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1590/1980-6248-2017-0092

e-ISSN 1980-6248

ARTIGOS

O demônio de Béla Tarr: entre cinema, literatura e educação 1,2

The demon of Béla Tarr: between cinema, literature and


education
Breno Isaac Benedykt (i)
Cintya Regina Ribeiro (ii)

Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-4914-8500,


(i)

breno.benedykt@gmail.com
(ii) Universidade
de São Paulo – USP. São Paulo, SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7924-4539,
cintyaribeiro@usp.br.

Resumo:
Na presente investigação, buscamos discutir a experiência de pensamento a partir
de uma perspectiva filosófica orientada pelos escritos de Gilles Deleuze e Félix
Guattari. Intentamos problematizar modos representacionais de pensamento
constitutivos da atualidade, a fim de perscrutar seus desdobramentos filosóficos no
campo da educação. Para tal, analisamos filosoficamente uma experiência de
pensamento talhada a partir do encontro entre cinema e literatura. De forma mais
circunscrita, elegemos o trabalho do cineasta Béla Tarr como ocasião profícua de
articulação entre certo modo de construção da obra cinematográfica em condição
de encontro com a obra literária, explorando as singularidades dessa criação para
configurar aquilo que denominamos aqui como um procedimento tarriano. Assim,
o artigo conclui que o encontro com a sensibilidade das imagens tarrianas nos incita
a tocar a sensibilidade do próprio pensamento, esse lugar no qual a educação pode
forjar suas potências.
Palavras-chave: Béla Tarr, cinema, Deleuze-Guattari, literatura, pensamento

1 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – monica@tikinet.com.br


2Esta pesquisa foi realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), sob
processo nº 2014/03049-3, instituição à qual agradecemos.

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Abstract:
This research discusses the experience of thought from a philosophical perspective, guided by the
writings of Gilles Deleuze and Félix Guattari, aiming to question representational modes of
thought constitutive of the present time, in order to pursue their philosophical ramifications in the
field of education. To do so, the article analyzes an experience of thought based on the encounter of
cinema and literature. In a more circumscribed way, the work of the filmmaker Béla Tarr is chosen
as a fruitful example of the articulation between a certain mode of filmic construction and the literary
work. Exploring the singularities of this creation, the article proposes this filmic construction
configures what can be called a Tarrian procedure. In conclusion, the encounter with the sensitivity
of the Tarrian images incites the audience to come in contact with the sensitivity of thought itself, a
place where education can forge its powers.
Keywords: Béla Tarr, cinema, Deleuze-Guattari, literature, thought

Virginia Woolf luta, durante toda a sua vida, contra o demônio que a protege, e
finalmente triunfa sobre ele.
Maurice Blanchot (2013, p. 141)

Temáticas vinculadas ao conhecimento e ao pensamento, abordadas no campo da


educação, parecem comportar uma instigante potência dispersiva. As questões suscitadas a
partir desses tópicos não se conformam às fronteiras delimitadoras dos territórios clássicos de
investigação educacional. Assim, problematizações relativas ao conhecer e ao pensar
transbordam linhas disciplinares, transitando com ousadia por entre didáticas, metodologias de
ensino, políticas curriculares e avaliativas, psicologias, sociologias, filosofias educacionais etc.
Tais problematizações também transgridem fronteiras socialmente emergentes e urgentes,
demarcadas pelas discussões sobre infância e juventude, gênero, sexualidade, trabalho,
desigualdades, diversidade e diferença, relações étnico-raciais, processos de subjetivação,
movimentos sociais etc.

No presente trabalho, conhecer e pensar situam-se como experiências educacionais que,


por se espraiarem nos mais diversos contextos apontados, fazem dessa dispersão mesma uma
potência, pois colocam sub judice exatamente uma prerrogativa das circunscrições, seja de
natureza disciplinar ou temática.

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Considerando tal perspectiva, este estudo tem como objetivo discutir a experiência de
pensamento em educação a partir de um esforço singular de refração perante as reconhecidas
formas de territorialidade que configuram a área educacional.

Para tal, assume duas linhas intercessoras: uma evocando um movimento do


pensamento cinematográfico do cineasta húngaro Béla Tarr; a outra, trazendo um movimento
do pensamento filosófico de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Desse encontro, salta-nos uma questão: poderia haver um tempo que, devido à sua
condição incorpórea, ou virtual, em vez de possibilitar ao ser humano um acúmulo progressivo
de saberes, o conduzisse, por meio de intensidades dissonantes, a um desregramento de sua
visão demasiadamente prudente – tais como os efeitos que se depreendem do olhar e da câmera
do cineasta húngaro Béla Tarr?

A pergunta abre um horizonte de investigação que nos faz imergir numa zona
enigmática, pois deve visar, como matéria de sua pesquisa, a desmedida de um tempo que excede
nosso próprio pensamento. Neste sentido, a busca à qual nos endereçamos é a de um dinamismo
das forças demoníacas, cuja característica essencial é justamente a de embaralhar horizontes, ou
ainda, a de dilacerar imagens. Deste modo, a pergunta que orienta nosso trabalho pode ser
resumida da seguinte forma: como este demônio ativa uma série de descaminhos na
cinematografia de Béla Tarr e quais são os rastros que daí coletamos?

A incursão na obra de Béla Tarr é, para nós, estratégica, pois nos permite explorar
questões relativas às experiências de pensamento, problematizando modos representacionais
constitutivos da atualidade, tendo em vista perscrutar desdobramentos filosóficos dessa
discussão no campo da educação.

Mais especificamente, elegemos o trabalho do cineasta Béla Tarr porque aí se manifesta


singularmente um modo de construção da obra cinematográfica em condição de encontro com
a obra literária, configurando aquilo que então denominamos como um procedimento tarriano.

Explorar esse modo de criação no jogo com algumas provocações deleuzianas e


guattarianas permite-nos abordar a discussão sobre experiência de pensamento no campo da
educação a partir de outras modalidades de interpelação.

Assim, a argumentação se desenvolve com base em quatro incursões: na primeira, busca-


se destacar que certo modo de imbricação entre literatura e cinema permite criar uma experiência

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singular do tempo, a qual se afirmará como presença privilegiada do procedimento tarriano. O


segundo movimento argumentativo busca detalhar a maneira como essa presença da literatura
vai modulando tal processo de criação cinematográfica. Essa discussão permite adentrar a um
terceiro movimento argumentativo, qual seja: a radicalidade do encontro com certa experiência
literária produz, a partir de uma experiência singular do tempo, a condição pensante da própria
imagem cinematográfica, possibilitando-nos destacar essa condição de criação de uma
experiência de pensamento. Por fim, num quarto movimento argumentativo, buscamos
desdobrar os efeitos dessas discussões para o campo da educação, focalizando essa dimensão
das experiências de pensamento.

Uma presença que insiste: o tempo


De largada, faz-se necessário enunciar duas prerrogativas analíticas em nossa incursão.
A primeira delas remete ao modo como tomamos o lugar da literatura no jogo com a obra
cinematográfica de Béla Tarr. Em nossa análise, privilegiaremos os atravessamentos de
William Shakespeare e Fiódor Dostoiévski na produção do criador húngaro. Entretanto, tais
autores não serão tomados como vetores de inspiração ou de influência em seu trabalho criativo;
ao contrário, constituem efetivas exterioridades derivadas de um tempo incessante que lança
sem interrupção, mais do que o cineasta, as personagens dos filmes e a própria câmera em um
emaranhado de redes desviantes.

É, portanto, neste plano das redes desviantes que podemos situar o procedimento
tarriano, isto é, o jogo de efeitos criados da necessidade de um tempo propriamente
cinematográfico, o qual se situa em um circuito sempre aquém ou além de qualquer autonomia
do diretor.

Para realizar esta sinuosa investigação em torno de um tempo que escapa à forma 3, não
podemos simplesmente olhar para os filmes de Béla Tarr com o pressuposto de que o cinema,

3A partir de uma compreensão do tempo como signo problemático da vida e do pensamento, cujas imagens, tais
como linearidade, simultaneidade ou diacronia, sempre parecem em desfalque com o tempo próprio da experiência
estética, assumiremos aqui a concepção de tempo descentralizado, ou, para utilizarmos as palavras de Peter Pál
Pelbart (2010) em seu estudo sobre as imagens do tempo na filosofia de Gilles Deleuze: ao modo de um tempo
“não uniforme e não homogêneo, tempo não esquematizado pelo conceito, não submetido às categorias do
entendimento, não ‘representado’, não colocado em série, não ligado, não centrado no presente, não encurvado
etc.” (p. 183), numa dramatização tanto espacial como temporal.

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como arte do tempo, seria a atividade privilegiada para representar, na passagem do tempo, as
imagens e os movimentos que acontecem na literatura, em um mundo determinado ou, ainda,
na mente de um indivíduo racional – o diretor.

É justamente pela recusa a tais premissas que nossa investigação abre espaço para
perscrutar marcas conectivas entre aquilo que acontece nos filmes e a singularidade de um
procedimento que implica, como experiência criativa, a colisão com a exterioridade da literatura.
Constitui-se, assim, uma rede do tempo capaz de envolver o cineasta, as personagens, o
espectador, a câmera etc. E em meio a ela, o acontecer de uma singularidade cinematográfica,
isto é, um procedimento que excede continuamente os objetivos do diretor e os objetos da
imagem.

Assim, uma segunda prerrogativa se faz enunciar: não perseguiremos um autor Béla
Tarr, mas um nome próprio Béla Tarr, entendido aqui como efeito deste combate
cinematográfico que implica uma permanente diferenciação de encontros – com a literatura
certamente, mas não apenas. Deste modo, entendemos o procedimento como ato que nasce no
cerne de uma zona de embates que constituem a própria relação entre as ideias advindas de
dentro e as forças exteriores, configurando assim um cinema de dobras imprevisíveis.

Tendo isto em mente, ressaltamos que nosso estudo indaga como o procedimento
tarriano pôde elaborar uma série de variações audiovisuais advindas do tempo, entendendo-o
como zona de deslocamento dos horizontes do pensamento. Assim, por admitirmos ser esta a
real zona de maquinação das obras do cineasta, podemos afirmar que é o tempo quem perturba
e simultaneamente produz as coordenadas de suas criações.

Portanto, trata-se aqui de uma pesquisa focada na experimentação de um processo


criativo constituído por múltiplas forças em embate. Contudo, para o escopo dessa discussão
privilegiamos, entre as possíveis forças vetoriais, a presença do tempo talhado pela imbricação
entre literatura e cinema. Interessa-nos articular o efeito-literatura na trajetória de Béla Tarr,
visando perscrutar o modo como o tempo, imóvel, ao mover-se em intensidade, move a
experiência de pensamento e a multiplicidade do procedimento.

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Da descentralização dos homens à chegada da literatura


Em seu primeiro longa-metragem, Ninho familiar (Családi Tüzfészek, 1977), podemos
perceber estranhas sutilezas de um olhar cinematográfico que parece preferir aquilo que passa
às costas dos homens ou, ainda, aquilo que lhes permite voar pelos ares.

O filme começa a partir da imagem de um terreno baldio e, desde este início, já é possível
sentir certo anseio do olhar por permanecer à deriva, deslizando por onde as galinhas da cidade
criam seu território. Este anseio ganha nova dimensão quando o olhar da câmera passa à sala de
estar de um apartamento de família, o qual Jacques Rancière (2013, p. 22) descreveu como um
verdadeiro “ninho de víboras onde se sufoca”. Trata-se de um ambiente mobilizado pelo
excesso de vontade de verdade e comando, numa situação sufocante, pois absolutamente
dirigida pela vigilância dos homens desta família, os quais, orquestrando palavras de ordem,
conduzem e obedecem à ordem das palavras.

Podemos ver nesta cena, ao permanecermos atentos ao modo como a câmera participa
da situação, um dos traços que percorrerão o procedimento tarriano. Trata-se de um tipo de
procura por um olhar que singularize corpos e sensações, permitindo-lhes sair de uma situação
demasiado humana ou de uma situação que se esgotou.

Como é possível notar, a câmera – ainda que pareça operar, em um primeiro momento,
como um simples olhar exterior, um observador – vai aos poucos se revelando um olho
diferenciador. Produzindo um sutil deslocamento em seu modo de ver, seu olhar deixa de ser
neutro e passa à condição de provocador de diferenciação sensível da situação da qual participa.
Passando a conduzir-se como um olhar saltitante, entre um rosto e outro, ela tecerá, desde
dentro deste circuito demasiado humano, uma paisagem cinematográfica na qual os homens,
seus rostos, gestos e palavras, aparecem de modo irredutível, isto é, dilacerados.

Contudo, ao seguirmos atentos este olhar singular da câmera, aos poucos acabamos por
perceber que o apartamento em sua totalidade se converteu em um território do saturar, onde,
no limite, a própria relação entre as víboras, como Rancière (2013) a nomeou, caminha no limiar
em que ela mesmo se esgota. É por isto que a rede familiar, capturada neste território que a
constitui, graças a este olhar que diferencia em intensidade tudo o que observa, transmuta esta
experiência em algo mais do que cinematográfico: vital. Com isto nos distanciamos de Rancière

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(2013), ou melhor, nos deslocamos de uma análise do filme para atingir o próprio procedimento
tarriano naquilo que nos atinge, isto é, na desmedida com que ele incide no pensamento.

Ora, devemos nos perguntar então: como a câmera pode produzir este outro tipo de
tear capaz de criar um olhar que fura as redes de comando constitutivas dos ninhos de víboras?
Uma dessas quebras é perceptível pelo modo como a câmera conduz seu olhar em uma partida
de cartas, encontrando aí uma espécie de tempo perdido que lhe permite estar à deriva desta
condição atual do ninho de víboras. Seu olhar, aparentemente apegado aos homens que
competem naquele jogo, revela, por meio de pequenos movimentos, a possibilidade de entregar-
se a outros corpos, ou objetos, sem qualquer função para aquele contexto. Abrem-se, neste
momento, ainda que de modo relativo, pequenas trajetórias que escapam àquela situação.

Como este, há outros momentos nos quais a câmera se desapega dos homens para se
envolver em outros possíveis. A abertura do filme nos dá um sinal emblemático. Ninho familiar
tem início com a câmera focada em um grupo de galinhas em algum terreno baldio, quando
inesperadamente seu olhar é cortado por uma mulher (neste caso, Irén) que atravessa a distância
que havia entre a câmera e as galinhas. É neste momento que um acontecimento se abre para a
câmera, a qual deixa de dirigir sua atenção às galinhas e passa a se prender no caminhar de Irén.
É o primeiro momento em que a câmera mostra uma necessidade absoluta de se desviar de um
terreno para se lançar em outro que o tempo inesperadamente lhe dá. Assim, a câmera, enlaçada
pelas forças do caminhar de Irén, se entrega a este olhar diferente, levada a um lento zoom-out
que lhe permite seguir os passos da mulher, a qual se distancia apressadamente daquele terreno
que lhe serve apenas como passagem.

Temos, portanto, a partir destas cenas, duas pequenas inversões sinalizando o


aparecimento de uma rotatividade do olhar tarriano. Inversões, ou desvios, que se passam graças
a este tempo que começa, ainda que de modo relativo, a entrar como potência perturbadora de
um procedimento, dando ao olhar ora a brecha e ora a necessidade de desviar.

Graças a essas pequenas inversões podemos perceber em que sentido o nome próprio
Béla Tarr é, antes de mais nada, seu procedimento, uma vez que as imagens em seus filmes
acontecem por meio de uma complexa relação com o mundo. Assim variam as perspectivas e
as ideias de Béla Tarr, as quais se constituem pela permanente interação com o que chega da
exterioridade do mundo e particularmente da literatura, transmutando-se pontos de vista e

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fazendo o autor, como suposto dono de ideias claras e condutor consciente de sua verdade
artística, desaparecer.

Deste modo, se podemos afirmar que o procedimento tarriano é, desde Ninho familiar,
constituído por descentramentos de seu saber – ora pela procura de uma brecha, ora pelo
aparecimento de algo que o intercepta –, cabe agora sinalizar de que modo a literatura pôde
escavar novas paisagens neste cinema pensante, conferindo novo tônus às suas ideias.

A literatura surge assim reboando uma necessidade de rachar com certa relação que
ainda se dava entre a câmera e as forças, mas, mais do que isto, é ela quem produzirá o abandono
definitivo de determinada visão espacial do movimento, visão marcada por um tempo tomado
como linearidade cronológica. Ora, este problema da relação espaço-temporal era, por sua vez,
o que sustentava a insuportabilidade familiar descrita por nós a respeito do filme Ninho familiar.
Assim, se o Estado podia prometer àquelas pessoas um novo lar e, deste modo, reconstituí-las
e reconduzi-las ao ninho de víboras sem saída, isto se deve à operacionalidade de um tempo
teleológico (passado que foi – e reconheço; presente que é – e conheço; futuro que será – e
prevejo). Esse tempo pode endividar o presente por meio da crença de que aquilo que lhe falta
será restituído ou presentificado no futuro. É deste modo que aqueles homens e mulheres
ganham o rosto de um horizonte congelado, feito de esperanças e desesperos enquanto
aguardam pelo outro possível, lançado a um futuro prometido.

Há ainda uma segunda questão, inseparável desta, relativa ao tempo como linearidade,
que atinge diretamente o procedimento de Béla Tarr: a narrativa verídica. Temos sido
conduzidos a pensar a dimensão da narrativa como processo de revelação ou de busca por uma
verdade, isto é, a narrativa verídica tem se imposto como necessidade primeira do cinema. Ora,
ao percebermos que o tempo não pode ser reduzido à linearidade, uma vez que não somos mais
capazes nem de reconhecer nem de prever os movimentos deste tempo, inevitavelmente a
narrativa não poderá mais permanecer presa a um processo de simples revelação.

Assim, a literatura, ao interpelar o procedimento tarriano, abalará definitivamente estas


duas premissas que ainda permaneciam de pé em seus primeiros filmes.

Mesmo que o aparecimento explícito da literatura como intersecção para uma nova ideia
de cinema só venha a se concretizar com o filme Macbeth (Tarr, 1982a), é importante notar o
modo como os efetivos intercessores do procedimento tarriano vão compor uma série de
problemáticas do tempo como condição para outro tipo de experimentação da imagem e do

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pensamento. São escritores como William Shakespeare e Fiódor Dostoiévski que disparam a
condição real deste tempo demoníaco, pois seu aparecimento desbanca verdadeiramente toda
uma concepção teleológica do tempo.

Se as figuras do demônio serão tão importantes para Béla Tarr é porque elas trazem algo
de enigmático, condição que concerne mais ao tempo do que à narrativa. Esse traço singular, a
partir de Maldição (Kárhozat, 1987), se converterá no cerne problemático do cinema tarriano,
atingindo sua última radicalidade em O cavalo de Turim (A torinói Ló, 2011). Neste filme, o
demônio já não constitui figuração alguma, representação ou narratividade, mas aparece apenas
como um bloco de tempo que dilacera a identidade do homem, sua coerência narrativa, sua
verdade progressista ou apocalíptica. Demônio que, enfim, desvia incessantemente todo
movimento extensivo da imagem por meio de sua intensidade. Tal efeito diminuirá a narrativa
ao mínimo necessário. É esta desmedida, pulverizada e multiforme que interessará cada vez mais
ao cinema de Béla Tarr, sendo ela a própria movência criativa desse procedimento, cujas
características nos remetem diretamente à ideia de uma experiência dionisíaca do tempo.
Dionísio, aquele que estabelece a “relação sintética do instante consigo mesmo, como presente,
passado e futuro, que determina absolutamente sua relação com todos os outros instantes”
(Deleuze, 1976, p. 88). Tempo dionisíaco, de fulguração intensiva, que sempre escorre pela
exterioridade do pensamento, transmutando aquilo que do ponto de vista teleológico era o
inexorável movimento sem saída, nefasto destino, em inefável acontecimento da vida, da criação
e do pensamento.

É, portanto, este demônio do pensamento que chega a Béla Tarr de modo decisivo por
meio da literatura. Pode-se perceber como tal guinada à literatura – que culminará numa aliança
com o escritor László Krasznahorkai, autor dos livros Satantango (Sátántangó, 1985) e As
melancolias da resistência (Az ellenállás melankóliája, 1989)4 – é inseparável de um combate aberto
com os encontros, sendo esta a própria condição do procedimento tarriano: a experimentação
a partir de atravessamentos. Dito de outro modo, se a literatura vem à tona, é porque se faz
necessária a emergência de novas ideias no interior do próprio fazer cinematográfico desse
diretor. A atenção a esse movimento nos permite captar a gênese de uma outra região intensiva

4 Como não há tradução desses livros para o português, esclarecemos que o título do primeiro obtivemos do próprio

filme de Béla Tarr, Satantango (Sátántangó, 1994). Quanto ao segundo, embora esteja em conexão com o filme
Harmonias de Werckmeister (Werckmeister Harmóniák, 2000), optamos pela tradução livre do título em inglês, The
melancholy of resistance.

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no cinema de Béla Tarr, cujas arestas são passíveis de tatear, ao passo que sua espessura,
nebulosa, se faz indomável.

Isto se dá porque o próprio procedimento tarriano se converte em uma maquinaria


dionisíaca, a qual se radicaliza pela entrada destas forças da exterioridade literária. Podemos dizer
que é pelo efeito da literatura que Béla Tarr vai poder operar, ainda que aos poucos, um cinema
cada vez mais pensante, conferindo-lhe uma força de diferenciação sensível.

Tendo isto em vista, é preciso ir além, pois entrar nesta zona de combate exige mais do
que abandonar a primazia do tempo como sucessão linear e, consequentemente, da narrativa
verídica – implica um pensamento sensível, uma vez que interior a uma experiência perceptiva
que se faz no próprio ato de pensar. Em outras palavras, é pela batalha e pelas fissuras no modo
de operar do pensamento que a exterioridade confere a este último uma heterogênese de ideias
irredutíveis à caixa cumulativa de fatos imaginários ou reais.

Ora, para amarrarmos o problema, podemos dizer que os modos homogêneos de


funcionamento do pensamento só são possíveis por estarem apoiados nestas concepções de
tempo como linearidade e de narrativa como processo verídico, constituindo assim um
pensamento refém de causas e efeitos que se ordenam e se acumulam de acordo com finalidades
exteriores à condição imanente dos encontros. Nessa chave, para ordenar a vida seria preciso
que o presente não existisse, mas apenas a sua verdade, a qual deveria tiranizar todas as outras
dimensões do tempo, impedindo que o diverso e, no limite, o que lhe é impensável, pudesse ter
realidade. Vemos assim que o que está em jogo, ao tomarmos o procedimento tarriano como
um problema do pensamento, é, num só tempo, uma questão política e vital: aquilo que é posto
em xeque é justamente a primazia de uma imagem do mundo como espaço onde se conserva a
sucessão das verdades imóveis ocorridas no passado e, deste modo, onde paira de antemão a
causalidade a respeito do futuro.

Essa possibilidade de explorar o tempo para além de sua condição cronológica é, nos
filmes de Béla Tarr, indissociável de uma série de encontros com a literatura, introduzindo,
graças a fragmentos de livros, enigmas de bruxas e estilhaços de entretempos, espaços para que
as potências intensivas da matéria consigam operar transmutações, excedendo a experiência
cotidiana do tempo linear. Tal movimento não visa dar à matéria uma transcendência, mas
permitir às imagens a força singular de seu repouso e aceleração.

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Ora, é esta condição singular de imobilidade e aceleração que constituirá uma nova
experimentação da imagem no procedimento tarriano, suspendendo assim a condição
demasiado humana do pensamento, pautado diuturnamente por uma dinâmica linear e
cumulativa. Por isso, faz-se necessário não reduzir a presença da literatura na obra de Béla Tarr
à categoria de uma mera influência, mas, ao contrário, tomá-la como uma potente intercessora.

Até o momento discutimos a apreensão sobre o modo como este tempo sucessivo
atinge seu limite, subvertendo seu próprio funcionamento em Ninho familiar. Agora nos
deteremos numa operação absolutamente diferente, tanto na experiência da personagem
Kiríllov, do romance Os demônios de Fiódor Dostoiévski (2013), como nos enigmas lançados
pelas bruxas de Macbeth, de William Shakespeare (2009).

Kiríllov, como bem mostrou Maurice Blanchot (2002), é a personagem de Dostoiévski


que busca atingir a maior ambição da narrativa verídica: dominar completamente o futuro.
Entretanto, para que isto se concretize, a personagem deverá criar uma situação-limite: suicidar-
se para eliminar o enigma da morte – que entende como a última imposição de Deus sobre os
homens. Este homem reivindica para si a capacidade de saber e controlar todo o processo da
humanidade, racionalizando todos os fatos, sendo a morte, por excelência, o último que caberia
ao homem dominar. Tendo isto como sua meta final, estrategicamente ele desafia ou pactua
com aqueles que traficam promessas ou profetizam desgraças à sua volta. É por meio destas
alianças e contraposições que Kiríllov pode participar de duelos a respeito do que fazer para que
as suas previsões ocorram. Entretanto, se Kiríllov ocupa um lugar de radicalização deste
universo dostoievskiano, isto se deve a algo que lhe acontece em um plano sub-representativo,
quer dizer, na velocidade de um tempo que se situa ora aquém e ora além de sua capacidade de
racionalizar. Mergulhado neste tempo absolutamente veloz para que o pensamento consiga
pensá-lo, Kiríllov vive entregue a uma experiência radicalmente intensiva do pensar, a qual acaba
por implodir todo o presente em razão dessa vontade de dominar o tempo, no afã de seu
afunilamento numa sucessão empírica de fatos passados e porvir.

Trata-se de uma fratura oriunda de uma situação que extravasa os motivos justificadores
de seu suicídio, ou seja, que se situa fora de quaisquer imperativos de sentido capazes de
converter a morte desse homem no produto de uma suposta liberdade absoluta da razão.
Confrontando tais imperativos, ele afirma: “Mato-me para dar provas de minha insubordinação
e de minha liberdade terrível e nova” (Dostoiévski, 2013, p. 600) – eis suas palavras finais.

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A dobra – pouco perceptível, porém intensíssima – que mobiliza involuntariamente esta


situação é, paradoxalmente, a de um campo de forças capaz de desnortear a previsibilidade de
seus próprios movimentos, os quais acabam por colocar em jogo outro tipo de morte, não mais
orgânica, mas como limite do pensamento, isto é, a morte como uma impensável batalha pela
vida, a qual transpassa a razão de Kiríllov, instaurando à sua revelia uma força que o impede de
permanecer na mesma posição e, assim, fazendo de seu corpo uma potência que o lança
incessantemente diante de seu próprio limite.

Vemos neste deslocamento como a própria morte deixa de ser um fato e se impõe agora
como uma multiplicidade de forças em interação e embate com outras. Deste modo, a morte –
quer dizer, esta morte que chegará às ideias de Béla Tarr pelo romance de Dostoiévski –, não
pode seguir sendo compreendida como uma questão subjetiva do homem; ela é, antes de mais
nada, um problema das forças e, nesta condição, uma experiência do tempo.

Se desde o início de nossas digressões nos encontramos em diálogo com o pensador


Gilles Deleuze, é porque nele se erige um pensamento sobre o aparecimento demoníaco ou
aberrante dessa força verdadeiramente impensável, cuja presença se afirma em sua passagem
emblemática a respeito da concepção foucaultiana de pensamento: a cada nova relação de forças
que impõe uma linha de vida e de morte, algo “não cessa de se dobrar e de se desdobrar,
traçando o próprio limite do pensamento” (Deleuze, 2010, p. 118). Ora, Kiríllov justamente se
encontra neste limite no qual uma força anômala entra em circulação, estabelecendo desde então
uma nova relação entre as forças em jogo, isto é, introduzindo na própria vida uma nova
experiência do tempo.

Mas é das bruxas de Macbeth que Béla Tarr parece ter retirado a dobra mais radical, ou
melhor, a sua maior subversão do tempo, dissolvendo a primazia da narrativa para conferir à
imagem um tempo com sua potência descentralizadora. De acordo com a peça shakespeariana,
as três bruxas que aparecem inesperadamente na floresta lançam a Macbeth um enigma, contra
o qual ele lutará para descobrir a verdade subjacente, mas apenas as bruxas detêm a resposta.
Trata-se, conforme descobriremos ao longo da peça, de uma questão que vale mais pela
radicalidade daquilo que produz do que pelo seu conteúdo temático. Assim, quanto mais
Macbeth tenta antecipar uma solução para esta questão enigmática, mais ele se entrega à teia de
aranha que o conduzirá a uma morte miserável.

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Aqui, como em Dostoiévski, o tempo aparece como enigma sem-resposta e, no entanto,


como motor de outro tipo de experiência de vida. Porém, neste caso, diferentemente do
anterior, revela-se que estar à altura de um enigma não equivale a ser capaz de respondê-lo rápida
ou adequadamente. Em ambos os casos há uma armadilha, mas esta, conforme nos alerta
Deleuze (2009, p. 279), é mais do que um simples caminho para a ruína de Macbeth. Trata-se,
em realidade, de trazer um tempo “que excede infinitamente toda situação objetiva, ou
objetivável”, isto é, de introduzir na imagem um tempo insondável e, portanto, sem (re)ação
adequada.

Devorador de Shakespeare e de Dostoiévski, Béla Tarr – ele mesmo em luta com as


questões que o tempo cinematográfico lhe impõe – parece haver encontrado na literatura a
potência de um tempo que jorra à revelia de todas as (re)ações de Macbeth e de Kiríllov. Trata-
se, em ambos os casos, de afirmar o tempo como intensidade incomensurável e, assim, como
força vital.

Tateamos essas provocações enquanto propulsoras de uma reviravolta no procedimento


tarriano. E, como vimos, não é exatamente a influência destes grandes personagens da literatura
que está em jogo aqui, mas o encontro com um tempo cuja latência se vê nas personagens. Tal
procedimento liberta o tempo clássico da narrativa, afirmando-a agora como um conjunto de
forças que estão aquém e além de mera condição de passagem entre um movimento inteligível
e outro.

Em 1981, Béla Tarr realiza sua primeira gravação de Macbeth, imprimindo-lhe uma
versão definitiva em 1982, com sua média-metragem de mesmo título, então encomendada para
uma sessão televisiva. E em 1984, o diretor escreve como proêmio de seu filme Almanaque de
outono (Öszi Almanach, 1984) a primeira estrofe do poema de Alexandre Púchkin, que
Dostoiévski havia escolhido como prólogo de seu romance Os demônios5. Ora, neste momento
tais encontros com a literatura se manifestam de modo explícito, mas a radicalidade dessa
experimentação só conquistará definitivamente a imagem de Béla Tarr a partir de 1987, com seu
filme Maldição (Kárhozat, 1987).

Acreditamos, portanto, que é possível traçar uma linha de criação entre Shakespeare,
Dostoiévski e Béla Tarr, mas fora de um campo de relações representativas, quer dizer, uma

5“Que nos matem; nem sinal vemos, / Nos perdemos, e agora? / Ao campo nos leva o demo, / Vemos, e vai
girando afora” (Dostoiévski, 2013, p. 11).

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linha que acontece sobretudo na irrupção de tempos enigmáticos, quando o pensamento perde
seus eixos, pois a vida é convocada por forças que excedem o próprio limite de seu saber.

A conquista do tempo pela imagem


Como sinalizamos, 1987 é o ano no qual o procedimento tarriano sente o efeito do
encontro entre Béla Tarr e o escritor László Krasznahorkai. Ao nos atermos à obra Maldição –
primeira desta parceria que perseverará até 2011 – é notória a presença de uma nova dimensão
sensível que compõe as imagens, perpassada por forças que não cessam de nos lançar em
mistérios, formando blocos que assombram o entendimento, rompendo o primado da narrativa
verídica.

Em nosso percurso mostramos que desde o início Béla Tarr esteve às voltas com o
problema da centralidade dos homens, buscando matérias aleatórias que lhe permitissem traçar
um desvio em relação às vontades demasiadamente humanas. Também apontamos, ao discutir
os modos de desvio de câmera, como o problema da narrativa verídica aparecia em Ninho familiar
a partir de uma luta entre homens que queriam impor ordens e verdades para vingar-se do
mundo que lhes rodeava. Mas agora, é a própria narrativa fílmica que será deslocada. Maldição
traz a marca de uma construção a respeito de como o pensamento da imagem cinematográfica
é capaz de converter a narrativa que a constitui em um elemento construtivamente secundário
em relação à sensação pensante que a imagem cinematográfica pode produzir. Vejamos.

Em seus mergulhos na literatura, Béla Tarr parece ter flagrado o esplendor dos
estilhaços. Ou seja, é por meio da experiência de um estilhaço de narrativa literária, passageiro
ou decisivo, em que o tempo sai de sua linearidade, que o cineasta pode apreender um outro
horizonte cinematográfico. É a quebra, podemos dizer, que impossibilita a sequência da
operacionalidade de uma ação adequada a um saber que quer continuar seu percurso.

Maldição tem início com a imagem de uma vasta planície pantanosa, profundamente
castigada pela chuva e sobre a qual a única coisa vista é um teleférico de carga com seus
respectivos carros. Pelo andar do teleférico nos cabos de sustentação ouve-se o som pulsante
que dá ritmo à cena absolutamente contemplativa; o som preenche a planície desértica enquanto
a câmera desliza num lento zoom-out até adentrar por uma janela. Sentado diante desta, encontra-
se Karrer, mirando a paisagem. Porém, essa personagem enigmática só se constituirá depois;

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neste momento Karrer, os carros, a montanha, a chuva e o pântano são apenas uma série de
corpos contemplativos.

Nesta superfície entre o horizonte e o zoom-out da câmera, Karrer está acoplado àquilo
que vê, compondo com os carros suspensos o ritmo audiovisual que preenche a imagem,
criando-se assim a plenitude da paisagem. Talvez seja possível dizer que Karrer, antes mesmo
de ser personagem, é simplesmente um homem-qualquer, desprendido de si, ou ainda, um puro
tempo no ritmo dissipado na imagem.

Poderíamos afirmar que um bloco de sensações constitui a gênese de Maldição, não tanto
a materialidade narrativa, mas essa temporalidade de uma imagem fora6 do tempo.

É como efeito e no efeito desta experiência contemplativa que o procedimento tarriano


cria sua primeira personagem. E é o próprio Karrer quem fala deste outro tipo de experiência
da imagem, destas ambiências pouco habitáveis, de pouca importância para a narrativa, nas quais
o tempo não é mais o lastro para organizar a vida, pois converteu-se em potência que condensa
e assombra o pensamento:

Por anos e anos estive sentado lá, e algo sempre me disse que enlouqueceria. Mas eu não
enlouqueci, e eu não tenho medo de enlouquecer, porque o medo da loucura poderia significar
que teria de me apegar a algo. No entanto, não me apego a nada, é algo que se apega a mim,
fazendo com que permaneça com o olhar pegado à instabilidade das coisas. (Tarr, 1987)

Esta é outra forma de experimentação de pensamento que Béla Tarr parece preocupado
em realizar, uma experimentação da imagem marcada por um tipo de visibilidade perturbadora
do mundo, tornando o procedimento tarriano uma radicalização da experiência de
temporalidade. Como Karrer parece dizer, a perda de referência temporal é inseparável de algo
que lhe captura desde fora, forçando-o a ir ao limite de sua capacidade de pensar, ao limiar onde
a loucura se insinua. Trata-se de um hiato de temporalidade que durou, talvez, anos e anos.

O hiato, portanto, é a própria imensurabilidade deste tempo que acontece na pura


ausência de tempo, enquanto, paradoxalmente, o olho imóvel pensa, por haver sido capturado

6O conceito do fora, ou pensamento da exterioridade, fundamental para a filosofia de Deleuze e Guattari, está
ancorado nos estudos literários do pensador Blanchot, assim como na sua apropriação e reinvenção por Michel
Foucault. Entretanto, é preciso atentar para o deslocamento que Gilles Deleuze realiza ao redimensionar este
conceito a partir da imagem do pliegue, isto é, do encontro entre o dentro e o fora, produzindo, por meio de um
acordo-discordante entre Blanchot e Gilbert Simondon (e outros), uma pragmática bastante ampliada para os usos
desse conceito.

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pela instabilidade das coisas. Ora, estamos diante de uma imagem para a qual já não importa o
funcionamento de uma percepção capaz de orientar uma ação, dando continuidade ao fluxo de
uma narrativa. O próprio tempo passou para o lado da instabilidade das coisas, quer dizer,
passou a ser fonte mais notória de um pensamento da imagem cinematográfica.

O demônio que pressionava incessantemente o procedimento tarriano a mover-se,


agora se revela como o tempo que impõe a impossibilidade da imagem cinematográfica de seguir
o fluxo de sua narrativa. E aqui esta imagem cinematográfica deixa definitivamente de ser
mediadora do mundo para converter-se em imagem pensante.

Neste sentido, é possível dizer que é o próprio tempo que enlaça Karrer em uma
aventura, dissolvendo-o na paisagem. Vale lembrar, contudo, que essa cisão não ocorre em um
determinado momento da narrativa, como se a imagem audiovisual – enquanto mensurabilidade
do mundo e representação da existência – viesse primeiro e, em seguida, devido a uma situação
especial, fosse preciso revisá-la. Aquilo que o procedimento tarriano nos dá a ver é justamente
o oposto: a pura contemplação da instabilidade das coisas, que é anterior à própria narrativa.

Portanto, não estamos mais no domínio do triângulo representativo – percepção de um


movimento no/do mundo, razão capaz de determiná-lo e, por fim, sentido geral deste
movimento. Essa operacionalidade lógica não pertence mais ao horizonte de pensamento do
procedimento tarriano.

Pelo abandono radical desse modo de conceber a experiência audiovisual, o


procedimento tarriano, atravessado pela literatura, conquista este outro tipo de cinema que
ganha corpo a partir de Maldição. Nesta arte, a questão central não é mais da ordem dos saberes
do homem, tampouco daquilo que tais saberes concernem aos homens: trata-se de dar passagem
à experiência do tempo7, ou ainda, de perscrutar aquilo que ela é capaz de fazer.

É importante demarcar que desde Ninho familiar já era evidente a presença de um


demônio que deslocava incessantemente o horizonte do procedimento tarriano, isto é, que o
impedia de fazer uma narrativa fechada em si mesma, supostamente capaz de saber de um todo.
Tomemos como exemplo dessas inquietações o final da obra Pessoas pré-fabricadas
(Panelkapcsolat, 1982b). Rubi, esposo de Judit, diz estar farto do cotidiano familiar, pega suas

7 Em uma série de entrevistas, Béla Tarr (2002) insiste na importância do tempo para seu cinema; em algumas
delas, chega até mesmo a considerá-lo como uma de suas personagens principais, ao afirmar que “fazer cinema é
essencialmente uma questão de tempo” (p. 55, tradução nossa).

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coisas e deixa a casa onde mora com a esposa. A situação ganha complexidade a partir da
próxima cena, quando, apesar de tudo indicar que a narrativa seguirá seu percurso perfeitamente
de acordo com as previsões que intuímos, ocorre uma disrupção. Nesse plano, Judit aparece
diante da câmera e começa a fazer um longo monólogo, rompendo com a linearidade narrativa.
Há ainda outro corte, e o futuro esperado pela lógica da sucessão linear dos fatos não se efetiva.
Em seu lugar, o que vemos é a imagem de um retorno ao início do filme, com Judit e Rubi
juntos. A relação entre estas imagens interrompe a fluidez do pensável e o jogo de
previsibilidades. Não há mais totalidade possível. Nenhuma narrativa se fecha. Todo retorno
narrativo conduz à ruptura da narrativa consigo mesma. O filme termina aqui e não há nenhuma
justificação deste acontecimento. Como dirá, lucidamente, Rancière (2013, p. 7), a respeito de
Pessoas pré-fabricadas: “este modelo temporal não regula mais … a narrativa” e, podemos
acrescentar, não regula mais a própria imagem cinematográfica.

Nesse sentido, concordamos com András Bálint Kovács (2013), quando afirma que
Maldição não é, dentre os filmes de Béla Tarr, aquele que primeiro desbanca a continuidade
narrativa. Entretanto, a partir de nossas análises, acrescentamos que, se a continuidade narrativa
havia sido rompida anteriormente, é certamente em Maldição que a descontinuidade conquista o
mundo como percepção sensível, fazendo de cada hiato uma imagem de pura contemplação
movediça.

Daí deriva, certamente, uma mudança radical na potência criativa do procedimento


tarriano, por meio do qual a dignidade da imagem passa a prescindir de uma narrativa. Béla Tarr
não poderia estar se referindo a outra coisa quando diz que sempre se ocupou de filmar o mesmo
filme, ainda que diferentemente8.

Ora, admitir uma descontinuidade no interior de uma obra cinematográfica que diz
haver filmado sempre o mesmo filme não pode significar a ruptura com um passado de
produção para o início de uma nova filmografia; trata-se, isto sim, de perceber algo que se passa
entre o antes e o depois, enquanto sensação do tempo. É neste ponto, inclusive, que a literatura
pôde implicar uma transfiguração no procedimento tarriano, não apenas porque a imagem
cinematográfica ganha nova consistência, mas porque o próprio demônio que protege esse
procedimento desde o início mudou sua qualidade. Por isso, não se trata de pensar essa dobra
do procedimento tarriano que se dá a partir de Maldição como o fim de uma modalidade criativa,

8 Cf. entrevista com Eric Schlosser (Tarr, 2000).

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ou como o ponto no qual Béla Tarr teria concretizado sua intenção cinematográfica. O
fundamental aqui é notar como o cinema atinge o limite daquilo que ele pode ver no e do
mundo, onde o demônio que o protege não cessa de mobilizá-lo, de perturbá-lo, de forçá-lo a
se transmutar. E como poderia ser de outro modo, se o próprio tempo não cessa de fazer
acontecer o procedimento tarriano em sua diferenciação contínua, sem meta clara e produzindo
permanentemente uma imagem distinta e obscura? Como Karrer sugere em Maldição, a própria
imobilidade da imagem, como paisagem, pode estar permanentemente em distinção: “Por anos
e anos estive sentado lá” olhando atentamente a instabilidade das coisas. Vale lembrar, trata-se
das coisas que se apegam a ele, lançando-o para fora de si, deslocando seu pensamento.

Essa descontinuidade na obra do cineasta, como destacamos, é inseparável do encontro


com László Krasznahorkai9, o qual já tinha uma longa trajetória na vida literária e que permitiria
ao procedimento tarriano mergulhar ainda mais profundamente nas misteriosas dobras que
acontecem entre a literatura e o cinema.

Sendo os encontros a força decisiva do procedimento tarriano, não é por menos que o
filme Harmonias de Werckmeister é marcado por encontros radicais, cuja desmedida intensidade
tende a deslocar o pensamento de suas personagens e, mais do que a experiência delas, a própria
percepção da câmera.

O encontro de Valuska com a baleia gigante, enclausurada no interior de um contêiner


em meio à praça pública, dá testemunho deste tipo de acontecimento no qual o tempo aciona
um pensamento em estado puro. Valuska, o carteiro, ou o idiota da pequena vila – como dirá
Rancière (2013) –, ao ver a imensidão intangível daquela baleia, passa a sentir e a pensar de
modo absolutamente diferente. Trata-se de um encontro sem precedentes que captura a
personagem e a arremessa a um mundo outro.

No início desse filme, Valuska já aparecia como um ser à procura do esplendor do


cosmos, desejando conectar os corpos da terra com as harmonias dos astros. Ora, aquilo que
perceberemos como surpreendente no seu encontro com a baleia é a descoberta da própria terra
como potência do cosmos. Não se trata mais, portanto, de buscar uma harmonia entre corpos

9 Valenotar que a primeira parceria de Béla Tarr (que já havia lido os livros do escritor) e László Krasznahorkai se
deu com o objetivo de filmar a média-metragem The last boat (1989); entretanto a participação do escritor na obra
do cineasta teve início anteriormente, com o roteiro do filme Maldição.

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e astros, mas de entrar em uma dissonância que acontece na própria vida, no próprio
pensamento que mergulha num cosmos de pura sensação.

É neste tipo de acontecimento que o pensamento descobre a desarmonia do cosmos e


estabelece com ele um acorde dissonante. Os gongos do tempo saem dos eixos e o
acontecimento dá ao presente a dimensão de uma nova sensibilidade, na qual a palavra ainda
não habita, e o pensamento conecta-se a um corpo imensurável – uma paisagem que entrega ao
pensamento a caoticidade10 de sua gênese.

É a presença da natureza, nos diz Béla Tarr. Acreditamos que não estaremos nos
distanciando do cineasta se dissermos que esta natureza é a do tempo dionisíaco, ou ainda, deste
demônio que persegue, perturba e protege o procedimento tarriano:

nós queríamos apenas mostrar algo que dissesse respeito à potência da natureza. Desde Maldição
tenho sempre me perguntado sobre essas questões: qual a potência da humanidade? Qual a
potência da natureza? … Isto porque nós somos parte da própria natureza. (Tarr, 2012, p. 1,
tradução nossa)

A situação do tio de Valuska, sr. Eszter, no final de Harmonias de Werckmeister parece


fazer ecoar a experiência vivida pelo sobrinho quando encontra a baleia; contudo, é preciso
notar a importância da afasia nesta cena. Ela introduz uma variável que lhe é própria, pois o
encontro do sr. Eszter com a baleia, em especial com o olho do animal gigantesco, guarda toda
a intensidade da mudez das palavras, antes somente esboçada. Agora o silêncio das palavras
remete à aldeia, calada perante diversas revoltas que a conduziram à exaustão. Mas é no interior
dessa mesma condição de exaustão que o encontro parece poder ainda mais, pois a afasia do
sr. Eszter não é a do silêncio de um luto; ao contrário: revela o encontro com o tempo do
mundo, onde palavras e homens só podem tropeçar.

Os blocos de sensações apresentados neste estudo acentuam a presença de vazios, ao


mesmo tempo inóspitos e absolutamente singulares, que fazem da imagem cinematográfica de
Béla Tarr o possível rascunho de cada novo deslocamento de pensamento. Ora, e não foi

10Caos, ou caótico, não deve ser compreendido como oposto à ordem, como se dependesse dela para existir. Ao
contrário, aqui deve ser entendido como aquilo que antecede toda ordem das palavras e do tempo, quebra-os e é,
simultaneamente, condição para a criação. Como escreveram Deleuze e Guattari (2007, p. 59): “O que caracteriza
o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se
apagam: não é um movimento de uma a outra, mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas
determinações, já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece como evanescente
quando a outra desaparece como esboço”.

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justamente este modo singular de experiência cinematográfica, articulada à força da literatura e


à urgência do mundo, que deu consistência ao procedimento tarriano?

O transbordar dos demônios: implicações no campo da


educação
Em uma de suas entrevistas a respeito do filme O cavalo de Turim emerge uma questão
crucial, que traz à cena a reflexão sobre os limites do pensamento:

– Por que há tanto pessimismo em seus filmes? – Pergunta alguém da audiência.


– Diga-me – responde Béla Tarr –: após assistir ao filme, você se sentiu fortalecido ou
enfraquecido?
– Fortalecido.
– Obrigado, você respondeu à sua própria pergunta. (Kovács, 2013, p. 165)

Béla Tarr insiste num deslocamento vital: a recusa ao imperativo da ordem narrativa em
favor da qualidade intensiva das imagens. Realiza assim não um cinema do saber, ou da
representação, mas um cinema das intensidades, das forças, do tempo, dos olhares, do cosmos
que há em cada visão que lhe vem de fora.

Arredio à imagem confortável de um mundo cifrado no escalonamento entre passado,


presente e futuro, esse modo de pensamento aposta na potência das fissuras, naquilo que
impensavelmente tende a desestabilizar a ordem do mundo. Para usar as palavras de Pelbart
(2010, p. 153), trata-se de ensaiar a “produção do Novo a partir do dia qualquer, do instante
qualquer”.

Não é de assombrar, portanto, que após O cavalo de Turim, seu filme de despedida, Béla
Tarr tenha insistido em afirmar que não realizaria outro filme, pois não lhe restava nada para
dizer: mais do que Béla Tarr11, é o procedimento tarriano que havia triunfado, fazendo o
demônio saltar para fora da tela, capturando assim o olho pensante do espectador.

As forças da exterioridade, a incitação do fora, se afirmam como condições de potência


para uma experiência de pensamento. Quando uma exterioridade literária – essa força

11 Cf. entrevista com Gary Pollard (Tarr, 2011).

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privilegiada para o encontro com o limite do pensável – se encontra com a desmesura do


mundo, a partir do olhar pensante do cinematógrafo, emerge uma experiência outra de
pensamento. Béla Tarr expressa esse acontecimento, por exemplo, quando nos diz:

Todos os dias há microelementos que são muito importantes. Por exemplo, em Maldição, nós
abandonamos sua história para ver em close-up um conjunto de canecas de cerveja. Para mim isto
é uma história importante. É isto o que eu quero dizer quando digo que estou tentando ver as
coisas de um ponto de vista cósmico. (Tarr, 1994, tradução nossa)

A história, ou este tempo outro de uma imagem, sua potência, ou ainda, a dignidade
daquilo que ela permite ver não é, portanto, a narrativa do filme, mas estes pontos cósmicos
nos quais o próprio tempo é cindido por uma matéria, intensamente movente, que lhe é exterior.
É este o tipo mais demoníaco dos encontros. Aquele que força o olhar a apreender um instante
do mundo – quando, como insiste Béla Tarr12, não temos certeza se é a matéria que nos fala ou,
antes, o demônio que nos move. Na experiência de pensamento aí forjada, a narrativa segue e
parece ter necessidade de seguir, mas ela perdeu o dever de sua coerência; tornou-se secundária
em relação às forças anômalas que lhe chegam desde fora.

Colhamos, pois, as centelhas que pulsam nessa experiência de pensamento produzida


pelo procedimento tarriano, cuja marca se faz por um demônio presente todo o tempo.
Apontemos, assim, alguns dos efeitos do transbordar dos demônios no campo da educação.

O primeiro ponto fundamental se refere ao modo de articular uma experiência de


criação do campo da arte com o campo da educação. O trabalho de criação desdobrado do
procedimento tarriano nos permite perceber como é possível uma injunção entre dois campos
de criação – no caso, literatura e cinema – de um modo não linear, não representacional. Em
outras palavras, no procedimento tarriano a literatura não se oferece como conteúdo ou
substância de um cinema que a representaria numa linguagem outra, audiovisual. Ao contrário:
a experiência de pensamento tarriana talhada no encontro entre literatura e cinema se produz
exatamente por uma recusa à lógica da representação e, ao mesmo tempo, por uma necessidade
de afirmar aquilo que é exterior tanto ao saber literário quanto ao saber cinematográfico.

Esse modo de proceder, esse procedimento tarriano, nos atiça a pensar e problematizar
nossas próprias experiências no campo educacional. Assim, num exercício de autocrítica,
indagamo-nos: em que medida temos insistido em operar a partir de relações lineares de

12 Cf. entrevista com Gary Pollard (Tarr, 2011).

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representação entre os saberes? Dito de outro modo: em que medida o território da educação
lança mão de saberes dos campos das artes – cinema, literatura, teatro, artes visuais, dança etc.
– tão somente como linguagens de representação de certos conteúdos de pensamento?

Nosso encontro estratégico com o pensamento tarriano e com o pensamento deleuziano


e deleuzo-guattariano, por meio do presente estudo, permite-nos colocar em questão esse
procedimento representacional entre saberes que visa tão somente reiterar certos modos de
pensar e conhecer.

Recusar a relação de representação entre saberes permite-nos apreender a experiência


de pensamento como algo que excede uma mera experiência de conhecimento, pois traz à pauta
a criação que se instaura quando evocamos uma experiência de exterioridade tomando-a como
condição mesma do pensar.

Essa discussão nos permite pautar o problema da experiência de pensamento em


educação numa mirada não representacional, saindo de uma lógica educacional clássica, herdeira
da tradição moderna na qual o pensamento se confunde com a cognição e o conhecimento se
concebe como esse exercício de recognição de saberes.

Faz-se necessário tomar a experiência de pensamento não como representação, nem


como recognição, mas como criação: eis o efeito do transbordar dos ditos demônios no campo
da educação. Na condição de profissionais atuantes na área educacional, esse efeito demoníaco
no pensamento nos impõe uma tarefa ético-política e urgente: tomar a experiência de
pensamento necessariamente como uma força e não como mera habilidade cognitiva, de
natureza operativa, instrumental.

O transbordamento dos demônios no campo educacional também nos faz defrontar


com outra questão: o modo como se experiencia uma condição limite do pensamento e suas
estratégias de ultrapassagem.

Nossa incursão pelo procedimento tarriano nos permite colocar em pauta, no campo
educacional, outro modo de tomar o limite do pensar. Do encontro com Béla Tarr
experienciamos que um limite não remete a uma linha de fronteira estabelecida por um saber
anterior e exterior à experiência. Limite refere-se à potência de um encontro-limite, no qual o
que se depreende é a intensidade do efeito que ali emerge, condição que, do limite, faz dobrar
o ilimitado. É neste o ponto que o saber atinge a desmesura do pensamento, o extremo daquilo

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que ele pode: lá onde a vida “se desenvolve e desenvolve toda a sua potência” como um
“monstro de todos os demônios”, como afirma Deleuze (2000, p. 95).

Assim, o limite não é marca de distinção entre saber e não saber, mas condição extrema
de pulsação na qual o próprio saber encontra-se em estado virtual de conexão com seu fora –
eis aquilo que aqui se denomina de uma experiência de pensamento.

Desse modo, defendemos que a ativação do encontro entre campos distintos – no


sentido proposto por Deleuze e Guattari (2007) – possibilita-nos experienciar as potencialidades
da conversação entre educação, arte e filosofia, numa perspectiva não representacional. A
incursão pelo procedimento tarriano constitui, no presente estudo, uma frente analítica fecunda
para espreitar os modos pelos quais uma experiência de pensamento vai se engendrando
lentamente na medida mesma de intensificação de um encontro de linguagens (cinema e
literatura) – encontro este que, recusando as operações clássicas da representação, busca, na
plenitude de sua imanência, potencializar suas exterioridades.

Defendemos que esse encontro com uma exterioridade advinda do pensamento


deleuziano, deleuzo-guattariano e tarriano permite ao campo educacional acionar seus próprios
demônios, atiçando o fora desse dito território e fazendo desse ato mesmo uma experiência de
pensamento de envergadura radicalmente crítica.

Esses jogos de transtorno do pensamento, travados na criação de procedimentos


artísticos específicos, produzem um efeito de assombro no horizonte mais espraiado da cultura,
uma vez que se tornam incapturáveis pelas malhas do pensável.

Assim, a problematização ético-política das experiências de pensamento – no sentido de


qualificar uma crítica outra perante um modo de pensamento capturado pela recognição – se
impõe como uma urgência contemporânea, seja no âmbito mais extensivo das práticas culturais,
seja no domínio mais localizado das experiências educacionais. Trata-se de reposicionar a
educação, tomando-a como experiência do pensar, e não mera estratégia do conhecer.

Colocar em xeque certos modos de pensamento da cultura a partir da ativação singular


das experiências de pensamento educacionais pode ser uma modalidade outra de ação crítica,
cuja tônica não se faz a partir dos conteúdos do pensável, mas de uma interpelação radical dos
modos pelos quais o pensável se impõe como pensável e se reitera nas tecnologias educacionais.

A travessia analítica aqui disposta aponta que o encontro com a sensibilidade das
imagens tarrianas nos incita a tocar a sensibilidade da própria experiência de pensamento no

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http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2017-0092

e-ISSN 1980-6248

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Submetido à avaliação em 14 de maio de 2017; revisado em 18 de outubro de 2017; aceito para publicação em
15 de maio de 2018.

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