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CIRCULAÇÃO E PERCURSO NO PROJETO DE ARQUITETURA

CIRCULATION AND PATH IN ARCHITECTURAL DESIGN

CIRCULACIÓN Y RUTA EN EL PROYECTO DE ARQUITECTURA

EIXO TEMÁTICO: PROJETO, POLÍTICAS E PRÁTICAS

TAGLIARI, Ana
Doutorado em Arquitetura; PPGATC e Curso AU FEC Unicamp
tagliari.ana@gmail.com

FLORIO, Wilson
Doutorado em Arquitetura; PPGAU e FAU Mackenzie e Curso AU FEC Unicamp
wilsonflorio@gmail.com
RESUMO

A pesquisa aqui apresentada envolve o estudo de projetos de arquitetura com foco no sistema de
circulação e percursos. Iniciada em 2009, a pesquisa selecionou diversos projetos para análise da
circulação e a relação com conceito, programa e partido. As análises dos projetos foram realizadas por
meio de levantamento bibliográfico, levantamento gráfico a partir de fontes primárias, visitas, fotografias
sequenciais, análises por desenhos e fotos. Por meio desta pesquisa foram identificados diferentes tipos
de circulação e percurso em projetos pertencentes à momentos distintos da história da arquitetura.
Circulação: estática; contínua, desobstruída e fluída; sequencial, com surpresas e descobertas, quadro a
quadro; heterogênea, dinâmica e autoral. Apresentamos uma síntese destes tipos acompanhados das
análises projetuais realizadas nesta pesquisa, que relaciona Teoria e Projeto de arquitetura, com ideia
original da análise do projeto de arquitetura a partir do sistema de circulação e seus elementos, como
estruturador do partido arquitetônico.
PALAVRAS-CHAVE: Circulação. percurso. Análise de projeto. Teoria e projeto de arquitetura.

ABSTRACT

This research involves the study of architectural design focusing on the circulation system and movement.
Started in 2009, the research selected several projects for analysis of circulation and the relationship with
concept, program and parti. The analyzes of the projects were carried out by means of bibliographical
survey, graphic survey from primary sources, visits, sequential photographs, analysis by drawings and
photos. Through this research, different types of circulation and path were identified in projects belonging
to different moments in the history of architecture. Circulation: static; continuous, unobstructed and fluid;
sequential, with surprises and discoveries, frame by frame; heterogeneous, dynamic and authorial. We
present a synthesis of these types accompanied by the design analysis carried out in this research, which
relates Theory and Design in architecture, with the original idea of the analysis of the architecture design
from the circulation system and its elements, as the structurer of the architectural parti.
KEYWORDS: Circulation. Path. Design analysis. Theory and Project in architecture.

RESUMEN

La investigación presentada aquí comprende el estudio de proyectos arquitectónicos con un enfoque en el


sistema de circulación y rutas. Comenzado en 2009, la investigación seleccionó varios proyectos para el
análisis de la circulación y la relación con el concepto, el programa y lo partido. Los análisis de los proyectos
se llevaron a cabo mediante pesquisas bibliográficas, pesquisas gráficas de fuentes primarias, visitas,
fotografías secuenciales, análisis por dibujos y fotos. A través de esta investigación, se identificaron
diferentes tipos de circulación y trayectoria en proyectos pertenecientes a diferentes momentos de la
historia de la arquitectura. Circulación: estática; continuo, sin obstáculos y fluido; secuencial, con
sorpresas y descubrimientos, cuadro por cuadro; heterogéneo, dinámico y autoral. Presentamos una
síntesis de estos tipos acompañada del análisis de diseño realizado en esta investigación, que relaciona la
Teoría y el Diseño de la arquitectura, con la idea original del análisis del diseño de la arquitectura desde el
sistema de circulación y sus elementos, como la estructuración de lo partido arquitectónico.
PALABRAS-CLAVE: Circulación. Ruta. Análisis de proyectos. Teoría y proyeto arquitectónico.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


INTRODUÇÃO

A boa arquitetura ‘se caminha’ e ‘se percorre’ pelo interior e exterior. É a arquitetura viva.
(Le Corbusier, 2005, p. 43)

A presente pesquisa, vinculada aos Grupos “Arquitetura: Projeto, representação e análise”


(Unicamp/CNPq) e “Arquitetura, Processo de Projeto e Análise Digital” (Mackenzie/CNPq), e
atualmente desenvolvida com auxílio financeiro do CNPq, surgiu a partir das aulas de Projeto de
Arquitetura na graduação, e do interesse de se criar um material de apoio para estudantes,
envolvendo análise de projetos, relacionando conceito, programa de necessidades, partido
arquitetônico, e o estudo sistemático dos elementos arquitetônicos e sistemas de circulação.
Como metodologia, para superar as dificuldades do ateliê, foram propostos exercícios para
análise de projetos, de modo a permitir que estudantes pudessem aprender a partir de soluções
existentes, e, assim, definir o partido arquitetônico, e consequentemente alcançar um
desenvolvimento melhor do exercício de projeto.

A investigação tem como ideia original o objetivo de analisar os projetos selecionados a partir
da abordagem no sistema de circulação como definidor e estruturador do partido arquitetônico,
relacionando estratégias projetuais (MONEO, 2004, p.2), conceito, programa e partido.

A pesquisa cresceu e já envolveu, e envolve, alunos de Iniciação Científica, pós-graduação,


disciplinas na graduação e pós-graduação, além de produzir debates, palestras, exposições e
publicações para disseminação do conhecimento. Uma parceria internacional também envolveu
a pesquisa com publicações recentes. Os textos estão sendo sistematicamente publicados ao
longo dos últimos anos.

O foco principal da pesquisa é analisar, reunir e discutir a circulação e percurso em projetos de


arquitetura, para posteriormente este conhecimento compor material importante para o
desenvolvimento do projeto no ateliê. Assim, a partir da constatação da necessidade de ampliar
o repertório dos alunos, como meio de aprendizado da atividade projetual em arquitetura,
foram selecionadas, visitadas e analisadas obras de arquitetura que permitissem a discussão
sobre diferentes abordagens, conceitos e condicionantes que nortearam as obras analisadas,
com foco na circulação.

Por que a circulação? Normalmente no programa de necessidades o item circulação vem apenas
com a indicação de uma porcentagem. Verificou-se que os alunos apresentam dificuldade em
definir a circulação no projeto. Por outro lado, sabe-se da importância da circulação para
definição do partido arquitetônico.

A metodologia adotada nesta pesquisa é baseada em pesquisa bibliográfica sobre o tema,


levantamento de informações sobre os projetos a partir de fontes primárias, visitas, análise do
projeto por meio de desenhos e imagens. O método de análise gráfica (Tagliari, Florio, 2019) foi
adotado para investigação dos projetos. A visita tornou-se uma etapa fundamental para se
compreender de maneira completa e efetiva a circulação, movimento, percurso, visuais,
sensações e percepções. Como etapa da metodologia também foi estabelecido que a leitura dos
textos dos próprios arquitetos é de fundamental importância para o entendimento dos
conceitos que fundamentam os projetos analisados.

Por meio das análises desta pesquisa foram identificados diferentes tipos de circulação e
percurso em momentos distintos da história da arquitetura, passando pelo modelo clássico,

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moderno, pós-moderno e contemporâneo. Circulação: estática; contínua, desobstruída e fluída;
sequencial, com surpresas e descobertas, quadro a quadro; heterogênea, dinâmica e autoral.

Apresentamos neste artigo uma síntese das análises projetuais realizadas nesta pesquisa, que
relaciona Teoria e Projeto de arquitetura, com ideia original da análise do projeto de arquitetura
a partir do sistema de circulação e seus elementos, como estruturador do partido arquitetônico.

Este artigo está organizado em três partes. Primeiramente, apresentamos, de maneira sintética,
considerações sobre a abordagem da circulação no projeto de arquitetura, mais
especificamente dentro do foco da pesquisa, que é análise de projeto. Na segunda parte,
apresentamos as análises dos projetos selecionados e os tipos identificados a partir da seleção
dos projetos e da pesquisa em desenvolvimento. Na terceira parte a discussão e para encerrar
os apontamentos finais do artigo.

CIRCULAÇÃO, PERCURSO E MOVIMENTO NO PROJETO DE ARQUITETURA

Philip Johnson (1965, p.168) assim afirmou:


Certamente arquitetura não é projeto de espaço, certamente não é
organização de massas e volumes. Estes são auxiliares para o ponto principal
que é a organização da procissão. Arquitetura existe somente no tempo.

Esta afirmação nos leva a seguinte reflexão: arquitetura é dependente do sistema de circulação
que nos conduz a diferentes percursos e percepções dentro e fora de um edifício. Logo se
percebe que há íntimas relações entre espaço, tempo e movimento. O deslocamento pelo
espaço ao longo do tempo implica em diferentes direções do olhar. Se há íntimas relações entre
o tempo e o modo de deslocamento pelo espaço é porque nossa visão é atraída por
determinados pontos focais ou de interesse, sobretudo causada por contrastes - luz/sombra;
aberto/fechado; transparência/opacidade; largo/estreito; alto/baixo e assim por diante.

Analisar projeto de arquitetura é um exercício importante, tanto para estudantes da graduação


e da pós-graduação como para profissionais que desejam ampliar seu repertório. A análise de
um projeto a partir de um olhar atento sobre o modo de organização do sistema de circulação
pode revelar aspectos fundamentais sobre conceito, partido arquitetônico e estratégias
projetuais adotadas pelo arquiteto. O sistema de circulação é composto por caminhos,
corredores, passarelas, pontes, conexões, escadas, rampas, acessos, entre outros elementos.
Um bom projeto deve invariavelmente ter uma circulação bem solucionada, envolvendo
aproximação ao edifício, acessos, percursos internos e externos, visuais, decorrentes de um
conceito e um partido bem definido pelo arquiteto. No entanto, em arquitetura, a circulação
não se basta como um sistema apenas funcional. A articulação dos ambientes e das visuais,
assim como a valorização dos elementos da arquitetura, sensações, percepção e a apreciação
dos espaços devem ser cuidadosamente orquestradas pelo arquiteto a partir de conceitos e
condicionantes, configurando um percurso.

É possível analisar a circulação de um projeto a partir de critérios claros e objetivos, ou de


critérios conceituais. De modo objetivo, Francis Ching (2007) verifica que a circulação é parte de
um sistema arquitetônico, que envolve espaço, estrutura, ambientes internos e externos,
movimento no espaço-tempo, tecnologia, programa e um contexto. O movimento no espaço-
tempo, para Ching, acontece em quatro etapas principais: aproximação e entrada; configuração

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do caminho e acesso; sequência de espaços; luz, vistas, tato, audição e olfato (percepção). Sua
entrada pode ser marcada de diferentes maneiras, e com a articulação entre os elementos.

A configuração do percurso, que é definido no projeto, depende de diversos fatores: função,


orientação, hierarquia, direcionamento, visuais, sensação, percepção, apreciação do espaço,
simbolismo entre outros. Naturalmente cada arquiteto interpreta o programa de acordo com
seu repertório e entendimento, fazendo com que cada projeto tenha seu partido definido a
partir de olhar específico.

A investigação do tema circulação a partir de uma abordagem conceitual envolve também o


entendimento de teoria, história e projeto. A organização do sistema de circulação dentro de
um modelo conceitual moderno prevê um espaço amplo e desobstruído, onde o percurso pelo
espaço faz com que o usuário tenha a compreensão do todo. O usuário domina o espaço pelo
olhar num percurso livre. Numa abordagem diferente, dentro do conceito de pós-modernidade
da arquitetura, o usuário é impelido a descoberta paulatina do espaço, caminhando por ele, com
surpresas e descobertas graduais durante o percurso sequencial, quadro a quadro.

Os temas sobre movimento pelo espaço e a noção espaço-tempo foram amplamente debatidos
em momentos da arquitetura moderna ao longo do século XX. A “quarta dimensão”, o tempo,
assim denominada por Bruno Zevi (1992), foi plenamente introduzida na arquitetura moderna
como um meio de suplantar a arquitetura clássica, considerada estática. A estrutura
independente, a criação de grandes vãos possibilitada pela técnica do concreto armado, fizeram
com que os espaços se tornassem mais fluidos, favorecendo o pleno movimento livre.

Tão importante como a configuração do sistema de circulação e do percurso, a definição dos


acessos também é uma questão importante no projeto. O acesso pode ter um caráter evidente
e óbvio como na composição clássica ou discreto e não óbvio como na abordagem da
arquitetura moderna e contemporânea.

Os variados tipos de circulação propiciam diferentes modos de deslocamento e percepção do


espaço. Circulações retilíneas conduzem a um campo de visão predominantemente frontal,
enquanto circulações curvilíneas conduzem a diferentes campos de visão ao longo do percurso.
Este fato nos leva a concluir que cada tipo de circulação empregado pelo arquiteto implica em
diferentes “leituras” e experiências do espaço.

ESTUDAR CIRCULAÇÃO E APRENDER ARQUITETURA

Circulação envolve a ação de se movimentar. Caminho a se fazer entre um ponto e outro,


distantes entre si. Em um espaço, o percurso se faz necessário para se deslocar de um ambiente
para outro, e desempenhar assim as atividades necessárias, com visuais e sensações variadas.

A circulação e o percurso, dentro de um projeto de arquitetura, não são itens a serem analisados
apenas de modo funcional e objetivo, mas também subjetivos e conceituais, pois envolvem
questões das mais variadas esferas.

Por meio das análises desta pesquisa foram identificados diferentes tipos de circulação e
percurso em momentos distintos da história da arquitetura, que serão apresentados a seguir
acompanhados de desenhos investigativos decorrentes das análises dos projetos selecionados.

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Estático: circulação e percurso clássico

Neste tipo de circulação e percurso o sistema é definido essencialmente por eixos baseado na
composição clássica da arquitetura Beaux-Arts: O Marche e o Parcours. O movimento pelo
edifício que faz o usuário perceber a enfilade, ou sequência e organização dos ambientes,
geralmente compartimentados, ligado às possibilidades construtivas do período, com
construções que previam paredes portantes e espaços muito mais compartimentados.

Figura 1: Pinacoteca do Estado de São Paulo. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

O método de ensino e prática da arquitetura da Beaux-Arts é um tema conhecido e estudado


por importantes pesquisadores como Jacques Lucan, Alfonso C. Martinez e Edson Mahfuz,
apenas para citar alguns. O método de ensino da École de Beaux Arts de Paris do século XIX
trabalhava com regras de composição e ordem clássica. A distribuição, disposição, parti,
l’esquisse, parcours, marche e outros ensinamentos faziam parte desse método de projeto. A
circulação pelos espaços era um dos itens fundamentais desses ensinamentos, a partir de uma
organização geométrica baseada em elementos, eixos e simetria. A composição de partes num
todo dependia de hierarquias e do esquema da circulação. A ideia de organizar a circulação do
edifício por “espaços servidos” e “espaços servidores”, presente no ensino clássico, foi revisitada
mais tarde pelo arquiteto Louis Kahn (Martinez, 2000).

Nos edifícios pertencentes ao período e à linguagem neoclássica, especialmente no século XIX,


podemos verificar esse tipo de percurso. Acima o desenho esquemático da planta do edifício
que abriga a Pinacoteca do Estado de São Paulo (Figura 1), projeto do escritório de Ramos de
Azevedo e Domiciano Rossi (1900). Na década de 1990, os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e
Eduardo Colonelli realizaram uma intervenção no edifício histórico, justamente no sistema de
circulação, apresentando mais fluidez e movimento aos ambientes internos.

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Fluido e contínuo. Circulação e percurso na Arquitetura Moderna

A mudança de percepção introduzida pela arquitetura moderna levou a repensar a percepção


de tempo. Como bem afirmou Jacques Lucan (2012, p. 383), ao contrário das formas fechadas
da arquitetura clássica, a arquitetura moderna trouxe formas abertas, criando condições para
uma arquitetura mais fluida, flexível e adaptável às constantes mudanças.

Na arquitetura moderna o programa de necessidades torna-se o protagonista, aliado as novas


técnicas e materiais, o arquiteto deve organizá-lo de acordo com a solução encontrada para o
problema apresentado. Neste contexto moderno a ideia de se apreciar o espaço como um todo,
num espaço amplo, fluido e desobstruído, onde o sistema de circulação se apresenta como
definidor do partido arquitetônico.

Arquitetura Moderna é tema investigado por diversos pesquisadores como Leonardo Benevolo,
Bruno Zevi, Kenneth Frampton, Vincent Scully, apenas para citar alguns clássicos. A ideia de
percurso, movimento e circulação como estruturador de espaços e formas é uma característica
tipicamente moderna. A temporalização do espaço e a continuidade visual e espacial são
promovidas especialmente pelas condicionantes desse período. Busca-se apreciar o espaço
como um todo, num sistema de circulação presente num espaço amplo, fluido e desobstruído.

Figura 2: Museu Guggenheim de Nova York. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

Vincent Scully (2002) observa em seu livro Arquitetura Moderna que a continuidade, tanto
espacial quanto visual, é característica importante da Arquitetura Moderna. Bruno Zevi (1984)
em A linguagem Moderna da Arquitetura classifica sete invariáveis da Arquitetura Moderna,
sendo que duas delas são: a continuidade espacial e visual e a importância do percurso para
leitura e apreciação dos espaços e formas, ou seja, temporalizar a arquitetura, a conhecida “a
quarta dimensão” do espaço, definido por Zevi.

Alguns exemplares analisados pela pesquisa revelam estas características de circulação e


percurso. O Museu Guggenheim de Nova York (Figura 2) tem o programa distribuído em cinco

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pavimentos interligados por uma rampa em espiral, configurando um átrio central iluminado
por uma claraboia. E o edifício do Carpenter Center (Figura 4), que abriga a Escola de Artes
Visuais de Harvard, tem uma rampa que cruza o edifício, organizando o programa em duas alas
em simetria invertida, oferecendo ao usuário, ou ao transeunte que cruza a quadra, uma visão
das atividades que acontecem nos espaços e ambientes da escola.

Figura 3: Carpenter Center for the Visual Arts. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

A “procissão” a que Johnson se refere é a trajetória preparada pelo arquiteto para desfrutar a
espacialidade pretendida para o projeto. A sequência temporal de aproximação ao edifício, o
acesso frontal ou diagonal, a penetração aos seus espaços interiores, as perspectivas e múltiplas
vistas possíveis a cada momento durante o percurso, as relações entre “cheios e vazios”,
corroboram a ideia de um rito de apreciação da beleza do edifício enquanto nos movemos por
seu interior. Como afirmou Philip Johnson (1965, p. 184), “a beleza consiste em como nos
movemos dentro do espaço”.
Muito melhor a esse respeito é o Guggenheim [...] A experiência de entrada
processional é diferente da de Mies. É novamente diagonal, mas o salto para
o corredor de cem metros de altura é exatamente o tipo oposto de
sentimento da grande entrada axial para a Seagram. O visitante vem através
de uma pequena porta (muito pequena, alguns sentem) e é pulverizado para
dentro do quarto. De tirar o fôlego é. (JOHNSON, 1965, p. 184). Tradução dos
autores.
O edifício que abriga a FAUUSP (Figura 3) tem o programa organizado em meios-níveis
interligados por rampas retas, e configuração de um átrio central iluminado por zenitais. Com
observa João Kamita (2000, p.35) (...) os espaços fluem com extrema e surpreendente liberdade,
formando um circuito contínuo, uma interligação física em todo o prédio. A sensação de
continuidade é sentida logo na entrada, por meio de generosas rampas que unem os seis
pavimentos intercalados do interior. Antonio Carlos Barossi (2016, p.119) destaca que: as
rampas e as escadas da FAU formam um binário que, integrado às circulações horizontais,
multiplica os percursos. Alternando o itinerário entre elas pode-se escolher entre vários
caminhos aquele que for melhor conforme a situação. Como na cidade.

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Figura 4: Edifício da FAUUSP. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

A continuidade espacial e visual é concretizada nesses partidos arquitetônicos, de modos


diferentes, estruturados pelos respectivos sistemas de circulação e configuração de um percurso
planejado. A experiência arquitetônica ocorre quando nos deslocamos no espaço durante o
tempo. A apreciação temporal é fundamental para compreender a ideia e o efeito espacial
daquilo que foi proposto pelos arquitetos.

Sequencial, com surpresas e descobertas, quadro a quadro. Circulação e percurso na


Arquitetura da Pós-Modernidade

O espaço fluido, contínuo e sem obstrução pode ser uma importante característica da
arquitetura moderna, com circulação livre e domínio visual do todo. No período posterior,
verificamos outras maneiras de organizar a circulação e o movimento pelos espaços. Dentro de
um conceito da pós-modernidade, sugerindo descobertas graduais dos ambientes, além de
visuais e surpresas.

Autores importantes como Charles Jencks, Robert Venturi e Paolo Portoguesi, apenas para citar
alguns, abraçam como tema de suas pesquisas a Arquitetura no período pós-moderno. Os
espaços e ambientes são descobertos de maneira a criar surpresas, quadro a quadro,
estimulando curiosidade e percepções. A preocupação no que diz respeito a estabelecer a
relação com o tecido urbano e entorno é evidente.

O planejamento do edifício é “costurado” com o desenho da cidade de maneira cuidadosa, como


é o caso do novo edifício da Staatsgalerie (Figura 5), projetado por James Stirling, que estabelece
uma conexão entre cotas diferentes, passando pelo centro da quadra, no coração do museu.
(...) the so called historicist or postmodern elements were introduced in the
projects as a way of dissimulating and integrating these new buildings into
this historic context. (IULIANO, SERRAZANETTI, 2015, p.85)

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Figura 5: Staatsgalerie. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

O espaço interno do museu tem organização clássica das galerias de exposição. O destaque do
percurso ocorre na organização da circulação e a costura do edifício com o entorno, com
surpresas e descobertas graduais, além da integração dos espaços da cidade e do museu.

Figura 6: Espaço Natura. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

Outro projeto analisado na pesquisa, o Espaço Natura (Figura 6) de Roberto Loeb também
observamos um modelo sequencial, de descobertas e surpresas, tantos nos ambientes internos
quanto externos. Trata-se de um programa de edifício industrial e administrativo.
Houve uma evolução entre o desenho inicial e o construído. (...) O tratamento
dos espaços, com uma sucessão de surpresas, é completamente contrário à
visão renascentista e, consequentemente, da arquitetura moderna brasileira,

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em que tudo se descortina de um ponto de vista. O desenho da Natura se
desdobra em vários momentos, com surpresa. (Roberto Loeb, Revista
Monolito n.25, 2015, p.22)

No trecho a seguir fica evidente o quanto o sistema de circulação e seus elementos são
importantes e decisivos na qualidade dos espaços deste projeto. O arquiteto afirma:
O impacto começa na entrada. O acesso ao Espaço Cajamar é feito por uma
ponte metálica que atravessa um desvão do terreno e penetra em um muro
de concreto. Dentro do edifício, descortina-se uma recepção em tons pastel
e concreto aparente, discretamente aromatizada com perfume de erva-doce,
que leva a uma outra ponte – um corredor transparente de metal e vidro de
40 metros em vão livre - , que passa sobre um jardim de jabuticabeiras,
espelhos-d’água e gramados refletidos em um labirinto de paredes
espelhadas. (Roberto Loeb, em ARNT, Ricardo, 2007, p.10)

E o edifício do Museu Ara Pacis (Figura 7) de Richard Meier, que em sua delicadeza de escala e
proporção, é inserido no contexto urbano e histórico de Roma, interligando níveis, espaços e
ruas, de modo a criar surpresas e sequências, quadro e quadro, além de estabelecer uma relação
de harmonia na conexão de espaços da cidade e do museu.

Figura 7: Museu Ara Pacis. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

Heterogêneo e autoral. Circulação e percurso na Arquitetura Contemporânea

A partir das análises, na arquitetura contemporânea identificamos uma combinação entre


características Modernas e Pós-Modernas na abordagem da circulação, unindo a fluidez e
domínio do espaço moderno com as descobertas quadro a quadro do período pós-moderno.

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Figura 8: Casa da Música. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

A Pluralidade e Diversidade são características marcantes do período contemporâneo. A


arquitetura contemporânea é tema de estudo de pesquisadores importantes como Leonardo
Benevolo, Josep Maria Montaner, Jan Cejka e Antoine Picon, dentre outros. Na arquitetura
contemporânea, arquitetos abordam a questão do movimento no espaço de maneiras
diferentes. Como observou Florio (2010), na arquitetura de Frank Gehry os espaços são
descobertos enquanto o usuário caminha, gerando surpresas e visuais interessantes, no sentido
de provocar a sensação e a percepção, como nas esculturas públicas de Richard Serra.

Rem Koolhaas é o arquiteto que revela grande interesse no que diz respeito aos elementos de
circulação e às metáforas que o sistema de circulação pode promover no projeto de arquitetura,
com vários textos publicados, além de manifestos concretos em sua arquitetura (Figura 8). Ao
analisar o sistema de circulação e seus elementos em cada um de seus projetos podemos
identificar informações importantes relacionadas ao conceito e partido, além de questões
simbólicas que cada elemento carrega. A cultura da congestão, a fragmentação dos espaços da
cidade grande, e outras questões do mundo contemporâneo estão presentes no discurso
teórico e prático de Koolhaas, em seus textos e projetos.

Em outro projeto analisado, Daniel Libeskind organizou o programa do museu por eixos e criou
percursos que simbolizam conhecimentos e metáforas inerentes aos ensinamentos do Museu
Judaico (Figura 10) de Berlim. Os percursos criados, assim como os elementos de circulação são
tão importantes que estruturam o partido, além de concretizar conceitos essenciais da ideia.

Ao analisar espaços do Museu MAXXI (Figura 9) em Roma e o Museu Judaico em Berlim,


entendemos que o sistema de circulação é a essência do espaço do museu. Cada arquiteto
solucionou o problema do programa de maneira diferente, a partir de conceitos e pressupostos
próprios. Zaha Hadid explorou no espaço do MAXXI a ideia de continuidade da forma e espaço
de maneira plástica, com o auxílio dos elementos de circulação nessa concretização.

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Figura 9: Museu Judaico. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

Figura 10: MAXXI Museum. Desenhos de estudo e sequência de fotos. Fonte: Autor.

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DISCUSSÃO. UM PERCURSO PELA ARQUITETURA

Durante a realização da pesquisa e das análises realizadas identificamos estratégias projetuais


nos projetos selecionados, no que diz respeito especialmente ao sistema e elementos de
circulação, reforçando a verificação do pressuposto inicial de que a circulação estrutura o
partido arquitetônico.

A partir do desenvolvimento da pesquisa, que envolveu análises dos projetos selecionados,


identificamos tipos de percurso, que foram apresentados neste texto. A ideia de percurso,
movimento e circulação como gerador de espaços e formas é algo importante e estruturante no
projeto de arquitetura

Estudando a história da arquitetura, verificamos períodos e pensamentos de uma época, que


relacionam questões objetivas e subjetivas, como materiais e técnicas construtivas, metáforas
e simbolismos, conceitos e funcionalidade. No período moderno, o movimento pelo espaço
contínuo, fluido e desobstruído tornou-se um ato de grande protagonismo, explorado pelos
arquitetos no planejamento dos ambientes, com conotações objetivas e simbólicas. No período
posterior houve a pesquisa de um espaço a ser descoberto ao caminhar, quadro a quadro,
deixando de lado, assim, a ideia moderna de que o ambiente pode ser todo compreendido num
só olhar, considerado por alguns a banalização do espaço, por revelar tudo.

No caso dos edifícios selecionados para análise da circulação e percurso observamos que essas
questões estão presentes de acordo com cada programa e funcionalidade. A arquitetura não é
apenas função. Há questões subjetivas que permeiam os espaços.

Observamos que o modelo estático clássico pode ser previsível ao mesmo tempo que
fragmentado e compartimentado. O modelo fluido e contínuo moderno oferece a compreensão
do todo e traz certa previsibilidade, de maneira diferente. O modelo sequencial pós-moderno
resgata a descoberta gradual do modelo clássico, com novo formato. E o modelo heterogêneo
contemporâneo reúne características de todos os outros com a linguagem de cada autor.

Verifica-se também que uma qualidade de todos os edifícios apresentados é a relação com a
cidade, reforçada pelas estratégias de projeto ligadas ao sistema de circulação, que envolve a
aproximação do edifício, acessos, fluxos e percursos. Por meio das análises e visitas, pode-se
observar que os edifícios apresentam boas soluções funcionais, além de oferecer qualidades
arquitetônicas conceituais, perceptivas e simbólicas, reforçadas pelo sistema e elementos de
circulação. Por meio do recorte definido pela pesquisa, podemos observar o olhar atento dos
arquitetos no que diz respeito ao fluxo de pessoas, com definições cuidadosas de percursos de
modo a valorizar e enaltecer a relação da arquitetura e cidade.

Figura 11: Estudo da circulação e percurso na arquitetura em diferentes edifícios e períodos. Fonte: Autor.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto oferece uma síntese da pesquisa que analisa de modo interpretativo projetos de
arquitetura a partir da abordagem original com foco no sistema de circulação como estruturador
do partido arquitetônico. Por meio das análises, é possível afirmar que há diferentes tipos de
circulação e percurso em momentos distintos da história da arquitetura. O sistema de circulação
e seus elementos definem e estruturam o partido arquitetônico dos projetos analisados,
materializam conceitos, estabelecem uma relação cuidadosa entre arquitetura e cidade, além
de corresponder as intenções declaradas pelos próprios arquitetos e arquitetas em seus escritos
e declarações. O utópico, o simbólico e o metafórico estão presentes nos exemplares analisados.
Os elementos de circulação e conexão, como as passarelas e rampas, por exemplo, oferecem
também uma interpretação simbólica de fazer unir, e ao mesmo tempo criar ambientes internos
e externos, valorizando o espaço “entre”, o intervalo, e o circular das pessoas.

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq pelo auxílio a pesquisa “Espaço, Percurso, Tempo e Movimento. Análise de Projetos
como foco no sistema de circulação como sistema estruturador do partido”.

REFERÊNCIAS
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Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo

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