam ser
guiadas a arte e cultura nacionais:

Nós outros, americanos, somos, produtos de um amontoado de todas as raças, em que


predomina mais esta do que aquela e, portanto, a nossa vida espiritual resulta da
afinidade da raça predominante que, para nós, brasileiros, é a latina, pelo ramo
português (...). Tu não ignoras (....) que somos um povo independente por sua política,
temos as nossas leis, a nossa administração interna, somos uma nação oficialmente
constituída. Ora bem. Mas (...) esses atributos não pressupõem nacionalismo, na
verdadeira acepção do termo.
Insensível, inapercebidamente, opera-se conosco a fusão dos mais dessemelhantes
elementos, estamos num adiantado período cósmico. O que vier, após laborar de séculos,
será outro povo (...), desviado completamente do primitivo que, por sua vez, foi
assimilado, fundido, apurado, como se tem dado com os cessantes, minguados
aborígenes. A nossa preceptora espiritual (...) é a Europa. (grifo nosso) (Luis Gonzaga-
Duque Estrada apud CHIARELLI, 1995, p. 42).

Por esses escritos, é possível imaginar que a futura arte brasileira de Gonzaga-
Duque não deveria ser fruto das culturas chamadas “primitivas”. O crítico parece fazer
uma opção pelas classes dirigentes e européias na condução do ideal artístico do país5. A
sua perspectiva estética se dá pela via do colonizador, desconsiderando para último plano
a presença dos povos africanos e indígenas (o “primitivo”). Para Gonzaga-Duque,
embora a cultura e o povo brasileiro mostrem uma grande diversidade, a nação deveria
ser conduzida por seus ideais estéticos de matriz européia. É essa vertente que funda a
sua “nação oficialmente constituída”. Nesse sentido, os povos “primitivos” somente

5
Podemos objetar que a fala de uma simples personagem do livro pode não significar o todo, porém, pelo
teor do enunciado é de se imaginar que essa personagem de Gonzaga-Duque revela mais do que parece à
primeira vista. Nesse mesmo sentido, essa é uma fala muito próxima de outros textos do escritor.

18
revelam-se importantes quando podem ser assimilados (ou seja, quando aderem à cultura
e poder dominante).
A arte dos povos colonizados não poderia ser referência relevante para o futuro,
significando apenas resquícios do passado. Cabe ressaltar a confluência entre arte,
política e cultura para o escritor. A produção de origem africana e indígena, fenômeno
que neste período dificilmente era considerado arte nos mesmos moldes que a arte
ocidental, não cabe dentro das possibilidades nacionais, do mesmo modo que não cabem
a estrutura social e nem a cultura desses povos. Gonzaga-Duque demonstra uma escolha
entre opções de maior valor e outras de menor ou nenhum prestígio. Essa é uma escolha
pelo ocidental, civilizado, contra o não-ocidental, “bárbaro”.
Gonzaga-Duque em Contemporâneos (primeira edição de 1929), numa crítica
elogiosa6 às naturezas-mortas do artista negro Estevão Roberto da Silva (1845-1891),
relaciona arte e raça na obra desse mesmo artista. Como o próprio autor diz, “quem,
como elle, vem de uma rude raça opprimida, e vem soffrendo, e vem luctando, não tem a
nebulosidade grisata, difficultosa, meandrica, ennovellada dos finos; vê sempre
sanguineo, vê sempre desesperadamente amarello” (Gonzaga-Duque, 1929, p. 98). Em
outro momento: “(...) essa prodigalidade de vermelhos, de amarellos e verdes não é nem
póde ser mais que um reflexo transfiltrado do seu instincto colorista, vibrátil as
sensações bruscas, como é peculiar á raça de que veio (...)” (grifo nosso) (Gonzaga-
Duque, 1929, p. 97).
Gonzaga-Duque descreve que as cores fortes e contrastantes do artista Estevão
Roberto da Silva seriam próprias da sua condição racial e social. Entretanto, talvez as
cores de Estevão não sejam focadas em sua vivência étnico-racial mais do que em sua
experiência artística em escolher as suas influências. A sua orientação artística pode ser
uma escolha pautada numa experiência cultural e não pré-determinada racialmente. Em
outro sentido, a crítica de Gonzaga-Duque sobre a arte de Estevão Roberto da Silva
parece trazer certos conceitos deterministas sobre a condição racial do autor. Ao cruzar o
pertencimento racial de Estevão Roberto da Silva com a sua expressão artística, o crítico
de arte do século XIX condicionou a arte do artista a sua origem racial. Para o crítico,

6
Citando a obra de Estevão Roberto da Silva, ele diz ser “realmente (...) difícil, e até parece impossível,
pintar frutos como Estevão (...)” (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p. 219).

19
Estevão não escolhe o seu método de pintura, mas trabalha segundo seu “instincto
colorista”.
Após essa primeira fase, o discurso de Gonzaga-Duque muda consideravelmente.
Num comentário sobre a exposição do Salão de 1908, ele escreve:

Falta-lhe o cunho, a marca nacional? Mas senhores, a arte de um povo não resulta da
vontade de um grupo nem da tentativa de uma escola.
Nos países novos, nas condições especiais dos países americanos, em que o hibridismo
das raças faz apontar os mais disparatos tipos, sem uma psicose determinada, sem o
faceis por assim dizer étnico; em que as tradições das primeiras ondas de colonização se
perdem e dispersam rapidamente, não se pode exigir uma caracterização de cenários,
uma representação concordante e coesiva de indivíduos e costumes (...) (grifo nosso)
(Luis Gonzaga-Duque Estrada apud CHIARELLI, 1995, p. 49).

Nesse momento, o escritor passa do pessimismo a uma crítica mais ambígua


sobre a arte nacional7. Em todo caso, não deixa de haver dúvida em sua colocação.
Gonzaga-Duque aponta para uma arte futura – fruto da miscigenação e de uma raça nova
– mas deixa um rastro de desconfiança quanto ao que pode ser esse futuro de “disparatos
tipos”. Quando ele aponta às “primeiras ondas de colonização” que se “perdem e
dispersam”, refere-se aos primeiros colonizadores brancos que se miscigenam com as
populações negras e indígenas. São os povos “originais” ocidentais que “perdem” e
“dispersam” a sua “pureza” em contato com as populações negras e indígenas. Todavia,
nesse trecho dúbio, a dúvida de Gonzaga-Duque talvez demonstre os seus primeiros
contatos com pensadores nacionais menos comprometidos com as escolas européias,
buscando reabilitar o país em uma condição especial diante da matriz ocidental,
considerando a miscigenação como caminho necessário.
Como um homem de letras que pensava seu tempo, Gonzaga-Duque é de grande
relevância para analisarmos a arte e a crítica de arte em fins do século XIX. Realizando a
ponte entre arte e ciência, o crítico adaptou-se ao pensamento de sua época e procurou
formar as bases artísticas para uma nação moderna. Tal busca não o eximia de

7
A crítica de Gonzaga-Duque é um movimento sinuoso. Sua orientação no sentido de uma arte
esteticamente européia não o impede de ser pessimista, por exemplo, em relação à criação da Academia
Imperial de Belas Artes no Brasil por artistas estrangeiros no início do século XIX. Para o crítico, esse fato
desestabilizou a experiência dos artistas no país, forçando a ruptura de uma experiência de arte até então
fortemente estabelecida: o barroco. Como o próprio crítico analisa: “(...) a colônia Lebreton concorreu,
involuntariamente, para retirar da nossa arte a feição nativa e a originalidade” (Gonzaga-Duque apud
CHIARELLI, 1995, p. 57). Isso não impedia o crítico de atacar, igualmente, a falta de formação adequada
dos artistas nacionais: “(...) daí, portanto, os insignificantes conhecimentos dos nossos antigos artistas e a
superficialidade da maior parte dos modernos” (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p. 261).

20
demonstrar os conflitos de seu pensamento entre o pessimismo e a euforia sobre o futuro
do país. Nesse caso, especificamente, os conceitos sobre raça de sua época influem em
seus escritos sobre arte.

O projeto “mulato” de Mário de Andrade

Mario de Andrade no ensaio O Aleijadinho (originalmente publicado em 1928)


faz desse artista parte de seu fundamento para uma arte brasileira moderna. Segundo o
escritor, “a prova mais importante de que havia um surto de racialidade brasileira, está
na imposição do mulato. (...) De todos esses exemplos principiam nascendo na colônia,
artistas novos que deformam sem sistematização possível a lição ultramarina. E entre
esses artistas brilha o mulato muito” (grifo nosso) (ANDRADE, 1984, p. 13). Antônio
Francisco Lisboa (o Aleijadinho, 1730-1814), de acordo com Mario, tem sua relevância
justamente por ser mulato. O escritor paulista utiliza esse argumento para colaborar em
seu projeto de construir um mito miscigenado e ímpar da arte brasileira. Como pedra
fundamental para o modernismo da Semana de 22, esse era um ponto de afirmação da
identidade do país diferente do que foi preconizado pela academia do século XIX.
Sobre a escolha do mito, Mario não poderia escolher, por exemplo, os franceses
da Academia de Belas Artes para seu propósito. A França era um pólo cultural
importante nos anos de 1920 para o Brasil. O próprio movimento modernista absorveu
influências desse local. Por outro lado, a imagem do índio foi utilizada pelo romantismo
do século XIX. Para Mario, esses escritores eram parte de uma cultura reacionária,
símbolos que precisavam ser repensados a favor de novas direções. Era preciso escolher
outro foco
A escolha de Mario direcionou-se para aquele que não é o explorador, nem o
“selvagem” e nem o escravo. O vértice que está ligado a esses três elementos é o mulato.
É certo que o crítico e escritor escolheu Aleijadinho não somente por sua identidade
étnico-racial, mas pela qualidade de sua obra. Porém, embora alteremos a ordem dos
fatores, o resultado é similar. Ele fez da “mulataria” de Aleijadinho um item importante
para a compreensão do artista mineiro.
Desse modo, na revisão brasileira das artes plásticas de Mario, a figura do mulato
Aleijadinho foi um elemento que serviu para a diferenciação do seu projeto de

21
modernidade. Utilizando um fato antes desprezado, o paulista formulou uma
contraposição a seus predecessores do século XIX, bem como a toda corrente teórica que
apontava o português como único elemento civilizador do país.
Para entendermos melhor esse fenômeno, é oportuno rever brevemente seu
contexto. A publicação do ensaio de Mario sobre o artista mineiro ocorreu apenas 40
anos após a abolição da escravatura. No Brasil, ainda repercutiam os conceitos
positivistas e deterministas da Europa. Esse sistema científico descrevia a raça como um
elemento fundamental para o progresso ou declínio de uma sociedade. Para tanto,
hierarquizava e catalogava as diferenças humanas em padrões biológicos imutáveis.
Sendo assim, na época, a descrição do negro e do índio como inferiores ao branco era
fato dificilmente questionável8.
Algumas décadas anteriores a Mario, Luis Gonzaga-Duque Estrada descreveu
que o ideal de arte brasileira deveria ser herdeiro de uma tradição européia. Mario de
Andrade, apontando para a “mulataria” de Aleijadinho, escolheu uma outra referência
para pensar a arte do passado, posicionando-se para um outro futuro.
Nesse sentido, talvez ao perceber as características plásticas de Aleijadinho como
qualidades, Mario tenha incorporado alguns conceitos modernos sobre a forma e
estrutura, vislumbrando compreender outras formas de arte, como a popular e a não-
ocidental. Ao que tudo indica, a condição de mulato do artista mineiro pode estar
vinculada ao uso especial da sua técnica artística, a “deformação” não sistematizada dos
modelos europeus. Em outros termos, a origem étnico-racial de Aleijadinho também é
fonte da sua criação plástica singular9.

8
Por exemplo, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que apresenta uma visão sobre o negro mais
preocupada com a cultura e um pouco menos determinista racialmente, somente foi publicado em 1933. O
foco de Freyre foi criticar o sistema escravista colonial e não de culpabilizar as populações negras. Embora
partindo de uma visão paternalista, o escritor pernambucano, ao contrário de seus pares, considerava os
africanos que vieram para o Brasil como os mais “avançados” culturalmente na África. Não obstante, em
último caso, a constituição da nação brasileira para o escritor acontece pela via portuguesa.
9
Marianno Carneiro da Cunha, a partir da leitura de Mário, faz uma vinculação direta entre a arte de
Aleijadinho e as suas características africanas: “Mário de Andrade, no estudo mais belo e incisivo da
pessoa e da obra do Aleijadinho, põe em evidência que Antônio Francisco Lisboa não é um ‘primitivo’
mas antes um renascentista em contexto barroco, e sobretudo um deformador sistemático. (...) A soma
dessas noções são todavia o denominador comum que equaciona toda obra de arte chamada primitiva e
africana, em particular. Se, por outro lado, existem paralelos europeus para justificarem esse aspecto sui
generis da obra de Antônio Francisco Lisboa, existem igualmente, e com mais forte razão, convenções
plásticas africanas que muito provavelmente se terão infiltrado ali e de vários modos. Com efeito, não seria
este o caso de se apelar para um vago atavismo, como propõe G. Bazin, pois a cultura transmite-se pelo
contato e pela vivência e não biologicamente” (grifo nosso) (CUNHA, 1983, p. 1018).

22
Embora a abordagem de Mario não tenha pensado a arte afro-brasileira, ao
projetar uma arte nacional capitaneada pelo mulato, ele diferenciou-se da concepção de
arte de Gonzaga-Duque. Ambos os escritores dialogaram sobre como e quem pode ser o
modelo para delinear uma arte brasileira legítima. Assim, aprovar ou desprestigiar a
presença afro-brasileira na arte (seja pela autoria ou pela forma) é também ponderar
sobre qual tipo de arte é relevante para o país. Estamos lidando com uma disputa ainda
não focada na arte afro-brasileira como a compreendemos hoje, mas que demonstra a
“racialização” na qual estava inserida a crítica de arte nacional em fim do século XIX e
início do século XX.

A “arte negra” de Nina Rodrigues

Raimundo Nina Rodrigues foi um dos primeiros a estudar mais especificamente a


arte afro-brasileira no artigo intitulado As Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil – A
Escultura (1904). A denominação utilizada por Rodrigues para referir-se a este
fenômeno foi “arte negra”10. Enquanto Mario de Andrade e Luis Gonzaga-Duque Estrada
estavam mais próximos do que pode ser considerado crítica de arte, Nina Rodrigues
produz uma perspectiva etnológica sobre as sociedades não-ocidentais. O pesquisador,
analisando exclusivamente a produção escultórica ritual afro-brasileira, apesar de
reconhecer potencialidades, não se desprendeu totalmente dos principais paradigmas do
período. Suas palavras se inserem dentro de um pensamento hierarquizante onde o negro
é sinônimo de cultura diferenciada, matéria de estudo sobre culturas ditas “primitivas”.
A tese de Rodrigues não se diferencia muito de certa preocupação contida em
Gonzaga-Duque. Os conceitos de determinismo racial ainda são idéias fortes para
explicar a natureza e a cultura dos povos africanos e não-ocidentais. Sendo assim,
classificar essas peças usando de subsídios evolucionistas é um dos seus temas: “Os
fructos da arte negra não poderiam pretender mais do que documentar, em peças de real
valor ethnographico, uma phase do desenvolvimento da cultura artística” (grifo nosso)
(sic) (RODRIGUES, 1904).

10
Sobre o uso dos termos arte negra e arte afro-brasileira, o primeiro exemplo parece trazer indícios de
ordem biológica, enquanto o segundo remete a problemas do universo da cultura do negro no Brasil. É
possível observar resquícios desse determinismo racial do primeiro caso nos escritos de Nina Rodrigues.
Marta Leuba Heloísa Salum, comentando esse problema, diz que “tem razão quando diz Kabenguele
[Munanga] que qualificar a arte afro-brasileira de ‘arte negra’ no Brasil seria ‘cair num certo biologismo’”
(SALUM, 2004).

23
Do mesmo modo, para analisar essas obras Rodrigues continuou a se basear no
modelo acadêmico de arte européia. Os ideais de semelhança, claro e escuro, perspectiva,
entre outros, foram usados pelo pesquisador para avaliar uma produção estruturada por
outros princípios. O resultado não poderia ser diferente. A moldura projetada por
Rodrigues não coube para compreensão dos artefatos de terreiro a sua frente. Imperícia e
ausência de escolas organizadas são alguns dos argumentos utilizados pelo estudioso
para definir a qualidade das obras de arte afro-brasileira. Como diz o pesquisador,
“mandam as regras de uma boa crítica desprezemos as imperfeições, o tosco da
execução, dando o devido desconto á falta de escolas organisadas, da correcção de
mestres hábeis e experimentados, de instrumentos adequados, em resumo, da segurança e
destreza manuaes, como na educação precisa na reproducção do natural” (sic) (grifo
nosso) (RODRIGUES, 1904).
No entanto, detendo-se especificamente sobre a produção de arte afro-brasileira,
Rodrigues também reconheceu certa força e qualidade nesse fenômeno. Afastando-se do
determinismo europeu, ele compreendeu um potencial de criação plástica africana que
até então mostrava-se impensável para a crítica da época. “(...) Na escultura é que, com
mais segurança e apuro, se revela a capacidade artística dos negros. O seu cultivo e
apreço, entre os escravos que vieram colonisar o Brazil, tanto se comprovam em
presumpções inductivas como no testemunho de factos e documentos” (sic) (grifo nosso)
(RODRIGUES, 1904).
Ao reconhecer certa potência nessas obras, Rodrigues tentou escapar dos
preceitos de avaliação ocidental e acadêmica. Com passos tímidos, o pesquisador parece
apontar para a necessidade de uma nova forma de avaliação dessa arte. Para este, tornar
essa produção mais significativa, mesmo não chegando ao status de arte, é também
valorizar os grupos negros escravizados. Seu intuito não era apenas redimir essa
população, mas, por meio disso, reabilitar a possibilidade do Brasil como um país
promissor. Distanciando-se do pessimismo e determinismo positivista quanto às
populações africanas, Rodrigues as considerou aptas e necessárias ao projeto de um país
civilizado nos trópicos.
Para esse pesquisador, a imagética afro-brasileira é constituída em grande parte
por autores anônimos. Diferenciar artistas e contribuições individuais não foi um

24
objetivo relevante. Embora exista o artista enquanto indivíduo, a importância desses
estudos está em demonstrar e analisar as características do todo social ou étnico.
Num âmbito próximo, o vínculo entre essa manifestação artística e a religião foi
constante em Rodrigues. O estudo das qualidades estéticas serve para a compreensão da
estrutura religiosa que rege os mitos e narrativas dos grupos negros. Claro está que essa
tendência não compreendia esses objetos em sua singularidade apenas artística. Essas
obras são entendidas de acordo com seu poder de guardar significados sobre seu grupo.
Em Rodrigues é possível constatar um olhar meticuloso e atento à forma dos
objetos analisados, o que não impede o seu objetivo maior que era compreender a
comunidade que criou tal obra. Ainda assim, talvez não tenhamos apenas uma ciência
mecanicista que diferencia o outro, mas que está mais preocupada em compreender essa
produção dentro de um sistema de significado relevante na sociedade brasileira, a arte
dos negros recém-libertos.

Estudos recentes sobre arte afro-brasileira

Os estudos contemporâneos a respeito da arte afro-brasileira tentam definir


conceitos mais precisos sobre esse fenômeno. O próprio termo, arte afro-brasileira,
passa a ser difundido, mostrando uma convergência de sentidos sobre esse conceito entre
diversos estudiosos. Se antes tivemos a análise de obras buscando o coletivo, agora o
estudo específico de artistas, tentando desvendar o universo de alguns criadores, é um
foco pertinente.
Mário Barata, no texto A escultura de origem negra no Brasil (publicado
originalmente em 1957), mostrando preocupação semelhante à de Nina Rodrigues,
procura analisar a produção desses trabalhos sob o olhar da etnologia e da estética. “Não
é só a literatura, oral ou escrita, que exprime uma cultura, de um sistema de vida com
técnicas determinadas, no conceito antropológico. A criação plástica é uma expressão de
cultura tanto quanto visão estética do mundo” (Mario Barata apud A MÃO AFRO-
BRASILEIRA, 1988, p. 183).
Embora reconhecendo as diferenças e novas soluções dessa manifestação no
Brasil, o pesquisador procurou investigar quais as permanências da arte de origem
africana em solo nacional. Desse modo, vale citar os conceitos que o autor usa para
entender o problema:

25
a) esculturas obedecendo às tendências estéticas negras, sendo obras de arte, todavia, de
padrões novos.
b) esculturas que sejam resultado do confronto da tradição plástica africana com a de
outras origens, correspondendo às vezes a novas necessidades e situações.
c) esculturas feitas por negros ou seus descendentes diretos ainda ligados à tradição
africana, por vários setores, mas já sem nenhuma característica de formas de arte dessa
origem, plasticamente esquecida ou superada.
d) esculturas realizadas por descendentes de negros mais integrados à cultura branca,
igualmente sem aspectos estilísticos africanos. Parece ser o caso de uma série de artistas
mestiços como o Aleijadinho e Mestre Valentim, trabalhando dentro do sentido católico
barroco. Este caso é interessante sociologicamente, mas já não é relacionado com a
influência da estilística negra no Brasil. Portanto o deixaremos de lado, no exame que
procederemos a seguir (Mario Barata apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, p.
186).

Neste caso, Barata procurou descrever categorias para sistematizar a produção


escultórica afro-brasileira. Como podemos notar, o autor analisa esculturas de arte afro-
brasileiras que remetem à estilística africana, mas que já apresentam distância
considerável dessa fonte. As soluções plásticas desses artistas são diversas da
experiência africana, embora conservem, de algum modo, certos indícios.
Em primeiro lugar, Barata preocupa-se em mostrar a produção de artistas que
trabalham a partir de uma estética negra, procurando continuidade ou confrontos. Num
segundo momento, ele ressalta a análise da obra a partir da autoria negra do criador.
Nesse estágio, ele parece separar essa experiência entre o artista negro que ainda tem
certas influências distantes da arte africana (ele descreve esse conceito de maneira
ambígua no item C), e o artista negro e mestiço que produz a partir de uma arte de
origem ocidental. O autor exclui esses últimos artistas do seu tema de investigação, mas
os relaciona de certo modo ao seu problema.
Devemos ressaltar que a autoria do artista negro tem peso nas considerações de
Barata (como também em Nina Rodrigues). Entretanto, ao que parece, esse requisito
perde relativamente a sua relevância nos estudos posteriores. Os próximos autores
tendem a considerar a cultura mais importante que focar a autoria negra na produção.
Desse modo, a condição étnico-racial do artista, imaginamos, não é um fator
preponderante.
Clarival do Prado Valladares procurou traçar os vínculos entre religião, cultura
popular e influência erudita na obra de diversos artistas afro-brasileiros. Para Valladades,
a presença estilística de origem africana aparece “na especulação da iconologia africana
no Brasil através da remanescência e formas sincretizadas. Poucas vezes verifica-se a

26
existência de esculturas originais africanas em uso nos cultos do candomblé” (grifo
nosso) (Valladares apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 449).
É importante notar que a arte afro-brasileira para o pesquisador acontece sob o
cruzamento de diversas perspectivas. A sua arte “miscigenada”, repleta de trocas, possui
evidentemente seu diálogo com a arte de origem européia. No texto A Iconografia
Africana no Brasil (publicado primeiramente em 1969), o autor descreve que “a
amplitude da mestiçagem das três raças no Brasil faz uma escala de valores e atributos,
manifestados também nas artes eruditas e populares, que poderíamos identificar como
caráter brasileiro” (Valladares apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 448).
Por outro lado, para Valladares a arte erudita brasileira tem a sua origem numa
influência principalmente européia. Os locais onde essa arte é apresentada, o museu,
excluiria sistematicamente a produção de arte não oriunda de um meio erudito e de elite.
Nesse sentido, o único local onde a arte de origem não-européia poderia frutificar seria
fora desse espaço, nos meios menos privilegiados da sociedade, daí a atenção para a arte
popular e dos terreiros.
A partir disso, é possível perceber a preocupação do autor em compreender dois
tipos de produção vinculados à arte afro-brasileira. No primeiro caso, temos os artistas
próprios desse universo. No segundo caso, há os artistas influenciados por essa cultura.
Nesse sentido, em relação a segunda situação, Valladares no texto Aspectos da
Iconografia Afro-brasileira (publicado primeiramente em 1976) analisou o trabalho de
artistas eruditos “influenciados” pelo contexto afro-brasileiro. Como o próprio autor
descreve, “podemos assinalar artistas eruditos brasileiros de qualquer situação étnica que
foram capazes de descobrir nas contingências da remanescência africana valores
iconográficos, simbólicos e semióticos suficientes para a formação de sua respectiva
linguagem estilística” (grifo nosso) (Valladares apud BRASILEIRO, BRASILEIROS,
2004, p. 119).
Em O Negro Brasileiro nas Artes Plásticas (publicado primeiramente em 1968),
Valladares também percebeu o intrincado jogo de significados atribuído aos artistas
populares, muitas vezes chamados de “primitivos” ou naifs, pela crítica de arte. Vale
citar o escritor comentando a visão dos críticos eruditos sobre esses artistas: “este [o
crítico ocidental] requer do ‘primitivo’ ser homem de cor, preto, mulato ou índio,
procedente da pobreza, a fim de que a obra seja autêntica pela origem” (Valladares apud

27
A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, pp. 285, 286). A análise de Valladares
compreendeu que o termo “primitivo” revela muito mais sobre quem o usa do que sobre
o que ele tenta definir11. O fato do artista ser negro confere autenticidade ao objeto.
Desse modo, ele mostrou como o entendimento da arte “primitiva” possui nítidas
nuances étnico-raciais. A origem étnico-racial do autor passa a ser componente da obra
na medida em que pode evidenciar os significados pretendidos pela crítica.
Para Marianno Carneiro da Cunha, “arte afro-brasileira é uma expressão
convencionada artística que, ou desempenha função no culto dos orixás, ou trata de tema
ligado ao culto” (CUNHA, 1983, p. 994). Além disso, o pesquisador também traz uma
nova sistematização da arte afro-brasileira para fora da esfera religiosa. A partir de uma
estrutura singular, o pesquisador analisa a arte afro-brasileira de modo diferenciado,
separando entre as diretamente ligadas à estrutura litúrgica e as menos relacionadas ao
culto. As quatro classificações de Cunha são:

(...) aqueles que só utilizam temas negros incidentalmente; os que o fazem de modo
sistemático e consciente; os artistas que se servem não apenas de temas como também de
soluções plásticas negras espontâneas, e não raro, inconscientemente; finalmente os
artistas rituais. Os três primeiros grupos definiriam o termo afro-brasileiro em seu
sentido lato e o último grupo em sentido estrito (CUNHA, 1983, p. 1023).

As suas quatro classificações podem ser resumidas em dois grupos principais:


primeiro, o trabalho possui signos afro-brasileiros, mas não possui conexão com as
religiões de matriz africana; e segundo, o trabalho é feito por artistas de culto e para uso
litúrgico em religiões de matriz afro-brasileira. Para esse último grupo, Cunha elaborou
um outro conceito, o de “arte ritual afro-brasileira”. Esse parece ser o termo que, para o
autor, melhor delimita o campo de arte próprio da cultura afro-brasileira.
Todavia, a definição de Cunha é de relevância para o nosso estudo não só pela
descrição de uma arte ritual afro-brasileira, mas pelos apontamentos a respeito de uma
arte afro-brasileira fora do uso litúrgico (embora não tenha aderido completamente a este

11
Vale citar Sally Price: “Uma idéia amplamente aceita dentro deste esquema geral é que, mais do que em
qualquer arte das Grandes Civilizações do mundo (sejam Ocidentais ou Orientais), a Arte Primitiva emerge
direta e espontaneamente de impulsos psicológicos. Da mesma forma como uma criança chora quando tem
fome e emite sons de contentamento quando está satisfeita, imagina-se que os artistas Primitivos
expressem seus sentimentos livres da capa impositiva do comportamento aprendido e das limitações
conscientes que moldam o trabalho do artista Civilizado. E esta é a qualidade mais freqüentemente citada
como catalisadora do entendimento entre Ocidentais e artistas Primitivos” (2000, p. 56).

28
termo). Este último conceito define um espaço amplo de atuação dessa manifestação no
presente.
Destoando do foco que circunscreve o objeto de arte afro-brasileira ao seu
ambiente litúrgico, a contribuição de Nelson George Preston (1987) atenta para as
qualidades formais dessa produção. O interesse de Preston na análise da produção
plástica de Araujo foi compreender essa produção em relação ao seu contexto artístico.
Assim, tentando situar as relações entre a arte do escultor e gravador e a de diversos
outros artistas negros na América, o estudioso americano pesquisou as similaridades
estilísticas dessas obras. Nesse contexto, aproximou a obra de Araujo ao minimalismo
americano e à arte tradicional da África. As qualidades formais da obra de arte “neo-
africana” para Preston são descritas como:

Tensão entre eixo virtual e real. Tensão entre simetria virtual e real. Estacar rítmico ou
empilhar de uma forma geométrica primária na configuração de um volume, plano, área
espacial negativa ou positiva, formas fechadas ou abertas. Regularidade de um ritmo
genérico ou padrão interrompido por motivos aderentes arranjados aleatoriamente,
surpresas formais ou inversões semelhantes à fuga de unidades básicas de padrão.
Desconformidade entre áreas pintadas e superfícies de planos.
Jogos visuais nos quais formas reduzidas tornam-se ambivalentes e podem ser lidas
como representação alternativa de uma coisa ou seu sinônimo ou antítese.
Motivos “pars pro todo” que usam um aspecto evidente de uma coisa para representar
sua inteireza.
Combinações em técnica mista do que ao ocidental aparece como texturas
irracionalmente correlatas, modelos, cores, objetos ou idéias (PRESTON & ARAUJO,
1987, p. 39).

A colocação de Preston tenta encontrar singularidades formais para obras de


influência africana em artistas de toda América. Para o autor, a arte da diáspora africana
criou continuidade e renovação na América12.

12
Por outro lado, Preston circunscreveu somente à arte de ascendência negra na América o mérito de
produzir uma arte negra contemporânea legítima, o que ele denominou de arte “neo-africana”. Para o autor,
o continente africano não é mais o centro de relevância da arte de origem negra. Esse centro estaria agora
na América. Todavia, é possível que esses grupos étnico-raciais têm interesses diferentes e próprios sobre
sua arte. Vale citar o próprio crítico e artista americano: “Uma quantidade de artistas da América do Sul,
bacia do Caribe e América do Norte estão trabalhando em estilos neo-africanos autênticos conforme
definido pela lista de cânones da arte paleo-africana acima citada. Assim como Araujo, eles trabalham em
materiais contemporâneos, frequentemente industriais em sua essência, enquanto projetam um conteúdo
formal claramente apoiado nos fundamentos da arte clássica africana. Seu trabalho representa, com efeito,
a extensão da arte tribal em linguagem contemporânea. É o que a arte africana ter-se-ia tornado em seu
próprio continente, não tivesse sido desmembrada por remoções, acidentes climáticos e intensa invasão
turística. Infelizmente a maioria dos artistas africanos imita a arte européia ou produz versões peculiares de
arte tribal que identificam o turista como patrão. Esta é a razão pela qual o núcleo do movimento neo-
africano está fora da África” (PRESTON, 1987, p. 41).

29
Cabe ressaltar que Preston não se ateve especificamente à análise da arte afro-
brasileira. O tema do pesquisador é pensar numa síntese da arte negra na América. Em
todo caso, como Preston tece suas questões a partir do estudo da obra plástica de Araujo,
o seu estudo tem grande proximidade com a arte afro-brasileira.
Dilma de Melo Silva (1989) analisou a arte afro-brasileira e africana apoiando-se
em estudos sociológicos, planejando contrapor-se aos estudos da arte de enfoque apenas
formal. Para tanto, buscou fundamentar sua contribuição em Roger Bastide, Nestor
Garcia Canclini, bem como em Marianno Carneiro da Cunha (1983). A partir deste
último autor, surgiu um dos temas principais de Silva, “verificar a continuidade
estilística dos protótipos africanos transportados para nosso país durante os anos de
colonização e escravidão negra” (SILVA, 1989, p. 53). É possível constatar que a
definição de Silva parte dos escritos sobre arte ritual afro-brasileira de Carneiro da
Cunha. Ela investigou o fenômeno dentro do universo artístico, observando na religião
um dos traços essenciais de continuidade da plástica afro-brasileira.
Marta Heloísa Leuba Salum (2000) utilizou inicialmente qualidades formais para
descrever o que pode ser a influência afro-brasileira na arte. Linguagem emblemática,
cromatismo vigoroso, visualidade monumental ou cênica e um caráter mais conceitual do
que objectual são alguns dos conceitos empregados pela autora para compreender a obra
afro-brasileira. Além de questões formais, a pesquisadora trouxe contribuições mais
amplas, considerando arte afro-brasileira “qualquer manifestação plástica e visual que
retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os
cenários socioculturais do negro no Brasil” (SALUM, 2000, p. 113). Essa definição
abarca grande parte de nossas preocupações e retoma alguns problemas citados por
outros teóricos.
Maria Cecília Félix Calaça (1999) utilizou ainda uma outra variação do tema de
nosso estudo, arte afro-descendente. Realizando um estudo sobre a obra de Ronaldo
Rego e Jorge dos Anjos, ela propôs uma leitura interpretativa apoiada na simbologia do
Candomblé e da Umbanda. Para a escolha dos artistas, bem como para a leitura das
obras, Calaça apoiou-se nas atribuições formais de Preston.
Kabengele Munanga (2000) partiu de princípio semelhante ao de Carneiro da
Cunha sobre a definição e possível definição da arte afro-brasileira. Dividiu a arte afro-
brasileira em três categorias. A primeira categoria é a dos artistas de culto. A segunda é a

30
dos artistas que utilizam algum elemento afro-brasileiro sistematicamente em sua
produção. E a terceira é a dos artistas que possuem influência não muito evidente,
diluída.
Roberto Conduru em Arte Afro-brasileira (2007) procurou desenvolver uma
definição do termo arte afro-brasileira e de sua história. Ele se debruçou sobre o estudo
da arte religiosa de matriz africana, pesquisou artistas afro-brasileiros e as representações
do negro na arte brasileira em geral. Percebendo que não poderia focar apenas a arte
afro-brasileira na religião ou na obra de artistas influenciados pela arte africana, Conduru
trouxe para discussão trabalhos recentes de arte contemporânea. A definição de Salum,
focando amplamente toda manifestação que pretende pensar e representar a cultura e
realidade sócio-cultural do negro no Brasil (citada anteriormente), norteou a
compreensão de Conduru sobre arte afro-brasileira (CONDURU, 2007, p. 11). Ao não se
limitar a questões formais, o pesquisador pôs em voga a autoria e os desdobramentos
sociais e políticos dessa manifestação artística. Ele percebeu que a obra de diversos
artistas contemporâneos, por suas implicações e preocupações sobre a representação do
negro no Brasil, também pode pertencer a esse universo.
Todavia, Conduru talvez tenha aberto demais o campo ao tentar relacionar tipos
de arte bem diferenciados do território da arte afro-brasileira13. A contribuição maior do
professor, entretanto, é a percepção de que é possível pensar em arte afro-brasileira
dentro e fora do espaço de culto, assim como pertencente à cultura popular e à cultura
erudita. Ela permeia todos esses campos, não se restringindo a nenhum deles. Como
podemos notar anteriormente, o prenúncio dessa perspectiva já estava contido em
Valladares, Carneiro da Cunha e Salum.
Ao que parece, dentre os estudos citados, alguns trabalhos se tornaram referência
para compreender o fenômeno da arte afro-brasileira, como os conceitos definidos por
Marianno Carneiro da Cunha, George Nelson Preston, Marta Heloísa Leuba Salum e
Roberto Conduru.
Para Carneiro da Cunha, pertencentes à arte afro-brasileira são os artistas que
fazem referências continuas a essa cultura em suas obras. A partir disso ele define seu

13
Carlos Eugênio Marcondes de Moura teceu uma crítica a esse respeito dizendo que Conduru “começa a
citar uns artistas contemporâneos que pelo que eu saiba não tem o menor envolvimento com essa questão,
mas ele os coloca como artistas inseridos nesse mundo. É minha crítica ao trabalho dele. Entretanto, o que
vem anteriormente é muito interessante” (MOURA, 2008).

31
modo de classificação, propondo artistas mais ou menos relacionados à arte afro-
brasileira, privilegiando, no entanto, os artistas de culto das religiões afro-brasileiras.
A definição de Preston está mais preocupada em perceber a constância de uma
forma de representação da África na América. O texto crítico do pesquisador sobre a arte
de Emanoel Araujo se desdobra no estudo da arte da África na diáspora. Ele se preocupa
não apenas em definir uma forma dessa influência africana, como também em conceitos
que possam nortear essa manifestação no presente. A sua descrição de qualidades tenta
encontrar na forma uma veia de expressão e continuidade entre fazeres artísticos
baseados numa mesma cultura, embora em novas terras. Para o estudioso americano é
possível constatar essa permanência e sincronia entre diversas obras do universo do
negro na América.
Não obstante, para Preston, a preocupação excessiva com a forma, tentando
encontrar nela uma característica relevante em si mesma, não deixa de trazer outros
problemas. Se pensamos em definir a arte de origem africana e afro-americana em
modelos pré-determinados de forma, por outro lado, excluímos todo um conjunto de
obras que é próprio desse universo e que não compartilha desses princípios. Além disso,
os estudos contemporâneos sobre arte na pós-modernidade evidenciam os contextos
culturais, políticos e sociais de uma obra (HEARTNEY, 2002).
É certo que a forma é fenômeno relevante para os estudos de artes plásticas, mas
ela deve ser pensada em conjunto com seu contexto para o melhor entendimento de suas
dimensões. Assim, na tentativa de não fossilizar um pensamento em protótipos pré-
estabelecidos, talvez seja relevante pensar em atributos de autoria, contexto e circulação
para compreender essas peças além de seu aspecto formal. A partir disso é que citamos a
contribuição de Salum e de Conduru. Desse modo é que podemos compreender, por
exemplo, as instalações de Rosana Paulino ou de Genilson Soares como preocupadas
com alguns dos mesmos problemas que orientaram a escultura de Rubem Valentim ou
Agnaldo Manoel dos Santos. Todos esses pretendem trazer para o universo das artes
questões de identidade e representação. Afastados da imagem do exótico, comercial ou
folclórico, eles demonstram os problemas da instituição artística e museológica, que

32
durante séculos determinou um espaço restrito para as artes dos grupos não
hegemônicos14.
Ainda sobre o conceito arte afro-brasileira, situar a arte de Agnaldo Manoel dos
Santos, Rosana Paulino e de Rubem Valentim sob esse mesmo termo parece realizar um
contorno muito amplo para o problema. Para delimitar melhor esse fenômeno, talvez seja
relevante desdobrar arte afro-brasileira em duas modalidades: uma arte afro-brasileira
tradicional e outra arte afro-brasileira contemporânea. No primeiro caso, podemos
limitar a arte afro-brasileira tradicional15 em objetos de culto e para outros artistas que
utilizam de uma mesma técnica de ascendência na África (como Agnaldo Manoel dos
Santos). Por outro lado, no segundo caso, a arte afro-brasileira contemporânea parece ter
sua sintonia entre a expressão afro-brasileira e a européia, implicando essas experiências
em resultados inusitados (Rubem Valentim, Rosana Paulino). Como podemos notar,
esses são modos distintos de arte afro-brasileira, trazem indícios de uma mesma
preocupação mas situam-se em territórios diferenciados.
Em todo caso, não é nosso objetivo estancar rigidamente esses conceitos em
planos antagônicos e distantes. A arte afro-brasileira contemporânea e a arte afro-
brasileira tradicional fazem parte de um mesmo jogo de significados. Elas implicam-se e
imiscuem-se continuamente. Desse ponto de vista, por exemplo, a arte de Mestre Didi
pode sinalizar pertencer a esses dois universos. Embora a sua concretude aponte para
uma tradição religiosa antiga, as soluções formais do artista e o seu trânsito dentro de
museus ou galerias de arte contemporâneas o tornam igualmente próprio desse espaço.
Muito provavelmente outros artistas afro-brasileiros se encaixam nesse mesmo território
ambíguo.

14
A preocupação em definir os limites para o conceito de arte afro-brasileira, pelo que vimos, é constante
nesses trabalhos. Embora se tenha avançado nesse sentido, e talvez estejamos próximos de uma definição
mais concisa para o termo, é importante fazer mais alguns questionamentos. O estudo de Jorge Coli, O que
é Arte? (1981), procurando uma definição sobre arte na sociedade ocidental, define que é de suma
importância compreender que arte não é um objeto fechado em si, mas um fenômeno que faz parte de um
sistema que lhe atribui significados. “A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que
envolve os objetos: o discurso, o local, as atitudes de admiração, etc.” (COLI, 1981, p. 12). A obra de arte
depende do artista, do crítico, do curador, do marchand, da instituição museológica e do público para que
possa ser definida como tal. Esse circuito, sempre repleto de tensões, é responsável por lhe conferir o
estatuto de arte. Desse modo, talvez o uso desses dispositivos possa ajudar também na definição da arte
afro-brasileira.
15
Um termo sinônimo usado por alguns pesquisadores pode ser o de arte sacra afro-brasileira. Em todo
caso, ressaltamos que o conceito de arte afro-brasileira tradicional também procura compreender os artistas
que operam fora do âmbito litúrgico, mas utilizando de uma mesma solução formal.

33
Do mesmo modo, usando esses conceitos, não estamos descrevendo momentos
históricos e artísticos distantes. Embora as correntes mais contemporâneas possam ser
vistas como produções que despontam a partir de meados do século XX e as obras
tradicionais possam remeter a uma técnica de muitas gerações atrás, ambas as correntes
são realizadas ainda hoje. A arte tradicional afro-brasileira tem na atualidade o seu vigor
e motivo, assim como a arte afro-brasileira contemporânea.
Por fim, imaginamos, esses são alguns autores e questões relevantes para analisar
o campo de estudos da arte afro-brasileira. Essas contribuições colaboram para contornar
o espaço em que atuamos. Entretanto, o conceito de arte afro-brasileira está em
movimento constante na contemporaneidade, ou seja, é um objeto em transformação.
Esses estudos não encerram o problema, mas tentam delinear o pano de fundo para sua
compreensão.

Artistas negros e afro-brasileiros

Além dos estudos de pesquisadores sobre arte afro-brasileira, as considerações


escritas de alguns artistas podem ser oportunas. Esses artistas afro-brasileiros,
participando do circuito mais erudito das artes plásticas – circulando entre museus e
galerias – mostram preocupações em relação a uma arte que pense o negro no Brasil,
descrevendo a sua própria produção e situação.
Desse modo, iniciamos apresentando a discussão a respeito do universo de arte
negra em Wilson Tiberio (1923-2005). Numa visão política do problema, o artista
escreveu que há diferenças entre o que podemos chamar de artista negro e negro artista:

(...) ‘A cor de Otelo’ (...) não basta para caracterizar o artista negro. O preto, que se
dedica a uma arte pode ser sempre um negro artista e não se tornar nunca um artista
negro. Artista negro como eu entendo, isto é o negro que coloca a sua arte a serviço de
sua raça, que procura motivos negros para sua produção artística e que tem uma
sensibilidade especial para tudo que recorda essa África gloriosa que sempre revejo nas
litanias dos ‘candomblés’ baianos (...) (grifo nosso) (TIBERIO, 1946, p. 1).

Para o pintor, o artista negro trabalha com temas negros em suas pinturas,
buscando uma forma de expressar a sua vivência enquanto um indivíduo pertencente a
um determinado grupo. Por outro lado, o negro artista é o artista não vinculado
diretamente a essas prerrogativas. A própria vida e obra de Wilson Tiberio demonstram
34
bem o seu interesse pelo primeiro caso. No entanto, se usarmos a sua definição
restritamente, relegamos ao esquecimento muitos outros artistas.
Em outro caso, Rubem Valentim se afirma como um artista afro-brasileiro e
expõe os seus princípios:

Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos


de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre
mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos
abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando seus signos-
símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico,
provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim (grifo nosso) (Rubem
Valentim apud FONTELES & BARJA, 2001, p. 28).

Yêdamaria se refere a si mesma como uma artista que após outras experiências de
pintura escolheu buscar os signos de uma identidade negra – a iconografia de Yemanjá:

(...) de início, eu não me sentia artista negra, mas à medida que comecei a comparar as
pinturas das Yemanjás com o colorido africano, descobri que, hoje, meu colorido está
mais ligado às minhas raízes. O sentimento africano tem uma essência muito forte,
musical, simbólica e cromática. Foi depois que a forma da sereia brotou que passei a
tratar de um tema popular e africano, descobri toda a beleza do “Dois de fevereiro” –
festa de Yemanjá – uma festa humilde, organizada pelo povo (grifo nosso)
(YÊDAMARIA, 2006, p. 29).

Araujo, do mesmo modo, mostra que somente tardiamente voltou-se para essas
preocupações, após a sua viagem para a Nigéria: “Aí, eu comecei a ver a questão da arte
negra, comecei a adquirir certa consciência. Eu estava saindo da gravura para a
escultura. Já era uma forma de buscar, no tecido e na geometria, a repetição de planos.
Isso é uma coisa africana” (grifo nosso) (Emanoel Araujo apud ALMEIDA, 2007, p.
43).
Ao que parece, esses artistas demonstram alguns temas recorrentes: primeiro, a
busca de uma arte afro-brasileira está lado a lado com a estética de origem européia;
segundo, a definição desses artistas aparece como uma escolha consciente por uma forma
de produção diferenciada da arte européia. Formados em instituições de orientação
ocidental, esses artistas parecem perceber e buscar, a partir de um momento preciso, uma

35
outra experiência artística. A procura de uma estética de origem em África, assim, torna-
se uma possibilidade de desenvolvimento de uma linguagem própria16.
Em outro momento, citando esse estado ambivalente de artistas eruditos e afro-
brasileiros, o curador se refere aos artistas “cuja obra se inscreve no limiar entre a cultura
de sua formação e a cultura do público consumidor; são artistas que refletem tanto a
consciência de seu meio como o inconsciente coletivo, compreendidos tanto pela norma
popular como pela norma erudita” (Emanoel Araujo apud OS HERDEIROS DA NOITE,
1994, p. 13).
Realizando uma digressão, esses artistas buscam conscientemente um modelo de
produção que podemos chamar de arte afro-brasileira. Por outro lado, no caso de outros
artistas, esse universo pode até mesmo bloquear a sua compreensão para além desse
limite conceitual. Renata Felinto, citando um diálogo com a artista Rosana Paulino,
revela que esta artista “estava em uma mostra de artistas afro-brasileiros e ela não era
chamada para uma (mostra) de artistas contemporâneos. É como se o afro-brasileiro e o
contemporâneo não fosse a mesma coisa. Há essa história do tempo mítico e religioso.
Parece que esse conceito de arte afro-brasileira ficou parado no tempo” (FELINTO,
2008).
Estudar arte afro-brasileira significa procurar compreender esse conceito dentro
dos diversos campos do universo das artes plásticas. Como podemos perceber, essa
busca de definição acontece em grande parte devido à necessidade desses artistas em
encontrar um outro modelo de criação artística. Embora operando dentro de uma tradição
ocidental (e não recusando essa influência), esses artistas procuram se afastar
ligeiramente desse fenômeno, orientando-se para a busca dos meios e cruzamentos entre
a arte européia e uma experiência projetivamente de origem na África.

16
Essa busca de identidade pela oposição a um modelo europeu-ocidental aparece mais uma vez em
Araujo; vale citar a sua definição de arte afro-brasileira: “o que eu denomino de arte afro-brasileira é
aquela manifestação que de certa forma sai fora de uma questão eurocêntrica. Como o Rubem Valentim,
que está com um pé na geometria, mas a geometria dele está muito próxima de signos baianos. Nem são
africanos, são baianos. A Rosana Paulino com aquela idéia de apropriar os patuás e botar fotos de família,
dos seus ancestrais. E por aí vai. Há vários artistas. Não só negros, mas artistas brancos também” (grifo
nosso) (ARAUJO, 2009).

36
Arte afro-brasileira na curadoria de Emanoel Araujo

A proposta curatorial de Emanoel Araujo aponta para o uso de diversos conceitos


sobre arte afro-brasileira. A concepção do curador não se restringe somente à
representação e freqüência com que os elementos afro-brasileiros surgem na obra de um
artista de dentro ou de fora do culto, como sugeriu Marianno Carneiro da Cunha (1983).
Do mesmo modo, sua definição não está somente relacionada à forma das obras, como
descreveu Nelson George Preston (1987). É possível inferir que a proposta de Araujo se
aproxima e muito da definição utilizada por Marta Heloísa Leuba Salum17, procurando
na obra de arte afro-brasileira signos formais ou contextuais que a legitime. Em todo
caso, ela parece ser também a síntese dessas tendências.
A exposição do acervo permanente sobre arte contemporânea do Museu Afro
Brasil pode ilustrar esse problema. Nesse local, a obra de diferentes artistas estabelece
diálogos com esses conceitos.
O trabalho de Agnaldo Manoel dos Santos, de forte influência estilística da
África, com seu corte vigoroso e sintético, insere-se nesse espaço devido a sua forma. A
sua técnica remete a uma forma desenvolvida e alicerçada por civilizações africanas
durante séculos (como o trabalho escultórico dos iorubas).
O mesmo sentido conceitual não cabe para compreender a obra de Jorge dos
Santos ou de Rubem Valentim. Esses artistas, preocupados em fornecer um novo
formato para sua arte, solucionaram o problema através de influências estéticas européias
e africanas. Eles remetem a signos de origem em África somente após uma análise mais
cuidadosa de seus detalhes. A arte desses é cruzamento.
O caso de Rosana Paulino é ainda mais emblemático. Ao que parece, não há
cruzamento de signos pré-determinados afro-brasileiros. O método de trabalho e
produção da artista é oriundo das correntes contemporâneas da arte ocidental. O seu
contexto e problema, por outro lado, é pautado na busca de compreender variadas
questões sobre o corpo da mulher negra e a representação dessa no cotidiano social.
Como podemos notar, esses são temas que se aproximam dos conceitos
analisados anteriormente. A curadoria de Araujo permite e perpassa essas questões.
Assim, o curador não utiliza apenas um desses conceitos, mas implica-os em conjunto

17
Vale citar novamente que Salum descreve a arte afro-brasileira como “qualquer manifestação plástica e
visual que retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários
socioculturais do negro no Brasil” (SALUM, 2000, p. 113).

37
numa forma de exposição sobre arte afro-brasileira no Brasil. Há algum tipo de
colaboração entre os diversos modos de compreender essas obras. O curador usa, inverte
e subverte esses conceitos, demonstrando os seus problemas e limites. Esse
questionamento e confrontação são realizados na própria exposição, na prática empírica
de compreender e sistematizar a obra de cada artista num conjunto coeso ou conflituoso
de sentido.
Apresentando ponderações sobre a forma da escultura de Aleijadinho, o mesmo
curador diz, “de onde poderia vir, senão da África, aquela força expressionista contida na
obra do Aleijadinho? A sua escultura reducionista, geométrica, talhada com energia
angulosa, à maneira dos escultores nigerianos, pode ser resultante da influência dos três
escravos que trabalhavam com ele, mas mesmo assim o inconsciente que dominava
aquele processo de criação era o inconsciente do próprio Aleijadinho” (grifo nosso)
(Emanoel Araujo apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, p. 10). Araujo, além de
afirmar a autoria de Aleijadinho (como fez Mario de Andrade), tenta compreender a sua
obra relacionada à estilística plástica das obras africanas. Essas categorias apresentadas
por Araujo são próprias do discurso pautado na forma de Preston18.
A importância do aspecto formal como fator fundador do trabalho de Preston
também influenciou a visão de Araujo em torno de toda a estética africana na América.
Revelando esse modo de pensar a América como uma unidade, o estudioso americano
diz que “na ausência de um sistema tribal de patronato religioso o artista neo-africano do
Novo Mundo sintetizou uma base intelectual para a escola neo-africana que produziu
uma arte cuja integridade formal é uma reafirmação dos cânones artísticos paleo-
africanos” (grifo nosso) (PRESTON & ARAUJO, 1987, p. 41). Nesse mesmo sentido,
Araujo descreve que “essa cultura africana, na unidade básica de sua diversidade
regional e mesmo tão subjugada, caminha junto com o negro, penetrando profundamente
nas Américas, no Caribe (...)” (grifo nosso) (HERDEIROS DA NOITE, 1995, p. 7).
Além disso, a exposição A Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna, 1988)
trouxe um outro problema: de que forma avaliar e compreender a produção de artistas
negros pela sua autoria e não por modos de representação identificados com a cultura
afro-brasileira? Nesse caso, não nos limitamos apenas à arte afro-brasileira, mas
dirigimos nosso olhar para o artista negro que produz arte dentro de um código ocidental.

18
Anteriormente, quando Mário de Andrade descreve a “deformação” de Aleijadinho, talvez já estivesse
apontando para essa influência do modo de esculpir africano na produção escultórica brasileira.

38
Para Araujo, ressaltar a autoria negra é pensar a produção de diversos artistas
negros que operam dentro de um contexto de arte européia. Desde o Brasil colonial, a
presença de artistas negros nas artes plásticas é marcante e contínua, embora nem sempre
notada. Se a autoria negra na arte brasileira é relevante, a mesma não é percebida na obra
finalizada quando esses artistas apresentam um trabalho de contexto e forma em grande
parte ocidental. Seja no Brasil colonial ou no pós-abolição, a identificação do artista
negro com sua própria imagem e representação enquanto grupo sempre foi um
problema19. O modelo artístico europeu era, senão imprescindível, uma norma
subliminar para compreensão e entendimento de uma boa obra de arte.
O pensamento do artista sobre o mundo e sua própria identidade pode ser feito de
diversas formas. O artista pode não tratar de si e de seu grupo, mas direta ou
indiretamente, ele fala de sua experiência enquanto indivíduo pertencente a um grupo.
Essa contribuição é relevante para pensarmos no conceito curatorial de Araujo na
exposição A Mão Afro-brasileira. Ao agrupar os artistas pelo pertencimento étnico-
racial, o que temos é o interesse do curador pela variedade de formas como esse grupo
pensa em si e a sociedade.
Fato interessante: descrevendo esse contexto de troca de experiências e
identidades, o curador baiano diz que começou “a pesquisar a arte afro-brasileira e
descobri[u] muitos artistas brancos com fascínio pela cultura negra, assim como havia
artistas negros apaixonados pela arte européia” (ARAUJO, 2006b, p. 44). Notando esse
problema por outro lado, revelando o contexto social e cultural por trás dessas escolhas
séculos atrás, cabe citar novamente Maria Lucia Montes: “Na verdade o Ataide tem
legitimidade para representar o negro, embora não seja negro e, provavelmente, porque
não é negro. Se fosse negro, ele não teria jamais essa liberdade” (MONTES, 2008).
Ainda sobre a definição do termo arte afro-brasileira, cabe citar alguns
colaboradores do curador. Se para Renata Felinto arte afro-brasileira deve ser pensada a
partir do seu executor, para além do ambiente de culto, ressaltando também os trabalhos

19
Analisando a produção de artistas negros no Brasil, Aracy Amaral pontua argumento relevante: “Se
Emanoel Araujo nos recorda que nos velhos tempos, na Bahia, os que sustentavam os terreiros de
candomblé eram oriundos da classe média alta, construtores, empreiteiros de cor bem sucedidos na vida,
ao mesmo tempo pode-se afirmar ser uma constante no Brasil, iniciado o processo de branqueamento, que
o mulato, ao se clarear ou se tornar literalmente branco, esquece as suas raízes, pressionado,
evidentemente, pelo preconceito odioso, e enterra sua ancestralidade sem procurar destrinchá-la, dela
aprendendo o que lhe seria mais enriquecedor” (Aracy Amaral apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988,
p. 247).

39
de arte contemporânea20, para Carlos Eugênio Marcondes de Moura arte afro-brasileira é
apenas a arte realizada por artistas de culto ligados à matriz africana21. Em outro
momento, referindo-se às exposições de Araujo no Museu Afro Brasil, Maria da Betânia,
outra entrevistada, alega que muitos artistas negros não poderiam ser expostos
simplesmente por sua origem étnico-racial. Essas várias opiniões expressam mais uma
vez as sinuosidades desse território.
A definição de Carlos Eugênio é próxima dos escritos de Marianno Carneiro da
Cunha (1983). Para esse primeiro, arte afro-brasileira é o trabalho realizado em torno das
religiões de origem na África. Como pudemos constatar anteriormente, essa definição
entra em conflito com a proposta tanto de Roberto Conduru (2007) quanto de Marta
Heloísa Leuba Salum (2000). Ambos propõem uma obra de arte para além da estilística e
dos cultos afro-brasileiros, somando a isso a contribuição dos artistas contemporâneos.
Procurar na arte afro-brasileira somente os atributos de forma e legitimação conferidos
pelos locais de culto pode limitar esse fenômeno a um pequeno espaço de produção.
Além disso, é atribuir significados formais que engessam a obra de arte somente a um de
seus aspectos.
Cabe ressaltar que a religião tem sido um espaço importante de continuidade e
referência para a arte de origem na África. Muitos artistas têm encontrado nesse local

20
Como a própria pesquisadora Felinto diz, “penso em arte afrodescendente. A matriz é o indivíduo que
produziu a obra. Eu penso muito na perspectiva do negro que pensa a sua própria trajetória e que de
alguma maneira tenta elaborar isso através da pintura, do desenho, da fotografia, das instalações e
performances. Eu tenho pensado mais nessa perspectiva também por conta da lei, que agora inclui o estudo
da cultura indígena. Antes era uma lei que vinha para diferenciar um grupo, agora ela começa a botar todo
o mundo que não é branco no mesmo saco. Bem, agora eu tenho pensado muito que é importante
apresentar artistas negros produtores. Então, não tem sentido, por exemplo, estudar Di Cavalcante porque
ele pintou mulatas ou estudar o Portinari porque ele pintou trabalhadores negros ou a Dijanira que pintou
festas populares ou mesmo o Ronaldo Rego. Eu penso muito no negro como produtor da arte. Ele como
protagonista e não mais como tema. Quando eu penso nesse termo, que não gosto muito, penso sob essa
perspectiva, focando quem produz. E focando quem produz há uma grande diversidade de temas. Essas
pessoas são artistas e vão colocar isso de diferentes modos na sua produção. Outros nem pensam em
colocar essa discussão em suas obras” (grifo nosso) (FELINTO, 2008).
21
Cabe citar a análise de Carlos Eugênio Marcondes de Moura: “Essa arte (afro-)brasileira nasce de um
envolvimento de alguns artistas com a questão da religião negra. Por exemplo, o Rubem Valentim, ele era
ogan de um terreiro de candomblé. Toda essa geometria dele parte de objetos rituais. Ele pega um
machado e vai trabalhando isso de mil maneiras, procurando novas geometrias, novas variações, novas
formas. Mas você vê que no fundo a grande referência é a questão do objeto ritual do candomblé. (...) Um
outro exemplo é o Ronaldo Rego do Rio de Janeiro. Iniciou-se na umbanda e depois passou pra o
candomblé e toda obra do Ronaldo rego, a gravura e a escultura é todinha referenciada a esse culto do qual
é devoto e está envolvido. Ele tem uma ligação profunda. Então, essa arte afro-brasileira é, me parece,
basicamente uma arte religiosa. Mas ai você tem também artistas africanos que não são necessariamente
ligados a esse universo religioso. Nem entro no universo de interesse deles” (grifo nosso) (MOURA,
2008).

40
indícios para a criação de sua obra plástica. Nesse sentido, descrever a produção dos
artistas rituais das religiões de matriz africana no Brasil pode revelar caminhos
pertinentes dessa produção. No entanto, conferir a apenas esse território o poder de
consagrar um objeto como arte afro-brasileira talvez desconsidere as manifestações
contemporâneas que aconteceram sobre esse universo.
A proposta de Renata Felinto parece se ater a dois fundamentos de nosso estudo:
a autoria do artista negro e a constância deste em produzir reflexões sobre o seu próprio
grupo. Por sua vez, ao excluir o artista de outras ascendências, essa proposta pode relegar
ao esquecimento importantes contribuições. O próprio Araujo, citando esse problema,
observa que o artista Carybé (Hector Paride Bernabó) pode ser considerado um artista
afro-brasileiro. Araujo explica: “eu diria que Carybé é um artista afro-brasileiro. Porque
toda a produção dele está dirigida para registrar essa cultura. Mas no registro tem uma
invenção dele ali dentro e ela está ligada à questão afro-brasileira” (2009). Arte afro-
brasileira não estaria relacionada ao pertencimento étnico-racial do artista, mas sim à
preocupação deste em dialogar com essa cultura. A proposta de Salum, considerando
como arte afro-brasileira todo o universo de questões sobre o negro no Brasil e os objetos
de influência estilística africana tradicional, parece abarcar essas tendências.
Como citamos, Maria da Betânia considera descabida a participação de artistas
negros não focados numa produção afro-brasileira nessas mostras. A questão de Betânia
não diz respeito exatamente à arte afro-brasileira, mas aos artistas negros que utilizam de
uma linguagem ocidental para sua criação. Araujo responde a esse problema quando na
exposição Vozes da Diáspora (1993) diz que “claro está que essa exposição nem sempre
apresenta resultados estéticos com raízes na África” (apud VOZES, 1993). Aqui,
interessa saber a cor da pele do artista na medida em que isso revela um modo especial
de ver a realidade e de se impor no mundo. A maneira e estratégia como esses artistas
negros se inserem dentro do discurso oficial, do código dominante, é o objeto dessa
curadoria.
Para estudar a curadoria de Araujo é preciso discutir o contexto de arte afro-
brasileira de maneira ampla. Como vimos através do estudo de Carneiro da Cunha,
Preston, Salum e Conduru, parece ser necessário observar que proposições importantes e
diferenciadas são feitas por artistas rituais e pelos artistas alheios ao universo religioso
afro-brasileiro. São orientações diferentes para lidar com o tema. Uma é circunscrita ao

41
código tradicional e religioso (nem por isso menos contemporâneo) e outra relacionada
ao contexto e circuito das artes plásticas atuais (com proposições que pensam seu
contexto étnico-racial dentro desse ambiente). Contudo, ambas são pertinentes. Ao que
parece, é desse modo que a experiência do curador baiano tenta compreender as diversas
possibilidades pelas quais um artista pode adentrar esse universo.

42
43
2. O museu e o espaço da exposição

Para compreender a trajetória de Emanoel Araujo é preciso observar o espaço que


contorna suas exposições. Inserindo a narrativa de arte afro-brasileira dentro do museu
ou procurando um outro público, o curador subverte o tradicional uso dessa instituição.
A partir disso é que nos apoiamos em estudos sobre a história do museu no ocidente para
confrontar os problemas dessa instituição com as práticas delineadas por Araujo em
cerca de três décadas de atuação.
Iniciamos esse capítulo apresentando algumas das características do museu
tradicional. Nossa intenção é, sucintamente, pontuar os conceitos que nortearam parte
significativa da história dessa instituição. Se o museu tradicional utiliza um discurso
linear e universal, as discussões sobre o museu contemporâneo se orientam pelo discurso
polifônico. A partir do pós-guerra no século XX, os conceitos da nova museologia
principiam o debate acerca de uma outra concepção de museu.
Em um segundo momento, relacionando o museu e a arte de origem na África,
pretendemos compreender a forma como essa arte tem sido vista e tratada dentro do
museu ocidental. Embora foquemos as exposições de Araujo sobre arte afro-brasileira, a
proximidade e relação desta com a arte da África torna necessário estudar essas
conexões.
No subcapítulo seguinte localizamos as nossas preocupações em torno do museu
e a cultura e arte afro-brasileiras. Para analisar esse ambiente, utilizamos estudos que
atentam para a compreensão da história afro-brasileira dentro desse espaço. Cabe
verificar através de alguns estudos se os métodos usados para compreender a arte da
África nos museus ocidentais são os mesmos empregados para a arte e cultura afro-
brasileiras nos museus nacionais. Por fim, a última parte desse capítulo procura
contextualizar esses problemas frente à prática expositiva do curador Araujo.

44
O museu tradicional e a nova museologia

O museu22 possui uma longa história no ocidente, “remonta ao tesouro dos


atenienses em Delfos, ao saque feito por Verres às antiguidades gregas e ao Museu
Alexandrino” (Hughes de Varine-Bohan apud ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO,
1979, p. 9). Na Antiguidade ou na Idade Média, ele também foi o detentor dos grandes
tesouros eclesiásticos.
Durante grande parte de sua história, o museu foi uma forma de apreciação
particular de obras para poucos. Após a Revolução Francesa, ele passa a ser local
destinado à esfera pública (em 1793 o Palácio do Louvre torna-se o Museu da
República)23. Somemos a esse fato o surgimento das grandes nações modernas. A
instauração de uma história nacional, mostrando aos diversos grupos sociais uma
narrativa que os amalgama, torna-se uma das características dessa instituição.
No século XIX a ciência tornou-se paradigma para a classificação e
hierarquização dos objetos dentro do museu. Impulsionado pela descoberta de novos
territórios (na América ou na África), o museu se torna a convergência entre dois
mundos pela perspectiva européia. A etnologia e a antropologia agem principalmente no
estudo dos objetos e nas sociedades “primitivas” de além-mar. Analisando a trajetória de
coleções africanas no Museu Etnológico de Berlim, na Alemanha, Wolfgang Döpcke
descreve que:

Ao contrário dos “gabinetes de curiosidades” das casas dinásticas dos séculos anteriores,
os museus etnológicos da segunda metade do século XIX se constituíram com pretensões
científicas. Em vez de satisfazer a mera curiosidade do observador com a exposição de
objetos exóticos, definiram a ampliação do conhecimento científico como objeto
principal dos museus e como razão do impulso colecionador. Até o fim da Primeira
Guerra Mundial, a etnologia alemã estava profundamente influenciada pelo ideário
evolucionista da história cultural. Não se estudavam as “sociedades primitivas” para

22
Vale perceber que “a palavra moderna museu é uma derivação do grego museion, nome dum templo de
Atenas dedicado às musas. No século III a. C. a mesma palavra foi utilizada para designar um conjunto de
edifícios construídos por Ptolomeu Filadelfo em seu palácio de Alexandria. Tratava-se dum complexo que
compreendia a famosa biblioteca, um anfiteatro, um observatório, salas de trabalho e de estudo, um jardim
botânico e uma coleção zoológica. Sabe-se por outro lado que já no século V a. C. se dava o nome de
pinacoteca (pinakothéke) a uma das alas dos Propileus da Acrópole de Atenas, e Pausânias conta que nela
se guardavam pinturas de Polignoto de Tasos e de outros artistas” (ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO,
1979, p. 24). Como demonstrado, podemos observar que o termo museu remete a duas concepções
diferentes dessa instituição na Antiguidade, sendo que o termo pinacoteca é o mais próximo da instituição
museu que analisamos no presente.
23
Antes disso, o Palácio de Belvedere em 1783, em Viena, já havia aberto suas portas à sociedade. Mais
relevante que marcar um princípio desse fenômeno de abertura do museu é compreender que o século XIX
é o despontar do museu como uma instituição destinada ao coletivo e não mais à elite dirigente.

45
melhor conhecê-las ou para fundamentalmente compreendê-las como último objeto da
pesquisa. A principal razão do trabalho etnológico era a compreensão dos caminhos de
evolução cultural da humanidade, e os “povos primitivos” das colônias foram
considerados testemunhas e representantes de estágios inferiores de uma trajetória
humana unidimensional (grifo nosso) (2004, p. 36).

No caso dos museus no Brasil, temos o seu desenvolvimento no século XIX sob
duas orientações principais: primeira, o museu de ciência; segunda, o museu
comemorativo. O primeiro destina-se ao estudo da fauna, bem como das populações não-
ocidentais e sua produção material. O segundo é o local que zela pela guarda da memória
nacional, exibindo obras de arte como ilustração dessa história, procurando realizar o
apanágio dos fatos que definem o país (SCHWARCZ, 1993, p. 68).
Dentro desses diversos paradigmas do museu, podemos identificar um ponto em
comum – a sua profunda vinculação a uma perspectiva ocidental sobre a história e o
mundo. Esse espaço, “enquanto instituição e enquanto método de conservação e de
comunicação do patrimônio cultural da humanidade, é um fenômeno europeu que se
difundiu porque a Europa produziu a cultura dominante e os museus são uma das
instituições derivadas dessa cultura” (grifo nosso) (Hughes de Varine-Bohan apud
ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 12).
O museu tradicional, como vimos, é essencialmente linear, hierárquico e
autoritário. Essas são partes do método que marcou seu princípio. A representação
museológica é construída por quem detém o poder econômico, cultural e político.
Segundo essa perspectiva, um único caminho de desenvolvimento e entendimento da
história é possível. Manter essa visão dos fatos, da cultura e, portanto, da ação
museológica, não é possível apenas com ferramentas científicas, mas sim com estruturas
de poder que validam a história a partir do foco dominante.
Hughes de Varine-Bohan, ex-diretor do ICOM (Conselho Internacional dos
Museus), diz que:

(...) não podemos esquecer o fato de um museu ser sempre a função e o reflexo da classe
social que o cria. Neste sentido pode afirmar-se que um museu que exprima a
complexidade da sociedade de que faz parte não pode existir. É por este motivo que
surge a necessidade de criar um novo conceito de museu em que cada indivíduo possa
encontrar os elementos básicos para seu desenvolvimento enquanto ser humano e
membro duma sociedade muito complexa como a atual (grifo nosso) (apud ROJAS &
CRESPÁN & TRALLERO, 1979, pp. 79-81).

46
Em contraposição à história do museu ocidental como instituição que constrói a
história do mundo sob a égide européia, em meados do século XX, após a Segunda
Guerra Mundial, diversos estudiosos começam a apontar para uma outra forma de
compreender as narrativas produzidas por essa instituição.
Para compreendermos essa situação, vale utilizar os estudos sobre a nova
museologia de Luiz Alonso Fernández (1999). O autor descreveu a contraposição entre
essas diferentes concepções de museu na história ocidental24.
Ressaltamos que o uso do conceito de museu tradicional e da nova museologia
mostram perspectivas diferentes em relação a essa instituição. Por outro lado, isso não se
refere a diferentes momentos históricos, mas sim a dois modelos presentes na atualidade.
Analisando os objetivos de uma nova concepção de museu, Fernández descreve
que este “Deberá incluso (...) reciclar – si no romper com ellos – los roles habituales de
sacra entidad conservadora y distante que ha venido ejerciendo en favor de una cercania
informadora y comunicativa com la comunidad” (FERNÁNDEZ, 1999, p. 15).
Contrapondo-se à afirmação de Theodor Adorno, de que museu é “mausoléu”,
local de coisas mortas (FERNÁNDEZ, 1999, p. 11), a nova museologia pretende travar
diálogo constante e eficaz com o público mais amplo e, principalmente, com sua própria
comunidade. O museu deixa de ser um espaço de e para especialistas e passa a ser
território de debate para todos. Deixa de ser local apenas de pesquisa, mas valoriza o
diálogo suscitado por essa mesma atividade. Sendo um espaço dedicado ao público,
apoiado evidentemente na pesquisa e em sua própria metodologia, essa instituição deve
buscar uma gestão democrática das atividades e formas de ação. Como diz Marc Maure,

(...) una de las características esenciales de la nueva museologia consiste en la utilización


de métodos de trabajo basados en el diálogo entre el museólogo y la comunidad, para el
estudio, la preservación y la difusion de la cultura de esta comunidad. (...) Es además um
médio de expresión tridimensional, es decir que constituye um espacio físico que puede
ser utilizado como un lugar de reencuentro, de convivência, de intercambio y de debate
(grifo nosso) (apud ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, pp. 148-150).

24
Outro fator relevante de Fernández é estudar a instituição museológica como parte de uma disciplina
científica. A museologia tem como objeto o estudo do museu e pode ser entendida em dois âmbitos:
museologia e museografia. A primeira lida com a teorização e a segunda com os atributos práticos da
atividade museológica. Cabe ressaltar que não há hierarquia dentro dessa separação. A prática da
museografia se nutre da teoria da museologia assim como o inverso também é verdadeiro.

47
Visando esse objetivo, cabe citar os paradigmas da nova museologia
desenvolvidos por Marc Maure e usados por Fernández:

1. La democracia cultural
2. Un nuevo y triple paradigma: de la monodisciplinaridad a pluridisciplinaridad, del
público a la comunidad y del edifício al território
3. La conscienciación
4. Un sistema abierto e interactivo
5. Diálogo entre sujetos
6. Un método: la exposición (Marc Maure apud FERNÁNDEZ , 1999, p. 82).

Esses paradigmas, para o autor espanhol, são um conjunto de proposições


necessárias para o museu frente aos problemas de nosso tempo. Cabe analisarmos alguns
desses conceitos: “la democracia cultural”, “la concienciación” e “un sistema abierto e
interativo”.
O primeiro item citado refere-se à “democracia cultural”, que, para Fernández, é
o trabalho de exposição e de museologia que compreende a diversidade cultural como
base para qualquer projeto dentro dessa instituição. Esse conceito contraria a antiga visão
do museu monocultural. Fernández diz que “La cultura de los ‘dejados de cuenta’,
‘olvidados’ y ‘oprimidos’ há llegado a ser el campo de elección de los ‘nuevos museos”
(FERNÁNDEZ, 1999, p. 106).
Por sua vez, “La concienciación” constitui-se como o resultado do trabalho e
proximidade entre o museu e seu público. O novo museu não se dirige apenas a um
público abstrato e homogêneo de receptores. O seu público é composto por uma
comunidade em constante proximidade com suas atividades. Essa comunidade é o
objeto último (e primeiro) de toda ação museológica. Ela não apenas recebe o conteúdo
de uma exposição, mas interage com esta, propondo a devolução da ação de leitura e
compreensão25.
Sobre o “sistema abierto e interativo”, a montagem singular de uma exposição
deve trazer um modo amplo de ver a mesma. Dessa maneira, temos a constituição de um
palco onde o diálogo e pluralismo de visões é possível e necessário. Essa multiplicidade

25
Como diz Hughes de Varine-Bohan: “O museu moderno, universidade para o povo através dos objetos, é
um museu que pode abarcar a totalidade da comunidade que pretende servir” (ROJAS & CRESPAN &
TRALLERO, 1979, p. 20).

48
não deve enrijecer um modo de ver a mostra, mas atribui ao espaço uma característica
sinuosa que permite ao visitante criar seus próprios caminhos dentro do museu26.
Como podemos notar, a nova museologia pretende substituir a orientação linear e
autoritária do museu tradicional para compreender quão múltipla pode ser a
representação de um fato, de uma proposta expositiva, da história. Tal perspectiva
requisita o uso da multidisciplinaridade. Tanto a história da arte quanto as demais
ciências humanas são atributos importantes para se compreender um objeto dentro desse
espaço expositivo.

O museu tradicional e a arte de origem não-ocidental

O museu ocidental tem configurado um modo específico de ver a arte não-


ocidental em seu espaço. A exposição de Araujo, apresentando proximidades e objetos
de arte da África, requer a compreensão desse contexto.
Os estudos de Sally Price (2000) sobre arte não-ocidental em museus (e também
sobre o público, artistas, críticos e marchands) da Europa e Estados Unidos expõem as
nuances desse intrincado jogo de representação e poder. Para a autora, a trajetória das
coleções originalmente não-ocidentais27 em museus ocidentais são vistas a partir de,
primeiro, um contexto etnológico e, segundo, um contexto formalista.
A primeira posição, etnológica, aborda o contexto de produção desses objetos e
crê que seu entendimento está vinculado principalmente por seu uso social. Esse foi o
conceito que norteou o entendimento da arte da África em final do século XIX e
princípio do XX.
Cabe citar Price: “Na compreensão Ocidental das coisas, uma obra originada fora
das Grandes Tradições (ocidentais) deve ter sido criada por uma personagem sem nome

26
Comentando essa preocupação de apresentar ao visitante uma multiplicidade de caminhos, vale observar
esse contexto: “As plantas clássicas impõem um percurso e uma ordem ao visitante, o que permite expor as
peças de acordo com uma seqüência histórica ou uma coerência estilística, ou projetar comparações entre
grupos de obras com um objetivo didático que exige que os visitantes circulem num sentido previsto. Mas
também se imaginaram outros modelos de circulação que deixam plena liberdade ao visitante, podendo
este escolher um itinerário próprio, prescindindo conseqüentemente das áreas de exposição que não lhe
interessam” (ROJAS & CRESPAN & TRALLERO, 1979, p. 39).
27
Como arte não-ocidental citamos não apenas as obras produzidas fora do espaço que consideramos
ocidental, mas também obras que, mesmo produzidas no ocidente, possuem uma estética ou mesmo uma
maneira de ver que a diferencia dos tradicionais cânones europeus e americanos de arte (como por exemplo
parte da arte afro-brasileira tradicional).

49
que representa sua comunidade e cuja arte respeita os ditames de tradições
antiqüíssimas” (PRICE, 2000, p. 87). Essa noção de artista anônimo e do universo de
tradições antigas para compreender a arte da África tem sido utilizada em museus
ocidentais desde os primeiros contatos entre essas culturas. Desse modo, essas obras
obtidas em grande parte durante o período de colonização da África sofrem da quase
total ignorância sobre as circunstâncias específicas de sua elaboração e contexto.
A segunda posição, formalista, entende que os objetos de arte não-ocidentais
possuem qualidades formais que podem ser julgadas segundo cânones artísticos
pretensamente universais. Essa definição foi adotada em meados do século XX em
contraposição à antiga visão etnográfica. Acontece sob a influência de artistas e
marchands a partir de uma leitura moderna dessas obras de arte da África. Os artistas
não-ocidentais continuam a ser anônimos e a criar dentro de regras muito rígidas, porém,
suas obras mudam de enfoque em relação ao discurso do museu. Sobretudo, elas passam
a ser obras de arte e não apenas objetos etnográficos para entendimento de uma
sociedade. Analisando a visão do observador a partir dessa perspectiva, Price diz que
essa opção deixa “o olho esteticamente discriminante ser o nosso guia, com base em
algum conceito indefinido de beleza universal” (grifo nosso) (2000, p. 134) 28.
Ambos os caminhos são visões extremamente ocidentais sobre a arte dos povos
não-ocidentais. Como diz Hughes de Varine-Bohan, essa mesma visão permeia inclusive
os países fora da Europa:

A partir de princípios do século XIX, o desenvolvimento dos museus no resto do mundo


é um fenômeno puramente colonialista. Foram os países europeus que impuseram aos
não europeus seu método de análise do fenômeno e patrimônio culturais; obrigaram as
elites e os povos destes países a ver sua própria cultura com olhos europeus (grifo nosso)
(ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 12).

28
Comentando um diálogo entre curadores, artistas e marchands, Kwame Anthony Appiah (1997) desnuda
a tortuosa estrutura de significados que regem uma exposição de arte da África em centros ocidentais. O
olhar ocidental tende a não se considerar um modo de ver a realidade, muito pelo contrário, ele é a própria
realidade. Sobre a exposição do Centro de Arte Africana de Nova York, em 1987, o autor analisa a posição
de um grupo de curadores a respeito de obras tradicionais da África. Dentro desse grupo, formado por
curadores, colecionadores, professores de história da arte e artistas (ocidentais e um africano), vale citar a
crítica de David Rockefeller (colecionador americano) sobre um objeto de arte chamado figura feminina
fanti: “(...) possuo coisas semelhantes a essa e sempre as apreciei. Essa é uma versão bem mais sofisticada
do que as que tenho visto, e achei-a muito bonita (...) a composição total tem um ar muito contemporâneo,
muito ocidental. É o tipo de coisa que combina muito bem com as coisas ocidentais contemporâneas.
Ficaria bem num apartamento ou numa casa modernos” (APPIAH, 1997, p. 194). Esse comentário revela
um modo comum de observar a arte não-ocidental na contemporaneidade, retirando dela seus contextos
próprios e inserindo-a num local novo, relacionada à estética de uma arte moderna formalista.

50
A análise etnológica, buscando compreender o entorno da produção e as
características sociais e culturais do grupo não pode ser descartada. Todavia, não
podemos negar o conteúdo estético dessas obras. Por sua vez, a análise estética é inócua
se não se presta à pesquisa dos símbolos próprios daquela cultura. Esses são dois modos
distintos de compreensão do fenômeno. Tomar um ou outro como único caminho
possível é negar alguma outra qualidade relevante do trabalho.
Além disso, como diz Sally Price (2000), um outro importante fato é
negligenciado diante dessas duas vertentes – a voz dos próprios executores dessas obras
geralmente é tratada como irrelevante. Segundo ela:

Ao aceitar que as obras de Arte Primitiva são dignas de serem exibidas ao lado das obras
dos mais distintos artistas de nossas próprias sociedades (...), a nossa próxima tarefa
consiste em reconhecer a existência e a legitimidade dos arcabouços estéticos dentro dos
quais elas foram criadas. A contextualização não mais representaria uma pesada carga de
crenças e rituais esotéricos que afastam da nossa mente a beleza dos objetos, e sim um
novo e esclarecedor par de óculos (PRICE, 2000, p. 135).

A observação de Price busca um modo contemporâneo e adequado para expor o


que denomina de “arte primitiva”29. Para compor esse mosaico de maneira coerente, é
preciso buscar a contribuição da crítica de arte formalista e da etnologia – disciplinas
que, aparentemente, têm-se mostrado como antagonistas.
Segundo a pesquisadora, ambos os extremos isolados (o artístico ou o
etnográfico) são míopes para a compreensão dos objetos de arte não-ocidental. Ao que
parece, tanto a contextualização quanto o reconhecimento estético são relevantes para a

29
O termo “arte primitiva” é usado com reservas em nosso estudo e na obra de Price. No ocidente, a “arte
primitiva” é em muitos casos vista como um fenômeno fora do território ocidental, realizada por povos
situados em locais longínquos e produto de uma tradição que nega a individualidade do artista. Distante no
tempo e no espaço, desprovida de artistas conscientes do seu próprio trabalho (a partir da perspectiva do
indivíduo ocidental), esses são os dois principais paradigmas que norteiam o termo. Contudo, isso não
corresponde a esse tipo de arte, mas a uma forma ocidental de ver a arte não-ocidental. Essa perspectiva
está impregnada dos instrumentos da filosofia positivista do século XIX que serviram de base teórica à
colonização da África e Oriente, subjugando povos a um modelo único de progresso. Do mesmo modo,
diversos pesquisadores (LAUDE, 1968; JUNGE, 2003; PRICE, 2000) têm atentado para a existência de
autoria da obra de arte em sociedades tradicionais. Em muitas dessas comunidades, o artista é responsável
por uma produção específica de materiais, sendo reconhecido por tal trabalho, quando bem executado. O
artista tradicional é um autor, todavia, que não usufrui da mesma autoria artística do artista ocidental
moderno, pois sua arte (mais do que no ocidente) está vinculada a uma visão de mundo especial, em muito
litúrgica. Essa tradição, no entanto, não o impede de arriscar e alterar. São culturas e histórias diferentes,
com especificidades, mas não tão distantes a ponto de desconsiderar a possibilidade de autoria em
sociedades tradicionais. É sob essa crítica que compreendemos o uso do termo “arte primitiva” (que está
entre aspas) e, como acreditamos, seu uso não nos impede de lembrar que o nome carrega, em si, uma
ideologia de dominação e exotização dos povos tradicionais na América indígena, na África e no Oriente.

51
compreensão ampla da arte dos povos tradicionais da África e Oriente. Somada à
contextualização histórica, social e cultural do trabalho artístico, Price afirma a
necessidade de se estudar a iconografia e estética dos próprios povos e artistas
tradicionais30.
A etnologia deve suprir as informações necessárias sobre a composição da
sociedade, do artista ou do objeto de estudo em seu meio original. À crítica de arte cabe
compreender o objeto dentro de suas características formais, bem como relacioná-las à
estrutura cultural e social. Na arte da África, a forma não é uma definição somente do
artista, mas é o resultado de um diálogo com aqueles que detêm a autoridade de guardar
e comunicar os saberes da comunidade aos seus pares. Por outro lado, esse diálogo é
mediado pelo conhecimento técnico, pela qualidade de execução e pela orientação
estética do artista ou do grupo que realiza o objeto. Por último, mas não menos
importante, muito pelo contrário, essas duas perspectivas devem travar contato com o
conhecimento do grupo sobre seus próprios objetos.
Se é certo que a crítica ocidental pode se debruçar sobre as artes tradicionais não-
ocidentais, é igualmente relevante que essa crítica produza instrumentos adequados ao
seu objetivo. Analisar o objeto de arte não-ocidental do mesmo modo que outro objeto
ocidental é ignorar os princípios essenciais que regem essa arte. A crítica de arte não
pode se despojar de todo seus instrumentos, mas precisa adaptar-se, reconhecer as suas
limitações.

Cultura e arte afro-brasileira no museu

Como podemos notar no texto anterior, a arte da África é apresentada e difundida


de modo específico dentro do museu ocidental. Por sua vez, ao que parece, a arte e
cultura afro-brasileira também são compreendidas nos museus brasileiros a partir de
códigos de representação semelhantes. É possível que a arte afro-brasileira, em alguma
medida caudatária de sua ascendência em África, sofra dos mesmos problemas dentro do
museu ocidental, que por muito tempo mostrou esses objetos como artefatos de culturas

30
A exposição Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2008),
com a vinda e discussão com os próprios artistas desse país, aponta para essa necessidade de conhecer as
vozes desses criadores.

52
estranhas e distantes. Como um filtro, o museu mostra ao público uma maneira de ver e
sentir. Pontuar as características dessa visão sobre a cultura e arte dos povos de
ascendência africana pelos museus brasileiros é o nosso objetivo nesse momento.
A arte afro-brasileira dentro do museu pode ser apresentada sob diferentes
concepções e configurações. Se em alguns aspectos podemos descrevê-la como a arte
produzida em terreiros para fins litúrgicos, esse não é o mesmo fenômeno de parte da
arte afro-brasileira de orientação estética contemporânea.
A arte afro-brasileira mais atual, que dialoga com os movimentos artísticos
internacionais contemporâneos, parece não sofrer dos mesmos problemas da arte de
maior ascendência estilística em África. Para esses dois modos de arte afro-brasileira há
um determinado tipo de exposição dentro do museu. Se a obra mais tradicional pode
estar circunscrita a conceitos próprios da etnologia, a segunda corrente, mais
contemporânea, geralmente está delimitada em exposições sobre arte, interagindo com
problemas da história da arte.
Esse esquema nem sempre é tão cristalino. Mesmo os artistas que operam dentro
de um código contemporâneo de arte podem se aproximar, conflituosamente, de um
discurso próprio da etnologia de décadas atrás31. Essas definições se mesclam,
coadunam, cruzam e divergem em desconcertantes embates. Como campos de poder e
tensão, eles se repelem ou se sobrepõem de diferentes formas, sugerindo, em alguns
casos, formatos híbridos.
Do mesmo modo como pensamos em diferentes orientações sobre arte afro-
brasileira, as características do seu entorno, o museu, também devem ser observadas. Em
cada tipo de museu – histórico, artístico, temático, etc. – temos um discurso específico
sobre o negro, sua arte e cultura. Destrinchar esses códigos requer atenção, pois, em
geral, o discurso do museu sobre a obra tende a amalgamar esses gêneros em um mesmo
propósito. O museu de arte pode utilizar objetos históricos e o museu de história pode
expor obras de arte, dentre outros intercâmbios e trocas. Sobretudo, um objeto dentro do
museu é polifônico. Ele pode sugerir muito mais do que a legenda ou o contexto
museológico sugerem.

31
Os artistas contemporâneos do Benin expostos no Museu Afro Brasil (Benin está vivo ainda lá –
Ancestralidade e contemporaneidade, Museu Afro Brasil, 2008) relataram o modo dúbio pelo qual é
tratada a sua arte pelo público ocidental – para estes, ao que parece, ela não pertence ao tradicional e nem
ao contemporâneo. Analisamos mais detalhadamente esse fato no Capítulo 5.

53
Feitas as devidas observações, descreveremos a seguir a análise de alguns
estudiosos sobre a arte afro-brasileira em museus brasileiros. Essa rápida abordagem
procura contextualizar a experiência de museus antigos (século XIX) e outros mais
recentes (fim do século XX). Mais adiante, apresentaremos a experiência de exposição
de Lina Bo Bardi. Essa pesquisadora parece ter buscado um outro modo de ver a arte
afro-brasileira e uma breve análise de suas contribuições é necessária. Por fim,
analisaremos também a proposta de criação do Museu de Arte Negra de Abdias do
Nascimento.
No Brasil, analisando a cultura material dos povos negros em fins do século XIX
no museu (em muitos casos o que classificamos como arte tradicional afro-brasileira),
constatamos que essa era predominantemente vista como um objeto de ciência.
Procurando compreender o universo conceitual em relação aos povos e às obras de
origem não-ocidental dentro dos museus brasileiros em final do século XIX, cabe citar a
análise de Lilia Moritz Schwarcz: “Aos poucos, os museus etnológicos transformam-se
em depósitos ordenados de uma cultura material fetichizada e submetida a uma lógica
evolutiva” (1993, p. 69). Nesse mesmo sentido, a autora continua mostrando a
convergência entre as idéias raciais e o lugar do museu e das suas obras para a elite
intelectual da época:

Herdeiros de uma forma específica de classificação, os museus etnográficos aplicaram


as máximas do evolucionismo social, que pressupunham uma estrita analogia biológica,
substituindo organismos vivos por grupos sociais. Fiéis às máximas dos evolucionistas
sociais, cujo foco de interesse centrava-se no desenvolvimento cultural da humanidade
como um todo e não de uma sociedade em específico, os antropólogos dos museus
pareceram entender o país como um grande “arquivo” de documentos originais e
fundamentais para a verificação e estudo das “etapas atrasadas da humanidade” (grifo
nosso) (1993, p. 92).

Esses objetos oriundos da cultura dos africanos escravizados, assim, para a


ciência do século XIX, deveriam compor um mosaico onde já estava predeterminado o
seu lugar e função. Eles correspondiam a artefatos produzidos por sociedades
diferenciadas temporalmente e espacialmente da ocidental. E embora estejamos falando
de uma produção dentro do Brasil, o princípio que orientava esses museus parece ser
análogo ao dos museus europeus.
Sobre o momento atual das exposições de arte afro-brasileira tradicional e do
negro, os estudos de Marcelo Nascimento Bernardo Cunha (2006) demonstram que essas

54
coleções ainda são vistas e concebidas como tipos diferenciados de arte, muitas vezes
apenas objetos de ciência. Pertencendo principalmente a coleções etnológicas, os modos
de apreciação desses objetos diferem pouco do que foi feito há um século. Em geral, para
o autor, as exposições demonstram um grande interesse no passado que, não obstante,
engessa a possibilidade de se construir e de se pensar essas obras dentro do mundo
contemporâneo32.
Em sua análise sobre coleções e exposições no Brasil, Bernardo Cunha constatou
a ausência quase total de obras contemporâneas dos grupos afro-descendentes. Sendo
exposições que situam a presença africana no Brasil, a ausência de uma imagem atual da
arte afro-brasileira ou da África reafirma um contexto de representação estático, até
mesmo mítico, sobre esse grupo.
Como diz o pesquisador, em muitos museus brasileiros há

(...) uma visão com distorções e desqualificações da ancestralidade africana (...), que
mesmo possibilitando a valorização do continente como produtor de complexas e
milenares culturas, pode causar no espectador idéias de culturas rudimentares, que se
esgotou e não se atualizou nas suas práticas e estratégias de resistência e renovações
(BERNARDO, 2006, p. 99).

Em âmbito semelhante, há também a contribuição de Myrian Sepúlveda dos


Santos (2007)33. Apresentando ponderações sobre instituições brasileiras como o Museu
Nacional de Belas Artes, a pesquisadora relata duas imagens recorrentes sobre o negro
no Brasil: primeira, as obras e imagens de negros são em grande parte veiculadas como
obras do passado escravocrata; segunda, as imagens do negro na sociedade
contemporânea e passada são partes de um contexto de exotismo onde o esporte, a dança
e a música são os únicos espaços possíveis de identificação positiva desse grupo.
Ainda sobre o negro no museu, a autora mostra que:

o silêncio sobre raça pode representar a predominância de um imaginário coletivo,


comum, capaz de se impor ao conjunto de cidadãos, independente de cor, etnia ou raça.

32
O próprio Emanoel Araujo procurar diferenciar sua trajetória diante dessas instituições: “Tem o Museu
Afro-brasileiro da Bahia, o Museu da Escravidão lá em Pernanbuco (...) mas esses têm uma certa
morfologia antiga e nós queremos criar uma tipologia que seja contemporânea, ao mesmo tempo
retrospectiva e prospectiva” (ARAUJO, 2004b).
33
Podemos somar a esse trabalho a contribuição de Raul Lody (2003). O autor, apoiado em vasta pesquisa
em acervos museológicos sobre o negro no Brasil, reitera a presença quase total do negro em coleções
etnológicas. Embora seja sabida a presença do negro no espaço religioso e litúrgico de origem africana, a
sua ausência em outros espaços torna difícil associar maior complexidade a sua imagem numa sociedade
contemporânea repleta de antagonismos e hibridismos culturais.

55
Cabe a nós, entretanto, investigar este imaginário comum e perceber em que medida ele
traz hierarquia de valores e elege padrões estéticos e produções culturais de um
segmento populacional em detrimento de outro (grifo nosso) (SANTOS, 2007).

A partir do estudo desse museu, a autora constata que o discurso sobre o negro no
Brasil está relacionado à ausência de conflitos. Essa visão harmoniosa, todavia, acaba
por distorcer a realidade e a representação desse mesmo grupo e da sociedade.
Outro estudioso do tema, J. Neves Bittencourt, relata a ênfase no sofrimento do
negro escravizado na narrativa produzida pelo Museu Histórico Nacional no Rio de
Janeiro: “Os ‘instrumentos de contenção e suplício’, por sua vez, fazem certo sentido,
caso considerados como documentos que indicam a relação entre escravos e seus
senhores. Indicam a posição dos africanos numa hierarquia social regulada pela
violência” (grifo nosso) (BITTENCOURT, 2008, pp. 209, 210). Se os grupos negros não
podem se identificar com essa representação, por outro lado, parece que só resta ao grupo
dominante legitimar essa visão dos fatos.
Em outro âmbito, a contribuição de Nelson Fernando Inocêncio da Silva (2001),
discutindo o currículo de cursos voltados às artes visuais, expôs problemas relativos ao
modo de compreender o contexto étnico-racial dentro da arte ocidental. Para ele, o “olhar
europeu, em questão, indubitavelmente definiu maneiras de ser e não ser representável,
além de delimitar o espaço da alteridade nas obras de arte e fora delas” (2001, p. 152).
Desse modo, para pensarmos em artes plásticas e questões de ordem étnico-racial
devemos solicitar que as ferramentas da crítica revejam suas próprias categorias,
engendrando outro modo de ver e conhecer. Como afirma o mesmo pesquisador, “tal
atitude implica questionamentos inevitáveis, que significam muito para as relações de
poder entre aqueles que estão no centro e os que estão na periferia do conhecimento”
(2001, p. 155).
Em outro momento, a partir do fim da década de 1950, pensando em práticas
curadoriais sobre arte e cultura afro-brasileira, Lina Bo Bardi (1914-1992) traz uma
experiência diferente desse contexto. De origem italiana, a arquiteta, curadora e
intelectual elaborou desde final dos anos de 1950 exposições que buscavam pensar e
situar a arte brasileira longe de se referenciar apenas na história da arte européia. As suas
exposições Bahia no Ibirapuera (Lina Bo Bardi e Martins Gonçalves, V Bienal de São
Paulo, 1959), Exposição Nordeste (Solar do Unhão, Salvador, Bahia, 1963) e a Mão do
Povo Brasileiro (Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1969) são mostras que

56
evidenciam pensamento amplo sobre a cultura nacional. Essas exposições de Lina
demonstram o interesse em valorizar objetos que tradicionalmente não pertencem ao
universo da exposição no museu. A arquiteta não operava dentro de uma lógica
tradicional de exposição e estava aberta a compreender a convergência e o cruzamento
dos mais variados objetos.
A atitude de Lina de rebaixamento do status da arte (de um ponto de vista
modernista) pretendia não mais compreender o espaço expográfico como um local
destinado somente a obras de arte e para um público seleto de pesquisadores e iniciados.
A proposta de Lina pretendeu aproximar o grande público do espaço de debate que deve
ser próprio do museu. Lina diz que “é nesse sentido social que se constitui o Museu de
Arte de São Paulo, que se dirige especificamente à massa não informada, nem
intelectual, nem preparada” (Lina Bo Bardi apud FERRAZ, 1993, p. 44).
Como parte disso, a sua ação de confronto frente aos “intelectuais acostumados à
arte estrangeira” é evidente em inúmeros de seus textos. Combater esses vetores era
confrontar uma forma de pensar a arte e a cultura brasileiras como um traço contínuo e
natural entre a Europa e o Brasil. Para Lina, essa continuidade não era nada linear e,
conseqüentemente, não poderia ser compreendida sem a presença da arte popular ou da
arte de origem afro-brasileira.
Outra faceta da exposição de Lina é o não uso de sinalizadores delimitando
gêneros artísticos. A comparação, diferenciação ou convergência entre formas de arte são
percebidas segundo a visão atenta do observador. É ele quem deve analisar e vislumbrar
questionamentos a respeito do limiar de significados entre uma obra popular e outra
erudita, entre um objeto religioso e outro artístico. Do mesmo modo, o tempo é outro
problema dado pela exposição a ser resolvido pelo observador, ao dispor obras de
diferentes épocas em um mesmo espaço.
Como diz a curadora,

(...) o fim do Museu é o de formar uma atmosfera, uma conduta apta a criar no visitante a
forma mental adaptada à compreensão da obra de arte, e nesse sentido não se faz
distinção entre uma obra de arte antiga e uma obra de arte moderna. No mesmo objetivo
a obra de arte não é localizada segundo um critério cronológico mas apresentada quase
propositalmente no sentido de produzir um choque que desperte reações de curiosidade e
de investigação (grifo nosso) (Lina Bo Bardi apud FERRAZ, 1993, p. 46).

57
A experiência de Lina, expondo obras de diferentes origens no museu de arte,
parece ser pioneira em retirar essa produção das tradicionais exposições de caráter
meramente etnológico no Brasil. Por outro lado, Lina compreendia muito bem que a sua
ação não poderia ser pensada somente a partir de uma perspectiva artística, formalista.
Etnologia e história são apoios relevantes para sua exposição.
O modo de expor da curadora também é peculiar. Inspirando-se nas feiras de
artesanato, as suas exposições remetem a mesma forma de organizar objetos. Na
Exposição Nordeste (1963), Lina mostra obras a partir de uma montagem a partir do
acúmulo, exibindo objetos de diversas procedências. Utilizando-se de suportes
transparentes ou que permitem o cruzamento visual de objetos em diversos planos, a
curadora planejou um intrincado jogo de significados onde tudo é passível de ser
comparado em diversas perspectivas (Imagem 15.3).
Ainda nesse sentido, a exposição África Negra (com curadoria de Lina Bo Bardi,
Pierre Verger, Marcelo Carvalho Ferraz e Marcelo Suzuki, MASP, 1988) expõe outro
modo de lidar com o espaço da exposição como cenografia. O uso da organização dos
painéis de modo circular (dois semicírculos), como um terreiro, e de folhas de coqueiro
sobre o chão é parte da iniciativa que tenta reinventar o território da exposição de arte a
partir do uso de dispositivos para além dos próprios objetos de arte (Imagem 15.4).
A ação de Lina Bo Bardi em buscar uma forma de compreender e organizar
objetos dentro de uma exposição, focando um novo público e um novo conceito sobre o
objeto de arte, parece ser própria das discussões que nortearam o movimento da nova
museologia nesse mesmo período. A contribuição de Lina (assim como também parece
ser a de Pietro Maria Bardi) procurou estabelecer um paradigma contemporâneo para a
exibição da arte brasileira.
Outra proposta no sentido de discutir as implicações de ordem étnico-raciais
dentro das artes plásticas e do museu foi realizada por Abdias do Nascimento, importante
pensador e propositor do Teatro Experimental do Negro. Sua ação foi direcionada à
criação do Museu de Arte Negra (MAN) em 1968. A proposta de Nascimento tornava o
problema de representação dos negros dentro das artes plásticas um fato fundamental
para supressão de práticas contínuas de aviltamento dessa cultura.
O escritor e militante focou a necessidade de pensar essa produção sob o viés do
executor dessas obras, ou seja, o negro que vê sua própria cultura. Todavia, Nascimento

58
mostrava preocupação em delimitar que seu conceito de “arte negra” não estava restrito
somente a autores negros. O seu “Museu de Arte Negra” deveria congregar obras de arte
de todos os artistas vinculados à cultura e influência de arte africana: “Nosso museu
abriga obras de pretos, brancos, de amarelos, dos homens de todas as raças e
nacionalidades. Importam aqueles valores estéticos que só a raça negra conferem à
obra” (grifo nosso) (NASCIMENTO, 1968)34.
A contribuição de Nascimento precede em cerca de vinte anos as primeiras
exposições de arte afro-brasileira de Araujo. Ele traz ao universo das artes plásticas
muitos dos problemas que Araujo discute ainda hoje: a fuga do exotismo e a necessidade
de reconhecimento da história e arte afro-brasileiras. Nesse sentido, numa reflexão sobre
o Museu de Arte Negra, Nascimento descreve que

Isto não significa que o negro esteja querendo provar ao branco que ele é diferente;
muito menos que o negro está fazendo o jogo racista branco, que o deseja “diferente”.
Falo de auto-estima e auto-respeito, pois apenas como um ser íntegro e total, serei digno
de me imanar ombro a ombro com outros homens íntegros na identidade de seu espírito e
de sua composição histórica (grifo nosso) (NASCIMENTO, 2002).

Esses estudos convergem na compreensão de que os dispositivos relativos à


prática expográfica de objetos afro-brasileiros necessitam rever problemas de
contextualização e representação dessa arte. As sociedades modernas, contemplando seus
diversos segmentos, exigem uma representação complexa de si mesmas. O museu, sendo
um espaço onde esse debate se apresenta visualmente, necessita orientar seus esforços na
superação dos grilhões metodológicos e históricos que, ainda, o aprisionam.

Novas práticas museológicas e a exposição de Emanoel Araujo

Como vimos, o museu é uma instituição ocidental conservadora em sua


concepção original. Hoje, devido a pressões de grupos antes marginalizados, novos

34
Por outro lado, a proposta de Nascimento não escapa ao uso de conceitos controversos como o
“primitivismo” e a “negritude” de Léopold Senghor. Esses são conceitos sinuosos próprios do método de
dominação empregado pelo colonialismo. A respeito da negritude, Kabengele Munanga descreve que, para
alguns críticos, esse conceito “assumiu a inferioridade do negro forjada pelo branco” (1988, p. 7). No
entanto, o movimento da negritude pode ter sido pertinente por delimitar uma primeira etapa de confronto
para os intelectuais que se posicionavam contra as afirmações européias de uma África bárbara e atrasada.

59
horizontes procuram evitar as antigas visões de didatismo linear e identidade
monocultural. Desse modo, o museu procura desenvolver novas formas de compreender
e propor o entendimento de obras e fatos sociais contemporâneos e passados35.
Dentro desse contexto é que os debates em torno da noção de identidade e
representação tornam-se fenômenos pertinentes para a instituição museológica. Por sua
vez, a concepção curatorial de Araujo objetiva concretizar essa necessidade na forma da
exposição de arte afro-brasileira. Como afirma o curador, esse foi o momento de
formalizar “uma história que nunca se materializou de fato como visualidade
museológica” (apud MUSEU AFRO BRASIL, 2006, p. 11).
Anteriormente, descrevemos o conceito de “democracia cultural” de Marc Maure,
usado por Luis Alonso Fernández (1999), e a sua importância para a tentativa de
elaboração desse novo método expositivo. Esse aspecto da nova museologia aparece no
trabalho de exposição e de museologia de Araujo. Permitir uma perspectiva sobre a arte e
cultura afro-brasileira a partir do negro é evidentemente mostrar uma narrativa pouco
comum em exposições, procurando uma forma complexa de olhar um mesmo objeto.
Através desse ponto de vista, esses atores afastam-se de um modelo ocidental restrito,
buscando criar um outro modo de olhar a história. Como diz Maria Lucia Montes, é “o
negro olhando a arte negra” (MONTES, 2008).
De modo semelhante, em outro caso, a exposição Brasileiro, Brasileiros (Museu
Afro Brasil, 2004) focou compreender a presença do indígena na formação da cultura
brasileira não como objeto de estudo, mas tentando compreender a sua própria narrativa.
Nas palavras de MONTES:

Quando nós fizemos a primeira exposição temporária no Museu Afro Brasil – Brasileiro,
Brasileiros (2004) – fizemos uma longa discussão sobre como construir a narrativa da
exposição, sobre o conceito curatorial. O Museu Afro Brasil está contando a história do
ponto de vista do negro. E portanto ele pode perfeitamente incorporar o negro da terra.
Ele tem legitimidade para falar do índio a partir do lugar do negro. Ora, mas no mundo
politicamente correto que nós vivemos já tem branco falando de índio, agora negro vai
falar de índio? Deixamos claro que queremos falar do lugar do próprio índio. Então,
pensamos em trazer um antropólogo que, em vez de ele filmar, dá uma câmera para o
índio filmar o que quiser, inclusive ele mesmo. Há um lugar autônomo em que se pode
falar de uma figura indígena do lugar dela (MONTES, 2008).

35
Como cita Fernández, “la primera y tal vez más importante constatación de que la museología ha
encontrado una nueva perspectiva de influencia y acción sobre el museo en la sociedad actual es la de su
doble condición de ciencia interdisciplinal y de permeable receptora de los câmbios sociales de nuestro
tiempo” (FERNÁNDEZ, 1999, p. 64).

60
Sobre a montagem, a exposição O Benin está vivo ainda lá (Museu Afro Brasil,
2007) apresenta logo em sua entrada a tentativa de construção de caminhos mais
propositores ao visitante, procurando criar um “sistema abierto e interativo”. No térreo,
um painel em diagonal secciona e abre a mostra sobre os artistas do país africano. Nesse
movimento, somos convidados a adentrar o espaço que se desenrola pelas laterais. No
piso inferior, a continuidade da mostra com artistas contemporâneos traz esse mesmo
princípio. Após descer a rampa do pavilhão, vemos o recinto central e uma
multiplicidade de caminhos a percorrer por painéis oblíquos à esquerda (Imagem 12.1).
Nesse mesmo sentido temos a exposição chamada A divina Inspiração (Museu
Afro Brasil, 2008) localizada no térreo do Museu. Esse evento, realizado num espaço
retangular, mostra em seu meio uma diversidade de caminhos e leituras próprias do
método sinuoso de Araujo. Assim, logo após a entrada da exposição, da esquerda para
direita, temos: o primeiro caminho voltado para arte religiosa afro-brasileira; o segundo
caminho traz relações entre obras de arte religiosas cristãs mais eruditas; uma terceira
área com trabalhos de arte contemporânea; e o quarto trajeto destinado a uma exposição
de ícones religiosos e populares (Imagem 7.4). Não há uma única possibilidade. O
visitante precisa escolher o seu tema de interesse e caminho.
A presença dos traços singulares da exposição de Araujo está nas cores e formas
oblíquas, assim como na sinuosidade do caminho criado ao percorrer a exposição. A
arquitetura expositiva do curador não é linear, mas entrecortada por painéis que
obliteram a visão, fazendo com que o conhecimento da exposição seja sempre um
caminhar por esquinas e corredores. Além disso, o visitante deve estar atento para
verificar as informações presentes na vertical e diagonal do espaço (Imagem 4.8 e
Imagem 7.2).
Se no museu tradicional há uma separação nítida entre as ciências, para a nova
museologia esses atributos são partes de um mesmo método e contribuem para a
compreensão de um mesmo fenômeno. Nesse sentido, se antes era preciso pensar
somente em arte de alto valor, separando-a de outras menos apreciáveis como também de
objetos não artísticos, na exposição de Araujo a arte está mergulhada em questões
históricas, culturais e em toda sorte de objetos que se mostram para a complexidade da
discussão. Como diz o próprio curador, a sua exposição é “um fato maior do que uma

61
obra na parede. É um fato mesmo sensorial. De unir coisas, música, dança, texto, fala,
cor, luz. E é isso o que me caracteriza quando eu [Emanoel Araújo] faço uma exposição”
(grifo nosso) (ARAUJO, 2009).
A obra de arte não faz parte de uma esfera única e superior, mas se contamina
com objetos de todo o mundo. A complexidade dos problemas relativos à cultura
material dos negros no Brasil para além das artes plásticas fez Araujo enunciar esse
problema desde a exposição A Mão Afro-brasileira. Cabe citar o próprio curador:

Este projeto (...) tornou-se inesperadamente abrangente diante do imenso material


existente localizado por nós, na exaustiva pesquisa para este livro, e assim fomos
obrigados a sair do âmbito das artes plásticas e acrescentar a música erudita e popular, a
literatura, as danças, o teatro, as artes de origem africana e uma nominata que resgata
definitivamente a visibilidade do homem afro-brasileiro (apud A MÃO AFRO-
BRASILEIRA, 1988, p. 10).

Como estudamos anteriormente, o espaço do museu traz restrições e convenções


rígidas, formadas em largo período histórico (O’DOHERTY, 2007). A presença do Boi
de Tião Carvalho na exposição Herdeiros da Noite (1995) e o convite que esse faz ao
público para adentrar a Pinacoteca é a interrupção, mesmo que simbólica e momentânea,
do universo austero e erudito desse espaço (Imagem 2.1). Como diz Maria Lucia Montes:

O Tião Carvalho tocou o boi na frente da Pinacoteca na Tiradentes num sábado de manhã.
Juntou aquela gente toda e o Tião falou: “pode subir, pode entrar!”. Ele solicitou para o
público entrar naquele espaço totalmente sacralizado, branco e de elite. Com isso estávamos
quebrando a marca de elite e dizendo: “qualquer um pode entrar”. Não apenas qualquer um
pode entrar mas, lá dentro, o público vai ver uma coisa que nunca viu, que faz parte desse
mundo e do de qualquer um (MONTES, 2008).

Para Fernández, o diálogo entre sujeitos, a criação de um sistema aberto e


interativo e o desenvolvimento de uma consciência crítica parecem ser partes de um
mesmo todo: o fomento de um debate amplo sobre identidade, representação e os modos
de olhar a história e nós mesmos. Como podemos notar, relacionado a essas
preocupações, discutir a experiência dos povos historicamente marginalizados pela
cultura hegemônica é parte relevante para essa orientação museológica e para Araujo.
Muitos museus ainda reverberam a mesma ideologia da sua classe dominante. No
entanto, talvez atualmente possamos ter os primeiros indícios de um outro conceito de
museu, mais atento às vicissitudes e rugosidades da sociedade contemporânea.
Experiências demonstradas pelas exposições de Araujo, bem como sua atividade na

62
direção de museus públicos, tentam apontar para essas possibilidades. Isso demonstra o
poder do museu e das exposições em criar debate e suscitar outras perspectivas.
Em suma, procuramos mostrar as diversas orientações de Araujo em relação ao
ato expositivo e museológico tradicional. O local onde se efetiva o trabalho desse
curador não é neutro, mas repleto de tensões, faz parte do modo como o ocidente via os
povos além de seu território no passado e de como isso desemboca em conflitos no
presente. O museu não mostra a realidade; ele cria a realidade a partir de dispositivos
fornecidos por uma cultura dominante, a qual está em constante atrito com outras. Nesse
sentido, as escolhas desse curador devem ser analisadas como métodos de contraposição
a esse sistema tradicional de compreender e narrar obras de arte no museu. Para esse fim,
os conceitos da nova museologia sobre a relevância do debate e diálogo (“la democracia
cultural”), privilegiando um método complexo de compreensão, podem colaborar. Isso
não está presente somente no discurso textual da exposição, mas na disposição dos
elementos formais, de uma estrutura singular da mesma. A forma sinuosa, oblíqua, da
curadoria de Araujo, tangenciando diversos fatos, parece voltar-se para essa
multiplicidade de sentidos e olhares.

63
64
3. As faces do curador

Gravador, escultor, projetista gráfico, curador, colecionador e diretor de museus.


Muitas são as atividades de Emanoel Araujo dentro do universo das artes plásticas.
Procuramos, a seguir, selecionar o que parece mais contribuir para compreender o seu
trabalho de curadoria.
Buscar analisar a exposição de Araujo é tentar contornar a sua atuação enquanto
artista, curador e colecionador. Essas três tarefas implicam-se num mesmo sistema de
construção e desenvolvimento de significados sobre arte afro-brasileira. É na
convergência dessas atividades que o curador explora suas possibilidades na exposição.
Sendo assim, precisamos compreender a trajetória que permeia o contexto das suas
mostras, realizando a análise das implicações entre as diversas atividades do curador. O
girar desses elementos é que cria seu movimento maior, sua completude.

O artista

O artista Emanoel Araujo formou-se na Escola de Belas Artes da Universidade da


Bahia, aprendendo gravura com Henrique Oswald. A trajetória de Araujo, iniciada na
gravura e depois desenvolvida na escultura, teve relevante reconhecimento no âmbito
artístico brasileiro e internacional. Ele começou a expor suas obras em 1959,
participando de exposições coletivas e individuais. Desde 1966 tem recebido prêmios no
Brasil e no exterior devido a suas atividades na gravura e escultura. Dentre os diversos
prêmios que recebeu, citamos o Prêmio Odorico Tavares (Bahia, 1970); a Medalha de
Ouro da III Bienal Gráfica de Florença (Itália,1972); e o prêmio de gravador do ano
(1974) e escultor do ano (1983), ambos concedidos pela Associação de Críticos de Arte
de São Paulo. Em 1977, foi convidado a participar do II Festival Mundial de Arte e
Culturas Negras e Africanas de Lagos (II FESTAC), Nigéria. Em fins da década de 1980
lecionou na City College University of New York. Além disso, Klintowitz (1981),
Preston (1987) e Almeida (2007) são alguns dos críticos que têm analisado o seu
trabalho.

65
O catálogo O construtivismo afetivo de Emanoel Araujo (KLINTOWITZ, 1981),
realizado durante mostra do artista Araujo no Museu de Arte de São Paulo, mostra a
síntese entre uma escultura monumental – a sua influência formal, moderna e construtiva
– e o vigor gráfico. A obra de Araujo é uma arte em contato com as experiências
estéticas brasileiras e internacionais em fins do século XX. Ela apresenta a passagem de
um artista, antes utilizando-se da figuração, para o abstrato; do espaço bidimensional
para o tridimensional.
A gravura figurativa de Araujo já mostrava em seu início o apreço do artista pelo
uso de cores intensas e contrastantes. Quando esse começa a utilizar uma linguagem
abstrata geométrica, este elemento permanece. Apresentando retas, diagonais e planos
extensos, a construção espacial de Araujo parece tender nessa época para uma leitura
concretista. Em todo caso, essa influência já não é tão formal, mas entrecortada por
outros motivos, o que talvez seja a principal característica do artista. Essa geometria,
como o próprio autor afirma, tem suas conexões na procura de mediações com a
experiência da arte na África. Isso resulta nas suas obras escultóricas, trabalhos que
desenvolve desde os anos de 1970. Nesse novo suporte, a escala das obras de Araujo
ganharam ainda maior amplitude, estabelecendo um contato permanente com a
arquitetura.
Em meados da década de 1960, a escolha por novos suportes demonstrava a
posição do artista diante das últimas tendências e perspectivas da arte internacional. Essa
era uma atitude contra o modo de enxergar a arte apenas circunscrita à tradicional pintura
e escultura figurativa. Assumir uma perspectiva abstrata e preocupada com o espaço
tridimensional era não apenas pensar numa vertente internacional, mas assumir esse
estilo como a vertente que melhor se enquadrava na vida social brasileira, aspirando a
uma modernidade política e social, contemporânea e democrática. A construção de
Brasília é, na arquitetura, o que melhor demonstra esse período. Nas artes plásticas, o
concretismo36 era a vertente que privilegiava o projeto para a conquista do espaço

36
Para Ronaldo Brito, o concretismo/neoconcretismo “pretendia intervir diretamente no centro da
produção industrial e se preocupava explicitamente em levar adiante o ‘sonho suíço’ de transformar o
ambiente social contemporâneo. Estava aberto e ávido pelas transformações culturais que os mass media
podiam promover. (...) ele integrava-se ao esforço da superação do subdesenvolvimento e atacava
frontalmente os arcaísmos do poder humanista tradicional no ambiente cultural brasileiro” (BRITO, 1999,
p. 59).

66
público. Em grande escala e com uma linguagem abstrata, essa arte presumia-se
universal, própria para as grandes massas.
A experiência de Araujo parece buscar essa perspectiva democrática, universal e
monumental da arte brasileira desse período. Citando a sua preocupação com a prática
artística e seu contexto social, Araujo revela que:

(...) minha idéia de trabalho público vem desde a época do Centro Popular de Cultura
(CPC). Fiz algumas coisas de teatro, cenografia, cartazes, marionetes. Fiz toda a
campanha de alfabetização do Paulo Freire, que infelizmente foi apreendida depois do
golpe, mal tendo sido aplicada. Desde o começo tive essa formação, até ideológica, de
trabalhar com a questão publica (apud HIRSZMAN, 1999, p. 7).

Tal aproximação com o contexto político da época o levou a ser interrogado pelos
militares em 1964, somente escapando de lá após convite do USIS (serviço de relações
culturais dos Estados Unidos) para realizar uma exposição e devido a sua amizade com
Carlos Lacerda, então Governador do Estado da Guanabara.
Sobre suas esculturas, como diz o organizador do catálogo do artista,

Emanoel Araujo é um dos primeiros artistas a discutir, através de sua obra, a questão do
espaço da arte no Brasil. O país modificou-se, os centros urbanos tornam-se grandes
cidades, a construção civil e pública é uma das maiores indústrias brasileiras, as
necessidades de modernização são prementes e, neste contexto, o espaço público de
nossa arte modificou-se (KLINTOWITZ, 1981, p. 82).

A escala ampliada de suas gravuras já apontava para o objetivo de pensar o


espaço público, o que se desenvolveu posteriormente com sua escultura. Como diz
Clarival do Prado Valladares a respeito da escala do artista baiano: “(...) há em toda a
obra de Emanoel Araujo inegável propósito de comunicação mais ampla. Ele não seguiu
as veredas que levam o artista à obra singular, privatizada. Seus grandes painéis em
madeira pintada ou suas estruturas em concreto visam um público maior e uma
comunicação mais profunda, através do envolvimento do seu observador” (Clarival do
Prado Valladares apud KLINTOWITZ, 1981, p. 16). Continuando, Mario Barata diz que
“a xilogravura de Emanoel Araujo é uma construção, quase uma arquitetura, em que
formas, sintetizadas ou simplificadas, mas sempre amplas, se integram como elementos
de um todo. Tende, pois, à monumentalidade” (Mario Barata apud PRESTON &
ARAUJO, 1987, p. 17).

67
Dentro da crítica sobre o trabalho de Araujo, não podemos esquecer as freqüentes
citações referentes aos temas étnico-raciais. Esta característica, assumida pelo artista, ao
olhar da crítica tende a ser “atavismo” ou um componente fundamental para
individualizar sua arte. Em alguns casos, ressalta-se que é através dela que o artista
Araujo pode almejar o “universal”. Numa entrevista sobre suas influências africanas,
Araujo diz que “(...) isso é uma outra história, é de quando fui para um festival da
Nigéria, em 1976. Aí, eu comecei a ver a questão da arte negra, comecei a adquirir certa
consciência. Eu estava saindo da gravura para a escultura. Já era uma forma de buscar,
no tecido e na geometria, a repetição de planos. Isso é uma coisa africana (Emanoel
Araujo apud ALMEIDA, 2007, p. 43).
Vale citar algumas dessas críticas. Esta se refere ao particular “primitivismo” de
sua produção: “(...) seria sua súbita recusa a uma arte figurativa o reencontro dos gestos
artezanais de civilização primitivas? Também recusa de acreditar no sistema, recusa de
aceitar numa civilização? Não é voltando aos gestos de civilizações passadas que o
artista espera recriar o mito?” (sic) (grifo nosso) (PEDREIRA, 1981, p. 71).
A crítica a seguir, por outro lado, mostra como os elementos étnico-raciais em
Araujo apontam para uma arte chamada de universal: “A África lhe interessa na medida
em que possa suprir motivações e atributos universais, do mesmo modo que ele também
pesquisa e acolhe a linguagem estética de qualquer outra área. Não é, pois, um
pesquisador de símbolos, mas, apenas, um artista criador capaz de juntar origens para
alcançar o universo” (grifo nosso) (Clarival do Prado Valladares apud KLINTOWITZ,
1981, p. 15). Essas reverberações do trabalho de Araujo, mais do que revelar um
pensamento sobre o artista, mostram também o olhar da crítica a respeito dos elementos
étnico-raciais nas artes plásticas brasileiras.
Ao que parece, o objetivo de Araujo é incorporar os signos de sua identidade
étnico-racial dentro de uma iconografia moderna, própria de seu tempo. Ele não pretende
ser reconhecido como um artista étnico, mas como um artista que usa esses signos para
pensar o todo. Araujo, comentando a sua produção, diz que “passei para uma linguagem
geométrica que, em princípio, teria uma simbiose com o ritmo, com as formas, é uma
questão mais totêmica. Minha geometria parte do princípio do nada e vai se armando no
espaço com independência de qualquer significado simbólico. Só agora que meu trabalho
está voltando para essa simbologia [afro-baiana]” (ALMEIDA, 2007, p. 51). O artista

68
reconhece a sua influência particular e étnica, mas parece buscar e almejar o tema
clássico da modernidade, a conquista da forma plena. Como um pêndulo, Araujo afirma
ambas as posições.
Sobre o artista e o curador, o trabalho expositivo de Araujo nutre-se de suas
experiências artísticas. Como um trabalho de arte, a elaboração do seu espaço expositivo
é um projeto que se constrói na ação de montagem e reordenação da exposição. Esse
labirinto expográfico cria conexões complexas e nem sempre previsíveis. Como diz
Maria Lucia Montes, a atividade de Araujo “como artista lhe permite improvisar. Essa
coisa de montar e desmontar exposição no dia, quando olhamos no final vemos que ele
tinha razão, está bem melhor assim. Na hora do planejamento é uma coisa, na hora da
exposição é outra” (MONTES, 2008).
A escultura do artista, utilizando-se de diagonais e cor, é uma influência forte
para a composição de suas mostras. Essa associação entre a forma das exposições de
Araujo e o seu trabalho artístico foi realizada por diversos colaboradores seus. O uso de
diagonais, cores contrastantes, a circulação nada óbvia do público devido à montagem da
exposição (propondo caminhos e perspectivas inusitadas), é próprio também da
experiência espacial das esculturas de Araujo. Maria Lucia Montes comentou a
influência do artista no curador Araujo:

Além de ser escultor, o grande sonho do Emanoel era ser arquiteto ou historiador. Ele
como artista sintetizou essas profissões em seu trabalho curatorial. Quando estávamos
montando a exposição dos 500 anos tinham quatro pessoas pensando o espaço do
Pavilhão, que estava em reforma. Ele elaborou a parte de marcenaria inteira das quatro
exposições curadas por ele. Aquele espaço todo do Ibirapuera era uma grande escultura
do Emanoel.
A coisa dos contrapontos, dos ângulos, uma característica inteiramente africana. (...)
Cada ângulo trazia diferentes tipos de incidência de luzes dentro da profundidade do
espaço. A montagem da exposição foi montada em função dessa visualidade. Não é
possível dizer que veio primeiro o espaço e depois o conceito ou primeiro o conceito e
depois o espaço. Está tudo junto (grifo nosso) (MONTES, 2008).

Como podemos notar, a forma da exposição de Araujo procura suas bases em sua
experiência artística. Além disso, como parte de seu trabalho plástico remete a uma
visualidade de origem afro-brasileira, essa característica também reverbera em suas
exposições. Em outras palavras, para colaboradores como Montes (2008), a forma de
pensar o espaço da exposição de Araujo traz nuances de uma espacialidade que remete à
arte da África.

69
De modo semelhante, Gilberto Habib cita a elaboração de três exposições de
Araujo – Auguste Rodin (1995), Os Herdeiros da Noite (1994, 1995) e Rafael Bordalo
Pinheiro: O português tal e qual (1996) –, referindo-se ao grande teor de diálogo entre
as esculturas e a forma das exposições do curador. Há uma convergência de práticas
nesses trabalhos que implicam uma evidente troca entre as funções de curadoria e de
criação artística:

Acho que a exposição do Rodin é o Emanoel erudito na sua forma escultórica, na sua
forma de lidar com espaço. Em primeiro lugar houve a maximidade da escultura do
Jacques Vilan com a arquitetura da Pinacoteca. O Emanoel incorporou isso naquele
momento. Se você for perceber os espaços, tinha uma determinada escultura ali dentro,
ela está rebatendo a espacialidade da sala e determinadas bases reproduziam os ângulos
da sala. (...)
Mas isso só pra te dizer que ele articulou essa circulação na relação que a escultura tinha
com esses eixos ortogonais. E você pode ver mais Emanoel escultor até em exposições
anteriores. Se você perceber, Os Herdeiros da Noite tem essa espacialidade mais ligada à
escultura do Emanoel e as diagonais que ele criava. (...)
Era tanta coisa que tinha do Bordallo que não cabia na sala, mesmo ocupando o Museu
todo com as peças do Bordallo. Havia ainda o problema de espaço. O que ele fez? Ele
colocava os painéis na diagonal e otimizava o espaço. Se você for ver na planta, esses
eram os mesmos eixos diagonais que ele usa na escultura dele (HABIB, 2008).

Analisando algumas obras do curador (Imagem 14.2), é possível notar essas


proximidades entre o ato de criar exposições e suas esculturas. Nessas obras, o uso de
cores e diagonais são elementos marcantes. Como um arquiteto, ele constrói o espaço
usando as possibilidades da forma em todas suas dimensões. Assim como a escultura de
Araujo parece assumir diferentes configurações de acordo com o ângulo observado, a sua
expografia dificilmente se dá à visão completa por um único ponto. Esta exige do
visitante o caminhar por entre seus diversos cruzamentos e retas. A disposição do acervo
permanente do Museu Afro Brasil evidencia esse traço (Imagem 4.8).
O uso dos painéis nas exposições do curador baiano também revela
características de suas opções estéticas. Em muitos casos, o curador elabora painéis que
remetem a um formato sinuoso, exibindo profundidades diferenciadas. Ao invés de
painéis apresentando obras em um mesmo plano, temos áreas com diversas camadas e
desníveis. Em outro caso, ele separa as obras usando divisórias do próprio painel entre
elas, deixando as peças à frente ou mais ao fundo. O resultado desse método é que não
podemos ver uma obra, situada num plano mais afastado, a partir de qualquer
perspectiva. O visitante necessita estar razoavelmente a noventa graus em relação ao

70
painel e à obra. Desse modo, esses painéis podem revelar obras novas a cada curva
(Imagem 4.12).

O colecionador

Em texto sobre o ato de colecionar, Marcos Moraes revela que:

Ao longo de toda sua história, amealhando objetos, retirando-os de sua esfera de atuação
original, “resignificando” cada fragmento da realidade, produzida ou não por si, o
homem organiza coleções como testemunhos dessa atuação e esses conjuntos de objetos
significantes despertam cada vez mais o interesse e atenção, provocando a curiosidade e
o desejo de compreender seu valor (grifo nosso) (Moraes apud CINTRÃO, 2000, p. 42).

Nesse sentido, o colecionador é aquele que organiza objetos devido a uma


preocupação particular. O seu princípio pode ser estético, histórico ou sentimental.
Independentemente do seu motivo, a principal característica desse ato se dá pela
organização e sistematização de diversos objetos a partir de um olhar que os aproxima,
evidenciando algum tipo de afinidade.
Essa organização traz também um sentido de projeto. Este acontece pela
necessidade de atingir um fim. No caso de Araujo, imaginamos, é possível observar que
o seu projeto colecionista acontece finalmente no ato de exposição. Dentro dessa lógica,
o seu projeto da exposição de arte afro-brasileira tem seus indícios em sua coleção dos
mesmos objetos. A diferença entre o expositor e o colecionador, assim, é que o expositor
(curador) faz um recorte da ação do colecionador. A curadoria acontece necessariamente
pelo seu diálogo com essa coleção.
A respeito da atividade de colecionador, Araujo revela que

O termo preservar, manter, é a base de tudo. O colecionador não é só um investidor. Ele


tem compromisso com a preservação de um período. Assim como esse acervo [do Museu
Afro Brasil] que agora está disponibilizado a todos. A bem da verdade, toda essa minha
coleção não me pertence. Está aqui, cuidada por mim por um tempo, mas serve para o
gozo de todo mundo, sobretudo os negros (ARAUJO, 2006b, p. 48).

Sobre sua trajetória, o interesse colecionista de Araujo inicialmente parece


formar-se em torno de seu gosto pessoal por objetos barrocos em igrejas de Santo Amaro
da Purificação (J. K., 1992). Já a necessidade desse curador em realizar exposições

71
focadas em arte e história afro-brasileiras parece ter seus primeiros indícios com o
contato com uma África conflituosa. O II FESTAC realizado em Lagos (Nigéria, 1977)
foi o momento em que Araujo conheceu e formou uma visão pessoal sobre a África. Para
o colecionador, essa foi uma viagem a um território repleto de novas complexidades e
experiências. O seu contato por esse continente desenvolveu-se em sua coleção de arte da
África e afro-brasileira. Relembrando a sua viagem, o curador diz: “Minha coleção com
objetos afro-brasileiros tomou corpo em 1976, quando fui para a Nigéria (África) para o
(II) Festival de Arte e Cultura Negra. Retornei em 1987 com a idéia de um projeto ‘A
Mão Afro-brasileira’, que se transformou numa exposição em 1988” (ARAUJO, 2006b,
p. 44).
Esse contato foi, para Araujo, a oportunidade de construir uma outra perspectiva
sobre a história da diáspora do negro. O seu trabalho de colecionador é a base para essa
história, que se realiza na exposição.
A narrativa de Araujo foi construída em relações nem sempre simples e evidentes
sobre a formação da cultura do negro brasileiro. O colecionador desenvolveu essa
história através de uma visualidade própria. A arte se tornou local singular para
demonstrar esse discurso, pois apresenta concretamente o diálogo entre contextos os
mais variados possíveis, mas nem por isso distantes de negociação.
As peças de Araujo, por outro lado, não se limitam apenas à arte afro-brasileira.
Cabe observar algumas fases de seu interesse: “Em 1981, foi a vez de peças art nouveau
e art déco. As esculturas brasileiras tiveram sua fase, uma deliciosa descoberta. Hoje
mantenho uma coleção batizada de ‘Perversos e Inocentes’, que são representações do
negro em cinzeiros, cartazes do início do século XX e outras formas de banalização”
(ARAUJO, 2006b, p. 47). Vale ressaltar que essa coleção “Perversos e Inocentes”
resultou na exposição Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007).
A coleção desse curador também passa pelo seu gosto estético e conhecimento
detalhado de antiquários e do ambiente mercadológico por trás das obras de arte. O
colecionador trafega neste ambiente constituindo grande parte de suas mostras através
desse contato. Comentando o modo de aquisição de obras de Araujo para a exposição de
Rafael Bordalo Pinheiro, Gilberto Habib relata que “Emanoel teria uma, duas, dez
exposições pra fazer do Bordalo devido a quantidade de coisas que ele sabia a respeito e
simplesmente pelos objetos. Simplesmente por conversar com as pessoas, por circular

72
pelos antiquários, por ir reunindo tudo isso, por escrever essa história pelos objetos”
(grifo nosso) (HABIB, 2008).
Hugo Loetscher, comentando a forma de organização da coleção de Araujo em
seu recinto particular (o que parece ter muitas relações com suas exposições e atividade
artística), descreve que

o que Emanoel juntou estes anos todos não pode ser chamado de uma coleção. Estamos
frente à frente a uma vida, ao seu cotidiano. A criação de um espaço vital: temos uma
virgem com um manto protector diante de uma figura litorânea, de marfim; ao lado de
uma cadeira com design sofisticado, um tamborete africano. Para um gosto estético
puritano tanto ecletismo é um horror. Entretanto um certo refinamento atraiçoa a
desordem. O que encontramos aqui reunido é a expressão de uma mentalidade.
Duas vezes o artista se expressa. Uma vez através de sua obra, e outra através das obras
dos outros. Com objetos, objetiva seu mundo. O interior é visivelmente exterior. Assim,
afirma o privado e se confirma. O particular se transforma em história, a história de sua
raça e de seu povo (1997, p. 69).

A coleção de Araujo, como podemos perceber, é um conjunto de obras que acaba


adquirindo diferentes nuances e possibilidades. A sua coleção de objetos de arte afro-
brasileira pode passar por numerosas maneiras de abordagem pelos olhos do curador. O
propósito e sentido de uma exposição num certo momento pode ser abordado de forma
diferenciada anos mais tarde. Esse sentido pode mesmo alterar-se em grande parte ou
talvez apenas ser acrescentado por outras perspectivas. Assim, a exposição de Araujo A
Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna, 1988), com foco na autoria do artista
negro, é razoavelmente diferente da exposição Negro de Corpo e Alma (Mostra do
Redescobrimento, 2000), que procura discutir todo o sentido da imagem feita sobre o
negro no Brasil. Essas são possibilidades diferenciadas que, todavia, podem surgir do
mesmo conjunto de peças exibidas, embora dispostas de modo singular em cada
exposição.
O contexto de criação das exposições de Araujo se dá num universo onde há o
cruzamento entre as suas diversas facetas – o curador, o colecionador e o artista. O
Araujo artista reverbera a sua experiência da forma em sua construção expositiva. O
Araujo colecionador projeta essa ação para o que mais tarde torna-se a exposição. O
Araujo curador formou-se através de sua coleção, mas também por uma compreensão do
espaço e dos elementos plásticos devido a sua atividade enquanto artista.
Esses três elementos são o contorno para compreensão da forma das exposições
do curador. São um conjunto de ações que criam um movimento circular e dinâmico do

73
trabalho sempre inquieto e incansável desse em dispor obras no espaço. É preciso
salientar que tudo isso está imbuído de uma finalidade pública. O ato de expor é uma
ação de confronto e diálogo que acaba na interação e no olhar do outro.

O curador

A respeito da atividade curatorial, Tadeu Chiarelli descreve que “em tese, o


curador de qualquer exposição é sempre o primeiro responsável pelo conceito da mostra
a ser exibida, pelas escolhas das obras, da cor das paredes, iluminação, etc.”. O crítico
continua analisando que cabe “(...) ao curador criar condições para que o público possa
perceber novas possibilidades de apreciação das obras de arte, quando recontextualizadas
em universos precisos” (apud CINTRÃO, 2000, pp. 12, 15). Essa “recontextualização”
das obras é certamente o sentido da crítica de arte de um curador.
O curador é aquele que coordena, conceitua e organiza a exposição, realizando
uma narrativa através dos objetos expostos. Nesse sentido, vale atentarmos para esse
contínuo trabalho realizado por Araujo. Procuramos a seguir mostrar brevemente o seu
histórico como curador, suas influências e suas características.
A trajetória de Araujo enquanto curador tem seu princípio como diretor no Museu
de Arte da Bahia durante os anos de 1981 a 1983 (substituindo José Pedreira). As
exposições realizadas por Araujo no Museu de Arte da Bahia foram Inauguração do
Museu de Arte da Bahia, no Palacete do Corredor da Vitória; A Coleção de Odorico
Tavares de 05/11/1982; 400 anos do Mosteiro de São Bento, de 16/12/82 a 15/01/83;
Obra Seleta de Clarival Valladares de 18/01/83 a 18/02/83; Via Crucis – Raimundo
Oliveira, de 28/01 a 10/02/83; Escola Baiana de Pintura, de 08/02/83 a 08/03/83;
Bahia–África–Bahia, de 27/02 a 14/03/83; e a exposição 80 anos de Os Sertões de
Euclides da Cunha37. Após essa época, o curador realizou exposições independentes
como A Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1988).
Araujo foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo de 1992 até 2002, local
inicialmente encontrado em estado precário pelo então diretor. Vale revelar que a
admissão de Emanoel Araujo na Pinacoteca foi turbulenta. Um conjunto de funcionários

37
Infelizmente, através de contatos com a atual gestão do Museu, não foram encontradas mais informações
(como textos ou fotos) sobre essas exposições.

74
do Museu e de personalidades realizaram um abaixo-assinado questionando a escolha do
artista baiano. Em contraposição a esse movimento, foi realizado outro abaixo-assinado,
que contou com o apoio de Entidades do Movimento Negro, para a manutenção deste no
cargo. A passagem de Araujo por esse espaço foi certamente um marco para as artes.
Através de exposições internacionais (Auguste Rodin, Maillol, Camile Claudel, etc.), a
Pinacoteca conquistou público e inseriu-se no circuito de arte como uma instituição de
relevância. Como cita Maria Hirszman, “o prédio estava repleto de goteiras, o segundo
andar havia sido destruído por décadas de uso pela Faculdade de Belas Artes. Hoje a
instituição é uma das mais modernas do País, equipada para receber as exposições mais
concorridas do circuito internacional” (HIRSZMAN, 1999, p. 7). Sobre a visitação, a
Pinacoteca passou de cerca de 2.000 visitantes mensais para mais de 30.000 visitantes
mensais durante a gestão de Araujo. Além das exposições internacionais, ele continuou
realizando mostras sobre arte e cultura afro-brasileiras.
O curador também foi peça importante durante a Mostra do Redescobrimento
(2000), momento em que organizou a exposição Negro de Corpo e Alma. Mais adiante,
entre inúmeras outras exposições, ele concretizou um projeto ambicioso e antigo, a
configuração e exposição de sua coleção sobre arte e cultura afro-brasileiras no Museu
Afro Brasil (2004).
O interesse deste pequeno texto é pontuar as características de Araujo como
curador. Não obstante, essa atividade também se confunde com suas ações como diretor
de museus. A atividade desse diretor parece indicar uma forma dinâmica e constante de
propor e realizar mostras, bem como de lidar com o universo museológico. Como indica
Maria Lucia Montes sobre o cotidiano administrativo na Pinacoteca:

A Pinacoteca era uma OSCIP sem ser OSCIP, podia angariar fundos de empresas pelas
leis de incentivo para patrocinar uma exposição, mas muitas vezes precisava deles para a
manutenção do museu. Então, depois, ele pegava o dinheiro do Estado, de manutenção
do museu, e punha para pagar a exposição. Isso criava um problema, mas nós tínhamos
um advogado específico para acertar legalmente essas coisas, o fluxo dos recursos, em
termos de fundos públicos e privados. Isso tudo com integridade total, nunca sendo feito
para se favorecer ninguém. Era resultado de uma impossibilidade de lidar com a
burocracia. Se está chovendo dentro do museu, não é possível esperar uma licitação,
então se usa o dinheiro que tem em caixa para o conserto (MONTES, 2008).

Em outro momento, descrevendo a compulsão pelo trabalho e pela realização,


Gilberto Habib relata que ele “sempre se pautava pelo que está feito, ou seja, o que

75
importava era fazer, era o museu que está lá” (HABIB, 2008). Por outro lado, a ex-
diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Maria Alice Milliet, apresenta as suas
críticas ao modo de gerenciamento do Museu por Araujo: “Seria bom que ele tivesse o
mesmo empenho na busca de patrocínio para pesquisa” (apud SCAVONE &
MARGARIDO, 1998, p. 15).
Em outro âmbito, o trabalho curatorial de Araujo também surge de suas relações
com o entorno expositivo no Brasil. Nesse sentido, a influência (direta ou indireta38) do
ex-diretor do Museu de Arte de São Paulo, Pietro Maria Bardi (1900-1999), em sua
formação pode revelar fatos importantes. Araujo realizou a exposição Um certo ponto de
vista – Pietro Maria Bardi – 100 anos (Pinacoteca, 2000) sobre esse crítico e professor
de origem italiana.
A forma horizontal de apresentar os objetos de arte é um traço da exposição de
Bardi. Tratar a exposição como um local de amplas possibilidades, não se restringindo às
artes plásticas, mas compreendendo que esta dialoga com os diversos aspectos da
cultura, parece trazer maior complexidade aos objetos expostos no museu para o curador.
No catálogo da exposição realizada na Pinacoteca em 2000, constatamos esse
traço e a visão pessoal de Araujo sobre Bardi. Vejamos o que o curador baiano diz:

Esta exposição que agora a Pinacoteca dedica a Pietro Maria Bardi é pois um tributo a
esse homem que dedicou meio século de sua vida ao Brasil. Colecionador de
antiguidades, marchand, profundo conhecedor da arte universal, estudioso da arte e da
cultura brasileira, foi também responsável por uma nova linguagem museológica e
introduziu uma nova forma de dirigir um museu de arte. Assim, esta exposição se
organiza a partir de um certo ponto de vista, a perspectiva do seu olhar, pelo que ele teve
de multifacetado e multicultural, e pelo seu agudo alcance, capaz de apreender as
pequenas obras com o mesmo calor com que sabia abordar a grande arte erudita (sic)
(grifo nosso) (UM CERTO PONTO DE VISTA, 2000, p. 27).

Algumas das características que Araujo cita sobre Bardi – a intersecção entre
curador, colecionador, marchand, estudioso e sua preocupação por uma visão
multicultural da sociedade – são métodos de análise e ação muito presentes nos trabalhos
do baiano. Desse modo, a exposição de Bardi na Pinacoteca, além de uma homenagem
sobre essa personalidade do mundo das artes no Brasil, acaba sendo uma visita de Araujo
pela sua história e formação enquanto curador.
38
Como o próprio curador cita: “(...) o meu aprendizado foi autodidata. Convivi com dona Lina e com o
Pietro, mas não foi assim o suficiente para me fazer um discípulo” (ARAUJO, 2009). E embora o curador
baiano não assuma essa influência diretamente, a vivência dele com Pietro (e com Lina Bo Bardi)
certamente afetou a sua produção.

76
Como Gilberto Habib revela: “A exposição que ele fez dos 100 anos do Bardi era
o Emanoel lendo o modo de fazer museologia do Bardi, e era o modo dele [Emanoel
Araujo] fazer” (2008). Como o nome da exposição sugere, Um certo ponto de vista é o
olhar de Araujo a respeito do ex-diretor do MASP.
O foco da exposição de Araujo não se restringe aos temas da arte afro-brasileira.
Como já apontamos anteriormente, o curador direciona a sua visão sobre os mais
diferentes gêneros e temas. Todavia, cabe relatar a sua perspectiva preocupada em
perceber as obras e autores de marcada influência ou ascendência da África. No catálogo
da exposição Museu da Solidariedade Salvador Allende (SESI-SP, 2007) é possível
observar essa perspectiva. Comentando a obra de um artista peruano, Araujo diz ter visto
“os retratos de famílias coloniais, bem à maneira do começo do século XIX, do pintor
peruano que também trabalhou no Chile, o mulato Gil de Castro”. Mais adiante, o
curador informa que tentou “em vão descobrir alguma publicação sobre a sua vida”
(MUSEU DA SOLIDARIEDADE, 2007, p. 35). Se a ação curatorial de Araujo possui
grande alcance em diferentes áreas da arte, é certo que o seu olhar também está atento
aos artistas e obras que remetem a contextos étnico-raciais.
A instauração do Museu Afro Brasil (inaugurado em 2004) parece ser o auge
deste intento. O Museu traz uma proposta singular de curadoria, que abarca grande parte
da cultura material dos afro-brasileiros, da escravidão até trabalhos de arte
contemporânea. São cerca de 4000 obras em pintura, escultura, fotografia, instalação,
gravura, vídeo, estandartes e vestimentas, mostrando desde objetos indígenas a festas
populares do sul do país, com ênfase em objetos relacionados à cultura e arte afro-
brasileiras. Parte significativa deste acervo, cedida por regime de comodato, é devida à
coleção do mesmo curador.
O Museu Afro Brasil concretizou-se através do Decreto Municipal nº 44.816, de
1º de junho de 2004, da então prefeita Marta Suplicy em diálogo com grupos negros
organizados (onde despontou a participação de Emanoel Araujo), interessados na criação
de um museu voltado à cultura e arte afro-brasileira em São Paulo39. A implantação do

39
A respeito do Museu Afro Brasil, cabe realizar uma digressão sobre uma obra localizada em seu entorno:
o monumento de Pedro Alvarez Cabral, de Luis Morrone Agostinho Vidal da Rocha (s/d). Um monumento
é uma obra que expressa um modo de ver a história. Ele apresenta um conjunto de significados que, de
acordo com seu observador, pode reforçar configurações a respeito de uma sociedade. Em sua presença
física, pontuando um local no espaço, ele determina uma forma de enxergar esse território. A escultura de
Pedro Alvarez Cabral é a confirmação de um pensamento sobre a história de São Paulo. Pelo seu poder de
síntese e de sugestão, essa escultura é um dispositivo que apresenta a história do Brasil em sentido

77
Museu foi realizada com patrocínio da Petrobrás, com incentivos da Lei Rouanet e do
Ministério da Cultura. A gestão inicial do projeto esteve sob responsabilidade do
Instituto Florestan Fernandes – IFF, por meio de termo de colaboração com a Secretaria
Municipal de Cultura.
O projeto de implantação mantém no Museu uma equipe interdisciplinar de
consultores, especialistas em museologia, história, antropologia, arte, educação, e
equipes operacionais e administrativas. A coordenação do trabalho é feita pelo curador
baiano. O Museu Afro Brasil é estruturado em núcleos de trabalho com objetivos
distintos: há o Núcleo de Tradição e História Oral, espaço que registra o depoimento de
personalidades relevantes para a história dos afro-brasileiros e para a história nacional; o
Núcleo de Educação, que coordena monitorias, cursos e a realização de material
pedagógico de apoio; o Núcleo de Museologia, que preserva o acervo e as coleções
apresentadas no Museu; o Núcleo de Pesquisa, que atua em diversas áreas do Museu,
seleciona textos e organiza visualmente o espaço. Além disso, há a Biblioteca Carolina
Maria de Jesus, que contém material bibliográfico, documental e audiovisual com ênfase
na arte, cultura e história afro-brasileira e africana; e o Teatro Ruth de Souza, onde se
realizam cursos e atividades culturais.
O acervo permanente do Museu está estruturado em África: diversidade e
permanência; Trabalho e escravidão; As religiões afro-brasileiras; O sagrado e o
profano; História e memória e Artes plásticas: a mão afro-brasileira. O Museu Afro

singular; nos fala sobre o poder civilizador europeu nos trópicos. Se essa ação foi necessária para a
instauração de um modelo ocidental de sociedade nos trópicos, é certo que a escravidão e genocídio de
milhares de índios e negros também faz parte dessa história. A escultura presente no Parque no Ibirapuera
parece não transparecer essa complexidade histórica, mas somente apontar para o fator “positivo” dessa
investida. O local onde está situada a escultura, uma área nobre da cidade de São Paulo, composta
majoritariamente por descendentes de europeus, reafirma a visão que descrevemos anteriormente. A
escultura é um marco que transparece um momento e também seu entorno. Ela é o olhar da classe
dirigente. Condensa em si essa perspectiva. Essa obra esteve por longo tempo marcando uma única
perspectiva histórica. Hoje o seu entorno traz novos problemas. Um marco que demonstra esse fenômeno é
a criação do Museu Afro Brasil, a cerca de 200 metros desse monumento. O que temos agora é um ruído,
um conflito, que demonstra as sinuosidades de novos caminhos e orientações sobre aquela mesma história.
Jacques d’Adesky expõe, em texto sobre espaço público e representação dos afro-brasileiros, o seguinte
pensamento: “Sendo uma forma de nossa relação com as coisas, o espaço é um plano de articulação de
fenômenos, na medida em que delineia configurações espaciais nas quais a população representa sua
existência e realiza os loteamentos territoriais segundo os quais se dividem as sociedades. Esse traço
relacional coloca-se como espacialidade culturalmente construída pela qual o sujeito apreende os objetos
através de seu próprio posicionamento. Nesse sentido, a espacialidade é uma estrutura a priori em relação
a um ator social. Ela possui certa permanência que ultrapassa as ações e a vontade do indivíduo. Mas é
construída e transformada por grupos sociais em suas relações com os outros” (2001, p. 120). Mais
adiante, o mesmo autor diz que “a invisibilidade do negro em representações como estátuas, bustos e
chafarizes ou fontes ornamentais existentes nas ruas ou em praças públicas manifesta outra forma de
alienação ou desterritorialidade, não sendo fruto do acaso, mas de uma relação de poder” (2001, p. 126).

78
Brasil também tem realizado diversas exposições temporárias em seu interior. Nem todas
essas exposições são sobre arte, história ou cultura afro-brasileira. Embora tenha um
objetivo e universo de atuação preciso, a sua maleabilidade conceitual permite realizar
exposições sobre diferentes temas. Entretanto, essas exposições temporárias não deixam
de estabelecer diálogos com o acervo da instituição, local em que o objetivo do Museu
está mais evidente.
A passagem positiva de Araujo pela Pinacoteca do Estado de São Paulo não
garantiu uma continuidade sem problemas no Museu Afro Brasil. Em seus quatro anos
iniciais (de 2004 até 2008) esta instituição presenciou diversos problemas de ordem
financeira para continuar suas atividades. Como resultado, por algumas vezes o Museu
foi obrigado a fechar suas portas devido à falta de recursos.
O Museu Afro Brasil funcionou inicialmente com recursos da Petrobrás. A
instituição posteriormente se tornou uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público) e atualmente deve tornar-se uma OS (Organização Social), formato no
qual teria mais recursos para garantir suas necessidades fundamentais40.
Ainda sobre a sua característica de diretor e administrador cultural, em 2005,
Araujo foi convidado para ocupar o cargo de Secretário na Secretaria de Cultura da
Cidade de São Paulo a convite do Prefeito José Serra. Ele permaneceu neste cargo por
cerca de três meses, quando deixou a Secretaria e expôs, em carta pública, as suas
divergências em relação à forma com que a cultura era gerida pelo Município.
Na carta intitulada Devolvo-lhe este cargo com uma enorme frustração, Araujo
revela um modo de ver a cultura e sua tensão frente a uma elite “culta”: “cultura é o que
foi produzido por uma verdadeira elite do saber e do conhecimento, erudito ou popular,
através da qual esse repertório existe até hoje, depois de séculos de sua criação; cultura,
portanto, são todas as ações criativas de artistas que deram sua vida e seu ser para
estarem mais próximos de Deus; artistas são esses seres abnegados, renegados e

40
Mais detalhes sobre a definição institucional do Museu Afro Brasil pode ser visto na carta de Emanoel
Araujo publicada na revista RAIZ, n. 3 (ARAUJO, 2006c). A carta de Araujo foi respondida por Carlos
Augusto Calil (o sucessor de Araujo na Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo) na revista RAIZ, n.
5 (CALIL, 2006). Dentre as diversas questões mencionadas nesse debate, um fato importante na mudança
do Museu Afro Brasil como OSCIP ou OS, tem sido a exigência da doação da coleção particular de Araujo
para o Estado. Araujo relata que a não doação das peças acontece porque existem outras instituições em
São Paulo e no Brasil com o mesmo formato, ou seja, coleções particulares expostas em museus públicos
(Museu de Arte Moderna, Museu Lasar Segall etc.). Todavia, como diz Calil, somente com a doação das
obras o Museu Afro Brasil pode ser regularizado e se tornar uma OS. Tal debate somente foi resolvido em
maio de 2009 com a autorização de Araujo da doação das obras ao Estado.

79
desapercebidos por essa sociedade que disputa salões nobres para repousar seu cansaço
por tamanho esforço ou castigo, na tentativa de parecer ‘culto’” (Emanoel Araujo apud
MENA, 2005). Nesse momento, o mesmo não deixa de exigir cuidados e atenção da
Prefeitura em relação ao Museu Afro Brasil

(...) não toque com sua impropriedade no Museu Afro-Brasil, porque este é uma
conquista de anos, resultante da grande dívida que o Brasil tem para com os seus negros
e afro-descendentes que o construíram. Saiba que estaremos dispostos a defendê-lo com
a mesma energia com que edificamos nossa nação em cinco séculos. Porque o Pavilhão
Manoel da Nóbrega há muito tem sido ambicionado pelos donos da cultura oficial, que
pensam que um museu dessa natureza não deveria estar em área tão nobre. No entanto,
ele tem sido visitado nesses seis meses de existência por um enorme contingente de
estrangeiros, brasileiros, brancos e, sobretudo, negros, não habituados a freqüentar tais
espaços – para relembrar o quanto este país é devedor a esse nosso valoroso povo
miscigenado (Emanoel Araujo apud MENA, 2005).

Por fim, como podemos perceber, por trás das diversas atividades curadoriais de
Araujo, há um projeto sobre a configuração da memória do negro na arte e na cultura que
veio sendo construído paulatinamente. Esse projeto tem seu início em sua coleção (e
talvez até mesmo em sua atividade artística) e é o que alicerça as suas exposições. O seu
intento de constituição dessa coleção, e conseqüentemente da exposição, provavelmente
já apresentava seus primeiros indícios desde a sua primeira viagem à África.
As atividades de Araujo como artista, curador e colecionador, assim, apresentam
evidentemente uma convergência dentro de suas exposições. Do mesmo modo, a visão
do curador em relação aos objetos na exposição tem suas conexões com a prática de
outros curadores. Além disso, a curadoria de Araujo apresenta-se como um projeto de
longo prazo na constituição da memória e da narrativa sobre a arte afro-brasileira.

80
81
4. O contexto das exposições

O texto que se segue pretende compreender o contorno das exposições sobre arte
afro-brasileira de Emanoel Araujo. Para tanto, procuramos o estudo sobre alguns
conceitos recorrentes nas exposições do curador.
Iniciamos analisando o sentido do acúmulo nas exposições do curador baiano.
Esse método, presente em algumas das suas mostras, perpassa contextos históricos e
artísticos sobre a prática expositiva que devem ser aprofundados. Mais adiante, o
exotismo se refere ao sentido em que as peças de arte ou cultura afro-brasileiras são
apresentadas no museu. Sendo o exotismo um elemento que deturpa o sentido do objeto
de arte afro-brasileira no museu, devemos notar como o curador busca desviar-se desse
problema. Memória e reconhecimento são temas que dizem respeito à importância do
contexto social das exposições sobre arte afro-brasileira. Ao construir essa narrativa, o
curador acaba por apresentar e representar esse grupo étnico-racial para além do museu.
Do mesmo modo, esses conceitos influem no momento de realização dessas exposições.
A ambigüidade é outro tema que aparece nos colaboradores e em críticas sobre as
exposições. Ela diz respeito ao sentido dessas mostras, bem como à forma como o
curador compreende a cultura do negro no Brasil. Vale procurar compreender o seu
sentido. Ancestralidade, por fim, é um termo que aparece correntemente nessas
exposições sobre arte afro-brasileira. Esse conceito, entretanto, parece situar-se de forma
um pouco contraditória em alguns aspectos.
A curadoria de Araujo propõe o cruzamento dessas idéias em sua forma e
também em seu contexto. Tanto esses conceitos podem influir em sua construção
espacial como o uso de um dispositivo expositivo pode sugerir outros conceitos. É por
meio do estudo dessa forma que poderemos compreender a crítica de Araujo e a sua
tentativa de criar uma narrativa de arte afro-brasileira.

Poética do acúmulo

A maneira de apresentar obras dentro do museu altera-se de acordo com o


momento histórico. A organização dessas obras na exposição não é apenas um modo de
mostrar, mas de orientar como deve ser uma narrativa. Não sendo único, o método de

82
exposição – a organização das obras dentro do museu – tem uma história diferenciada no
decorrer do tempo.
No século XIX, o acúmulo de obras num mesmo espaço era parte de um modo
específico de compreender a exposição. Nessa perspectiva, todo o espaço do museu era
espaço para exibir obras. Essa saturação tem proximidades com a idéia de “gabinete de
curiosidades”, em que o conjunto de objetos é percebido de forma diferenciada da nossa
experiência de museu atual. Desse modo,

(...) as coleções antigas acumulavam as peças sem a mínima ordem. Nas gravuras e
pinturas do século XVI ao XVIII, podem ver-se quadros pendurados a cobrir totalmente
as paredes, uns ao lado dos outros, misturados com toda a espécie de objetos. Este tipo
de representação foi regra geral até meados do século XIX (...). Em 1799 adoptou-se a
ordenação cronológica, ainda que se tenha continuado a utilizar a mesma mistura de
pinturas, esculturas e objetos vários. Em 1810 uma nova ordenação apresentava as
pinturas isoladamente, mas ainda em 1851 os grandes pintores do Renascimento italiano
eram apresentados em filas duplas no Salon Carré do Louvre (grifo nosso) (ROJAS &
CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 42).

Por outro lado, citando a obra Galeria de Exposição no Louvre (1833), de Samuel
F. B. Morse, onde podemos notar uma sala de exposição repleta de obras, o artista e
crítico Brian O’Doherty busca compreender esse modo saturado de usar o espaço pela
seguinte perspectiva:

As pinturas maiores vão para o todo (mais fáceis de ver a distância) e são às vezes
distanciadas da parede para manter o plano do observador; os “melhores” quadros ficam
na zona central; quadros pequenos caem bem embaixo. O trabalho perfeito de pendurar
quadros resulta num mosaico engenhoso de molduras sem que se veja uma nesga de
parede desperdiçada.
Que norma de apreciação justificaria (para nossos olhos) uma barbaridade dessas? Uma e
apenas uma: Cada quadro era encarado como uma entidade independente, totalmemte
isolado de seu reles vizinho por uma moldura pesada ao seu redor e todo um sistema de
perspectiva em seu interior. O recinto era descontínuo e dividido em categorias, do
mesmo modo que as casas em que se penduravam esses quadros tinham salas diferentes
para fins diferentes. A mentalidade do século XIX era taxonômica, e o olhar do século
XIX reconhecia as hierarquias de gênero e o prestígio da moldura (grifo nosso)
(O’DOHERTY, 2007, p. 6).

Contra esse método expositivo, a partir de fins do século XIX e início do XX


torna-se comum o museu de arte moderna apresentar obras numa leitura linear,
seqüencial. As obras são separadas por uma distância considerável uma das outras,
evidenciando um espaço arejado. Essa é uma forma que privilegia a horizontalidade. O

83
uso de poucas cores nas paredes ressalta a neutralidade de todo o espaço de exposição41.
A obra, sobre esse espaço nulo, com sua cor e materialidade deve ser o único ponto de
interesse. A luz direcionada apenas ao objeto deixa na penumbra outros espaços do
museu. A obra se torna única e valiosa, isolada dos demais objetos.
Como diz Brian O’Dohert sobre o espaço da galeria moderna (o que pode ser
aplicado para o caso da exposição),

A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela
“é arte”. A obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma.
Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são
preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores. (...) as coisas transformam-
se em arte num recinto onde as idéias predominantes sobre arte concentram-se nelas
(2007, p. 3).

Desse modo, uma das características do museu de arte moderno é ser um local de
restrições, asséptico. O que é permitido no mundo exterior não é permitido dentro desse
espaço. Esse é um local onde é preciso silenciar e prestar atenção. Um ambiente em que
a ausência de coisas mundanas lembra o espaço sagrado de uma igreja. Esse “cubo
branco”42, uma forma moderna de expor arte no museu, objetiva a extinção de qualquer
relação aparentemente estranha que possa tirar a atenção dos objetos.
Como podemos notar pela exposição de Araujo, o seu espaço não é constituído
por uma visão moderna do museu, onde se ressalta apenas alguns tipos de obras. Pelo
contrário, ele trabalha com uma poética onde o acúmulo de obras é uma forma de
compor a exposição. Não estamos remontando a uma expografia do século anterior, mas
notando que a forma de expor arte no museu moderno não é única.
O seu excesso de obras é uma forma de realizar a crítica de arte num espaço onde
a eleição de vários objetos – e a relação entre eles – é o mote central43. A sua exposição

41
Em relação ao uso de cores nas paredes, em início do século XX, considerava-se “que fundos demasiado
escuros interferiam na contemplação do objeto em si mesmo, e pensou-se que o fundo perfeito seria o mais
neutro, o que permite ver isoladamente o objeto. Assim muitos museus modernos têm paredes brancas ou
da cor neutra dos materiais utilizados, para não criar contrastes cromáticos com as peças expostas”
(ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 41).
42
Nas palavras de Brian O’Doherty, “a criação do cubo branco impoluto, ubíquo, é um dos êxitos do
modernismo – criação comercial, estética e tecnológica. (...) é geralmente visto como um emblema do
afastamento do artista de uma sociedade à qual a galeria da acesso” (O’DOHERTY, 2007, pp. 90, 91).
43
Renata Felinto também relaciona esse olhar atento a “pequenas obras” com as características de acúmulo
de Araujo e sua ação de colecionador: “Ele [Emanoel Araujo] fez uma exposição agora chamada Gabinete
de Curiosidades (2008) onde há muito presente essa noção de acúmulo. É uma ação de colecionador. Ele
pensa que todos os objetos são valiosos. Isso é muito interessante. Quando vamos a uma exposição

84
não acontece apenas pela leitura linear e horizontal, mas também por uma narrativa
vertical e diagonal. Isso é diferente da concepção do museu moderno, que preza pela
escolha de poucos objetos dispostos horizontalmente44.
A exposição desse curador articula uma arquitetura expográfica em que os
objetos constroem o espaço com paredes e cores. Tudo isso usando diversos dispositivos
e, inclusive, o teto ou o chão da instituição. Todo o espaço do museu é recurso para
apresentação e relação de objetos entre si.
O uso do acúmulo em Araujo é também a confirmação de uma produção. No caso
de artistas como Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), ou mesmo no de menos
conhecidos, como Wilson Tiberio (1923-2005), temos no excesso a confirmação de uma
produção artística. Sendo assim, esse acúmulo é uma forma de materializar a história e
experiência desse indivíduo. Além disso, é uma oportunidade singular de comparar
histórias e obras que dificilmente são apresentados em conjunto.
Essa saturação assume diferentes formas de acordo com a exposição. A mostra
Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007), sob curadoria de Araujo, é
composta por obras de cultura popular, artesanato ou da indústria de massa. Essas
imagens revelam uma perspectiva jocosa sobre o negro. Elas não pertencem ao mundo
erudito das artes plásticas, mas referem-se ao mundo fugaz das peças produzidas em
série. São pequenos objetos expostos dentro de “armários”, colocados um ao lado do
outro, apresentados como num antiquário, formando dezenas de peças. Cada um deles
nos remete a uma forma de ver a cultura e a representação do negro na sociedade
ocidental. São objetos relevantes enquanto indício de um imaginário social sobre esse
grupo. A noção de acúmulo está muito presente nessa exposição (Imagem 11.2 e Imagem
11.3).
A maneira de expor objetos na exposição Imagens Perversas e Inocentes pela
saturação é diferente da maneira de expor objetos de arte na exposição Negros Pintores
(Museu Afro Brasil, 2008). Esses objetos são apresentados verticalmente nessa primeira,
enquanto que na segunda exposição as obras estão organizadas horizontalmente. Como

queremos saber o que há de mais valioso, mas na perspectiva do Emanoel, tudo é valioso. Isso por conta
do valor histórico que está ligado ao objeto” (grifo nosso) (FELINTO, 2008).
44
Por outro lado, essa noção de acúmulo também tem proximidade com a forma de apresentar os objetos
em feiras populares. Lina Bo Bardi nutria-se dessa experiência (Imagem 15.1), assim como Araújo parece
dialogar com esse modo de apresentar os objetos.

85
podemos notar, o sentido de acúmulo pode alterar-se de acordo com o artista ou o
contexto de obras apresentadas (Imagem 11.3).
Na exposição de arte contemporânea do Museu Afro Brasil, notamos que muitas
obras estão delimitadas num espaço pequeno de apresentação, criando forte proximidade
entre cada uma delas. As obras do Mestre Didi estão muito próximas das obras de
Octávio Araujo, pintor surrealista, e de diversos outros. Em outros termos, mesmo na
exposição de artistas contemporâneos, é possível constatar essa mesma noção de
saturação (Imagem 4.1).
Por fim, ao que parece, a forma de expor de Araujo implica-se nesses diferentes
modos de lidar com essa atividade. Sendo o método expositivo pautado em modelos
específicos, o curador baiano usa esses artifícios sempre que um problema parece
apontar para um modelo em particular. Todavia, cabe ressaltar que o mesmo mantém
certa distância dos princípios mais austeros do chamado “cubo branco”. Usando cores,
diagonais, luzes e sombras, a composição acumulativa do curador parece procurar
capturar os sentidos do visitante. Além das aparências, não podemos esquecer que esse é
o primeiro contato do público com a exposição e suas obras. Sendo assim, é possível que
a sedução visual de Araujo tenha no visitante o seu motivo.

Exotismo

O exotismo em relação às culturas não-ocidentais é um elemento contido na


história dos museus há muito tempo. Ao que parece, esse conceito já estava presente na
forma de pensar exposições do gabinete de curiosidades, revelando um modo específico
de ver a cultura de outros povos. Ele estabelece uma diferença entre o que é de sua
cultura e o outro, o próprio e o estranho, o que pertence e o que não pertence a tal
cultura. Assim:

O gabinete de curiosidades, considerado o protótipo e antecessor humanista e


renascentista dos modernos museus, surgiu juntamente com a era de descobertas e
explorações, datando provavelmente da época em que Cortez enviou, depois da
conquista do México, amostras de peças arqueológicas, vistas como curiosidades do
novo mundo, além de outras peculiaridades trazidas por navegadores do Oriente, que na
Europa chamavam a atenção por sua beleza e unicidade. Originalmente chamado de
Kunstkammer ou Wunderkammer, literalmente câmera das artes ou salão das maravilhas,
tinham por propósito exibir uma coleção de coisas notáveis que refletissem a empresa do

86
moderno conhecimento humano e despertassem a curiosidade alheia (grifo nosso)
(GABINETE DE CURIOSIDADES, 2006).

Desse modo, o museu foi uma instituição relevante na mediação da imagem dos
povos da América, África e Oriente para a Europa. Ele se tornou um espaço específico
onde era possível ver o que é “próprio” daquelas culturas. Criou relações entre povos,
exacerbando diferenças e, além disso, construindo diferenças. Essa noção de exotismo e
museu muda no decorrer da história, passando a ter critérios mais científicos a partir do
século XIX. Ao invés do gabinete de curiosidades focando o diferente, temos, pelo filtro
da ciência, a perspectiva de que o outro deve ser tema de estudo para compreensão ampla
do mundo.
Esse modo científico de olhar a cultura dos povos de além-mar também foi uma
forma de afirmar o poder ocidental através do conhecimento. O museu e o gabinete de
curiosidades foram instituições que contribuíram para esse fim. Como diz Wolfgang
Döpcke,

(...) a sistematização, decifração e classificação dos “objetos etnográficos” dentro dos


sistemas de pensamento ocidentais e da ordenação mental do mundo e de seus
fenômenos, significam o adestramento do “selvagem”. Trata-se de uma dominação
mental e intelectual, via idéias, um processo que se apropria de significados e que
transmite a segurança do controle destes significados (grifo nosso) (DÖPCKE, 2004, p.
38).

Na exposição Negro de Corpo e Alma (Mostra do Redescobrimento, 2000),


focando a área Olhar o Outro, Araujo preocupou-se em discutir o exotismo tanto do
antigo gabinete de curiosidades como do olhar mais científico do século XIX.
Isso é possível constatar na pintura de Albert Eckout (1610-1666) e em diversos
outros trabalhos de artistas estrangeiros. Nesse período, era necessário criar uma
iconografia para o imaginário europeu sobre o novo continente. Essa imagem tenta uma
objetividade que, no entanto, é a construção de uma perspectiva européia sobre este
local.
Como diz o curador, a mostra Olhar o Outro procurou

(...) identificar, através de imagens e documentos de época, as formas do imaginário que


constroem a figura do negro enquanto outro, quase sempre incapazes de aceitá-lo em sua
diferença. Um imaginário que, antes de ser brasileiro, é essencialmente europeu, e que
ganha forma através de um olhar exotizador. (...) No Brasil, prolongando a visão

87
européia, é este mesmo imaginário que se reflete no olhar dos viajantes (...) (grifo nosso)
(Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 48).

O debate sobre esse “olhar exoticizador” esteve presente entre os organizadores


sobre o sentido da exposição Negro de Corpo e Alma, dentro do eixo Sentir a Alma. Ao
que parece, Araujo e seus colaboradores inicialmente compreenderam que o setor Sentir
a Alma abarcava artistas do modernismo brasileiro. Porém, notando nesses artistas algo
de “exotizador”, sugeriram mudar alguns artistas para a mostra Olhar o Corpo (onde o
sentido de exótico e estrangeiro é muito mais forte). Dessa maneira, procuravam
contextualizar esses artistas do modernismo num viés mais próximo dos artistas
estrangeiros do século XVII, como Albert Eckout.
Sobre esse momento, cabe citar Maria Lucia Montes: “tive um problema com
relação aos modernistas. O que são os modernistas? Olhar o Corpo ou Sentir a Alma?
Depois de sete anos trabalhando nisso, com o catálogo pronto, com os modernistas em
Sentir a Alma, o Emanoel decidiu que aquilo deveria ser Olhar o Corpo! Após muita
briga e discussões, acabou ficando assim mesmo” (MONTES, 2008). Talvez para o
modernismo brasileiro essa tenha sido uma forma de ver, mas também de se integrar ao
outro. Em todo caso, esse não deixa de ser um certo olhar de diferenciação45.
Presente não apenas no passado, esse olhar diferenciado também ocorre na
contemporaneidade. Atualmente, o exotismo contribui para tornar obras de arte quase
como objetos de consumo. Nesse sentido, essa mercadoria cultural se torna apenas mais
um objeto em todo o sistema de circulação de produtos46.
A exposição de Araujo parece buscar escapar do fenômeno de mercadologização
da cultura e da arte no museu. Seu discurso procura desconstruir a ação instrumental de

45
Comentando esse momento, Montes descreve o que parece ser a intenção de Araujo sobre a mostra
Olhar o Corpo: “Eu até entendo porque ele [Araujo] estava incomodado. O cara que estava incomodado
era o cara com argumento político. O Emanoel dizia ‘você vem com coisa de branco. Eu quero coisa de
negro’. Mas o Emanoel tinha razão pelo seguinte: enquanto artista, ele estava olhando a representação.
Essa representação ainda está impregnada dessa imagem, ainda que os artistas pensem em traços modernos
e transformem isso em um ícone de modernidade e brasilidade. Enquanto imagem, ela ainda tem um traço
forte de exotismo. Mas tem um detalhe, o exótico está sendo assumido como brasilidade, daí a história do
porque Sentir a alma. É o momento em que a arte está legitimando uma versão de Brasil que não é pautada
pelo modelo europeu” (grifo nosso) (MONTES, 2008).
46
Como já disse Guy Debord, “a cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a
mercadoria vedete da sociedade espetacular” (1997, p. 126). Percebendo esse duplo sentido da cultura,
analisa Otília Arantes que “a realidade, que é uma só, ora é vista como inteiramente cultural, ora como
puramente econômica” (2002, p. 239). Essa afirmação não deixa de fazer sentido à grande parte da
produção contemporânea de interesse econômico travestido de cultura ou de arte. Os interesses
econômicos retiram o valor renovador e vital, que é próprio da cultura, e a esvazia.

88
ver na cultura uma simples mercadoria alienada. Analisando esse fenômeno, o curador
baiano mostra que

(...) a massificação chegou a um ponto tal que não só a cultura, mas até a religião é
atingida. Hoje, qualquer pessoa pode montar um candomblé. Você chega a um mercado
(...) e encontra a galinha enrolada para ser sacrificada (...), tudo pronto. Ou seja, não é
mais preciso criar uma atmosfera para justificar a existência do divino. Você chega lá e
compra. Estamos numa época da desmistificação geral (...). As pessoas têm tanta pressa
que vão a um museu e dizem: ‘eu fotografo o quadro e olho depois, em casa’ (grifo
nosso) (ARAUJO, 2006a, p. 1).

Contra esse sentido de esvaziamento, todavia, a exposição de Araujo preza por


evidenciar o conflito. Isso está expresso em diversos textos do curador: “este silêncio foi
imposto a ferro e fogo pela narração da historiografia oficial e por ela a memória desse
país foi tantas vezes esquartejada, e tantas outras devorada por canhões de infantaria”
(MUSEU AFRO BRASIL, 2006, p. 11). Em outro momento, recusando ao convite do
Ministro Gilberto Gil para curadoria de uma exposição no exterior, Araujo diz que

(...) o ano do Brasil na França nada mais é do que um evento para mostrar a diversidade
do país no interior da França e para dar novos elementos ao desenvolvimento turístico
daquela região, elementos de país exótico para francês ver. (...) queríamos mostrar o
Brasil que (...) é negro, índio e cristão. A arte brasileira só pode ser descrita e entendida
através desta história (grifo nosso) (ARAUJO, 2006a, p. 1).

Para compreender esse contexto, vale citar a descrição sobre diferentes tipos de
memória de Ulpiano Bezerra de Menezes. No primeiro caso, temos uma memória
fetichizada, própria do universo comercial e, no segundo, uma memória politizada, o
que, imaginamos, é o objetivo de Araujo. Assim, Menezes explica:

A primeira é conservadora, vale-se da fetichização, quer para transformar a memória em


mercadoria, quer para utilizá-la como instrumento de legitimação potenciada pelo valor
“cultural”. A segunda, ao inverso, é uma resposta, precisamente, às alienações
provocadas pela expropriação da memória e representa pelo menos a emergência de uma
consciência política (grifo nosso) (MENEZES, 1992, p. 21).

Como podemos notar, esse conflito evidenciado no discurso de Araujo não é


próprio do modo de ver a cultura como simples mercadoria. Ao evidenciar o conflito, o
curador tenta compreender a produção de arte afro-brasileira por um outro viés – o da
conscientização dessa narrativa pelo público. É uma forma de ver que não passa pela
fugacidade, mas pela crítica, memória e reconhecimento.

89
Memória e reconhecimento

A memória é uma construção de identidade a partir de um protagonista no


presente. É a visão de um determinado grupo sobre seu passado. Essa memória se
constrói pelo que lembramos e pelo que esquecemos (BERNARDO, 2006). A memória é
necessária para a construção das bases de um coletivo; pode orientar-se para a construção
de uma identidade.
Ulpiano T. Bezerra de Menezes também relata que:

(...) a memória de grupos e coletividades se organiza, adquire estrutura e se refaz, num


processo constante, de feição adaptativa. A tradição (memória exteriorizada como
modelo) nunca se refere a nenhum corpo consolidado de crenças, normas, valores,
referências definidas na sua origem passada, mas está sujeita permanentemente à
dinâmica social (grifo nosso) (MENEZES, 1992, p. 11).

A memória pode entrar em conflito com as diversas formas de ver, compreender


e reconstituir o passado pelos diversos grupos que estão no presente. Em nosso caso, as
exposições de Araujo contam e recontam a história pela perspectiva do negro. O curador
apóia-se nessa perspectiva para construção de sua própria singularidade, que se defronta
com outras histórias. A memória, assim, é local de conflito e negociações.
Como podemos observar, a memória, por fortalecer uma identidade, confere um
substrato político e reivindicativo aos grupos que a requisitam. Desse modo, a construção
de uma história própria pode vincular-se à noção de reconhecimento proposta por
Charles Taylor (1993), filósofo que desenvolve pesquisa sobre relações culturais e
políticas em Quebec:

La tesis es que nuestra identidad se moldea em parte por el reconocimiento o por la falta
de este; a menudo, también, por el falso reconocimiento de otros, y así, un individuo o un
grupo de personas puede sufrir un verdadero daño, una auténtica deformación si la gente
o la sociedad que lo rodean le muestram, como reflejo, un cuadro limitativo, o
degradante o despreciable de si mismo. El falso reconocimiento o la falta de
reconocimiento puede causar daño, puede ser una forma de opresión que aprisione a
alguien en un modo de ser falso, deformado y reducido (grifo nosso) (1993, p. 43).

Taylor elabora sua teoria baseada na filosofia, iniciando-se na noção de


identidade e resultando no conceito de reconhecimento. Segundo o autor, o
reconhecimento tem as primeiras bases filosóficas em Hegel, desenvolve-se em Rosseau
e configura-se finalmente em Joham Gottlob Herder. Estes primeiros, Hegel e Rosseau,

90
trabalham com o conceito de autenticidade numa esfera individual, ou seja, desenvolvem
o argumento sobre a importância da noção de individualidade para o próprio sujeito.
Herder avança ao abarcar nesta categoria os povos e nações. Além dos indivíduos, cada
povo possui uma singularidade histórica e a necessidade de ser reconhecido por ela.
Jacques d’Adesky, partindo de estudo sobre Taylor, desenvolve o conceito de
reconhecimento em relação aos grupos negros brasileiros no seguinte sentido:

“(...) Taylor opõe-se às perspectivas teóricas que relegam as identidades à esfera do


privado. Ao contrário, afirma que a identidade cultural deve fecundar todo o espaço
público para permitir que as pessoas de uma etnia minoritária não se sintam depreciadas
em um projeto que lhes seja estranho, uma vez que elas não se sentem verdadeiramente
reconhecidas pela maioria com a qual compartilham a mesma entidade nacional” (grifo
nosso) (D’ADESKY, 2001, p. 23).

O reconhecimento de uma identidade cultural acontece em esfera social e


coletiva a partir da memória de um grupo. Nesse sentido, o reconhecimento é a exigência
que os grupos organizados fazem para serem vistos como uma entidade unificada, com
memória e objetivos comuns, a fim de obterem legitimidade e força num campo
simbólico de representações sociais47.
Isso é próprio da exposição de Araujo. A sua construção de uma memória de arte
afro-brasileira orienta-se para o reconhecimento dos grupos negros. A partir do momento
em que esse grupo tem uma memória ele pode ser reconhecido como tal na esfera
pública e política, assim como também nas artes plásticas. A fala do curador abaixo,
comentando a exposição Brasileiro, Brasileiros (Museu Afro Brasil, 2004), traz esse
sentido de configuração e reordenação da memória:

Brasileiro, Brasileiros é, portanto, uma exposição, que inclui esse quebra-cabeça, a arte e
a memória na sua armação conceitual. Aparentemente pode parecer apenas uma
proposição estética de múltiplas linguagens, num jogo mais ou menos caótico, uma
tentativa de uni-la aos fatos históricos da formação da identidade brasileira, procurando
encontrar uma forma de linguagem capaz de converter idéias em experiências sensíveis,
para assim armar um novo conceito sobre a arte nacional, não apenas sobre o aspecto
analítico e estético, mas, sobretudo, por apontar elementos identificadores e claros dessa

47
Esse reconhecimento também possui forte afinidade com a idéia de identidade. Vale citar novamente
d’Adesky: “Para Charles Taylor, a relação entre identidade e reconhecimento é de fundamental
importância no mundo atual. A identidade representa, escreve ele, quem somos nós, ‘de onde viemos’ etc.
Como tal, é o pano de fundo sobre o qual nossos gostos, nossos desejos, nossas opiniões e nossas
aspirações tomam sentido. Mas a identidade, observa Taylor, não é elaborada no isolamento. Ao contrário,
é negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os
outros. A identidade pessoal e a identidade socialmente derivada são formadas em diálogo aberto. Estas
dependem vitalmente das relações dialógicas com os outros (2001, p. 77).

91
identidade na nossa história e no nosso passado (grifo nosso) (apud BRASILEIRO,
BRASILEIROS, 2004, pp. 9, 10).

Por outro lado, a discussão sobre memória e reconhecimento também se aproxima


de um contexto político. Maria Lucia Montes parece demonstrar que o trabalho de
Araujo pode reverberar essas nuances. É certo que a sua forma de engajamento não é
direta e restrita. Sobretudo, a atuação do curador dentro do circuito artístico é a defesa de
uma visão especial sobre a arte brasileira. Como diz Montes:

(...) não tenha dúvida que ele é uma pessoa fundamental para pensar o que é legitimidade
e representatividade para o negro, pensando em reformular uma outra história não só do
negro, mas do Brasil. O seu engajamento militante é fruto da trajetória de vida dele, mas
isso não é apenas um engajamento político militante restrito. Na verdade, ele está para
além do que os movimentos negros pensam. Ele está pensando uma coisa crucial que
nunca foi tematizada, nem na academia, nem nas instituições culturais, que é a cultura
negra (grifo nosso) (MONTES, 2008).

Esse teor político inferido à trajetória de Araujo é também demonstrado durante


a entrevista do curador ao programa Roda Viva (2006). O programa foi exibido em
novembro de 2006, momento em que se comemorava os 35 anos do Dia da Consciência
Negra. A primeira pergunta do programa, realizada pelo repórter Paulo Markun, se refere
à posição de Araujo sobre políticas anti-racismo. A pergunta do repórter foi: “Diante da
situação de preconceito, inquestionável, que negros e pardos sofrem no Brasil, funciona
adotar políticas e práticas de afirmação que são semelhantes às dos Estados Unidos?”
(Paulo Markun apud RODA, 2006). É importante notar que o mote do programa não foi
a discussão de políticas públicas, mas sobre o trabalho artístico e expositivo de Araujo.
Em todo caso, por mais descabida que possa ter sido a pergunta, ela diz respeito a um
universo de referências que as exposições de Araujo tangenciam. Além disso, numa
visão abrangente, as exposições do curador se inserem dentro de um conjunto de ações
anti-racistas que atingem desde a esfera educacional como também o universo das artes.
Como diz Felinto, “o Museu Afro Brasil é uma instituição que faz parte de um conjunto
de ações afirmativas, do ponto de vista educacional e até do ponto de vista de cidadania”
(FELINTO, 2008).
Numa outra pergunta do mesmo programa, o professor Demétrio Magnoli
questionou Araujo a respeito da importância do dia 20 de novembro em detrimento do 13
de maio. A discussão que Magnoli insere é sobre a validade do 20 de novembro

92
enquanto fato histórico. Para ele, o Quilombo dos Palmares (século XVII) não representa
na história brasileira um ideal maior do que o 13 de maio com os caifazes (século XIX).
Segundo o professor, Palmares, uma terra onde ainda haviam escravos, utilizava os
mesmos métodos que seus inimigos.
Essa pergunta não é dirigida somente a Araujo, mas a todos os setores negros
organizados do Brasil. Isso significa dizer que por mais que o curador não seja um porta-
voz oficial desse grupo, como o mesmo diz, ele assume para o público essas
expectativas. De certo modo, o trajeto e pensamento de Araujo levam a esses
questionamentos. Embora suas exposições não tenham uma conotação política restrita,
em alguns casos seu discurso assume a perspectiva do grupo que por diversas vezes
expõe.
Ainda sobre a questão de Magnoli, o dia 13 de maio é uma data oficial que
remete à abolição da escravidão em 1888. Nesse momento, as diversas contestações ao
regime escravocrata problematizavam a legitimidade de sua existência, provocando a
ruptura desse modelo de produção. A partir disso, a abolição, aparentemente feita de
cima para baixo, nas décadas seguintes tomou feições cada vez mais antagônicas para os
grupos negros organizados. Estes questionavam a validade desse marco histórico como
instaurador de uma sociedade livre e igualitária. O dia 13 de maio expressava apenas a
visão da elite sobre a história do negro no Brasil. Como resultado, o dia 20 de novembro
foi uma proposta dos grupos negros organizados já em fins do século XX para mostrar
uma outra perspectiva. Essa data passou a representar os anseios desse grupo, exibindo
como símbolo máximo o líder quilombola Zumbi dos Palmares48.
Entre essas duas datas temos a discussão oportuna sobre a representação dos
grupos negros na sociedade atual, sobre memória e reconhecimento. O dia 20 de
novembro não é a escolha por uma única verdade, mas é o momento em que esse grupo
negro ganha consciência de sua própria história. Assim, lutar por uma nova data que
represente os seus interesses significa mostrar que este grupo possui o poder de se pensar

48
Florestan Fernandes em artigo sobre o 13 de maio sintetiza essa mesma idéia sobre ambas as datas: “(...)
o significado da data [20 de novembro], que brota da consciência negra e da compulsão libertária coletiva
dos negros mais firmes e decididos nas pugnas raciais igualitárias, atravessa e afirma Palmares e Zumbi. O
13 de Maio se contrapõe ao 20 de Novembro. A escravidão não impediu que o seu agente de trabalho e a
sua vítima construísse sua própria história, independentemente dos mitos consagrados pela ‘história
oficial’. A liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista. Essa conquista pressupõe que os negros
redefinam a história, para situá-la em seus marcos concretos e entrosá-la com seus anseios mais profundos
de auto-emancipação coletiva e de igualdade racial” (1989, p. 34).

93
e de se auto-representar enquanto um coletivo com história e legitimidade. A discussão
dessa data, então, é sobre qual símbolo deve representar essa narrativa, bem como saber
quem o determina. Esse é o terreno próprio da ação de Araujo.
É relevante dimensionar que a história é feita por e para os contemporâneos.
Assim, o significado dessa data é importante enquanto puder simbolizar e gerar
aspirações desses grupos negros. “A elaboração da memória se dá no presente e para
responder a solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe
incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar” (grifo nosso) (MENEZES, 1992, p.
11). A escolha dos grupos negros por um outro fato histórico é uma nova redefinição
desse mesmo grupo no presente.

Um momento preciso

O contexto de memória e reconhecimento reverbera-se também em relação ao


momento em que muitas das exposições de Araujo são realizadas. Esse estabelece um
diálogo entre a exposição e o seu contexto histórico. Vale pontuar brevemente alguns
desses episódios.
Realizando uma digressão, em meados do século XX, o Teatro Experimental do
Negro buscou na experiência do palco unir arte e política. Não deixou um subjugado ao
outro, mas procurou na inter-relação entre ambos uma tentativa de compreender a
situação do negro brasileiro. O TEN de Abdias do Nascimento mostrou que o campo da
arte pode ser rico ao debater temas sobre o negro brasileiro. Nascimento fomentou uma
consciência crítica a respeito da situação do negro que poucas vezes obteve alcance no
meio artístico. Cabe notar que um dos cartazes da exposição A Mão Afro-brasileira
(Museu de Arte Moderna, 1988) de Emanoel Araujo apresenta uma fotografia sobre essa
mesma experiência teatral (Imagem 13.3).
De modo semelhante, a ação de Araujo traz para dentro da exposição de arte todo
tipo de implicações étnico-raciais e políticas. A exposição A Mão Afro-brasileira está
submergida num contexto político de grande repercussão para os negros e a sociedade
brasileira. O momento de revisão proposto pelo ano de 1988 evidencia ainda mais essa
orientação. Nesse sentido, a preocupação dos grupos negros organizados em constituir
uma nova memória e história passa necessariamente por compreender a sua atuação

94
dentro da cultura e da história da arte, espaço em que, historicamente, estes estavam
alijados.
No ano de 1988 ocorreram as comemorações que marcaram o centenário de 100
anos da abolição da escravidão. Essa data mostrou o amadurecimento do protesto do
movimento negro no Brasil. Mais do que comemoração, ela foi marcada pela revisão da
história do negro pela perspectiva do próprio negro. Se o discurso oficial procurou
comemorar o fim de um período e a condição de igualdade estendida a todos, esse
protesto denunciou um estado de opressão e de discriminação contínua. Mais do que
isso, evidenciou que sem a integração do negro na sociedade de classes o Brasil não
poderia tornar-se um país realmente democrático.
Como afirma Michael George Hanchard, em estudo sobre grupos negros
organizados no Brasil, esse foi um momento oportuno para a eclosão de um discurso
ainda restrito sobre a condição do negro brasileiro:

Os festejos comemorativos das sociedades multirraciais são, frequentemente,


contestações da identidade nacional; os grupos dominantes esticam a tela mítica da
“união nacional” para fazê-la incluir imagens dos grupos subalternos; os grupos
subordinados contestam os mitos de união nacional promovidos pelo Estado. (...) Os
eventos de 1988 trouxeram para o primeiro plano diversas contradições da política
racial brasileira. Em termos micropolíticos, expuseram as lutas do movimento afro-
brasileiro para se definir em relação à sociedade brasileira e, em última instância, em
relação à sua própria história como movimento (grifo nosso) (HANCHARD, 2000, p.
167).

Mais adiante, em consonância com esse discurso, é preciso não esquecer o


momento da exposição Herdeiros da Noite (Pinacoteca, 1995), data que relembra os 300
anos da morte de Zumbi. Se a exposição A Mão Afro-brasileira aconteceu num momento
de contestação, a mostra Herdeiros da Noite é reivindicação. Como cita Kabengele
Munanga, “em 1988, ano do Centenário da Abolição, tivemos festas, discursos,
congressos nacionais e internacionais, manifestações culturais e artísticas em quase todo
o território nacional, marchas de protesto dos movimentos negros, etc.”. O autor
continua, concluindo que na marcha sobre Brasília em 20 de novembro de 1995 “o tom
não era apenas de denúncia e de protesto, mais do que isso, exigiu-se do governo e dos
poderes constituídos a busca das soluções, a serem concretizadas através dos programas
de ação anti-racistas em todos os domínios da vida nacional” (1996, pp. 88-90).

95
Dentro desse contexto, vale observar o teor do texto de Maria Lucia Montes para o
catálogo da mostra Herdeiros da Noite:

De fato, embora os símbolos tradicionalmente associados à identidade nacional – samba,


carnaval, feijoada, futebol – se originem ou se expressem de forma exemplar naqueles
que são herdeiros das muitas culturas da África que se incorporaram à formação histórica
deste país, nem por isso a sociedade nacional foi capaz de reconhecer aos descendentes
de africanos no Brasil a igualdade de direitos – civis, políticos e sociais – que
correspondesse, no plano sócio-econômico e político, à importância de sua contribuição
cultural (HERDEIROS DA NOITE, 1995, p. 11).

A exposição Negro de Corpo e Alma (2000) evidencia um outro momento de


revisão da história nacional durante a comemoração dos 500 anos do país. O uso do
conceito curatorial separado em diversas áreas (Olhar o Corpo, Olhar a Si Mesmo e
Sentir a Alma) tenta compreender a presença do negro no Brasil em suas mais diferentes
formas dentro da arte brasileira e afro-brasileira.
Como podemos notar, a exposição A Mão Afro-brasileira (1988) mostrou a
produção artística afro-brasileira dentro de um contexto de compreensão desse legado a
partir de uma data que marca esse grupo e também a história do país. A exposição
Herdeiros da Noite (1995) foi uma homenagem a Zumbi. Nesse sentido, era mais
direcionada não apenas em constatar uma produção, mas em mostrar uma arte
projetualmente afro-brasileira; a obra dos artistas dessa exposição parecem indicar esse
caminho. Por sua vez, a exposição Negro de Corpo e Alma (2000) tentou realizar uma
análise de toda imagem do negro no Brasil. Não há apenas a constatação de uma
produção ou a afirmação de uma narrativa, mas a elaboração de um sistema para
compreender a representação desse grupo nesse território. Muitas das obras pertencentes
às exposições anteriores fazem parte dessa narrativa, porém elas foram utilizadas para
um novo contexto e fim.

Ambigüidade

Outro aspecto da curadoria de Araujo é a ambigüidade (ou ambivalência). Tal


fenômeno está presente na fala de Maria Lúcia Montes: “o que eu aprendi nesses sete
anos trabalhando com o Emanoel é que não é possível falar da problemática do negro no

96
Brasil sem falar da ambivalência. Desde o Aleijadinho fazendo arte européia e o Ataide,
branco, pintando uma santa negra, há tensão” (grifo nosso) (MONTES, 2008)49.
Esse dispositivo pode mesmo originar-se na forma repleta de sobreposições da
experiência dos africanos no Brasil, entre o contato de diversas culturas. Ricardo Rosas,
citando W. E. B. Du Bois, trouxe uma contribuição importante quando este fala sobre a
dualidade do indivíduo negro na diáspora. Vale citar a análise de Rosas: “Um dos
grandes estudiosos de cultura afro-diaspórica do século passado, o norte-americano W.
E. B. Du Bois, via na cultura e no pensamento negro de sua época o que ele chamou de
‘consciência dupla’, uma sensação estranha, ‘essa sensação de estar sempre a se olhar
com os olhos de outros’” (grifo nosso) (apud FARKAS, 2005). Esse estranhamento pode
estar presente na obra de muitos artistas afro-brasileiros e negros, produzindo obras
dentro de um modelo estranho (europeu) da sua origem étnico-racial (africana), mas
legitimamente pertencente a sua cultura num novo território (brasileira)50.
A ambigüidade de Araujo procura trazer uma forma complexa de olhar a arte e a
cultura do negro na sociedade brasileira. Como diz Montes, está na capacidade de buscar
refletir a sinuosidade da cultura e história brasileira em relação a esse grupo, sempre em
tensão entre diversos universos. De modo semelhante, essa característica acaba
permeando também a forma de suas exposições. Essa ambigüidade, um modo sinuoso de
apontar para elementos diferentes, também remete-se ao estado de tensão que pode ser
gerado por esse método expositivo.
No caso da montagem de Araujo, podemos notar esse aspecto na exposição
Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007). Essa exposição constitui-se
como um conjunto de peças populares e da indústria de massa que representam o negro.
Individualmente, essas imagens revelam um humor jocoso. Porém, numa visão de

49
Em outro momento, a mesma pesquisadora relata: “Os modernistas diziam que a grande maravilha da
cultura brasileira era ser antropofágica, vendo na antropofagia o indígena, mas o verdadeiro antropófago da
cultura brasileira foi o negro, que comeu pelas bordas a cultura européia do senhor. Há o tempo inteiro essa
ambigüidade e essa ambivalência de saber o que é negro. Se quiser separar e compreender, inclusive sobre
uma estética negra, é possível; mas o tempo inteiro nós estamos nos debatendo com essa ambigüidade do
lugar social do negro” (MONTES, 2008).
50
Nesse caminho, cabe observar mais uma vez a análise de Montes sobre a ambigüidade de Araujo: “Ele
[Araujo] oscila. Tem horas em que odeia essa ambigüidade brasileira. Ele preferiria que branco fosse
branco e preto fosse preto. Esse é o modelo americano, que por um acaso se aproxima da posição militante
negra no Brasil, que eu considero um equívoco total em termos de movimento político. Não tem como dar
certo, nossa história é outra. Então isso aparentemente o aproxima da militância dos movimentos negros,
mas simplesmente porque ele não agüenta tanta ambigüidade. Por outro lado, tem essa pessoa com imensa
sensibilidade e conhecimento da história do Brasil, que sabe que isso é balela, não é assim. A história desse
país é a história da ambigüidade” (grifo nosso) (MONTES, 2008).

97
conjunto, exacerba-se o grotesco. Essas imagens podem fortalecer um sentido de
alienação sobre a figura negra. Pela forma da exposição, é permitido perceber as nuances
e características desse olhar ideológico. Contudo, a ambigüidade entre o “Perverso” e o
“Inocente” é presente.
Embora exista um texto pontuando um certo olhar sobre a exposição, a forma
complexa da montagem, aproximando obras que a princípio estariam separadas, acaba
exacerbando uma leitura repleta de desvios. Esse sistema de significados, previstos ou
não pela curadoria, não procura solucionar o problema, mas o questionamento a respeito
do todo51. Por outro lado, essa ambigüidade pode colaborar ou confundir os olhares do
observador em certos casos.
Em outras exposições, essa ambigüidade pode assumir aspectos diferentes.
Caudatário de uma visão moderna, que em alguns casos evidencia o caráter estético das
obras, para Araujo, os objetos de arte (por si só) têm grande poder de conferir sentido
dentro de uma exposição. Algumas exposições do curador tentam criar o seu universo
somente pela lógica das obras expostas. Vale observar os apontamentos de alguns
críticos.
Na mostra Herdeiros da Noite (em Brasília, 1995), como diz Graça Ramos:

As peças exibidas na 508 Sul não têm, de acordo com o curador Emanoel Araujo, a
intenção de explicar nem desvendar “uma cultura negra”, mas sim construir um
referencial de acesso ao imaginário influenciado pelo universo afro-brasileiro. E são (...)
uma comunicação estética que provoca o prazer e a emoção de gozar o belo (...). Por
isso, para muitos, prescindem de explicações e interpretações (grifo nosso) (RAMOS,
1995).

Essa observação parece ser em grande parte resultado de uma visão moderna
sobre o objeto de arte e a exposição. A relação que Araujo constrói em suas exposições
exige do observador uma atenção formal sobre os objetos e seu contexto. Essa

51
A colaboração de van Mensch, procurando um novo modo de expor, parece contribuir para a noção de
ambigüidade e tensão na exposição de Araujo: “a público le es mostrado cómo el pasado puede ser
manipulado y desfigurado por los propósitos del presente. Los artefactos se quiebran desde una narrativa
cronologica fijada y desde sus contextos originales, y son reunidos con artefactos contemporáneos
similarmente descontextualizados. La exageración, la ironia, el humor y el absurdo son prestentados como
recursos de remoción del sentido autoevidente del artefacto y su poder. En resumen, el diseño de la
exposición debería destacar la professión de autor y cambiar las percepciones sobre el pasado de los
artefactos” (grifo nosso) (van Mensch apud FERNÁNDEZ, 1999, p. 151)51.

98
construção de sentido, todavia, nunca é uma via única. Muito pelo contrário, a narrativa
do curador é polifônica, complexa em sugerir e construir sentidos.
Observando esse método por outra perspectiva, Kátia Canton, na crítica intitulada
Imaginário africano tem painel confuso sobre a mostra Herdeiros da Noite diz que:

A exposição contrapõe obras de procedências e estilos diversos. Mesclá-se a produção de


artistas negros e brancos que trabalham sob influência africana.
Lado a lado, estão um conjunto de esculturas de iconografia ioruba de Mestre Didi,
instrumentos litúrgicos do candomblé, de autoria de José Adário dos Santos; e obras
contemporâneas e menos comprometidas com a questão da raiz (sic) (CANTON, 1995).

Esse tipo de crítica parece exacerbar o “ruído” que reverbera na leitura da


exposição (o que fica evidente no título do artigo de Canton). Para a crítica, esse ruído
originado pela disposição “confusa” dos objetos seria um empecilho para o entendimento
da exposição pelo público. No mesmo sentido, como cita Felinto: “Algumas montagens
[do Emanoel Araujo] são muito exuberantes, inclusive, mas sempre um pouco
complicadas para o público” (FELINTO, 2008). Nesse caminho, como pressuposto
dessas críticas, a função do museu e de seus dispositivos expositivos seria a de
comunicar transparentemente com o público, evidenciando um discurso preciso.
Não obstante, ao que parece, para Araujo, mais relevante que o discurso singular
e certo sobre a exposição é o conflito e complexidade de novas leituras que uma
disposição sinuosa pode causar. A fala do crítico e curador Tadeu Chiarelli sobre a
mesma exposição de Araujo traz esse contexto:

Sem ser banalmente didática, a mostra [Herdeiros da Noite] vai traçando num percurso
sinuoso e cheio de reentrâncias estéticas e antropológicas, etnográficas e artísticas um
itinerário analógico e poético cujo fio condutor é a permanência, em todas as obras ali
apresentadas, de certas características formais, iconográficas e iconológicas.
É extremamente excitante, após examinar uma marcante coleção de esculturas africanas
ancestrais, penetrar numa sala de ex-votos brasileiros e dela sair para confrontar-se com
um painel repleto de patuás de Rosana Paulino, realizados em Xerox. (...)
Esta exposição (...), demonstra que qualquer discussão sobre o assunto
(multiculturalismo) deve passar necessariamente pelo exame do legado que a
ancestralidade africana nos deixou, e pelas razões raciais, políticas e econômicas que
insistem em marginalizá-la, tornando seus produtos exemplares do folclore e não
emanações vivas de parte significativa da subjetividade brasileira (grifo nosso)
(CHIARELLI, 1994).

Do mesmo modo, citando Araujo, temos a descrição de Maria Lucia Montes:

99
O Emanoel é um grande curador no sentido de que conceito e espaço são problemas
pensados em conjunto. Isso também é uma coisa difícil de equalizar. Alguns reclamam
que as exposições do Emanoel são over e confusas por causa desse método. Nem sempre
ele pensa em evidenciar quais são as conexões para o visitante, o que o espaço te
permite fazer. Tem exposição que não precisa ter nem texto. Há o espaço aqui, nós
olhamos para lá do outro lado e o espaço te deu um contraponto, mostrou uma tensão,
relativizou a leitura de um e outro (grifo nosso) (MONTES, 2008).

O didatismo do espaço museológico parece não ser um ponto constante das


necessidades do curador baiano. Porém, ao que aparenta, isso não é um problema para o
mesmo, mas um outro entendimento do dispositivo de exposição. Esta, para Araujo, é
um fenômeno razoavelmente em aberto. O entendimento do seu conjunto se dá pela
leitura relacional de suas obras. A ambigüidade, assim, parece ser um dispositivo que faz
parte dos intentos do curador, apontando obliquamente para diversos componentes.

Ancestralidade

O termo ancestralidade surge em algumas exposições de Emanoel Araujo para


explicar o processo de continuidade artística dos negros africanos na diáspora americana.
Tal conceito se refere a uma origem em comum da identidade do negro na diáspora. Ele
tornou-se um ponto de apoio para explicar a singularidade cultural entre África e
América. Cabe, no entanto, ressaltarmos que o uso do termo ancestralidade na arte afro-
brasileira tem um contorno não muito preciso.
Conduru traz à tona esse problema quando expressa suas dúvidas a respeito de
como podemos pensar a continuidade plástica africana entre os dois lados do oceano
Atlântico (o que podemos entender como ancestralidade):

É possível acreditar em atavismos para aceitar a ressurgência de valores escultóricos


africanos em obras de arte no Brasil apenas porque foram feitas por afro-descendentes?
(...) é possível pensar em sobrevivências na história da arte, em forças plásticas e
simbólicas que ressurgem não racionalmente? (...) De um modo ou de outro, precisam
surgir pesquisas que, a partir de evidências e documentos, pensem a continuidade de
princípios, práticas e formas artísticas africanas no Brasil (grifo nosso) (CONDURU,
2007, pp. 21, 22).

Há, no mínimo, de acordo com bibliografia que consultamos sobre as exposições


de Araujo, dois modos distintos para observar o termo ancestralidade.

100
No primeiro caso, a ancestralidade é um dispositivo atávico e inconsciente. Ela
permaneceria entre as gerações de negros na América que continuam a realizar uma arte
com influências africanas. Assim, por exemplo, a produção de Agnaldo Manoel dos
Santos seria uma espécie de “memória ancestral” das técnicas utilizadas na África. Um
texto contido no catálogo Para nunca esquecer – Negras memórias – Memórias de
negros (2002) sobre esse artista pode exemplificar o fenômeno:

Ingressando como auxiliar no ateliê do escultor baiano Mário Cravo, um sentimento


atávico levou-o [Agnaldo Manoel dos Santos] a esculpir representações guardadas em
sua memória ancestral, impressionantemente próxima dos cânones da arte africana, na
qual tema e forma buscam soluções de síntese (grifo nosso) (Anônimo apud PARA
NUNCA ESQUECER, 2002, p. 242).

Esse modo de perceber a origem da arte afro-brasileira através da ancestralidade é


capaz de obscurecer outras possíveis compreensões do mesmo problema. Ele pode tornar
a cultura um elemento estático. Essa passa a ser característica cristalizada de um povo, de
um grupo, não passível de alterações significativas durante o passar do tempo. Todavia,
as discussões atuais têm apontado cada vez mais para o modo relacional que é o caminho
de um fenômeno cultural. Assim, a cultura não traz um contorno definido, mas algo que
se refaz continuamente.
No segundo caso, Araujo parece compreender o terreno movediço em que opera.
Podemos notar pela fala descrita a seguir como ele expressa esse problema:

Agnaldo Manoel dos Santos, cuja a obra está impregnada de aspectos de ancestralidade
com a arte africana, representa seja através da veia da intuição ou do inconsciente, esse
inconsciente acumulado por vivências, a grande expressão da arte afro-brasileira, ou
seja, um artista que em sua obra mais reducionista consegue expressar essa ligação entre
Brasil e África (grifo nosso) (apud VOZES, 1993).

Desse modo, um inconsciente “acumulado por vivências” refere-se às


experiências concretas que ancoram o trabalho desse artista nas artes plásticas. Nesse
caso, a técnica desse escultor não está em uma lembrança fora da história, mas constitui-
se em sua atividade empírica sobre a matéria e o mundo. Essa experiência concreta o
conduziu a uma criação plástica baseada na estética em parte da arte da África, buscando
configurar também uma memória artística individual.
No mesmo sentido, referindo-se ao Museu Afro Brasil, o curador Araujo diz que
devemos estar atentos “a identificar na ancestralidade a dinâmica de uma cultura que se

101
renova (...) (grifo nosso) (apud MUSEU AFRO BRASIL, 2006, p. 13). Esse significado,
o de uma cultura renovadora, é certamente um modo menos estático e rígido de entender
o problema. Araujo, assim, procura compreender que ancestralidade significa um diálogo
permanente entre passado e presente. Entre o que é e o que está sendo.
A cultura é um fenômeno poroso que está mais interligada com seu entorno do
que podemos imaginar. O termo ancestralidade na arte afro-brasileira, quando foca uma
origem estática, um “sistema atávico”, pode não dar conta de compreender esse
fenômeno do modo mais apropriado, embora, como vimos, ele possa trazer vários
significados.
Sidney W. Mintz e Richard Price (2003) podem contribuir para esse
entendimento quando descrevem a configuração de uma identidade em comum entre os
grupos negros africanos escravizados na América:

Todos os escravos devem ter-se descoberto aceitando, ainda que por necessidade,
inúmeras práticas culturais “estrangeiras”, o que terá implicado uma reformulação
gradativa de seus próprios modos tradicionais de fazer muitas coisas. Para muitos
indivíduos, o compromisso com um novo mundo social e cultural e o engajamento nele
devem ter assumido precedência, com muita rapidez, sobre o que não tardaria em se
transformar, predominantemente, em saudade da terra natal. Lembramos a nós mesmos e
a nossos leitores que, de modo geral, as pessoas não sentem saudades de uma “herança
perdida”, nesses termos, fica intimamente ligada aos contextos sociais em que são
vivenciados e percebidos os laços afetivos. Com a destruição desses laços, a “bagagem
cultural” de cada indivíduo sofre uma transformação fenomenológica, até que a criação
de novas estruturas institucionais permita a refabricação do conteúdo, baseado no
passado – e muito distante dele (grifo nosso) (MINTZ & PRICE, 2003, p. 71).

Para Mintz e Price é certo que a identidade do negro na América é uma


reconstrução a partir dos contatos deste no Novo Mundo. A “refabricação” de conteúdos,
dos laços afetivos, a “bagagem cultural”, embora “baseada no passado”, se faz a partir do
presente e para as circunstâncias deste. A ancestralidade, assim, tem sentido quando se
refere a essa experiência coletiva e empírica desses indivíduos em face de um mesmo
problema, a reconfiguração de sua cultura (ou até mesmo a criação de uma nova cultura)
a partir de um território repleto de obstáculos. Nesse sentido, não estamos descrevendo a
retomada de uma memória atávica, mas reconhecendo que esta se faz continuamente pela
vivência, experiência, gestualidade, troca e oralidade desses indivíduos e povos no
mundo.
No mesmo caminho, como afirma Muniz Sodré sobre a trajetória cultural negra
na diáspora, “reelaboravam-se ou redefiniam-se as regras originais com o objetivo de

102
preservar uma matriz fundadora. A tradição afirmava-se não como uma forma
paralisante, mas como algo capaz de configurar a permanência de um paradigma negro
na descontinuidade histórica” (grifo nosso) (1988, p. 56). Essa “tradição”, a qual
podemos ler aqui como ancestralidade, traz na possibilidade de transformação um item
fundamental.
Em resumo, a análise desses temas pode contribuir para a compreensão de alguns
aspectos da curadoria de Araujo. Nossa tentativa foi apontar esses traços, considerando o
contorno de cada um deles. Esses temas interferem com peso diferenciado em cada uma
das diversas exposições de Araujo. Não circunscritos somente ao âmbito da cultura e
história, eles acabam permeando também a sua construção de uma curadoria da arte afro-
brasileira.

103
104
5. As exposições sobre arte afro-brasileira

A história está lá e está integrada como parte da exposição.


Às vezes o sentido dessa história está na exposição espacialmente.
Se podemos ver esses objetos de outro modo, não faz sentido a exposição.
A exposição tem sentido quando cria uma conversa com os
objetos de um modo que só podemos vê-los na exposição.
Maria Lucia MONTES, 2008.

O trabalho final de Araujo acontece na exposição. A comparação de algumas de


suas mostras é, pois, oportuna. Selecionamos a seguir as exposições que parecem trazer o
cerne das preocupações do autor em relação à arte afro-brasileira: a afirmação da
produção de artistas negros e afro-brasileiros focados nessa cultura.
O trabalho expositivo desse curador tem operado dentro de diversos campos da
arte e da cultura. Dentro disso, como é o objetivo já descrito neste trabalho, delimitamos
apenas as exposições sobre arte afro-brasileira e outras sobre assuntos correlatos (arte da
África). Entretanto, este trabalho não pretende fazer a análise de todas as suas mostras
sobre arte e cultura afro-brasileiras, mas pretende, todavia, apontar quais parecem ser as
principais exposições e, através delas, os caminhos do curador.
As exposições sobre arte e cultura afro-brasileiras aqui apresentadas podem ser
divididas em dois núcleos principais: primeiro, as exposições independentes realizadas
em diferentes instituições (A Mão Afro-brasileira, Vozes da Diáspora, Os Herdeiros da
Noite, Negro de Corpo e Alma); e segundo, as exposições realizadas no Museu Afro
Brasil a partir de 2004 (Brasileiro, Brasileiros; Benin está vivo ainda lá; Bijagós;
Negros Pintores, Brasil – Terra de Contrastes; De Valentim a Valentim e a exposição de
arte contemporânea permanente dessa instituição).
As exposições sobre arte da África analisadas nesse momento evidenciam o
contexto entre essa produção e as obras afro-brasileiras. Realizadas no Museu Afro
Brasil, o contexto dessas mostras de arte da África junto a obras de artistas afro-
brasileiros traz mais uma vez o imaginário da diáspora negra de Araujo. O curador,
assim, estabelece contatos para o entendimento desse universo de significação da forma
plástica da África e dos afro-americanos em toda a América.
O local em que cada uma dessas mostras foi realizada altera razoavelmente o
sentido da mesma. O percurso narrativo realizado na exposição Os herdeiros da noite na
Pinacoteca, entre obras de Rodin e outras exposições; e a Negros Pintores no Museu
Afro Brasil, entre o acervo deste museu e outras exposições sobre arte afro-brasileira,
105
tem seu sentido modificado pelo contexto de cada museu. Além disso, a partir do diálogo
entre obras singulares do artista e do contexto, cremos poder compreender um pouco
mais o universo dessa curadoria.
Desse modo, nossa análise também é uma interpretação das obras dentro do
discurso da exposição de Araujo, ou seja, dentro de um sistema de relações que as
norteiam. A obra individual possui, evidentemente, diversas possibilidades de leitura
para além desse universo. No entanto, atentamos para o discurso de Araujo que se forma
no conjunto das obras. Essas peças não são apenas artifícios, mas o alimento
indispensável para a sustentação da narrativa do curador. São esses objetos individuais
que no todo compõem e alicerçam o seu pensamento. Mais do que isso, as obras são a
própria razão do seu discurso.

A Mão Afro-brasileira

A exposição A Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna de São Paulo, de 25


de agosto a 25 de setembro de 1988) obteve a visitação de cerca de 2490 pessoas52 e
resultou numa publicação de mesmo nome, focando a produção artística, intelectual e
cultural do negro no país. A mostra não se restringiu a um determinado período de tempo
ou espaço e procurou relatar a presença de artistas negros nas artes em suas mais
variadas formas.
O título da exposição, A Mão Afro-brasileira53, demarca o sentido da mostra –
evidenciar a arte produzida por artistas negros. Longe de definir uma produção com certa
característica ou tendência, o evento traz diagnósticos sobre a arte desse grupo. O seu
interesse maior foi relatar a produção desses artistas independentemente de sua
orientação estética. Desse modo, essa exposição possui forte caráter documental e
histórico. Todavia, a qualidade da produção apresentada chama atenção e cada artista
cria conexões novas e inusitadas com seus parceiros, possibilitando leituras variadas.

52
Segundo dados do MAM de São Paulo, “o público foi dividido em estudantil: 920; turismetrô: 150;
visitantes: 1420. Na presente relação não estão incluídas: as presenças na noite de vernissage; o número de
pessoas da FUNDACAM (Fundação Nacional de Cultura Negra e Mesc. Brasileira)”.
53
Cabe lembrar a citação direta à exposição A mão do povo brasileiro (1969), de Lina Bo Bardi, realizada
também no MAN de São Paulo. Assim, a exposição de Araujo cria um diálogo evidente com a proposta de
Lina Bo Bardi de quase vinte anos antes.

106
Na publicação de mesmo nome da exposição, o prefácio de Joel Rufino dos Santos
(1988) aponta para três problemas ao nos direcionarmos para o estudo da história visual
dos negros brasileiros: primeiro, julgar uma obra artística depende da autoridade social
da pessoa ou do grupo; segundo, a dificuldade de identificação de personagens negras
relevantes em nossa história; terceiro, a necessidade de reescrita da história fora da
perspectiva dominante. Como diz o próprio autor: “(...) Cultura é o que os cultos dizem
ser cultura, não passando tudo o mais de folclore” (SANTOS, 1988, p. 7).
Sobre a primeira questão, no século XIX, a qualidade da obra de arte era medida
segundo padrões acadêmicos. Aspectos como anatomia, claro e escuro, composição,
perspectiva, verossimilhança, dentre outros, são métodos de pensamento oriundos de
uma cultura (européia) e classe social que compartilham desses mesmos valores. As
peças analisadas por Nina Rodrigues (1904), por outro lado, estão nitidamente
vinculadas a uma orientação estética africana. Para o período, essas peças (então em
posse da polícia de Alagoas) são objetos sem valor, pertencendo, se muito, à ciência –
como pretendeu o próprio pesquisador baiano54. Essa crítica (seja ela da academia ou, no
caso de Rodrigues, de uma elite intelectual), assim, não compreendia ao todo seu objeto.
Passamos para a segunda questão, a autoria negra na história brasileira. É fato que
a escravidão moldou grande parte da história do Brasil e afetou a nossa visão sobre uma
faculdade essencial da vida em sociedade: o trabalho. No Brasil colonial, o trabalho é
uma tarefa de negros e mulatos escravizados. O trabalho é considerado não digno por
causa do escravo, e este é considerado inferior por causa do seu ofício. Sendo o trabalho
comum desqualificado como uma tarefa de escravos, não é de se estranhar que tal
preconceito recaísse também sobre o trabalho artístico. Se o trabalho artístico não era
uma função de relevância, pensar na autoria desses artistas negros e mulatos torna-se
ainda mais difícil. É importante salientar que a idéia de autoria diz respeito a uma outra
noção de trabalho em que o prestígio e reconhecimento é parte relevante, o que é
incompatível com a idéia de trabalho dentro de um sistema de escravidão.

54
Pertencente a essa exposição, vale atentar para a pintura de Domingos Teodoro de Ramos, O cabo Chico
Diabo do diabo Chico deu cabo (1908). O quadro é uma representação sobre a Guerra do Paraguai,
figurando a vitória brasileira pelas mãos de um negro. Essa foi a única obra do artista que restou da
destruição e descaso. Grande parte da arte nacional foi relegada ao esquecimento por questões diversas
independentemente de sua autoria. Todavia, as classes pobres e negras são provavelmente as que mais
sofreram com tal ação. Desprovida de discurso que possa legitimar sua produção, bem como de
mecanismos para introduzi-la em locais de prestígio, essa arte se tornou objeto dos dispositivos críticos do
grupo dominante.

107
No final do século XIX, Luis Estrada Gonzaga-Duque já descrevia que:

(...) sendo as profissões letradas as que maior interesse despertam ao brasileiro, é claro
que a arte, considerada até há pouco tempo um desprezível ofício de negros e mulatos,
medava em país onde não estão ainda desenvolvidos os luxos e o bom gosto, ficasse
destinada as classes pobres, aquelas que não podiam educar convenientemente seus
filhos para fazê-los entrar nas academias (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p.
261).

A terceira questão de Joel Rufino dos Santos aborda a criação de uma nova história
do negro no Brasil. Fortalecer ou mesmo criar essa história, cultura e arte se dá num
momento de revisão em que o passado não pode ser estático. Como o curador Araujo
afirma: “Tornou-se necessário revelar quem negro foi e quem negro é e, para um povo
emergindo do terrível estigma da escravidão, essa afirmação tem uma grande relevância”
55
. Longe de uma visão que limita a presença do negro apenas no Brasil colonial,
atomizando sua importância, Santos pretende situar o passado em uma nova perspectiva
frente ao presente. Esse tema passa, mais uma vez, pela noção de memória e de
reconhecimento do negro dentro de nossa sociedade. As artes plásticas, mostrando
concretamente a sua produção, contribuem sobremaneira para o objetivo de uma nova
memória e identidade.
Assim, buscando compreender toda a história do negro no Brasil a fim de refazê-la,
a exposição e publicação A Mão Afro-brasileira adquire uma conotação extremamente
enciclopédica. Revisitando personagens e temas do século XVIII até o XX, a
preocupação dessa mostra foi resgatar, materialmente, um conhecimento submerso. A
exposição foi dividida em quatro áreas: 1. O barroco e o rococó; 2. O século XIX – A
academia e os acadêmicos; 3. A herança africana e as artes de origem popular; 4. Arte
contemporânea. Como esses títulos sugerem, ela parece ser uma tentativa inicial em
compreender a história da arte de autoria negra no decorrer de largo período histórico.
Mesmo quando a produção de um artista negro não possui relação imediata com
sua origem étnico-racial (como alguns desenhos de Octavio Araujo), a sua presença
estava marcada nessa exposição. A tentativa da exposição é demonstrar a diversidade de
experiências dentro desse grupo. Se em alguns casos isso pode ser visto como alienação

55
No original, “it became necessary to reveal who blacks were and who blacks are and, for a people
emerging from the terrible stigma of slavery, why this affirmation had such great relevance” (tradução
nossa) (Emanoel Araujo apud BRAZIL: BODY & SOUL, 2001, p. 1).

108
de sua origem étnico-racial, em outros pode mostrar como esses artistas pensam diversos
problemas ao seu redor, inseridos como estão em um outro contexto.
Uma exposição de artistas negros, à primeira vista, pode recair em esteriótipos
sobre a iconografia mais recorrente da arte da África mostrada no ocidente. No entanto,
embora grande parte das obras tenha mostrado proximidades com a estilística africana
tradicional, a variação e orientação estética de cada artista é marcante. Vale citar uma
nota sobre essa característica:

(...) os que esperavam encontrar signos baseados nos símbolos do candomblé e da


macumba, ou vestígios dos desenhos tribais africanos, ficarão decepcionados. Estas
marcas estão na exposição, mas não se constituem no motivo da exposição. Ao contrário,
é uma mostra organizada contra todos os preconceitos, pois reconhece o direito do artista
e do intelectual de organizar, estruturar e imaginar a sua produção a partir de sua
problemática pessoal. E está é determinada apenas por ele mesmo. Não existe um
catálogo de questões negras que torne obrigatório determinados temas (J. K., 1988).

Na contemporaneidade, um modelo artístico, um “catálogo de questões”, parece


não ditar a forma da arte de um artista. A arte, assim como a experiência cultural, é um
campo onde a experimentação e intercâmbio de experiências é ponto fundamental para
sua sobrevivência. Essa atividade, entretanto, nem por isso está isenta de ser atingida por
problemas de ordem política e ideológica. Em outras palavras, a liberdade do artista
esbarra em pormenores que podem minar sua escolha.
Se é certo que um artista negro pode escolher a orientação estética que melhor se
adaptar, também é verdade que problemas históricos e sociais agem em sua escolha.
Desse modo, realizar uma pintura sobre óleo pode ser mais promissor do que realizar
esculturas de madeira comumente chamadas de fetiche séculos atrás. Cada um desses
objetos possui uma área de circulação e exposição própria, nem sempre condizente com
os mesmos interesses do seu entorno.
Uma outra crítica sobre a exposição de 1988 aborda o problema sob outro ângulo:

O critério para a escolha dos artistas, como admite Araujo, não está ligado às
preocupações estéticas dos autores de buscar uma linguagem própria, calçada na
ancestralidade africana, mas apenas na cor da pele dos pesquisados. Se por um lado a
opção é importante para arrancar da penumbra artistas desconhecidos, como o excelente
Francisco Pedro do Amaral, autor do quadro mais famoso da marquesa de Santos,
batizado Retrato de Dona Domitila, por outro demonstra a dominação cultural a que
foram submetidos os negros, principalmente a partir do século XIX, obrigados a
reproduzir os cânones europeus. Essa submissão ao pensamento “branco” está presente
em toda a mostra, seja nas obras da academia do século passado, seja na produção

109
contemporânea, de modo a deixar pouco espaço para que se perceba a verdadeira “mão
afro-brasileira” nas obras expostas (grifo nosso) (BARREIRA, p. 140, 1988).

A partir do descrito, resta analisar o significado da afirmação “submissão ao


pensamento “branco”. Submeter é render, anular. É permitir a dominação e a aceitação
da situação de subalternidade. De certo modo é possível constatar que dentro dessa
lógica há uma possibilidade de escolha em aceitar ou não o estado de submissão ao
“cânone europeu”. Ora, esse conceito de submissão parece não descrever com nitidez
qual o sentido da dominação no Brasil colonial.
O “cânone europeu” não é alternativa a ser escolhida. Muito pelo contrário, ele se
apresenta como único vetor possível dentro do conjunto de normas que compõem aquela
época. Essas normas não são impostas, não são enunciados diretos. Elas constituem-se
como um sistema de significados, de verdades, que dificilmente permite fuga. Assim, o
artista negro não escolhe conscientemente por modelos de produção artística, mas “deve”
operar dentro desse modelo. Comentando as exposições de Araujo e seus artistas, Maria
Lucia Montes diz que:

A partir daí há uma série de outras questões a respeito da história da arte, dos estilos.
Como definir isso? Quem são essas pessoas? É preciso ter muito clara essa perspectiva
histórica na cabeça. E através da história e da produção plástica desses artistas acabamos
entendendo inclusive por que o Brasil é um país racista do jeito que é. Você pega o
Estevão Silva. Ele tinha condição de pintar qualquer coisa que o identificasse enquanto
identidade étnica? Não tinha. Em compensação, se notamos o Athaíde, branco, vemos
aqueles mulatos lá, que são filhos dele. Não há só o contato, tem uma mistura muito
grande. Não dá muito para separar o que é negro e o que é branco na cultura brasileira.
E, no entanto, há uma hierarquia muito nítida. A ponto de, se deu certo, deixou de ser
negro. Naturalmente assume que é branco. Na verdade o Athaíde tem legitimidade para
representar o negro, embora não seja negro e, provavelmente, porque não é negro. Se
fosse negro ele não teria jamais essa liberdade (MONTES, 2008).

Para esses artistas negros da academia do século XX, não se submeter ao “cânone
europeu” significa se excluir de um conjunto de valores e normas de acesso aos
benefícios do topo de uma sociedade. É retirar-se dos signos que representam a
civilização e direcionar-se para a “barbárie”, que era a arte de negros e índios,
pertencendo a um circuito menos prestigiado. Não é por menos que as esculturas
estudadas por Nina Rodrigues (1904) faziam parte de um acervo policial. Isso demonstra
que essa produção estava muito longe de pertencer ao discurso erudito sobre as artes
plásticas. Pela sua orientação estética ela não poderia ser considerada arte, mas apenas
objeto do domínio da ciência ou do acervo policial.

110
Esse discurso depreciativo sobre as artes de negros e índios somente começa a se
alterar em meados do século XX. Mesmo assim, é possível dizer que essa aceitação
nunca foi completa no museu de arte. Dessa forma, o debate sobre os critérios utilizados
para apresentar essa arte em museus é ainda complexo, mostrando os limites do discurso
da crítica de arte para compreender o fenômeno estético para além dos muros eruditos.
Em 1988, a exposição A mão afro-brasileira do curador baiano mostrou algumas
características que o acompanham até hoje. A atenção sobre a autoria do artista negro, a
construção de uma história da arte focada na produção de arte afro-brasileira e a
efetivação disso no ato expositivo parece ser a maior conquista do seu trabalho nesse
momento. Reunindo os seus esforços numa mostra ambiciosa, Araujo mostrou ao
público a sua visão sobre a arte e cultura dos grupos negros. Além disso, ele pretendeu
pensar a produção de artistas negros em grande parte desconhecidos do público. A
concretude de sua coleção, exposta na mostra, trouxe para o universo do museu uma
outra perspectiva sobre arte e cultura afro-brasileiras fora dos conceitos ocidentais e
científicos sobre esse grupo.

Vozes da Diáspora

A exposição Vozes da Diáspora (de 26 de novembro de 1992 a 20 de janeiro de


1993), mais focada nas artes plásticas, foi dividida em diversas partes: 1. Os pintores do
século XIX; 2. Altares emblemáticos de Rubem Valentim; 3. Brasil África Brasil – mostra
homenagem aos 90 anos do fotógrafo e etnólogo Pierre Verger; 4. Arte ritual do
candomblé; e 5. O inconsciente revelado (mostra sobre a obra do escultor Agnaldo
Manoel dos Santos).
Emanoel Araujo, então diretor da Pinacoteca do Estado, foi um dos curadores
dessa exposição junto com José Teixeira Leite, Olivio Tavares de Araujo, entre outros.
Cabe prestar atenção nos artistas da exposição como os pintores negros da academia do
século XIX, o pintor e escultor Rubem Valentim e o escultor Agnaldo Manuel dos
Santos. Ao agrupar esses artistas, Araujo cria uma narrativa sobre a arte de procedência
negra no Brasil. Não sendo homogêneas, o que chama atenção em cada uma dessas
experiências artísticas são justamente as diferenças. A mostra também homenageou o

111
artista e antropólogo Pierre Verger (renomado estudioso da religião e da diáspora negra
no mundo).
Se antes o foco era a autoria negra, essa exposição se constituiu mais como a
tentativa de compreender uma produção de arte afro-brasileira, preocupada com a forma
e contexto da experiência negra no Brasil. Vale observar as diferenças e meandros desses
trabalhos.
É certo que cada um desses artistas traz problemas próprios advindos de seu
momento histórico e social. As possibilidades experimentadas por cada um deles é
também fruto de sua sociedade, sendo dificilmente realizável em outro momento e local.
O nosso objetivo, todavia, prossegue em tentar compreender como esses dilemas podem
ser estudados na mostra de Araujo. Ao fixar lado a lado essas obras no museu, o
problema contextual é parcialmente anulado, deixando a leitura dessas obras ainda mais
próximas. O ato expositivo não exclui o conhecimento do momento histórico da obra,
mas altera a sua percepção, fazendo com que a obra seja percebida em uma narrativa
específica.
Desse modo, reduzindo parcialmente o contexto histórico e focando a forma,
podemos supor as diferentes estratégias de criação de uma iconografia pessoal em alguns
artistas.
Entre os artistas da academia do século XIX nos deparamos com diversas
orientações. Embora a Academia Imperial de Belas Artes tenha se tornado um bloco
homogêneo para a crítica dos modernistas da década de 1920, houveram diferentes
experiências para diferentes objetivos dentro dessa mesma escola. Por exemplo, se o uso
da linha e da composição está muito bem representado na virtuosidade de Estevão
Roberto Silva (1845-1891), no caso de João Timótheo da Costa (1879-1932), o interesse
pela cor ambiente e pelos fenômenos da luz, tema próprio do impressionismo, é mais
pungente.
João Timótheo procurou conhecer os segredos da representação pela luz e
semelhança, não fornecendo muitos dados sobre um pensamento a respeito do negro no
Brasil. Ele está voltado para a apreensão de um estilo pessoal que o distinga, fortemente
baseado nas correntes impressionistas e expressionistas que conheceu de perto na
Europa.

112
Não pretendemos inferir que João Timótheo ausentou-se de pensar em sua
singularidade étnico-racial dentro da academia. Afirmar esse fato depende de um estudo
mais aprofundado da obra do artista. Em todo caso, parece-nos que o principal interesse
desse artista foi compreender e apropriar-se da técnica da pintura em sua mais alta
instância. José Roberto Teixeira Leite, comentando o trabalho dos artistas negros
acadêmicos dessa exposição, revela que eles

(...) não deixam entrever, através de suas obras, qualquer traço, ainda que remoto, de
suas raízes africanas, de sua ancestralidade, como inclusive parecem repudiá-las, ou ao
menos cuidadosamente disfarçá-las, ao adotarem como meio expressivo, a pintura; como
técnica, a boa cozinha pictórica (José Roberto Teixeira Leite apud VOZES DA
DIÁSPORA, 1992, p. 5).

O pesquisador apenas exclui dessa perspectiva a obra de Estevão Roberto da


Silva, apoiando-se na análise de Luis Gonzaga-Duque Estrada sobre o pintor negro.
Como pudemos mostrar anteriormente, não nos parece que a crítica de Gonzaga-Duque,
relacionando expressão artística e condição étnico-racial, seja adequada para
compreender esse artista acadêmico. A crítica deste traz ainda resquícios deterministas e
evolucionistas sobre a obra de Estevão Roberto da Silva.
Por outro lado, se a forma de todos esses pintores já estava em grande parte
comprometida com uma orientação estética européia, talvez seja pertinente observar as
pinturas de personagens negros de Arthur Timótheo da Costa. Ao que parece, embora
não sejam muitas pinturas, esse pode ter sido um indício e tentativa de Arthur Timótheo
em se aproximar de sua condição étnico-racial em uma sociedade que negava a todo
momento essa possibilidade.
Por sua vez, a representação de Rubem Valentim (1922-1991) traz à tona signos
de uma religiosidade afro-brasileira. O artista utilizou a sua experiência ocidental para
criar uma visualidade comprometida e afro-brasileira. Olivio Tavares de Araujo,
comentando a obra do pintor, mostra que “às raízes nacionais e o universo
deliberadamente circunscrito, residem, em Valentim, no recurso à signos das religiões
afro-brasileiras, especialmente o candomblé, às chamadas ferramentas do culto, às
estruturas dos altares, aos símbolos dos deuses, etc., que ele transpõe para seu próprio
campo de trabalho erudito”. Em continuidade a esse comentário, destacando o seu
contexto na história da arte, o crítico diz que “Valentim é, evidentemente, um artista
construtivista, em quem a ordem e a estrutura predominam sobre qualquer impulso

113
emocional de superfície, sendo a organização do espaço a regra essencial” (Olivio
Tavares de Araujo apud VOZES DA DIÁSPORA, 1992, p. 12).
Em relação à obra do artista Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962), é possível
notar que a escultura deste guarda conexões com obras tradicionais da África. O jovem
escultor criou um imaginário que chamou a atenção de diversos críticos no Brasil
(Francisco de Castro Ramos Neto, 1994; Clarival do Prado Valladares, 1988, 2004, etc.).
Alguns desses críticos usaram o conceito de ancestralidade para situar essa
proximidade com uma produção africana. Como vimos, o termo ancestralidade parece
dizer respeito a um conhecimento inato, quase instintivo. Não é exatamente isso que
constatamos ao estudar sua biografia. Agnaldo foi aprendiz do mestre Biquira Guarany,
escultor de carrancas para barcos no rio São Francisco. As carrancas de Guarany, embora
não sejam propriamente africanas, registram algo próprio dessa cultura artística56.
Apesar de ser um artista popular, Agnaldo tinha contato com artistas experientes
(ele também trabalhou com Mario Cravo Jr.). O escultor talvez compreendesse que sua
arte era diversa do cânone europeu presente na academia e nos meios eruditos. A arte de
Agnaldo, assim, longe de ser um simples sentimento de atavismo, é a compreensão do
significado de uma forma e o seu uso efetivo na contemporaneidade.
Comparando outros artistas, observamos que os caminhos de Agnaldo Manoel
dos Santos e de Rubem Valentim são semelhantes e também divergentes. O foco no
estudo de uma iconografia afro-brasileira é um fenômeno de afinidade entre ambos. Por
outro lado, a divergência se deve à forma de apropriação dos elementos necessários para
a criação dessa iconografia.
Se Agnaldo nutre-se de uma iconografia ligada à escultura popular com indícios
da experiência africana, Valentim explora outro percurso. Este abstrai das correntes

56
Tal problema nos remete a pensar como os negros no Brasil apreenderam e preservaram sua cultura
material. Os africanos escravizados, em geral, vieram desprovidos de bens materiais. Para esses, somente
restava seu corpo. Todavia, a sua cultura não estava apenas em seus pertences, mas em sua memória. Os
negros africanos ao chegarem ao Brasil traziam o seu conhecimento a respeito da metalurgia, lavoura, caça
e também sobre a criação de esculturas e obras de arte. Embora os objetos artísticos africanos no Brasil
colonial fossem tratados como fetiches, isso não impediu que seu aprendizado, clandestino, continuasse
nos terreiros de candomblé. Do mesmo modo, o ensino dessa técnica podia ser realizado, de modo não
sistematizado, por aprendizes autodidatas em contato com exemplos dessa espécie de arte. Este era um
aprendizado paciente e constante tanto do olhar como também da prática de esculpir. Recorrer ao conceito
de “ancestralidade atávica”, presente também no catálogo da exposição por um autor desconhecido (apud
PARA NUNCA ESQUECER, 2002, p. 242), portanto, talvez não defina com precisão essa experiência,
que é cultural e não biológica.

114
internacionais da arte os seus elementos para reutilizá-los dentro de uma visualidade
pessoal sobre os signos do candomblé. São dois percursos diferentes, reflexos da
experiência de cada artista, que também se refletem na crítica sobre eles. Enquanto a
crítica de arte se refere a Valentim como um artista erudito que domina a forma em seu
momento mais vanguardista, o concretismo, no caso de Agnaldo, as definições de artista
ingênuo e “instintivo” são recorrentes.
Por fim, a mostra Vozes da Diáspora, não se atendo apenas à ascendência negra,
preocupou-se em mostrar a produção de artistas que trabalharam de diversas formas
temas relacionados a uma visualidade de arte afro-brasileira. Como podemos perceber
pelo tema de cada exposição, Araujo parece tentar realizar um esboço a respeito das
diversas facetas do negro na arte no Brasil.

Os Herdeiros da Noite – Fragmentos do imaginário negro

A exposição Herdeiros da Noite – Fragmentos do Imaginário Negro (de 3 de


dezembro a 15 de janeiro de 1995, Pinacoteca) foi realizada em São Paulo, Belo
Horizonte e Brasília. Assim como cita o título da exposição, “fragmento” é parte de algo
maior, que se imagina completo, inteiro. O fragmento está para o todo assim como o
todo é o conjunto de suas partes. Como um quebra-cabeça de peças cambiáveis, a cada
momento podemos construir uma nova imagem dessa completude. Como diz Lilia
Schwarcz sobre a exposição: “o passe de mágica é mostrar que fazemos parte de um
universo cultural que, nos transcende, é miscigenado, e impõe inesperados ganchos entre
culturas que ora parecem distantes, ora surgem bem ao nosso lado” (sic) (grifo nosso)
(1995, p. 37).
A miscigenação cultural a qual se refere Schwarcz é justamente a capacidade de
alterar as peças do jogo sempre que for preciso. Assim, pela exposição Herdeiros da
Noite, somos convidados a comparar, analisar, questionar e apreciar o quanto a
concretude dessas partes nos diz sobre a cultura e arte afro-brasileiras.
Presentes na exposição, os santos chamados de Nó de Pinho do interior de São
Paulo trazem marcas desse percurso repleto de sobreposições. Objetos feitos por negros
nos séculos XVIII e XIX, embora tenham uma iconografia católica, sua feitura está
imbuída de gestos próprios da técnica de escultura africana. Se a figura representada é

115
parte do imaginário católico, a forma de representação dessa é em grande medida afro-
brasileira. Essa representação mostra, evidentemente, o quanto de novos atributos
africanos recaem sobre uma figura, a princípio, ocidental, modificando também o seu
sentido como um todo. Como afirma Francisco de Castro Ramos Neto sobre esses
objetos, “a redução esquematiza drasticamente a figura esculpida, normalmente
geometrizando-a. Tais atributos estéticos ocorrem em ambas as expressões artísticas, na
africana como nesta singular imaginária paulista” (apud OS HERDEIROS DA NOITE,
1994, p. 53).
Cabe ressaltar que o discurso sobre mestiçagem cultural citado por Schwarcz,
todavia, dentro da exposição, não impede a sua compreensão enquanto território de
conflito. Nesse sentido, a apresentação de Maria Lucia Montes no catálogo da mostra
Herdeiros da Noite exacerba a necessidade de compreensão e reconhecimento não
apenas da cultura afro-brasileira, mas também de seus indivíduos no plano político:

Está é, sem dúvida, uma arte marcada pela dor e a humilhação inominável do passado de
escravidão do negro no Brasil. Mas é também uma arte que mostra a força dessas
culturas africanas, que se dissimula e permanece, desapercebida, na insignificância dos
gestos quotidianos, da vestimenta, dos hábitos alimentares ou da linguagem do afeto,
assim como na gratuidade da festa, da devoção ou da simples criação de algo que é belo
(...) (Maria Lucia Montes apud ARAUJO, 1995, p. 12).

De modo semelhante, a fala de Araujo revela tanto o sincretismo quanto a


violência intrínseca desse processo histórico: “A absorção, complexa, desde os tempos
mais remotos, da cultura africana pelas sociedades escravistas; uma absorção que, de tão
antiga, nem mais é percebida; uma cultura que, contornando os mais opressores
obstáculos, poude continuar resistindo, existindo e se renovando continuamente” (sic)
(grifo nosso) (apud OS HERDEIROS DA NOITE, 1995, p. 13).
A afirmação das diversas polaridades culturais brasileiras, que são também
sociais, em divergência com a visão unificadora da mestiçagem, pode ser constatada em
Wilson do Nascimento Barbosa quando este aborda a cultura: “(...) sabe-se que não
existem culturas miscigenadas. O que há são culturas dominantes e dominadas, em que
os valores de umas são impostos por mecanismos institucionais sobre os valores das
outras. Nessas condições, a estrutura de poder define quais os valores ou rituais das
culturas dominadas que podem ser mantidos e a que custo” (grifo nosso) (2002, p. 47).
Esta perspectiva nega o sincretismo ou miscigenação cultural como resultado

116
harmonioso de culturas diversas; o vê como dinâmica de forças de poderes desnivelados
e em constante atrito.
Essa crítica política (“contornando os mais opressores obstáculos”) não está
somente na curadoria afro-brasileira de Araujo, mas é fomentada pelo próprio espaço que
ocupa, ou seja, o museu. A ação de exposição, sendo um ato destinado à esfera pública,
acaba por evidenciar esse conflito e debate.
Alguns dos destaques dessa mostra são as obras de Agnaldo Manoel dos Santos,
Nino, Maurino Araujo, Mestre Didi, Ronaldo Rego, Rubem Valentim, o próprio curador
Emanoel Araujo, Jorge dos Anjos, Hélio de Oliveira, Edval Ramosa, Genilson Soares e
Rosana Paulino. Se a composição geral da mostra tem artistas já recorrentes da curadoria
de Araujo, há também outros artistas novos que começam a trazer novas vertentes de
ação e investigação.
Dentre esses novos artistas, podemos citar a obra de Genilson Soares e Rosana
Paulino. Embora atuando sobre diversos suportes, essa parece ser uma das primeiras
mostras de Araujo em que vemos trabalhos contemporâneos usando o formato da
instalação. Esses suportes trazem outros problemas se comparados à forma de
representação da arte afro-brasileira da obra de Rubem Valentim e Agnaldo Manoel dos
Santos, muito mais focada na iconografia e técnica de trabalho (próximo do universo
africano). Os artistas Soares e Paulino não se utilizam de uma iconografia e estrutura
formal que remeta à experiência africana no Brasil. Essa diferença, entretanto, não os
afasta de propor conexões artísticas sobre a realidade étnico-racial brasileira e de, até
mesmo, serem considerados como artistas afro-brasileiros. É dentro desse campo que
eles se inserem na exposição de Araujo.
A obra de Rosana Paulino feita com pequenas almofadas remetendo a patuás, com
antigas fotos em preto e branco retocadas com cor, revela um passado enigmático. A
constituição desse passado apoiado em imagens anônimas, fugidias, mostra-se num
trabalho incessante de aproximação em direção a uma história desconhecida. As
pequenas almofadas, macias, costuradas pela artista, dispostas lado a lado, tentam criar
uma genealogia de pertencimento que não é mais possível solucionar. Essa iconografia é
factível somente como ficção. Além disso, as imagens, que se repetem, sugerem a
possibilidade de câmbio a cada mostra. A mudança de sua ordem pode reordenar essa
mesma genealogia e narrativa (Imagem 2.5).

117
Rosana Paulino se apropriou dos métodos da arte – erudita e ocidental – para
analisar a imagem contemporânea sobre o negro no Brasil. Desse modo, a artista
demonstra que não é apenas incorporando a forma e iconografia de arte afro-brasileira,
como fez Rubem Valentim e Agnaldo Manoel dos Santos, dentre outros, que podemos
formular problemas sobre o universo do negro no Brasil. A artista apresenta outra
possibilidade dentro da narrativa de arte afro-brasileira de Araujo.
A instalação de Soares (sem título – da série Orum, Aiyé, Espaços e Interstícios)
remete a signos ambíguos. Inicialmente, a imagem de uma nuvem azul, fixada na parede,
é própria de desenhos estilizados da cultura de massa. A imagem circular no chão é mais
emblemática e misteriosa. Entre ambas, há uma seta retilínea (de madeira ou metal) que
toca cada superfície. O título da obra cita o Orum (do ioruba, significa “morada dos
orixás”); e o Aiyé (“o local dos homens”). A nuvem pode remeter ao Orum, por sua vez,
o Aiyé seria a figura que ocupa o chão, o território dos homens. Esse é um entendimento
possível que, todavia, revela uma forma ocidental de atribuição de valores e significados.
O candomblé não distingue a separação entre céu e terra como na religião cristã;
acontece até mesmo o contrário. Durante o ritual, seus adeptos se voltam à terra
(deitando sobre o solo) em sinal de reverência aos seus ancestrais. A divisão entre o
Orum e o Aiyé, assim, se dá no plano horizontal e terreno. Por outro lado, a imagem
estilizada da nuvem azul de Soares brinca com ícones jocosos, um flerte entre universos
díspares – a religião do candomblé e a cultura de massa.
A religião é um fenômeno presente nas obras de vários artistas da exposição. Dois
deles, Mestre Didi e Rubem Valentim, apresentam uma produção muito próxima dessa
manifestação, embora tenham caminhos distintos57.
A obra de Rubem Valentim nutre-se do candomblé como fonte de signos para seu
trabalho. O artista desconstrói e constrói uma estrutura de significados entre a história da
arte e a religião. A intenção de Valentim é reordenar esse conteúdo num espaço
destinado à contemplação em grande parte estética – o museu de arte. Como artista, é
conhecedor dos mecanismos e dispositivos que compõem o sistema da arte. Seu objetivo
é adentrar esse espaço, inserindo algo que não é próprio do museu – a visualidade do
candomblé. O uso dos signos sagrados do candomblé em Rubem Valentim é a tentativa
do artista em compreender, num processo pessoal, plasticamente esse universo.

57
Os artistas Emanoel Araujo, Ronaldo Rego e Jorge dos Anjos também participam da exposição com
obras influenciadas pelo candomblé.

118
Mestre Didi (1917-) é um artista oriundo do terreiro de candomblé. Primeiramente,
suas peças não são destinadas ao museu, mas ao espaço de culto dos orixás. Por um
processo de desvio e devido à pertinência estética dessas peças, o museu acaba
apropriando-se de sua arte. Para o artista, a criação está pautada na continuidade de uma
forma de representação litúrgica. A qualidade da produção de Mestre Didi denuncia sua
habilidade em criar e recriar signos. Mesmo sendo obras inspiradas na liturgia, elas se
apresentam como objetos promissores para o museu. A complexidade da obra de Mestre
Didi também foi analisada por Juana Elbein dos Santos, afirmando que nessa produção
“o conceito estético é utilitário e dinâmico. O belo não é concebido como um mero
prazer estético, mas participa de todo um sistema. Os objetos tem uma finalidade e uma
função” (sic) (apud OS HERDEIROS DA NOITE 1995, p. 58, 59).
Se pensarmos na definição de arte afro-brasileira proposta por Mariano Carneiro da
Cunha (1983), Rubem Valentim é o artista erudito que utiliza sistematicamente a
iconografia do candomblé em sua obra; já o caso de Mestre Didi diz respeito ao artista
que faz parte da liturgia do culto, é um artista ritual de arte afro-brasileira.
A obra desses artistas recorre à religião como elemento de criação e recriação de
significados para a arte afro-brasileira. Dentre as manifestações que acompanharam os
africanos em sua travessia pelo Atlântico, a religião obteve relevância. Espalhados em
diferentes formas em todo território americano, o Candomblé, o Tambor de Mina,
Xangô, Vodu e a Santeria, dentre outras manifestações, atestam essa continuidade e
recriação de uma cosmogonia de origem na África. Sabendo dessa permanência, esses
artistas parecem refugiar-se nessa fonte como uma possibilidade de encontrar e organizar
uma experiência plástica relevante de significados à arte afro-brasileira.
Essa mostra trouxe para primeiro plano questões sobre diversidade de suportes e
contemporaneidade para o pensamento do curador. Ao incluir esses novos formatos, o
curador mostrou ser possível pensar em problemas da representação e presença do negro
nas artes plásticas do Brasil para um patamar diferente do analisado até então por alguns
estudiosos.

119
Negro de Corpo e Alma

A mostra Negro de Corpo e Alma (2000), realizada no Parque do Ibirapuera,


Pavilhão Manoel da Nóbrega (mesmo espaço hoje ocupado pelo Museu Afro Brasil), faz
parte do evento maior chamado A Mostra do Redescobrimento, em comemoração aos
500 anos de “descobrimento” do País.
Ao que parece, a realização da mostra Negro de Corpo e Alma foi a concretização
de um projeto antigo do curador. A intenção de realizar essa exposição parece ter seus
primeiros indícios quando, já em início dos anos de 1990, o então curador da Pinacoteca
de São Paulo ambicionava criar um centro de memória sobre a arte, cultura e história do
negro no Brasil. Essa tentativa, de criação do Museu do Imaginário do Povo Brasileiro
foi interrompida antes de se tornar realidade58. Essa exposição parece ter sido a
confluência do esforço de Araujo e de uma grande equipe objetivando tornar visível esta
coleção sobre a visualidade afro-brasileira. Por sua vez, esse esforço desembocou, anos
mais tarde, na utilização desse mesmo espaço pelo Museu Afro Brasil.
Sobre o interesse da curadoria em relação a Negro de Corpo e Alma, como
descreve o próprio Araujo, vale citar o quadro O retrato do Marinheiro Simão, de José
Correia Lima (1814-1857). Como podemos notar, essa figura revela uma outra faceta da
representação do negro em fins do século XIX. Não há a imagem do negro escravo ou
exótico, mas a de um homem em sua inteira humanidade. Esta característica é negada ao
negro na maior parte das imagens produzidas no período. Em seu lugar temos imagens
recorrentes de negros e africanos escravizados, mais objetos do que homens59.
Partindo dessa preocupação, o estudo da representação do negro na arte brasileira
pode ser percebido nas três vertentes da exposição: Olhar o Corpo, Olhar a Si Mesmo e

58
Oswaldo Camargo: “fui conselheiro do Museu do Imaginário que deveria ter acontecido nesse local
onde nós estamos (Estação Pinacoteca), fato que participei durante 8 meses e que não gorou, vejo que
muito do que acontece no Museu Afro Brasil já estava ali contido. Ele [Emanoel Araujo] retrabalhou muita
coisa. Absorveu, aumentou, ampliou. Eu considero o Museu Afro Brasil fruto de toda essa experiência do
Emanoel” (CAMARGO, 2008).
59
Comparando duas obras nesse período, o texto de Araujo analisa que “na Academia Imperial de Belas
Artes, todavia, duas obras chamam a atenção de modo especial, uma pela relativa raridade, outra pelo
caráter emblemático. A primeira é uma imagem de um líder abolicionista, o Retrato do Marinheiro Simão,
o Carvoeiro, de José Correia Lima (1814-1857), pouco comum para a época. A segunda, ao contrário, é o
famoso quadro a Redenção de Cam, do pintor Modesto Brocos, que representa de modo exemplar a
postura ideológica característica do pensamento social que se difunde a partir do século XIX, ao aludir de
forma alegórica ao branqueamento (...)” (Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 46).

120
Sentir a Alma. Essas maneiras de aproximação a esse conjunto de peças sobre o negro na
arte brasileira revela algumas formas de compreender sua presença.
Olhar o Corpo se refere a obras que se destinam a um modo de retratar o negro a
partir de estereótipos ocidentais. O princípio dessa visão parece exotizar a imagem do
negro. Esse, em quase tudo, é inverso ao homem ocidental. O universo africano e de seus
descendentes é de alteridade, exotismo e magia para os olhos europeus. Alguns dos
artistas presentes nessa vertente da exposição são desenhistas, gravuristas e fotógrafos
como José Conrado Roza, Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Carlos Julião, Thomas
Ender, Victor Frond, Joaquim Lopes de Barros, Marc Ferrez, Christiano Júnior, Gaensly,
entre outros.
Comentando os trabalhos de pintores estrangeiros nessa mostra, o curador descreve
que:

(...) as gravuras de Rugendas ou Debret (...) constroem imagens idílicas de negros, em


posturas serenas, contra o pano de fundo de uma paisagem exuberante, não são por isso
menos cruéis, recusando-lhes em nome de um olhar exotizador uma identidade ou um
lugar próprio na sociedade em que vivem (grifo nosso) (Emanoel Araujo apud NEGRO
DE CORPO E ALMA, 2000, p. 48).

Nesse mesmo sentido, Muniz Sodré em trabalho sobre a dinâmica cultural negra
afirma que:

(...) emerge daí uma semiótica da monstruosidade: para a consciência subjetiva,


epidianizada, o “afro” é um homem que a consciência eurocêntrica não consegue sentir
como plenamente humano; é, como o monstro, não desconhecido, mas um conhecido
que finalmente não se consegue perceber como idêntico à idéia universal de humano
(grifo nosso) (SODRÉ, 1988, p. 160).

Mesmo quando tratamos do Brasil, a proximidade de conceitos permanece.


Recorrendo ao período colonial, é possível dizer que o africano escravizado no Brasil é
um ser incompleto pela sua condição social. A condição de escravizado não permite que
ele seja totalmente para ele mesmo, mas somente em relação ao outro, seu senhor. Este
detém todos os predicados da ação do escravizado, faz com que o escravizado exista em
benefício do escravizador. Se o escravizado não possui direito sobre seu próprio corpo,
também não o detém sobre sua imagem. Toda a imagem do escravo passa a ser a imagem
do escravizador sobre o escravizado, do europeu sobre o africano, do branco sobre o

121
negro. Mesmo quando esses apresentam “imagens idílicas de negros”, o alheiamento é
um componente presente.
Olhar a Si Mesmo apresenta como o artista negro vê a sua própria imagem. Nesse
contexto, objetiva mostrar o negro a partir de sua experiência sobre o mundo e seus
pares. Em consonância com seu momento, a imagem do negro produzida sobre si se
baseia em muito na imagem que os brancos possuem sobre esses primeiros. Através da
história, impulsionada pela ciência européia, o conjunto de idéias que descreve os povos
africanos como “atrasados” e “bárbaros” se tornou uma “verdade” até mesmo para suas
vítimas: “(...) essas imagens refletem a dificuldade da construção de uma identidade
negra, sob o peso dos estereótipos criados pelo olhar do outro” (Emanoel Araujo apud
NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 49)60.
Em todo caso, isso não quer dizer que esses conceitos foram absorvidos
ingenuamente pelos grupos negros. A compreensão desses estereótipos e conceitos pode
ter servido dialeticamente para a construção de uma crítica mais profunda sobre o negro
e sua auto-representação. Era preciso conhecer e utilizar as ferramentas dominantes para
então superar esses mesmos mecanismos. O quadro de José Correa Lima e parte da
produção de Arthur Timótheo atestam esse argumento. Os principais artistas exibidos
nessa exposição foram Arthur Timótheo da Costa, Rafael Pinto Bandeira, Benedito José
Tobias, Mestre Athaíde, Antonio Francisco Lisboa, Mestre Valentim, José Teófilo de
Jesus, Militão Augusto de Azevedo, entre outros.
Sentir a Alma refere-se ao todo, tenta compreender a presença do negro na
produção artística brasileira a partir de diversos artistas. Essa área tratou de mostrar
como a experiência cultural afro-brasileira impregnou de marcas a arte brasileira erudita
e popular. Sendo um setor abrangente, ele mostrou como é possível compreender essa
cultura dentro do todo da arte nacional. Desse ponto de vista, cabe tanto parte dos artistas
negros acadêmicos como alguns dos modernistas e, finalmente, os artistas afro-
brasileiros contemporâneos.

60
Em epígrafes por diversas vezes repetidas nos catálogos de Araujo, vale lembrar o texto do poeta Cruz e
Souza em início do século XX: “Artista?! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longíngua região
desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs
rebelados, dessa flagelada África grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos,
tétricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nivarnizada pelo
desprezo do mundo, Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!” (Cruz e Souza
apud HERDEIROS DA NOITE, 1994, p. 7).

122
A seção Sentir a Alma é provavelmente a mais ambígua e complexa da mostra.
Nela, a demarcação de limites sobre um campo de atuação afro-brasileiro pode levar a
análises muito diversas sobre o significado de cada obra. Em todo caso, como o curador
afirma: “ao realizar esse percurso, propondo-se a explorar o significado de ser Negro de
Corpo e Alma no Brasil, a exposição pretende assim levantar alguns elementos que
permitam compreender o desafio da construção da identidade do negro no mundo
contemporâneo (...)” (Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p.
53).
Nessa mostra, foram expostas obras de Rugendas, Debret, Carlos Julião, Antonio
Diogo da Silva Parreiras, Pedro Américo de Figueiredo e Mello, José Teófilo de Jesus,
Frei Jesuino de Monte Carmelo, Aleijadinho, Mestre Valentim da Fonseca e Silva,
Estevão Roberto da Silva, Emmanuel Zamor, os irmãos Arthur e João Timótheo da
Costa, Giuseppe Pancetti, Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Lasar Segall, Alfredo
Volpi, Walter Firmo, Bauer Sá, Adenor Gondim e diversos artistas contemporâneos afro-
brasileiros.
Além disso, a mostra contou com objetos produzidos em série pela indústria de
massa. Mais do que simples objetos, esses são ícones que materializam um pensamento.
Eles concretizam na forma um arcabouço de idéias sobre o negro no Brasil e no ocidente.
Em sua maioria jocosas, essas pequenas peças ou trabalhos gráficos trazem não apenas
humor, mas sarcasmo. Emanoel Araujo diz ser essa “uma postura que reflete um juízo
pejorativo (...) encontra expressão também numa imensa produção de objetos cotidianos
consumidos em todos os tempos, onde o negro figura como fetiche, objeto destinado a
atrair boa fortuna ou portador de má sorte” (Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO
E ALMA, 2000, p. 46).
Dentre os artistas, vale citar o trabalho daqueles que se desenvolveram fora do
sistema de arte convencional erudito. A obra de Heitor dos Prazeres apresenta uma
experiência diversa desse modelo. Seja no uso das cores ou na organização do espaço
pictórico, vemos um modo distinto de construção dos elementos que constituem a sua
pintura. Essa construção do espaço pictórico – não pautado na perspectiva, mas em

123
linhas ortogonais, simétricas – não só demonstra a sua distância do pensamento clássico
da arte ocidental, como a possibilidade de pensar esse espaço fora de tal lógica61.
Um século antes e a arte de Heitor dos Prazeres não seria alvo da crítica de arte
especializada. Qual é o fato que permite a sua presença dentro de espaços privilegiados
da arte como a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1951? Ora, se a obra de
Heitor dos Prazeres pôde ser compreendida e aceita dentro do discurso oficial de arte, é
porque alargou-se a compreensão e juízo sobre essa arte. A qualidade da produção de
Heitor dos Prazeres não poderia ser compreendida sem esses pressupostos. Por outro
lado, não é somente a crítica de arte que realiza um movimento de aceitação dessa
produção. A força dessas pinturas, num período de revisão da cultura ocidental pelo
modernismo, propiciou a sua aceitação.
Cabe notar o movimento da curadoria sobre os artistas. Após a exposição A Mão
Afro-brasileira, o critério de artista negro não foi utilizado restritamente. A categoria de
autoria negra agora se cruza com o contexto e regularidade do trabalho. Tal fato é que
permite a compreensão de artistas como Carybé (Hector Julio Paride Bernabó) e Pierre
Verger dentre os artistas escolhidos. Para Araujo, essa presença não se deve ao
pertencimento racial a um grupo, mas no modo de trabalho preocupado em discutir a
representação étnico-racial do negro no Brasil. A obra de Carybé se realiza na
representação de um imaginário negro, por mais que seja filtrada por um artista
originalmente fora dessa cultura.
Diferentemente das outras exposições, não temos mais o foco na autoria negra ou
numa tentativa de realizar a análise de uma produção comprometida com signos étnico-
raciais. Esses conceitos são relevantes e estão na mostra inseridos em um contexto maior,
onde cabe o estudo da representação do negro em grande parte da história brasileira.

61
A organização do espaço pictórico dentro do diagrama da perspectiva teve seus primeiros prenúncios na
antiga Grécia, mas desenvolveu-se principalmente durante o renascimento italiano no século XV.
Condizente com os princípios humanistas que pensam o homem como centro do universo (assim como na
perspectiva é a visão pessoal que ordena o espaço), essa técnica pretendeu organizar o mundo a partir de
um método geométrico adepto das descobertas científicas do período. A experiência da perspectiva foi
uma descoberta tão profunda na cultura ocidental que perdurou até início do século XIX, quando os novos
princípios da arte moderna abalaram esse cânone. Os artistas europeus desse período, influenciados pelo
contato com obras não-ocidentais, passam a experimentar novas soluções.

124
Brasileiro, Brasileiros

A primeira exposição do Museu Afro Brasil, Brasileiro, Brasileiros (inaugurada


em novembro de 2004), se debruçou sobre diversas configurações da arte brasileira. Esse
evento aconteceu como marco inaugural do Museu Afro Brasil no Parque do Ibirapuera,
pavilhão Manoel da Nóbrega, no mesmo espaço ocupado quatro anos antes pela
exposição Negro de Corpo e Alma.
Essa exposição, por sua vez, não teve como único foco o estudo da cultura e arte
afro-brasileiras, mas sim a tentativa de compreensão da arte nacional como um todo.
Araujo parece pretender refazer uma leitura da arte e cultura nacionais pela cultura afro-
brasileira.
A análise do título Brasileiro, Brasileiros fornece dados sobre o propósito da
mostra. Pensar em unidade, Brasileiro é buscar um símbolo que contenha esse poder de
síntese – o mestiço. Ao mesmo tempo, Brasileiros pode remeter às diversas identidades
que o constituem. Não há uma relação de subordinação, mas de coordenação,
proximidade e diálogo. Por outro lado, o que é diálogo pode se tornar conflito.
Mestiçagem e diversidade de identidades, assim, são faces diferentes de um mesmo
objeto. São elementos que se implicam num mesmo jogo de tensões e trocas.
Esse debate sobre miscigenação aparece também nas obras expostas. Em meados
do século XX, Valladares já apontava que pensar na produção plástica afro-brasileira é
investigar os caminhos e contatos permanentes entre a estética de origem européia e a
africana. “A amplitude da mestiçagem das três raças no Brasil faz uma escala de valores
e atributos, manifestados também nas artes eruditas e populares, que poderíamos
identificar como caráter brasileiro” (Valladares apud NEGRO DE CORPO E ALMA,
2000, p. 448).Essa troca está marcada em obras de origem popular como também em
trabalhos eruditos.
No caso dessa mostra, talvez seja possível percorrer esse conceito em grande
parte dos objetos expostos. A obra de Glauco Rodrigues, Oxossi (1974), onde vemos
uma adepta do candomblé com as cores azul e verde desse orixá ao lado de São Jorge, é
parte direta desse imaginário. No mesmo sentido, a obra Macumba, de Arthur Bispo do
Rosário, entre o erudito e o popular, entre o excesso e a aglomeração de materiais, típica
de certos objetos afro-brasileiros (como os de Mestre Didi), pode ser um elo entre essas
experiências. Por outro lado, usando um formato mais contemporâneo, a obra de Farnese

125
de Andrade (Anunciação, 1982), utilizando-se de objetos barrocos em madeira e
reordenando isso na contemporaneidade, remete suavemente a esse contexto de
disparidades e sobreposições.
O método de crítica e, ambiguamente, elogio da nacionalidade é visível na
posição de Araujo: “Brasileiro, Brasileiros não é, portanto, tão-somente um resgate da
história multirracial e multicultural do Brasil. Brasileiro, Brasileiros é, primária e
basicamente, uma forma de legitimá-la, de rememorar para nós mesmos as nossas raízes,
de onde vêm as nossas fontes, que nos alimentam e nos tornam brasileiros (...)” (apud
BRASILEIRO, BRASILEIROS, 2004, p. 11). Num outro trecho, o mesmo cita que:

(...) no fim, esta exposição é uma grande trama consciente sobre esse grande substrato
inconsciente, cheia de subjetividades distintas, para falar do povo brasileiro. Cada
imagem, aqui representada, tem um extraordinário poder de persuadir os nossos
preconceitos, são inteiramente nossos, porque assim passivamente aceitamos o medo de
assumir o que sempre foi o nosso começo, uma nação mestiça (...) (grifo nosso) (apud
BRASILEIRO, BRASILEIROS, 2004, p. 10).

Reconhecer o Brasil como mestiço, nas palavras de Araujo, é mostrá-lo diverso e


conflituoso. Ao que parece, esses são os fatos que definem a sua identidade nacional. A
mestiçagem de Araujo não diminui ou camufla a condição desigual e de violência em
que vivem as diversas identidades em nosso território. Ela própria é conflito. Para ele, a
visão que pretende identificar o quão indígena, africano ou europeu há na sociedade
brasileira, exigindo o reconhecimento de cada um destes grupos separadamente, não é
oposta ao reconhecimento desta mesma sociedade como uma cultura miscigenada.
Estes apontamentos demonstram não apenas os sentidos da exposição Brasileiro,
Brasileiros e o que pode significar a identidade no Brasil, mas exibe a complexidade de
diversos pontos de vista dentro da sociedade brasileira. A mostra apresenta perspectivas
convergentes e divergentes que, em todo caso, não deixam de trazer mais sentidos e
significados à exposição, já que ela mesma se pretende propositora do debate a respeito
da identidade e/ou das identidades nacionais62.

62
Araujo parece tender a apresentar a convergência entre estes dois pontos: a mestiçagem como símbolo
nacional e a necessidade de reconhecer os componentes afro-brasileiros e indígenas em igualdade diante
das contribuições européias. Contudo, é importante realçar a diferença dessa mestiçagem com a de outros
estudiosos. Silvio Romero, por exemplo, reconhecia a contribuição do negro, mas a considerava de
relevância inferior ao colonizador português europeu. De cunho estritamente biológico, Romero via a
participação do negro e do índio, através da mestiçagem, somente como elemento adaptador do branco aos
trópicos (ROMERO, 2002, p. 15). Este conflito entre uma identidade nacional mestiça e as identidades

126
A mestiçagem de Araujo, que é reconhecimento das diversas culturas brasileiras,
talvez se aproxime do processo complexo descrito por Antônio Sergio Guimarães: “(...) a
nacionalidade brasileira, enquanto definição de identidade racial, se construiu no último
século no espaço de representação demarcado por três pólos raciais – o branco, o negro e
o índio –, se distanciando cuidadosamente de cada um deles, ainda que tomando-os como
referência, para a definição de uma mestiçagem singular (...)” (grifo nosso)
(GUIMARÃES, 2002, p. 124).
Em outros termos, há mestiçagem, mas não a mesma que víamos no passado
(diferente da fusão visando a uma nova “raça”, longe dos “primitivos”, apontada por
Luis Gonzaga-Duque Estrada). Essa mestiçagem, símbolo do mito nacional, é abalada
pelo reconhecimento das ascendências além do território nacional. Nesse processo
sinuoso, podemos constatar o estado de transitoriedade do conceito de mestiçagem como
identidade nacional. A complexidade do conceito de mestiçagem torna visível as
complicações da identidade brasileira neste século XXI. Como local de debate, a
exposição de Araujo manifesta este estado de inquietude.

específicas dos grupos negros, brancos e indígenas nos remete a duas formas de percepção distintas da
história brasileira. A primeira visão, adotada pelas elites dirigentes e por ampla parcela da população, tem
seus primeiros sinais nos relatos de viajantes do século XIX e ganha contornos definidos nos escritos de
Gilberto Freyre. Ela descreve a nação brasileira como resultado da miscigenação entre, principalmente, os
povos negros e brancos. A segunda abordagem, originária de movimentos negros modernos e de
intelectuais como Abdias do Nascimento, evidencia o racismo brasileiro como fator relevante, se não
central, da distância social entre negros e brancos, o que o faz aferroar “a preservação identitária (e
negação da mestiçagem) como forma de luta anti-racista e de auto-definição coletiva”(D´ADESKY, 2001,
p. 73). Eis a razão porque, em geral, os grupos negros criticam a definição de mestiço. Para esses, este
conceito intermediário coaduna com harmonia social, nega a diferença de status e prestígio social entre os
grupos brancos e negros, além de dividir aqueles que são discriminados por serem negros ou descendentes
destes. Em resumo, no primeiro caso, a mestiçagem é utilizada como identidade nacional e o princípio que
norteia uma suposta harmonia entre os grupos étnico-raciais brasileiros. No segundo, a mestiçagem é
denunciada como discurso camuflador da condição precária (no setor social, econômico e político) dos
afro-brasileiros diante dos grupos brancos. Cabe citar o próprio Araujo sobre essa questão: “A constituição
dessa sociedade luso-brasileira se construiu com uma idéia de democracia racial. Até a tese do Gilberto
Freyre, de embranquecimento, da união da cor, sempre teve uma complacência de um lado e do outro, uma
forma afetiva permissiva, e isso é num certo sentido o que a gente chama de brasilidade, este país mestiço
que ao mesmo tempo tem preconceito social misturado. Por outro lado, isso explica que não se tenha aqui
uma certa raiva, o que é bom e é ruim. Bom, porque isso forma um povo aparentemente amistoso, e ruim
porque amortece a reivindicação, que poderia ser mais coesa” (SÁ, 1998, p. 46).

127
Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade

A exposição Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade


(inaugurada em outubro de 2007 em comemoração aos três anos de atividades do Museu
Afro Brasil) focou apresentar diversos artistas contemporâneos do Benin em dois
espaços dessa instituição.
No piso inferior do Museu, a mostra apresentou as obras de Lambus Tagor,
Zinkpe, Tchif, Edwige Aplogan, ladis e Gerard Quenum. No térreo, estavam os artistas
Charles Placide, Alphonse Yemadge, Euloge Glélé, Cyprien Tokoudagba, Aston (que
estava anteriormente localizado no piso inferior) e Pierre Verger (único representante
não pertencente a esse país), além de esculturas e indumentárias.
A nossa descrição e análise sobre a exposição é focada principalmente em relação
a sua configuração espacial. Para isso, vamos nos basear na observação da disposição das
obras expostas. O nosso objetivo é conseguir através deste estudo uma compreensão
mais detalhada da montagem da mostra. Além disso, vale destacar a mesa-redonda
realizada com os artistas e o curador dessa exposição, procurando entender o contexto
desta.
A mostra localizada no piso inferior, por se apresentar num espaço aberto, era a
primeira a ser observada pelo visitante. Contendo pinturas, esculturas, indumentárias e
desenhos, ela revela certo contraste. A exposição no piso térreo, composta por
fotografias, esculturas e desenhos sobre painéis em fundo negro mostrou um traço mais
tradicional da cultura desse país (Imagem 6.2). A proximidade das fotos de Charles
Placide e Pierre Verger estabelecem uma comparação entre passado e presente (Imagem
6.3 e Imagem 6.4). Do mesmo modo, as imagens de antigos guerreiros em bronze (autor
desconhecido) defrontam-se com as imagens contemporâneas jocosas de Euloge Glélé
(Imagem 6.5 e Imagem 6.6).
O diálogo entre cada uma dessas obras faz parte do interesse maior da mostra:
evidenciar a contemporaneidade da arte produzida no Benin e, numa escala maior, em
toda a África. Embora a mostra seja composta por obras de arte antigas, estas parecem
existir somente na medida em que podem produzir um significado em perspectiva sobre
as obras no presente. A junção entre passado e presente, assim, acaba por mostrar não
apenas continuidade estilística, mas, pelo contrário, a heterogeneidade de formas que
pode assumir a arte desse país.

128
Sobre o modo de montagem da exposição, logo na abertura da mostra no piso
térreo, um bloco em diagonal divide a entrada da mostra ao acesso do visitante (Imagem
6.1 e Imagem 12.2). Ao adentrar esse espaço, vemos as fotografias de Charles Placide e
Pierre Verger e, novamente, outro painel oblitera a visão ao restante da exposição. O
visitante somente percorre toda a exposição após transpor esse segundo elemento. Ali,
podemos ver esculturas, desenhos e as vestimentas dos eguns (numa estante rodeada por
vidros e luzes pontuais). No mesmo sentido, a mostra do piso inferior (sobre um fundo
verde) apresenta-se em painéis diagonais ao visitante (Imagem 12.1).
No momento de abertura da exposição aconteceu a mesa-redonda, organizada
pelo crítico de arte francês André Jolly com os artistas Edwige Aplogan, Dominique
Zinkpe, Tchif e Gérad Quenum. A fala inicial de um dos artistas do Benin criticou o
modo como a arte da África é vista no ocidente. Para o artista, o sistema de arte ocidental
exige do artista da África características estilísticas que remetam ao imaginário ocidental
sobre o continente africano. Essa é certamente uma forma cristalizada de ver a arte da
África a partir de conceitos europeus sobre esses povos. Dentro dessa perspectiva, há
certos componentes e idéias que são africanos, mais do que outros. A arte da África
corresponderia a esculturas rudimentares talhadas em madeira, espécies de fetiches
portadores de poderes místicos. Isso significa congelar a situação social e artística da
África num estado fora do tempo e espaço. Limitar a experiência da África na arte do
passado parece mantê-la no mesmo exotismo do período colonial.
Muniz Sodré, em livro sobre a dinâmica cultural negra no Brasil, relata que:

O etnicismo ocorre também na guetificação (separação por guetos) de imigrantes ou


então na turistização das diferenças, que exige das culturas do povo uma “autenticidade”
(uma espécie de “alma popular”), para melhor consumi-las. Dá-se desta forma a
manutenção do princípio de identidade das diferenças: o outro tem que ser outro mesmo,
ou seja, autenticamente diferente, para ser positivamente avaliado (grifo nosso) (1988, p.
164).

Em continuidade à discussão, os artistas abordaram as coleções de arte da África


nos museus europeus. A posse dessas obras, produto do sistema colonial que dominou a
África diante dos países europeus, é o desdobramento desse mesmo regime na
atualidade. Para os europeus, os museus africanos não possuem instalações e métodos de
conservação eficientes para a preservação das obras. Assim, um problema técnico acaba
servindo à posse, pelo mais forte, dos objetos que reiteram o seu poder.

129
Wolfgang Döpcke, descrevendo o processo de aquisição das obras da África
pelos museus europeus, revela que esta posse é marcada

(...) pela conquista colonial, pela subjugação dos povos africanos e pela perpetuação da
violência colonial. De certa maneira, a presença abundante destes objetos nos museus
europeus reflete a derrota histórica dos seus criadores, dos “artistas” africanos do final do
século XIX. A “arte africana”, que desde essa época se encontra nos museus europeus, é
uma manifestação material, talvez uma das mais visíveis, da subjugação ao controle
europeu de povos outrora livres (DÖPCKE, 2004, p. 34).

Além disso, os artistas contemporâneos do Benin ponderaram a necessidade de


situar sua arte no presente quando, pelo contrário, o ocidente a vê no passado. Para eles,
há incompreensão por parte do público ocidental para situar a arte contemporânea da
África. Em geral, as imagens de máscaras e esculturas de madeira se tornaram ícones
para todo o continente. Essas passam a ser representações permanentes e contínuas da
produção artística da África no passado e no presente. Toda forma que foge desse padrão
é estranha, não compreendida como um genuíno objeto africano.
A fala de André Jolly a respeito da arte da África exacerba algumas das
aspirações dos artistas africanos contemporâneos. Para ele, a África “hoje se constrói
também em torno de conceitos senão mais seculares e mais ‘contemporâneos’, inclusive
mais políticos” (apud BENIN ESTÁ VIVO AINDA LÁ, 2008, p. 50). Do mesmo modo,
essa exposição no Museu Afro Brasil tenta delimitar um outro espaço e tempo para a arte
do Benin e da África. A definição desse novo território parece ser parte da tarefa de
desconstruir o imaginário produzido por séculos pelo museu ocidental sobre os povos
não-ocidentais.

Bijagós – A arte dos povos da Guiné-Bissau

A exposição Bijagós – A arte dos povos da Guiné-Bissau (inaugurada em 19 de


julho de 2008), localizada no piso superior do Museu Afro Brasil, apresenta trabalhos de
diversos artistas dessa etnia, originária do Arquipélago dos Bijagós na Guiné-Bissau,
oeste da África. Composta por obras feitas principalmente em madeira, a mostra
apresenta objetos que pertencem a cerimônias como a chamada vaca-bruto, uma etapa da
iniciação dos cabaros (jovens iniciados) ao mundo adulto, entre outros.

130
A mostra está localizada no piso superior em território retangular do museu ao
lado do Anfiteatro Ruth de Souza. Logo à frente da exposição, um painel apresenta a
mostra com a fotografia (em preto e branco) de um Bijagó trajado em vestimenta
cerimonial. A composição desse painel com a exposição e espaço retangular mais ao
fundo expõem a profundidade do espaço em perspectiva (Imagem 8.1).
Na área principal da exposição, há um plano dividindo o espaço em dois. A
primeira atitude do observador é escolher entre um deles. No primeiro espaço à direita,
mais largo, temos esculturas em madeira representando bois, hipopótamos, barbatanas de
tubarões, adornos corporais e máscaras. Ao fundo, a exibição de um documentário
(Defunto – The spirit people, de Michel Leblanc) mostra maiores detalhes sobre os ritos
e essa etnia. No segundo espaço à esquerda, mais estreito, vemos lanças e adornos de
braço. Os painéis são brancos, exibindo em áreas vazadas o fundo vermelho sob as obras
(assim como na exposição Negros Pintores). O limite estabelecido pelo vidro impede
uma aproximação maior. A mostra não apresenta largo uso do espaço vertical e nem de
acúmulo de obras. Ela é focada numa leitura razoavelmente horizontal do tema (Imagem
8.3). Em outras palavras, exceto talvez pelo uso da cor, nos aproximamos de um
contexto de exposição de obras do museu de arte moderno.
Se na exposição Benin está vivo ainda lá estavam artistas afinados com propostas
contemporâneas de arte, a exposição Bijagós mostrou uma arte vinculada a estilos mais
tradicionais. Se, numa visão restrita e culturalmente moldada, tendemos a imaginar os
objetos dos Bijagós como artefatos de um passado distante, a exposição de Araujo nos
revela que essa arte está muito mais próxima de nosso tempo. Além disso, ela expõe,
pela concretude de suas formas, a permanência dos ritos que lhe deram origem.
Contemporaneidade e heterogeneidade são, assim, dois conceitos pertinentes para
a arte da África nas exposições de Araujo. Esta não está no passado, mas no tempo
presente e necessita de ser discutida como tal. No mesmo sentido, ela não se apresenta
sob uma única forma, mas adquire nuances novas devido ao seu contato com
experiências contemporâneas.
A exposição não apresentou descrições mais detalhadas dos autores das obras.
Não sabemos a data precisa de muitas peças e nem se essas são feitas por um mesmo
artista. Essa apresentação, de certo modo, acaba por reiterar a visão um tanto restrita do

131
antigo método etnográfico, onde autoria e tempo são dados menos relevantes63. Por outro
lado, expõe um problema antigo em relação à aquisição precária e circulação dessas
obras. Essa falta de informações pode ser tanto um problema da metodologia de
aquisição primeira dessas obras como do contexto de exibição em museus (onde escolhe-
se exatamente o que se quer mostrar e como)64. Em suma, não deixa de ser relevante e
oportuno obter mais informações a respeito dos artistas, do seu modo de trabalho e status
dentro de sua sociedade original.
Embora a necessidade de conhecer esses autores seja relevante (PRICE, 2000), é
preciso balizar que esse mesmo modelo deve ser aplicado cautelosamente para
compreensão das obras de arte da África. Devemos atentar que a noção de
individualidade e coletividade são conceitos tratados de modos distintos na África ou no
ocidente. Portanto, se talvez possamos falar em autoria artística em África, esse termo
deve sugerir também uma nova definição, razoavelmente diferente do seu uso nas
sociedades ocidentais européias e americanas.
O contexto maior dessa exposição não deixa de evidenciar os conflitos entre o
modo de entendimento da arte da África frente à arte de origem ocidental. A
apresentação de Araujo expõe o vínculo entre arte e tradição dos Bijagós, além de
relativizar os conceitos de apreciação dessas e da arte ocidental:

(...) o homem e suas circunstâncias naturais e sobrenaturais, sua procura no infinito do


universo, pelo espaço cósmico para realização de seu drama, de seus ancestrais, assim as
artes se estabelecem organicamente com a finalidade que ultrapassa o campo da estética
pura. A arte é uma comunhão com o sagrado, uma emanação do espírito. Assim como a
beleza seria a concretização de idéias metafísicas (grifo nosso) (apud BIJAGÓS, 2008,
p. 2).

Araujo revela a oposição entre um modo de apreciar a arte tradicional dos povos
não-ocidentais baseado no conhecimento de seus mitos e cosmogonia (o “sagrado”) e
outro modo de apreciação ocidental focado apenas na forma (a “beleza” ou o belo é um

63
Isso está expresso pela fala do curador Araujo: “geralmente, a arte africana não tem autoria. É feita para
cultuar os ancestrais, a colheita, natureza, circuncisão e outros ritos” (ARAUJO, 2006b, p. 46).
64
Comentando o modo de expor obras de arte não-ocidentais em museus, Sally Price em seu estudo
constata que “depois que um artefato Primitivo é retirado do ‘campo’ (...), ele habitualmente recebe um
novo passaporte. O pedigree de tal objeto normalmente não dá informações detalhadas sobre o seu criador
ou os seus donos originais (indígenas); em vez disso, conta apenas as mãos Ocidentais pelas quais o objeto
passou. Uma escultura africana que foi propriedade de Henri Matisse, Charles Ratton ou Nelson Rockfeller
não tem, neste sistema, nenhuma relação com outra escultura do mesmo artista que não o tenha sido”
(2000, p. 147).

132
tema clássico da arte ocidental). Essa relativização não pretende substituir um modo de
apreciação por outro, mas mostrar como alguns códigos de compreensão das obras de
diferentes culturas se referem a dispositivos de histórias e culturas específicas. Sendo
assim, é oportuno aproximar esses conceitos para observar os seus limites, como
demonstrado pela citação de Araujo.

Negros Pintores

A exposição Negros Pintores (inaugurada em agosto de 2008) apresentou o


trabalho de artistas negros provenientes da Academia Imperial de Belas Artes. São eles:
Wilson Tiberio, Emmanuel Zamor, Antonio Rafael Pinto Bandeira, Benedito José de
Andrade, Benedito José Tobias, Antonio Firmino Monteiro, Estevão Roberto da Silva,
Horácio Hora e os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa. Grande parte desses pintores
já estavam presentes em outras mostras do curador desde A Mão Afro-brasileira (1988).
O livro Pintores Negros do Oitocentos (1988), escrito por José Roberto Teixeira Leite e
editado por Emanoel Araujo, já anunciava a atenção do curador por esses artistas.
Realizada no térreo do Museu, as obras foram dispostas sobre painéis de cor clara
(é o caso de Estevão Roberto da Silva, Antonio Rafael Pinto Bandeira, etc.) e vermelho
(Arthur e João Timótheo da Costa). Utilizando luzes pontuais sobre as obras, o evento
apresentou cada artista numa linha narrativa horizontal, evitando a disposição de obras
na vertical. A mostra não reverberou o mesmo acúmulo de objetos das anteriores
exposições do curador baiano. O foco em persuadir o olhar do visitante, por sua vez,
continua por ser um traço freqüente. A réplica de um ateliê, bem como o uso de grande
cenografia contribui para oferecer uma aproximação ao ambiente de trabalho próprio do
artista acadêmico. Do mesmo modo, o uso de cores intensas sob os quadros indicam o
interesse sensorial da montagem (Imagem 9.5).
Sobre a técnica e os artistas, mesmo dentro da academia, não há uma única forma
de pintura, mas diversidade de estilos que acompanham razoavelmente os interesses
artísticos de cada época. Assim, a linha definida de Estevão Roberto da Silva décadas
depois dá lugar às manchas e massas repletas de tinta de Arthur Timótheo da Costa. Do
ateliê desse primeiro passamos à pintura de cavalete ao céu aberto deste último; da
descrição fiel, à força da expressão e do traço, como demonstra a pintura de Wilson

133
Tiberio. Tudo isso demonstra a heterogeneidade de experiências desses pintores mesmo
atuando dentro dos códigos da academia. Como podemos notar, grande parte dessas
peças fazem parte do acervo permanente do Museu Afro Brasil. Elas também têm sido
usadas em diversas outras exposições do curador. Nesse caso específico, além da
exposição de obras de coleções particulares, temos uma disposição que procura
evidenciar esses trabalhos em um contexto mais preciso sobre a arte da academia.

Brasil – Terra de Contrastes

A exposição Brasil – Terra de contrastes (inaugurada em novembro de 2008) é


baseada na visão pessoal do curador sobre o livro (de mesmo nome da exposição) escrito
por Roger Bastide (1964). A arte afro-brasileira não é o destaque dessa exposição.
Entretanto, essa exposição apresenta mais uma vez o pensamento espacial de Araujo no
museu.
A respeito da montagem, a exposição, localizada no piso inferior do Museu Afro
Brasil, ocupa todo o solo do espaço, projetando-se verticalmente, através de extensos
painéis. O pé direito alto do local orientou o uso dos painéis em uma leitura horizontal e
vertical. Novamente, como pode ser observado em outras exposições do curador, o
visitante é convidado a adentrar o espaço da mostra através de caminhos estreitos e
outros mais espaçados.
Em dois painéis extensos vemos pinturas abstratas e figurativas preenchendo o
espaço inicial da exposição. Esta apresenta trabalhos de artistas contemporâneos e
antigos nos mais diferentes formatos. Num primeiro painel amplo, por exemplo, temos
trabalhos de Henrique Oliveira, Farnese de Andrade, Samico, Manabu Mabe, Rubem
Valentim, dentre outros. Os trabalhos estão agrupados verticalmente, preocupando-se
com a proposta estética e de contexto de cada grupo de obras. Assim, temos um conjunto
sobre paisagem (composto por Rubem Ianelli, Newton Mesquita e Takashi Fukushima),
outro sobre figura humana (José Maria, Marcelo Grassman, Aldemir Martins, Gilvan
Samico e Acêncio) e pintura abstrata (Marcello Nitsche, Wega Nery, Giselda Leirner),
etc. Se na vertical há similaridades, a horizontal apresenta confrontos e cruzamentos,
como podemos perceber pela obra de Claudio Tozzi, Carlos Monforte, Antonio Henrique
Amaral Takazhi Fukushima, Gilvan Sâmico e Miguel dos Santos (Imagem 10.1).

134
Ocupando um outro painel horizontal, planos vazados de fundo azul contêm
pequenas esculturas que vão desde o nó de pinho até os exus e ibejis, passando por
relicários dourados e imagens de Cristo. Mais ao fundo temos outros planos, altos,
expondo esculturas em madeira de Cristo e de centenas de pequenos ex-votos. Na parede
que contorna o espaço, por dentro, em leitura cronológica, há fragmentos do texto de
Roger Bastide (Imagem 10.3).
O tema da exposição, “contraste”, aparece na contraposição desses diversos
trabalhos, numa leitura horizontal e vertical das obras pelo espaço. Ao fundo da
exposição temos ainda trabalhos de escultura popular e contemporânea. Localizadas em
duas extremidades, a escultura de Frans Krajcberg e de Francisco Brennand são dois
modos bem distintos de se compreender esse problema. Uma é feita de cerâmica, lisa e
sintética; e a outra, da justaposição de troncos de madeira, rugosos e sinuosos. Como diz
o curador Araujo: “Queremos ainda usar desta idéia de contrastes para fazê-lo com a arte
brasileira de diferentes linguagens e pelas quais seus criadores se realizam dentro dessa
diversidade de períodos e de conteúdos” (BRASIL, 2008, p. 5).
Podemos observar o interesse da curadoria em organizar essas obras a partir de
uma visão formal sobre suportes, materiais empregados e gêneros artísticos. Através de
um olhar moderno, o curador organiza as obras em grupos de cor, textura e gênero. Em
frente a essas obras, por outro lado, há um mural com os escritos originais do
pesquisador francês, oferecendo uma leitura linear sobre diversos fatos que marcaram a
história brasileira. Esse texto, no entanto, não explica a exposição, mas serve apenas
como ponto de partida para pensar o pressuposto primeiro desta. O livro de Roger
Bastide é utilizado pelo curador na medida em que ele colabora para basear alguns dos
seus objetivos: uma releitura pessoal sobre a história da arte no Brasil. Essa exposição,
desse modo, parece ter afinidades com a mostra Brasileiro, Brasileiros (2004). Ambas
objetivam um olhar extenso sobre a arte no Brasil. Em todo caso, se Brasileiro,
Brasileiros traz a noção de mestiçagem, a exposição Brasil – Terra de Contrastes
evidencia compreender as polaridades.

135
De Valentim a Valentim

A exposição De Valentim a Valentim (curadoria de Emanoel Araujo e de Mayra


Laudanna, Museu Afro Brasil, 2009) traz a visão de Araujo em relação à escultura no
Brasil, utilizando principalmente a produção de artistas da Academia Imperial de Belas
Artes do Rio de Janeiro e do Liceu de Artes e Ofício de São Paulo. Grande parte das
peças que compõem essa mostra é do Museu Nacional de Belas Artes, de coleções
particulares e da própria coleção de esculturas do curador do Museu Afro Brasil.

Em primeiro lugar, vale atentar para um dos artistas que, além de nomear a
exposição, inicia a mostra – Mestre Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813). Este é o
primeiro artista a ser apresentado por suas esculturas em madeira (São Matheus e São
João Evangelista, Imagem 16.2) e, mais à frente, por duas outras consideradas uma das
primeiras esculturas forjadas em metal no Brasil (Caçador Narciso e Ninfa). Mestre
Valentim, filho de português e de uma mulher negra, parece ter aprendido em Portugal o
seu ofício de escultor. Voltando ao Brasil, ele passa a desempenhar importante papel no
meio artístico nacional. Suas esculturas trazem a influência barroca, o que pode ser
notado pelas obras em madeira. Por outro lado, é possível constatar certos traços
neoclássicos nas peças feitas em metal.

Logo após as primeiras peças de Mestre Valentim, temos as obras que fazem
parte da Academia Imperial de Belas Artes, com destaque para o romantismo nas obras
do professor Rodolfo Bernadelli (1852-1931) e de seus alunos. Essas peças são em
grande parte realizadas em bronze. Em geral, atentam para a virtuosidade do artista em
representar o corpo humano. Além disso, elas também apresentam ícones e símbolos
importantes para a época, o que está presente na gestualidade, na vestimenta ou mesmo
no tema tratado. Somado ao espírito do romantismo, podemos verificar em muitas dessas
obras a influência do Art Nouveau e do Art Deco no uso de linhas sinuosas ou retas.

Entre Mestre Valentim e Rubem Valentim também temos a obra de Victor


Brecheret. A obra deste, de certa influência clássica, embora tendendo muito mais para o
Art Deco nessas peças, parece ser o nó que une ambas as experiências. Próximos a
Brecheret, há diversos artistas que se aproximam do universo estético do modernismo
brasileiro (como Ernesto de Fiori).

136
Mais à frente, as esculturas finais da exposição mostram o trabalho de Rubem
Valentim (1922-1991). Mais uma vez, os ícones e o universo do candomblé marcam essa
produção. Este artista está em sala retangular ao lado de Frans Krajcberg, Francisco
Stockinger, Mario Cravo, Vasco Prado, Caribé e de Bruno Giorgi. Enquanto Caribé e
Bruno ainda trazem evidências de tendência clássica em sua forma, embora já pela via do
modernismo, Rubem Valentim e Frans Krajcberg são os artistas que parecem romper
mais contundentemente com a linha narrativa em grande parte acadêmica e moderna
desta exposição (Imagem 16.4).

Ao que tudo indica, grande parte dos artistas da exposição não são negros ou
mulatos. E, embora Mestre Valentim seja um artista desse grupo, somente a obra de
Rubem Valentim traz mais evidentemente a preocupação artística de lidar com o
universo do negro no Brasil. Nos outros casos, em relação à figura do negro, algumas
poucas peças de Joaquim Lopes Figueira (1904-1943) apresentam pontualmente esse
grupo. Muito mais freqüente, a figura do índio apresenta a afinidade entre os ideais da
academia e o que foi propagado pela literatura romântica de meados do século XIX. Se a
figura do índio aparece romanceada, desenvolvida em poses robustas e imponentes, o
negro em poucos casos é mais que uma figura curiosa. Todavia, nas obras do
modernismo ele já não é apenas o escravizado, mas apresenta certa individualidade.

A montagem da exposição está entre uma narrativa com forte acúmulo de obras
(as esculturas da academia e do modernismo) e outra mais linear (como o espaço
dedicado às obras de Rubem Valentim, Bruno Giorgi, Caribé e de Frans Krajcberg). As
obras estão agrupadas segundo o artista. Muitas delas não apresentam informações sobre
data de execução ou título, mas somente o nome do artista, data de nascimento e morte.
As obras mais contemporâneas (Rubem Valentim e Frans Krajcberg) estão em espaço
singular e arejado, de certo modo, separadas das demais. Os painéis usados em toda a
exposição são brancos, contrastando com as cores das obras. Além disso, estes têm
contornos circulares (algo que lembra até mesmo as esculturas de Rubem Valentim) e
apresentam em suas concavidades luzes neutras ou levemente azuladas (Imagem 16.3).
Como podemos notar, apesar da cor relativamente neutra (o branco), o aparato
cenográfico é certamente uma característica da exposição. Nesse caso, a cor branca não é
utilizada como neutralidade, mas parece compor e contrastar, buscando certo impacto
visual, com as obras expostas.

137
A respeito dos objetos expostos, não há obras fora de um contexto mais erudito
da história da arte – esculturas em bronze, madeira, mármore ou gesso, apresentando
temas clássicos ocidentais como o corpo humano. Obras de arte popular como as da
família Julião, ex-votos, esculturas africanas, entre outros, o que é geralmente presente
nas exposições do curador, não estão nessa exposição. A escolha desses artistas, assim,
sinaliza um grupo de artistas que, à exceção de alguns, faz parte ou é próprio do universo
da história da arte ocidental moderno.

Apesar disso, a escultura (motivo dessa exposição) é apresentada de maneira


singular pela curadoria de Araujo e de Laudanna. Embora o contexto da maioria dessas
peças não possam ser relacionadas diretamente à arte afro-brasileira do curador e ao
contexto do Museu Afro Brasil, o uso e destaque dos artistas Mestre Valentim e de
Rubem Valentim procuram uma perspectiva direcionada. Esta é, evidentemente, própria
desta instituição e de seu curador. É um olhar diferente da experiência de história da arte
ocidental sobre esse conjunto de artistas. Trata-se de uma perspectiva que relaciona
diretamente a experiência do artista negro no Brasil dentro do contexto da arte nacional.

Artistas afro-brasileiros do acervo permanente do Museu Afro


Brasil

O acervo permanente do Museu Afro Brasil foi inaugurado em 2004 e está


dividido nos núcleos de Artes Plásticas, História e Memória, Trabalho e Escravidão,
Religiosidade e Festas.
Dentro disso, vale ressaltar o núcleo sobre artistas negros contemporâneos. Esse
espaço está delimitado na lateral direita do piso superior do Pavilhão Manoel da Nóbrega
(se considerarmos o acesso pela rampa). O local apresenta obras de artistas como Rubem
Valentim, Rosana Paulino, Whashington Silveira, Helio Oliveira, Heitor dos Prazeres,
Mestre Didi, Agnaldo Manoel dos Santos, George Nelson Preston, o próprio Emanoel
Araujo, Lisar, Yêdamaria, Octavio Araujo, entre outros.
A linha narrativa desse núcleo, começando por Rubem Valentim e finalizando
com Rosana Paulino e Lisar, foca diferentes tipos de obra de arte: pintura, escultura,
desenho, gravura e instalação. Não há separação por temas de interesse. O foco é mostrar
138
a produção plástica de importantes autores negros e afro-brasileiros nas artes plásticas.
Longe de pensarmos num traço estilístico único, devemos compreender os caminhos
adotados por cada artista.
Num espaço contornado por três paredes em “U”, a série de seis impressões
(xerox transferido e matriz de acetato sobre papel segundo a legenda) de Rosana Paulino
explora o branco do papel com pequenos signos, fotos e frases. O título de cada uma
dessas obras é singelo e, ao mesmo tempo, questionador (“É tão fácil ser feliz”,
“Cinderela?”, “Tudo aquilo que você quer ser quando crescer”, “As armas do
império”, “Tudo para sua felicidade”) (Imagem 4.6).
Nas gravuras de Rosana Paulino, dispostas lateralmente, imagens de crianças,
frases curtas e figuras modulares (pertencentes ao universo da propaganda) formam um
conjunto de interrogações sobre gênero, identidade feminina e negra. A obra presente no
centro desse pequeno espaço dedicado à artista é composta por uma série de patuás
dispostos regularmente, formando um quadrado. Fotografias antigas (homens, mulheres
e crianças) foram gravadas em pequenas almofadas. Essas pessoas desconhecidas podem
ser agrupadas de acordo com sua representação étnico-racial (em sua maioria são
negras). Por serem fotografias antigas, desgastadas, quase apagadas, lembram um álbum
de retrato familiar. Embora as pequenas almofadas (costuradas em suas extremidades
com linhas ressaltadas) estejam agrupadas ordenadamente, o seu caráter de módulo
sugere a possibilidade de câmbio entre cada uma delas. Pensar em memória é quase
imperativo. A obra de Paulino, assim, adquire diálogo com a própria posição da
instituição. A busca e construção de uma memória é um trabalho permanente de olhar a
si mesmo enquanto indivíduo e coletivo, um retorno contínuo.
A obra de Washington Silveira (os trabalhos não possuem título), apresenta
esculturas feitas a partir de objetos cotidianos, alterando-se o sentido de uso deste. Não
há referências diretas à cultura ou estilística de arte afro-brasileira mais tradicional.
Desse modo, Silveira adentra esse espaço como um artista negro que demonstra o seu
raciocínio a partir do universo da arte contemporânea. O método desse artista é próprio
da arte conceitual, fazendo referências ao surrealismo e ao dadaísmo: um martelo
elástico que atinge a si mesmo; uma serra em grande escala feita, ela mesma, de madeira;
parte de uma mesa de madeira que projeta por seus pés suas raízes originais. O tema de
Silveira aqui é a madeira. Não apenas essa matéria em sua circunstância natural, mas

139
como um ser moldado pela ação e perspectiva humana. Embora sejam todos objetos
comuns, o artista altera o sentido dos mesmos, comprometendo a sua leitura. Esses não
são mais objetos mundanos, mas proposições dentro de um contexto artístico sobre
suporte, forma, contexto, uso e técnica (Imagem 4.9).
Diferentemente desses, há artistas mais concentrados numa visualidade própria
do universo litúrgico afro-brasileiro. Rubem Valentim preocupa-se em explorar o
potencial gráfico e iconográfico de suas obras. Calcado numa construção visual de
reminiscência concretista, o artista projeta suas obras em serigrafias, pinturas e
esculturas. A sua composição bidimensional, quase abstrata, por outro lado, é fruto de
sua busca pessoal em repensar os signos do candomblé na arte. Cores e formas se
implicam numa estrutura extremamente contemporânea.
Helio de Oliveira, um artista de poucas obras em exposição no Museu, remete-se
ao mesmo universo religioso. Embora figurativo, suas xilogravuras beiram quase à
abstração. Alguns poucos pontos de luz apresentam um universo temático sempre
envolto por penumbras.
Participando de um mesmo pensamento focado na religião temos o artista Mestre
Didi. Sacerdote de cultos afro-brasileiros e artista renomado, Mestre Didi é figura
essencial para compreender a junção entre arte contemporânea e religiosidade. Jorge dos
Anjos e Emanoel Araujo (embora o primeiro seja mais restrito e o segundo mais sinuoso)
são igualmente próximos desse universo.
Nesse espaço, a obra de George Nelson Preston, artista e estudioso norte-
americano, expressa as relações entre estereótipos e veiculação de imagens no ocidente.
A sua técnica de colagem e sobreposição de imagens – exacerbando contrastes, entre
desenhos e fotos, linhas e planos – parece favorecer essa leitura. No mesmo sentido, o
seu uso da iconografia da história da arte ocidental, junto a contextos externos a esse
universo, busca trazer novos problemas e leituras para essa narrativa. Para Araujo, a obra
de Preston revela que “as tradições européias e as africanas são vistas, cada uma, como
alter ego da outra. O processo de resgate dos ‘africanismos’ e a justaposição aos
“europeismos” – este é o seu verdadeiro tema” (apud HERDEIROS DA NOITE, 1994, p.
13) (Imagem 4.10).
As litografias de Octavio Araújo em preto e branco remetem ao contexto da
história da arte ocidental. O seu tema principal, o nu feminino. Esse gênero clássico de

140
desenho, todavia, em sua produção, dialoga com as correntes modernas do século XX – o
surrealismo. Além disso, os seus planos distantes, utilizando-se de perspectiva, claro e
escuro, etc., sugere uma orientação renascentista. A junção desses métodos de
representação, assim como o uso de signos de diversas culturas, compõem o universo
híbrido do artista.
Edval Ramosa é outro artista que está entre símbolos de diversas culturas. O
contexto formal, usando esferas em diferentes formatos e configurações, é forte em seu
trabalho. Por outro lado, a materialidade dessas peças é própria dos elementos utilizados
em religiões de matriz africana no Brasil. Contexto e forma, então, parecem sugerir a
comunicação entre ambientes culturais que se margeiam (Imagem 4.3).
A narrativa criada a partir desses artistas não é linear. Pode até mesmo ser feita
pela ordem inversa. Ela constitui-se por obras que se cruzam, intercambiam, criam um
jogo. A proximidade entre cada uma força o diálogo. Exceto por alguns casos (Octávio
Araujo e George Nelson Preston; Lizar e Heitor dos Prazeres; Emanoel Araujo e Colin
Chase) em geral elas se contrastam, não se assemelham em forma nem em suporte. Esse
núcleo de arte contemporânea também margeia outros núcleos, como o de religiosidade e
de memória, tornando as possibilidades de leitura ainda maiores. É possível acessar ou
sair dessa narrativa (a fim de buscar outras) a qualquer momento dentro do museu.
Em um núcleo diferente (do lado esquerdo do Museu Afro Brasil), as obras dos
artistas barrocos Aleijadinho e Mestre Valentim, assim como os acadêmicos Estevão
Roberto da Silva, Arthur e João Timótheo da Costa, entre outros, engendram um outro
modo de entender a manifestação afro-brasileira. Não estamos remontando a uma
religiosidade ou técnica estritamente de origem africana ou afro-brasileira. Entretanto,
mesmo não se tratando de arte afro-brasileira, eles não deixam de ser pertinentes à
curadoria de Araujo.
A partir do exposto, é possível observar alguns pólos de análise. Um se refere
aos artistas contemporâneos que possuem obras de arte focadas em pensar a presença
negra no Brasil, que podem ser chamados de artistas afro-brasileiros. Outro, de artistas
que não objetivam investigar esse universo, mas apresentam uma visão especial sobre a
sociedade em que vivem. Além disso, há os artistas que focam na religião um importante
núcleo para pensar a sua arte. Como já analisamos anteriormente, cada um desses tem
sua singularidade e relevância. Nem todas essas abordagens podem ser consideradas

141
como arte afro-brasileiras. Todavia, em algumas mais e em outras menos, todas elas
estão relacionadas a esse fenômeno a partir do discurso criado pela exposição.

142
Considerações finais

A história das exposições não trata apenas de dar a


ver a emergência, o contexto político e cultural de cada exposição,
mas também sua recepção junto ao público e à crítica,
bem como sua efetividade na construção de uma história da arte.
(...) vale lembrar que em história o que nos leva a olhar o passado é
sempre algo que nos inquieta no presente.
MESQUITA, 2007, p. 151.

O estudo da curadoria de Emanoel Araujo requer um conjunto de ferramentas


diversas. Tentamos, neste trabalho, pontuar quais podem ser os modos de aproximação
em relação a esse objeto, focando o universo das artes plásticas afro-brasileiras. Para
isso, utilizamos estudos sobre arte afro-brasileira, museologia e sobre os temas que
tangenciam essas exposições. Esse é apenas um modo de analisar a contribuição desse
curador. Mais do que abarcar todo o conjunto da vida e obra de Araujo, objetivamos
fomentar a discussão a respeito das diversas características de seu trabalho expositivo.
Essas questões são de grande interesse para compreender não somente a exposição de
arte afro-brasileira, mas também para que possamos perceber as conexões entre
memória, identidade e reconhecimento da cultura negra no Brasil.
Num âmbito mais amplo, percebemos que, apesar de seus limites, o momento em
que Araujo surge no cenário artístico nacional aponta para uma sociedade em
transformação, onde vários campos de força tentam legitimar histórias singulares. As
artes plásticas, como local poroso e propício ao debate, é território singular para analisar
esse fenômeno. Ela reflete em si todas as contradições e paradoxos de uma sociedade.
Cabe rever o nosso desenvolvimento. Iniciamos procurando contextualizar o uso
do termo arte afro-brasileira. Essa análise mostrou o universo conceitual dessa
manifestação. Num segundo momento, apresentamos um breve histórico da instituição
museológica, notando nesta o espaço onde se efetiva a ação do curador. Assim,
atentamos por compreender o universo dos conceitos que perpassam o museu em relação
à arte de origem não-ocidental. O terceiro capítulo buscou visualizar o cruzamento entre
as diversas facetas de Araujo (o artista, o curador e o colecionador). O quarto capítulo
abarca o universo de conceitos que contornam suas exposições. Essas idéias acabam por
influir em suas exposições de arte afro-brasileira. Por fim, o quinto capítulo abarcou

143
parte das mostras do curador, procurando utilizar o desenvolvimento citado
anteriormente para essa leitura.
A contribuição fornecida pelos entrevistados foi fundamental para dimensionar o
legado do curador. Essas falas trouxeram convergências e divergências relevantes.
Houve depoimentos semelhantes em relação ao modo de expor de Araujo, mostrando
como essa atividade está relacionada ao seu ofício de artista (MONTES, 2008; HABIB,
2008; FELINTO, 2008).
Outro fato a relatar é sobre a continuidade do trabalho expositivo desse curador.
Para alguns, o seu trajeto apresenta mudanças substanciais (por exemplo, na
incorporação de artistas contemporâneos a partir de meados da década de 1990). Renata
Felinto diz que:

(...) comparando todas essas exposições eu penso que ele incluiu mais artistas
contemporâneos agora. Se formos pensar na exposição A Mão Afro-Brasileira, essa foi a
exposição mais próxima do Museu Afro Brasil hoje. Ela fala de literatura, música, das
artes; mas não tinha muito de arte contemporânea. Acho que o Museu Afro Brasil agora
dá espaço para obras mais atuais, para o que acontece. É importante sempre atualizar,
para não ficar uma imagem do negro estática (FELINTO, 2008).

Para outros, seu trabalho tem sido em grande parte a continuidade e discussão de
um mesmo problema (a história e arte dos negros no Brasil). Cabe citar Maria Lucia
Montes: “Quando se fala da diferença entre a exposição A Mão Afro-brasileira e a
Herdeiros da Noite, eu te digo que não tem diferença nenhuma no projeto. É a mesma
coisa porque o problema é o mesmo” (MONTES, 2008).
A semelhança conceitual da exposição A Mão Afro-brasileira com o Museu Afro
Brasil atesta a continuidade do pensamento de Araujo. Por outro lado, como cita
Oswaldo de Camargo, embora os temas sejam semelhantes, inclusive com o uso das
mesmas peças, a montagem e disposição das obras no espaço dá à exposição um novo
caráter e problema. Como diz Oswaldo de Camargo: “E depois vem a inquietação de
fazer da exposição dele uma coisa sempre renovada com o tempo. Ele pega uma peça
aqui, põe para lá. A exposição não é uma coisa estática. O Emanoel é tudo, menos
estático” (CAMARGO, 2008).
A exposição Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007) é parte
desse exemplo. As peças dessa exposição foram exibidas antes na mostra Negro de
Corpo e Alma (Mostra do Redescobrimento, 2000) e posteriormente resultaram na

144
exposição Imagens Perversas e Inocentes. Em cada momento, a montagem e disposição
dessas peças conferem um novo significado e tema a mesma coleção exibida pelo
curador.
Desse modo, a forma diversa de dispor as obras altera substancialmente o
significado de cada exposição. Essa ação interfere também nas exposições com foco nas
artes plásticas. Ao trabalhar com artistas contemporâneos, modernos ou acadêmicos,
cada exposição de Araujo recria um espaço e discurso. O que temos é uma narrativa
sendo reconstruída. As possibilidades são muitas e devido à ausência de um pensamento
focado na arte afro-brasileira na nossa história da arte, ela se faz muito oportuna.
Essa proposta não é somente uma nova configuração da arte afro-brasileira, mas
uma revisão de toda nossa história. Esse conteúdo, feito através de novas relações, é um
trabalho infinito de interpretação e reconstrução da história. Uma narrativa que é
remodelada para ser novamente compreendida, sob perspectivas diversas. É esse
princípio que faz Araujo reordenar incansavelmente suas exposições, uma tentativa de
rever continuamente a história em suas múltiplas possibilidades.
A curadoria de Araujo, que é também crítica de arte, afirma pela exposição uma
narrativa. A proposta do curador baiano torna cada componente portador de um
significado especial. Ao construir um discurso sobre a representação da cultura e arte
afro-brasileiras no museu, ele acaba contaminando todos os objetos expostos.
Assim, o contexto das suas exposições de arte afro-brasileira, por sua vez, pode
ser pensado e exposto de duas maneiras. No primeiro caso, ele compõe uma possível
história da arte afro-brasileira com obras de mesmo contexto (como o núcleo de arte
contemporânea do Museu Afro Brasil). Essa curadoria engendra um vínculo entre
artistas afro-brasileiros e artistas negros que nem sempre estão lado a lado. Ao apresentar
a proximidade dessas obras (como as de Rosana Paulino, Rubem Valentim, Hélio de
Oliveira, entre outros), o curador os agrupa num núcleo coeso de pensamento. Sendo
obras de suporte e formatos diversos, há, porém, um vértice que as torna próximas: a
preocupação em refletir a matriz afro-brasileira na arte brasileira.
No segundo caso, a arte afro-brasileira entra em contato (evidenciando conflitos,
diálogos, proximidades e distâncias) com obras de arte que não pertencem a esse
universo (exposição Brasileiro, Brasileiros, 2004). Desse modo, essa contaminação pode
inserir novo significado numa produção que não é geralmente vista como próxima da

145
cultura afro-brasileira. Ao elaborar um discurso curatorial sobre a presença afro-
brasileira na arte do Brasil, essa orientação acaba por realçar esse mesmo discurso em
peças oriundas de outros universos. É o que acontece com obras de Cândido Portinari65,
José Pancetti e de Lasar Segall exibidas pelo curador baiano em algumas exposições
específicas66. Ao recortar o conjunto de obras desses artistas sobre a representação do
negro na arte, Araujo lida com o contexto em que esses artistas retrataram esse grupo. O
que numa outra exposição poderia ser periférico, para ele é essencial.
Todavia, o tema não é superior ao fazer artístico. Ambos são relevantes na
medida em que a feitura da obra também é a própria obra. O discurso curatorial não
oblitera a visão do objeto, mas a informa de novos significados.
Não sendo restrita, a estratégia de Araujo considera o diálogo com a história da
arte brasileira. Seu contexto é afro-brasileiro, mas também um debruçar sobre a arte no
Brasil como um todo. O curador não cria um ramo, ele pretende adentrar ao tronco
principal da história da arte brasileira. Para ele, esse espaço não pode ser indiferente à
participação indígena, negra ou popular.
Nesse sentido, o curador tenta inserir a história da arte afro-brasileira dentro da
história da arte brasileira como um todo. Vale citar o próprio Araujo a respeito do
trabalho desenvolvido na Pinacoteca:

(...) ao lado dessas grandes exposições internacionais (Rodin etc.), a Pinacoteca


continuaria, como sempre, o seu costumeiro trabalho de exposições dos artistas
brasileiros. Desde os bustos-relicários da Sé da Bahia e os pintores do Bonfim até a
escultura contemporânea mostrada no parque da Luz, desde Tenreiro, Silva, de Fiori até
a arte e a religiosidade de raiz africana (...) (grifo nosso) (ARAUJO, 2002, p. 29).

Outra característica que margeia a construção de uma história da arte afro-


brasileira de Araujo é o uso de artistas negros que se aproximam de uma produção de
arte originalmente européia. Esses artistas negros fazem parte da exposição de Araujo e

65
A partir do modernismo de 1922 há uma mudança significativa de interesses sobre a personagem negra
na arte. A figura do negro ganha força nas obras de Portinari, entre outros. Para Portinari, o negro é
sobretudo o trabalho. Esse estereótipo do negro trabalhador, todavia, adquire um valor mais positivo do
que negativo em suas pinturas. O trabalho passa a ser construção da nação. O que antes era castigo e
alienação se torna virtude e potência de vida. O trabalho em Portinari é em sentido pleno. É a construção
do próprio ser. Ele não é alienação, mas consciência de si e do mundo. É um trabalho virtuoso.
66
Trabalhos de Portinari (Baiana, década de 1950; Mulher sentada, 1936; Mulheres com cesto, 1939),
Pancetti (Menino bom, 1945; Menino, 1945; Menina, 1934) e Segall (Orchestra, 1933) estão presentes na
mostra Negro de Corpo e Alma, 2000, sob curadoria de Araujo. Todas essas obras apresentam personagens
negras e mestiças. Assim, o curador atenta para um aspecto pouco visto da produção desses artistas, sob o
viés da representação do afro-brasileiro.

146
muitas vezes em paralelo aos artistas afro-brasileiros. Sem solucionar o problema, a
mostra de Araujo parece apenas indicar esse conflito, propondo, entretanto, o
estabelecimento do diálogo entre as partes.
Dentro dos diversos temas suscitados pelas exposições de Araujo, focando os
artistas e a construção de uma nova história da arte do negro no Brasil, os conceitos de
contemporaneidade e de heterogeneidade parecem contribuir para a compreensão desse
legado.
A contemporaneidade é a necessidade em atualizar e mostrar a produção de
artistas negros brasileiros ou africanos dentro do mundo atual. É preciso situar essas
obras em seu devido espaço. O modo tradicional como o museu tem observado essa
produção não contribui para essa construção. Novos conceitos e sistemas de significados
devem nortear uma visão mais complexa sobre essas obras. Os conceitos utilizados de
empréstimo da nova museologia servem para esse propósito. Do mesmo modo, isso
significa atualizar os conceitos da etnologia, da história da arte e de outras disciplinas.
A heterogeneidade, por sua vez, é oportuna para situar a produção afro-brasileira
dentro de um conjunto de representações diversificadas e concomitantes. Não estamos
analisando somente uma cultura, mas uma gama ampla de representações que, apesar de
ter referências importantes de origem na África, produzem os mais diversos caminhos no
Brasil. Os modos de configuração das obras de arte chamadas de afro-brasileiras são
parte desse intrincado sistema de signos.
Sobre o espaço do museu, há diversas formas de compreender uma exposição de
artes plásticas. A forma de exposição com paredes brancas, espaço neutro, ausência de
elementos para além das obras e o uso de considerável distância entre cada obra, o
chamado “cubo branco”, recusava usar referências do mundo externo ao museu. Somente
a narrativa construída a partir das obras era o universo ao qual o leitor deveria ter acesso.
Todo ruído – como paredes coloridas ou obras de arte muito próximas – deveria ser
eliminado para a eficaz leitura de uma obra de arte (O’DOHERTY, 2007).
A concepção expositiva de Araujo não se pautou por esses princípios. O uso das
cores em diversos trabalhos do curador é um elemento constitutivo fundamental. A cor é
uma informação que dialoga com os objetos ao redor, define um espaço, diferencia ou
aproxima os elementos. O uso de todo esse aparato para Araujo é a compreensão de que
a exposição se constrói também pela ativação (e não anulação) do espaço expositivo.

147
Um tema que está intimamente ligado à concepção da museologia de Araujo é a
possibilidade de se repensar a produção de narrativas a partir de diversas conexões.
Nesse espaço, temos a proximidade entre arte erudita, popular, artes gráficas e diversas
outras formas de manifestação estética. A obra de arte afro-brasileira e da África passa a
ser componente essencial para compreender esse caminho. É preciso verificar os modos
como essas obras foram vistas para serem parte da instituição museológica. Mais do que
isso, devemos pensar em alternativas de superação do modelo de museu ocidental que
por séculos obliterou outras possibilidades de vislumbrar a arte de origem não-ocidental.
A narrativa linear dentro do museu, após as últimas décadas, foi afetada pelos
discursos críticos dos grupos considerados marginalizados – assim como por fatos
históricos, como o fim da II Guerra Mundial e a queda dos governos coloniais na África
e Oriente. Essas críticas contundentes ao museu tradicional, que apontavam para o seu
conservadorismo e anacronismo histórico, forçaram a abertura de um debate amplo sobre
os métodos e dispositivos do ato expositivo. Desse modo, foi cobrado do museu
tradicional uma forma mais democrática e contemporânea de escrever a história. O
museu passa a ser um local de debate sobre a melhor maneira de situar a participação dos
diversos grupos étnico-sociais presentes nas sociedades contemporâneas.
Essa é, certamente, apenas uma faceta dos novos problemas museológicos
enfrentados hoje. Não obstante, grande parte dos museus operam dentro de uma lógica
linear e autoritária. Todavia, as discussões mais pertinentes ao tema apontam
constantemente para os problemas dessa perspectiva, bem como para as possíveis
alternativas a esse método de construção da história (FERNÁNDEZ, 1999).
A atividade de Araujo como curador de exposições e diretor de museu tem
apontado para esse momento conflituoso da atividade museológica. Não é mais possível
descrever a história como uma seqüência linear de fatos. A história passa a ser a soma e
relação constante entre várias histórias possíveis. Essa nova constatação é pertinente não
apenas para o público especializado, mas para a população como um todo e, em especial,
para os grupos negros. Essa perspectiva pode alicerçar as bases para criar um debate
profundo sobre a participação artística do negro na arte brasileira. Além de questionar o
público mais amplo sobre as suas próprias referências a respeito do tema, essas
exposições fornecem subsídios para que os grupos afro-descendentes possam criar uma
nova consciência de si próprios.

148
No caso da representação do negro e sua cultura, há outros museus brasileiros que
remetem a essa mesma preocupação (LODY, 2005). Todavia, a experiência de Araujo
tem outros contornos. Diferentemente dos demais museus com acervos da África ou
afro-brasileiros focados no passado (BITTENCOURT, 2008; BERNARDO, 2006;
SEPÚLVEDA, 2006), a exposição de Araujo trouxe a presença do negro em suas mais
diversas realizações na contemporaneidade. Não há, em Araujo, a cristalização de uma
cultura negra, mas a compreensão de sua complexidade nos mais diferentes meios.
O trabalho do curador também revela a dificuldade em definir uma história da
arte não-ocidental para além do discurso colonialista. A sua desconfiança em relação a
um suposto método científico de exposição do negro traz esses mesmos resquícios. Cabe
citar Araujo: “(...) em princípio esse não é um museu antropológico. O negro aqui não
serve como estudo científico. O negro aqui serve como manifestação cultural. Como
representação de uma identidade, de tradições, de memória. O Museu Afro Brasil
trabalha dentro de questões da arte, memória e história. Nós não estudamos
antropologicamente o negro” (2008). Para o curador, aplicar um novo olhar sobre essas
peças significa superar as ciências que trabalharam para tornar a cultura dos povos não-
ocidentais apenas um objeto de estudo amorfo (o que foi muitas vezes exibido sob a
mesma perspectiva pelo museu).
Sobre esse contexto, cabe citar a contribuição de Maria Lucia Montes,
comparando a exposição Arte e religiosidade, em Brasília, com outra exposição sobre
cultura afro-brasileira. Segundo a pesquisadora, essa

Foi uma exposição espantosa no sentido de ver a presença afro moldando a cultura
brasileira. Nós estávamos num galpão, um centro cultural na sede da W3. A exposição
era uma coisa que vinha de fora do governo e entrava no cotidiano de Brasília. Era
preciso criar uma forma de leitura da exposição. O Kinoshita deu uma idéia para o pé
direito alto, “Emanoel, porque não colocamos uns panos no teto”? Ótimo! Então nós
tínhamos panos brancos cobrindo o espaço – cobrindo o templo de Oxalá. Depois tinha
um pedaço ligado à escravidão – havia um véu negro, todo prateado, era uma noite
tenebrosa e também um céu estrelado cobrindo um navio negreiro. Aquela exposição era
inteiramente clara. Em contraposição, no Itamarati tinha uma exposição do Aleijadinho,
inteirinha escura, fora os detalhes, cheia de trevas, sofrida, era um olhar de branco. O
olhar do negro era uma coisa deslumbrante com o branco de Oxalá no meio e cor e mais
cor, uma grande produção. É necessário ter muito senso de espaço para armar essas
coisas como exposição. (...) Ele junta arquitetura, história e arte para pensar isso em
curadoria. Depois tem isso do negro e artista. Ele pensa o significado dessa arte com a
história e no espaço da exposição (MONTES, 2008).

Montes comparou a perspectiva de duas exposições semelhantes sobre arte e


cultura afro-brasileiras. O resultado de cada uma, no entanto, é bem diferente. Na

149
concepção de Araujo, o uso da cor e do espaço oferecem outro olhar para os objetos. A
visão de Araujo não é oposta ao pensamento de um curador branco. Por outro lado, a sua
perspectiva é especial por ser de um negro, artista e estudioso da arte afro-brasileira. É a
visão de um curador com uma trajetória singular. Para escapar de uma visão cientificista
sobre essa cultura e arte, o curador busca maravilhar o olhar do visitante pela forma e
sentidos.
Os escritos de George Nelson Preston (1987), crítico e artista norte-americano,
tiveram influência sobre as exposições de Araujo. A perspectiva de Preston é de que a
arte de ascendência africana possui singularidades formais em sua diáspora americana. A
arte afro-americana, assim, teria sua continuidade estilística baseada na arte da África,
mas em novo formato, muito mais “vanguardista”. A proposta de Preston aborda
problemas complexos sobre o estudo da forma e da continuidade artística africana na
América. Todavia, parece dar significado único para uma expressão que é por demais
diversificada – a arte do continente africano67.
Em todo caso, a contribuição de Preston pôde dialogar e fornecer dados para a
concepção de arte afro-brasileira e da diáspora na América por Araujo68. Desse modo,
pensar nas formas artísticas do negro no Brasil significa compreender o intrincado jogo
de representações que esse grupo adquiriu e utiliza no continente americano. Como um
quebra-cabeça, as peças para o entendimento desse problema não estão somente em solo
brasileiro, mas em seu contorno.
Vale constatar que há proximidades e distâncias entre essas produções. Se
existem semelhanças entre a arte dos diversos povos de ascendência africana em solo
brasileiro, há uma infinidade de novos caminhos produzidos devido ao contato desses
com a arte e cultura ocidentais. Cada um desses caminhos resulta em um problema à
parte.
67
A arte da África que conhecemos, pertencente a diversos grupos desse continente, não parece ser
passível de se aglutinar num mesmo conjunto homogêneo de formas e significados. Muito pelo contrário, a
arte do continente africano é díspar, embora tenha também suas similaridades. Tentar compreender essa
arte como uma unidade que influencia a tradição artística afro-americana, assim, parece ser uma tarefa
difícil. É certo que a arte dos povos iorubas ainda tem sua permanência assegurada nos cultos aos orixás no
Brasil. Porém, por certo essa representatividade adquiriu outros contornos, de acordo com problemas de
assimilação e contato cultural com que cada população se defrontou em solo americano.
68
Comentando o crítico norte-americano, Maria Lúcia Montes diz: “me lembro de uma vez que o Emanoel
conversou com o George Nelson Preston e ele disse ‘você sabia que o fato de você se chamar Emanoel e
de eu me chamar George tem a ver com a hora de partida do navio na África?’. Efetivamente, é necessário
ter essa dimensão de diáspora e esse diálogo não apenas com a África mas com a diáspora inteira. Uma
coisa que o Emanoel nunca esqueceu. Isso está presente nas bandeiras do Haiti, nos retornados da África.
A dimensão da diáspora está presente o tempo inteiro”(MONTES, 2008).

150
A história das artes plásticas no Brasil são um fenômeno repleto de
ambigüidades. A influência de diversas culturas tornou esse espaço elemento rico em
possibilidades. Contrariando esse fato, a nossa história da arte esteve por muito tempo
entrelaçada às correntes internacionais vindas da Europa. A vinda da academia trouxe
uma visualidade própria do poder colonial. Sendo um país de colonização portuguesa, é
de se esperar que seus olhos estivessem voltados para a Europa.
Todavia, o nosso barroco é resultado da deglutição das experiências em além mar
pelos artistas locais. Mário de Andrade (1928) mostrou essa transfiguração artística ao
falar da arte de Aleijadinho. Como podemos notar, a presença dos povos africanos não
alterou somente a composição étnica da população, mas sua cultura e arte.
Outros teóricos em meados do século XX atentaram para a compreensão da
produção de arte afro-brasileira, não como um caso à parte, mas como presença
fundamental para entendimento de toda arte no Brasil. Para além dos textos, Araujo é o
curador que criou uma visualidade para a arte e cultura afro-brasileiras. A partir de seus
olhos, podemos conhecer e relacionar a obra de diferentes gerações de artistas negros e
afro-brasileiros. Dialogamos Mestre Valentim com Aleijadinho. Percebemos melhor a
textura e os meandros da pintura de Estevão Roberto da Silva, Arthur Timótheo de Costa
e de Wilson Tiberio. Analisamos em conjunto Genilson Soares, Rubem Valentim,
Rosana Paulino e Washington Silveira. Além dessa história singular, temos uma forma
específica de lidar com o espaço da exposição.
Nesse sentido, descrevendo a ação de Araujo na Pinacoteca, o que podemos
estender para toda sua trajetória, Ivo Mesquita traz a seguinte ponderação:

A despeito de uma teatralização excessiva na montagem das exposições, uma


espetacularização de imagens e objetos por cores, luzes e pesado mobiliário expositivo,
que por muitas vezes desviava a atenção do trabalho a ser visto para o aparato de
exibição, esse conjunto de mais de vinte mostras (sobre arte afro-brasileira na
Pinacoteca) revelou trabalhos importantes, imagens potentes, e seguramente derrubou
barreiras, ampliou o território, transformando a percepção e o entendimento do lugar e
das qualidades da negritude, e fincando uma cunha importante no delicado debate sobre
raças no Brasil. Talvez, desde a inauguração da Pinacoteca em 1905, esse conjunto de
exposições, aquisições e publicações constitua a mais importante mudança na orientação
conceitual e técnica do Museu, abrindo-o para uma realidade sempre obliterada nos
discursos hegemônicos locais (grifo nosso) (MESQUITA, 2007, p. 167).

Sob a gestão de Araujo, a Pinacoteca abrigou importantes exposições sobre arte


afro-brasileira durante os anos de 1990. A concretização desse percurso se deu em 2004,

151
com a criação do Museu Afro Brasil, passando pela relevante mostra A Mão Afro-
Brasileira (1988) e Negro de Corpo e Alma (2000), entre muitas outras. Essas
exposições do curador baiano têm seu suporte baseado na produção artística vinculada à
experiência do negro no Brasil. A arte afro-brasileira, por sua vez, evidencia traços
contínuos e descontínuos de uma memória que se refaz continuamente. Como veladuras,
as exposições de arte afro-brasileira de Araujo produzem tensões, contatos e cruzamentos
com seu contorno artístico, cultural e social.
Como já citamos anteriormente, a história da arte e crítica de arte construída nos
museus expressa algo sobre campos de poder e legitimação de histórias e memórias. O
que pretendemos neste texto é mostrar como o desenvolvimento do conceito e da história
da arte afro-brasileira nas mostras de Araujo requisita o delineamento de uma outra
história para a arte nacional.
A sistematização de uma história da arte afro-brasileira também tem acontecido
pela articulação expográfica e museológica de Araujo. A sua curadoria foca em diversos
momentos a construção dessa memória, opondo, contextualizando e problematizando
obras e artistas. Através do dispositivo da exposição, Araujo revela um modo de ver a
arte afro-brasileira e o Brasil.

152
ANEXOS

153
Anexos de imagens

154
Vozes da Diáspora (Pinacoteca, 1993).

Imagem 1.1. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

155
Herdeiros da Noite (Pinacoteca, 1994).

Imagem 2.1. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Imagem 2.2. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

156
Herdeiros da Noite (Minas Gerais, 1995).

Imagem 2.3. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Imagem 2.4. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

157
Herdeiros da Noite (Brasília, 1995).

Imagem 2.5. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Imagem 2.6. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

158
Um português tal e qual – Rafael Bordalo Pinheiro (Pinacoteca, 1996).

Imagem 3. Exposição Rafael Bordalo Pinheiro - o português tal e qual, Pinacoteca do Estado,
1996. Segmento O caricaturista. Esquema e montagem final da sala (foto cedida por Gilberto
Habib).

159
Acervo permanente do Museu Afro Brasil, 2008.

Imagem 4.1. Em destaque a obra de Mestre Didi e Octavio Araujo.

Imagem 4.2. Em destaque a Ronaldo Rêgo.

160
Imagem 4.3. Em destaque a obra de Edval Ramosa.

Imagem 4.4. Em destaque a obra de Agnaldo Manoel dos Santos.

161
Imagem 4.5. Em destaque a de Rubem Valentim.

Imagem 4.6. Em destaque a de Rosana Paulino.

162
Imagem 4.7. Em destaque a obra de Mestre Valentim.

Imagem 4.8.

163
Imagem 4.9. Em destaque a obra de Ronaldo Rego e Washington Silveira.

Imagem 4.10. Em destaque a obra de Mestre Didi e George Preston.

164
Imagem 4.11. Em destaque a obra de Genílson Soares.

Imagem 4.12. Em destaque a obra de Emanoel Araujo.

165
Brasileiro, brasileiros (Museu Afro Brasil, 2004).

Imagem 5.1. Fotografia de Nelson Kon

Imagem 5.2. Fotografia de Nelson Kon

166
Imagem 5.3. Fotografia de Nelson Kon

Imagem 5.4. Fotografia de Nelson Kon

167
Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e Contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2007).

Imagem 6.1.

Imagem 6.2.

168
Imagem 6.3. Em destaque a obra de Charles Placide.

Imagem 6.4.

169
Imagem 6.5.

Imagem 6.6.

170
A Divina Inspiração – Sagrada e Religiosa – Sincretismos (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 7.1. Foto de João Liberato.

Imagem 7.2.

171
Imagem 7.3. Foto de João Liberato

Imagem 7.4.

172
Imagem 7.5. Foto de João Liberato.

173
Bijagos – A arte dos povos da Guiné-Bissau (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 8.1.

Imagem 8.2.

174
Imagem 8.3.

Imagem 8.4.

175
Negros Pintores (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 9.1.

Imagem 9.2.

176
Imagem 9.3.

Imagem 9.4.

177
Imagem 9.5.

178
Brasil – Terra de contrastes (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 10.1.

Imagem 10.2.

179
Imagem 10.3. Fotógrafo não identificado.

Imagem 10.4.

180
Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007).

Imagem 11.1.

Imagem 11.2.

181
Imagem 11.3.

Imagem 11.4.

182
Desenhos de exposições (esboço de planta baixa)

Imagem 12.1. Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e Contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2007).

183
Imagem 12.2. Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e Contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2007).

184
Imagem 12.3. Bijagos – A arte dos povos da Guiné-Bissau (Museu Afro Brasil, 2008).

185
Imagem 12.4. Brasil – Terra de Contrastes (Museu Afro Brasil, 2008).

186
Imagem 12.5. Negros Pintores (Museu Afro Brasil, 2008).

187
Imagem 12.6. Exposição Rafael Bordalo Pinheiro - o português tal e qual, Pinacoteca do Estado,
1996. Segmento O caricaturista. Planta do espaço expositivo com anotações de Emanoel Araújo
(Imagem cedida por Gilberto Habib).

Imagem 12.7. Exposição Rafael Bordalo Pinheiro - o português tal e qual, Pinacoteca do Estado,
1996. Segmento O caricaturista. Esquema de abertura de vitrines feito por Gilberto H. Oliveira a
partir das diretrizes dadas pelo curador Emanoel Araujo (Imagem cedida por Gilberto Habib).

188
Imagens de Cartazes

Imagem 13.1. Exposição Bahia, África Bahia (Museu de Arte da Bahia), 27/02 a 14/03/83

Imagem 13.2. Exposição Casa do Baiano, Museu Kumsthaus, Zurique, 1992.

189
Imagem 13.3. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP, Imagem 13.4. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP,
1988) 1988)

Imagem 13.5. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP, Imagem 13.6. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP,
1988) 1988)

190
Obras do artista Emanoel Araujo

Imagem 14.1. Fotógrafo não identificado. Escultura, madeira pintada, 1979, 1.60m, coleção
Antonio Carlos Magalhães
Imagem 14.2. Fotógrafo não identificado. Estrutura vermelha, madeira laqueada, 1981, 80cm,
Acervo do artista

191
Exposições de Lina Bo Bardi

Imagem 15.1. Fotógrafo não identificado. A mão do povo brasileiro (Lina Bo Bardi); MAN de São
Paulo,1969.

Imagem 15.2. Fotógrafo não identificado. Bahia no Ibirapuera (Lina Bo Bardi Lina Bo Bardi e Martins
Gonçalves); V Bienal de São Paulo,1959.

192
Imagem 15.3. Fotógrafo não identificado. Exposição Nordeste (Lina Bo Bardi); Solar do Unhão,
Salvador, Bahia, 1963.

Imagem 15.4. Fotógrafo não identificado. África Negra (Lina Bo Bardi); MASP, 1988.

193
De Valentim a Valentim (Museu Afro Brasil, 2009)

Imagem 16.1.

Imagem 16.2.

194
Imagem 16.3.

Imagem 16.4.

195
Anexos de entrevistas

196
Entrevista de Emanoel Araujo
(concedida a Marcelo de Salete Souza em 2009)

Gostaria que começasse nos dizendo sobre o início do seu trabalho com curadoria.
Eu comecei a fazer curadoria no começo dos anos 1980 com a exposição África–Bahia–África no
Museu de Arte da Bahia. Essa exposição é de 1981.

Tem catálogo dessa exposição?


Não. Tem apenas um cartaz.

Depois disso passou para a exposição A Mão Afro-brasileira em 1988?


Não. Houveram várias exposições lá no Museu de Arte da Bahia.

Como foi o trabalho como diretor no Museu de Arte da Bahia?


Como diretor eu comecei a convite do Antonio Carlos Magalhães. Entre as exigências que fiz
para dirigir aquele Museu, solicitei que ele liberasse as verbas para mudança do Museu do prédio
em que estava porque era uma casa no bairro de Nazaré. Uma casa que pertenceu a um ex-
governador da Bahia. Então, eu aceitei o cargo e ele me deu recursos para isso. E assim foi de
abril de 1981 até janeiro de 1983. Quase dois anos. Nisso eu dirigi várias curadorias: a exposição
de Raimundo de Oliveira, os 400 anos do Museu de São Bento, a pintura baiana. Depois, em
1987, eu fiz a exposição A Mão Afro-brasileira.

Um dos focos da exposição A Mão Afro-brasileira foi o artista negro, independentemente de


seu estilo de origem afro-brasileira, como a obra de Agnaldo Manoel dos Santos. Como foi
a elaboração do conceito dessa exposição?
O conceito da exposição era mapear quem negro foi e quem negro é no Brasil. Independente se
essa obra tivesse ou não contextualizada dentro desse espírito afro-brasileiro. Sendo negro num
país escravocrata, o que o escravo, um sujeito cerceado, podia fazer estava limitado aos dogmas
vigentes da época. Esse talento desses artistas africanos ou afro-brasileiros foi para a pintura,
para a escultura, mas toda ela ligada aos dogmas eurocêntricos.

Antes da exposição Negro de Corpo e Alma, existiu o projeto do Museu do Imaginário. Ele
contribuiu para a execussão dessa exposição? Como?
Não. Em 1988 eu fiz a exposição A Mão Afro-brasileira. Em 1990 a Suíça fez a exposição A
Casa do Baiano.

Com peças suas?


Isso. Nessa época também teve o Herdeiros da Noite (1995), o Vozes da Diáspora (1993). Foram
vários projetos ligados a essa questão. Só em 2000 foi acontecer a exposição Negro de Corpo e
Alma.

Quando o senhor estava na Pinacoteca de São Paulo não havia o projeto de constituir um
arquivo sobre o negro no Brasil?
Sim. Deu nisso aqui (o Museu Afro Brasil).

O que o senhor acha do conceito de arte afro-brasileira? Ele serve para explicar grande
parte dos artistas que estão nessa exposição, como a Rosana Paulino, o Rubem Valentim e
outros?
Essa é uma questão para ser discutida. O que eu denomino de arte afro-brasileira é aquela
manifestação que de certa forma sai fora de uma questão eurocêntrica. Como o Rubem Valentim,
que está com um pé na geometria, mas a geometria dele esta muito próxima de signos baianos.
Nem são africanos, são baianos. A Rosana Paulino com aquela idéia de apropriar os patuás e

197
botar fotos de família, dos seus ancestrais. E por aí vai. Há vários artistas. Não só negros, mas
artistas brancos também. Eu diria que Carybé é um artista afro-brasileiro. Porque toda a produção
dele está dirigida para registrar essa cultura. Mas no registro tem uma invenção dele ali dentro e
ela está ligada à questão afro-brasileira.

A história do museu como uma instituição ocidental geralmente tem tratado a imagem do
negro como exótica. Como o senhor consegue evitar que a figura do negro seja tratada
como exótica ou mercadoria?
Em princípio esse não é um museu antropológico. O negro aqui não serve como estudo
científico. O negro aqui serve como manifestação cultural, como representação de uma
identidade, de tradições, de memória. O Museu Afro Brasil trabalha dentro de questões da arte,
memória e história. Nós não estudamos antropologicamente o negro. O negro, o mulato ou o
mestiço que fez alguma coisa nos interessa. Algum documento que exista sobre esse assunto nos
interessa. Qualquer manifestação artística nos interessa. Nos interessa tudo que foi feito pela
mão negra. Não precisa ser africana. É um erro pensar e querer que o artista seja africano.
Brasileiro é brasileiro. Mesmo que ele tivesse sido um africano escravo, uma vez que é brasileiro
ele é brasileiro. Quando esse sujeito volta para África ele não volta como africano, ele volta
como brasileiro. É muito importante que se diga isso porque as pessoas pensam que seja
fundamental pensar o artista como africano. Mas ele não pode mais ser africano. Mesmo o
Candomblé. Ele é uma invenção brasileira. A Umbanda é mais brasileira ainda. Sei que a
Umbanda já tem uma sintonia e miscigenação com a religião católica. Mas o que eu quero dizer é
que, sendo o Candomblé uma religião de origem africana, mas brasileira na sua essência, os
símbolos ou vieram da África ou daqui feitos por qualquer pessoa. Seja ele branco ou preto. Essa
iconografia quase acabou porque a polícia reteu esse material. A Escola de Medicina Legal tinha
esses objetos como estudo de antropologia absolutamente preconceituoso e racista. Mas tudo isso
acabou. Algumas dessas coisas estão ainda no instituto histórico geográfico. Em Alagoas
também tem uma coleção. A Bahia teve e jogaram fora. Tem o Museu da Polícia do Rio de
Janeiro. Essa produção toda se perdeu. O que não se perdeu nós conseguimos ver em alguns
lugares e aqui no Museu Afro Brasil.

Em relação ao seu método de exposição, como você pensa o espaço expositivo?


Eu entendo que a curadoria é um projeto que se fundamenta e se completa na medida em que ele
se arma no espaço. Para mim, a curadoria não trata de um projeto puramente intelectual. Esse é
também um projeto que tem vários tentáculos na montagem, na curadoria, na contextualização
com objetos afins. Agrupar certos elementos num local que pode colaborar para um conteúdo
mais denso, ou seja, a curadoria tem uma intenção de emocionar, evocar, é uma intenção poética.
São várias as intenções e são vários os tentáculos armados para isso. É com essa característica
que o meu trabalho difere do trabalho de outros curadores. Não é um trabalho somente
intelectual. É um trabalho de pesquisa, de profundo conhecimento, de documentação. Enfim, de
uma série de coisas.

Sobre os seus trabalhos desde o Museu de Arte da Bahia, passando pelas diversas
exposições na Pinacoteca e no Museu Afro Brasil, o que você destaca nesse percurso?
São muitas coisas. Não dá nem para enumerar. Bem, mas tem as exposições dos franceses:
(Auguste) Rodin, Maillol. Mas até hoje uma das exposições que mais me impressionou foi a
exposição Bahia–África–Bahia. Essa foi uma das primeiras que eu fiz. Essa exposição foi aberta
num domingo às sete horas da noite. Pela primeira vez na Bahia uma exposição tinha na abertura
1500 pessoas. Quando eu falei com o Antonio Carlos Magalhães em fazer isso no domingo ele
disse “eu vou, mas quem mais vai?”. E foi surpreendente. Eu não sei o que foi exatamente que
aconteceu. Tinha os Filhos de Gandhi na porta, gente do teatro. Enfim, era um verdadeiro
happening. Eu não tinha tido essa intenção. Não tinha imprensa. Houve uma convocação natural.
Foi uma coisa fenomenal. De certa forma eu sempre tive essa intenção de que a exposição deve
pegar a pessoa pelo emocional. Deve emocionar as pessoas. Para mim a exposição é um fato

198
maior do que uma obra na parede. É um fato mesmo sensorial. De unir coisas, música, dança,
texto, fala, cor, luz. E é isso o que me caracteriza quando eu faço uma exposição.

Imagino que o senhor pôde conviver com pessoas como Pietro Maria Bardi, Odorico
Tavares e Lina Bo Bardi. Como foi essa influência?
O meu aprendizado foi autodidata. Convivi com Dona Lina e com o Pietro, mas não foi assim o
suficiente para me fazer um discípulo. Eu sempre gostei da Lina porque ela tinha também esse
espírito. Eu trabalhei com ela em 1963 na exposição Nordeste. Mas isso foi uma forma minha de
observação não só aqui mas na Europa e Estados Unidos. Eu sou um inventor e descobridor de
mim mesmo.

199
Entrevista de Maria Lucia Montes
(Concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: você colaborou durante um grande período com as


exposições do Emanoel Araújo, como foi esse trabalho? Como você vê o percurso do
Emanoel?
MARIA LUCIA MONTES: O grande trabalho que o Emanoel Araujo fez em São Paulo, fora a
carreira dele na Bahia, foi a partir da exposição que resultou na publicação A Mão Afro-
brasileira e isso vai até o Museu Afro Brasil. O Emanoel está nos ajudando-nos a contar uma
outra história da arte no Brasil, uma história que tem cor. Esse é um foco fundamental. Se você
pegar a perspectiva daquela primeira exposição, os grandes nomes estão lá. E quem são essas
pessoas? É um senso comum que são brancos. Um desses silêncios significativos e reveladores
para a gente pensar que, quando alguém dá certo, em algum lugar da história do Brasil, na arte,
na política, no que for, fica dado de barato, que é branco. Eu me lembro que uma vez o Francisco
Weffort (Ministro de Estado da Cultura), se deu conta do que era a matriz brasileira quando a
gente viu a quantidade de pessoas importantes na cultura brasileira que eram negras. Eu brincava
com o Weffort e Emanoel falando “não me enlouqueça, por que agora eu vejo nome de rua e eu
me pergunto de que cor é a rua”. Teodoro Sampaio, Rebouças, essa gente toda. Então, é essa a
história que ele está contando. E olha que de 1988 até agora já fazem 20 anos. E antes disso
tinham mais 20 ou 10 anos dele de busca dessa outra história. Acho isso de uma coerência total.
Onde está a mão afro-brasileira? Que mão que é essa? Quem construiu o quê? E que quando deu
certo sumiu enquanto identificação étnica? Essa é uma questão que atravessa o trabalho do
Emanoel e o Museu Afro Brasil está lá para isso. A gente está lá naquele museu contando uma
outra história. Do lugar do negro na história desse país.
A partir daí há uma série de outras questões a respeito da história da arte, dos estilos.
Como definir isso? Quem são essas pessoas? É preciso ter muito clara essa perspectiva histórica
na cabeça. E através da história e da produção plástica desses artistas acabamos entendendo
inclusive por que o Brasil é um país racista do jeito que é. Você pega o Estevão Silva. Ele tinha
condição de pintar qualquer coisa que o identificasse enquanto identidade étnica? Não tinha. Em
compensação, se notamos o Ataíde, branco, vemos aqueles mulatos lá, que são filhos dele. É uma
coisa muito louca, porque não há só o contato, há uma mistura muito grande. Não dá muito para
separar o que é negro e o que é branco na cultura brasileira. E, no entanto, há uma hierarquia
muito nítida. A ponto de, se deu certo, deixou de ser negro. Naturalmente se assume que é
branco. Na verdade o Ataide tem legitimidade para representar o negro, embora não seja negro e,
provavelmente, porque não é negro. Se fosse negro, ele não teria jamais essa liberdade.

Você também estudou as religiões de matriz negra no Brasil. Isso me fez lembrar uma fala
interessante do Reginaldo Prandi. Ele fala de negros que se tornam evangélicos e brancos
que se tornam adeptos do candomblé. Ele diz que muitas vezes o negro não adere à religião
do candomblé porque isso seria torná-lo cada vez mais negro, tornando o preconceito ainda
maior. Esse fenômeno é próximo do que ocorre com esses artistas negros do fim do século
XIX?
Eu não diria que é próximo, porque religião é possível escolher. Você pode virar evangélico.
Aqui não é os EUA, as pessoas não nascem numa família batista porque são negras. As pessoas
nascem numa família católica, numa família de umbanda. Isso é normal. Até porque o
protestantismo aqui é uma coisa nova. Ser católico não é um traço distintivo. Sendo branco ou
negro, é brasileiro e acabou. Aliás, aqui não se é nem católico, é semicatólico, semimacumbeiro,
semi tudo. É uma mistura religiosa. Então, a escolha da religião é um traço distintivo. Você
escolhe para poder se distinguir. Eu diria que no caso dos artistas não é nem uma questão de
escolha. Isso é implícito na sociedade. É um dado da sociedade brasileira. Inclusive, no trabalho
todo do Emanoel, é possível perceber uma outra coisa interessante: a sociedade brasileira, sendo
uma sociedade de ethos aristocrático (o que não quer dizer que seja aristocrática), é uma

200
sociedade que permanece com o espírito do regime colonial, em pleno século XIX até hoje.
Todos somos iguais mas alguns são mais iguais que outros. Isso é um traço de longa duração da
histórica, um traço aristocrático que faz com que o trabalho manual seja comumente
desqualificado.
Então, quando procuramos a mão afro-brasileira, na verdade, o que se tem atrás da
grande construção da arte brasileira desde o século XVI e XVII são índios, negros e mestiços. A
formação deles tem a ver com a corporação de ofícios. E por causa da corporação de ofícios
tivemos uma presença dessa mão afro-brasileira infinitamente maior do que se poderia ter em
outras circunstâncias. O trabalho manual não é valorizado. Há o mestre, que pode ser branco e
portanto vai ensinar um modelo estético europeu, mas a execução e a capacidade de invenção são
da mão afro-brasileira. Por causa da corporação temos assim o recrutamento em massa de negros,
que podem ser livres. Deixam de ser artesãos para serem mestres também. Assumem um outro
lugar dentro da vida social.
Quando vem a Missão Francesa se abolem as corporações de oficio e começa a tragédia.
Eu aprendi com o Emanoel uma coisa espantosa, de que eu não tinha a menor noção, sobre a arte
acadêmica do século XIX. Debret vem para montar, na verdade, um liceu de artes e oficios e
uma academia de pintura. Foi chamado pelo Rei, “vamos fazer uma nova arte a partir de David”.
E quem vamos botar nessa academia? Quem são os caras que criam arte? São os trabalhadores
das corporações. Os negros. Entretanto, aqui já não se tem mais a corporação para sustentar.
Agora eles têm que se afirmar enquanto indivíduos. Todavia, qualquer que seja o seu talento,
eles, fora da corporação, não deixam de ser negros. Está aí a história exemplar do Estevão Silva,
que recusa o prêmio de segundo lugar. Ele teve coragem de chegar na cara do Dom Pedro II e
dizer “não, eu sou melhor”. A tragédia é que a maior parte desses artistas da academia são os
naturalmente recrutáveis porque são eles que praticam a arte. São bons. Eles viviam por trás da
corporação, havia toda uma tradição. Quando chega a academia eles têm de se afirmar enquanto
indivíduos. E aí, por melhores que sejam, não adianta, a cor aparece. Esses artistas ou morrem
pobres, miseráveis, ou loucos, ou ambos. A quantidade de tragédias no século XIX é
impressionante. Enquanto essa mão de obra negra desaparecia no trabalho, havia eventualmente
um Aleijadinho, ou Mestre Valentim, que por ser tão excepcional, ficava. Mas se pensarmos o
negro artista tendo que se defrontar com outros concorrentes enquanto artista, entre um negro e
um branco, a sociedade vai escolher o branco. Vai ficar com o que ela pensa que é bom. Isso é, o
branco, não o negro.

Há uma questão de status? Com o período da academia, uma coisa é contratar os serviços
de um negro descendente de escravos e outra coisa é contratar, por exemplo, Debret, um
artista francês. Logicamente, para a corte isso tem um prestígio diferenciado.
Até porque antes da academia não se encontra um indivíduo, mas a corporação. Lá dentro o
grande mestre pode ser branco, negro, não importa, há uma diluição social. Agora, quando o
século XIX põe a questão da autoria, ele é obrigado a confrontar o artista enquanto indivíduo.
Em compensação, há essa história complicada e ambígua, há um outro lado dessa sociedade que
torna as relações tão próximas que as pessoas são capazes de aceitar esse artista negro inclusive
enquanto indivíduo. É o caso do Mestre Valentim, o sujeito que é amigo do vice-Rei. Quando o
Luis de Menezes precisa contratar alguém para as obras, quem ele contrata? O melhor artista da
região, que é também amigo dele. Naquele quadro da reconstrução do Recolhimento do Parto,
eles estão lá, Dom Luiz e o Mestre Valentim. Nós temos até samba de carnaval contando essa
relação próxima do Mestre Valentim com o Dom Luis. Até os amores de Dom Luis o Mestre
Valentim compartilhava, segundo a letra do samba.

Você pode contar um pouco sobre o período em que esteve na Pinacoteca a partir de 1995?
Ainda sobre as exposições, em 1988, A Mão Afro-brasileira, o Emanoel foca a autoria negra
e na exposição de 1995, Herdeiros da Noite, nós temos um outro conceito sobre essa
narrativa de arte afro-brasileira que inclui até mesmo o Pierre Verger. Como você vê essa
mudança?

201
Eu te diria que o Emanoel, pensando em profundidade essa história, precisou fazer um escrutínio
geral da história deste país. O foco do Emanoel nunca é arte sozinha. É arte em contexto, é arte e
história. Daí porque todo esse trabalho de levantamento da mão afro-brasileira tem um viés
antropológico, porque busca o registro dessa permanência negra que impregna não apenas o
artista negro, mas a sociedade brasileira no seu conjunto. Quando nós fizemos a primeira
exposição temporária no Museu Afro Brasil – Brasileiro, Brasileiros (2004) – fizemos uma
longa discussão sobre como construir a narrativa da exposição, sobre o conceito curatorial. O
Museu Afro Brasil está contando a história do ponto de vista do negro. E portanto ele pode
perfeitamente incorporar o negro da terra. Ele tem legitimidade para falar do índio a partir do
lugar do negro.
Ora, mas no mundo politicamente correto que nós vivemos já tem branco falando de
índio, o que é errado, e agora negro vai falar de índio? Deixamos claro que queríamos falar do
lugar do próprio índio. Então, pensamos em trazer um antropólogo que, em vez de ele filmar, dá
uma câmera para o índio filmar o que quiser, inclusive ele mesmo. Há um lugar autônomo em
que se pode falar de uma figura indígena do lugar dela. Há uma língua que se preserva, formas de
criação artística, plumária, de madeira, com pintura corporal, grafismos. E como fazer isso em
relação ao negro? Que negro que fala pelos negros? Que grupo político fala em nome dos
negros? Há somente divisão, divisão e divisão. Isso me lembra uma história maravilhosa do
Adenor Gondim, o fotógrafo da Nossa Senhora da Boa Morte. Ele disse que um dia tinha um
programa importante para ser feito em Salvador e estavam discutindo quem vai contratar quem,
se vai mandar o ônibus para buscar mais gente. Bom, isso virou um problema, porque estavam
elas todas se pegando para ver quem decidia. A mais velha olhou para ele e disse “sabe o que é
isso? Senzala, meu filho, senzala”. Quer dizer, a sabedoria daquela senhora sabia o peso que a
escravidão tinha deixado. Não temos redes de solidariedade horizontal no mundo dos escravos, o
máximo que se pode ter são laços de solidariedade vertical, de negro amigo do feitor e por isso
não apanha, o Mestre Valentim amigo do Dom Luis e por isso é reconhecido. A instituição da
escravidão criou uma fratura social. Isso está presente até hoje. Há o socialista radical e o petista.
Eles são os piores inimigos possíveis. Não é negro contra branco. Embora a ideologia seja essa, a
prática é outra coisa. Qual é a produção artística caracteristicamente negra? Do que se pode dizer,
“isso é negro”? Nós fizemos um inventário disso. Resultado: tudo o que se sabe ser negro é
patrimônio nacional...
Os modernistas diziam que a grande maravilha da cultura brasileira era ser
antropofágica, vendo na antropofagia o indígena, mas o verdadeiro antropófago da cultura
brasileira foi o negro, que comeu pelas bordas a cultura européia do senhor. Há o tempo inteiro
essa ambigüidade e essa ambivalência de saber o que é negro. Se quiser separar e compreender,
inclusive sobre uma estética negra, é possível; mas o tempo inteiro nós estamos nos debatendo
com essa ambigüidade do lugar social do negro. Isso está até na historia do Emanoel. Filho de
ourives, ele nem era muito pobre, mas não era mais que um filho de ourives na Bahia. E ,sendo
pobre, negro e gênio, essa é uma grande trajetória.
O Emanoel é uma pessoa difícil, mas quando olhamos a trajetória dele, não poderia ser
de outro jeito. Ele precisou ser assim para achar um lugar nesse mundo. Ele está mergulhado
profundamente na história do negro. Aonde está a presença desse negro? Para poder legitimar o
seu próprio lugar dentro da sociedade, ele fez um trabalho espantoso. Ele fez um inventário desta
sociedade, e eu não conheço ninguém que tenha tido a capacidade de reunir essa quantidade de
material, essa possibilidade de reflexão que ele criou não apenas para ele mesmo, mas para todo
mundo que trabalhou em conjunto com ele. Quando se fala da diferença entre a exposição A Mão
Afro-brasileira e a Herdeiros da Noite, eu te digo que não tem diferença nenhuma no projeto. É
a mesma coisa, porque o problema é o mesmo. No caso de A Mão Afro-brasileira havia um foco
mais preciso, ele pesquisou a identidade étnica de artistas consagrados, escritores e cientistas. Há
um momento muito ambíguo nessa história brasileira em que se tem efetivamente um lugar do
negro que depois desaparece, “branqueia”. Os irmãos Timótheo, por exemplo, note as pinturas
que retratam esses caras. Eles começam a ser pintados como negros. Mas depois que deu certo,
vai branqueando de um jeito que se pergunta: é o mesmo cara? É! Mas só que, milagrosamente,

202
mudou de cor. É a mesma coisa com essa gente toda do século XIX. Há um surto extraordinário
de produção e criação intelectual negra no Brasil. Não apenas no campo das artes. Isso também
tem a ver com educação. Esse é um grande instrumento através do qual é possível construir um
outro lugar social para o negro. Exemplar é a história do Luis Gama: filho de escravo, vendido
aos 5 anos de idade, revendido aos 13, indo parar no Rio de Janeiro. Depois, aos 17, inteligente
demais, começa a aprender a ler e se torna o Luis Gama.

Ele inventa uma história para si mesmo, constrói uma genealogia através de sua mãe...
Que sumiu após a revolução dos malês. Aquele texto contando a biografia dele é de tirar o
fôlego. A secura com que ele vai narrando aquelas coisas. Mas, em suma, essa é uma coisa muito
peculiar da historia do Brasil. É um momento em que a instituição da escravidão está sendo posta
em cheque. Isso deixa para as elites a pergunta “o que nós vamos fazer quando não houver mais
escravos?”. Então, temos desde o Vergueiro importando imigrantes para as fazendas de café até o
grande projeto educacional dos maçons. A maçonaria é absolutamente fundamental. Ela está por
traz da criação do Liceu de Artes e Ofícios na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo. A história
que nós conhecemos de mais sucesso tem os maçons por trás. Ramos de Azevedo, por exemplo,
criador do Liceu, era maçom. A Unicsul lá no Jardim Anália Franco, a sede dela, é a casa da
Anália Franco. E foi feita para ela pelo Ramos de Azevedo, em função do projeto educacional
dela. Imagina, morando no interior, não casada, tinha um amante e se propunha a ensinar as
primeiras letras para crianças brancas e negras! Na biblioteca, onde é a sede da Unicsul, tem uma
parede inteirinha pintada com figurinhas escrevendo em cartilhas dos anos 1910 e 1920, tem
brinquedos de crianças negras e brancas. A Anália Franco é maravilhosa e o apoio para esse tipo
de iniciativa é sempre da maçonaria, que tem essa preocupação com a questão da abolição. É
uma perspectiva humanista. A escravidão é um horror. Ela vai acabar e o que vai ser dessa gente?
O que vai ser deste país?
Com a educação, no século XIX há gente importante ocupando cargos na arte, na
literatura, nas ciências, na política etc. Isso em função desse processo de educação
profundamente criado pela maçonaria. Há um momento da história brasileira onde teríamos tido
a possibilidade de que a história do negro fosse de outro tipo. A abolição não acabou. Começou,
mas não acabou. Não é à toa que o Patrocínio, o Nabuco, essa gente toda, era monarquista. Eles
sabiam que a única possibilidade da abolição ser concluída é graças a quem vai precisar do apoio
do negro, que é o Império. Os grandes abolicionistas são monarquistas. Eles têm consciência que
misturar a questão social com a questão do regime político é um erro, mesmo dos republicanos
históricos mais idealistas, como Silva Jardim ou Ruy Barbosa. Os republicanos de 1888 são
todos aqueles que perderam os seus escravos e viram republicanos no ato. De onde sai o Partido
Republicano? Da Convenção de Itu. Os caras já tinham resolvido o seu problema de mão de obra
importando italianos e espanhóis. A partir desse momento, danem-se os negros. Já se resolveu o
problema do café, mesmo com a república dos militares. Há um período de instabilidade e daí se
instala o café-com-leite. Mas até os anos 1930 há continuidade com o século XIX. Há ainda um
lugar do negro enquanto cidadão, a imprensa negra, os projetos educacionais feitos por negros.
Depois, vem a Guerra, a década de 1940, e então isso vai mudar.
Quando, na década de 1930, estudam o lugar do negro, a democracia racial, isso não é
invenção de Gilberto Freire. Se pensar no caso americano, há segregação racial lá e aqui há um
tipo de convívio que seria impensável nos Estados Unidos dos anos 1930 e 1940. Aqui há
condições sócio-raciais e inclusive econômicas , através da educação, de integrar esse negro
enquanto cidadão. Isso pelo esforço dos próprios negros, porque a política oficial não resolveu o
problema. O café-com-leite mantinha o domínio político para o benefício dos grandes senhores
sulistas e acabou. Nas décadas seguintes isso se inverte, nos EUA o movimento dos direitos civis
põe a população negra em outro patamar. Hoje, se comparamos a população negra americana e a
brasileira, é água e vinho. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Por que estou falando isso?
Porque tudo que eu aprendi da história do negro, sobre a estrutura de funcionamento desta
sociedade, foi graças ao Emanoel. Por causa do trabalho que tinha de fazer com ele. Ele tinha
pilhas de objetos sobre a mesa e precisava refletir sobre tudo isso para aprender a entender a si

203
próprio, para mostrar ou justificar a sociedade brasileira, o mundo do qual ele é uma exceção. Ele
seria a regra se tivesse nascido no século XVIII. O pai dele era um grande artífice, um ourives.
Nós vamos escavando mais longe e vemos que toda a técnica de metalurgia brasileira é africana.
São eles que sabem lidar com isso. A técnica de fabricação do metal não é portuguesa, é africana.
O que é a grande coisa que o Emanoel fez? Primeiro rastreou a mão afro, depois começou a
recortar fatias disso, e então deu a elas a dignidade de obras de museu. Uma coisa inteiramente
inédita nesse sentido.

Ele colocou certos objetos num espaço, o museu de arte, que tradicionalmente não recebia
aqueles objetos dessa forma.
Sim, na abertura da exposição Os Herdeiros da Noite o Emanoel chamou o Tião Carvalho, o
maranhense lá do Morro do Querosene, do boi. Tinha também a baiana do acarajé. O Tião
Carvalho tocou o boi na frente da Pinacoteca na Tiradentes num sábado de manhã. Juntou aquela
gente toda e o Tião falou: “pode subir, pode entrar!”. Ele solicitou para o público entrar naquele
espaço totalmente sacralizado, branco e de elite. Com isso estávamos quebrando a marca de elite
e dizendo: “qualquer um pode entrar”. Não apenas qualquer um pode entrar mas, lá dentro, o
público vai ver uma coisa que nunca viu, que faz parte desse mundo e do de qualquer um.

Durante os anos 1990 a Pinacoteca deu um salto em termos de aceitação pelo público. Essas
ações contribuíram para dar um novo caráter para a Pinacoteca?
Sim, completamente. O Emanoel tem um toque de Midas. Ele tem uma inteligência
absolutamente brilhante. Ele é um criador de exposições. A Pinacoteca precisava se tornar
visível. Ela estava lá há 100 anos. O prédio caindo. A Faculdade de Belas Artes tinha acabado de
sair do prédio. De onde era possível tirar dinheiro para reformar esse prédio? O Emanoel, de uma
maneira genial, fez uma política de visibilidade da Pinacoteca. Isso tudo começou com a
exposição do Rodin. Foi nessa época que fui parar lá. Não por causa do Rodin, mas por causa de
outra coisa. Eu fiquei na Pinacoteca porque eu me dei conta do tamanho do desafio que o
Emanoel estava propondo. Sobre o Rodin, o problema da fila de 7 horas para ver a exposição é
que a exposição estava no primeiro andar. O Emanoel não tinha certeza da segurança das vigas
para colocar aquelas esculturas com aquele peso e aquele monte de gente. Enfim, a exposição já
estava sendo montada, e ele colocou ela lá embaixo para ter certeza que não teria risco para as
pessoas. Ele mandou tirar o assoalho para dar uma olhada nas vigas, mas ainda assim havia um
número limitado de pessoas que podiam circular no museu. Quando eu cheguei lá é que eu me
dei conta de onde estava aquele homem. Ele fez tudo aquilo com a exposição do Rodin. O que
ele tinha na cabeça, em termos de projeto, de reformar aquilo e pensar no que podia ser, era
excelente. Ele pensou num outro lugar para ver a cultura no Brasil. Eu falei: “esse homem pensa
longe demais”. Não tem nada de mesquinho, nada pequeno. Como nós podemos deixar esse cara
sozinho?
Naquela época a Pinacoteca tinha duas restauradoras, que ao mesmo tempo atendiam
telefone, recebiam correspondência etc; um designer gráfico que tinha feito o catálogo da
exposição Rodin; um monitor que coordenava o trabalho para a exposição do Rodin e eu que
cheguei. Isso era o staff da Pinacoteca. Na verdade, o Rodin foi o marco que permitiu ao
Emanoel criar visibilidade para aquele espaço. Mas desde o começo ele foi demarcando que essa
visibilidade tinha de ser original, mostrando uma outra coisa que nunca se viu na alta cultura.
Quer dizer, Os Herdeiros da Noite é uma exposição que marca, com a baiana e o Tião, uma
forma de estar trazendo esse outro universo para dentro do espaço sagrado da exposição. Agora,
como é que eu fui parar lá foi um fato engraçado. Não tinha nada a ver com a Pinacoteca. Eu
trabalhei 5 anos com carnaval, com o Joãosinho Trinta lá no Rio. E aí eu descobri um aderecista
e fotógrafo. O tempo todo que eu estava registrando antropologicamente o cotidiano do barracão,
esse cara fazia a mesma coisa com as fotos. Eu era personagem das fotos dele. Isso acaba com
aquela definição antropológica de quem é sujeito e quem é objeto. Em 1994 ou 1995 eu vi o
conjunto de fotos do cara e pirei. Pensei: “eu tenho que fazer uma exposição disso, é uma escola

204
de samba vista por um lugar de onde ninguém viu . É o barracão se contando a si próprio, do
lugar de dentro”.

E essa exposição foi para a Pinacoteca?


Não. Foi pro MAC. A Ana Mae estava lá e volta e meia ela me chamava. Dizia: “eu preciso de
um antropólogo de plantão”. Isso acontecia toda vez que aparecia um “problema” naquele museu
de arte, como um tapete de Corpus Christi...

Como foi que essa produção entrou lá no MAC? Houve discussão?


Claro. O layout dessa exposição foi de um templo, uma igreja. O Gabriel Borba construiu um
cenário com uma grande nave central. Lá no altar-mor uma foto do Joãosinho Trinta dormindo,
dentro de um carro alegórico, que era um navio, a nave dos loucos. Na epígrafe da exposição
estava “um homem sonha – e mãos que trabalham e recriam o universo”. Para fazer isso há a
cabeça do carnavalesco, mas sem aquele trabalho do barracão nada daquilo dá certo.
Na exposição, as capelas laterais foram construídas para virar os diversos setores de
trabalho do barracão. Isso é uma coisa feita para a glória do efêmero. E ao invés de fazer a
grande exposição de fotografia, fiz um trabalho de etnografia. Então havia o registro do processo.
Cada painel contava um fragmento desse processo de trabalho, mas com o olho da etnografia.
Alguns achavam um absurdo. Por que fazer uma exposição com um monte de fotografias de
péssima qualidade? Claro, se estão querendo a imagem fotográfica em especial, não é isso o que
eu foquei. Em compensação, uma das coisas que lembro com maior alegria é que provavelmente
eu nunca vi o MAC com tanta gente. É claro que o Joãosinho veio ver. E aí todo mundo – vigia,
porteiro, moça da limpeza – queria estar dentro da exposição. Na hora da fila, dentro da
exposição, democraticamente aquilo era uma fila. Tinha gente que nem sabia quem era a Ana
Mae. Ela estava no meio da fila, eu falei “Ana Mae, deixe eu levá-la até o Joãosinho”. Ela disse
“não, está ótimo aqui”. Essa exposição foi uma experiência completamente esquizofrênica e
desconexa na história do MAC. Por um lado era o “horror estético” completo. Imagine papel
enrolado, pregador de roupa, fotografia de má qualidade e aquela inundação de imagens. Agora,
por outro lado, tinha a coragem e a beleza da Ana Mae de bancar aquilo, essa inundação de
gente, os outros, aqueles que vão ver o bumba-meu-boi na porta da Pinacoteca.

Isso é uma questão de proximidade e identificação do público com o universo cultural que
lhe diz respeito, exatamente como o Emanoel Araujo faz?
Aliás, na exposição Os Herdeiros da Noite, aconteceu que o pessoal morria de medo de entrar lá
dentro. Aí o boi disse “pode vir, não é proibido”. Depois de entrar, eles não deram grande bola
para a exposição Herdeiros da Noite; em compensação, o acervo da Pinacoteca, aquela
maravilhosa arte do XIX, foi muito visitado. Perguntavam, “a gente pode voltar aqui?” Claro que
pode. Pela primeira vez eles tiveram acesso a grande arte porque a gente os chamou, pelo boi. E
trazendo uma coisa nova em termos de visualidade. Coisas que os faziam perguntar sobre o que
aquilo está fazendo lá dentro? Então a identificação era o boi e a grande cultura. A exposição que
estava no meio eles podiam pular. Viram, gostaram, mas não entenderam muito. Até porque a
exposição, que tinha como subtítulo Fragmentos do imaginário negro, não era uma coisa muito
fácil para um público iniciante.

Mas eles viram uma exposição do século XIX que, no entanto, também tinha um pintor
como o Estevão Silva...
Claro. Mas aí eles não sabem quem é branco ou preto. Depois eles vão tirar o Estevão Silva do
contexto e vê-lo como negro...

Fato interessante desse período foi a criação da sala do Rubem Valentim num local
privilegiado. O artista, fortemente identificado com uma cultura afro-brasileira, estava do
lado do Rodin e de diversos outros artistas da chamada alta cultura brasileira e
internacional. Isso é uma nova narrativa que se forma?

205
Como projeto museológico, é uma revolução. Há um novo convívio, um diálogo, que é
inteiramente inusitado. Eu não conheço ninguém que tenha feito uma coisa tão inovadora, como
projeto de museu, como essa. Agora, o que me levou para a Pinacoteca é que estava fazendo
aquela exposição do Joãosinho Trinta lá no MAC e o Emanoel estava fazendo uma exposição
sobre carnaval com acervo do Tinhorão. Eu tinha levado um tombo, uma ruptura de ligamento,
que me impedia de andar. Uma amiga minha ligou para uma outra e disse “Alugue uma cadeira
de rodas, pegue a Maria Lucia e leve na Pinacoteca. Tem uma exposição de carnaval lá e ela tem
que ir falar com o diretor do museu”. Eu tinha uma vaga idéia que o Emanoel era um negro.
Quando o vi passando lá na Pinacoteca, fui atrás e perguntei “você é o Emanoel?”. Ele disse
“sou”. E aí conheci o Emanoel e falei com ele sobre a minha exposição do carnaval. Depois
houve um debate no MAC e nós convidamos o Emanoel. Ele foi lá, foi ótimo. E ele perguntou se
eu não queria ir na Pinacoteca, “tem um projeto lá que estou desenvolvendo e você podia dar
uma olhada”. Isso já era na época do Rodin. Fui lá ver o projeto dele. Chamava Negro de Corpo
e Alma.

Isso em 1994 já?


Sim, foram quase sete anos de trabalho até a exposição de 2000. Ela era inicialmente um projeto
e depois se tornou a exposição Negro de Corpo e Alma. O Emanoel me chamou lá para dar uma
olhada nesse projeto. Quando eu olhei o que era aquele museu e o que aquele homem tinha na
cabeça, pensei, “tenho de ficar”. Tinha lá o Gilberto Habib que trabalhou na monitoria do Rodin,
um designer gráfico, duas restauradoras, eu, mais seis meninos da montagem, tudo em paralelo
ao trabalho da Pinacoteca. O que tinha lá de funcionário público era muito pouco. O Emanoel
precisou criar um museu paralelo para poder implementar essas ações.

Na exposição Negro de Corpo e Alma há uma divisão interessante sobre os temas – Olhar o
Corpo, Olhar a si Mesmo, Sentir a Alma – como foi a elaboração desses conceitos para
pensar essa exposição?
Isso já estava na cabeça do Emanoel num primeiro momento. Devido ao tamanho do material
que ele tinha, nós tentamos fazer um projeto, no qual transformaríamos a Pinacoteca num núcleo
de pesquisa associado à USP para poder, via FAPESP, legitimar esse local como um lugar de
pesquisa. Além disso, poderíamos pagar pesquisadores, começar a organizar aquele acervo do
Emanoel e fazer uma troca entre Universidade e museu. Isso era uma coisa totalmente desprovida
de propósito para a FAPESP naquele momento. Hoje em dia, a FAPESP estava louca para
fazermos um projeto assim, mas quando isso foi proposto, não aconteceu. Teve uma época em
que havia um bando de pesquisadores discutindo a catalogação desse material e aprendendo a
refletir sobre ele através da sua manipulação. Nós tinhamos a Íris Kantor, da História; a Iara
Schreiber, historiadora e antropóloga; a Luciana Aguiar, professora da USP; o Gilberto Habib e
eu, além de outras pessoas. Nós fomos pesquisando aquele material, discutindo com o Emanoel o
tempo inteiro. O vínculo entre Universidade e FAPESP não aconteceu, mas nunca deixamos de
mexer no material. Enquanto isso, o Emanoel continuava com a política de visibilidade da
Pinacoteca. A primeira exposição grande que acompanhei foi a do Rafael Bordalo Pinheiro, o
caricaturista, o ceramista e os artistas do Grupo do Leão. Uma exposição internacional. Um
detalhe: o Emanoel tinha a casa dele forrada de material do Bordalo. Nós pudemos fazer uma
recomposição do que era aquele mundo da caricatura sobre o Imperador, sobre sua relação com o
Agostini, com o Patrocínio. Tanto que o Emanoel agora fez uma exposição sobre o Bordalo e o
Patrocínio. Hoje ele tem legitimidade no Museu Afro Brasil para fazer uma exposição só sobre o
Patrocínio. Antes, essa era apenas uma vertente da obra do caricaturista e ceramista Bordalo. De
repente nós começamos a fazer uma outra exposição negreira – na Bahia eles chamam todo
branco que estuda negro de negreiro, Verger era negreiro, o Carybé, e eu, claro, fui promovida a
negreira – era Arte e Religiosidade no Brasil – Heranças Africanas. O tempo todo era uma tarefa
de romper fronteiras. Isso é uma coisa absolutamente característica do Emanoel.

Aconteceu uma exposição de fotos africanas também em 1996?

206
Isso tinha a toda hora. O mês de maio era dedicado à fotografia. Aconteceu uma exposição que
fizemos sobre o cara que retratou Canudos, Geraldo de Barros. Nessa época estava saindo o
filme. Então nós fizemos um jogo sobre o que é ficção e o que é realidade com fotografias. A
fotografia como suposto documento da época é construção, é o olhar do republicano querendo
acabar com os fanáticos. O único lugar em que há de fato a população de Canudos é a hora em
que eles estão rendidos e a foto do conselheiro morto. Por outro lado, nós tínhamos as cenas do
filme, que era ficção. Na verdade, para conhecer a Canudos pelo seu outro lado era preciso ver a
imagem do povo real na obra de ficção, pois o documento “real” da época é que era uma outra
ficção. Nós tivemos também a exposição do Walter Firmo, sobre Pixinguinha. E, finalmente, a
dos fotógrafos africanos. O mês da fotografia era o momento de pesquisar esses temas populares
ou de mostrar o trabalho de fotógrafos negros. Toda a parte de fotografia do Museu Afro Brasil
atual foi instituída a partir desse trabalho do mês da fotografia na Pinacoteca. Havia as grandes
exposições internacionais, sempre com um pé na historia. A escultura começou com o Rodin,
passou pelo Maillol, o Bourdelle, a Camille Claudel. Aqui a gente já estava no Ibirapuera. A
Pinacoteca tinha finalmente dinheiro para ser reformada e o museu foi para o Ibirapuera. A
exposição que fizemos no parque era a conclusão dessa série dos grandes escultores.
Entre outras coisas, nós resolvemos naquela época fazer um site na UOL sobre a
exposição da Camille. Então a exposição estava on-line também. Havia muito retorno de pessoas
de todo o Brasil. Isso teve desdobramentos e o Emanoel ganhou um prêmio na França por causa
da exposição do Rodin. O pessoal do Museu Rodin na França nunca tinha visto uma exposição
tão próxima da obra do Rodin. Com o prédio da Pinacoteca, mais um escultor fazendo a
curadoria, foi excelente. Isso criou uma forte relação do Emanoel com o Museu Rodin que
permitiu depois a criação de outras exposições do Rodin pelo Brasil. E finalmente a proposta de
criação de um Museu do Rodin na Bahia, que agora não se sabe quando que vai sair. O governo
do Antonio Carlos Magalhães, o PFL, fez essa parceria em forma de comodato. Uma coisa
inédita. O Museu Rodin estava fazendo uma filial cedendo em comodato peças do museu para a
Bahia. Fizeram até uma exposição baseada no projeto do museu para inaugurar. Mas mudou o
Governo. Imagina, projeto do PFL? O Wagner vê... Mas o começo disso tudo está na exposição
do Emanoel. Ele tem uma trajetória vinculada à arte dele, a escultura e a procura por grandes
exposições internacionais de prestígio, mostrando os escultores clássicos e os contemporâneos. E
agora no Museu Afro Brasil ele trouxe os artistas africanos. Há essa linha do escultor Emanoel
refletindo sobre a história da sua arte.

Além do vínculo entre artista e curador, o Emanoel também é colecionador. Você entrou
em contato com essa coleção? Tentando sistematizar esse conjunto que é suporte para as
exposições dele?
Inviável. (risos)

Como foi esse trabalho com a coleção?


Isso nós fizemos quando finalmente fomos montar a exposição Negro de Corpo e Alma. Nós já
estávamos no Ibirapuera e ele foi trazendo aquele material. Já tinhamos trabalhado com uma boa
parte dele, desde quando eu fui para lá ajudar no projeto Negro de Corpo e Alma, para o centro
de pesquisa, que era um projeto de catalogação do colecionador. Isso serviria de base para fazer o
projeto Negro de Corpo e Alma. Mas com a FAPESP não aconteceu. Finalmente a exposição foi
realizada, depois de quatro ou cinco tentativas. Tinha um amigo dele que queria levar a
exposição para Nova York, mas não aconteceu. A Bienal queria que o Emanoel fosse curador de
uma outra exposição nos 500 anos, ele foi e disse que não, “eu quero fazer esse outro projeto”.
Era para serem 10 exposições, acabaram sendo 11. Incluiram Negro de Corpo e Alma.

Que inclusive está separada da mostra arte afro-brasileira na exposição Brasil + 500...
Sim, que foi realizada pelo Kabengele Munanga. O Emanoel também fez a curadoria da mostra
de arte popular e sobrou a Carta de Caminha e o Cangaço. Tudo lá dentro do prédio. Fora que o
Edemar Cid Ferreira saía com o Emanoel de baixo do braço para difundir a imagem do Brasil no

207
mundo. Ele era curador de quatro exposições lá dentro do museu. Nunca foi tão fácil trabalhar
com o Emanoel. Como não dava para criar maluquices, nós tínhamos algum problema,
pegávamos o celular e falávamos com ele. Emanoel, o problema é esse. Temos a solução 1, 2 ou
3. Qual você prefere? Bem, faça isso e aquilo. Quer dizer, ele pegava aquelas e criava uma outra
alternativa. Era preciso ter objetividade. Enfim, nessa hora de organizar o conceito curatorial, ele
foi trazendo o acervo lá para o Parque. Era uma quantidade enorme de material sem conservação.
O Gilberto Habib comprou quilômetros de acetato para poder embalar o material. Haviam as
grandes mapotecas também. Nós então olhávamos cada peça e catalogávamos segundo os temas
Olhar o corpo, Olhar a si mesmo e Sentir a alma.
O acervo foi organizado em função da exposição. O Emanoel não achava mais nada
(risos). Mas dentro de toda aquela produção industrial, nós já sabíamos onde ia cada coisa. Como
o Emanoel estava muito ocupado, essa época foi um dos momentos em que nós mais trabalhamos
em conjunto, efetivamente. Nós criamos esse diálogo espacial da exposição. Se alguém via na
diagonal, havia tensões; se visse na vertical, havia continuidade; se olhasse na horizontal,
contrastes. Todo o desenho do espaço foi pensado para fazer uma narrativa que é muito
complexa.

Essa narrativa é menos linear, propõe mais confrontos?


Nem uma coisa nem outra. O que eu aprendi nesses sete anos trabalhando com o Emanoel é que
não é possível falar da problemática do negro no Brasil sem falar da ambivalência. Desde o
Aleijadinho fazendo arte européia e o Ataide, branco, pintando uma santa negra, há tensão. Isso
perpassa tudo o que podemos pensar sobre a história do negro no Brasil. Eu tive um problema
com relação aos modernistas. O que são os modernistas? Olhar o corpo ou Sentir a alma? Depois
de sete anos trabalhando nisso, com o catálogo pronto, com os modernistas em Sentir a alma, o
Emanoel decidiu que aquilo deveria ser Olhar o corpo! Após muita briga e discussões, acabou
ficando assim mesmo...

E os artistas do Olhar o corpo ficaram situados principalmente dentro dos séculos XVII e
XVIII?
Sim, um olhar principalmente exotizador. Tinha a tapeçaria, o anão com vitiligo, as formas
caricaturais e até mesmo partituras de música. Nos anos 1930 quando começaram a valorizar a
presença negra, a ilustração é integralmente caricatural. Eu até entendo porque ele estava
incomodado. O cara que estava incomodado era o cara com argumento político. O Emanoel dizia
“você vem com coisa de branco. Eu quero coisa de negro”.
Mas o Emanoel tinha razão pelo seguinte: enquanto artista, ele estava olhando a
representação. Essa representação ainda está impregnada dessa imagem, ainda que os artistas
pensem em traços modernos e transformem isso em um ícone de modernidade e brasilidade.
Enquanto imagem, ela ainda tem um traço forte de exotismo. Mas tem um detalhe, o exótico está
sendo assumido como brasilidade, daí a história do porque Sentir a alma. É o momento em que a
arte está legitimando uma versão de Brasil que não é pautada pelo modelo europeu.

Exatamente quando o Mário de Andrade fala sobre a “mulataria” do Aleijadinho, Mestre


Valentim.
Sim. Sentir a alma era menos uma visão de representação plástica que uma representação a
serviço de uma outra cultura, que está sendo afirmada como inseparável de uma herança negra. O
que define uma identidade cultural, uma cultura nacional. É muito difícil lidar com isso.

Você tocou num ponto importante quando falou do Emanoel político. Embora o Emanoel
não seja um militante, muito do trabalho dele vem de encontro com anseios da comunidade
negra organizada, no sentido de criar uma representação do negro a partir do próprio
negro. Como você vê isso?
Não se esqueça que quando se pensa em negro também é necessário pensar em pobreza,
em carência. Uma imagem que ele tentou em sua vida manter à distância, até mesmo para poder

208
continuar sendo quem ele é. A dificuldade de lidar com o Emanoel eu balizei como parte de sua
história. Novamente, é a tensão e ambivalência. Eu vi o Emanoel colocar os braços em cima da
mesa e chorar feito criança um dia na Pinacoteca. Nós tínhamos um técnico que foi consertar o
telhado, ele estava desempregado, não tinha onde morar e estava dormindo no andar de cima da
Pinacoteca. E o que faz o Emanoel? O diretor de uma instituição pública? Ele tinha que colocar
um negro pobre para fora? Ele chorou... Outra vez, quando ele foi pegar as peças do Artur Bispo
do Rosário na instituição psiquiátrica ele voltou e caiu em prantos. Dizia “por que aquele cara
estava trancafiado lá e não eu? Ele era só um artista. Eu, negro e rico, sou artista. Ele, negro e
pobre, é louco”. Dentro daquela instituição só tinha negro pobre. Isso dilacerou o Emanoel. O seu
jeito difícil foi o modo que ele conseguiu para legitimar a sua posição. Não peça para ele ser
militante, pois a sua história já remete a isso.
Ele oscila. Tem horas em que odeia essa ambigüidade brasileira. Ele preferiria que
branco fosse branco e preto fosse preto. Esse é o modelo americano, que por um acaso se
aproxima da posição militante negra no Brasil, que eu considero um equívoco total em termos de
movimento político. Não tem como dar certo, nossa história é outra. Então isso aparentemente o
aproxima da militância dos movimentos negros, mas simplesmente porque ele não agüenta tanta
ambigüidade. Por outro lado, tem essa pessoa com imensa sensibilidade e conhecimento da
história do Brasil, que sabe que isso é balela, não é assim. A história desse país é a história da
ambigüidade. Agora, não tenha dúvida que ele é uma pessoa fundamental para pensar o que é
legitimidade e representatividade para o negro, pensando em reformular uma outra história não
só do negro, mas do Brasil. O seu engajamento militante é fruto da trajetória de vida dele, mas
isso não é apenas um engajamento político militante restrito. Na verdade, ele está para além do
que os movimentos negros pensam. Ele está pensando uma coisa crucial que nunca foi
tematizada, nem na academia, nem nas instituições culturais, que é a cultura negra. Se pensamos
no negro na história do Brasil, pensamos em escravidão. Mas se pensamos todo o resto do Brasil,
não há Brasil sem o negro. É uma trajetória inteira que desemboca no Museu Afro Brasil. Sobre a
questão da curadoria, eu acho que o Emanoel tem um instinto de produção e criação visual que é
absolutamente extraordinário. Além de ser escultor, o grande sonho do Emanoel era ser arquiteto
ou historiador. Ele como artista sintetizou essas profissões em seu trabalho curatorial. Quando
estávamos montando a exposição dos 500 anos tinha quatro pessoas pensando o espaço do
Pavilhão, que estava em reforma. Ele elaborou a parte de marcenaria inteira das quatro
exposições curadas por ele. Aquele espaço todo do Ibirapuera era uma grande escultura do
Emanoel.
A coisa dos contrapontos, dos ângulos, é uma característica inteiramente africana. Eu me
lembro de uma vez em que o Emanoel conversava com o George Nelson Preston, professor da
CUNY, e este disse, “você sabia que o fato de você se chamar Emanoel e de eu me chamar
George tem a ver com a hora de partida do navio na África?”. Efetivamente, é necessário ter essa
dimensão de diáspora, esse diálogo não apenas com a África, mas com a diáspora inteira. Uma
coisa que o Emanoel nunca esqueceu. Isso está presente nas bandeiras do Haiti e nos retornados
da África. A dimensão da diáspora está presente o tempo inteiro. O George, quando analisou o
trabalho do Emanoel, viu que ele está contaminado do reducionismo e da assimetria que são uma
característica da arte africana. Isso é um valor que está na música, nos desenhos dos tecidos, no
modo de talha da escultura. E a obra do Emanoel é isso. Ainda sobre a curadoria, ele tinha quatro
exposições na cabeça e quando nós entrávamos no pavilhão do Ibirapuera eram 13 mil m2 de
escultura do Emanoel. Cada ângulo trazia diferentes tipos de incidência de luzes dentro da
profundidade do espaço. A montagem da exposição foi criada em função dessa visualidade. Não
é possível dizer que veio primeiro o espaço e depois o conceito ou primeiro o conceito e depois o
espaço. Está tudo junto. Eu digo que só conseguia trabalhar com o Emanoel porque já tinha visto
o Joãosinho Trinta trabalhando no barracão. Ele só sabia definir o acabamento dos carros
colocando todos enfileirados no barracão, percebendo em que ordem eles aparecem para o
público. Ele fazia isso empiricamente e com o Emanoel era a mesma coisa. Na exposição dos
Herdeiros da Noite em Belo Horizonte, ele sentou com o Kinoshita, o arquiteto, planejou tudo,
foi montado e no dia de inaugurar a exposição ele disse, “não está legal, desmonta”. Eram nove

209
horas da manhã e estávamos mudando a exposição! Já que mudou a disposição das peças, isso
altera também o texto, porque o texto estava pautado num diálogo específico entre as peças.

Durante a exposição e depois da abertura havia mudanças na exposição?


Não durante as exposições, isso acontece no Museu Afro Brasil. Isso é muito complicado em
termos de museu. É próprio do museu fazer uma leitura da exposição, preparar o material
pedagógico em função disso, de um modo que não dá para mudar tudo assim. Como se faz para
desenvolver e dar continuidade a esse trabalho educativo? O museu é a vida do Emanoel inteira,
ele conhece cada peça e pode mexer nelas como bem entender. Mas esse tipo de intervenção
Atrapalha, e muito. o trabalho na instituição.

São duas lógicas distintas, a exposição dele e o trabalho educativo? Sendo que o trabalho
educativo necessita ser um trabalho didático?
Não é uma questão de duas lógicas, exposição e educação. A questão é que uma coisa é uma
exposição e outra é a criação de um museu. O Emanoel gerenciou brilhantissimamente a
Pinacoteca porque tinha uma infra-estrutura pronta. Ele podia criar um museu em paralelo e
administrar essas coisas. O grande drama do Museu Afro Brasil é que isso não está garantido,
para poder manter o museu é preciso criar eventos o tempo inteiro. A Pinacoteca era uma OSCIP
sem ser OSCIP, podia angariar fundos de empresas pelas leis de incentivo para patrocinar uma
exposição, mas muitas vezes precisava deles para a manutenção do museu. Então, depois, ele
pegava o dinheiro do Estado, de manutenção do museu, e punha para pagar a exposição. Isso
criava um problema, mas nós tínhamos um advogado específico para acertar legalmenter essas
coisas, o fluxo dos recursos, em termos de fundos públicos e privados. Isso tudo com integridade
total, nunca sendo feito para se favorecer ninguém. Era resultado de uma impossibilidade de
lidar com a burocracia. Se está chovendo dentro do museu, não é possível esperar uma licitação,
então se usa o dinheiro que tem em caixa para o conserto. Enfim, isso estava garantido lá, no
Museu Afro Brasil não está. Fazer isso na Pinacoteca foi possível graças a uma política de
visibilidade da instituição. Ele faz a mesma coisa no Museu Afro Brasil, daí que a exposição
permanente seja tão mutável, até as exposições temporárias às vezes podem mudar. Na exposição
Brasileiro – Brasileiros ele desmontou a exposição, fez um remix do que sobrou e virou uma
outra exposição. Ele está o tempo todo sendo pressionado por essa dinâmica de segurar a
instituição. Isso é um negócio completamente contraditório, porque a lógica de criação da
instituição exige um planejamento e a lógica do cara que faz a exposição é ser criativo e mexer o
tempo inteiro, pois sem isso o museu não subsiste. Mas quando se faz isso, mina as bases da
instituição. Isso cria uma tensão e uma contradição muito grande. Se de repente ele morre, aquele
acervo pode sumir de um dia para o outro. Essa é uma preocupação minha. O Emanoel precisaria
poder confiar nos outros para dividir responsabilidades. Eu vi que os mesmos problemas
começavam a acontecer e vi que precisava sair, mesmo antes de ir embora. Não dá. Porque eu
acho que estou certa de uma perspectiva, mas ele também está certo de outra.
O Emanoel é um grande curador no sentido de que conceito e espaço são problemas
pensados em conjunto. Isso também é uma coisa difícil de equalizar. Alguns reclamam que as
exposições do Emanoel são over e confusas por causa desse método. Nem sempre ele pensa em
evidenciar quais são as conexões para o visitante, porque o espaço te permite fazer. Tem
exposição que não precisa ter nem texto. Há o espaço aqui, nós olhamos para lá do outro lado e o
espaço te deu um contraponto, mostrou uma tensão, relativizou a leitura de um e outro. Mas
quando isso é feito com pressa pode ficar mais difícil de ser lido.
Agora, a genialidade dele como artista lhe permite improvisar. Essa coisa de montar e
desmontar exposição no dia, quando olhamos isso no final, vemos que ele tinha razão, está bem
melhor assim. Na hora do planejamento é uma coisa, na hora da exposição é outra. Olha, tudo
que eu aprendi sobre museologia e Brasil visto dessa perspectiva é devido ao Emanoel. Quando
ele fez uma exposição sobre as várias facetas do Francisco Brenan, eu estava ajudando a fazer o
texto e conversei com o Emanoel. Ele começou a contar as coisas técnicas do fazer do artista.
Isso foi maravilhoso. Como ele tem uma cultura extraordinária, era um escultor vendo um outro

210
escultor que também é desenhista e gravador. Isso é o que estava posto na curadoria daquela
exposição. Eu aprendi indiretamente.
Enfim, o que eu destacaria nessas exposições: 1) a arte e 2) o negro olhando a arte negra.
Ele constrói isso o tempo inteiro com histórias. Eu nunca vi o Emanoel pensar numa exposição
somente na arte, sozinha. Aprendi que nada na arte existe sem o seu contexto, sem
contextualização. Isso não é feito de fora. A história está lá e está integrada como parte da
exposição. Às vezes o sentido dessa história está na exposição espacialmente. Se podemos ver
esses objetos de outro modo, não faz sentido a exposição. A exposição tem sentido quando cria
uma conversa com os objetos de um modo que só podemos ver na exposição.
Me lembrei da exposição Arte e religiosidade, em Brasília. Foi uma exposição espantosa
no sentido de ver a presença afro moldando a cultura brasileira. Nós estávamos num galpão, um
centro cultural na sede da W3. A exposição era uma coisa que vinha de fora do governo e entrava
no cotidiano de Brasília. Era preciso criar uma forma de leitura da exposição. O Kinoshita deu
uma idéia para o pé direito alto, “Emanoel, porque não colocamos uns panos no teto”? Ótimo!
Então nós tínhamos panos brancos cobrindo o espaço – cobrindo o templo de Oxalá. Depois
tinha um pedaço ligado à escravidão – havia um véu negro, todo prateado, era uma noite
tenebrosa e também um céu estrelado cobrindo um navio negreiro. Aquela exposição era
inteiramente clara. Em contraposição, no Itamarati tinha uma exposição do Aleijadinho,
inteirinha escura, fora os detalhes, cheia de trevas, sofrida, era um olhar de branco. O olhar do
negro era uma coisa deslumbrante com o branco de Oxalá no meio e cor e mais cor, uma grande
produção. É necessário ter muito senso de espaço para armar essas coisas como exposição. É
maravilhosa essa coisa que o Emanoel faz. Ele junta arquitetura, história e arte para pensar isso
em curadoria. Depois tem isso do negro e artista. Ele pensa o significado dessa arte com a
história e no espaço da exposição. Há também o Emanoel artista que lê a sua própria arte, o seu
trabalho com a escultura. Junto com a exposição do Rodin foi feita a exposição Expressões do
Corpo. Ele pegou os grandes escultores e os fazia dialogar com a escultura clássica francesa. São
diálogos fundamentais, as matrizes brasileiras com o clássico. O erudito e o popular nunca
separados.

Isso acontece quando ele apresenta, por exemplo, o Nino.


A primeira exposição do Nino foi na Pinacoteca. Quando ele fez a exposição de arte popular foi
incrível. Nunca tínhamos visto tantas peças de arte popular. Sobre a Janete Costa, que tem um
engajamento político completo com essa arte, o Emanoel avalia que ela mistura tudo. Mas tem
um texto do Clarival do Prado Valladares que fala da Janete. Ele fala sobre a sua antiga
concepção pessoal de arte popular como arcaica. Ele sempre achou que sabia o que era arte
popular, mas a Janete mostrou para ele coisas contemporâneas de arte popular. No fim ele diz
“bendita Janete, que me fez sair de meus cânones”. Então, quando ela faz exposição, o objetivo
dela é legitimar essa arte como grande arte, desconstruir a visão de mercado de arte, utilizando de
uma atitude minimalista, mostrando cada obra em isolado. O Emanoel, ao contrário, inundou o
espaço inteiro. Os dois têm razão. Pelo excesso o Emanoel mostra a grandeza dessa criatividade.
A Janete desconstrói preconceitos, botando no espaço do museu uma obra do Nino como se
mostraria uma obra do Brancusi. São duas formas diferentes de se pensar. Outra coisa, quando
tínhamos tempo havia pessoas que trabalhavam como interlocutores, fazendo contrapontos. O
Emanoel trabalhava com essas pessoas, dialogando. Isso era para ele mesmo ter a clareza do
raciocínio. Eu fiz muito esse papel. Era a interlocutora que cuidava da palavra. Ele não tinha
muita paciência para isso. Isso ele fez muito também com o Carlos Eugênio Marcondes de
Moura. Tivemos também a Maria Ignez Mantovani Franco. Ela é dona de uma empresa que lida
com criação de museus, montagem de exposições e tramitações internacionais. Ela foi contratada
para fazer a logística inteira da exposição do Brasil + 500. Quando ela viu quem era o Edemar
Cid Ferreira, pulou fora. Ele processou a empresa e ela ganhou o processo. A Maria Ignez foi
uma parceira constante do Emanoel. Depois, na montagem do Museu Afro Brasil, tinha mais
gente para fazer esse diálogo com ele, como o Vagner Gonçalves, o Oswaldo de Camargo, o Luis

211
Carlos Santos. Havia um espectro grande de pessoas que na montagem do museu fizeram essa
função de diálogo. Isso se reflete também no trabalho curatorial.

Como o Emanoel sempre trabalha com um grupo muito qualificado de colaboradores, você
considera que isso ajudou para a criação de um debate dentro da própria exposição?
Paradoxalmente, isso ocorre menos no Museu Afro Brasil do que podia e devia. Isso acontece
menos do que quando estávamos atuando apenas com as exposições. O que há de forte dentro do
museu é a equipe do pessoal da montagem, que foram formados pelo Emanoel. Os interlocutores
que poderiam dar suporte ao Emanoel poderiam ter dado suporte para fazer isso no programa do
museu. E como ao invés do museu sobrou a lógica da exposição, é em função da exposição que
ele vai recorrendo a essas pessoas. O trabalho de educação é uma coisa difícil de manter, até
porque para falar do museu é preciso uma grande pesquisa – preparar o material e discutir com os
educadores – para poder ter a continuidade institucional do museu. Isso é uma dificuldade
grande, um tanto por causa dessa lógica de produção de exposições uma atrás da outra. Isso
porque precisa movimentar o museu. A situação obriga a ter essa rotatividade. De qualquer
modo, estou falando da perspectiva de quem pensa a longo prazo a instituição, pois é de uma tal
urgência o debate, que toda ação se torna fundamental e relevante.

212
Entrevista de Gilbero Habib Mendonça
(concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: Gilberto, conte-nos como foi o início do seu trabalho com
o Emanoel Araújo.
GILBERTO HABIB OLIVEIRA: Eu trabalhei com o Emanoel cerca de 10 anos, de 1995 até 2005.
Trabalhei com ele até ele se desvincular da Pinacoteca em 2002. Ele foi pra o Museu Afro Brasil
e eu permaneci na Pinacoteca na gestão do Marcelo Araújo. Depois fui trabalhar quase que um
ano no Museu Afro Brasil, até 2005. Então, tivemos contato por quase 10 anos. Nesse meio
tempo aconteceu a Mostra BRASIL + 500. Esse não era um trabalho diretamente vinculado à
Pinacoteca, mas capitaneado pelo Emanoel. Especificamente nos módulos O Negro de Corpo e
Alma e Arte Popular eu fui assistente de curadoria dele. O Emanoel cuidou também um pouco do
módulo Carta de Pero Vaz de Caminha, que era um outro módulo das 13 ou 15 exposições que a
Mostra BRASIL + 500 tinha, mas nesse módulo eu não trabalhei diretamente com ele, porque era
uma curadoria conjunta.

Um pouco antes, em 1994, entre as diversas exposições na Pinacoteca, aconteceu Os


Herdeiros da Noite. Você estava junto?
Não, mas a verdade, se você for pensar do ponto de vista da idealização do Emanoel, Herdeiros
da Noite é parte de um único grande projeto que ele vinha construindo há muitos anos, desde
quando ele começou a colecionar privadamente a partir dos anos 70. Eu acho que, num plano
geral, este grande eixo estava muito mais próximo de ser chamado de Negro de Corpo e Alma,
mas era como se ele fosse sendo executado ao longo dos anos. E depois do Negro de Corpo e
Alma a gente vê que ele tinha mesmo um plano ainda maior que era a realização do Museu Afro
Brasil. Eu acho que o aspecto mais delineado desse pensamento cabe até no Museu do
Imaginário. Esse foi numa etapa em que ele se desvinculou da Pinacoteca. Houve todo um
entreato de um ano de trabalho em cima disso. Eu assisti isso de fora, mas sempre refleti sobre o
trabalho do Emanoel. Sobretudo pelo meu vínculo com a historicidade do fenômeno e do
pensamento museológico brasileiro. Na minha leitura acho que esse pensamento todo está melhor
delineado na idéia do Museu do Imaginário do Povo Brasileiro, que não pôde ser executado. Isso
acabou sendo realizado no Museu Afro Brasil por circunstâncias políticas e históricas.
O pensamento da exposição Os Herdeiros da Noite foi sendo constituído ao longo dos
anos. Foi uma dessas etapas que não aconteceu isoladamente, ou seja, como exposição, a
primeira vez foi em 1994. Eu ainda não tinha vínculo com o Emanoel e depois essa exposição se
repetiu por duas vezes, sempre ele modificando as coisas, mas trabalhando esse repertório. A
primeira vez na Pinacoteca eu não estava lá. Depois em Minas Gerais eu já estava trabalhando
com ele, mas não acompanhei isso de perto. Bem, eu posso falar mais da minha relação com o
Emanoel para você entender porque eu não estava tão perto naquele momento. O meu trabalho
com o Emanoel aconteceu em 1995 de uma maneira muito peculiar, porque na época eu ainda era
estudante de artes plásticas na Faculdade Santa Marcelina. Eu realizei um trabalho de estágio no
Museu do Ipiranga, pesquisando documentos, desenhos e artistas do século XIX (na ocasião
eram os Irmãos Bernadelli). Eu comecei a me dedicar a esse universo do século XIX e ao
universo dos museus, focando o Museu Paulista, no Ipiranga. Comecei a elaborar uma idéia de
uma outra visão da história da arte brasileira, já que o que a gente aprendia na faculdade era
bastante precário em relação a tudo isso. Foi uma experiência única essa no Museu do Ipiranga.
Bem, então fiquei sabendo que ia ter uma exposição na Pinacoteca e que eles iam
contratar um monitor. (A Pinacoteca até então estava esquecida, fora do circuito badalado dos
museus). Me ofereci para isso e fui meio que entrando. Eu entendia do assunto, tinha estudado
algo do Rodin e eu queria trabalhar nisso. Fui entrando nas aulas que o Percival Tirapelli dava
(num curso preparatório para monitores, elaborado a pedido do Emanoel). Chegou o momento
em que a gente teve a visita guiada com o Jacques Vilain, que era o diretor do Museu Rodin e
que começava a ter uma ligação muito próxima com o Emanoel. Nessa visita guiada eu fiz

213
perguntas e me destaquei porque o pessoal do grupo era muito tímido (e desinformado). Acho
que a Pinacoteca na época era muito precária nesse tipo de atitude. Os monitores eram
funcionários públicos muito antigos, não tinham motivação. Quando aconteceu essa exposição,
me destaquei ainda mais porque a Pinacoteca teve aquela visibilidade. Internamente tudo isso era
muita novidade, o Emanoel que também estava ali, batalhando por uma transformação grande do
museu, era sensível a isso. Então, logo eu estava ali no meio do arquiteto, da secretária. Estava
ali a conversar com todo o staff da Pinacoteca, fazendo a monitoria daquele jeito e refletindo
como é que poderíamos melhorar o atendimento do público. O Emanoel é que me “pinçou” nessa
situação. E quando houve a visita do Presidente Fernando Henrique o Emanoel me chamou para
fazer monitoria para ele, para participar do “cortejo” do Presidente. Eu fiquei conhecido então
como “o monitor do presidente”. Por ironia o pessoal teve certo ciúme, mas eu sempre tive esse
vínculo com o Emanoel. Ele dava muitas broncas, mas assim fomos progredindo. Mas acho que
o que unia muito a equipe, o que me vinculou muito ao Emanoel nessa ocasião é que tudo ali
significava ter muita garra. Eu tive que cavar essa oportunidade de trabalhar ali. Hoje em dia eu
vejo que no plano histórico mais amplo o Emanoel estava cavando todas essas oportunidades
para o museu e para essas idéias dele. Depois eu vim a entender esses projetos que ele vinha
mantendo e toda a idéia que ele tinha de renovar o acervo da Pinacoteca, de melhorar o acesso a
Pinacoteca. Esse pensamento ele nunca explicitou teoricamente. Ele fez na prática.
Hoje eu vejo o pensamento do Emanoel sendo lido, ou tendo que ser lido quase que
arqueologicamente pela reunião parcial de fatos e objetos. Tem algo interessante: o Emanoel era
muito reticente em teorizar, formalizar, escrever esse pensamento. Eu nunca deixei de querer
entender isso, então eu tive que buscar meios para ler as idéias e o pensamento do Emanoel. Ele
dava umas pontadas: “não tente me entender, não tente adivinhar o que eu estou pensando”. Em
meio a tudo isso eu tive uma experiência muito particular. Em primeiro lugar eu fui formado (na
primeira turma do Curso de Especialização em Museologia do MAE/USP) nesse período. Mesmo
tendo acabado a faculdade, considero que uma formação tão importante quanto a faculdade foi o
contato com o Emanoel e com a Profa. Maria Lúcia Montes. Considero-os como a minha “outra
universidade”. Então, parte dessa minha experiência foi ir fazendo, ir produzindo, conforme toda
essa expectativa que era gerada ali na Pinacoteca. E enquanto eu não entendia tudo, fui reunindo
dados e essas coisas.
Em 1999 houve o Curso de Especialização em Museologia no MAE - USP, coordenado
pela Profa. Cristina Bruno. Nisso, eu quis formalizar, aprender essa experiência mais formal no
campo da Museologia. Eu percebia que o que eu aprendia com o Emanoel era museologia, mas o
que eu aprendia com ele era basicamente na prática, enquanto que o curso, pelo currículo, seria a
organização formal (e teórica) disso.
Mas isso ainda culminou com outra coisa que foi o seguinte: uma vontade de entender a
cabeça do Emanoel e interagir melhor com ele. Percebi que ele estava criando um grande legado.
Não só do ponto de vista do museu que está lá, da coleção, da cultura material, mas sobretudo do
ponto de vista museológico. Isso tudo me ajudou a entender melhor como os projetos isolados do
tipo Herdeiros da Noite foram progressivamente mostrando o sentido maior do pensamento
museologico de Emanoel.

E isso está muito evidente na passagem dele na Pinacoteca. A Pinacoteca passou de um


museu esquecido para um museu de grande aceitação pelo público.
Ele sempre se pautava pelo que estava sendo feito, ou seja, o que importava era fazer, era o
museu que está lá. Mas existe um pensamento, existe uma linha de diretrizes que conduziu essas
atitudes. Hoje em dia isso pode ser lido — que em parte é o que você está fazendo —, pode ser
formalizado para que outras pessoas aprendam com essa experiência. Eu queria muito entender e
registrar, mas também percebia que eu era um sujeito isolado por tentar “ler” essa trajetória do
Emanoel. Era difícil porque o Emanoel era bastante instável, muito agressivo até, e a maioria das
pessoas estavam mais preocupadas em se defender. Eu, além de me defender dessa postura
agressiva dele tinha também que interagir, tinha que corresponder. Queria ler, deixar isso escrito,
fazer as pessoas entenderem que ele era uma memória viva. Eu era um pouco ligado nessas

214
experiências porque eu tinha um contato muito próximo com ele quando ele criava alguma coisa,
quando ele comprava um objeto, por exemplo. Tive oportunidades de acompanhar o Emanoel em
muitas viagens. Ou mesmo aqui em São Paulo, às vezes a gente ia juntos na feirinha do Bixiga,
ou do MASP. No Rio de Janeiro nós íamos para os antiquários da Av. Siqueira Campos ou do
Rio Design Center.

Como você percebeu o olhar dele no momento em que ele adquiria alguma coisa? O que ele
considerava importante?
Isso é algo tão fascinante que daria um capítulo à parte. As atitudes de Emanoel como
colecionista genial e compulsivo concentram a chave de seu pensamento museológico, e o
Museu Afro está aí para provar, mas trata-se de um projeto que só estará completo quando ele
morrer, e só então poderá ser melhor compreendido. Antes, deixe apenas eu tentar completar meu
raciocínio anterior. Chegou um momento em que eu pensava — Estou adquirindo toda essa
experiência sobre os museus e ao mesmo tempo eles (os museus) estão necessitados de formação
e capacitação de funcionários! Então pensei em criar um curso básico junto com o SENAC – SP
para formação de pessoas para trabalhar em museus. Reuni um pouco de imagens, conceitos do
curso, preparei uma apostila e introduzimos esse sistema no SENAC - SP. Paradoxalmente, foi
este o motivo para a retaliação mais severa que Emanoel fez contra mim, dizendo que o havia
“traído” e me afastando de algumas funções que eu exercia como seu assistente direto na
Pinacoteca.
Eu passei a entender melhor o Emanoel durante alguns trabalhos que eu fiz na
Pinacoteca. Uma vez, eu viajava como courrier e fui à Bahia pegar obras na Igreja do BonFim,
em Salvador. Eu percebia que aquilo era um patrimônio de 200, 300 anos e que nunca tinha saído
da Bahia, e que só sairia nesta ocasião porque o Emanoel era o Emanoel. Era pelas relações que
o Emanoel tinha, ou seja, não era dinheiro, não era papel, não era apólice de seguro. Só que ao
mesmo tempo, mexendo com tudo isso havia a tal classe de museólogos da Bahia, aquelas
pessoas plantadas em determinados cargos, que estavam no “sistema” e que quando o Emanoel
trabalhou lá enfrentou problemas muito grandes. Talvez por preconceito, ou por icompetência
mesmo, essas pessoas devem ter comprometido muito o trabalho dele. Pessoas que tiveram
oportunidade de estudar no momento em que negros não tinham. Era uma classe de brancos, que
usou desses conhecimentos e privilégios para criar um certo entrave nas relações de trabalho. O
Emanoel quando foi dirigir o Museu de Arte da Bahia deve ter se debatido com isso. Daquele
momento em diante eu parei pra pensar que ele odiava museólogos em parte por causa disso.

Eram pessoas que não queriam mudanças?


Aquela coisa do Emanoel dizer “pega esse negócio, vamos botar aqui”. Ele queria fazer as coisas
e o museólogo diz “não, vamos restaurar, não sei quem é o senhor, não pode pegar com a mão”.
E o Emanoel pegava a obra com a mão... Ele comprava algo no Bexiga um dia antes, assim
casualmente, um objeto de feira, e no dia seguinte chegava um museólogo para dizer que não
podia pegar com a mão. Ele queria fazer! Queria trazer mais 500 obras (no final da gestão
chegou a quase 3.000). Ele queria restaurar também, tanto é que formou dentro do museu um
núcleo de restauro! Mas não queria que as pessoas impedissem seu trabalho. Eu deduzo que
nesses anos todos na Bahia, ele deve ter tido razões para ter um certo preconceito com os
museólogos. Mas eu tinha outro pensamento em relação a museologia. Hoje eu também tenho
minhas ressalvas com a “classe” museológica. Você pode ver o histórico aí dos Cursos de
Especialização do MAE - USP, pela batalha insana que nós temos pelo reconhecimento do curso
e a falta de entendimento que nós tivemos por parte da classe museológica. Hoje em dia dou
ainda mais razão para certos aspectos do Emanoel sobre essa “classe”.

O curso no MAE – USP foi abortado por questões políticas?


Ele foi um curso que teve várias edições, um curso bem qualificado, bem montado. A Cristina
Bruno teve bastante mérito nisso e também o Marcelo Araújo, que dava aulas lá. No meu
entender o curso foi perfeito. A bagagem e a experiência que ele pôde nos transmitir com as

215
viagens foi imensa. Haviam professores do mundo inteiro: Espanha, França, Portugal, México,
Estados Unidos etc. Era um curso fantástico mas, quando a gente se formou, nos demos conta
que tínhamos uma referência muito próxima dos cursos de graduação em museologia da Bahia e
do Rio de Janeiro. Nós reivindicamos reconhecimento e equiparação. Só que a classe
museológica nacional dizia que pela lei, para ser nomeado “museólogo” tínhamos que ter a
graduação, e que não bastava a especializaçõa latu senso, por mais que o nosso latu senso
tivesse investido na nossa formação além do convencional. Houve todo um entrave, retaliações,
problemas. Eu vejo que, no geral, os museólogos estão mais interessados no seu título do que
numa proteção do patrimônio público. Enfim, acho que essa minha visão está muito interligada
com a do Emanoel. Porque, muito do que aprendi foi fazendo, aprendi muito mais no sistema do
Emanoel do que no outro sistema. Eu fiquei preso nessas duas formas de aprender a fazer
museologia e acho que tirei o melhor delas. Hoje em dia acho que sou um “filho” bastardo dessas
duas coisas e ao mesmo tempo pago um preço por isso. Porque com o Emanoel eu tive esse
tratamento retaliativo e para a classe museológica eu imagino não ser nada, ou no mínimo um
entrave. Na verdade eu acho que nem posso ser considerado assim... Não posso nem dizer que
sou um entrave porque eles não sabem tanto de mim. Mas eu tentei sistematizar minha
experiência dessa forma, botando isso em prática. Por isso é que eu fui criar o curso no SENAC.
Durou 5 anos: fiz um curso introdutório, depois incrementei com outros módulos. Hoje em dia
ainda me chamam para dar cursos esporádicos. Estou muito contente com tudo que eu aprendi e
na forma como eu tenho retribuído isso, ainda que o Emanoel não aceite.
A minha monografia no curso de especialização em museologia no ano de 2000, quando
estava tendo essa experiência da mostra Brasil + 500, foi trabalhada a partir do pensamento
museológico brasileiro, uma parte mais teórica. Eu queria trabalhar alguma coisa em torno do
Emanoel, mas ele não ia poder servir de meu informante. Então pensei em pedir a colaboração da
Profa Maria Lúcia Montes, que era uma pessoa muito próxima a nós e com quem eu conversava
muito. Ela estava muito envolvida nos projetos do Emanoel (dentro e fora da Pinacoteca), era sua
intelocutora e uma espécie de ghostwriter, porque o Emanoel viajava muito. Uma vez ele estava
em Nova York e a gente tinha que ajudar a formatar os dois catálogos das mostras Negro de
Corpo e Alma e Arte Popular, tínhamos que editar e separar as fotos, (juntos, eles formavam
cerca de 800 páginas) e a Maria Lúcia foi quem se manteve mais ocupada com isso (assistida
por mim). Falei com minha orientadora Cristina Bruno que queria pesquisar alguma coisa em
torno dessa experiência, colocar isso numa perspectiva histórica, comparar com outros exemplos
de gestão, algo que tinha a ver com cultura popular ou a maneira informal de fazer museologia.
Mas ter o Emanoel como objeto de estudo seria de fato muito complicado e minha pesquisa
culminou num tema que indiretamente estaria ligado à toda esta questão: fui estudar o Affonso de
Taunay, que foi o diretor do Museu Paulista no ano do centenário da Independência. Affonso de
Taunay foi quem transformou o Museu Paulista —que na época era Museu de História Natural
— em “Museu de História”, propriamente dita. Ele entrou no museu em 1917 e saiu em 1945.
Ele teve muitos anos de gestão, foi um homem visionário e realizador de uma nova concepção
museológica para sua época. Em Taunay, como em Emanoel pude perceber que havia um
modelo, em termos gerais, muito personalista de se lidar com acervos e museus. Taunay
transformou o “seu” museu radicalmente, ou seja, ele transformou todo o Museu Paulista para
contar em uma nova versão da história. Imagine que naquela época era um desafio tremendo
tratar com a burocracia do Estado e ao mesmo tempo envolver o público cuja maioria era de
(imigrantes) miseráveis e analfabetos. Era preciso ter força para mudar o sistema. Foi ele quem
ornamentou o Museu Paulista com todas as alegorias da independência que hoje reconhecemos
como seu imaginário mais difundido. Ele tinha um contato direto com os artistas, encomendando
as obras. Enfim, foi dessa forma que eu me mantive: ligando alguns fatos da personalidade
singular de Affonso de Taunay ao contexto contemporâneo vivenciado com Emanoel Araújo.

Primeiramente, o Museu Paulista foi feito com essa característica de museu de história
natural?

216
Na verdade, o edifício era para ser só um monumento que marcasse o lugar onde teria sido a
Proclamação da Independência. Quando foi construído o edifício, em meio às obras, foi decidido
que seria depositado uma coleção que já existia. Isso foi uma coleção particular reunida com
outros objetos que eram do Museu da Província. Teve até briga com o arquiteto que não queria
este destino para o prédio, mas acabaram fazendo isso. O primeiro diretor foi o alemão Hermann
Von Hiering que era especialista em história natural. Nesta primeira fase o museu estava metido
com moluscos, biologia, botânica, etnólogos, laboratórios e pesquisadores que saiam Brasil afora
colecionando espécies da fauna e flora, além de material etnográfico, e depositando tudo lá no
museu. Quando o Taunay entrou acabou com isso, mudou não apenas a maneira de pensar, mas
de “fazer museu”. O lugar hoje é para comemorar a independência. Ele tirou dali de dentro
muitas coleções, que mesmo depois dele seguiram formando outras instituições como o Museu
de Zoologia e o própro MAE - USP, enfim, ele foi atuando e dando esse novo direcionamento
para o museu.

De caráter comemorativo...
É. E, sobretudo, de uma forma muito pessoal. Era ele quem pegava o telefone, escrevia carta,
dizia para os artistas “eu quero que você desenhe um bandeirante assim, assim, assim.” Inclusive
numa destas representações, o artista Henrique Bernardelli esboçou um bandeirante fumando seu
cachimbo e ele (Taunay) disse, “não quero isso”. Na verdade, ele escrevia muito. Era engenheiro
por formação, mas historiador por “aclamação”. Ele difundiu um imaginário particular a respeito
da história do Brasil. Ele usou do aparato relacionado aos objetos para escrever essa história, ou
seja, como o Emanoel estava fazendo na Pinacoteca, ainda que com um outro direcionamento.
Isso me ajudou a entender a cabeça do Emanoel e a interagir com ele. E vice versa.
Como te falei, o Affonso de Taunay teve a ousadia de agir diretamente na criação da
obra do artista. Isso quando não era ele quem intermediava que peças fossem parar na coleção do
museu. Ele foi criando prestígio e tudo isso foi misturando o público e o privado de uma forma
descomunal. Ele tinha uma coluna no jornal para dizer o que estava acontecendo no museu. Por
exemplo, ele às vezes escrevia: “tal pessoa vai doar armas ou coleções antigas”. Ele fazia estas
pessoas entrarem para história, dizia o que era importante, o que era a história do Brasil, e, no
museu, “sacramentava” os objetos que comprovavam isso. Ao mesmo tempo as pessoas davam
mais poder e prestígio a ele. Eu acho genial a articulação que ele fez. Aqui em São Paulo, na
década de XX,. Era muito ousado e original juntar ao quadro do Pedro Américo, com toda sua
monumentalidade, uma mecha de cabelo. Isso cria uma cena delirante. Mesmo que
historicamente você saiba que certos detalhes não poderiam ter acontecido em 1822! Utilizando
esse artifício de imaginário, ele criou uma associação entre elementos laicos ou cívicos, próprios
de um Museu, a elementos sagrados, como relicários em uma catedral. Ele criou uma
ornamentação luxuosa dentro do museu numa época em São Paulo era ainda muito pobre. A
pessoa devia chegar naquele luga, ver todo aquele luxo e talvez fazer sinal da cruz para Dom
Pedro!
Até pouco tempo atrás, na época que eu trabalhei no Museu Paulista, existia aquele
programa de televisão “Porta da Esperança” do Sílvio Santos, e uma vez foi uma menina se
apresentar cujo sonho era vestir-se de princesa e caminhar pelo museu. A idéia de princesas, reis
e castelos estava associada àquele imaginário plantado pelo Taunay, de tapete vermelho e
grandes escadarias.
E um outro detalhe interessante é que nesse período da gestão do Taunay, São Paulo
tinha um contingente de imigrantes muito grande. Por um lado imigrantes, pessoas que tinham
sido alfabetizadas na sua língua nativa e, por outro lado, haviam os brasileiros, pobres, mulatos,
analfabetos, ou seja, a questão do ensino formal, ou do uso da “palavra” talvez fosse menos
comum no cotidiano das instituições culturais. Então Taunay cria um sistema de comunicação
visual, como o imaginário aplicado das igrejas e catedrais. Ele consegue estabelecer um contato
com o público só com imagem, ou quase sem usar textos e palavras. Eu percebi que, mesmo sem
consciência, herdamos muito dessa experiência museológica de Taunay, sobretudo em atitudes
como as do Emanoel.

217
Mas, você me perguntava sobre como o Emanoel montava suas coleções... eu não sei se
você já estudou isso — de repente você pode até coletar mais informações do que eu — mas eu
falo a partir do que vi de perto catalogando boa parte das coleções dele. O Emanoel se
estabeleceu em São Paulo por volta de 1971. Fui percebendo que até certa época, certos objetos
de arte que ele tinha se reportavam mais ou menos a década de 1970, ao círculo de amigos
artistas, entre outros amigos que ele tinha, que determinaram que ele viesse para São Paulo. Ele
poderia ter permanecido no Rio de Janeiro, era época da ditadura e ele ja havia passado por lá
também...

Época inclusive em que ele fez muitas exposições com suas obras aqui em São Paulo e no
Rio.
Ele tinha um círculo de amizade muito grande. Mas eu sabia que ele tinha tido um
apadrinhamento de um Senador em Brasília na década de 60, que me parece o havia ajudado a
não ser preso pelo regime militar no período em que participara de movimentos estudantis. Penso
que Emanoel deve ter sido um sujeito de idéias diferenciadas, que poderiam ter levado isso tudo
a um outro desfecho, e acho que o legado dele, agora. deixa isso claro. Ele poderia ter tido
muitos problemas por ser pobre, negro, pela formação e idéias que tinha. Se você for perceber,
ele vinha de Santo Amaro da Purificação, como o Caetano Veloso, ele compartilhava da natureza
de idéias pelas quais Caetano foi perseguido. Mas deduzo que ele não teve problemas pelo
círculo de amizades políticas em Brasília, Rio e São Paulo. Eu acho que se pudesse ser levantado
os objetos que ele foi adquirindo nesse período, com certeza teria um pouco de um paralelo entre
o que ele pensava, o círculo de amizades no meio artístico e os objetos que ele reunia.
Ele tinha coleção de várias coisas. Uma delas era a coleção de escultura em bronze, que
cheguei a catalogar integralmente. Mas havia muitas outras coleções, tanta coisa que deu pra
fazer um Museu Afro inteiro. Naquela época ele morava na Rua dos Ingleses. Sairam várias
reportagens comentando como a casa era grande e como tinha coisas lá dentro. Eu convivia com
isso, com os objetos, e dali deduzia essas coisas.

Como foi o impacto com essas coleções que você teve a oportunidade de catalogar? O que
você via lá que definia o gosto e o interesse do Emanoel?
Acho que o caso emblemático que você vai perceber na coleção de peças que ele tinha era a
coleção de cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, que além de ceramista foi pintor e
caricaturista. Olha, em 1996 eu já estava na Pinacoteca, e Emanoel decidiu montar uma
exposição sobre Bordalo. Essa foi uma das mostras mais bonitas que o Emanoel criou. O assunto
acabou gerando três exposições: o caricaturista, o ceramista e o artista do Grupo do Leão essa
última a partir de aspectos da pintura do Bordalo Pinheiro. Ele fez essas três exposições
ocupando quase que a Pinacoteca inteira, basicamente com o que ele tinha colecionado de
Bordalo. Este para mim e para muita gente era um artista totalmente desconhecido. Mas o
Emanoel conhecia o Bordalo pelos objetos. O Bordalo não era tão famoso como o Picasso. O
Bordalo era um artista português que foi pra o Rio no século XIX. Trabalhou no Rio de Janeiro e
tinha uma relação forte com o Brasil. Essa relação estava depositada nos antiquários e nos
colecionadores. O Bordalo até hoje é um tipo de artista que, se você caminha pelo Rio de Janeiro
você sente o clima dele. Há uma atmosfera do Bordalo, de suas obras, na Lapa. Isso eu presenciei
várias vezes quando viajava com o Emanoel para o Rio de Janeiro. Aos domingos a gente
acordava cedo e ia na Siqueira Campos, que é uma região no Rio que tem muitos antiquários. É
um pouco como a feira do Bixiga, porém permanente. A gente entrava, todo mundo
cumprimentava o Emanoel, todo mundo queria vender coisas para o Emanoel. Ele olhava tudo
aquilo e adorava. Viamos coisas maravilhosas. Eu tinha uma ânsia de falar “Emanoel olha isso,
olha aquilo”. Mas ele já tinha visto aquilo, já sabia que atrás da peça da vitrine da rua tal havia
algo. Ele ia direto e falava para o cara “— Quanto custa isso?”. Ele respondia “Emanoel, pra
você, 300 reais”. Pronto, mandava levar pra São Paulo e entregar na Pinacoteca.
Era uma coisa meio mágica e eu percebia que, fora a genialidade do Emanoel, e a
capacidade dele perceber as coisas, havia uma experiência muito grande sendo formada em mim.

218
Vivenciei isso com o Emanoel por volta de 1996 e 2000. Se eu for imaginar que ele vinha
construindo essa vivência desde os anos 1970... há trinta anos isso vinha sendo feito!.
Tem também os episódios da relação dele com Pietro Maria Bardi. Todos esses tipos de
amizades e relações em São Paulo e no Rio de Janeiro eram muito próximas de outros
colecionadores. Então essa gente passava muita coisa para ele. Eu citei o Bardi, mas em São
Paulo tinha também o Giuseppe Baccaro, que hoje está lá em Olinda. Num capítulo à parte, eu
depois tive a oportunidade de trabalhar para uma exposição sobre a coleção do Baccaro. Eu com
a Profa Maria Lúcia Montes e já longe do Emanoel. Isso até é simbólico porque eu conhecia
muitos objetos do Baccaro, que o Emanoel trazia para suas exposições no período da Pinacoteca.
Ele viajava e trazia toneladas de coisas e dizia “ah, comprei isso do Baccaro”. Depois você vai
ver, tem até um livro que a gente fez sobre o Baccaro e você vai entender por quê ele também é
um colecionista raro. É uma coisa muito curiosa porque a cabeça do Baccaro é uma coisa muito
boa para você entender o Emanoel também. O Emanoel trazia esses objetos do Baccaro, mas
curiosamente eu só o conheci pessoalmente depois de me afastar do Emanoel.

Ele sempre teve um olhar dirigido para as obras e os artistas que lhe interessavam?
É, os artistas e os temas, é interessante também como isso está interligado. Mas outra coisa que
eu também queria colocar, que eu acho que é chave para você entender isso e que eu também tive
oportunidade de conhecer o Jean Boghici, no Rio de Janeiro. O Jean Boghici é um sujeito que ia
para Europa e comprava Modiglianis e outros artistas da chamada “Escola de Paris”. Era gente
com muito macete, era gente apaixonada por arte, por colecionismo, então tinha todo o macete
do que é original e do que não é, como comprar barato, como capitalizar.
O Baccaro era um italiano que chegou no Brasil por volta dos anos 50 ele bateu na porta
da Tarsila do Amaral e meio que falou “escuta, a signora é que é a Tarsila? É que io aprendi
nos livro que a signora fez a tal Semana de 22 e coisa e tal”. Quer dizer, talvez não tenha sido
bem assim... mas o fato é que ele teve a idéia de propor a ela que fizessem gravuras em metal a
partir de imagens como a do Abaporu. Ou seja, ele começou a intervir neste mercado, a valorizar
coisas que nós ainda não valorizávamos. A perceber que Tarsila já estava esquecida (ou talvez
não fosse ainda reconhecida como é hoje) e que por isso não vendia seus quadros, mas poderia
tentar vender gravuras. Ele assim foi ganhando dinheiro aqui em São Paulo, mas era comunista,
queria ajudar os pobres, e questionava por que vendia-se Portinari por milhões aqui em São
Paulo se Portinari pintava a miséria real no nordeste? Então ele vendeu tudo o que tinha aqui e
foi para Pernambuco ajudar os pobres de lá. O Baccaro é uma figura ímpar, está vivo até hoje
com uma vitalidade incrível. Se você perceber, o Baccaro estava fazendo isso no final dos anos
60 e o Emanoel chega aqui e pega essa gente, que são pessoas que estão “se fazendo”. São
pessoas que estavam construindo a sua própria história e sempre por esse viés, que é “escrever” a
história pelos objetos de coleção, interagir com a história pelos objetos de coleção, transformar a
história por meio destes objetos. Todos eles estavam construindo seu patrimônio e seu
testemunho por meio da articulação de objetos de coleção. Isso é uma coisa que a museologia dá
recursos para entender. Entender como ocorre tanto no plano pessoal como em circuitos maiores
ou menores, mas que normalmente é uma história que se faz com a articulação de objetos de
coleção, colecionadores, galerias, antiquários, enfim, agentes do colecionismo privado.
No plano do colecionalismo público nós temos exemplos como eu te citei, o Taunay... o
Bardi. Nem sei se Emanoel contava, assim, com a experiência do Taunay, mas ele (Emanoel) é
um estereótipo desse mesmo paradigma. Ele esteve com o Bardi, que também é outro exemplo,
tinha contato direto e, na Pinacoteca, houve uma oportunidade de trabalharmos em uma
exposição comemorativa do centenário de nascimento do Bardi. Tudo que trabalhei com o
Emanoel, era assim, um testamento. A exposição que fizemos dos 100 anos do Bardi era o
Emanoel “lendo” o modo do Bardi fazer museologia, e era o modo dele, Emanoel, fazer a sua
própria. Na mostra Brasil + 500 o módulo Arte Popular veio de um raciocínio que é o seguinte:
o Mário de Andrade nas décadas de 1920/ 30 olhou para a cultura brasileira e percebeu que
existia um Brasil que não constava na “oficialidade”. Ele percebeu que esse “outro” Brasil
possuia uma riqueza cultural diversificada, que não estava preservada nos documentos nem nas

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expressões artísticas convencionais, mas era viva nas festas, nos ritos e em outras manifestações
simbólicas e sinestésicas. Eram culturas e histórias manifestadas por um outro vocabulário, por
uma outra sintaxe, que não era exclusivamente a da palavra, mas dos gestos, da música, das
tradições. Então o Mário revolucionou esse sistema quando ele saiu em busca de referências e
registros dessa nossa cultura. Ele saiu com um gravador para gravar a música lá no interior do
nordeste, do norte, no interior de São Paulo. Ele saiu com o Luis Saia filmando as congadas. O
Mário falava que existia um Brasil que tem a ver com os gestos, que tem a ver com a cultura não
material e que precisava ser trazido para dentro dos museus. Se a gente continuasse aprendendo
só o Brasil dos documentos, o Brasil escrito, a gente só ia valorizar Dom João VI e capitania
hereditária. Ele falava, “onde está a congada?” Está lá, viva, acontecendo neste momento, e se eu
não for gravar e filmar ela pode deixar de acontecer. Então o Mário revolucionou isso, só que o
Mário teve todo aquele embate político da era Vargas, com o Departamento de Cultura que
depois o rechaçou.
Bom, na seqüência desse raciocínio, salvo algumas pessoas que trabalharam mais
próximo do Mário e alguns exemplos isolados, você vai ver esta questão ser retomada somente
20 anos depois, com Lina Bo Bardi, que vem de fora. Ela olha a cultura brasileira e se encanta
com a Bahia. Ela é uma pessoa que também pensa reunindo as coisas e objetos. Um caso
emblemático... eu não conheci a Lina pessoalmente, mas as várias vezes que tive acesso aos
objetos dela, que hoje pertencem ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, tive esse contato por
portas abertas pelo Emanoel. Quando o Emanoel queria alguma coisa e ligava lá, o Instituto
podia estar desorganizado, estar em briga com a família do Bardi, mas o Emanoel ligava e falava
e eu ia buscar. Eu entrava e a casa estava, até por uma questão litigiosa, como a Lina tinha
deixado. Em cima da mesa da Lina tinha uma foto do Che Guevara, um fifó nordestino e um
brinquedinho de plástico de kinder ovo. Eu chorava de comoção, de sentir a presença viva e forte
dela. A Lina tinha esses objetos e eu chegava a ter saudades da “Dona Lina”! Sabe a vontade de
chorar de saudade de alguém? Aquilo estava tão impregnado da pessoa, tão impregnado desses
pensamentos. Você diz: essa mulher “escreveu” isso para mim, ela está falando comigo por esses
objetos, ela organizou esses objetos na casa. A mulher já morreu e ela está conversando comigo
por esses objetos. Então vemos que é uma forma de transmitir, de comunicar, pra além da
experiência pessoal, pra além da experiência de quando as pessoas estão vivas. O Emanoel sabia
escrever dessa forma, sabia traduzir isso. Aí eu te digo, uma coisa é você saber como isso
funciona e outra coisa é ter a capacidade de fazer isso funcionar. A outra coisa ainda é você fazer
isso funcionar em larga escala do ponto de vista científico e profissional. Algo mais além disso
tudo é disseminar uma visão do mundo, uma visão do Brasil que você quer falar e que a
burocracia oficial ou a cultura oficial não te permitem, então você vai por esses subterfúgios. Aí
é onde tudo isso se interliga com a cultura afro-brasileira, ou seja, quando os negros eram
perseguidos, eles tinham uma outra forma de se comunicar, de escrever isso e de transmitir isso,
além da sua limitação física no tempo e no espaço. Os seus códigos, a sua cultura (a Maria Lúcia
me ajudou a entender isso), ou seja, o quanto esses signos e significados são importantes. Se Lina
está me comunicando uma frase ou pensamento, a cultura negra conseguiu transmitir uma
cosmologia inteira simplesmente pela articulação de gestos, de sons e de referenciais estéticas,
simbólicas e sensoriais.
O que acontece é que o Emanoel é também uma pessoa erudita. Ele viajou pelo mundo e
fez contato com essas pessoas. Então o arcabouço do Emanoel não é simplesmente a defesa,
digamos assim, da cultura popular e negra. Isso está junto também com a cultura altamente
erudita que o acompanha desde Santo Amaro da Purificação, passando por Nova York, França,
Alemanha, Bixiga e Parque do Ibirapuera.

E como você vê isso? O Emanoel, com os vários conceitos que ele tem, vai de encontro com
uma nova museologia, de abrir o museu para novos públicos, sem ser apenas o público de
especialistas. Ele cria um debate através dessas obras, não é aquela coisa dirigida. Ele
colocou essa arte que até então não estava lá no museu. Na Pinacoteca, por exemplo, tem a
exposição Os Herdeiros da Noite e antes teve a do Rodin. Aconteceu também a sala do

220
Rubem Valentim ao lado do Rodin e de outros artistas do século XIX e início do XX, a
cultura popular lado a lado com a cultura erudita.
Na nossa visão, é importante destacar que o Rubem Valentim talvez não fosse tão valorizado
dessa forma na época do Emanoel, mas talvez a gente possa até pensar que ele, na sua época, já
fazia essa síntese com a arte abstrata, essa coisa geométrica. Teve casos mais radicais...

Tem o Nino também...


O Nino é também já mais avançado e nisso a gente pode dizer que há a assinatura do Emanoel
em toda essa história. Pouco antes de ele sair, ele quis fazer o livro da Pinacoteca. Na verdade ele
quis fazer dois livros, um sobre A Reforma e outro sobre A Coleção. Ele queria fazer isso constar,
mostrar, deixar o pensamento e as ações dele resgitradas para que depois que ele saísse as
pessoas não falassem mal. Essa foi uma das oportunidades de eu articular esse pensamento dele.
Você vai ver que no finalzinho do livro, onde eu tive a oportunidade de inserir um apanhado das
exposições realizadas pela Pinacoteca na gestão do Emanoel, ali no final está documentado parte
deste pensamento por meio do histórico das exposições. Eu quis registrar todas essas exposições
e a gente selecionou as imagens que ilustravam toda a variedade de assuntos e visão de cultura
brasielira que o Emanoel fez na Pinacoteca. Por exemplo, a exposição que ele fez sobre o Rubem
Valentim, Rodin, o circo, sobre escultura brasileira, etc tudo que ele fez tem uma amostragem ali,
só que esse livro infelizmente teve uma distribuição muito restrita, uma dsitribuição só para
escolas da rede pública. Ninguém de nós ficou com um exemplar.
Na biblioteca da Pinacoteca tem um. Eu tenho uma cópia dele porque eu encadernei um
boneco do livro. Emprestei, mas ainda não me devolveram. É um livro assim dificílimo. São dois
volumes, um sobre a Arquitetura e outro sobre a Coleção. O da Arquitetura até foi reeditado,
inclusive comercializado . O da coleção não foi, eu até batalhei muito para que ele fosse
reeditado quando o Marcelo Araújo disse querer reeditar este livros, mas não foi adiante. Essa
idéia do pensamento do Emanoel é tão forte que ele encontra resistência, as pessoas percebem. E
se aquilo não é o que as pessoas querem dizer, as pessoas têm as suas formas de boicotar. Então
esse livro não foi reeditado acredito que por isso.
Mas ali consta um pouco desse pensamento. O que eu ia te falar é que para mim e para a
Maria Lúcia, esse livro fecha um pouco essa idéia. A atitude do Emanoel que para mim consolida
tudo isso é a gigantesca escultura da família Julião exposta num dos pátios internos da
Pinacoteca... aquele totem enorme de madeira entalhada a mão com figuras de macacos e
árvores. Então, você imagina o que aquele totem está fazendo ali? Como compreender aquela
cultura? Você não tem como esconder. O Emanoel encontrou uma solução, inclusive na
exposição do Rodin, ele fez uma caixa cobrindo a escultura do Brecheret, gigante, que ficava na
entrada, disfarçando ela como um banner da exposição no hall de entrada. Agora o Julião não,
não tem como esconder. O Julião atravessa dois andares e ele é um exemplo ao dizer que aquilo é
cultura popular, que aquilo tem a ver com a cultura afro-brasileira, que aquilo tem a ver com o
museu inteiro, que aquilo é o indício transversal de toda cultura brasileira, do popular ao erudito,
do português ao afro e ao indígena. E eu acho que ela, ali, é uma síntese desse pensamento genial
do Emanoel.
Na verdade a Pinacoteca no final dessa gestão do Emanoel estava muito bem articulada
nesse percurso. Ela começava com as vitrines de arte sacra na entrada do museu. O Emanoel
aceitou lá uma doação que tinha objetos de prata. Ele tinha alguns objetos bastante sofisticados
que até eram para ser doados para o Museu de Arte Sacra, mas a pessoa falou que não, que queria
deixar pra Pinacoteca. O Emanoel aceitou e fez essa vitrine no hall de entrada do museu. Ele
montou as vitrines e criou elas bem sofisticadas, forrou com tecido adamascado, enfim, um luxo.
Isso também está no livro porque na hora de fazer o livro, como o Emanoel deu carta branca,
peguei o Nelson Kon (fotográfo) pelo braço e falei “Nelson, a gente vai fotografar isso, isso, isso
e isso”. Por exemplo, essas vitrines, eu pedi para o Nelson tirar uma foto panorâmica que pegava
todo o saguão da Pinacoteca com as duas vitrines. Isso era muito difícil porque a distância era
curta e ele teve que tirar duas fotos e juntar por meio de recursos de computador.

221
Nesta imagem, disposta na abertura do livro, além das vitrines tem as esculturas de
Mestre Valentim, que mostrava o Brasil do final do século XVIII e XIX, que é contemporâneo
do Aleijadinho. Você entra na Pinacoteca, que é teoricamente um acervo de transição do século
XIX pra o século XX, só que qual é o preâmbulo que você tem? Toda a arte que antecede isso. O
Mestre Valentim, que é contemporâneo do Aleijadinho, o Brasil colônia, a arte religiosa, que já
vem carregada de arte brasileira. Depois caminhamos pela Pinacoteca, e no corredor seguinte, há
a visão do Julião. É como se ao final do percurso você visse isso desembocar num “mar”
contemporâneo. Mas a presença deste Julião ali é algo que as pessoas do museu, mesmo as que
trabalahram com Emanoel, nunca entenderam em sentido profundo.
O caso do Bordalo também era um exemplo assim. É todo o conhecimento que você vê
de um artista genial. Um artista de arte brasileira do final do século XIX, que tinha toda essa
relação com Dom Pedro II, com a política e depois volta para Portugal e tem lá uma importante
indústria de cerâmica, ou seja, um artista importantíssimo. O Emanoel teria uma, duas, dez
exposições pra fazer do Bordalo devido a quantidade de coisas que ele sabia a respeito dele,
simplesmente por meio dos objetos. Simplesmente por conversar com as pessoas, por circular
pelos antiquários, por ir reunindo tudo isso, por escrever essa história por meio dos objetos. Ele
fez isso numa época em que o museu era extremamente precário. O museu ainda não tinha sido
reformado e foi uma das exposições mais lindas, da forma como ele criou as vitrines, da forma
como ele tinha pensado aquilo.
A mostra de escultura Expressões do Corpo, no final de 1996, teve também um conceito
maravilhoso. Essa foi uma exposição feita para que a obra de escultores brasileiros dialogasse
com a obra de Auguste Rodin. Então a Pinacoteca recebeu algumas esculturas do Rodin por
doação e o Emanoel queria dar visibilidade para aquilo e falou “vamos fazer uma exposição que
faça com que a escultura dos brasileiros dialogue com as do Rodin”. Eram escultores que de
alguma forma aprenderam (indiretamente) com o Rodin que aplicaram algo dele em suas obras.
Então ele juntou Brecheret, Bruno Giorgi, Leopoldo e Silva – que é um dos escultores que mais
tem obras em São Paulo mas que é desconhecido. Ele tem a obra Indio Pescador ali no começo
da Avenida Paulista, tem a Aretuza dentro do Trianon, Nostalgia na frente do jóquei, entre
outras... era um escultor importantíssimo pra São Paulo, cheio de obras e que agora é pouco
conhecido. Veja, o Emanoel fazia isso dialogar com Rodin. E onde ele vai mostrar isso? Ele
então usava o museu pra contar essa história.

Essa ação no museu é para formalizar esse pensamento? Na reunião dessas peças ele
concretiza essa história?
Exatamente, consolida essa história. Ele reconta essa história e vai reescrevendo do ponto de
vista oficial de uma instituição. E se a instituição é insuficiente, ele transforma as regras do jogo.
Ele transforma a instituição. Ele transforma as exposições e as coleções.

Como aparece esse teor conservador do museu hoje?


É conservador no pior aspecto. Porque quando o Emanoel quis aceitar as obras do Rodin, quando
ele fez a campanha para que doassem a coleção para a Pinacoteca – e depois convenceu os
empresários do Banco Safra para isso – as pessoas falam: “por que a Pinacoteca tem que ter
Rodin?”. “O museu não deve aceitar isso em seu acervo!”. “Deve mandar isso pro MASP!” Isso
aconteceu com tudo que ele foi fazendo até culminar com o Julião., quastionado por ser uma
expressão da arte popular em meio a tantos referenciais eruditos. O que as pessoas não entendem
até hoje é o seguinte: a Pinacoteca não é um museu do século XIX. Ela é um museu de arte em
São Paulo, uma coleção pública de arte, pertencente ao Estado, que desde sempre se formou a
partir da produção contemporânea. Ela é anterior à essas teorias todas que vão dividindo a arte.
Então é legitimamente um grande museu de arte brasileira, e de arte de São Paulo. O grande
exemplo disso é que a Pinacoteca coleciona Almeida Jr. desde a época em que Almeida Jr era um
artista contemporâneo. A primeira doação feita para a Pinacoteca foi feita pelo próprio Almeida
Jr., com a intenmção de formar a Pinacoteca, e isso não consta porque o Almeida Jr. morreu em
1899 e a Pinacoteca só foi criada em 1905, seguindo o exemplo daquela doação. Tem

222
documentos que provam isso pois eu pesquisei e sobre os quais já escrevi porque quis fazer uma
exposição sobre o museu na época do seu centenário, mas não apoiram. Se voce me permite, vale
contar que por volta de 1895 e 1897 já queriam fazer um museu de arte em São Paulo, mas
existia apenas a coleção do Estado, que era uma coleção de vários objetos de cunho histórico,
depositado no Museu do Ipiranga. Existia algumas obras de arte lá dentro também, e numa
determinada vez que os políticos foram lá, viram isso e falaram, “vamos retirar essas obras daqui
e vamos fazer um museu de arte em São Paulo”. O Liceu de Artes e Ofícios já estava se
articulando para isso, inclusive eles já estavam juntando dinheiro para fazer o prédio. Então eles
falaram “vamos reparar essas obras”. E o Almeida Jr. é o primeiro a doar aquela obra “A leitura”
para o Estado como pontapé incial desta iniciativa. Só que ele morreu no final de 1899 e essa
ação começou por volta desse período. Isso vai se consolidar somente com a criação da
Pinacoteca por volta de 1905.
O Almeida Jr. era um artista contemporâneo que doou obras. Oscar Pereira da Silva
também. Nas décadas de 10 e 20 as obras de muitos artistas pensionistas foram também
incorporadas. Ainda na década de 1970 o museu continuava colecionando, estimulando os
artistas a fazerem doações. Sem falar nesse entreato maravilhoso, que é quase criminoso ser
esquecido, pois não se dá o devido valor na Pinacoteca, que é os anos 1930 a 1960. São Paulo
tem uma produção maravilhosa, a Pinacoteca tem a reserva técnica lotada desses artistas e quase
não se fala, nem se pesquisa isso. Um dos poucos exemplos, e isso também está ligado ao mérito
do Emanoel, foi a exposição do Rafael Galvez. Ele foi um artista desse período e estava vivo até
bem pouco tempo atrás, atravessou essa geração e estava esquecido. Ele aprendeu com outros
escultores lá na década 1920 e produziu até a década de 1990. Enfim, tem o Júlio Guerra, que foi
um artista premiadíssimo do qual eu e aMaria Lúcia tivemos o privilégio de fazer uma exposição
há pouco tempo, no SESC Santo Amaro. Eu passei a gostar mais ainda disso tudo por ver o
quanto a obra de Julio Guerra foi e continua sendo importante pra São Paulo, por haver ganho
prêmios, por sua erudição tremenda, por sua fantástica visão a respeito da cultura brasileira.
Sobre ele a Pinacoteca ainda não fez um catálogo decente. Isso só pra te dizer que ainda hoje,
quando a Pinacoteca expõe uma obra dessas, as pessoas não olham para dizer que isso tem tudo a
ver com a Pinacoteca. Para eles o museu têm que produzir coisas do século XIX ou tem que fazer
exposição tipo blockbuster. E por mais que ela faça isso ou aquilo, em determinadas
circunstâncias em que a Pinacoteca recebeu uma grande quantidade de público, já na gestão do
Marcelo Araújo, fechava-se as portas do acervo pra remanejar pessoas para vigiar o acervo
temporário. Eu ficava indignado, eu dizia, “não se pode fazer isso, arrumem qualquer outra
solução, mas não se pode fechar as portas do acervo”. O que na prática estava sendo feito sob
alegação de ser a “única saída”, era totalmente contrário ao que Emanoel havia feito nos 10 anos
antriores. Simbolicamente, fechar as portas do acervo era apenas uma das atitudes nefastas a
nossa história, mas infelizmente houveram outras atitudes similares como, por exemplo, não
expor obras da reserva técnica por longos períodos, não publicar pesquisas sobre o acervo, etc

Você falou sobre essa exposição dos 100 anos do Bardi que foi feita na Pinacoteca. O
Emanoel também fez outra exposição sobre colecionadores como a do Odorico Tavares em
2005 no Museu Afro Brasil. A Maria Lúcia falou do Emanoel na época que aconteceu a
exposição do Rodin, da forma como ele montava a exposição, era um escultor falando com
outro escultor, que é o Rodin. Ela via ali muito disso, que era o Emanoel pensando espaços
pra exposição do Rodin como se ele estivesse esculpindo. Então, na verdade, diria que o
Emanoel é uma figura privilegiada, porque ele é artista, colecionador e curador. E quando
ele está fazendo curadoria ele está dialogando com o trabalho que ele mesmo faz?
O Emanoel escultor é um artista que trabalha com o espaço, com a espacialidade da escultura. Se
a gente for perceber até quando ele é gravador, quando ele é xilogravador, ele está preocupado
com o espaço. E não é à toa que isso vira relevo. Ele trabalha a bidimensionalidade tão
exacerbadamente que ela salta, vira relevo e depois vira escultura. Isso é da trajetória plástica do
Emanoel. Ela se dá dessa forma. Mas, enfim, o Emanoel é um erudito. Ele tem uma erudição
tremenda das formas africanas telúricas e ele é ao mesmo tempo erudito dos livros. Quando ele

223
passeava pelo museu, ele cantava e abria os livros de Gonçalves Dias. Acho que a exposição
Rodin, de 1995, nos mostrou um Emanoel erudito na sua forma escultórica, na sua forma de lidar
com o espaço. Tudo começou com a empatia entre o diretor do Museu Rodin, Jacques Vilan, e a
arquitetura da Pinacoteca. A partir de então Emanoel incorporou isso, e potencializou aquele
momento. Se você percebesse os espaços das salas, tinha uma determinada escultura ali dentro
que estava rebatendo a espacialidade da sala inteira, e determinadas bases reproduziam os
ângulos e frisos da sala. Não bastasse isso, ele criou uma ornamentação para as bases que
estavam lá nas frisas da arquitetura quase centenária. Foram bases extremamente lindas e tão
perfeitas que estão lá até hoje. Aquelas bases eram tão boas, que depois a Pinacoteca fez algumas
exposições itinerantes do Rodin e eu me encarregava justamente de usar essas bases nessa
curadoria para reavivar um pouco essa idéia. Eu as levava porque onde essas bases chegavam
elas construíam o espaço do entorno. A gente chegou a fazer a exposição do Rodin em espaços
como o Palácio de Campos de Jordão, em São Paulo, a arquitetura do Oscar Niemayer em
Curitiba, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Eu conseguia trabalhar perfeitamente em
qualquer espaço seja ele uma arquitetura monumental ou um caixotão moderno, só com essas
bases que o Emanoel tinha construído pro Rodin em 1995.
Isso só pra te dizer que ele articulou essa relação da escultura com esses eixos ortogonais
das bases. E você pode ver mais Emanoel escultor até em exposições anteriores. Os Herdeiros da
Noite tem também uma espacialidade peculiar, mais ligada a escultura do Emanoel e as diagonais
que ele criava. Por muitos anos o arquiteto Hiromu Kinoshita foi o braço direito de Emanoel
nestes assuntos, ele ajudou muito, era um amigo, colaborador e ouvia muitos gritos também.
Tem uma exposição lindíssima, que até uso como exemplo quando dou aulas de
montagem de exposição, chamda Os Viajantes Alemães, exposições que ele criou entre 1992 e
1994. O período que ele já era diretor no museu mas eu ainda não estava lá. Você vê os painéis
que ele criava, onde já usava pé direito duplo. Na época o museu não tinha dinheiro e ele
mandava forrar aquilo com papel craft, ele mandava xerocar. Tinha o Pedro Quintanilha que era
um dos montadores que reproduzia os desenhos naquele sistema de ampliação com slides. O
Pedro inclusive desenhou as caricaturas do Bordalo como gigantografia na parede. Então o
Emanoel usou muito desses recursos na própria exposição do Bordalo e eu guardo referências
disso. Era tanta coisa que tinha do Bordalo que não cabia na sala, mesmo ocupando o museu todo
com as peças do Bordalo. Havia ainda o problema de espaço. O que ele fez? Ele colocava os
painéis na diagonal e otimizava o espaço. Se você for ver em planta, eram os eixos diagonais que
ele usa como estrutura.
O Bardi era uma pessoa que conhecia muito sobre as coisas, foi um grande marchand na
Europa e aqui em São Paulo, e vemos que boa parte do repertório do Emanoel estava plantado
ali. Emanoel adquiriu do Bardi uma obra do pintor Frangipane, que muita gente cobiçava. Era
uma alegoria da América. Então você vê que a coleção do Emanoel vem desde os primórdios,
desde a alegoria da América, até representações do Brasil colonial, a chegada dos negros e assim
por diante. Da escravidão até a arte contemporânea.

Você ajudou na montagem das exposições do Emanoel? Como você percebia isso?
É uma loucura. Mas posso sintetizar, de tudo que eu fiz ali, o que eu mais gostei e aprendi, era a
pesquisa. Sobretudo entender as coleções do museu, trabalhar com as coleções dos museus. Se o
Emanoel estava querendo fazer uma exposição, e havia alguma reunião no Ministério da Cultura
no Rio de Janeiro, ele falava “Gilberto, você vai no Rio de Janeiro comigo essa semana”. Aí
íamos para o Rio de Janeiro na sexta ou no sábado. No dia seguinte bem cedo (por volta das 5:30
da manhã) ele ligava no meu quarto, “vamos lá andar na praia” ... isso eu odiava. Aí, então, 6
horas da manhã estavamos eu e o Emanoel caminhando na praia. Depois a gente ia na Siqueira
Campos onde ele fazia um tour pelos antiquários, onde tinha todos os amigos. Ele adora isso.
Todo mundo conhecia ele. Quando chegava na casa de alguém, via um quadro que gostava para
compor aquela exposição ele falava “ah, vou pedir isso pra você, vou colocar lá na Pinacoteca”.
Ele ia indicando os objetos e quando chegava na Pinacoteca ele perguntava “Gilberto, cadê a foto

224
daquele quadro?”. Então, as exposições do Emanoel estavam todas na cabeça dele, era como se
fosse só ele puxar da memória que tudo aparecia.
Depois de feito isso ele ia comprando objeto pra ir completando sua coleção ou mesmo o
acervo do museu. Tem aqui até um exemplo do Bardi. Tinha peças que ele poderia encontrar em
qualquer lugar e pagar cinqüenta reais, dependendo. A gente chegou a comprar um par de bustos
de bronze do José Cucê por R$ 300,00 na feirinha do Bixiga. Quando o Emanoel não conseguia o
dinheiro da Associação dos Amigos pra comprar, ele mesmo pagava. Tirava dinheiro do bolso
dele para conseguir fazer a exposição que queria.
Levei um tempo pra perceber isso. Sabia que eu não ia pro Rio só pra passear. Tudo era
ao mesmo tempo protocolar e informal. Por isso nem sempre eu sabia exatamente qual das
inúmeras peças das quais ele estava falando, em meio a uma reunião informal ou durante jantar,
seria requisitada depois. Qual era exatamente a que eu tinha que fotografar ou catalogar. Eu
apanhei muito com isso, nunca consegui adivinhar, até mesmo para interagir. Acabei resolvendo
meu problema assim. Às vezes tinha que catalogar todas as possíves para empréstimo e anotar o
telefone do clecionador para quando o Emanoel pedisse. Ninguém conseguiria adivinhar o que
ele queria. Na verdade isso foi uma coisa tão dramática que culminou numa relação conflituosa
entre eu e ele, já no Museu Afro Brasil. O museu acabou sendo esse espaço para o Emanoel fazer
esse exercício de colecionismo alucinadamente. Mas com um diferencial que beirava a
perversidade: quando ele imaginava uma exposição e tinha essa combinação de idéias, ele
comprava no domingo, na segunda-feira a obra chegava na Pinacoteca e na terça-feira já estava
pendurada no espaço da exposição. Sem que outras pessoas se dessem conta. Nem o pessoal do
Setor de Conservação, nem do Setor Educativo etc. Então, veja só, aquilo ia reescrevendo a
história da arte, diariamente de modo alucinado, seguindo o ritmo exclusivo da cabeça dele.
Quando o museu foi reinaugurado, em 1998, após uma breve passagem da coleção pelo Pq do
ibirapuera, Emanoel pediu pra Maria Cecília França Lourenço e outras pessoas escreverem um
texto sobre os vários segmentso do acervo. Os textos, em geral acadêmicos, ficara aquém do que
estava sendo mostrado. Naturalmente, os historiadores consagrados escrevem o que aprenderam
ao longo de 30 ou 40 anos de carreira, e nem sempre mudam seus conceitos. Muito menos na
velocidade em que o Emanoel trocava os quadros na parede. O Emanoel mudava e mudava a
forma de contar. Então, o monitor/educador lá na Pinacoteca dizia “aqui temos o Almeid.....” e
no dia seguinte ele chegava pra contar essa história e a obra já não estava lá.

É uma sistematização do conhecimento que precisa ter.


É organizacional. Você está numa instituição. Tudo tem um significado. Uma pessoa para doar
uma obra pra o museu precisa consolidar que aquilo é patrimônio público, tem esses termos, isso
faz parte do fazer museológico. É aconselhavel que algumas mudanças desta natureza também o
fossem.

É uma burocracia necessária.


É, pra legalizar a coisa. Então a gente trabalahava duro para catalogar. No Museu Afro Brasil
então a coisa só piorou. O monitor/educador chegava lá e perguntava “Gilberto, qual o nome
dessa peça africana?”. E como não havia dado tempo de estudar, pesquisar, catalogar ou sequer
registrar a peça, ficavam informações incompletas. Trabalahvamos de domingo a domingo mas,
sem esperar, surgia uma peça sem catalogação que estava na vitrine e as pessoas corriam me
perguntar se aquilo era Exu ou o quê!.
Mesmo assim, chegavam novos lotes de peças para fazer registro ou comodato, algo que
necessitava a presença de advogado responsável, mas que no final, antes mesmo de registrar, ja
se fazia necessário arumar mais tempo para cuidar de mais uma “safra” com centenas de peças
pra fazer outro comodato. E você acha que os orgãos públicos aos quais o Museu Afro Brasil
estava subordinado e os advogados entendem a cabeça de um curador?

Voltando um pouco, você trabalhou na exposição do Barroco em 2000?

225
Não trabalhei em tudo. O Gonçalo, marceneiro, e outras pessoas do museu trabalhavam também
no ateliê particular do Emanoel como ajudantes das esculturas dele, sendo pagos por ele. Ele
tinha pelo menos três especialistas: um como pintor, um como marceneiro e um como
carpinteiro, era com esses profissionais que ele articulava boa parte do qeu se fazia no museu.
São artesões que têm conhecimento nas mãos, não na ponta do lápis.

(Acessando o computador, Gilberto mostra fotos da exposição de Rafael Bordalo) Esses são
desenhos seus?
Esses do Bordalo que tenho aqui são meus. E foi num momento desses, quando estava
justamente pensando em como ia ser a monitoria, como as peças que o Emanoel tinha comprado
no Rio de Janeiro iam ficar, como fazer a circulação para os monitores. Veja bem, quando eu me
especializei em Museologia, fui ar aula no SENAC e assim, contrariei Emanoel, ele me mudou
de setor, me afastando de seu gabinete, assim, eu não fiquei mais distante dele, mas numa sala
junto do setor de Museologia. Eu não participava da montagem, mas me cabia ajudar na ação
educativa. Na montagem especificamente eu tinha pouca ação porque os montadores eram um
grupo muito ligado ao Emanoel. E coemcei a fazer o que podia para entender como Emanoel
trabalhava, comecei a elaborar um sistema para registrar a relação de significado entre cada obra
que Emanoel colocava na parede. Fotografei tudo e organizei as fotos. Então fui organizando a
coisa desse jeito porque me era possível. Entrei na Pinacoteca em 1995, mas tive a preocupação
de saber o que tinha acontecido antes. Fui atrás de catálogos, reuni fotos, e passei a organizar
slides e outras referências das exposições: se eram do tempo Emanoel, se eram anterior, se eram
posterior, se eram do acervo particular dele. Ja na gestão do Marcelo Araújoeu tentei continuar a
organizar isso tudo mas não fiz da forma que queria. Fiz um projeto para a Fundação VITAE de
organização do Setor de Documentação, com o intuito de catalogar e dar sentido aos inúmeros
documentos avulsos ja quase perdidos ali... mas a ideía não vingou. Na gestão do diretor Marcelo
Araújo ele falou “— Isso tudo aqui vai para o prédio do DOC... e eu abri mão de seguir tocando
por questões políticas”

Atualmente, ele é da Estação Pinacoteca?


É mas esse setor de documentação é uma outra coisa, não exatamente o projeto que eu queria.
Nessa história toda, achei que ele tinha que ter uma ênfase no sistema de imagem e rechear isso
de informação. (Gilberto mostra slides) Isso são umas coisas que eu uso pra dar aula sobre a
Pinacoteca. Isso aqui é uma foto antiga, é a concepção. Você vê que numa foto como essa tem
uma passarela vermelha e coincidentemente é a mesma passarela vermelha que o Taunay usava
pra dar mais grandiosidade, maior dignidade ao vistante e ao qua havia dentro do museu.
Basicamente um instrumento de sofisticação da exerincia de quem visita um museu. As pessoas
sempre falavam “— Porque o Emanoel tem sempre tapetes persas na entrada do museu”. Ora, o
público merece isso. Porque esse tapete tem que estar só na sala do diretor? “Mas as pessoas vão
pisar, vão gastar”. Essa era uma visão extremamente restrita que é a que acabou prevalescendo
hoje.

(Ainda sobre o uso da imagem como documentação...) Aqui você fez uma comparação entre
a Pinacoteca em meados do século XIX e início do XXI?
As pessoas viam essas fotos e achavam que eram do século XIX, não sabiam que eram de 1946,
quando o museu foi reinstalado, isso ficou perdido no imaginário das pessoas. Quando o museu
estava pra fazer o centenário em 2005 eu quis justamente pegar essa parte de pesquisa pra lidar
com isso. Fiz um relatório até. Apresentei para o Marcelo Araújo, mas ele não quis investir
naquilo. Pegou e guardou, tinha informações valiosas e quis usar do jeito dele. Isso virou o
centenário da Pinacoteca, uma exposição na FIESP. A ocupação de outros espaços da cidade,
contando a história da formação profissional e de trabalho, o que significava receber imigrantes,
o quanto a coleção participava na formação de pessoas, como uma obra transmite conhecimento,
tudo isso virou simplesmente uma coleção da Tarsila do Amaral.

226
Você pode voltar a falar mais um pouco dessa foto de 2001 que mostra as paredes da
Pinacatoca” forradas” de obras de cima a baixo? O que fica evidente acompanhando as
exposições do Emanoel, uma característica dele, é essa questão da quantidade de obras que
são expostas. No Museu Afro Brasil em 4 anos o acervo em exposição foi muito expandido.
Quando nós pensamos em museu de arte hoje, é uma obra aqui, outra lá, tem um metro de
distância entre cada uma. São concepções diferentes.
Na verdade, essa noção de minimalismo é um dado contemporâneo. Parece que ele é a verdade
maior, mas se ver historicamente ele é muito circunscrito, muito restrito. Essa coisa de uma obra
na parede é um conceito da museologia chamado cubo branco e foi discutida por um cara
chamado Brian O'Doherty (No interior do cubo branco). É interessante porque percebemos que a
idéia desse conceito do cubo branco é uma coisa que começa a nascer como uma arquitetura
funcionalista. Ela vai deixando de ser funcionalista e se tornando mais estética. Depois de
estética ela passa a agregar significado, ou seja, fazer uma coisa acéptica e minimalista passa a
ser um código de um determinado pensamento.
O Brasil tem uma diversidade cultura e referencial inclusive do ponto de vista do
colecionismo. O Brasil tem uma experiência de colecionismo anterior ao século XX, já no século
XIX. O Emanoel pode trazer isso como informação, ou seja, isso passa a ser o signo de uma
mentalidade e você elege ela como qualquer outra que está dentro do museu. O Emanoel não
teorizou isso, mas aplicou. Na Pinacoteca isso não só mostrava a coleção do século XIX como
trazia o referencial de museologia que a Pinacoteca aplicava contemporaneamente. Não que a
Pinacoteca tinha um único jeito de fazer as coisas. Ela fazia isso na sala do século XIX, numa
sala de arte acadêmica, onde era totalmente pertinente, e numa outra sala ela se dava ao luxo de
criar uma outra museografia.

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Entrevista de Carlos Eugênio Marcondes de Moura
(concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE: Eu realizo um trabalho sobre a curadoria do Emanuel Araujo


focando os artistas que ele apresenta, a narrativa que ele constrói através deles, compondo
uma idéia de arte afro-brasileira. Como você ajudou o Emanoel nessas mostras?
CARLOS EUGÊNIO MARCONDES DE MOURA: A minha participação com o Emanuel não
foi no sentido de explorar determinado artista, foi uma coisa mais diferenciada, de indicar o que
aparentemente não estava muito conhecido. Por exemplo, houve um fotógrafo carioca no século
XIX chamado Militão de Azevedo, o Militão. O Militão chega a São Paulo como ator de teatro,
depois ele se estabelece como fotógrafo. Ele ficou muito conhecido porque ele fez algumas fotos
comparativas de São Paulo entre 1861 e 1881. Ele fotografou os mesmos pontos de São Paulo e
mostrou as mudanças que houve. Mas ao lado disso, ele fazia fotografia de estúdio. Então no
Museu Paulista eu localizai mais ou menos umas trezentas fotos só de negros, do Militão,
cobrindo toda essa década. Eu chamei atenção para isso. E este trabalho foi incorporado às
exposições do Emanuel e ao acervo do Museu (Afro Brasil) também. Isso foi uma coisa, outra
coisa bem pontual foi no Maranhão. Existe nas festas uma máscara chamada cazumbá, que é
muito interessante porque ela invoca até certo ponto uma imaginária negra africana. Eu chamei
atenção do Emanuel para isso e ele incorporou esses trabalhos. E as minhas pesquisas com ele
sempre foram para o lado africano, pra o lado das religiões afro-brasileiras Por exemplo, nós
fizemos uma exposição no Ibirapuera e eu chamei duas mães de santo de umbanda, que também
tem alguma relação com o candomblé, para constituir altares de várias divindades. A primeira
coisa que eu fiz com ele foram as pequenas biografias de negros que se destacaram de algum
modo nas instâncias de conhecimento e da vida pública. Essa foi a primeira colaboração minha
com o Emanuel nesse sentido. Toda essa iconografia em branco e preto do livro, quase toda foi
levantada por mim também.

Você participou com o Emanoel Araujo de uma exposição na Alemanha.


Também foi nesse sentido de levar as coisas da arte ritual, do candomblé para a exposição. Foi
mais por aí. Agora sobre os artistas contemporâneos isso é coisa do Emanuel e da Maria Lúcia.

O seu foco foi principalmente em termos de religião?


Sim, porque é o que conheço mais e que mais me interessava.

Como foi esse trajeto até a criação do livro A Travessia da Kalunga Grande?
Bom, eu sou meio rato de arquivo. Gosto muito de ir atrás das coisas, de imagens, e não aceito,
não admito de jeito nenhum uma equipe me ajudando. Não. Eu acho que o prazer de você
descobrir algo é uma coisa que não tem preço. Eu vou atrás das histórias sempre. Ai percebi que
havia muita coisa até conhecida como a produção do Debret, do Rugendas, mas havia muita
coisa que merecia ser divulgada. Por exemplo, as revistas ilustradas do século XIX, que tem
muita coisa relativa ao negro, eu explorei e esgotei a principal revista que foi a Revista Ilustrada
do Angelo Agostine, que começa a circular na década 1870 e vai até 1890. Eu percorri toda
coleção pra ver tudo que havia lá relativo ao negro. Vamos voltar um pouco atrás, o objetivo
primeiro desse livro era indexar tudo que era tipo de imagem relativa ao negro. Eu colocava em
primeiro lugar o autor e a legenda da imagem quando havia. Eu trabalhei medindo cada imagem,
fazendo a data e o descritor, ou seja, uma chamada para informar mais ou menos a que a imagem
se referia. Isso era muito importante depois para outra etapa que era a elaboração dos índices. No
pé da imagem eu colocava fonte, o autor, a obra e a página. A partir dessa catalogação tinha que
fazer o índice, senão as pessoas iam ficar totalmente perdidas. Então, eu fiz um índice de artistas,
um índice dos tais famosos descritores, um índice topográfico das localidades a que se referiam
as imagens. Basicamente esses três índices. Com isso a pessoa poderia se orientar um pouco mais
nas pesquisas. Por mim eu poderia representar muito mais, mas eu só pude reproduzir 500 entre

228
as 2700 que eu registrei. Mas eu fui da primeira imagem que é 1739 até o fim desse século XIX e
eu não entrei no século XX. Para você ter uma idéia, eu fiz agora uma pesquisa sobre o índio. Era
a mesma característica, só que eu recuei um pouco porque no fim do século XVI começam a
aparecer as primeiras imagens indígenas. Então eu fui do comecinho do século XVI até 2005.
São 11600 imagens. Se eu tivesse feito isso em relação ao negro no século XX, nossa, ia ser uma
coisa de louco. Mas essa é uma pesquisa que precisa ser feita. Alguém tem que fazer essa
pesquisa. Foram 500 imagens reproduzidas no livro, mas todas as 2700 indexadas. Tem toda a
catalogação, está tudo catalogado. Não pude reproduzir todas as 500 porque editorialmente é
muito caro. E custaria muito caro pra o público, mas mesmo assim vendeu bem.

E como foi seu primeiro trabalho com o Emanoel Araujo?


A primeira ocasião que eu trabalhei com o Emanuel foi nos festejos da abolição (na mostra A
Mão Afro-brasileira, 1988), foi no Ibirapuera. Ele me chamou, foi uma coisa bem geral e ajudei
no circuito de cinema também, mas esse ciclo foi um fracasso. Não dá certo você fazer um ciclo
de cinema no interior de uma exposição porque as pessoas perdem muito tempo pra isso e é
preciso que haja uma grande divulgação diária na imprensa. Há menos que elas se programem
muito, não podem ficar mais de uma hora no cinema.

Você participou da montagem das exposições com o Emanoel Araujo também?


Uma loucura. Você entra às duas horas da tarde num dia e sai no dia seguinte às quatro da tarde.
É assim, tem que ficar direto.

E o que o senhor achava dessas mostras?


Isso é coisa do Emanuel mesmo. Ele determina toda a questão do espaço expositivo. Isso é um
planejamento chamado de expografia, ela é todinha do Emanuel. Claro que pode dar um palpite
ou outro, mas tudo é uma criação do Emanuel.

Muitas das obras populares das exposições do Emanuel, algumas décadas atrás, não
entravam no Museu, eram obras que não pertenciam a esse espaço.
Justamente, esse é o grande mérito do Emanuel. Primeiro a criação do Museu Afro Brasil, num
local em que havia muito olho gordo em relação aquele espaço. Tinha muito preconceito, porque
haviam pessoas que achavam um absurdo São Paulo ter um Museu Afro Brasil. “Isso é coisa para
Bahia, Pernambuco”. Aliás, parece que em termos relativos, proporcionalmente, a cidade de São
Paulo tem uma população negra maior que de Salvador. Mas isso não é divulgado. Então foi uma
batalha conseguir aquele espaço. Ele já vinha criando uma coleção respeitável ao longo dos anos.

O senhor acompanhou o desenvolvimento dessa coleção?


Não, não acompanhei, mas sabia. Foram surgindo novos artistas contemporâneos e criando uma
teia. Muita coisa foi doada ao Museu, acredito que é a própria coleção do Emanuel, isso acho que
está lá em comodato. Mas tem muita coisa que é parte do acervo da Instituição.

O senhor chegou a ter contato e a fazer pesquisas com essa exposição?


Não. Uma das coisas que foi pra lá foi minha coleção, minha biblioteca, foi pra o Museu Afro
Brasil. Algumas teses de mestrado, revistas, jornais e algumas fotografias.

Uma das características do Emanuel é ser curador, artista e colecionador. Como você vê
esse cruzamento de atividades?
Acho importante porque isso vai despertando nele mil possibilidades, mil visões, mil
articulações. Ele parte de uma experiência museográfica, porque havia um museu na Bahia que
praticamente renasceu nas mãos do Emanuel. Foi uma experiência muito importante para ele ter
sido diretor desse museu. Então, ele já veio com uma experiência administrativa que é
extremamente importante. Essa visão ele pode aprofundar na Pinacoteca. Quando ele chega no
Museu Afro Brasil, ele já estava amadurecido. Ele é uma pessoa que se relaciona muito em

229
vários níveis - político, social e etc. Ele tem uma projeção fora do Brasil, é uma pessoa bastante
bem articulada e isso ajuda muito o Museu.

O que o senhor ressalta em termos de ação do Emanoel que até então é pouco trabalhado
no Brasil?
A grande ação do Museu Afro Brasil está sendo a ida das escolas. Mas, em primeiro lugar, ainda
não existe no brasileiro uma cultura de freqüentar museus. O museu intimida as pessoas e eu não
sei até que ponto existe uma articulação mais profunda do museu com as comunidades negras de
São Paulo. Existem pontos de articulação da população negra em São Paulo, como por exemplo,
a Brasilândia. Mas eu não sei até que ponto existe uma articulação do Museu com essas
comunidades no sentido de trazer as populações para o Museu. Isso precisa ser aprofundado e
desenvolvido. Por exemplo, em Cuba, eles pegam acervos de Museu e levam as populações
rurais que não têm acesso. Mostram arte para essas populações, dão a essas pessoas a idéia do
que é o Museu. Eles vão atrás. Imagina fazer uma interação com as populações quilombolas,
seria um trabalho fantástico. Mostrar um outro lado da história deles a eles mesmos. Só ficando
no plano das comunidades quilombolas, quantas delas sabem que existe um Museu Afro Brasil
em São Paulo? Isso seria realmente uma grande coisa a se fazer.

Alguns estudiosos usam o termo arte afro-brasileira. O Emanuel acaba trabalhando com
ela. Você considera esse termo relevante?
Essa arte brasileira nasce de um envolvimento de alguns artistas com a questão da religião negra.
Por exemplo, o Rubem Valentim, ele era ogan de um terreiro de candomblé. Toda essa geometria
dele parte de objetos rituais. Ele pega um machado e vai trabalhando isso de mil maneiras,
procurando novas geometrias, novas variações, novas formas. Mas você vê que no fundo a
grande referência é a questão do objeto ritual do candomblé. O Agnaldo Manoel dos Santos vai
trabalhar como auxiliar no estúdio do Mário Cravo. O Agnaldo, que não tinha muito
conhecimento do que seria arte africana, de repente, através dos livros do Mário Cravo e da
escultura, tem um gozo de criatividade. O Hélio de Oliveira era filho carnal de um pai de santo e
deveria suceder o pai dele na chefia do terreiro. Portanto, ele nasceu num terreiro de candomblé.
Ele morreu muito jovem, tanto ele como o Agnaldo, mas ele estava completamente imerso nesse
mundo. O Mestre Didi é o sacerdote supremo do culto dos antepassados, a mãe dele foi uma mãe
de santo carnal e conhecidíssima na Bahia. Ele pertence a esse universo. Fora desse universo, há
pessoas que supostamente não teriam nada a ver com isso, por exemplo o Carybé. Ele é um
argentino e veio ao Brasil, na Bahia. Se fixou, começou a registrar aquele mundo baiano e de
repente se envolve profundamente com a religião, ganha um posto honorífico no território de Ilê
Ache Opon Afonja e não era simplesmente uma coisa de vaidade e status. Ele comparecia a
todos os cultos e ajudava da forma que lhe fosse possível o terreiro. Ele sentia o envolvimento
profundo com o terreiro e registra na sua obra isso. Um outro exemplo é o Ronaldo Rego do Rio
de Janeiro. Iniciou-se na umbanda e depois passou pra o candomblé e toda obra do Ronaldo rego,
a gravura e a escultura é todinha referenciada a esse culto do qual é devoto e está envolvido. Ele
tem uma ligação profunda. Então, essa arte afro brasileira é, me parece, basicamente uma arte
religiosa. Mas ai você tem também artistas africanos que não são necessariamente ligados a esse
universo religioso. Nem entro no universo de interesse deles. Há o artista negro, inserido nesse
universo de religiosidade, que cria a partir desse universo e o artista não negro, mas também
referenciado a esse universo. Há também o artista negro que não está preocupado com a questão
da religiosidade e tem uma criatividade desligada disso. Você viu um livro que saiu agora do
Conduru? É uma conceituação sobre o que é arte afro-brasileira. Então, o Conduru, começa a
citar uns artistas contemporâneos que pelo que eu saiba não tem o menor envolvimento com essa
questão, mas ele os coloca como artistas inseridos nesse mundo. É minha crítica ao trabalho dele.
Entretanto, o que vem anteriormente é muito interessante.

Porque você considera que esses trabalhos não fazem parte de uma arte afro-brasileira?

230
Porque são pessoas que pensaram em imagens sem saber realmente o que significa aquilo no
sentido mais profundo. É uma coisa muito superficial, não dá pra caracterizar esses artistas como
alguém que se situa num plano do Mestre Didi, do Rubem Valentim.

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Entrevista de Maria da Betânia Galas
(concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: Gostaria de saber como tem sido o seu trabalho junto
das exposições do Emanoel Araujo, focando como tem sido o trabalho de organização de
uma arte afro-brasileira. Por exemplo, creio que essa é a primeira vez em que temos os
irmãos Timótheo próximos do Rubem Valentim etc. Como você ve esse fenômeno?
MARIA DA BETÂNIA GALAS: Eu comecei devido a um convite da Professora Maria Lucia
Montes. Eu já tinha realizado trabalhos com ela. O Emanoel conheci graças a ela. Comecei o
trabalho no Museu Afro Brasil antes do museu existir. Eu estava presente nas primeiras reuniões
de formulação do Museu, quando o prédio ainda não havia sido restaurado. Nós tinhamos apenas
uma mesa onde fazíamos as reuniões sobre o projeto. Lá participavam muitas pessoas. Algumas
que já não estão mais. O Vagner Gonçalves, Luis Carlos Lima, Maria Lucia, Luiz Carlos,
Oswaldo de Camargo, muitas pessoas que vieram a compor um núcleo interdisciplinar de
implantação do museu. O Museu Afro Brasil começou com esse núcleo interdisciplinar e com o
projeto de implantação de dez meses patrocinado pela Petrobras e apoiada pela Prefeitura de São
Paulo, que foi quem cedeu o lugar.

E você atuava exatamente em que?


Eu sou arte educadora por profissão, tenho trabalhos na área de cenografia, e tive formação em
teatro de bonecos no nordeste. Esse meu vínculo com arte popular foi que gerou o interesse das
pessoas para a minha aproximação com o Emanoel.

Como você vê essas exposições do Emanoel desde quando começou o Museu Afro Brasil?
Há uma mistura. Eu passei a perceber e estudar muitas coisas a partir dessa relação com o
Emanoel. Há algum tempo já existe o discurso de rompimento entre o erudito e o popular, de se
ter uma postura mais pluralista em relação a arte e a cultura, mas na realidade isso não acontece.
É uma coisa que está apenas no discurso. Se você notar os museus e galerias você vê exatamente
isso. Quando há algo de arte popular ela aparece como arte anônima. Não há grandes trabalhos
reflexivos sobre os artistas populares. E isso aparece separado do restante. Bem, eu tive a
oportunidade de trabalhar com uma pessoa que vê esse universo em conjunto, que valoriza e dá
um local de prestígio para essa arte, para os criadores de todos os segmentos. Mais do que isso,
ele coloca luz em locais onde antes não havia. Além disso, ele persegue essa perspectiva do
negro com grande dedicação e aprofundamento. A minha percepção dele é essa de poder ver uma
forma de reinventar o Brasil. Isso sempre foi negado.
Poder ver a produção negra num local de destaque por sua força e representatividade na fundação
do Brasil. É absurdo como ainda se nega essa manifestação. Eu trabalhei em escolas e vi isso
cotidianamente.

Você falou da forma do Emanoel de criar exposições. Você acompanhou a montagem e


criação de alguma exposição? Como você vê o modo do Emanoel ocupar o espaço
expositivo?
O Emanoel é um escultor. A sua formação aparece de forma clara na exposição. Ele percebe não
só o objeto que precisa ser mostrado em sua relação com o público, um objeto que traz uma
informação cultural, mas percebe nesse objeto uma superfície que compõe com o espaço. Então
ele vê esse objeto como cor. Ele vê esse objeto como linha, forma dentro do espaço. Isso é bem
evidente nas montagens do Emanoel. Algumas vezes ele chega até a trair determinados
princípios expositivos em nome disso. Por exemplo, seria interessante poder ver algumas
esculturas por inteiro. A primeira entrada numa exposição do Emanoel é sempre um impacto. E
você tem outros aspectos, pessoas de diversas formações com diversas reflexões. Inegavelmente,
ele trabalha com a sua formação de curador e a sua formação de escultor. As duas em conjunto.

232
Não sei se você acompanhou o trabalho dele na Pinacoteca, mas você considera que há
alguma diferença entre o trabalho de exposição na Pinacoteca e no Museu Afro Brasil?
Tem. Aqui ele tem um projeto em que ele mergulha numa perspectiva, que é a linha central e
outras circulando em volta. Ele pretende trazer tudo aquilo que são objetos que falam dessa
presença do negro no Brasil em sua perspectiva histórica e artística. Isso traz outro tipo de
informação. Na Pinacoteca ele tinha um interesse mais universal com a arte. A presença dessa
vertente européia, branca e masculina, embora o emanoel tenha sempre apresentado sua marca, lá
tinha grande participação. No Museu Afro Brasil o princípal é a cultura negra. Isso faz com que
tudo que envolve esse sistema também seja alterado, é preciso pensar em uma outra forma de
exposição, em formas de evidenciar contrastes, traços e composições que evidenciem uma forma
própria de expor arte afro-brasileira.

Alguns autores usam o conceito de arte afro-brasileira para delimitar a influência africana
em alguns artistas. O Emanoel trabalha com obras de Rubem Valentim, Agnaldo Santos,
Rosana Paulino e, além disso, usa artistas que não estão diretamente vinculados a uma
experiência afro-brasileira, como a Yedamaria. Como você vê o uso desses diversos artistas
dentro dessas diversas formas de expressão?
Eu acho que isso tem criado algumas confusões. Pode-se ter uma idéia equivocada de que
simplesmente é preciso ter a cor da pele. Acho que isso não é exatamente arte afro-brasileira.
Existem várias concepções sobre o que é ou mesmo se existe arte afro-brasileira, mas cabe notar
que em certos artistas é possível perceber um pensar das formas, da maneira de compor, onde
forma e conteúdo expressivo faz um tributo a um jeito africano de fazer arte ou de pensar os
objetos no mundo. Há pessoas que trazem essa permanência de um modo sutil, como a
gemialidade dos ibejis, que aparece até em Farnese de Andrade (é lógico que ele está discutindo
outras coisas, mas essa referência está lá). Isso acontece nas esculturas de Cosme e Damião
também, na Europa elas estão separadas e aqui elas estão sobre um único bloco. Há essas
sutilezas. Em relação a cor da pele do artista negro, mesmo quando trabalha com uma concepção
ocidental de arte eu creio que é preciso ver a forma como o negro enfrenta a sua condição. É
importante dizer, como cita o Emanoel, quem negro foi e quem negro é, porque as adversidades
para essa população foram outras. Por isso é relevante apresentar esses artistas com fotos. Isso no
entanto não pde se misturar com a concepção de arte afro-brasileira. Pensar em arte afro-
brasileira é uma outra coisa. Se ela existe, se ela não existe, como ela existe. Ela se revela de uma
forma mais forte em alguns momentos e em outros momentos se revela em sutilezas. Na arte
popular isso é muito comum. São sutilezas que falam de uma ancestralidade, de uma memória da
mão, da memória de um grupo.

Você considera que a proposta do Museu Afro Brasil, assim como o que aconteceu com a
Pinacoteca, é uma nova forma de se pensar em Museu? O que seria essa nova concepção?
Sim. É uma nova concepção. A concepção já existia, mas o enfrentamento dessa idéia aconteceu
pelo Emanoel. Isso desde a preocupação de se criar um Museu do Imaginário, do Mauraux, onde
todas as culturas podem estar presentes. As grandes exposições da década de 1960 com a
libertação dos países africanos. As ligas camponesas aqui, todos esses movimentos em massa
para colocar o povo em evidência, tudo isso gera uma discussão sobre o multicultural. E no
Brasil essa discussão está sendo colocada pelo Emanoel.

233
Entrevista de Oswaldo de Camargo
(concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: Como foi sua colaboração com as exposições do Emanoel
Araujo?
OSWALDO DE CAMARGO: No seu campo de atividades, o Emanoel é enciclopédico. Ele é
talvez um dos maiores curadores, um dos maiores conhecedores de arte, sobretudo a brasileira e,
por extensão, a arte de conteúdo afro em nosso país. E ele aplica esse conhecimento fazendo
museologia. Em 1988 ele precisou de alguém que fizesse uma matéria a respeito de escritores
negros para o livro A Mão Afro-Brasileira. Eu já vinha juntando artigos, retratos e recortes sobre
o negro, para meu uso pessoal como escritor, e tive o prazer de estar perto de uma pessoa que é
um grande entusiasta da cultura negra. Assim, pude colaborar com o Emanoel para a sua
exposição e também pude adquirir um grande conhecimento por meio dessa parceria, até mesmo
sobre música, pois também sou músico. A minha colaboração para a A Mão Afro-Brasileira foi
desde o início até o fim.. Acompanhei até as dificuldades para angariar patrocínio. No seu
estúdio, eu pude me aproximar, como poucos, do Emanoel, vendo-o diagramar o livro e percebi
que, nisso também, ele é mestre. Eu considero a Mão Afro-Brasileira, concretização disso tudo,
a melhor publicação sobre o negro no centenário da Abolição, 1988.. Foi nessa época que eu
conheci os livros que falavam sobre a produção do Emanoel e fiquei a par da avaliação crítica
sobre ela. Mas a minha principal colaboração foi o pequeno ensaio que escrevi¸ sob o título A
Mão Afra em nossa Literatura.

Colaborando com a curadoria do Emanoel Araujo?


Esse foi o primeiro trabalho. Aliás, eu não conhecia o Emanoel. Apesar de estar desde os 19 anos
participando em associações negras em São Paulo (com 23 anos fui diretor de cultura da
Associação Cultural do Negro), não conhecia o Emanoel. Isso porque nesse momento o Emanoel
talvez fosse recém-chegado a São Paulo, e o ramo dele era outro, o que o levava a conviver em
outros locais. Eu acredito que A Mão Afro-Brasileira, a exposição e o livro, foi o momento em
que o Emanoel pôde conhecer melhor a cultura do negro em São Paulo. Acho que a partir dessa
exposição e do livro o Emanoel começou a ficar mais perto da coletividade negra paulistana.

O senhor acompanhou a montagem da exposição A Mão Afro-brasileira?


Não, isso não era da minha área. Mas tive o prazer de emprestar um quadro da Maria Auxiliadora
– A colheita de cáctus – para ser exposto.

Como você percebe o uso que o Emanoel faz dos artistas negros dentro dessas exposições?
Anteriormente, por exemplo, não havia muitas exposições que agrupavam artistas negros
dentro de um mesmo conceito como ele fez.
O Emanoel nesse ponto se mostra muito inteligente. Ele usa uma segmentação que trata do negro
e joga luz sobre ela, aprofundando a visão e o conhecimento a respeito.. Eu acredito que um dos
poucos artistas que têm condições de fazer isso é ele, pois o Emanoel “vive” artes plásticas e está
fundamente envolvido com o negro. Ele está impregnado dessa temática. Não só por ele ser
negro. Naturalmente não só por causa disso, haja visto que no tempo de Machado de Assis houve
outros autores negros e mulatos, mas sendo Machado de Assis, um mestiço, o maior nome da
Literatura brasileira a atenção se voltou sobretudo para ele – que não se prendeu tanto a essa
questão –, o que se entende. Então, o Emanoel tira da sombra autores bons que, se não fosse o
trabalho dele, ninguém conheceria. Mas isso aconteceu por quê? Porque ele foi atrás, e como ele
é um homem muito conhecido, freqüenta as melhores rodas de artistas, ele teve maior facilidade
de chegar a esses autores e lançá-los. Isso é óbvio. Ninguém pode dizer que conhece de artes
plásticas se não conhece o mínimo de Aleijadinho e de Mestre Valentim, Di Cavalcanti, Heitor
dos Prazeres. Eu estou falando que ele vai muito além disso. Ele busca o século XIX, o XVIII. O
Emanoel para mim é um descobridor. Ele faz uma circunavegação nas artes e vai trazendo

234
novidades, descobrindo terras e confirmando nomes não só no âmbito negro, mas no da cultura
em geral do País.. Só que ele tem algo muito importante. Ele tem o prestígio de um artista
plástico. E com isso traz à tona as outras artes. É daí que averiguo que ele é dono de um espírito
enciclopédico. Ele traz a literatura, a música, com as artes plásticas. O Emanoel, para mim, é um
grande desbravador É um homem inquieto, que gosta de fazer.

Você acompanhou a trajetória do Emanoel desde a Pinacoteca até o Museu Afro-Brasil.


Você considera que aconteceu alguma diferença dentro dessa trajetória?
O Emanoel naturalmente foi crescendo. Ele foi se construindo nessa visão. Tudo que fazemos
nessa vida é uma construção. Você nunca é o mesmo. O homem é uma construção de si mesmo,
uma idéia que não é minha, mas que amo citar. Então, o Emanoel, como falei, ele vivia num
ambiente mais rarefeito, depois ele foi conhecendo mais da história do negro. Ele foi se
enriquecendo.O projeto dele assim foi sendo cada vez maior, com mais soma, com mais gente se
agregando. O Emanoel é um artista sempre em caminhada e em alguns aspectos solitário. Eu não
posso dizer que existam dois ou três “Emanoeís”. O Emanoel é único. De pintores primitivos eu
posso citar dez ou cinco. Mas o Emanoel, sobretudo como museólogo, é único. E por felicidade
nossa é um negro. Ele poderia ser negro e isso não ter a mínima conseqüência para o que aqui
nos interessa, podia ser um negro que passa em branco. Mas o Emanoel é um negro intelectual
que não passa em branco. Ele enegrece o que faz. E não enegrece à toa. Ele tem uma meta, que é
fazer uma releitura do País. E é muito necessário que se faça essa releitura, sobretudo com artes.

Dentro disso tudo, o que você destaca do trabalho do Emanoel?


Eu destaco, além das soberbas exposições que ele realizou, a inquietação e as buscas dele. Como
fui consultor do Museu do Imaginário, um grande projeto do Emanoel, do qual participei durante
oito meses em 1999, posso afirmar que muito do que acontece no Museu Afro Brasil já estava ali
contido e aparece agora retrabalhado. Ele absorveu, aumentou, ampliou. Eu considero o Museu
Afro Brasil fruto de toda essa experiência do Emanoel. Ele deu uma olhada sobretudo no século
XIX, momento que eu considero de maior prestígio da nossa história. É o século de Paula Brito,
Machado de Assis, do Cruz e Souza, do José do Patrocínio, Teodoro Sampaio e esses
personagens todos e tantos outros que vieram antes deles ou depois são trabalhados muito bem
pelo Emanoel. Fazendo livros, produzindo catálogos, o Emanoel, na minha opinião, é um
extraordinário divulgador da cultura negra, apontando rumos para uma arejada história do negro
no Brasil.

Você considera que há um modo específico do Emanoel Araujo em montar exposições? A


forma de lidar com o espaço, de pensar a distribuição das obras?
Sem dúvida. O Emanoel é um homem de minúcias. Ele tem o entusiasmos de que falavam os
gregos, isto é, a inspiração, como se fosse um transe, que pega o poeta. . O Emanoel trabalha,
creio, muitas vezes da mesma maneira que o poeta com seu poema. A disposição que o Emanoel
faz é um poema. Ele trabalha com esse claro e escuro da pintura, com essa luminosidade que
também é da literatura. Ele dá a tonalidade única possível, a tonalidade própria do Emanoel. Se
fosse outro seria diferente. E depois vem a inquietação de fazer da exposição dele uma coisa
sempre renovada com o tempo. Ele pega uma peça aqui, põe para lá. A exposição não é uma
coisa estática. O Emanoel é tudo, menos estático.

235
Entrevista de Renata Felinto
(concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: Gostaria de saber como você começou a trabalhar com o
Emanoel Araujo e como foi o início dessa trajetória.
RENATA FELINTO: Eu conheci o Emanoel quando fui trabalhar na exposição do Rodin A Porta
do Inferno. Eu já conhecia o Emanoel de nome, já estudava arte afro-brasileira, e daí o Percival
Tirapelli, amigo do Emanoel, meu orientador também, me convidou para trabalhar na exposição
sobre a Porta do Inferno do Rodin. Isso foi um contato profissional. Um contato um pouco mais
próximo eu tive quando fui fazer uma entrevista com ele para o meu mestrado. Essa foi uma
entrevista sobre o trabalho artístico dele e sobre a definição do termo arte afro-brasileira. Porque
na verdade creio que foi ele quem deu visibilidade para esse termo dentro das artes plásticas. Foi
ele quem também ampliou o uso desse termo porque antes arte afro-brasileira era arte somente
ritual. Ele ampliou um pouco esse prisma ainda que eu tenha algumas ressalvas quanto a esse
termo.

Quais são as suas ressalvas em relação a esse termo especificamente?


Eu penso que ninguém chama a Tomie Hotake de artista nipo-brasileira, ela é uma artista do
abstracionismo informal apenas. Quando nos referimos a ela nós falamos muito mais a respeito
das características de sua pintura e pelas escolas com as quais ela dialoga do que pela origem
dela. Quando falamos em Candido Portinari, também não nos referimos a ele como ítalo-
brasileiro. Eu considero, então, que isso pode fechar várias portas. Conversando com a Rosana
Paulino, ela falou que isso acontecia muito com ela. A Rosana estava em uma mostra de artistas
afro-brasileiros e ela não era chamada para uma de artistas contemporâneos. É como se o afro-
brasileiro e o contemporâneo não fossem palavras que se referem a uma mesma época. Há essa
história do tempo mítico e religioso. Parece que esse conceito de arte afro-brasileira ficou parado
no tempo. Essa é minha discussão do doutorado até. No Museu Afro Brasil foi que eu tive maior
contato com o Emanoel. Mas o Emanoel é uma pessoa muito reservada. Então, as conversas que
eu tive com ele sempre foram conversas muito pontuais, com diversas outras pessoas. Depois que
ele voltou do Benin é que eu fui almoçar com ele algumas vezes e pude conversar melhor.

Como você considera que o Emanoel lida com o termo arte afro-brasileira?
Eu considero que ele abraça esse termo. Mas para o Emanoel esse termo é tão amplo que cabe
uma grande diversidade de pessoas que penso que, para mim, não poderia. Por exemplo, o
Caribé. Daí você começa a questionar também uma série de características e problemas para
efetivar esse termo. É arte afro-brasileira uma arte que apresenta certas características? É arte
afro-brasileira a arte produzida por negros? A arte que tem um mesmo tema? A arte que tem
como tema as religiões afro-brasileiras? Considero que há um monte de problemas que, para o
Emanoel, ele abarca e entende tudo isso como afro-brasileiro. Isso para ele é super importante.
Foi ele quem deu visibilidade para essa tendência, essa terminologia. Em uma tendência você
consegue citar algumas características. No caso da arte afro-brasileira não há essa possibilidade.
Se você vir a Yêdamaria, que está lá no Museu Afro Brasil, que é uma amiga particular do
Emanoel, nota que ela faz naturezas mortas. Ao mesmo tempo tem um Mestre Didi, que é um
sacerdote. A estética dele é ritual, mas a obra não foi sacralizada. O Emanoel abarca tudo isso. E
creio que ele entende tudo isso como arte afro-brasileira.

E o que você acha que deveria ser entendido como arte afro-brasileira? Você consegue
definir como compreender melhor esse termo?
Não. Esse é um caminho difícil e daí você exclui um monte de gente. Nos meus textos, por
exemplo, eu excluo todos os brancos. Eu penso em arte afrodescendente. A matriz é o indivíduo
que produziu a obra. Eu penso muito na perspectiva do negro que pensa a sua própria trajetória e
que de alguma maneira tenta elaborar isso através da pintura, do desenho, da fotografia, das

236
instalações e performances. Eu tenho pensado mais nessa perspectiva também por conta da lei,
que agora inclui o estudo da cultura indígena. Antes era uma lei que vinha para diferenciar um
grupo, agora ela começa a botar todo o mundo que não é branco no mesmo saco. Bem, agora eu
tenho pensado muito que é importante apresentar artistas negros produtores. Então, não tem
sentido, por exemplo, estudar Di Cavalcante porque ele pintou mulatas ou estudar o Portinari
porque ele pintou trabalhadores negros ou a Dijanira que pintou festas populares ou mesmo o
Ronaldo Rego. Eu penso muito no negro como produtor da arte. Ele como protagonista e não
mais como tema. Quando eu penso nesse termo, que não gosto muito, penso sob essa perspectiva,
focando quem produz. E focando quem produz há uma grande diversidade de temas. Essas
pessoas são artistas e vão colocar isso de diferentes modos na sua produção. Outros nem pensam
em colocar essa discussão em suas obras.

Como, por exemplo, a própria Yêdamaria?


Mas ela tem alguns trabalhos que são um tanto “Black Panthers”. Tem alguns trabalhos de
colagem e fotografia com negros e brancos. Lembra um pouco também de Iemanjá como tema.
Ela tem essa fase, mas não se restringiu a ela. Não dá para ficar só nesse assunto. Você sai disso
naturalmente. Você precisa se interessar por outras coisas. Esse é um problema do meu
doutorado, pensar esse termo, pensar se serve ou não, se precisa existir. Se esses artistas devem
ser pensados junto às correntes de arte em que trabalham ao invés de serem somente limitados à
arte afro-brasileira.

Trabalhando nas exposições do Emanoel Araujo, como você percebe a montagem desses
trabalhos?
Ele tem tudo amarrado na cabeça dele, mas é muito ocupado. Então, em poucas exposições ele
pode sair com os educadores para falar sobre o conceito da exposição. Mas pelas conversas que
temos com ele é possível constatar que ele tem tudo isso muito bem elaborado. Ele sabe o que
quer fazer. Algumas montagens são muito exuberantes, inclusive, mas sempre um pouco
complicadas para o público. Às vezes, isso me parece mais projetos pessoais dele, coisas que ele
vem elaborando há muito tempo. Que ele quer mostrar, mas não pensa no trajeto da pessoa
dentro do espaço. Não tem esse cuidado didático para quem vai conhecer tanto o Museu como o
assunto da exposição. Na exposição sobre religiosidade, por exemplo, creio que faltavam textos
produzidos para a exposição. Mesmo sobre o percurso, tem algumas montagens que são um
pouco labirínticas.

Como acontece com o acervo permanente...


Sim, as obras do acervo permanente são em nichos, as obras são agrupadas. Tem as peças que
falam sobre trabalho, as peças que falam sobre a África, mas essa montagem não é didática.
Agora ela está um pouco mais didática, porque tem uma vitrine com os dados da peça, com
informações de onde vêm aqueles objetos no continente africano. Tem muitas escolas que
visitam o Museu, tem muitos turistas e pessoas que vão sozinhas, creio que falta um pouco desse
didatismo para essas pessoas entenderam o que está ali, pois caso contrário fica um diálogo para
um público muito especializado de pessoas que já tem conceitos mais cristalizados sobre o que
eles vão ver no Museu. O Emanoel tem toda essa intenção de mostrar essa produção mas o seu
foco não é pensar exatamente no público. No Museu Afro Brasil ele tem dado um pouco mais de
atenção ao núcleo de educação. As exposições dele sempre têm muita informação.

Como você percebe o cruzamento das diversas facetas do Emanoel – curador, artista e
colecionador? Você considera que tudo isso interfere no modo como ele expõe?
Interfere. Eu creio que ele pensa as exposições sozinho. Eu já vi ele montando uma exposição.
Mais do que uma pessoa que é só curadora, que necessita de um arquiteto, um engenheiro; ele
consegue pensar o espaço sozinho. Ele faz e depois consulta as pessoas para saber se é possível
ou não. Ele consegue transitar por esse meio da curadoria com muita facilidade. Mas como
diretor, eu acho que talvez ele devesse ser um diretor artístico, apenas curatorial, porque, caso

237
contrário, ficam muitas funções para ele administrar, para ele se responsabilizar sozinho. Esses
buracos, como a falta de atenção com o público, em parte tem a ver com isso. É um acumulo de
funções. Ele está presente em várias funções ali, quando ele deveria delegar funções para as
pessoas que estão próximas dele. Eu creio que isso complica. Ao mesmo tempo, ele apresentou
algumas obras novas no Tomie Hotake. Nós sabemos que quando você tem uma produção
artística e um trabalho para te sustentar a produção artística fica em segundo plano. No caso do
Emanoel ele acaba deixando de lado a produção artística dele para cuidar dessas funções, que são
tão prazerosas quanto. Para mim, ele é uma pessoa que gosta de pensar a arte. Pensar a arte
dentro das suas várias especificidades. Produzindo, pensando em como dispô-la no espaço, em
como comercializá-la, é uma atividade muito global, mas que para ele poderia ser apenas a
artística e de curadoria. A parte administrativa deveria ficar com outra pessoa. Mas eu creio que
ele consegue visualizar o que ele quer. Ele tem o conceito, ele sabe qual cor usar na parede. Há
essa crítica hoje sobre o cubo branco, mas eu acho que ele tem o equilíbrio disso tudo. Ele não
coloca o efeito pelo efeito, ele coloca a parede com cor para criar a ambientação do espaço
expositivo. Ele sabe exatamente o que tem de ser discutido em cada espaço. Ele concebe cada
espaço e só falta que isso fique mais visível para o público.

Pensando no trabalho na Pinacoteca e no museu Afro Brasil, você vê alguma diferença


nessa trajetória? O Emanoel mudou o modo de pensar em exposição?
Eu penso que no Museu Afro Brasil ele talvez esteja mais sozinho. Quando ele estava na
Pinacoteca ele tinha um grande apoio do Mario Covas, por exemplo, do Governo do Estado.

Sim. Um apoio institucional importante...


Sim. Por ser uma Instituição que agora já tem mais de 100 anos, que é muito importante para o
Estado de São Paulo, eu penso que ele tinha mais apoio lá, conseguia mais verba facilmente.
Tudo era mais fácil na Pinacoteca. Também porque era um tipo de arte que reiterava os valores
da arte ocidental. Por sua vez, o Museu Afro Brasil é uma instituição que faz parte de um
conjunto de ações afirmativas, do ponto de vista educacional e até do ponto de vista de cidadania.
Aqui na USP você tem a Casa de Cultura Japonesa, tem o próprio Tomie Hotake perto, isso
privilegia um segmento social. Há todos os outros museus que apresentam uma arte ocidental e
branca. De repente surge o Museu Afro Brasil enorme, do tamanho de uma Pinacoteca quase,
apresentando uma arte produzida por negros. Isso causa um grande enfrentamento. Inclusive, tem
muitos críticos de arte que eu nunca vi freqüentando o Museu Afro Brasil. É como se eles não
dessem o aval para aquele espaço. Creio que lá o Emanoel tem esses vários enfrentamentos, não
é apenas um enfrentamento financeiro com o Governo e a Prefeitura, mas também um
enfrentamento com a área de arte e cultura. Ele mesmo já falou que o Museu é como uma bomba
que pode explodir a qualquer momento. Não só pela falta de dinheiro, mas porque é um prédio
que foi visado por várias instituições, inclusive pelo MAM, que é um Museu importante. Assim,
eu creio que é muito mais difícil de ele gerir o Museu Afro Brasil do que a Pinacoteca. Tem um
problema que penso que é uma falta de vontade política também das pessoas que o circundam.

Sobre as exposições do Emanoel de 1988 até hoje, você vê alguma diferença?


Comparando todas essas exposições eu penso que ele incluiu mais artistas contemporâneos
agora. Se formos pensar na exposição A Mão Afro-Brasileira, penso que essa foi a exposição
mais próxima do Museu Afro Brasil hoje. Ela fala de literatura, música, das artes; mas não tinha
muito de arte contemporânea. Eu acho que o Museu Afro Brasil agora dá espaço para obras mais
atuais, para o que acontece agora. Eu penso que é importante sempre atualizar, para não ficar
uma imagem do negro estática. Tem alguns assuntos que não são contemplados e que são
importantes dentro da trajetória do negro no Brasil, como a música, capoeira, por exemplo. Não é
possível querer abarcar tudo. Mas a diferença que percebo é essa: hoje há muito mais arte
contemporânea. E sempre tem muita religiosidade também. Mas há uma crítica – ele podia
ampliar essa visão também sobre o candomblé, mostrar a umbanda e outras formas de religiões
afro no Brasil. Às vezes algumas pessoas vão até o Museu e falam “eu já vi isso em outra

238
exposição”. Nós temos de explicar que esses objetos já fora apresentados antes, mas que agora
estão num novo contexto. Mas exceto a parte de arte as outras áreas não tiveram muitas
modificações.

E o acumulo de obras nas exposições do Museu Afro Brasil? Desde a sua inauguração é
possível perceber que o Emanoel aumentou e muito o número de obras.
Ele fez uma exposição agora chamada Gabinete de Curiosidades onde há muito presente essa
noção de acúmulo. É uma ação de colecionador. Ele pensa que todos os objetos são valiosos. Isso
é muito interessante. Quando vamos a uma exposição queremos saber o que há de mais valioso,
mas na perspectiva do Emanoel, tudo é valioso. Isso por conta do valor histórico que está ligado
ao objeto. Para ele faz todo o sentido colocar um objeto de trabalho do lado de uma gravura. Isso
é uma característica barroca dele. Isso tem a ver muito com as esculturas dele. Isso é tão próprio
dele que ele consegue distribuir isso no espaço – embora impactante num primeiro momento – de
uma forma coerente. Há objetos que tem uma conexão com os documentos que estão do lado ou
com um quadro mais a frente. Se compararmos o Museu Afro Brasil com a exposição Negro de
Corpo e Alma o Museu está muito mais limpo. Ele tem uma narrativa na cabeça sobre os objetos.
Aquele objeto tem de estar naquele espaço junto daquele outro. Isso para que o discurso da
exposição tenha coerência.

Como você vê as discussões sobre a nova museologia no trabalho do Emanoel?


Imagino que há muito de um revisionismo histórico nas exposições do Emanoel. Isso é uma
postura de indivíduo negro que acontece desde a sua primeira exposição. Eu não sei como ele
passou por 1969, por essas discussões sobre a visibilidade dos excluídos, mas ele passou por tudo
isso. Me parece que tudo isso surge no Emanoel como fruto de um posicionamento pessoal dele,
uma auto conscientização dele enquanto negro e baiano, uma pessoal que viajou. Acredito que
isso tenha mais importância que os fatores da política e da história. É algo natural dele. Eu acho
que ele faria isso independente dessa voz sobre pluralidade que há hoje.

O percurso pessoal dele levou a isso...


Sim. Penso que é muito mais uma visão pessoal que ele tem do negro nos EUA e no Brasil. Ele
pega essas duas coisas e junta. Por conta de toda sua história, ele entende que o Museu Afro
Brasil é um espaço legítimo dos negros que demorou muito tempo para acontecer. Existem vários
Museus desse tipo, porém menores, nos EUA. Nos EUA somente 11% da população é negra,
considerando os pardos. Eu penso que essa trajetória do Emanoel, assim, é independente de toda
essa movimentação museológica de hoje. É uma coisa da formação dele, algo que ele foi
elaborando e chegou a isso. (...)
Olha, tudo lá no Museu poderia ser perfeito se ele funcionasse administrativamente como outros
espaços. Há diversas ONGs de bairro, associações de moradores etc., que procuram o Museu
Afro Brasil . Eles entendem que a visita ao Museu Afro Brasil vai mexer um pouco com a
identidade. Tem gente que não gosta, o pessoal de antropologia e das ciências sociais não gosta
de usar o termo identidade. Eu fico pensando nesse termo e precisamos ver que numa pessoa
existem várias identidades. Há um cruzamento de identidades. Nós somos negros, mas temos
uma formação ocidental. Isso me deixa com o pé atrás. Mas essas ONGs pensam muito nessa
auto-imagem dos indivíduos do bairro, na sociedade que os exclui. Esse pessoal sabe que o
Museu pode ajudar a fortalecer a identidade dessas pessoas. A pessoa vai aprender um pouco do
percurso histórico desse grupo do qual ela faz parte. E isso acontece. Como educadora eu já
percebi como acontece. Eu já trabalhei em vários Museus e aqui é o único local onde nós
podemos perceber a mudança da pessoa, enquanto indivíduo, por causa de uma visita. Isso não
acontece numa visita a uma exposição de arte impressionista, de arte russa, de arte chinesa ou de
arte contemporânea. Nessas exposições trabalham-se orientações estéticas que podem não estar
ligadas a determinados grupos, mas no Museu Afro Brasil estamos trabalhando com a imagem de
um grupo. A imagem que os outros têm desse grupo. Você vê como essa imagem negativa pode
se tornar positiva ou ser melhor compreendida.

239
O Museu Afro Brasil tem uma proximidade muito grande com a sua comunidade?
Exatamente. Você se vê ali na história como protagonista. Há uma demanda para isso. Essas
pessoas de ONGs e professores acabaram percebendo esse movimento e valorizam algo que
sempre foi deixado de lado. Por fim, o Emanoel é um marco. É uma das pessoas mais
importantes das artes hoje no Brasil. Isso apesar de ele não ter esse reconhecimento. Se ele
tivesse não faltaria dinheiro para o Museu Afro Brasil. Talvez, esse seja um caso triste em que,
mais uma vez a pessoa só vai ser devidamente respeitada e reconhecida quando não estiver mais
aqui para receber as homenagens. Ele causou uma revolução nas artes. Ao mesmo tempo há um
hiato, é preciso resolver esse problema entre o contemporâneo e o tradicional no Museu. Mas o
importante é que ele pode mostrar para todos, brancos e negros, essa produção. Eu mesma
estudava história da arte sem nenhuma identificação com aqueles artistas, eu gostava de um ou
outro, mas não me identificava. Mesmo em relação à produção africana, pois nós não somos mais
africanos. Depois disso apareceu o Emanoel. A partir desse momento eu vi o que eu quero
pesquisar e o que eu posso fazer. Ele começou isso e a gente precisa continuar.

240
Questionário para entrevista com Emanoel Araujo

1. Nos conte sobre seu percurso como curador. Como se deu o caminho entre o artista e o
colecionador para o curador?

2. Como foi o interesse inicial pelo ato de colecionar? Quais são seus principais interesses e
como acontece essa atividade?

3. Como foi a elaboração da mostra A Mão Afro-brasileira? Como foi o contexto dos 100 anos
da abolição para você e de que forma isso influenciou na organização da exposição? Além disso,
porque o foco da autoria negra e não no trabalho artístico na exposição A Mão Afro-brasileira?

4. A exposição Negro de Corpo e Alma parece ter sido a maior exposição em seu trabalho
curatorial até a criação do Museu Afro Brasil. Como foi gestada essa exposição e a divisão entre
os núcleos Sentir a alma, Olhar o corpo e Olhar a si mesmo?

5. Como foi a criação do Museu Afro Brasil e a divisão dos núcleos entre arte contemporânea,
religião, memória etc.?

6. Em seus textos é possível verificar a fuga da visão da arte africana e afro-brasileira como
exótica, como é possível fugir desses estereótipos?

7. O que o senhor entende pelo termo arte afro-brasileira? Existe uma arte afro-brasileira ou
somente arte brasileira?

8. Como é o seu método de trabalho para montar exposições? Como você pensa a distribuição do
espaço, da luz e das cores? Qual é o objetivo maior dessa montagem? Quais os principais
conceitos que norteiam suas exposições?

9. O que é necessário para repensar a história da arte brasileira, tradicionalmente de orientação


européia, hoje em relação aos afro-brasileiros? Como incluir o artista e a população negra nesse
espaço?

10. Como foi o seu trabalho com Pietro Maria Bardi e Dona Lina Bo Bardi? Eles, assim como
Odorico Tavares, foram importantes para seu trabalho de curadoria atual?

241
Questionário para entrevista com os colaboradores

1. Como foi sua trajetória de trabalho junto as curadorias de Emanoel Araujo.

2. Como você percebe os artistas negros dentro dessas exposições?

3. Quais são as características da montagem de Araujo, o seu método de trabalho?

4. O que você considera de mais relevante no trabalho curatorial de Araujo?

5. Você considera o termo arte afro-brasileira relevante para explicar a produção dos
artistas apresentados por Araujo?

6. O que diferencia o trabalho de Araujo na Pinacoteca e no Museu Afro Brasil?

7. A curadoria de Araujo faz parte de uma nova concepção de museu? Quais seriam as
características desse projeto?

8. O percurso de exposições de Araujo tem se alterado desde a exposição A mão afro-


brasileira?

242
Relação de parte das exposições com destaque sobre arte afro-
brasileira e da África de Emanoel Araujo

Bahia–África–Bahia, Museu de Arte da Bahia, Salvador (27/02 a 14/03/83).

A Mão Afro-Brasileira, Museu de Arte Moderna, São Paulo, 1988.

A Casa do Baiano: O negro brasileiro refletido na coleção de Araujo, Museu Baerengasse,


Zurique, Suiça, 1990.

Vozes da Diáspora, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 1992.

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Paulo, 1994; Centro de Cultura de Belo Horizonte, 1995; Espaço Cultural 508 Sul – Brasília,
1995.

Antologia da Fotografia Africana, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 1996.

Arte e Religiosidade no Brasil – Heranças Africanas, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São
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Negro de Corpo e Alma, Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 anos, São Paulo, 2000.

Para Nunca Esquecer: Negras Memórias, Memórias de Negros, Museu Histórico Nacional,
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Mario Cravo Neto – O Tigre do Dahomey_A Serpente de Whydah. Museu Afro Brasil, São
Paulo, 2005.

O Imaginário do Povo Brasileiro. Museu Afro Brasil, SP, 2005.

Carybé: O universo mítico de Hector Julio Paride Bernabó , Museu Afro Brasil, São Paulo,
2006.

Yêdamaria, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2006.

Imagens Perversas e Inocentes, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2007.

Benin Está Vivo Ainda Lá – Ancestralidade e Contemporaneidade, Museu Afro Brasil, São
Paulo, 2007.

Bijagós – Arte dos Povos da Guiné-Bissau, 4º Festival de Arte Negra, MG, 2006; Museu Afro
Brasil, SP, 2007.

A Divina Inspiração – Sagrada e Religiosa – Sincretismos, Museu Afro Brasil, São Paulo,
2008.

Walter Firmo em Preto e Branco, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2008.

Negros Pintores, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2008.

243
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Breve biografia do pesquisador Marcelo de Salete Souza
Marcelo de Salete Souza é paulistano. Graduou-se em Artes Plásticas pela Universidade
de São Paulo. Ele tem estudado arte afro-brasileira desde o início de sua graduação. Essa
preocupação resultou neste trabalho de mestrado do Programa Interunidades em Estética
e História da Arte da mesma Universidade. Marcelo também é desenhista, ilustrador e
escritor de histórias em quadrinhos, tendo já publicado livro no Brasil e no exterior.

E-mail: dsalete@yahoo.com.br
Website: www.dsalete.art.br

256
Livros Grátis
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