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An hermeneutic approach
to health-disease relationship
Andrea Caprara 1
1 Departamento de Saúde Abstract This work aims to contribute to the current discussion on the relationship between
Pública, Centro de Ciências
health and disease, taking a hermeneutic perspective on the issue. The first section, referring to
da Saúde, Universidade
Estadual do Ceará. the discussion among the hermeneutic, phenomenological, and existential lines of philosophy,
Av. Paranjana 1700, analyzes the work of two philosophers, Kierkegaard and Heidegger, who profoundly influenced
Fortaleza, CE
contemporary hermeneutics. The article discusses the concept of anguish, which for Kierkegaard
60740-000, Brasil.
a.caprara@flashnet.it (contrary to the biomedical approach) is a constitutive component of human beings: for
Kierkegaard, as subsequently for Heidegger, anxiety is not a pathological symptom but a state
that allows for privileged access to self-knowledge. In the second section, we approach how
hermeneutics, and especially the work of Gadamer, developed the concepts of health, illness, and
suffering; we also analyze how in recent years this perspective has influenced the social sciences
(and particularly medical anthropology) in their approach to health problems. The third and fi-
nal section discusses the implications of hermeneutics for clinical training and practice, demon-
strating the applicability of Heidegger’s and Gadamer’s thinking for work by physicians and
nurses.
Key words Medical Philosophy; Medical Antropology; Health-Disease Process
Resumo Este trabalho pretende contribuir para a discussão presente sobre a relação entre a
saúde e a doença, abordando a problemática por meio da perspectiva hermenêutica. Na primei-
ra parte, retomando a discussão que foi se desenvolvendo dentro das linhas filosóficas herme-
nêutica, fenomenológica e existencial, será analisada a obra de dois filósofos, Kierkegaard e Hei-
degger, que influenciaram profundamente a hermenêutica contemporânea. Será apresentado o
conceito de angústia que, ao contrário da abordagem biomédica, para Kierkegaard é um compo-
nente constitutivo dos seres humanos: para este autor, assim como sucessivamente para Heideg-
ger, a ansiedade não é um sintoma patológico mas um estado que permite um acesso privilegia-
do de autoconhecimento. Na segunda parte, tentaremos abordar como, na hermenêutica, e prin-
cipalmente na obra de Gadamer, foram sendo desenvolvidos os conceitos de saúde, doença, sofri-
mento; analisaremos também como esta perspectiva influenciou, nos últimos anos, as ciências
sociais que abordam os problemas de saúde, em particular a antropologia médica. Na terceira e
última parte, apresentaremos as implicações da hermenêutica na formação e prática clínica,
mostrando a aplicabilidade do pensamento de Heidegger e Gadamer no trabalho de médicos e
enfermeiros.
Palavras-chave Filosofia Médica; Antropologia Médica; Processo Saúde-Doença
parte, tentaremos abordar como, na hermenêu- nêutica na pesquisa qualitativa na área da saú-
tica, e principalmente na obra de Gadamer, fo- de. Apesar da presença de numerosos métodos
ram sendo desenvolvidos os conceitos de saú- existentes, as premissas filosóficas comuns de
de, doença, sofrimento; o trabalho de Gada- Ricoeur e Gadamer constituem a base de dife-
mer, filósofo alemão, considerado hoje pai da rentes abordagens na análise das narrativas
hermenêutica contemporânea, foi influencia- (Geanellos, 2000; Robertson-Malt, 1999; Todres
do por Kierkegaard e por Heidegger (Schleibel, & Wheeler, 2001).
2000). A saúde, segundo Gadamer (1994), fica
escondida por boa parte do tempo, revelando-
se através do bem-estar. Nesse estado, esque- A terceira margem da saúde:
cemos de nós e somente nos momentos de can- a angústia em Kierkegaard e Heidegger
saço, de esforço, de fadiga, lembramos de novo
do nosso estado. Nesse sentido, para Gadamer O termo hermenêutica na filosofia grega ex-
(1994), a saúde coincide com o ser no mundo, pressa a arte de interpretar. Com o passar do
com a satisfação de ter uma vida ativa. A pers- tempo adquiriu um significado mais amplo, in-
pectiva hermenêutica permite uma nova cons- dicando, no âmbito filosófico, diversas formas
trução de modelos de saúde-doença, que recu- de teoria da interpretação, entre as quais o exis-
peram a dimensão experiencial, assim como tencialismo, a fenomenologia e a própria her-
aquela psicossocial. (3) Na terceira e última menêutica, que constituem diversas formas de
parte, apresentaremos as implicações da teoria expressão da filosofia continental. Os filósofos
interpretativa na formação e prática clínica, que pertencem a esta linha de pensamento se
mostrando a aplicabilidade do pensamento de ocupam da existência humana, não do ponto
Heidegger e Gadamer no trabalho de médicos de vista da observação, mas da reflexão filosó-
e enfermeiros (Dreyfus & Zimmerman, 1991; fica. Nessa perspectiva, o homem é considerado
Svenaeus, 1999; Wiklund et al., 2002). A abor- não somente enquanto organismo biológico,
dagem hermenêutica da medicina nos permite mas algo mais, assim como a medicina é consi-
explorar a experiência humana da doença, en- derada algo mais do que a ciência natural.
tender como os pacientes lidam com suas ex- Para esclarecer melhor a abordagem her-
periências específicas frente aos médicos, em menêutica em relação à saúde e à doença, co-
relação à saúde, à doença e ao sofrimento (Ro- meçaremos com um exemplo que se refere ao
bertson-Malt, 1999). Os pacientes, tradicionais conceito de angústia (angst), tal como desen-
“objetos” da prática médica, são na verdade volvido por Kierkegaard (1813-1855) e Heideg-
indivíduos que vivem, refletem e que, juntos ger (1889-1976). Para estes autores, a angústia
com o médico, transformam o encontro clínico deve ser considerada como elemento constitu-
(Evans & Sweeney, 1999). Nos últimos anos foi tivo dos seres humanos; em particular, para
se desenvolvendo uma grande área de reflexão Kierkegaard (1952), a angústia constitui um es-
e pensamento denominada “humanidades mé- tado fundamental da existência humana. Os
dicas”, que pretende explorar como a experiên- seres humanos que não conhecem a melanco-
cia humana lida com outras experiências de lia têm um espírito que não conhece a meta-
pacientes, médicos, saúde, doença e sofrimen- morfose (Kierkegaard, 1952, 1972). Ao mesmo
to. Na formação em medicina, a abordagem tempo, para Heidegger, a ansiedade não é um
das humanidades médicas prevê a incorpora- sintoma patológico, mas um estado que permi-
ção de elementos das ciências humanas (filo- te um acesso privilegiado de autoconhecimen-
sofia, psicologia, antropologia, literatura) nos to (Heidegger, 1976).
cursos de graduação e de especialização. Nesta Um caso clínico, citado por Wulff et al.
concepção integrada das humanidades médi- (1995:152), ilustra com clareza este tema: “Uma
cas, a medicina é entendida como forma de au- mulher de 45 anos, aproximadamente, procura
to-exploração, reconhecendo que os compo- um especialista por problemas nervosos. Trata-
nentes material e experiencial são fundidos en- se de uma dona de casa, divorciada, que não
tre eles (Evans & Sweeney, 1999). As humanida- consegue dar finalidade à sua própria existên-
des médicas pretendem não somente melhorar cia. Os filhos são adultos, deixaram a casa, ela
a relação médico-paciente, as capacidades co- perdeu os amigos e não consegue sair de casa so-
municacionais dos médicos, mas também apro- zinha. Na maior parte do tempo encontra-se em
fundar a narrativa do paciente e procurar novas um estado de ansiedade permanente. O psi-
formas de promoção do bem-estar, reduzindo quiatra escuta a história e em função de sua
o impacto da doença e do sofrimento (More, concepção de doença mental, caso ele siga a
1976; Widdershoven, 1999). Enfim, temos de perspectiva biologista, poderá seguir uma tera-
considerar a utilização da abordagem herme- pia comportamental ou prescrever um ansiolí-
tico”. Para a perspectiva hermenêutica, ao con- Heidegger (1976), em Ser e Tempo, aborda o
trário da abordagem biomédica, o estado de problema da angústia, concordando com Kier-
ansiedade da paciente revela a procura de um kegaard de que se trata de um estado funda-
novo significado de vida; trata-se de um pro- mental, mas afirma também que está vincula-
blema existencial, não somente de um proble- da à nossa compreensão e interpretação do uni-
ma biológico ou comportamental. Para os filó- verso. Para Heidegger a compreensão não é um
sofos existencialistas, fenomenológicos e her- fenômeno psicológico, mas um estado consti-
menêuticos o interesse se dirige aos problemas tutivo dos seres humanos como a angústia.
existenciais, interpretando as ações humanas. O homem, para Heidegger, continuamente
Colocaremos a questão principalmente em re- procura compreender/interpretar o significa-
ferência às angústias persistentes e que esti- do de mundo. Quem não se coloca no mundo
mulam a procurar uma nova finalidade da exis- como ser interpretante perde a própria subjeti-
tência. vidade (Wulff et al., 1995). A angústia nos indi-
As concepções de Kierkegaard sobre o ho- ca que os significados do mundo mudaram e
mem são constitutivas para o desenvolvimento que os contatos com os outros seres humanos
das idéias de filósofos existencialistas como perderam seu próprio significado (Wulff et al.,
Heidegger e Jean Paul Sartre. Heidegger (1977), 1995). É neste sentido que para Heidegger a an-
afirma na obra Sein und Zeit, que Kierkegaard gústia permite o acesso à autoreflexão. Para a
foi muito importante no desenvolvimento do perspectiva hermenêutica, as pessoas que vi-
conceito de angústia, angst Para Kierkegaard vem um estado de ansiedade não somente têm
(1991), a angústia é um componente constitu- de ser diagnosticadas de um ponto de vista clí-
tivo dos seres humanos; quem não conhece a nico, mas é necessário que comecem um pro-
angústia não é um ser humano. Como afirma o cesso de reflexão sobre sua própria existência.
mesmo Heidegger (1976), Kierkegaard aborda Essa pessoa é livre para escolher, mesmo se de-
o conceito de uma perspectiva cristã enquanto cide não enfrentar esses problemas e utilizar
que Heidegger faz isso desde uma perspectiva somente ansiolíticos, mas nesse caso dificil-
secular (Dreyfus, 1991). Para Heidegger a an- mente poderá dar uma solução a seus proble-
gústia serve como um transtorno que revela a mas existenciais. Uma abordagem biomédica
natureza do Dasein, que poderíamos traduzir permite controlar a depressão, ou a ansiedade,
como: “existência humana cotidiana”, de ser no ou a angústia por meio da utilização de psico-
mundo (Dreyfus, 1991). fármacos eliminando ou reduzindo a sintoma-
Somente por meio de uma processo de re- tologia, mas a perspectiva hermenêutica colo-
flexão filosófica é possível, para os filósofos da ca-se de forma crítica frente a este modo de
tradição hermenêutica, aprofundar nossos co- abordar os problemas. A utilização dos psico-
nhecimentos sobre as características constitu- fármacos é aceita somente naquelas formas,
tivas dos seres humanos. Também os estudos tais como as psicoses maníaco-depressivas ou
empíricos sobre os seres humanos permitem a esquizofrenia, em que a utilização de medi-
descrever o funcionamento e as ações huma- camentos é indiscutivelmente necessária.
nas, mas estes dados têm de ser interpretados Para os empiristas as conclusões da abor-
sucessivamente por meio da abordagem her- dagem hermenêutica não podem ser demons-
menêutica. No livro A Doença Mortal, Kierke- tradas cientificamente, e não sendo considera-
gaard (1952) enfatiza como os seres humanos das nem verdadeiras nem falsas, são simples-
se relacionam com si mesmos e se percebem mente sem sentido. Por outro lado, os herme-
como seres que atuam livremente. Nesse senti- neutas afirmam que os empiristas colocam mal
do, os seres humanos podem ser considerados a questão porque também os resultados cientí-
como uma conjunção entre dimensão biológi- ficos têm de ser interpretados e que a maneira
ca e psicossocial, em um processo de autore- com a qual se aborda um problema tem uma
flexão, de liberdade. Por isso, para Kierkegaard influência sobre o método que será escolhido.
a angústia é a realidade da liberdade (Dreyfus, É impossível utilizar sempre o mesmo método
1991). Nessa concepção, a angústia humana científico em diferentes áreas. Segundo Wulff
constitui um estado fundamental vinculado et al. (1995:162-163): “a análise hermenêutica é
estritamente à capacidade de autoreflexão, de um processo inicial indispensável porque não
atuar livremente, identificando as possibilida- tem sentido um estudo empírico das proprieda-
des da liberdade (Dreyfus, 1991). Esta dimen- des de uma pessoa sem se ter analisado o con-
são deve ser separada da esfera mental em que ceito de pessoa. Por esta razão, a ciência natural
se manifestam os sentimentos como o medo, é subordinada à reflexão hermenêutica”.
que são reações comuns e presentes também
nos seres animais.
gia médica por meio de uma abordagem inter- zes. Mas o problema está ligado ao fato de que
pretativa que, como ele mesmo afirma: “man- o texto médico se expressa por meio de uma
tém uma conversa aberta com a teoria crítica” linguagem simples, neutra, que pretende evitar
(Good, 1994:63). as emoções. As frases dos artigos científicos são
constituídas por sujeitos impessoais, sem in-
credulidade, sem dor, sem paixão. É por isso
As implicações da teoria interpretativa que a ansiedade médica frente ao sofrimento, à
na formação e prática clínica morte, à doença, procura o texto literário, a fic-
ção, a poesia como formas de expressão. A co-
Esta perspectiva nos convida a repensar não municação médico-paciente pode ser aprendi-
somente a prática médica mas também a for- da como técnica, mas certamente a obra literá-
mação em medicina, quase sempre ancorada a ria permite construir um contexto ético no qual
uma visão biomédica e tecnicista da doença; a relação vai se desenvolvendo. O médico tem
cada encontro com o paciente tem uma dimen- de entender o paciente de um ponto de vista
são técnica mas também experiencial e ética. A científico, utilizando os instrumentos e os co-
hermenêutica abre novos caminhos na forma- nhecimentos da literatura de maneira que ele
ção e na prática médica, modificando seus ob- possa tomar as melhores decisões no processo
jetivos e suas finalidades, colocando a necessi- diagnóstico e terapêutico. Estas ações, toma-
dade de uma nova compreensão da dimensão das valendo-se da medicina baseada nas evi-
experiencial e do sofrimento do paciente. Este dências, são necessárias mas não suficientes. O
segundo caminho incorpora a dimensão sub- médico tem de adequar sua intervenção clíni-
jetiva do paciente, assim como a dimensão so- ca considerando o paciente enquanto sujeito,
cial, elementos importantes em diferentes as- tomando em conta a experiência da doença, as
pectos da prática clínica como no encontro mé- percepções do paciente, adquirindo uma sen-
dico-paciente (Skultans, 1998). Como apresen- sibilidade e uma capacidade de escuta que vão
tamos em um artigo publicado: “Gadamer con- além da dimensão biológica. Estes aspectos po-
duz a reflexão sobre a humanização da medici- dem ser desenvolvidos somente por intermé-
na, em particular da relação do médico com o dio de um processo de formação mais abran-
paciente, para o reconhecimento da necessidade gente, que incorpore elementos das ciências hu-
de uma maior sensibilidade diante do sofri- manas no desenvolvimento educacional (Simp-
mento do paciente. Esta proposta, em relação a son et al., 1991).
qual várias outras convergem, aspira pelo nas- Nas doenças crônicas (nas quais a biome-
cimento de uma nova imagem profissional, res- dicina oferece somente respostas parciais), a
ponsável pela efetiva promoção da saúde, ao medicina clínica pode responder melhor aos
considerar o paciente em sua integridade física, pacientes, incorporando no tratamento uma
psíquica e social, e não somente de um ponto de análise da experiência do sujeito. Isso poderia
vista biológico” (Caprara & Franco, 1999:648). ajudar a evitar prescrições inadequadas e ex-
Um primeiro aspecto se refere à ética da cessivas de medicamentos. Uma visão restrita
profissão, à atitude de respeito frente aos cole- dos fatores causais, focalizada exclusivamente
gas e aos pacientes, às qualidades morais que nos aspectos biológicos, é inadequada para
o médico precisa ter. Segundo Dawnie et al. compreender o papel dos fatores psicossociais
(2000), essas qualidades podem ser aprendidas na etiologia e como estes se integram às causas
em um processo de formação por meio de qua- físicas.
tro formas diferentes: (1) A leitura e discussão Uma compreensão mais integrada pode
de textos de filosofia moral; (2) A discussão de produzir benefícios na parte diagnóstica tam-
casos que introduzem na discussão aspectos bém. Mesmos se estes benefícios são plausíveis,
éticos; (3) A utilização de um diário de campo, têm de ser demostrados e neste campo ainda
por parte dos médicos, para registrar casos “par- muito tem de ser feito. As evidências também
ticulares” que enfrentam na atividade de con- têm de ser adequadas a uma nova e mais rica
sultório; (4) A utilização da arte, principalmen- concepção de que tipo de evidências são perti-
te da literatura e de peças teatrais. nentes na avaliação clínica. Trata-se de um cam-
As obras literárias permitem abordar as- po que precisa de investigações e elaborações
pectos da vida humana, como o fato de saber conceituais e empíricas. A medicina tem de sa-
lidar com as emoções, que são elementos cons- ber lidar com personalidades, com expectati-
titutivos importantes especialmente na relação vas, medos, ansiedades – além da dimensão bio-
médico-paciente. Como afirma Scliar (1996), a lógica do funcionamento do corpo humano.
relação médico-paciente é inevitavelmente co-
lorida pela emoção, pela angústia muitas ve-
Agradecimentos
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