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A liberdade de limitar-se: psicanálise e teoria do poder
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psicanalise-e-teoria-do-poder/)
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23 ago 2018
O moralismo que deu luz ao nosso momento atual entrou em colapso. O princípio de
autolimitação foi trocado pelo modelo no qual a liberdade é exercer todo o poder que se pode.
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04/03/2022 10:33 A liberdade de limitar-se: psicanálise e teoria do poder – Instituto de Psicologia – USP
A psicanálise desenvolveu uma pequena teoria prática sobre o poder. Quando alguém procura
a nós, psicanalistas, em geral este alguém está questionando suas posições e decisões na vida.
Por isso mesmo abre-se para ouvir, pedindo que o outro lhe dê alguma direção, uma pista e
até mesmo um conselho sobre a pergunta fundamental: o que fazer? Esse pedido não é
apenas uma demanda formal, como a que fazemos para um consultor financeiro ou jurídico,
mas emerge em uma relação de confiança e intimidade, adquirida e formada pela escuta
paciente e cuidadosa sobre os aspectos que deram luz da rede de problemas que cercam uma
vida. Portanto, estamos nas condições ideais para sugerir e orientar, posição com a qual muitos
educadores sonham porque lhes garantiria o trabalho disciplinar que é tão difícil de obter em
situações institucionais.
Ocorre que toda a graça e quase toda a arte da psicanálise consiste em renunciar ao exercício
deste poder que o próprio paciente nos incita e nos pede para praticar. É porque nós não
agimos com o poder que nos é atribuído, entendendo que a natureza dessa atribuição é por si
só problemática, que a psicanálise transforma o poder imaginário da sugestão em autoridade
simbólica da transferência. Nós não o fazemos, contra o pedido e a demanda, por vezes
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explícita, de nossos pacientes. Nós não vamos para a cama com eles, não usamos nossas
informações para obter benefícios indiretos, não nos associamos nem empreendemos nada
com eles, muito menos nos satisfazemos em sermos amados como uma imagem sábia ou
benevolente. Todo o poder que a situação nos confere, com exceção do poder de contribuir
para a transformação do próprio paciente, nos é interditado.
Ora, todas as atividades humanas que dependem de situações análogas deveriam seguir a
mesma regra. Ou seja, padres e pastores nunca deveriam usar a autoridade que lhes é
concedida para indicar candidatos ou eles mesmos se apresentarem como postulantes a
cargos representativos. Também médicos e professores jamais deveriam aproveitar-se desse
tipo de situação para extrair benefícios secundários da relação de tratamento ou de ensino
para criar laços secundários. A liberdade que se exerce nessas atividades é dada pelo limite
que se escolheu.
Quando acompanhamos a reforma política, quando vemos a discussão sobre os ditos “dez
pontos contra a corrupção”, quando examinamos as posições recentes de nosso sistema
judiciário, encontramos uma inversão direta e regular desse princípio de autolimitação, sem
que, curiosamente, ninguém o invoque como uma plataforma explícita e crivo de avaliação das
práticas políticas. Tudo se passa como se a complacência cultural tornasse esse ponto ocluído
e nublado. Nenhuma marcha contra a corrupção, nenhuma transformação institucional,
nenhum uso da força popular e institucional que aparentemente tinha isso como motor de
transformação.
Contudo, não é assim que pensamos usualmente a liberdade. Talvez isso ocorra porque
quando se tem muito pouco, quando os meios materiais são exíguos, não conseguimos
exercer as oportunidades de renunciar ao gozo para obter efeitos de liberdade em termos da
lei do desejo. O segundo problema aqui é que tendemos a nos achar idiotas por seguir esse
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modelo enquanto todos os outros à nossa volta se beneficiam do modelo contrário; de modo
que, para não ficar para trás, somos impelidos para frente, mesmo que diante de nós exista um
precipício.
Mas, atenção: renunciar ao gozo não é renunciar aos prazeres, levar uma vida frugal, dentro
dos limites da parcimônia. Ainda que essa possa ser uma opção individual, a verdadeira
oposição não é entre hedonistas e sacrificados, mas entre aqueles que, diante do poder,
podem escolher outra coisa e aqueles para os quais o poder se torna uma coerção e um gozo,
um exercício compulsório. Diante da regra “se é permitido então, para mim torna-se obrigatório”,
é possível responder: “justamente porque é permitido que, para mim, não se tornará obrigatório”.
Para os que muito têm, essa desculpa não vale. Estar à altura simbólica do patrimônio
econômico que se tem implica separar-se do lema de que “a ocasião faz o ladrão” (logo, tu és já
um ladrão), ultrapassar a fase na qual minha educação depende da sua (logo, não tens
educação alguma), implica poder contar a história do seu dinheiro, sem vergonha (a pontuação
escolhida aqui, pelo leitor, revelará algo de sua própria posição na matéria). Aquele que precisa
vigiar ao máximo as ocasiões para extinguir os bárbaros e ladrões, é incapaz de escolher seus
próprios limites. Caro, custoso e ineficiente. Tem que ser feito, mas é a opção mais simples, não
a melhor. Infelizmente, as práticas correntes hoje em dia em termos de recursos humanos e de
planejamento de negócios, reunidas em torno do lema da austeridade, da gestão otimizada, da
redução de custos, também sofrem do mal da impossibilidade de autolimitação. Onde estão os
sócios dispostos a limitar seus ganhos hoje em vista de um formato mais viável de
desenvolvimento amanhã?
É isso que torna o discurso de Trump tão difícil de aceitar quando ele se retira do acordo
internacional para suspender emissão de poluentes. Trata-se do exercício do poder porque ele
é poder. Se posso construir um muro, por que não? Se posso atacar a Coréia, por que não?
Versão nacional: a reforma da previdência é necessária, por mais dolorosa que seja, mas ela é
de fato uma autolimitação, ou o Estado está apenas limitando os outros para deixar de limitar-
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se a si mesmo? Limitar-se a si mesmo não é reduzir a extensão dos projetos sociais, e sim
suspender o uso do fisiologismo, da liberação de verbas para deputados em troca da
manutenção do mandato. É porque sabemos que a autolimitação é crucial que somos tão
facilmente enganados pela retórica dos cortes, das reduções e do desinvestimento.
Quando vemos, a céu aberto, deputados que deviam pensar formas de autolimitação, para
criar regras que no futuro beneficiarão a todos nós, trocarem o futuro possível pelo presente
de autoconservação; quando vemos pessoas comuns aceitarem esse exercício da incapacidade
de se autolimitar, como se isso fosse a única opção possível, fica óbvio que o moralismo que
deu luz ao nosso momento atual entrou em colapso. Fica clara a substância obscena da qual
ele era feito. Não se tratava de “tirar Dilma”, como início de uma reforma baseada na
autolimitação do poder, que subsequentemente tiraria Temer, seguido de “todos os outros”,
até que o próprio sistema se visse constrangido a exercer a autolimitação que dele se espera.
O princípio de autolimitação que estamos todos, direita e esquerda, dispostos a apoiar, assim
que tivermos mostras reais de quem o representa, foi trocado por outro modelo de liberdade:
o modelo no qual a liberdade é exercer todo o poder que se pode. Um exemplo caricato disso:
no dia da votação do afastamento de Temer, minha caixa postal se encheu de e-mails
perguntando se eu não iria me posicionar sobre a Venezuela. Uma amostra cabal de como o
processo todo foi pensado a partir da limitação do outro, que chega ao deslocamento bizarro
de preferir preocupar-se em limitar outro país, ao invés de ocupar-se da nossa própria
autolimitação. Prefere-se insistir na criação de inimigos petistas e esquerdistas, que precisam
ser limitados em nossas universidades em vez de questionar o corte de verbas para ciência e
pesquisa. A retórica de que nosso problema é que o outro está gozando demais serve para um
tipo de liberdade que deveria se chamar de prisão domiciliar.
Outro exemplo. Os que dizem que não houve golpe pensam segundo o princípio da liberdade
positiva. Isto é: “se está na lei, pode. Se pode, então deve. Se deve, e nos é conveniente, então que
se faça”. Alguns, mas não todos, que dizem que houve golpe estavam em dúvida razoável
quanto à hipótese de que a liberdade negativa podia sim estar em jogo nesse movimento. Por
isso, me mantive relativamente quieto quanto a este ponto durante os primeiros tempos da
experiência Temer.
A única vantagem de Temer, aquilo que podia tê-lo transformado em um herói trágico
inesquecível, é que ele poderia ter usado a “ocasião” de exceção para se autolimitar. Fazer
reformas políticas drásticas, criar cláusulas de barreiras para partidos, estabelecer voto distrital,
suspender manobras e acordos seculares em torno de juros, tributação orquestrada e
extorsiva, aprovar leis contra a corrupção (que são tão mais eficazes porque mostram que o
poder é capaz de se conter, do que pelo medo que inspiram nos meliantes profissionais). Ele
podia fazer o que se esperava dos tiranos na Grécia antiga, mas – e isso dá o sabor
apequenado ao seu reinado e aos que, silenciosamente o apoiam – preferiu a liberdade da
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