A Metáfora

Você também pode gostar

Você está na página 1de 21

A Metáfora Viva, de Paul

Ricoeur: introdução à leitura


Henrique Barbosa Primon
henrique.primon@usp.br
Pesquisa financiada pela Comissão de Pesquisa da FFLCH/USP

Curso de extensão veiculado pela Secretaria de Cultura e Extensão da FFLCH/USP


São Paulo, agosto de 2022
A Metáfora Viva, de Paul
Ricoeur: introdução à leitura
Aula 1
Ricoeur, a metáfora e a palavra para a retórica clássica
SUMÁRIO
Paul Ricoeur (1913-2005)

A Metáfora Viva (1975): oito estudos

Três momentos da metáfora e duas dobras


1. A metáfora e a palavra nos estudos da retórica
2. A metáfora e a predicação no campo da semântica
3. A metáfora e o discurso para a hermenêutica
4. Metáfora e realidade
5. “Não é” e “é como”: a metáfora no limiar entre imaginação e conhecimento
INDICAÇÕES: COMO VIVE A METÁFORA

REFERÊNCIAS
Paul Ricoeur (1913-2005)
_ 1913, Valence, França - 2005, Rennes

_ 1940-1945: campo de prisioneiros de guerra


Oflag II-D, Gross Born, Pomeran

_ 1945-1956: doutorado e docência na


Universidade de Strasbourg

_ 1956-1965: Sorbonne

_ 1965-1980: Université Paris X

_ 1970-1992: Universidade de Chicago

_ Estados Unidos, Canadá, Escócia, Bélgica,


Alemanha
Paul Ricoeur: obras (seleção)
_ O homem falível (1960) | ANTROPOLOGIA COMO FILOSOFIA DA
VONTADE
_ A simbólica do mal (1960)

_ O conflitos das interpretações (1969) | HERMENÊUTICA COMO


EPISTEMOLOGIA E COMO ÉTICA
_ Freud e filosofia (1970)

_ A metáfora viva (Departamento de literatura comparada da | IDENTIDADE METAFÓRICA, IDENTIDADE


Universidade de Toronto, 1975) NARRATIVA E INDIVIDUALIDADE

_ Tempo e narrativa (três volumes, 1984-1988)

_ O si-mesmo como outro (Gifford Lectures na Universidade de


Edimburgo, 1992)
| IMAGINAÇÃO, AGÊNCIA HUMANA E O
_ A ideologia e a utopia (1997)
RECONHECIMENTO DO SI
_ Memória, história, esquecimento (2004)
Paul Ricoeur: obras (seleção)
_ O homem falível (1960)

_ A simbólica do mal (1960)

_ O conflitos das interpretações (1969)

_ Freud e filosofia (1970)

_ A metáfora viva (Departamento de literatura comparada da


Universidade de Toronto, 1975)

_ Tempo e narrativa (três volumes, 1984-1988)

_ O si-mesmo como outro (Gifford Lectures na Universidade de


Edimburgo, 1992)

_ A ideologia e a utopia (1997)

_ Memória, história, esquecimento (2004)


A Metáfora Viva (1975): oito estudos
_ 1º estudo. Entre retórica e poética: Aristóteles

_ 2º estudo. O declínio da retórica: a tropologia

_ 3º estudo. A metáfora e a semântica do discurso

_ 4º estudo. A metáfora e a semântica da palavra

_ 5º estudo. A metáfora e a nova retórica

_ 6º estudo. O trabalho da semelhança

_ 7º estudo. Metáfora e referência

_ 8º estudo. Metáfora e discurso filosófico


Três momentos da metáfora e duas dobras
1. A metáfora e a palavra nos estudos da retórica
_ o pé da cadeira: metáfora entre ornamento e lacuna lexical

_ o sentido próprio de uma palavra é dado pelo pertencimento a um agrupamento previamente dado, a
um gênero e a uma espécie de coisas; o sentido figurado se liga a uma palavra ou termo emprestado
de outra categoria (RICOEUR, 1975, p. 66)

_ o termo emprestado, tomado em seu sentido figurado, é substituído a uma palavra ausente [...]. Entre
o sentido figurado do termo de empréstimo e o sentido próprio da palavra ausente [...] existe uma razão
de transposição. (id.)

_ postulado do caráter paradigmático da metáfora— caráter de substituição — e postulado da paráfrase


exaustiva: se uma metáfora apenas substitui e se ela pode, em princípio, ser explicada ou parafraseada
exaustivamente, então a metáfora não porta nenhuma informação, ou seja, não aporta conhecimento ou
significado novo
Três momentos da metáfora e duas dobras
2. A metáfora e a predicação no campo da semântica
Traços do discurso

. Função identificante (ou singularizante) e função predicativa (universal) são atravessadas pela
metáfora. “La fonction identifiante désigne toujours des Êtres qui existent (ou dont l’existence est
neutralisée, comme dans la fiction); [...] la notion d’existence est liée à la fonction singularisante du
langage [...]. En revanche, la fonction prédicative concerne l’inexistant en visant l’universel. [...] La
dissymétrie des deux fonctions implique donc aussi la dissymétrie ontologique du sujet et du prédicat.”
(RICOEUR, 1975, p. 94)
Três momentos da metáfora e duas dobras
2. A metáfora e a predicação no campo da semântica
Traços do discurso

. Todo ato de discurso abrange um aspecto de locução e de ilocução. A ilocução é aquilo que se
realiza ao dizer. É de especial importância o ato ilocucionário subjacente e presente na constatação (e na
metáfora): é a crença ou a hipótese de verdade.

. Todo ato de discurso aponta uma referência ao mundo e uma referência ao locutor. “La référence
est elle-même un phénomène dialectique, dans la mesure où le discours se réfère à une situation, à une
expérience, à la réalité, au monde, bref à l’extra-linguistique, il se réfère aussi à son propre locuteur par
des procédés qui sont essentiellement de discours et non pas de langue.” (RICOEUR, 1975, p. 98)

_ nova pertinência semântica, atribuída ao ente singular, que faz reidentificar a identidade inicial
Três momentos da metáfora e duas dobras
3. A metáfora e o discurso para a hermenêutica
_ Uma nova problemática emerge com esse novo ponto de vista [hermenêutico]: não se trata mais da
forma da metáfora enquanto figura de discurso focalizada sobre a palavra; nem mesmo apenas o sentido
da metáfora enquanto instauração de uma nova pertinência semântica; mas a referência do enunciado
metafórico enquanto poder de ‘redescrever’ a realidade. [...] A metáfora se apresenta, então, como
uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a potência criativa da linguagem, preserva e
desenvolve o poder heurístico implantado pela ficção. (RICOEUR, 1975, p. 10; ênfase nossa)

_ [...] um parentesco estabelecido [...] entre o funcionamento da metáfora nas artes e o funcionamento
dos modelos nas ciências. (id., p. 11)
Três momentos da metáfora e duas dobras
4. Metáfora e realidade
_ [...] por sua estrutura própria, a obra literária desdobra um mundo apenas sob a condição de que seja
suspensa a referência do discurso descritivo. [...] Pode ser, com efeito, que o enunciado metafórico
seja precisamente aquele que mostra claramente a relação entre referência suspensa e referência
desdobrada. Assim como o enunciado metafórico é aquele que conquista seu sentido como metafórico
sobre as ruínas do sentido literal, ele é também aquele que adquire sua referência sobre as ruínas do
que podemos designar, por simetria, de sua referência literal. (RICOEUR, 1975, p. 279)

_ A visão do semelhante, que produz o enunciado metafórico, não é uma visão direta, mas uma visão que
podemos chamar, ela também, de metafórica [...]. [O] novo estado de coisas é percebido apenas na
espessura de um estado de coisas deslocado por um desprezo categorial. (RICOEUR, 1975, p. 290)
Três momentos da metáfora e duas dobras
4. Metáfora e realidade
_ A função poética [...] visa redescrever a realidade pelo caminho desviado de uma ficção heurística. A
metáfora é, a serviço da função poética, a estratégia do discurso pela qual a linguagem se despoja de
sua função de descrição direta para aceder ao nível mítico, no qual sua função de descoberta é
desbloqueada. Podemos nos arriscar a falar de verdade metafórica para designar a intenção ‘realista’
que se liga ao poder de redescrição da linguagem poética. (RICOEUR, 1975, p. 311)

_ [...] a pretensão do enunciado metafórico de alcançar, de alguma maneira, a realidade. Para dizê-lo da
forma mais radical possível, é preciso introduzir a tensão no ser metaforicamente afirmado. Quando o
poeta diz: “a natureza é um templo onde pilares viventes…”, o verbo ser não se limita a religar o
predicado ‘templo’ ao sujeito ‘natureza’ segundo a tensão tripla que descrevemos; a cópula não é
somente relacional; ela implica, além disso, que, pela relação predicativa, é redescrito aquilo que é
[...] (id.; ênfases do autor)
Três momentos da metáfora e duas dobras
4. Metáfora e realidade
_ [Ernst Cassirer] não chega a distinguir apenas dois sentidos do verbo ser: o sentido relacional e o
sentido existencial? Esse seria o caso se tomássemos o próprio verbo ser em sentido literal. Mas não
haveria, para o próprio verbo ser, um sentido metafórico, no qual seria mantida a mesma tensão
encontramos inicialmente nas palavras (entre natureza e templo), depois entre as duas interpretações
(interpretação literal e interpretação metafórica), enfim entre a identidade e a diferença? (id.)
Três momentos da metáfora e duas dobras
5. “Não é” e “é como”: a metáfora no limiar entre imaginação e conhecimento
_ [...] chega-se assim a reiterar a tese do caráter ‘tensional’ da verdade metafórica e do ‘é’
[metafórico] que carrega a afirmação. [...] Não há outro modo de fazer justiça à noção de verdade
metafórica que não seja pela inclusão da ponta crítica do ‘não é’ (literalmente) na veemência ontológica do
‘é’ (metaforicamente). [...] É essa constituição tensional do verbo ser que recebe sua marca gramatical no
‘ser-como’ da metáfora desenvolvida em comparação, ao mesmo tempo que está marcada a tensão entre
o mesmo e o outro na conjunção relacional.

(RICOEUR, 1975, p. 321; ênfases do autor)


Três momentos da metáfora e duas dobras
5. “Não é” e “é como”: a metáfora no limiar entre imaginação e conhecimento
_ Mas a ‘hipótese poética’ não é a ‘hipótese matemática’: é a proposição de um mundo sob o modo
imaginativo, fictício. Assim, a suspensão da referência real é a condição de acesso à referência sob o
modo virtual. [...] Não seria a função da poesia suscitar um outro mundo, - um mundo outro que
corresponda às possibilidades outras de existir, às possibilidades que sejam nossos possíveis mais
próprios? (RICOEUR, 1975, p. 288)

_ Se então a fenomenologia da imaginação se estende além da psicolinguística e mesmo da descrição


do ver-como, é porque ela segue o fio da retumbância da imagem poética na profundidade da existência.
A imagem poética torna-se uma ‘origem psíquica’. O que era ‘um novo ente da linguagem’ torna-se um
‘recrudescimento de consciência’, ou antes, um ‘recrudescimento de ser’. Mesmo na ‘poética psicológica’,
mesmo nos ‘devaneios sobre o devaneio’, o psiquismo permanece ‘ensinado’ pelo verbo poético.
(RICOEUR, 1975, p. 272)
INDICAÇÕES: COMO VIVE A METÁFORA

_ a nova pertinência semântica, incorporada pela metáfora, que reidentifica

_ da função identificante-singularizante e da função predicativa-universal à teoria da referência


metafórica

_ a tensão no verbo é metafórico: não é e é como

_ a referência literal suspensa e a referência metafórica suscitada: a referência desdobrada

_ a ficção como heurística — aproximação progressiva e redescritiva — do real

[...] a função do poeta não é contar o que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível
(ARISTÓTELES, Poética, 1451a, 37-40)
INDICAÇÕES, por Drummond (trecho)

A família é pois uma arrumação de móveis, soma


de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove... e insiste.

In: ANDRADE, Carlos Drummon de. A Rosa do povo.


São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
UMA FACA SÓ LÂMINA, por João Cabral (trechos)

qual bala que tivesse


um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
[...]
Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
[...]
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

In: MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa.


São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO, por Hilda Hilst

Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Com menos altivez.


Olha-me de novo. E mais atento.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse In: HILST, Hilda. Da Poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA
BEARDSLEY, Monroe.The Metaphorical Twist. Philosophy and Phenomenological Research. Vol. 22,
No. 3 (Mar., 1962). pp. 293-307
KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007.
PELLAUER, David and DAUENHAUER, Bernard. Paul Ricoeur. The Stanford Encyclopedia of
Philosophy (Spring 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em:
https://plato.stanford.edu/archives/spr2021/entries/ricoeur/. Acesso em 30/abr/2021.

RICOEUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975.


________. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling. Chicago: Critical Inquiry,
Vol. 5, No. 1. Special Issue on Metaphor. Autumn, 1978. pp. 143-159.
________. Imagination et métaphore. Psychologie Médicale, 14. Lille, 1982.
________. L’imagination dans le discours et dans l’action. In: Essais d’herméneutique II. Paris: Éditions
du Seuil, 1986. pp. 213-228.
________. Soi-même comme un autre. Paris: Éditions du Seuil, 1990.

Você também pode gostar