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LAÇOS E NÓS

Stela Rates (livro QUEDA LIVRE)


Eu tinha dois filhos adolescentes e um novo amor quando conheci Juliana. Muito magra, de tez
morena, ela se ocultava no fundo da sala, detrás de uns olhos redondos, escuros e fundos. Chupava o
dedo, cruzava e descruzava os pés calçados de tênis, as pernas fininhas esticadas, feito uma flecha a
sinalizar o vértice onde ela se encontrava.
As outras crianças faziam algazarra, preenchiam o espaço, buscavam brinquedos, colos e pescoços.
Alberto gargalhava a cada toque, a cada “tio” pronunciado. Suas mãos de homem bom e sem filhos não
sabiam o que fazer, como afagar, a medida da força, do permitido. As mesmas mãos que me fazem tão
bem. E ele gargalhava, como sempre faz quando não sabe o que fazer.
Estávamos plenos de amor um pelo outro, e eu queria um filho dele. Sempre pensei que gente boa
deve fazer filhos, lançar-se para o tempo. E que não há nada mais sublime que o ajuntamento de genes.
Que por entre as duplas hélices do DNA circula a alma, o divino, a permanência. E eu queria permanecer
com ele. Mas ele não me dizia sim, e o tempo passando, meu corpo com sinais de exaustão. Foi quando,
num assentimento da impossibilidade biológica, pensei em adoção. Um filho, um laço, a memória tangível
do amor, de qualquer modo. Mais uma vez, Alberto não disse sim, mas aceitou ir a uma casa de passagem,
ver como se sentia. E Juliana estava lá.
A única criança que não corria, não gritava. Fui até o cantinho onde ela se encolhia, convidei-a para
brincar, perguntei o nome, ao que ela respondeu baixando o olhar, enfiando o polegar na boca.
Voltei para o meio da sala, onde circulavam bolas de pano e risos. Peguei uma das bolas e joguei
para Juliana. A bola bateu na sola do seu tênis e ali ficou, até eu resgatá-la. Assim, umas tantas vezes, eu
já esquecida da confusão em volta, Alberto gargalhando e ofertando as costas aos outros pequenos,
protegendo a cabeça de golpes de brinquedos de plástico. Até que a bola veio de volta, rodou
devagarinho, na medida do impulso da menina, e ancorou nos meus pés.
Ficamos assim, nesse bate e volta, um tempinho, Juliana recebendo e devolvendo a bola, cada vez
mais perto, pois ela passou a arrastar o pequeno corpo em minha direção. Quando chegou, tinha
desamarrados os cadarços dos tênis. Eu, então, amarrei em tope um dos cadarços, ela olhando atenta o
movimento dos meus dedos. Lembrei de imediato da professora da escolinha quando, aos cinco anos,
meu filho não sabia amarrar os cadarços, vestir o casaco. Se você fizer tudo, ele nunca vai aprender, mãe,
dizia ela.
Ofereci à Juliana as duas pontas do outro cadarço. Ela, ao invés de amarrá-las, fazer um tope, puxou
firme uma das pontas e me entregou o dito cujo, sem uma palavra. Com paciência, enfiei o cadarço
lentamente no tênis aberto, furo por furo, ela olhando, até a completude do laço. Assim que se faz, viu?
Ela quase tracejou um sorriso e, um pouco atrapalhada, desamarrou as minhas botas, os dois pés.
Vendo ali o pedido de mais uma lição, eu retirei o cordão de um deles e o enfiei novamente, com mesmo
ritmo compassado de antes. Ofereci o outro, para que ela fizesse o trabalho, mas ela me devolveu, com
olhos pedintes.
Resignada, repeti a operação, mas não finalizei, deixando as quatro pontas livres para os laços
finais. Agora você, disse-lhe. Ela, devagar, procurou as pontas contrárias dos cordões que enfeitavam
minhas botas e as amarrou em dois nós, desenhando um xis, uma encruzilhada, uma cruz, deixando-me
preso o andar.
Tempo de visita esgotado, vieram as atendentes, levaram as crianças. Enquanto eu recompunha
meus calçados, minha habilidade para ficar em pé, perguntei da menina, como ela havia chegado até ali.
Maus tratos, subnutrição, foi a resposta. Chegara na Casa aos dois anos, não falava, nem andava. Agora,
aos quatro, balbuciava algumas palavras, caminhava com ajuda.
Fomos embora, caminhando, Alberto e eu. E não voltamos.
Nunca desfeito o nosso laço, nem nossos nós.

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